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O DSM E O GRÃO DO SINTHOMA
SÉRGIO DE CAMPOS1
Quem tem medo do DSM? Para escrever esse texto, procurei o meu DSM em minha
biblioteca. Confesso que custei a encontrá-lo. Estava oculto, no alto da estante, um tanto
empoeirado, por entre dois livros, há anos. Abri o meu DSM em sua quarta versão e, para
minha surpresa, ela era de 1995. Admito que grande parte dos psiquiatras praticam a
psiquiatria sem consultá-lo. Até para realizar um relatório, o código aceito no INSS como
doença é o do Código Internacional de Doença, o CID, em sua décima edição. Não seria
excessivo dizer que o DSM está para um clássico da psicopatologia - como Karl Jaspers ou
Alonso Fernandez - assim como o DEF – Dicionário de Especialidades Farmaceuticas –
está para o Goodmann & Goodmann, livro texto clássico de farmacologia para os médicos.
Quando garoto, lí os gibis e, depois os clássicos, por escolha e interesse. Lembro-me
que outrora condenavam os gibis, dizendo que quem lesse gibis, não conheceria a boa
literatura. Pois bem, o DSM é o gibi da psiquiatria. Podemos ir um pouco mais longe
dizendo que ele é um daqueles livretos tipo Kant, Freud ou Hegel em 30 minutos, editado
pela Jorge Zahar. Considero que não há nada de errado com esses livretos. Eles servem aos
leitores que não desejam saber muito mais do que o conteúdo que eles oferecem e, ainda,
aos que desejam ter um panorama sobre o assunto para, em seguida, se for o caso,
aprofundar-se na literatura. Portanto, nada há de errado com esses livros ligeiros e
ordinários. Eles têm lá a sua função em nosso cotidiano.
A questão se complica quando a falta de tempo, o pragmatismo, os protocolos e a
objetividade do mundo contemporâneo tornam essa modalidade de conhecimento
superficial, como o DSM, o zenite da prática de jovens psiquiatras. Em outras palavras, é o
uso que se pode fazer dele que torna o DSM problemático para a psiquiatria.
O próprio manual traz uma advertência denominada “Uma palavra de cautela”2 que
afirma que “os critérios diagnósticos são oferecidos como diretrizes para confecção de
diagnósticos, uma vez que comprovadamente o uso desses, melhora o consenso entre
clínicos e investigadores”. Se é que algum dia haverá consenso entre psiquiatras. Ademais,
ressalta que “o uso apropriado de tais critérios requer o treinamento clínico especializado,
que ofereça tanto uma bagagem de conhecimentos quanto de habilidades clinicas”.
Ademais, o DSM assinala ainda que “os critérios diagnósticos não abragem, entretanto,
todas as condições para as quais as pessoas são passíveis de tratamento ou que podem ser
tópicos apropriados para esforços de pesquisas”.
Além da sua superficialidade, o DSM desperta mais uma preocupação. Ao usar
supostamente uma estratégia cartesiana, que é a de desmenbrar para conhecer, o DSM
transforma sintomas em diagnósticos - como por exemplo o de ansiedade - e, diagnósticos
provisórios em diagnósticos definitivos, como o de boderline. É como se na medicina
tivéssemos o diagnóstico de tosse; o de tosse com afonia e o de tosse sem afonia; o de tosse
seca ou o de tosse com expectoração; ou se o diagnóstico de febre de etiologia obscura
1
2
Membro da EBP e da AMP
DSM-IV Critérios Diagnósticos do DSM, Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1995, p. XI
2
fosse um diagnóstico definitivo e não provisório, que abre para possíveis diagnósticos de
neoplasias, infecções e doenças inflamatórias.
Em novembro de 2008, foi publicado mais um número da revista
Psicanalisis y Hospital, cujo título menciona a posição da Psicanálise ante o DSM, e traz
um artigo de Mário Pujó3 - “O esperanto instrumental” que compara, ironicamente, o DSM
a um conto de Jorge Luis Borges, “O Idioma Analítico de John Wilkins”. Esse conto, de
acordo com a narração de Pujó, cita uma curiosa taxonomia contida em certa “enciclopédia
chinesa” a qual classifica os animais em: a) os pertencentes ao imperador; b) os
embalsamados; c) os domesticados; d) os leões; e) as sereias; f) os fabulosos; g) os
cachorros soltos; h) os incluídos nessa classificação; i) os que se agitam como loucos; j) os
inumeráveis k) os pintados com pincéis finíssimos de pelo de camelo; l) os etcétera; m) os
que acabaram de quebrar um jarro; n) os que de longe parecem moscas4.
Com efeito, o DSM, ao dispensar a orientação dos clássicos, confunde semiologia
psiquiátrica com diagnóstico. A bem da verdade, isso não ocorre por descuido eventual ou
por uma alguma razão ingênua. Essa estratégia vem ao encontro dos interesses de mercado
da industria farmacêutica que é a de ampliar as doenças para medicar os sintomas. Na
psiquiatria, não há sequer um único tratamento medicamentoso que seja especifico ou
curativo, como temos em outras áreas da medicina como, por exemplo, um tuberculostático
apropriado para o bacilo de koch, na tuberculose, ou uma vacina específica para
determinado vírus. Não é que não existam tratamentos sintomáticos e paliativos em outras
especialidades médicas; a questão é que toda a terapêutica psiquiátrica se resume neles.
Na medicina, grosso modo, não há uma preocupação em medicar sintomas, mas
doenças. Então, quando os sintomas começam a ser classificados como doenças, a medicina
fica relegada a um posição de inferioridade. O primeiro e mais notório dos efeitos dessa
nova lógica é que os médicos, interessados que são pelo diagnóstico das doenças e pelo
entendimento de seus mecanismos fisiopatológicos ou psicopatológicos, passam a se
ocupar da medicação dos sintomas, indo ao encontro da demanda dos pacientes que, por
sua vez, não querem saber da doença, mas desejam ficar livres dos seus sintomas, o mais
rápido possível. Assim, o DSM se transforma em uma modalidade lógica capaz de conciliar
a paz, no amplo mercado, da demanda do paciente com a oferta de medicação, propiciada
pela disvirtuação da prática médica.
Para evitar o desconforto de se colocar em cheque a eficácia, a eficiencia e a
efetividade da medicação psiquiátrica, o DSM emerge como um guia para a medicação de
transtornos, haja visto que as doenças, distantes da tradição clássica, foram reduzidas a eles.
Com efeito, a psicanálise caminha em direção oposta à da medicina. Enquanto, na
psicanálise, vemos surgir novos sintomas e percebemos um esmaecimento das fronteiras
diagnósticas da clínica estrutural em prol da clínica borromeana, na psiquiatria, observamos
uma reedição de velhos sintomas como novos diagnósticos.
Poderia-se até dizer que é louvável o esforço realizado pelas associações
responsáveis por novas classificações na psiquiatria. Sua elaboração sugerida a partir de
uma proposta denominada “ateórica” tem sido insistentemente justificada pela necessidade
de promover a comunicação entre clínicos de todo o mundo para facilitar os registros
3
PUJÓ, M. Esperanto instrumental, Psicoanálisis y el hospital, El psicoanálisis ante el DSM, vol. 34, 2008, p.
19.
4
BORGES, J. L., “El idioma analítico de John Wilkins”, Otras inquisiciones. Obras completas, 1923-1972,
Emecé, Buenos Aires, 1974, PP. 706-709.
3
estatísticos e promover consensos diagnósticos. Contudo, tais argumentos não são
consistentes o bastante para sustentar uma posição epistêmica válida sobre o
psicopatológico, nem são suficientes para validar o pretenso ateorismo da psiquiatria
contemporânea, num suposto “esperanto instrumental” que poderia abrigar todo o
consenso. A psiquiatria não é simples nem rasa, pois leva em conta o sujeito, o qual está
para além dos manuais classificatórios que excluem a subjetividade, eliminam a
psicopatologia, restringem a forma do pensar a clínica e contribuem para o término da
psiquiatria. Aliás, quando fazemos o diagnóstico usando os conhecimentos da
psicopatologia, os manuais são desnecessários, e quando o diagnóstico é difícil de ser feito,
os manuais não ajudam5.
Com efeito, os manuais classificatórios se prestam a uma psiquiatria para o
consumo. Na medida em que Lacan propõe o consumo como um “fazer-se consumir” pelo
sujeito, este se torna agente e alvo de sua ação. Ou seja, a psiquiatria consome os manuais e
é também consumido pelo seu ato de consumir.
Constata-se que, na alta modernidade, temos não apenas uma psiquiatria, mas uma
medicina prêt-à-porter6. A psiquiatria prêt-à-porter da produção em série e do consumo
está em oposição à psiquiatria clássica, artesã, implicada com a casuística, com o sujeito,
suas escolhas, suas saídas, seus desejos e sua subjetividade.
Hoje, impera a psiquiatria dos manuais orientados por tabelas e fluxogramas, que
desconsidera qualquer psicopatologia. A psiquiatria prêt-à-porter dispensa o raciocínio
clínico e se presta à desclinicalização. Como o mercado reduziu o custo-hora na saúde e
exigiu-lhe eficácia, o médico refugiou-se na tecnologia como método mais rápido e eficaz
do que a escuta e o exame do paciente. Assim, a psiquiatria confia na neurociência e no
cognitivismo para afastar toda a equivocidade da linguagem. Atualmente, a psiquiatria se
assegura em um saber de condutas programáticas e pragmáticas, baseadas em protocolos e
guidelines. Pode-se dizer que os guidelines respondem mais a uma demanda de mercado do
que a uma preocupação com o sujeito7.
Com efeito, as únicas e verdadeiras ferramentas que contamos para formular uma
boa hipótese diagnóstica são a observação do real da clínica, a escuta da subjetividade do
sujeito a partir de seu arcabouço simbólico, os aspectos imaginários da psicopatologia
calcada na fenomenologia e a maneira pela qual o sujeito amarra o real pelo seu sinthoma.
Qualquer que seja a classificação, esta vem apenas depois da casuística clínica. Não
devemos inverter tal ordem.
Contudo, Michel Foucault diferente da psicanálise assinalando em “As palavras e
As coisas” que “o recurso da classificação configura o marco que permite ao pensamento
levar a cabo um ordenamento dos seres, uma repartição das classes, um agrupamento
nominal pelo qual se designam por semelhanças. Assim, a ordem do discurso estabelece a
ordem das coisas. Porque, ainda na mais ingênua experiência, não existe semelhança ou
distinção que não seja o resultado de uma operação precisa de discriminação discursiva e
5
CAMPOS, S. Consideraciones acerca de La insuficiência de los manuales classificatórios, Psicoanálisis y el
hospital, El psicoanálisis ante el DSM, vol. 34, 2008, p. 40.
6
O termo prêt-à-porter é de origem francesa, derivado do mercado da moda, e significa “pronto para usar”.
Na realidade, são produtos fabricados em série destinados a um consumo em larga escala e vendidos em
supermercados.
7
MILLER, J. –ALAIN, Psychanalyse pure, psychanayse appliqquée & psychothérapie, L’Orientation
Lacanienne, Revue de La Cause freudienne n. 48, Paris, pp. 7-35, maio de 2001, p. 31.
4
por isso, consequência de uma aplicação de um critério previamente estabelecido”8. Com
esse argumento, Foucault se confirma estruturalista, tal como Lacan, em seu primeiro
ensino. Já o segundo ensino de Lacan está mais próximo de Freud que lidava com o real da
Coisa ainda sem as elaborações finalizadas de seu aparato discursivo, haja visto que ele
sempre esteve aberto inteiramente ao novo e ao singular.
Se por um lado, no primeiro ensino de Lacan, há uma clínica que não se contenta
com conceitos teóricos preestabelecidos, pois ela parte do real da experiência para
estabecer e ordenar os conceitos e os matemas; por outro, no segundo ensino de Lacan a
clínica desaparece. Miller afirma, de modo insitigante, que “A psicanálise não é uma
clínica”. A clínica foi sempre um significante emblemático no campo freudiano. Uma
psicanálise que permanece estritamente sobre a clinica da transferência repousa inválida
nas entrevistas preliminares; e a perspectiva do sinthoma, no segundo ensino, tem a
natureza de nos fazer deslizar para longe da dimensão do sentido, apanágio da clínica9.
Mas, o que é a clínica? A palavra vem de klinos que significa leito; ou seja, inclinarse sobre o doente. A clínica se faz ao pés do leito do paciente e é essencialmente uma arte
de documentar e classificar os fenômenos a partir de um repertório de sinais, indices e
sintomas. A clínica é um exercicio de ordenamento, classificação, cotejamento e
objetivação. Portanto, segundo Miller, para se fazer justiça, pode-se dizer que o DSM é
indicutivelmente uma clínica que responde precisamente ao seu conceito, apresentando
uma lista de sinais e índices, um pouco mais frágil em relação aos clássicos, é preciso
ressaltar. Pode-se reprovar o DSM como uma clínica pela sua dispersão ou falta de lastro,
mas não deixa de ser uma clínica.
Isso não impede que se reconheça que na psicanálise, na sua literatura, existam os
casos clínicos. A psicanálise herdou uma classificação, da qual os psicanalistas se servem,
em parte, graças à psiquiatria clássica, que se agrupa em três grandes estruturas: a neurose,
a perversão e a psicose. A psicánalise divide a neurose em histeria, fobia e neurose
obsessiva. Ainda se juntam a esse grupo a neurose de angústia e as neuroses atuais.
Escreve-se a psicose no plural, uma vez que temos a esquizofrenia, a paranóia, a subclasse
da melancolia e das variações do humor, nas quais pode-se incluir a psicose maníacodepressiva. Assim, as classes clínicas herdadas da tradição clássica da psiquiatria
contribuiram como estruturas clínicas, inequivocamente, para o primeiro ensino de Lacan.
Mas, as estruturas são mais do que um conjunto de sinais e sintomas. Trata-se de uma
articulação lógica do conjunto que se constitui de classe, de causa e de uma descrição
objetiva. Os elementos funcionais do conjunto são conhecidos em certas disposições e se
relacionam. Os elementos permutam seus lugares, portanto, assumem funções diferentes.
Lacan no seminário “Sinthome” ressalta que o sujeito é empurrado, ao acaso, à
direita e à esquerda. Essa lição vai ao encontro de Aristóteles que reconhece que a
existência se desenrola no reino da contingência. É digno de nota que uma trama se institui
a partir de axiomas ao acaso, mas é como uma necessidade que ela se expressa no campo da
repetição. É dessa maneira que um S1 isolado se articula a um S2 e provoca efeitos de
sentido. Assim, de modo imperceptível, o sentido se insinua na contingência. Quando um
axioma se desgarra da cadeia, verificamos que ele esteve perfilado na cadeia do sujeito
8
FOUCAULT, M. Las palabras y las cosas (1966), Planeta-Agostini, Barcelona, 1984, p. 3.
MILLER, J. A.- Au-delà de la Clinique, Nous sommes poussés par des hasards à droite et a gauche, La
Cause Freudienne, n. 71, p. 63.
9
5
desde a infância10. Na psicanálise, a trama S1-S2 se faz espontaneamente. Ela não é
calculada, mas organiza o sentido e faz articular sistematicamente os elementos que
estiveram ao acaso anteriormente. Então, a psicanálise procura reduzir a estrutura até a sua
proposiçao lógica de quantificação mímima, reconhecida de maneira paradoxal como uma
superestrutura.
Miller argumenta que é justamente com a clivagem entre os elementos do acaso
anteriores e a estrutura que Lacan inaugura o seu segundo ensino. Assim, a prática da
psicanálise troca o acento. Portanto, se antes, a interpretação visava a um outro sentido que
se revelava oculto e latente na estrutura, distinto do sentido manifesto, no seu segundo
ensino, a interpretação visa a desfazer o sentido do destino que faz repetir o par S1-S2 para
evocar o fora do sentido, o que quer dizer que a interpretaçao é uma operação de
desarticulação e de ruptura entre significantes11.
O sinthoma é a chave mestra do último ensino de Lacan. Esse termo foi aspirado de
Joyce por ser ele identificado como o singular absoluto no campo da escrita. Joyce, o fora
da classe, o singular, o fora da série, o que não tem nada de comum com os demais
escritores, nem tampouco tem de particular com estilos de época. O particular diferente do
singular é o que permite formar conjuntos de um sujeito com o Outro e que constitui as
classes clínicas ou literárias, advindas da psiquiatria clássica, das estruturas clínicas ou da
literatura. O particular pode se apresentar sob várias modalidades, incluíndo o coletivo,
mas, evidentemente, ele não é o universal. Pode-se dizer que a medicina opera com o
particular do conjunto e a psicanálise com o singular absoluto. Por isso, Miller
curiosamente, afirma que a psicanálise não é uma clínica, pois só há clínica do particular.
Não há clínica do universal, nem tampouco do singular.
Portanto, se no sinthoma houver uma clínica, é uma clínica no máximo rasa, pois ela
é a clínica do um. Ela não é uma clínica densa, graduada ou estratificada como a do sujeito,
que fazia desaparecer o singular no particular. Na clínica do sinthoma não se distingue
avanços ou resistências, tampouco se evidencia sintomas ou fantasmas. A clínica rasa do
sinthoma que nos oferece a substância gozante nos faz desaprender a clínica da
necessidade, da demanda e do desejo. A clínica do sinthoma que não se situa na lingua, mas
na a-lingua, traz à luz o modo privado de gozo do ser falante como o resto absoluto, único e
irredutível. Trata-se de uma psicanálise a partir de Joyce, cujo sentido não assimila o
enigma da substância gozante12. Destarte, a proposta de Lacan na segunda clínica é
radicalizar a psicanálise para que o grão do sinthoma não possa ser absorvido, nem
tampouco metabolizado pelo discurso civilizatório, mas que ele possa advir e permanecer
como singular no falasser.
10
Idem, p. 67.
Idem.
12
MILLER, J. A.- Au-delà de la Clinique, Nous sommes poussés par des hasards à droite et a gauche, La
Cause Freudienne, n. 71, p. 71.
11
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