Revista Espaço Acadêmico, nº 89, outubro de 2008
http://www.espacoacademico.com.br/089/89lima.pdf
A mulher tradicional e a mulher pós-moderna
Raymundo de Lima
Duas categorias de mulheres convivem no nosso tempo: a mulher tradicional e a mulher pósmoderna.
A mulher tradicional é constituída à ima gem e semelhança da mãe. A imagem da mãe é de
assexuada, sem desejo próprio, santa, imaculada, que “padece no paraíso” ou que goza ao
realizar o desejo dos outros. A ‘boa mãe’ é aquela que abdica de seus desejos para realizar os
desejos dos filhos, marido, parentes, vizinhos. Ainda é assim: “boa mãe” é aquela que no final
do dia é um trapo de cansada, sem ânimo para nada, inclusive para satisfazer o desejo sexual
do marido.
Ao contrário da mulher-tradicional, a mulher pós- moderna é senhora do seu desejo, é antisanta, e a meta de ser mãe fica no horizonte. Ela se assume como dona do seu corpo, ocupa os
espaços e administra o seu tempo. Seu corpo, ela usa-o como bem entende. Procura aprimorálo com uma malhação ou turbiná- lo com silicone. Ela usufrui das conquistas das mulheres da
década de 1970: a pílula anticoncepcional, a masturbação, o amor- livre, e hoje ela toma
iniciativa em relação ao homem ou mulher do seu desejo. Seu espaço, digamos, está para
além do lar: ela não quer ser dona-de-casa, nem ter um trabalho de faz-de-conta fora do lar,
porque seu olhar está para além dos limites das convenções, isto é, ela investe no estudo e na
carreira profissional, e aspira um trabalho profissional e poder. Ela quer ser poderosa e
glamourosa, como diz aquela musiquinha. Hoje, 60% das mulheres ocupam os bancos das
universidades brasileiras. Ela opta ter um ou até dois filhos, durante as férias do trabalho ou
na época da elaboração de sua tese. Nesse caso, filhos são vistos como troféus de realização
intelectual e profissional. Mas ela pode também optar por nenhum filho, visto como um
estorvo, pelo menos em determinado período de seu investimento profissional. O tempo da
mulher pós- moderna é bem ocupado. Seu tempo livre vira ócio criativo; sua filosofia é de
desfrutar o momento, no lazer ou no trabalho. Mas ela odeia pensar o tempo como sinônimo
de gravidade e escoamento do vigor da juventude.
Psicossexualidade . A mulher pós- moderna é resultado da ruptura dos costumes – inclusive na
sexualidade – ocorridos a partir da década de 1970. A pílula anticoncepcional afastou o risco
de uma gravidez indesejada e propiciou a mulher ver a sexuação como um divertimento. A
mulher-tradicional casava virgem, não por escolha pessoal, mas por imposição cultural e
religiosa. A mulher pós-moderna resgata o estilo de Lilith, e está aberta para uma experiência
a um, a dois, a três, dez, dependo de sua escolha. Seu gozo é estar no comando das situações,
mas ainda sonha: talvez um dia encontre a alma gêmea.
A mulher-tradicional passou a ser vista como uma coitada na cama, uma escrava no lar e uma
bobinha na sociedade. Contradizendo a mulher-tradicional que até se gabava de nunca ter
sentido “nada” durante o ato sexual, a mulher pós- moderna se preocupa em conseguir um
orgasmo a qualquer preço. Fazer psicoterapia ou se consultar com um sexólogo hoje é uma
escolha ‘natural’ das mulheres que tomaram consciência do seu direito ao prazer sexual e uma
existência plena.
Relação. O ato sexual para a mulher tradicional significa um recurso para a fecundação; para
a mulher pós- moderna é prazer, independe da intenção de ter filhos e de se ver amarrada a
um(a) cara. O sexo da mulher tradicional é uma obrigação, às vezes sente nojo, exceto quando
ela se vê destinada a ‘padecer no paraíso’ na hora do parto. Nas raras conversas sobre sua
intimidade com amigas do lar escapa-lhe falar com vergonha das ‘porcarias’ que seus maridos
as obrigam a fazer, e também sua incapacidade de dizer não às obrigações matrimoniais. Uma
entrevistada considera o homem “um porco”, que só pensa em porcarias, e que era preciso
enganar, constantemente com desculpas.
Por seu lado, o marido tradicional não se atreve a pedir certos prazeres à esposa tradicional
por achar que não é ‘certo’ e, ela imagina que deve se mostrar fria e passiva nas relações
sexuais. Alguns autores consideram que esse mau entendimento entre os casais pode gerar
desde frustrações, até aumentar a falsa frigidez da mulher.
Geralmente ela deixa transparecer o medo e ciúme do marido procurar uma amante ou
prostituta, enfim, outra que saiba melhor satisfazê- lo. Afinal, a mulher-tradicional nunca
aprendeu sobre educação sexual, portanto, ignora como ser uma boa mulher na cama. Teme
tomar a iniciativa, por vergonha, culpa ou medo de ser confundida como uma vadia.
Submissa, ela ignora que a cultura lhe impôs como destino ser apenas mãe e dona-de-casa.
A mulher pós- moderna cultua a liberdade sexual, mas odeia assédios. Extrai gozo narcisista
de estar na tela ou no website. Sua imagem glamourosa, poderosa, deve dominar sua realidade
cotidiana. Ela evita expressar valores, mas fica indignada contra as limitações, principalmente
à sua liberdade sexual. Demonstra preocupação ética com os direitos humanos, a ecologia, seu
direito ao aborto, o direito dos homossexuais de adotarem crianças, etc.
Os homens, hoje – tradicionais e modernos –, parecem assustados com a mulher pósmoderna, tanto na intimidade sexual como no seu forte desempenho na sociedade
competitiva. Não conscientemente, alguns temem ser devorados por essa mulher dominadora,
com desejos sexuais ativos, inextinguíveis e ilimitados. O “mito da vagina dentada” recalcado
nos homens desperta- lhes conflitos endopsíquicos. Que homem não é surpreendido com um
orgasmo que parece um ataque epiléptico?
O mal-estar da modernidade líquida obriga homens e mulheres pós-modernos a maximizarem
os momentos de prazer e minimizarem a disciplina e as chateações próprias do cotidiano. A
boa notícia hoje para a mulher é ela poder escolher como usar o seu corpo, como direcionar o
seu desejo e sua própria vida. Ainda que as mais conservadoras aceitem seguir o estilo
apequenado da mulher antiga, não é mais possível ignorar as mulheres pós- modernas nas
ruas, nos filmes, no noticiário, na internet. Elas parecem “mais mulher”.
As mulheres pós-modernas são criticadas por copiarem o que há de pior nos homens: desde
o uso de terninho estilo coveiro até a virilidade excessiva quando ocupa cargo de chefia,
observa o sociólogo Domenico de Masi, em conferência direcionada às mulheres no Senado
Federal. Mas também existe admiração por sua autonomia e ousadia dentro e fora do lar. Sua
dupla ou tripla jornada de trabalho, o estresse, o sentimento de culpa por não dar atenção aos
filhos, não farão a mulher pós- moderna desistir das suas conquistas e optar pelo modo de ser
submisso da mulher tradicional. Os avanços das mulheres são irreversíveis.
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