[email protected] 03/04/13 A Memória Judaica em Pernambuco por Tânia Neumann Kaufman1 É crescente o interesse pela recuperação da memória judaica no Brasil, sobretudo pelos seus vínculos com a historiografia brasileira. Os projetos colonizadores para a América Portuguesa possibilitaram uma migração contínua de cristãosnovos e judeus para Pernambuco. Primeiro, como colonizadores no século XVI, em seguida vieram os judeus portugueses de Amsterdã formando, no século XVII - no período holandês - a primeira congregação das Américas. No final do século XIX e início do século XX, migrando da Europa para alguns países da América Latina, deram origem à atual comunidade do Recife. O espaço de tempo correspondente às duas formações demanda, preliminarmente, um inventário dos marcos da 1 Doutora em História, Mestre em Antropologia e Licenciada em Ciências Sociais. Presidente do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco e curadora das ações museológicas do Museu Sinagoga Kahal Zur Israel. Coordenadora do Núcleo de Pesquisas do Museu Sinagoga Kahal Zur Israel. 1 [email protected] 03/04/13 presença portuguesa e flamenga no Brasil, particularmente em Pernambuco (1630-1654). É provável a existência de artefatos culturais e materiais, camuflados pelo tempo, porém disponíveis às pesquisas. Olinda, o bairro de Santo Antônio, o bairro do Recife e tantos outros logradouros, guardam os resíduos das ousadas obras do Príncipe Maurício de Nassau e surpreendem pela preservação dos traçados com origem no tempo dos flamengos. Entre outros elementos, incluem-se datas e personagens históricos, tradições e costumes, regras de convívio social, folclore, música, culinária, arte e artesanato. O conjunto arquitetônico da capital pernambucana, caracterizado pelo estilo holandês e português, chamou a atenção de observadores que nos visitaram ao longo dos séculos XVIII e XIX. Muitos são os registros de viajantes, de cronistas luso-brasileiros e também flamengos, redigidos enquanto a tradição oral dos séculos XVII e XVIII ainda se fazia presente. Com o governo de Johan Maurits van Nassau-Siegen (conde Maurício de Nassau), representando a Companhia das Índias Ocidentais, entre 1636 a 1644, artistas também integravam o elenco daquele governo no Brasil. Graças à sua sensibilidade, o Brasil do século XVII foi registrado iconograficamente, o que se transforma, ao longo do tempo, não só em testemunho ocular, mas em projeção do passado para um aprofundamento das relações culturais entre holandeses e brasileiros. 2 [email protected] 03/04/13 Destaca-se o acervo da tradição oral e da palavra escrita, nos arquivos locais, regionais e nacionais, públicos e/ou privados, disponíveis às investigações, revelando-se como importante fonte de dados. Nesse sentido, valorizam-se, inclusive, os estudos de genealogia e demografia histórica. 1. OS SEFARDITAS NO PERÍODO HOLANDÊS Apoiadas nos interesses econômicos, principalmente dos judeus sefaraditas portugueses, intimamente integrados aos empreendedores europeus, migrações judaicas para a América são motivadas. Ao chegar a Pernambuco, esse contingente já encontra uma atmosfera judaica, embora disfarçada, resultante da presença marcante de cristãos-novos entre a população portuguesa. Ao contrário dos cristãos-novos que chegaram no início da colonização, os judeus sefaraditas puderam institucionalizar uma vida religiosa abertamente, desfrutando da proteção do governo de João Maurício de Nassau e privilégios da elite social e econômica existente na época. Os que vieram para Pernambuco, durante esta ocupação, têm suas origens nas comunidades de Amsterdam. A atuação da Companhia das Índias Ocidentais e a vinda dos holandeses para o Brasil foram determinantes na participação judaica desse empreendimento. 3 [email protected] 03/04/13 Ao se estabelecerem em Pernambuco, diante da necessidade de contarem com lideranças religiosas judaicas para o Recife, para a Maurícia e para a Paraíba, a Congregação Talmud de Amsterdam enviou para cá, como hakham (líder religioso), Isaac Aboab da Fonseca. Ele se fez acompanhar pelo também hakham, Moses Raphael de Aguilar e de um grupo de imigrantes, tendo chegado ao Brasil no começo de 1642. Esta imigração vinha se intensificando desde 1638, quando Manoel Mendes de Castro chefiou um grupo de duzentos judeus vindos em dois navios da Holanda para o Recife. Na época, construíram a primeira Sinagoga das Américas – Kahal Zur Israel, ocupando um dos casarões da Rua do Bom Jesus, no Bairro do Recife, então chamada de Rua dos Judeus. É provável, que a construção da sinagoga tenha sido iniciada em 1638 e concluída em 1641. As Escolas religiosas Talmud Torah e Etz Hayim, ocupavam edifícios de mais de um andar. A Sinagoga tinha frente para a Rua dos Judeus e, atrás dela, o rio que levava ao cais da Cidade de Olinda. Com a partida holandesa em 26 de janeiro de 1654, Amsterdam procurou formas de proteger a vida e os interesses dos judeus que permaneceram após a saída de Nassau. Neste ponto, é pertinente indagar sobre o destino de um contingente populacional quantitativamente significativo para a época. Não é difícil sustentar a idéia de que nem todos fizeram parte dos grupos que se retiraram com os holandeses, dando 4 [email protected] 03/04/13 margem a que se reflita sobre o destino dos que ficaram em terras do Nordeste brasileiro. Estas conjecturas estão baseadas no elevado número, para a época, de judeus e não-judeus, que viviam em Pernambuco e, o reduzidíssimo espaço físico disponível nas embarcações daquele tempo. Muitos aqui permaneceram. Com a conseqüente mudança de status, é perfeitamente admissível que aqueles que não conseguiram escapar, tenham decidido permanecer no sertão, e outras localidades além das fronteiras de Pernambuco, onde difícilmente seriam alcançados pelos agentes da Inquisição. Se eles estavam integrados aos mais diversos segmentos da sociedade colonial da época e gozavam de prestígio pelos seus conhecimentos sobre atividades desprezadas pelos portugueses, pode-se presumir que foram à procura de áreas de interesse exploratório, seguindo as expectativas da época. 2. Os Ashkenazitas do século XX Já no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, instala-se na cidade do Recife, uma segunda comunidade, constituída em sua maior parte por judeus de origem ashkenazita vindos, principalmente da Europa Oriental e Ocidental onde exerciam atividades informais. 5 [email protected] 03/04/13 Não se estabeleceram como elite. Ao contrário, conheceram o Brasil pelas camadas menos privilegiadas da sociedade. Os primeiros contatos foram com pessoas de menor poder aquisitivo através das relações comerciais ligadas à atividade do klientelshik (vendedor ambulante de jóias, tecidos, confecções de cama e mesa, etc.). Como o acesso era no espaço doméstico, principal característica deste tipo de transação, o impacto da situação de contato foi neutralizado, exatamente por tratarem com pessoas simples, cordiais e isentas de preconceitos políticos. Facilmente eram aceitos sem discriminações significativas. Bem sucedidos nesta atividade, estabeleceram-se depois em casas comerciais concentradas na Rua da Imperatriz Tereza Cristina e ruas adjacentes. A ocupação deste espaço urbano tanto para comércio como para uso residencial imprime ao Bairro da Boa Vista algumas características que vêm sendo estudadas como influenciadas pela presença judaica em determinados hábitos e costumes. 3. Os Caminhos da Percepção Religiosa Na estruturação básica judaica em Pernambuco, os imigrantes, por volta de 1910, deram os primeiros passos para preservar o que lhes era essencial no que esperavam de uma vida religiosa. Já contando com um minian (quorum mínimo de dez 6 [email protected] 03/04/13 homens para os serviços religiosos) providenciaram a aquisição do aparato litúrgico, Aluganam casas para sinagogas, escola, assim como compraram terreno para o Beit Olam (cemitério). Entretanto, não havia um cheder (escola de iniciação religiosa) ou uma yeshivá (nível mais avançado) para promover a educação devocional, através da qual são transmitidos os valores religiosos e culturais do judaísmo na condição de ser esta a principal mitzvá. Mesmo com o funcionamento de uma escola desde 1918, não havia um Rebe mas, sim, um especialista na cultura judaica. Primeiramente, porque entre os recém-chegados, alguns procediam de centros que abrigavam a vanguarda das idéias emancipatórias, por onde circulavam muitos elementos resultantes do confronto entre o tradicional caráter sóciocultural judaico e as novas idéias de autonomia na Europa. Estes imigrantes trouxeram na bagagem as idéias de inovações, principalmente no comércio e nas artes e tentaram negociar uma nova identidade que lhes permitisse continuar a se sentirem judeus e, ao mesmo tempo, cidadãos brasileiros. Assim, transformaram-se em brasileiros judeus, porque, dessa forma, demarcavam as fronteiras com o passado sem identidade social, embora com identidade judaica proibida. 4. Valores Sacralizados por Gerações 7 [email protected] 03/04/13 Ao compreenderem e apreenderem o imaginário social perceberam que poderiam concretizar a integração recorrendo à fórmula de secularização do judaísmo religião e à sacralização do judaísmo cultura. Não é o mesmo que deixar de ser judeu pela simples dessacralização da religião. É continuar sendo judeu como herdeiro de um patrimônio histórico, social, político e religioso elaborado dentro do judaísmo como um sistema cultural e religioso. Havia uma ligação viva entre a geração intermediária e a dos imigrantes, mantida por agentes zelosos pela preservação da herança judaica. Eram aqueles líderes que procuravam resumir e condensar em um quadro, os acontecimentos já vividos e que faziam parte da história do grupo. Participavam das orientações pedagógicas da escola judaica, promoviam eventos em torno das datas religiosas e históricas dos judeus; procuravam, junto às entidades centralizadoras do judaísmo no Brasil, recursos para dinamizar a vida judaica. 5. As Faces do Judeu-Cidadão do Brasil A geração que viveu o final da segunda guerra mundial, que viu a chegada dos grupos de refugiados e sobreviventes do 8 [email protected] 03/04/13 holocausto e que, em sua maioria, pertenciam aos movimentos juvenis, dá a tônica para a emergência de um novo tipo de identidade: o judaísmo de consciência histórica, tendo como princípio básico a busca de uma autonomia social perante a sociedade nacional e universal. Esta geração freqüentava as universidades e tomava conhecimento mais sistematizado das tendências sociais e políticas dominantes. Na condição de geração intermediária, eles perceberam que para sobreviver como cidadão, na sociedade maior, e preservar seu referencial judaico eram indispensáveis aspirar por mudanças, gerenciar sua vida pessoal e social dentro do judaísmo, pautando-a no movimento da modernização e do modernismo. A religião deixa de ser o centro emocional do mundo judaico, de onde o judeu do shtetel retirava o sentido da sua identidade. As ações calcadas nas mitzvot se perdem na complexidade da vida urbana do Recife. Atualmente, a vida comunitária do Recife está institucionalmente organizada através da FIPE – Federação Israelita de Pernambuco e as seguintes entidades filiadas: Centro Israelita de Pernambuco onde vem funcionando o Colégio Israelita Moisés Chwartz; a biblioteca Anne Frank; Sinagoga Israelita do Recife, que está provisoriamente desativada; o Habonim Dror (movimento juvenil), Grupo Renascer (desativado), seguindo uma proposta religiosa liberal; entidades de serviço Wizo, Naamat e Relief; Centro 9 [email protected] 03/04/13 de Arte Judaica Ietzirá, grupo que se dedica à divulgação da música e da dança do folclore judaico; o Grupo Universitário Shalom; o Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, funcionando desde 1992 no Museu Sinagoga Kahal Zur Israel. O Departamento Religioso do Centro Israelita de Pernambuco que administra o Cemitério Israelita do Barro, o mais antigo e fundado em 1927 e o Cemitério Parque das Flores onde funciona o novo cemitério da comunidade judaica. A Sinagoga do Beit Chabad, entidade que atua desde o final da década de 1980. Existe também uma comunidade dos anussim que recentemente foram convertidos ao judaísmo incorporando-se à vida comunitária. Todavia, devem também ser citados os que se auto-identificam como descendentes de marranos, praticando um judaísmo de forma mais isolada da comunidade. Considerações Finais: Um Projeto Cultural Integrado Diante de tal percurso histórico, torna-se evidente o papel que estas presenças representaram para a consolidação das comunidades judaicas no país e, como conseqüência, uma incorporação na dinâmica social, política, econômica e cultural de Pernambuco. A expectativa é a de trazer à tona toda esta trajetória através da modernização do Museu Sinagoga Kahal Zur Israel com apoio dos núcleos formados pelo Arquivo 10 [email protected] 03/04/13 Histórico Judaico de Pernambuco – Núcleo de Religião e Tradição Judaica, Núcleo de Pesquisas, Núcleo de Ações Educativas no Museu, Núcleo de Arte e Artesanato Judaico em Pernambuco e Núcleo de Turismo Cultural Judaico. A finalidade da entidade é conhecer os fatos ligados ao papel dos cristãos-novos e judeus na sociedade que constituiu o Brasil Português, o Brasil Holandês e o Brasil Contemporâneo. A meta é integrar-se aos diferentes projetos que sustentam o resgate da história dos judeus no Brasil. Entre estes, considera-se o turismo cultural como uma interface importante da cultura de uma sociedade e se evidencia a necessidade de proteger e valorizar o aparato histórico e cultural em Pernambuco. Para tanto, o Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco desenvolveu a Rota Judaica em Pernambuco. Com isto, é evidente que se estabelecem novos parâmetros para atualização da ambiência cultural judaica da região, capitalizando desse modo, investimentos educacionais e econômicos. 11 [email protected] 03/04/13 Bibliografia Kaufman, Tânia Neumann. Passos Perdidos, História Recuperada. A Presença Judaica em Pernambuco. Recife: Editora Bagaço. 2000 Mello, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O Imaginário da restauração Pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 1997 Mello, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. Recife: Editora Massangana. 1987 _____________________________ Gente da Nação. Recife: Editora Massangana. 1989 Freitag, Bárbara e Rouanet, Sérgio Paulo (Org.) Habermas. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Editora Ática. 1980 Wiznitzer, Arnold. Os Judeus no Brasil colonial. São Paulo: Livraria Pioneira Editora. 1960 Tânia Neumann Kaufman 12