SILVINO ARÉCO
AS REDUÇÕES JESUÍTICAS DO PARAGUAI: A
VIDA CULTURAL, ECONÔMICA E
EDUCACIONAL.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO
CAMPO GRANDE / MS
2008
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
A675r
Aréco, Silvino.
As reduções jesuíticas do Paraguai : a vida cultural, econômica e
educacional / Aréco Silvino. -- Campo Grande, MS, 2008.
247 f. ; 30 cm.
Orientador: David Victor-Emmanuel.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Centro de Ciências Humanas e Sociais.
1. Educação – Paraguai – História – 1549-1767. 2. Jesuítas – Paraguai –
História – 1549-1767. I. Victor-Emmanuel, David. II. Título.
CDD (22) 370.989
SILVINO ARÉCO
AS REDUÇÕES JESUÍTICAS DO PARAGUAI: A
VIDA CULTURAL, ECONÔMICA E
EDUCACIONAL.
Dissertação
apresentada
como
exigência final para obtenção do grau
de Mestre em Educação á Comissão
julgadora da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul sob orientação do
Prof. Dr. David Victor-Emmanuel
Tauro.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO
CAMPO GRANDE / MS
2008
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. David Victor-Emmanuel Tauro
______________________________________
Prof. Dr. Gilberto Luiz Alves
______________________________________
Profª Drª Silvia Helena Andrade de Brito
Dedico este trabalho para minha mãe
Maria Humbelina H. Areco e para
minha irmã Maria Aparecida H. Areco
pelo apoio de sempre. E a Renato
Gomes Nogueira in memoriam.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador Dr. David Victor-Emmanuel Tauro pela orientação
dedicada.
Agradeço ao Dr. Gilberto Luiz Alves pela grande contribuição durante o
processo de qualificação e pela instigante contribuição teórica contidas em suas
obras.
Agradeço as professoras: Silvia Helena Andrade de Brito, Maria Dilnéia
Espindola Fernandes e Elcia Esnarriaga de Arruda por todas as aulas
ministradas, pelo carinho e respeito transmitidos durante este período de
convivência. E principalmente pelo conhecimento recebido.
Agradeço aos professores Inara Barbosa Leão, Fabiany de Cássia Tavares Silva
e Antônio Carlos do Nascimento Osório pelo apoio durante este período.
Agradeço a Jacqueline e ao Hidem Franco pela amizade recíproca.
Agradeço aos meus colegas de Mestrado pela paciência.
Agradeço a Turma de Ciências Sociais 2007 pela Homenagem.
Aos meus amigos: Elcio, Ronaldo, Thiago, Maisa, Johnny, Juliana, Teresinha,
Gonçalo, Álvaro Banducci, Valdir, Saulo, André, Alexandra, Adriano, Gabi e
Nádia. Agradeço eternamente pelo apoio desde o primeiro momento em que eu
me candidatei a uma vaga no mestrado. Mais que apoio, recebi amizade,
carinho e companheirismo. Muito obrigado por vocês serem meus amigos.
Enfim agradeço a todos os meus familiares e amigos que tornaram “o meu
fardo” mais leve.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo, a partir de enfoque teórico-metodológico
materialista histórico, analisar a Companhia de Jesus como um empreendimento
capitalista, que objetivava, através do capital auferido, financiar as atividades
catequéticas e missionárias, no período denominado de acumulação primitiva
do capital. A base para a pesquisa foi efetivada através da coleta de dados, a
partir de fontes primárias e secundárias. Este estudo sobre a contribuição das
instituições religiosas na educação faz parte da Linha de Pesquisa Estado e
Políticas Públicas em Educação, do Programa de Pós-graduação em Educação
da UFMS, tendo como foco a perspectiva de lançar um novo olhar sobre a
problemática da gênese dos empreendimentos jesuíticos para financiar suas
atividades educativas e missionárias. A análise tem como delimitação temporal
desde o seu momento de inserção na América Latina (1549) até a sua expulsão
(1767). Trata-se de uma dupla inserção em contextos globalizantes: de um lado,
relacionado às atividades econômicas jesuíticas no momento da gênese e
desenvolvimento do modo de produção capitalista; de outro, a compreensão das
atividades educativas jesuíticas no desenrolar da trama da formação socialhistórica da América Colonial. A delimitação espacial desse trabalho foi a
fronteira do Estado do Mato Grosso do Sul e o Paraguai. No período de atuação
dos jesuítas na América Colonial, essa região (foco de nosso estudo) era
denominada “Província Jesuítica do Paraguai” e, pelo “Tratado de Tordesilhas”,
pertencia à Coroa Espanhola. Em regiões do Brasil, os padres jesuítas
desenvolviam outras atividades e empreendimentos econômicos para sustentar
seus propósitos no campo educacional e missionário. Nosso objetivo principal
foi levantar fontes e dados sobre estes empreendimentos na fronteira do Brasil e
do Paraguai, para estudar o escopo, extensão e volume deles, desvendar seu
caráter político e econômico e as suas relações com a instituição do capitalismo
como modo de produção, no período de 1549 a 1767.
Palavras-chave: Educação, História, Companhia de Jesus, Instituições
Religiosas.
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo, a partir del enfoque teórico-metodológico
materialista histórico, analizar la Compañía de Jesús como un emprendimiento
capitalista, que objetivaba, a través del capital obtenido, financiar las atividades
catequéticas e misioneras, en el período denominado de acumulación primitiva
del capital. La base para la pesquisa fue efectivada a través de la colecta de
informaciones, a partir de fuentes primarias y secundarias. Este estudio sobre la
contribución de las instituciones religiosas en la educación integra la Línea de
Pesquisa Estado y Políticas Públicas en Educación, del Programa de Pósgraduación en Educación, de la UFMS, teniendo como foco la perspectiva de
lanzar una nueva mirada sobre la problemática de la génesis de los
emprendimientos jesuíticos para financiar las suyas atividades educativas y
misioneras. La análisis tiene como delimitación temporal desde el su momento
de inserción en la América Latina (1549) hasta su expulsión (1767)Tratase de
una dupla inserción en contextos globalizantes: de un lado, relacionado a las
atividades economicas jesuíticas en el momento de la génesis y desarollo del
modo de producción capitalista, de outro, la comprensión de las atividades
educativas jesuítcas en el desenrollar de la trama de la formación socialhistórica de la América Colonial. La delimitación espacial de este trabajo fue la
frontera del Estado de Mato Grosso do Sul e del Paraguay. En el período de
atuación de los jesuítas en la América Colonial, esa región (foco de nuestro
estudio) era denominada “Provincia Jesuítica del Paraguay” y, por el “Tratado
de Tordesillas”, pertenecía a la Corona Española. En regiones del Brasil, los
padres jesuítas desenvolvían otras atividades y emprendimientos económicos
para sustentar sus propósitos en el campo educacional y misionero. Nuestro
objetivo principal fue levantar fuentes y datos sobre estes emprendimientos en
la frontera del Brasil y del Paraguay, para estudiar su objetivo, intención y
volumen y desvendar su carácter político y económico y las suyas relaciones
con la institución del capitalismo como modo de produción, en el período de
1549 a 1767.
Palabras-llave: Educación, Historia, Compaña de Jesús, Instituciones
Religiosas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................
10
CAPÍTULO I BREVE HISTÓRICO DA COMPANHIA DE JESUS E AS
CONTROVÉRSIAS CONTIDAS NA HISTORIOGRAFIA ACERCA DE
SUA
ATUAÇÃO
ECONÔMICA,
MISSIONÁRIA
E
EDUCACIONAL........................................................................................ 34
CAPÍTULO II O CONTEXTO SOCIAL-HISTÓRICO QUE EMERGE
AS REDUÇÕES JESUÍTICAS DO PARAGUAI...................................... 58
2.1. O PROCESSO DE PRODUÇÃO MATERIAL NA SINGULARIDADE
PARAGUAIA................................................................................................. 80
2.2 A CULTURA GUARANI........................................................................ 95
2.3 JESUÍTAS, GUARANIS E ENCOMENDEROS NA PROVÍNCIA DO
PARAGUAI................................................................................................... 112
2.4 A PRODUÇÃO ECONÔMICA NAS REDUÇÕES JESUITICAS DO
PARAGUAI................................................................................................... 139
CAPITULO III A VIDA CULTURAL E EDUCACIONAL NAS
REDUÇÕES JESUÍTICAS: A SÍNTESE DA EXPERIÊNCIA
AGRÍCOLA
GUARANI
COM
A
TÉCNICA
EUROPÉIA.................................................................................................. 158
3.1
A
ADMINISTRAÇÃO
DOS
BENS
DIVINOS
DO
TUPAMBAÉ................................................................................................. 169
3.2 A INTERRELAÇÃO RELIGIÃO/EDUCAÇÃO E A INSTITUIÇÃO DO
IMAGINÁRIO CAPITALISTA................................................................... 183
3.3 A PRODUÇÃO CULTURAL: AS ATIVIDADES EDUCACIONAIS NOS
POVOADOS MISSIONEIROS DA PROVÍNCIA JESUÍTICA DO
PARAGUAI............................................................................................... 199
CONCLUSÃO..........................................................................................
220
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................
231
INTRODUÇÃO
OBJETO E DELIMITAÇÃO
Este trabalho tem como objeto de análise as reduções jesuíticas da
Província do Paraguai, sendo o foco central as suas atividades econômicas,
culturais e educacionais. A delimitação temporal abrange desde a chegada dos
jesuítas na América Latina em 1549, até a sua expulsão das possessões
espanholas em 1767. A delimitação espacial deste estudo se prende à Província
Jesuítica do Paraguai. É importante ressaltar que a Governação e a Província do
Paraguai abrangiam neste período histórico um território significativamente
mais extenso que o atual, possuindo regiões que atualmente pertencem ao
Brasil, Uruguai, Argentina e Bolívia. De acordo com Gadelha (1989), possuía o
Paraguai jurisdição sobre os atuais Estados brasileiros do Paraná, Santa
Catarina, Rio Grande do Sul e sul de Mato Grosso (atualmente o Estado de
Mato Grosso do Sul) e parte do pantanal mato-grossense, subindo daí até a
bacia do Amazonas, região nunca colonizada pelos espanhóis.
Nos últimos anos houve um crescente interesse para os estudos sobre
as relações entre ordens religiosas e as instituições do capitalismo além da
esfera da educação, como por exemplo, a ciência, a cultura, as artes e a política.
Alguns desses trabalhos (dissertações e iniciações científicas) foram efetivados
sob a orientação do professor David Victor-Emmanuel Tauro, na linha de
pesquisa “Contribuição das Instituições Religiosas à História da Educação”1. O
presente trabalho tenciona lançar um novo olhar sobre a gênese dos
empreendimentos capitalistas adotados pelos jesuítas na província do Paraguai.
Trata-se de uma dupla inserção em contextos globalizantes. De um lado, a
______________
1
Dentre estes trabalhos podemos destacar: José Manfroi (1987) A Missão Salesiana e a
Educação em Corumbá: 1889-1996; Jordana Duenha Rodriges (2001) A economia dos
empreendimentos dos jesuitas para o financiamento das atividades educativas e missionárias
na fronteira do Brasil com a Argentina, o Paraguai e o Uruguai; Márcio Cabral Barbio (2002)
Os jesuítas e a formação colonial brasileira-A construção de um novo paradigma; Décio
Henrique Cisí (2001) O movimento dos capitais dos jesuítas para o financiamento das
atividades educativas e missionárias, 1549-1770; Mariley de Souza Gualberto (2000) A
contribuição das instituições religiosas à história da educação de Campo Grande: o caso da
Escola Estadual São José 1.
11
inscrição das atividades econômicas jesuíticas no contexto da gênese do
desenvolvimento do modo de produção capitalista; de outro, a descrição das
atividades culturais e educativas no encadeamento da formação social-histórica
do Paraguai Colonial.
Como resultante de pesquisa da linha “Estado e Políticas Públicas de
Educação”, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, este trabalho objetiva inserir a educação dentro
do contexto de desenvolvimento social-histórico da região, tendo em vista que o
Estado de Mato Grosso do Sul, no período delimitado, pertencia à Província do
Paraguai. Assim, buscamos problematizar as relações e inter-relações
específicas nesse contexto geral.
Na história da educação, as pesquisas se mostraram particularmente
intransigentes em suas análises das relações da Igreja Católica com a criação da
ciência moderna, com a pesquisa em educação da época e com a transição do
feudalismo para o capitalismo. No entanto, os trabalhos mais recentes ajudam a
rever a importância dessa instituição eclesial para a ciência e a reflexão
científica moderna no nascimento do capitalismo. Quanto à Companhia de
Jesus, há igualmente uma enorme variedade de interpretações de suas obras,
tanto junto aos índios nas missões, como na área da educação, seja nos países
europeus, seja nos países colonizados, que merecem ser esclarecidas a fim de
avaliar seu peso sobre a história do desenvolvimento do capitalismo.
Em geral, quando não se desdenha, ignora-se o enorme papel
desempenhado pelos jesuítas (e pela própria Igreja Católica Romana) nas
pesquisas filosóficas, matemáticas, físicas e astronômicas, como também, nas
ciências naturais (zoologia e botânica). Um dos maiores equívocos em relação
aos fundamentos epistemológicos dos trabalhos intelectuais leva a desprezar o
imenso esforço dos “Companheiros de Jesus” a favor da consolidação da jovem
sociedade capitalista. A metafísica aristotélica, e a prática formal da escolástica
foram responsabilizadas pela corrupção da Paidéia jesuíta.
A relevância deste trabalho também se justifica pela ampla discussão
no campo teórico. Os positivistas avaliam a ação inaciana como “civilizadora”,
pois retiraram os indígenas do estágio “selvagem” para os conduzirem até à
“civilização”, ao ensinar os nativos a se vestir, ler e escrever. Alguns teóricos
materialistas históricos não hesitaram em castigar os jesuítas com a pecha de
12
reacionários vulgares, militantes fanáticos contra-revolucionários e adversários
do progresso. Os liberais, ao mesmo tempo em que compartilhavam com essas
posições (em relação à Reforma e sobre a questão do progresso), acentuaram
também suas críticas quanto a aliança da Companhia de Jesus com os reis da
Espanha e de Portugal no projeto colonialista.
O que tem sido esquecido durante o debate teórico foi a contribuição
permanente de transmissão da cultura ocidental feita pelos jesuítas durante as
atividades missionárias e a sua colaboração com a comunidade científica. O
enorme esforço desenvolvido na construção do empreendimento econômico
administrado pelos jesuítas nos quatro cantos do mundo permanece em segundo
plano nas preocupações teóricas.
Em síntese, a relevância deste trabalho se prende ao fato de que os
jesuítas foram instrumentos importantes na criação e consolidação das relações
capitalistas, sobretudo no cone-sul da América Latina. Trabalhar as diferentes
formas das relações que foram instituídas nos empreendimentos jesuíticos pode
elucidar a herança dessa ordem religiosa católica na disseminação da cultura
ocidental, imprescindível para a reprodução das relações sociais desse modo de
produção na época moderna. Essas relações foram instituídas no mercantilismo
comercial, na exploração da agricultura, na criação de gado, participação efetiva
na compra e venda de escravos e na promulgação da cultura cristã aos povos
originários da América Latina. Foram ainda, imprescindíveis para reforçar os
valores eurocêntricos.
Na atualidade, em que se discute a integração latino-americana através
da consolidação do Mercosul, este estudo pode contribuir para um melhor
entendimento da abrangência e importância do intercâmbio cultural entre o
Brasil e os países que lhe fazem fronteira. Nesta perspectiva, desvendar a
formação histórica desta região nos possibilitará uma melhor compreensão das
desigualdades regionais. E ao lançarmos uma luz em nosso passado, pode surgir
uma centelha para que possamos transformar o nosso futuro.
13
REFERENCIAL TEÓRICO
Torna-se imperativo a explicitação da postura que norteia esta análise.
O recurso que possibilita a distinção entre este trabalho e outros que tenham por
objeto as reduções jesuíticas do Paraguai é a teoria, tomada em uma acepção
bem definida, cujo conteúdo em absoluto guarda qualquer conotação
metafísica, ao contrário de algumas noções vulgarizadas do mundo acadêmico.
Sob essa perspectiva, a teoria cientifica mais desenvolvida de nossos
dias já está suficientemente constituída, na medida em que ocorreu o pleno
amadurecimento da sociedade capitalista, após a revolução industrial. A teoria
nesta análise tem o sentido explicado por Alves (1984, p.16):
A teoria em nível do pensamento, nada mais é do que um reflexo
que expressa o grau de consciência do homem em relação ao
desenvolvimento material. Necessariamente assim sendo a
constituição da teoria derivou da análise rigorosa das nações
capitalistas mais desenvolvidas, cuja evolução, pelo próprio fato de
serem as mais desenvolvidas, explicita de forma mais elaborada as
determinações do modo de produção. Ocorre que essas
determinações têm caráter geral, pois o capitalismo impregnou todo
o universo através do domínio de algo formidável que ele próprio
criou: o mercado mundial.
A perspectiva, no interior do presente trabalho, é a de adentrar na
senda metodológica explicitada por Karl Marx, partindo do método e
interpretação do capitalismo: o materialismo histórico e dialético. A opção
teórico-metodológica objetiva conferir historicidade à análise, buscando-se
fugir da abordagem dominante. Ao dar historicidade ao objeto impõe-se a esta
análise desvendar as contradições e os antagonismos resultantes da conquista
européia. E consequentemente descrever as particularidades destas relações na
espacialidade da redução.
O objeto dessa apreciação terá como foco as categorias constitutivas da
teoria marxista e em decorrência da abordagem eleita, as categorias totalidade,
historicidade, mercadoria, trabalho, capital, Estado, ideologia, força de trabalho,
revestem-se de uma importância central na análise, e, embora não sejam
exclusivas, quando enfatizadas proporcionam a expressão dos aspectos teóricometodológicos necessários para a compreensão do objeto.
14
A categoria totalidade é central em nossa análise no sentido
evidenciado por Alves (2001): por identificar-se com a própria sociedade
capitalista E no estudo histórico das relações econômicas, culturais e educativas
produzidas nas reduções jesuíticas do Paraguai, existe a necessidade premente
do entendimento da organização social dos homens.
A totalidade concreta e o seu signo são processos indivisíveis, cujo
movimento é o da destruição da pseudoconcreticidade. Isto é, a destruição da
fetichista e aparente objetividade do fenômeno e o seu conhecimento histórico,
no qual se manifesta de modo característico a dialética do humano em geral, e
enfim o conhecimento objetivo do significado do fenômeno, da sua função
objetiva e do lugar que ocupa no seio do corpo social. Marx (1978, p.117) traz o
seguinte esclarecimento:
[...] a totalidade concreta, como totalidade do pensamento, como
um concreto do pensamento, é de modo nenhum produto do
conceito que pensa separado e acima da intuição e da
representação, e que se engendra a si mesmo, mas em conceitos. O
todo tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamento, é
um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do
único modo que lhe é possível, modo que difere do modo artístico,
religioso e prático mental de se apropriar dele.
Para Marx neste processo o sujeito real permanece subsistindo, agora,
em sua autonomia fora do cérebro, isto é, na medida em que o cérebro não se
comporta senão especulativamente, teoricamente.
Por isso de acordo com Marx (1978, p.17): “no método teórico, neste
caso [da economia política], o sujeito (a sociedade), deve figurar sempre na
representação como pressuposição”. A totalidade nesta acepção deve ser
entendida, grosso modo, como a formação social capitalista. E quando teve
inicio essa formação social?
Para responder a este questionamento a categoria historicidade revestese de um papel fundamental nesta análise, pois o capitalismo como sistema
econômico, político e social, hoje hegemônico, surgiu muito lentamente, num
período de vários séculos, primeiro na Europa Ocidental e depois em todo o
mundo. E o seu surgimento desemboca no esforço dos indivíduos para
compreendê-lo. Nesta análise a categoria historicidade tem o sentido
15
esclarecido por Ianni (1990) como sendo a transitoriedade do capitalismo,
dependente do desenvolvimento dos antagonismos e da luta de classes.
Na obra de Marx, o capitalismo é levado a pensar a si mesmo, de
maneira global e como modo fundamental antagônico de desenvolvimento
histórico. Partindo desta acepção, queremos evidenciar que o avanço das forças
produtivas tem como resultado a produção de excedentes sociais cada vez
maiores. As relações sociais engendradas dentro das formações sociais têm sido
contraditórias: a maioria das pessoas trabalha exaustivamente para perpetuar e
sustentar o modo de produção, bem como o excedente social. Paradoxalmente
uma pequena minoria se apropria deste excedente e o controla.
A sociedade burguesa, na afirmação de Marx (1978) é a organização
social e histórica mais desenvolvida, mais diferenciada na produção. É a partir
deste princípio, que efetivamos o nosso exame das relações econômicas,
culturais e educativas nas reduções jesuíticas do Paraguai, no período aqui
delimitado. Marx (1978, p.120) assevera que:
As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua
própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações
de produção de todas as formas de sociedade já desaparecidas,
sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios,
não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo que
fora antes apenas indicado, que toma assim toda a sua significação,
etc. A anatomia humana é a chave da anatomia do macaco.
Ao fazer essa analogia com filologia animal, Marx quer afirmar que
para conhecer a forma inferior, você deve conhecer a forma superior, e neste
aspecto, a economia burguesa fornece a chave da economia da antiguidade, e da
própria transição da economia feudal para o capitalismo, período que é objeto
de análise neste trabalho.
Porém esta análise não será realizada a partir do método dos
economistas burgueses que fazem desaparecer todas as dificuldades históricas e
vêem a forma burguesa em todas as formas da sociedade. Marx (1978, p.120)
afirma que: “pode se compreender o tributo, o dízimo, quando se compreende a
renda da terra, mas não se deve identificá-las”.
Pois, no capitalismo, o valor dos produtos do trabalho humano, de
acordo com Marx (1978) é dado por duas razões distintas. Primeiro que, tais
16
produtos têm características físicas particulares em virtude das quais se tornam
utilizáveis e satisfazem as necessidades humanas. Todo produto do trabalho
humano tem valor de uso, em todas as sociedades. No capitalismo, os produtos
têm valor de uso porque são vendidos no mercado em troca de dinheiro. Este
dinheiro é desejado, porque pode ser trocado por produtos que tem valor de uso
desejado. Na medida em que os produtos têm valor, porque podem ser trocados
por moedas, diz-se que eles têm valor de troca. Estas duas categorias simples,
valor de uso e valor de troca, nos possibilitam entender, um pouco, as relações
econômicas das reduções jesuíticas do Paraguai, pois de acordo com Lugon
(1977, p.156):
O comércio entre as reduções, assim como o comércio externo,
estava monopolizado e dirigido completamente pela comunidade.
De um modo geral, tinha por base o fumo, os legumes, o algodão,
os rebanhos e os diversos objetos manufaturados. Yapeyu
importava, por exemplo, das reduções do norte, o fumo, o chá e o
algodão que sua situação mais distanciada dos trópicos não lhe
permitia produzir em condições tão boas.
Estas relações comerciais revelam a produção de mercadorias com
valor de uso e valor de troca na espacialidade da redução. Os produtos do
trabalho humano têm valor de troca somente no modo de produção
caracterizado pela produção de mercadorias. Em essência, o modo capitalista de
produção é um sistema de mercantilização universal e de produção de mais
valor.
Este sistema mercantiliza as relações, as pessoas e as coisas, ao mesmo
tempo, pois, mercantiliza a força de trabalho, a energia humana que produz
valor. Por isso transforma as próprias pessoas em mercadorias, tornando-as
adjetivas de sua força de trabalho, como esclarece Marx (1946, p.1015):
Desde o primeiro instante, são duas características que distinguem
o modo capitalista de produção. Primeira: ele produz os seus
produtos como mercadorias. O fato de que produz mercadorias não
distingue de outros modos de produção; o que distingue é a
circunstância o caráter dominante e determinante de seus produtos.
Isto implica, antes de tudo, o fato de que o operário somente
aparece como vendedor de mercadorias, ou seja, como trabalhador
livre. A segunda é a produção de mais-valia, como finalidade direta
e o móvel determinante da produção. O capital produz
essencialmente capital.
17
O mais valor e a mercadoria não podem ser compreendidos entre si,
mas como produtos das relações de produção que produzem o capitalismo.
Marx (1978) afirma que a mercadoria apareceu-nos, inicialmente, como duas
coisas: valor de uso e valor de troca. Mais tarde, Marx descobriu que o trabalho
também possui esse duplo caráter: quando se expressa como valor, não possui
mais as mesmas características que lhe pertencem como gerador de valores de
uso. Portanto, antes de vender as mercadorias no mercado e obter o lucro, é
preciso produzi-las; mas é o trabalho, e só o trabalho, que pode criar o valor.
Na análise dialética, as relações surgem como realmente são, isto é,
como sistemas de relações antagônicas.
Nisto se funda o caráter essencial do regime: os componentes mais
característicos, o mais valor e a mercadoria, sejam o operário e o capitalista,
produzem-se, desde o princípio antagonicamente. Como evidenciamos
anteriormente, o modo de produção capitalista iniciou-se lentamente, no
período aqui analisado (1549-1767), no contexto histórico denominado de
mercantilismo. Neste momento histórico as forças produtivas ainda não
estavam plenamente desenvolvidas.
O período analisado é o nascimento do capital e ele emerge do
despojo, da violência, da expropriação de terras e da pilhagem colonial. A
violência foi um dos fortes mecanismos da conquista colonial, assim explicitada
por Portilla (1984, p.35):
Nos caminhos jazem dardos quebrados; os cabelos estão
espalhados. Destelhadas estão as casas; incandescentes estão seus
muros. Vermes abundam por ruas e praças, e as paredes estão
manchadas de miolos arrebentados. Vermelhas estão as águas,
como se alguém as tivesse tingido, e se bebíamos, eram águas de
salitre. Golpeávamos os muros de adobe em nossa ansiedade, nos
restava por herança uma rede de buracos. Nos escudos esteve nosso
resguardo, mas os escudos não detêm nossa desolação [...].
Portilla descreve estas atrocidades a partir dos relatos astecas que
sobreviveram a invasão espanhola na América Central. Com a derrota dos
árabes frente aos espanhóis, por volta de 1492, com a queda de Granada,
criaram-se as condições necessárias para que os espanhóis pudessem explorar o
comércio da costa ocidental africana. Esta exploração foi desde a sua gênese
mascarada com o zelo religioso, também apoiado pela curiosidade científica e
18
pela concorrência comercial. Estes três aspectos exerceram uma força
coercitiva, levou-os a ampliar esses novos mercados expandindo-se em direção
ao sul, sempre rivalizando com o seu “irmão siamês” da península ibérica, os
portugueses.
Estas motivações, fortalecidas pelo incipiente Estado Moderno
espanhol, arrastou para os “descobrimentos” espanhóis, homens e capitais de
outras nacionalidades (italianos, judeus de Maiorca e escandinavos). Foi este
magma de interesses sintetizados em bases objetivas no lucro insaciável,
combinados com uma visão de mundo religiosa e austera, indiscutível e
dedicada ao extremo, que como um vendaval assolou os espanhóis, e os levou
até os mares quentes e fervilhantes do Caribe e outras regiões mais distantes. A
cobiça por riquezas associada a uma visão de mundo extremamente religiosa se
tornou um amálgama tenazmente consolidado visando a conquista.
Neste processo de acumulação primitiva do capital não havia uma
uniformidade na formação social; enquanto em algumas regiões ocorria o
trabalho assalariado, em outras prevalecia o trabalho servil e em algumas
outras, o trabalho escravo. Por não ser um processo homogêneo e linear, em
cada região havia particularidades e singularidades no desenvolvimento das
forças produtivas. Porém estavam inseridos na universalidade, que traz a marca
distintiva da gênese do modo de produção capitalista em sua fase mercantilista.
Huberman (1986, p.161) afirma: “comércio, conquista, pirataria, saque
e exploração – essas são as formas, portanto, pelas qual o capital necessário
para iniciar a produção foi resumido”. Marx (1978) completa: “[...] se dinheiro
vem ao mundo com uma mancha congênita numa das faces, o capital vem
pingando da cabeça aos pés, de todos os poros, sangue e lama”.
A produção econômica da Companhia de Jesus foi a expressão dessa
universalidade, do caráter diversificado de produção de mercadorias, em
diversas regiões do mundo. Quevedo (2000, p.11) descreve a particularidade
desta produção nas reduções jesuíticas do Paraguai, onde o modelo de
exploração da força de trabalho indígena foi a do “índio reduzido”:
[...] neste modelo havia dois elementos: a) a propriedade coletiva
de todos os meios de produção (Tupambaé), na qual se
desenvolviam as atividades pecuaristas para garantir a autosuficiência e a produção de excedentes para a economia colonial
19
espanhola. b) propriedade particular dos meios de produção (o
Amambaé), onde se praticava a atividade por meio do trabalho livre
e familiar para a autosuficiência da família missionária.
Esta
forma
de
organização
implicava
relações
de
trabalho
simultaneamente familiar, assalariado e cooperativo, naturalmente sobre a
direção dos padres. Quevedo (2000) afirma que neste contexto procurou-se
especializar a força de trabalho, e isso provocou o surgimento de trabalhadores
em vários ramos de atividades: tecelagem, carpintaria, olaria, curtição de couro,
criação de animais e agricultura. Na avaliação de Quevedo (2000, p.12): “Este
conjunto complexo de elementos é o responsável pelo êxito socioeconômico
missionário do final do século XVII até a segunda metade do século XVIII”.
Neste contexto histórico, a mercadoria estava constituindo-se no
caráter dominante e determinante do modo de produção capitalista. Para que a
produção capitalista exista, é preciso que a sociedade tenha um mercado
desenvolvido, no qual os produtos possam ser livremente comprados ou
vendidos em troca de moedas. Existe produção de mercadorias quando os
produtos são fabricados sem qualquer interesse pessoal imediato do produtor
em seu valor de uso, mas sim, em seu valor de troca; neste aspecto a produção
econômica das reduções jesuíticas do Paraguai inseria os seus produtos em um
mercado que estava se universalizando.
Gadelha (1980, p.145) descreve a inserção da América Latina e suas
relações comerciais com o mercado mundial:
Com o afluxo da prata, no mercado peruano, os preços viram-se
inflacionados, proporcionando aos mercadores lucros que chegaram
a atingir 1.000%. Assim se explica que o Consulado limenho tenha
se unido a burguesia sevilhana, exercendo pressão no sentido de
reforçar o monopólio exclusivista espanhol. O pretexto de controle
das saídas de prata nas zonas afastadas dos centros mineradores, no
território americano ocasionava nestas áreas total ausência de
moedas e numerário. Além disso, a proibição das colônias de
fabricarem e produzirem gêneros similares aos existentes na
Espanha, restringia toda possibilidade de desenvolvimento
industrial e aumentava, ainda mais, a dependência das regiões mais
afastadas. A lista de produtos proibidos é imensa, abrangendo
quase todos os gêneros necessários e mesmo indispensável à vida
diária, a saber: instrumentos de trabalho, armas e munições, ferro,
aço, chumbo, papel, vinagre, azeite, licores e vinhos, móveis,
tecidos, sal, etc. Isto evidentemente, não impedia que as
autoridades coloniais, muitas vezes se vissem obrigados a tolerar a
fabricação destes produtos, na colônia.
20
A escassez de moeda provocada pela proibição da cunhagem na
colônia não significa a “total ausência” como afirma Gadelha. Este direito era
monopolizado pela burguesia sevilhana que manteve o comércio colonial,
durante mais de um século, em suas mãos. A produção e o comércio de
mercadorias eram feitos em escala mundial, e em cada região ganhava uma
configuração particular.
Haubert (1990) descreve a produção econômica das reduções jesuíticas
e, através de farta documentação da época, esclarece-nos que, quando os
jesuítas foram expulsos, em 1767, os rebanhos das reduções contavam com
mais de um milhão de bovinos, trezentos mil carneiros e cem mil cavalos.
Evidentemente, relações de produção e criação de gado dessa ordem não
poderiam ser feudais.
Portanto, a tese apresentada por Gadelha, de uma economia natural e,
consequentemente, a tese apresentada pelos teóricos e historiadores ligados a
Companhia de Jesus, destacando que a produção econômica das reduções
jesuíticas era utilizada apenas para a subsistência da “família missionária” e,
esta produção era feita isoladamente, somente nos estreitos limites dos colégios,
não se sustenta. Marx (1978, p.103) afirma:
Indivíduos produzindo em sociedade, portanto a produção dos
indivíduos determinada socialmente, é por certo o ponto de partida.
O caçador e o pescador, indivíduos isolados, do que partem Smith e
Ricardo, pertencem as pobres ficções das robinsonadas do século
XVIII. Estas não expressam de modo algum – como se afigura aos
historiadores da civilização -, uma simples reação contra os
excessos e um retorno mal compreendido a uma vida natural.
A gênese do mercado mundial emerge neste contexto histórico, porque
o produto só se torna produto efetivo no consumo. Por exemplo, a erva-mate
produzida pelos índios guaranis nas reduções converte-se efetivamente em
erva-mate quando é usada. Se a erva-mate não fosse utilizada não seria, ervamate efetiva. O produto, diversamente do simples objeto natural, não se
confirma como produto, não se torna produto, senão no consumo.
Ao dissolver o produto, o consumo lhe dá o seu retoque final. De
acordo com Marx (1978), o produto não é apenas a produção enquanto
atividade codificada, mas também enquanto objeto para o sujeito em atividade.
21
Ele afirma que o consumo cria a necessidade de uma nova produção, ou seja, o
fundamento que move internamente a produção e que é a sua pressuposição.
Nesta acepção, o consumo cria o impulso da produção, cria também o
objeto que atua na produção como determinante da finalidade. É claro que a
produção oferece o objeto de consumo e põe idealmente o objeto na produção,
como imagem interior, como necessidade, como impulso e como fim. O
consumo cria os objetos da produção de uma forma ainda subjetiva. Sem
necessidade não há produção. Mas o consumo reproduz a necessidade.
Uma das mercadorias mais produzidas e mais consumidas no cone-sul
da América Latina foi a erva-mate.
O historiador Magnus Morner (1968) afirma que, na década de 1670,
as missões jesuíticas do Paraguai produziram e exportavam 40.000 arrobas
anuais do produto. A população de Tucuman e Rio da Plata eram os maiores
consumidores (entre 20 e 30 mil arrobas) anuais. Marx (1978, p.109) tinha
razão quando afirmava: “a produção é, pois imediatamente produção”.
A produção da erva-mate e a utilização da força de trabalho indígena
levam alguns autores a caracterizar esse contexto histórico do Paraguai como
contendo relações feudais e escravocratas. A alegação para tais concepções é a
afirmação que a “essência do capitalismo é o trabalho assalariado”. E em sua
forma a “encomienda” se assemelhava às relações servis.
Neste aspecto do desenvolvimento das forças produtivas, Marx (1978,
p.38) esclarece:
Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de
produção existente ou, o que nada mais é do que sua expressão
jurídica, com as relações de propriedade dentro dos quais até então
tinha se movido. De formas de desenvolvimento das forças
produtivas estas relações se transformam em seus grilhões.
Este é o período de transição para o capitalismo, é um contexto de luta
entre as forças conservadoras e as forças revolucionárias. Um exemplo
elucidativo deste processo é a própria Companhia de Jesus. Pois, em seus vários
empreendimentos econômicos em diferentes regiões do mundo apresentava essa
configuração multifacetada, expressa na utilização da força de trabalho escrava
e assalariada. Nas reduções jesuíticas mesclavam-se o trabalho servil e
22
assalariado, com propriedades privadas e coletivas. Marx (1978, p.130) afirma
que:
Uma formação social nunca perece antes que estejam
desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais elas são
suficientemente desenvolvidas, e novas relações de produção mais
adiantadas jamais tomarão o lugar antes que suas condições
materiais de existência tenham sido geradas no seio da velha
sociedade.
O que é importante salientar é que o capitalismo se institui no mundo
inteiro subsumindo outras formas de relações de trabalho, como a escravidão
nos Estados Unidos, ou formas servis nas Índias Ocidentais e Orientais.
Outra categoria central para a compreensão da instituição do
capitalismo e consequentemente necessária para reconstituir as múltiplas teias
que determinaram as relações econômicas, culturais e educacionais nas
reduções jesuíticas do Paraguai, é a categoria Estado.
Para empreendermos esta análise existe a necessidade de recuarmos
um pouco no tempo, antes do ano 1.000. A Europa era essencialmente
constituída de feudos, vilas e algumas poucas cidades pequenas, além de alguns
centros comerciais. No Mediterrâneo, por volta de 1.300 já havia grandes e
prósperas cidades, o que conduziu ao crescimento da especialização ruralurbana. Outro importante resultado da especialização crescente foi o
desenvolvimento do comércio interegional e de longa distância. Eles foram
sustentados e fomentaram o desenvolvimento econômico da Europa. O
crescimento da produtividade agrícola significou que o excedente de alimentos
e manufaturados tornou-se disponível tanto para os mercados locais como para
o mercado internacional (produção, circulação e consumo).
O desenvolvimento no campo da energia e do transporte tornou-se
possível e lucrativo com a concentração de indivíduos nas cidades, produzindo
em grande escala e vendendo os bens produzidos nos mercados mais amplos de
longa distância. Assim, esses desenvolvimentos básicos na agricultura e na
indústria formaram os pré-requisitos necessários para a disseminação do
comércio, o que por sua vez estimulou ainda mais a expansão urbana e
encorajou a indústria.
23
Com o desenvolvimento das forças produtivas e com a expansão do
comércio, acirram-se as contradições de classes e, no contexto desses conflitos
entre frações da nobreza e do clero, o comércio se tornou uma força de
instabilidade e de corrosão. O comércio lentamente ajudou na dissolução do
feudalismo. A produção, o comércio e o consumo, vagarosamente, corroeram as
bases do modo de produção feudal, estabelecendo as bases da acumulação
primitiva e dos fundamentos institucionais do novo modo de produção.
O capitalismo emerge na produção de mercadorias, acelerando o
consumo e expandindo a circulação, particularmente a de longa distância. Este
processo levou ao estabelecimento de cidades industriais e comerciais para
servir ao movimento do capital. O comércio interno e o externo ganham um
grande impulso com a “descoberta” do novo mundo. Neste período histórico já
existiam sistemas complexos de câmbio, compensação e facilidades
relacionadas ao crédito. Desenvolveu-se nestas cidades centros comerciais, e
instrumentos modernos, como cartas de crédito, além da elaboração de novos
sistemas de leis, entrando em contradição com o sistema paternalista de
execução de dívidas, baseadas nos costumes e nas tradições vigentes no feudo.
A partir destas contradições criaram-se as necessidades de se ajustar as
leis a estas novas relações comerciais. Estas leis foram embrionárias para as
modernas leis capitalistas dos contratos, títulos negociáveis, representação
comercial e execução em hasta pública. No sistema feudal, o produtor (o mestre
artesão) era também o vendedor, entretanto, as indústrias que apareciam nas
novas cidades eram basicamente de exportação, onde o produtor estava distante
do comprador final.
Os artesãos vendiam seus produtos aos comerciantes, que por sua vez
os transportavam e revendiam. Outra diferença importante era a de que o
artesão feudal era também um fazendeiro e, de modo geral, o novo artesão das
cidades desistiu da terra para dedicar-se inteiramente ao seu trabalho com o
qual ele podia deter uma renda monetária que podia ser usada para satisfazer
outras necessidades.
No centro do capitalismo este processo ganhou esta configuração
particular, como esclarece Marx (1968, p. 850):
24
O roubo da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado,
a ladroeira das terras comuns e a transformação da propriedade
feudal e do clã em propriedade privada moderna, levada à cabo
com terrorismo implacável, figuram entre os métodos idílicos da
acumulação primitiva. Conquistaram o campo para a agricultura
capitalista, incorporaram as terras ao capital e proporcionaram à
indústria das cidades a oferta necessária de proletários sem direitos.
Este emergente e novo modo de produção, circulação e consumo de
mercadorias, produziu, consequentemente, novas necessidades. Ao estabelecer
esta nova estrutura, fez emergir novas necessidades superestruturais, que se
manifestam nos fundamentos institucionais necessários para gerir esta nova
força: o capital. Marx (1968, p.854) esclarece o processo da instituição
sanguinária contra os expropriados, a partir do século XV na Inglaterra:
“Assim, a população rural, expropriada e expulsa de suas terras, compelida à
vagabundagem, foi enquadrada na disciplina exigida pelo sistema de trabalho
assalariado, por meio de um grotesco terrorismo legalizado que empregava o
açoite, o ferro em brasa e a tortura”.
Marx (1968) afirma que ao progredir o processo de desenvolvimento
capitalista quebraram-se todas as resistências; a produção contínua de uma
superpopulação relativa mantém a lei de oferta e de procura de trabalho e,
portanto o salário, em harmonia com a expansão do capital; a coação surda das
relações econômicas consolida o domínio do capitalista sobre o trabalhador.
Ainda será empregada a violência direta, à margem das leis econômicas, mas
doravante apenas em caráter excepcional.
Para a marcha ordinária das coisas basta deixar o trabalhador entregue
às “leis naturais” de produção, isto é, à sua dependência do capital, a qual
decorre das próprias condições. É nesta acepção que emergem outras
necessidades superestruturais. A burguesia nascente precisava e empregava a
força do Estado, para “regular” o salário, isto é, comprimi-lo dentro dos limites
convenientes à produção de mais valia, para prolongar a jornada de trabalho e
para manter o próprio trabalhador num grau adequado de dependência.
Marx (1968, p.855) afirma: “Temos aí um fator fundamental da
chamada acumulação primitiva”. Uma das primeiras instituições produzidas
pelas contradições entre as diversas frações desta sociedade emergente foi o
Estado Moderno, e o primeiro a se constituir foi na Península Ibérica. O
primeiro Estado Moderno emerge em Portugal, com a crise de 1383-1385, de
25
onde nascerá uma nova dinastia, a de Avís, que dará nova fisionomia aos
elementos vagos, dispersos em crescimento. A Revolução de Avís, cuja dinastia
se manterá por quase dois séculos no poder (1385-1580) consolidará o modelo
de Estados Modernos e, consequentemente fixará a base do capitalismo em sua
fase mercantil. Faoro (1991, p.21) descreve a causa que provocou a Revolução
de Avís:
A atividade comercial e marítima que resultou a modalidade de
povoamento da costa e a exploração do mar que representa
elemento decisivo que define o gênero da vida nacional portuguesa,
baseado na pesca, na salinação e nos produtos comerciáveis da
terra. Graça ao desenvolvimento do trafego oceânico os mercadores
portugueses puderam desde cedo estreitar relações com Flandres.
Entre o comércio medieval, de trocas costeiras, e o comércio
moderno a longa distância há o aparecimento da burguesia
desvinculada da terra, capaz de financiar a mercancia. Há,
sobretudo, o aparecimento de um órgão centralizador, dirigente que
conduz as operações comerciais, como empresa sua: o príncipe.
O Estado Moderno emerge das contradições e dos antagonismos no
interior desta sociedade. Evidentemente o Estado Moderno não nasce sob a
hegemonia burguesa, que só vai se consolidar com as Revoluções Burguesas do
século XVIII, mas o Estado Moderno na Península Ibérica nasce de uma aliança
entre a realeza, o clero e a burguesia mercantil em ascensão.
Neste contexto histórico, a Espanha produz também esta nova
instituição, tendo como modelo o Estado Português. Portanto, o Estado
Moderno desde a sua gênese se fundamenta nessa necessidade histórica do
capital, a mercadoria precisava se realizar. Logo, nenhuma exploração
industrial e comercial estava isenta do controle do príncipe (Estado), que
evidentemente controlava de imediato a esfera mais lucrativa, e concedia o
privilégio de exploração à burguesia nascente, presa desde o berço as rédeas
douradas da Coroa.
A outorga de atividades dispersas e tímidas, ganham relevo com as
grandes viagens, com os reis ibéricos senhores dos mares e das rotas abertas na
África, Ásia e América. Faoro (1991, p.21) afirma: “o Estado torna-se uma
empresa do príncipe que intervém em tudo, empresário audacioso exposto a
muitos riscos, por amor a riqueza e a glória, empresa de paz, empresa de
guerra”.
26
Estavam lançadas as bases do capitalismo de Estado, politicamente
condicionado, que floresceu ideologicamente no mercantilismo. Neste aspecto a
instituição de um órgão centralizador objetivava institucionalizar a mercancia,
cuja força motriz era a mercadoria e a sua realização o desígnio final.
A Província do Paraguai nasce neste contexto histórico como
propriedade privada do Moderno Estado Espanhol.
Neste sentido, a categoria Estado reveste-se de uma importância
central em nosso trabalho para desvendar as relações econômicas, culturais e
educacionais nas reduções jesuíticas do Paraguai. Relações estas que estão
entrelaçadas e permeadas pelo caráter universalizante da reprodução do capital.
O emprego do poder do Estado para estimular o desenvolvimento do
capitalismo, tem a sua gênese neste período histórico. O que é verdadeiramente
o Estado? Marx (1983, p.38) responde ao enunciado desta maneira:
[...] o Estado é a forma sob a qual os indivíduos de uma classe
dominante fazem valer seus interesses comuns, na qual condensa
toda a sociedade civil de uma época, segue-se disso que todas as
instituições comuns têm como mediador o estado e adquirem,
através, uma forma política. Daí a ilusão de que a lei se baseia e,
além disso, na vontade separada de sua base real, na vontade. E, da
mesma maneira, por sua vez, se reduz o direito à lei.
Queremos afirmar que o Estado Moderno emerge de uma necessidade
histórica do capital, nesta acepção ele não surge da “vontade de todos”, assim
como as leis não nascem do desejo metafísico que “paira sobre nossas cabeças”.
O Estado Moderno e as suas leis são frutos da luta de classe, dentro desta
formação social, que se fundamentou desde a sua gênese na luta pela
propriedade privada dos meios de produção, assim explicitada por Marx (1969,
p.25):
O Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de estado
social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o estado
social, a cultura e a ocupação do homem, como diferenças não
políticas; ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas
diferenças, participante da soberania popular em base da igualdade;
ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de
vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade
privada, a cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto é, como
propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer
a sua natureza especial.
27
O Estado Moderno é a expressão da estrutura da sociedade, mas não é
a expressão harmônica e abstrata. Ao contrário, já se constitui, como um
produto de contradições políticas. E é nesta contradição que se funda o poder
estatal.
Marx (1963, p.222) afirma que: “o Estado se funda na contradição
entre o público e a vida privada, entre o interesse geral e o particular”.
Para entender as relações econômicas, culturais e educacionais nas
reduções jesuíticas do Paraguai, houve a necessidade de estudar as imbricações
e os desdobramentos sociais, político e econômicos das forças produtivas e das
relações de produção, em seu desenvolvimento, inseridos neste período de
transição.
O conjunto do processo de produção de mais valor, a reprodução
ampliada de capital e a mercantilização universal (pessoas e coisas) somente
podem ser compreendidas se a análise apreende também o Estado como
dimensão essencial do capitalismo. A teoria da luta de classes seria uma
simples abstração, se as relações e o antagonismo de classe não implicassem no
Estado capitalista como expressão e condição dessas mesmas relações de
antagonismo.
OBJETIVOS
Feitas estas considerações sobre as categorias constitutivas da análise
empreendida neste trabalho, há a necessidade de redirecionar a discussão sobre
o objetivo geral desta pesquisa. Partindo das concepções teóricas já explicitadas
nas páginas anteriores, buscou-se levantar as fontes que pudessem revelar os
dados sobre as reduções jesuíticas do Paraguai.
O objetivo geral desta análise foi contextualizar historicamente e
delimitar o período de investigação (1549-1767), compreendendo que o período
possui dois aspectos de inflexão distintos: a chegada dos jesuítas na América e
a expulsão dos inacianos das possessões espanholas, com a demarcação deste
contexto histórico inserido no período de acumulação primitiva do capital.
Partindo desse objetivo geral foram delimitados os objetivos específicos: a
compreensão das particularidades e as singularidades das reduções jesuíticas
28
inseridas na universalidade da acumulação primitiva de capitais e, mais
especificamente, como se desenvolveram a economia, a cultura e a educação na
espacialidade reducional.
No campo da produção econômica buscamos descortinar quais eram as
mercadorias produzidas e compreender a força de trabalho que fora utilizada
para a produção. E principalmente, se estas mercadorias produzidas estavam
inseridas na lógica do mercado mundial.
No aspecto cultural o objetivo específico foi descrever como se deu a
interelação entre os guaranis e a sociedade européia, com o intuito de
compreender as contradições inerentes a estas novas relações sociais que ali se
processaram.
No campo educacional esta análise privilegiou a inter-relação da
religião com a educação ministrada pelos jesuítas na instituição do imaginário
social no cone-sul da América Latina.
FONTES DE DADOS
A pesquisa foi fundamentada na coleta de dados em fontes
documentais, como se segue.
Primeiramente, a documentação manuscrita da coleção de Angelis,
existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde foram microfilmados e
efetuada uma apurada leitura de cerca de 88 documentos, o que embasou as
informações importantes sobre as problemáticas gestadas pelos jesuítas, na
Província do Paraguai.
Outa fonte documental importante foram as informações contidas nas
Cartas ânuas escritas por diversos jesuítas, e publicadas por Emilio Ravignani,
na coleção por ele organizada: Documentos para la história Argentina, Vol.19 e
20. Esta documentação foi complementada pelos documentos reunidos e
publicados por Jaime Cortesão, em cinco volumes, e que se relacionam em
grande parte, aos conflitos existentes entre jesuítas e bandeirante nas Províncias
do Guairá, Tapes, Itatim, Uruguai e Colônia do Sacramento.
29
Ainda no mesmo campo, foram acessadas as informações das Cartas
Ânuas de La Província do Paraguai (1637-1639), publicadas por Ernesto
Maeder, em 1984.
Quanto aos cronistas, não poderíamos deixar de mencionar a
importância da obra de Juan Francisco Aguirre, publicada em dois volumes, e
intitulada Diário de Capitán de Fragata de La Real Armada, Juan Francisco
Aguirre. Esta publicação se encontra na Revista da Biblioteca Nacional de
Buenos Aires. Muitos cronistas que utilizamos foram também testemunhas
oculares dos acontecimentos a que reportamos. A validade dos testemunhos
apresentados por cada um deles varia segundo a sua maior capacidade de
observação.
Entre os cronistas do século XVI, Ulrico Schimel é, sem dúvida, o
mais lúcido. Esse soldado alemão e protestante, que esteve nesta região, não
esconde os atos de violência cometidos pelos espanhóis contra os índios,
mantendo um tom “imparcial” em seus relatos, sem cair na apologia, acabando
por se constituir em fonte importante.
Outros cronistas importantes são Rui Diaz de Guzmán (neto do
primeiro “adelantado” da província do Paraguai e Rio da Plata Martin Irala) e
Cabeza de Vaca, (este foi o segundo “adelantado” do Paraguai e Rio da Plata)
apesar do tom apologético trazem uma contribuição importante, pois foram
personagens fundamentais neste processo histórico.
Os cronistas da Companhia de Jesus, apesar de sua visão unilateral,
apresentam contribuição significativa, pois foram os atores dos principais
episódios ocorridos nas reduções jesuíticas, sendo que muitos destes cronistas
foram fundadores de várias reduções. Dentre os cronistas da Companhia de
Jesus foram fontes necessárias para a realização deste trabalho: Antonio Seep,
Josep Manuel Peramás, Ruben Ugarte, Diego Torres, Antonio Ruiz de
Montoya, Guilhermo Furlong, José Cardiel e Antonio Astrain. Estes cronistas
apresentam informações sobre a vida social, econômica, política e religiosa das
reduções jesuíticas do Paraguai.
No século XVIII inúmeros cronistas se preocuparam em relatar a
produção social das reduções jesuíticas do Paraguai. Estes relatos em muitos
casos foram efetivados através da visita destes cronistas in loco, e em outros
casos através de informações obtidas por viajantes. Dos cronistas do século
30
XVIII podemos destacar as contribuições de Antonio Ludovico Muratori, que
apresenta um relato equilibrado sobre as reduções jesuíticas.
Por meio de uma visão culturalista, Muratori descreve a produção
social das reduções jesuíticas em vários aspectos, principalmente a questão
educacional. Outro cronista que traz uma contribuição significativa para a
realização deste trabalho é o Padre Chaerlevoix que faz um relato crítico sobre a
ação inaciana na Província do Paraguai. Pesa contra a obra de Chaerlevoix o
fato de não ter sido testemunha direta dos fatos que descreve, a base de seu
trabalho se fundamenta em relatos de seus contemporâneos. A obra de
Chaerlevoix perde um pouco de interesse na medida em que relata fatos nem
sempre com base documental.
As informações extraídas da obra de Chaerlevoix foram utilizadas
neste trabalho a partir do cruzamento destas com outras fontes e aqueles
fundamentados em prova documental.
Entre as fontes historiográficas, destacam-se as obras de Regina Maria
A. F. Gadelha (1980), Máxime Haubert (1990) e Clóvis Lugon (1977). Estas
três obras historiográficas apresentam uma radiografia completa das reduções
jesuíticas. Fundamentadas em fontes documentais, estes três autores trazem
uma enorme contribuição para a compreensão histórica do Paraguai colonial.
Entre os trabalhos acadêmicos cujo foco central é a Companhia de
Jesus, contribuíram como fontes para a compreensão da ação inaciana e de seus
empreendimentos econômicos as obras de Paulo de Assunção (2004), Charles
Boxer (1979) e Dauril Alden (1970). No campo antropológico destaco a obra de
Julio Quevedo (2000), que traz reflexões necessárias acerca das relações entre
jesuítas e guaranis.
Porém a contribuição categórica no campo antropológico para a
compreensão deste processo “cultural” estabelecido a partir da invasão
espanhola é de Barthomeu Meliá. Foi a partir dessas fontes que empreendemos
as nossas análises das reduções jesuíticas do Paraguai, e consequentemente
descrevemos
as
atividades
econômicas,
culturais
e educacionais
ali
desenvolvidas.
Por esta razão, esse estudo evidenciou sempre a estrutura de
apropriação econômica e dominação política, em que tendem a se cristalizar as
31
relações e o antagonismo que se engendraram nas reduções jesuíticas do
Paraguai.
ESTRUTURA DO TRABALHO
Quanto à estrutura do trabalho, foram elaborados três capítulos,
subdividos em sub-capítulos, e uma Conclusão.
O primeiro capítulo apresenta uma breve história da Companhia de
Jesus e as controvérsias contidas na historiografia acerca da sua atuação
econômica, missionária e educacional. A Companhia de Jesus foi fundada em
1540, pelo espanhol Inácio de Loyola, e confirmada como Ordem religiosa,
pelo Papa Paulo III. A partir deste momento os jesuítas se espalharam pelos
quatro cantos do mundo. Este processo de inserção social da Companhia
provocou um acirrado debate sobre as suas ações catequéticas, econômicas e
culturais.
Nele buscou-se descrever as vertentes teóricas que enfatizam a ação
inaciana. Visando assegurar uma visão mais matizada e de conjunto sobre como
a problemática jesuítica é tratada na historiografia, foram consideradas duas
vertentes: o primeiro grupo a ser considerado foram os cronistas da Companhia
de Jesus e o segundo, os autores que produziram trabalhos acadêmicos que
tinham como objeto a Companhia de Jesus. Guiaram a discussão do primeiro
grupo os padres Serafim Leite, Guilhermo Furlong e Antonio Seep. No segundo
grupo, dentro da vertente historiográfica que produziu trabalhos acadêmicos,
foram destacados Máxime Haubert, Clóvis Lugon, Regina Gadelha, Paulo de
Assunção e Gilberto Luiz Alves.
No campo teórico, guiaram a discussão as principais controvérsias
contidas na historiográfia sobre a atuação jesuítica:
- Se a atuação jesuítica estava umbilicalmente ligada ao pensamento
contra-reformista?
- Se as práticas econômicas das reduções jesuíticas estavam ligadas ao
modo de produção feudal?
- E se o contexto social-histórico do Paraguai colonial estava inserido
no modo de produção feudal?
32
Dentro da perspectiva de responder a estas indagações foram
destacadas as produções teóricas de Serafim Leite, Máxime Haubert, Antonio
Gramsci, Regina Gadelha, Clóvis Lugon e Gilberto Luiz Alves. Ao final do
capítulo, foram construídas considerações a respeito da divergência teórica
explicitada na obra destes autores.
Procurou-se, desse modo, realçar as considerações comparativas entre
as duas vertentes de pensamento, destacando o desenvolvimento teórico destes
autores que produziram trabalhos tendo como objeto de análise a ação inaciana.
A opção foi selecionar estudiosos que tivessem refletido sobre a contribuição
jesuítica sob o prisma da apologética ou da contradição, que permitissem por
meio de suas obras apreender as especificidades e as contradições pertinentes às
diversas análises.
No segundo capítulo, é descrito o contexto social e histórico em que
foram instituídas as reduções jesuítas no Paraguai, ao apresentar as contradições
entre as diversas frações da sociedade colonial paraguaia que disputavam a
hegemonia política, econômica e social. Nele também é evidenciada a relação
entre o caráter singular em que emerge o Paraguai Colonial, com as
particularidades das reduções, inserido em um contexto universalizante do
mercado mundial.
O terceiro capítulo está centrado sobre a vida na “redução”, sua
origem, suas características no Paraguai, enfatizando a vida cultural e
educacional em seu seio. Nele procurou-se investigar a inter-relação entre
religião/educação e descrever o processo de instituição do imaginário
capitalista. A reflexão recai sobre as atividades educacionais, que envolveram
tanto a educação assistemática e a catequese, quanto a educação escolar.
Por fim, a partir das elaborações sistematizadas nos capítulos
antecedentes, a conclusão evidencia o contexto em que emergem as reduções
jesuíticas inseridas na gênese da acumulação originária. A marca deste processo
traz em sua essência as marcas distintivas do modo de produção capitalista. As
reduções jesuíticas estavam sob a égide do Estado espanhol, e a Companhia de
Jesus recebeu o monopólio sobre a força de trabalho indígena que pudesse
converter. E o modelo adotado para a exploração da força de trabalho indígena
foi a do “índio reduzido”.
33
A partir do domínio da base material, a Companhia de Jesus erigiu
uma organização política, catequética educacional, objetivando a qualquer
preço catequizar e “civilizar” os indígenas, substituindo as crenças da cultura
original indígena pela cultura ocidental. Porém, na espacialidade reducional o
processo de aculturação foi extremamente contraditório, onde a palavra guarani
nunca foi silenciada e foi um instrumento de luta contra o invasor. A partir
destas novas relações sociais fundamentadas na técnica européia e na cultura da
reciprocidade guarani, se desenvolveu uma sociedade guarani-missioneira.
Esta sociedade produziu um relativo desenvolvimento econômico,
social e cultural que provocou uma cisão entre as diversas frações da sociedade
colonial paraguaia e culminou com a crise global que envolveu a Companhia de
Jesus com as monarquias católicas. Esse processo é concomitante com a
expulsão dos jesuítas de todas as possessões espanholas e provocou o
esfacelamento da sociedade guarani-missioneira.
A matéria tratada é de extrema complexidade e sua abordagem revestese de certa novidade para o Mestrado em Educação da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, por se tratar do primeiro trabalho que aborda á história da
educação do período colonial. Logo, não há como renunciar ao reconhecimento
do caráter preliminar dos resultados obtidos nesta investigação. Muitas questões
apresentadas exigem aprofundamento: pontualmente as questões que se
relacionam com as causas que provocaram a expulsão dos jesuítas das
possessões espanholas e o conteúdo pedagógico da educação escolar nas
reduções jesuíticas do Paraguai, outro aspecto que necessita de esmero em sua
abordagem.
Deste modo, propõe-se a necessidade premente para o Mestrado em
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul da instauração de
uma linha de pesquisa que possa produzir, no âmbito da investigação, a
acumulação de conhecimento e contemplar o desenvolvimento teórico da
História da Educação.
CAPITULO I
BREVE
HISTÓRICO
DA
COMPANHIA
DE
JESUS
E
AS
CONTROVÉRSIAS CONTIDAS NA HISTORIOGRAFIA ACERCA DE
SUA ATUAÇÃO ECONÔMICA, MISSIONÁRIA E EDUCACIONAL.
Poucas aventuras coletivas marcaram tão poderosamente a história da
civilização ocidental cristã como aquela da Companhia de Jesus. Passaram-se
quase quinhentos anos e as marcas indeléveis desta aventura continuam
arraigadas por todo o planeta, demarcadas por verdadeiros e falsos mistérios,
divergências e intrigas, mas principalmente permeadas pela admiração e crítica
de sua ação catequética, missionária e econômica.
A ordem foi fundada em 1540, porém a história da Companhia de
Jesus não pode ser compreendida sem o entendimento da trajetória do seu
fundador Inácio de Loyola (1492-1556) e, conseqüentemente, o contexto
histórico em que estava inserido. Inácio de Loyola nasceu em Azpétia
(Espanha), de uma família de soldados. Viveu na sua juventude a vida
promíscua e agitada dos fidalgos e militares do seu tempo.
Em uma batalha em Navarra, Inácio de Loyola foi atingido por
estilhaços de bala de canhão que lhe feriu gravemente as pernas. Loyola tenta
recuperar-se em casa, com muito tempo para leitura e, como Saulo em seu
caminho para Damasco, entrou em contato com dois livros edificantes, A vida
de Jesus, de um padre catuxo e Florilégio dos Santos, de Monsenhor Giacomo
de Varazzo. Estas leituras modificaram os ideais de Loyola que, depois de
quase perder as pernas e tornar-se coxo, decidiu que não queria mais servir aos
príncipes em batalhas e sim servir a Jesus Cristo. Após esta sua conversão,
passou por tempos difíceis e para sobreviver pedia esmolas2.
De acordo com Lacouture (1994, p. 19), “no início de 1528, Inácio de
Loyola atravessa os Pirineus e caminha rumo a Paris, cidade onde Guillaume
______________
2
Foi neste período que Inácio de Loyola escreveu seu livro Os Exercícios Espirituais. É sua
obra central e, redigida inicialmente em latim grosseiro, não cessará de ser revisada e ampliada.
A relação de Inácio com Os Exercícios Espitiruais não é a de um autor com a sua obra. Ele a
considerava como algo “revelado”, “ditado por Deus”, como se fosse uma “profecia” ou uma
“revelação divina”. Nesta sua peregrinação, Inácio de Loyola construiu um “manual prático”
para um cristianismo que, naquele contexto histórico, passava por uma crise profunda.
35
Budé prepara a criação do Collége de France, sendo que um dos nomes
cogitados para ser o diretor desta instituição de ensino era Erasmo”.
Como acontecia em diversos aspectos da vida, no campo das idéias
esta época encontrava-se em plena conturbação, tanto no que dizia respeito à
essência quanto à forma. Esta essência expressava-se na irrupção do
humanismo, assim evidenciado por Quicherat (1864, p. 151):
[...] foram trazidos da Itália os primeiros trabalhos a fim de que se
abeberassem na fonte pura da antiguidade [...] os sábios em “us”, os
diagnósticos do povo latino [...] tiveram de constatar que nada
sabiam de latim. A maioria deles preferiu remeter-se aos seus
diplomas que testemunhavam o contrário. Apenas alguns, por
esforço de modéstia e por bom senso, chegaram a conclusão de sua
insuficiência, tiveram a coragem de desprender para se instruir de
novo. Foi graças a eles que o fogo sagrado refulgiu sobre a douta
colina. E em pouco tempo, incendiou a juventude.
O objetivo de Loyola em Paris era de estudar e conhecer os códigos
desta nova sociedade3 que emergia com um aspecto paradoxal, expressas pela
Inquisição conservadora e o humanismo revolucionário. Em 1534, Inácio de
Loyola torna-se mestre em artes e, neste mesmo ano, aglutina em torno de si um
grupo de “doutores” da Universidade de Paris. Dentre eles estavam Pierre
Favre, Francisco Xavier, Diego Lainez, Alfonso Salmeron, Paschase Broët,
Jean Cadure, Simão Rodrigues, Claude Lê Jay, Nicolau Bobadilha.
Estes dez homens foram os fundadores da Companhia de Jesus, tendo
como ponto central de sua organização a obediência devida ao “preposto geral”,
o voto de pobreza e a renúncia a toda forma de cerimonial monástico. No dia
oito de abril de 1541, Inácio de Loyola foi eleito pelos seus pares o primeiro
“preposto geral” da Companhia de Jesus.
______________
3
De acordo com Alves (2005, p. 49), “no interior da Contra-Reforma, por sua vez, não deve ser
desprezada a nova importância de que se revestiu a educação escolar como instrumento da
conquista dos fiéis e, por isso, de difusão da religião católica por todo o universo. Esse novo
movimento histórico criou uma demanda peculiar, e os jesuítas, principalmente, foram
conclamados a atendê-la. Já não se tratava de receber alguns jovens que, por iniciativa de uma
ou outra família, procurava pelos acanhados serviços educacionais dos monastérios e das
catedrais. Nem se tratava de assegurar a difusão da doutrina pela expansão das atividades
catequéticas, que dispensavam o domínio da leitura escrita. Tratava-se, então, de estimular os
fiéis a receber os benefícios da educação intelectual”.
36
A Companhia de Jesus é confirmada e aprovada como ordem religiosa
com a Bula Regimini Ecclesial, de 27 de setembro de 1540, pelo Papa Paulo
III4.
O século XVI se caracteriza por uma série de transformações políticas
e sociais, marcado pela contradição entre o humanismo e a escolástica. Com o
humanismo, há lentamente uma modificação no modo de pensar dos homens,
deste novo homem que emerge das grandes navegações e do mercantilismo,
anunciando a ascensão lenta e gradual de uma nova classe, a burguesia.
Esta nova visão de mundo está em luta fratricida com as idéias do
antigo homem medieval europeu, forjado na luta das cruzadas e de libertação
dos mouros, fundamentados em um pensamento teocêntrico e metafísico. Neste
contexto, por volta dos anos 1500, ocorreram diversos movimentos que
abalaram as estruturas da antiga organização social em diversos campos, como
o econômico, o político e o religioso.
No campo religioso, a Reforma Protestante foi um desses movimentos
que ocorreu contra a poderosa Igreja Católica, surgindo em seu próprio seio.
Manifesto por um descontentamento de algumas frações do próprio apostolado
ecumênico, que lutavam por uma nova doutrina que estimulasse o trabalho e o
acúmulo de riquezas, desta forma, seus interesses conjuminavam com os
interesses burgueses. Com a Reforma Protestante ocorre uma mudança
profunda no campo educacional, pois um dos preceitos reformistas era a não
aceitação da figura intermediária entre o fiel e Deus.
Entendiam os reformistas que o fiel poderia manter este contato com o
“Criador” diretamente, bastando conhecer os seus preceitos, que se
encontravam na Bíblia Sagrada dos cristãos. Em época anterior à reforma,
apenas os sacerdotes faziam a leitura e a tradução da Bíblia.
Os movimentos populares reformistas promoveram a expansão da
escola, com o intuito de permitir que as pessoas aprendessem a ler e a
interpretar a Bíblia conforme os seus próprios entendimentos, sem a
necessidade de intermediação do clero.
No campo político e religioso, os principais representantes foram
Martinho Lutero, Huldrych Zwinglo, Martin Bucer, João Calvino e outros que
______________
4
Ver mais sobre este assunto: Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. Tomo I, II, III, IV.
37
não aceitavam a autoridade do papa, conseguindo para esta causa a adesão de
diversos príncipes. Em pouco tempo, o protestantismo passou a ser a religião
oficial de boa parte do norte da Alemanha, Suécia, Dinamarca, Inglaterra e
Escócia. É neste contexto histórico que nasce a Companhia de Jesus5.
Muito se tem escrito sobre a cruzada dos “homens de negro”, como
eram denominados os padres jesuítas, por uso de batinas dessa cor. Essa matéria
é um manancial inesgotável na literatura, provocando um acirrado debate
teórico sobre a atuação jesuítica. Neste primeiro capítulo são apresentadas as
principais controvérsias contidas na historiografia acerca de sua atuação
econômica, missionária e educacional, desde o momento de sua chegada na
América, em 1549, até sua expulsão das possessões espanholas, em 1767.
Nesses mais de dois séculos de presença ativa na vida da América
colonial, foi produzida uma vasta literatura baseada principalmente na exaltação
dos primeiros padres.
Ao analisar essas obras, evidencia-se um discurso marcado pelo tom
das biografias, obscurecendo a compreensão do papel desempenhado por essa
instituição religiosa no processo de formação social, econômica, política e
cultural da América Latina.
No decorrer deste processo histórico, originou-se uma corrente antijesuítica que se instalou na Europa, no final do século XVIII, liderada pelo
Marquês de Pombal.
Essa corrente consolidou com presteza seus ataques às manifestações
culturais e políticas dos inacianos. Muitos trabalhos foram produzidos sobre a
história do Brasil e da América Latina, mas a história da Companhia de Jesus só
foi publicada entre 1938 e 1950, pela dedicação do sacerdote jesuíta Serafim
Leite que, em onze volumes, traçou o desenvolvimento da presença jesuítica em
terras brasileiras, reunindo e compilando importantes documentos que estavam
espalhados pelos arquivos europeus e brasileiros.
Esse monumental trabalho realizado pelo padre historiador possibilitou
o começo de um entendimento da estreita relação entre o poder temporal e o
poder religioso. O processo de construção da colônia foi acompanhada e
______________
5
A Companhia de Jesus emerge na gênese da expansão do modo capitalista de produção. Neste
contexto social-histórico as duas grandes potências marítimas eram Portugal e Espanha, que
disputavam a hegemonia do processo econômico, inseridas no período de acumulação primitiva
do capital.
38
impulsionada pela ação, energia e o espírito da Ordem que desempenhou um
papel central na catequização dos índios. Através da abertura de escolas, eles
iniciaram campanhas contra a antropofagia, dispensaram instrução, realizaram
imensas obras sociais, participaram da fundação de povoados, enfim, jogaramse decisivamente na marcha da colonização capitalista, dando contribuição
substancial em diversos campos – cultural, educacional, religioso e
antropológico.
Os seis primeiro jesuítas chegaram ao Brasil no dia 31 de março de
1549, junto com o Governador-Geral Tomé de Souza. Nesse contexto, o
governador fundou a cidade de Salvador e tomou posse da terra, com os jesuítas
cuidando da conquista do espírito. Porém, a presença jesuítica, a partir deste
momento, apesar de discutida e estudada por diversos especialistas, em variados
campos do conhecimento, ainda constitui um tema polêmico e pouco conhecido
no que tange ao desdobramento das atividades da ordem no campo temporal,
principalmente aquelas voltadas para a manutenção das residências e colégios
dos inacianos.
Permanecem pouco estudados os seus empreendimentos econômicos e
suas relações intercontinentais, que foram o alvo principal das acusações que
deram ensejo à sua expulsão da colônia. Existia, até pouco tempo, um silêncio
sepulcral sobre as atividades econômicas dos jesuítas nas terras lusoespanholas, gestado nas dificuldades de recolher informações dispersas nos
arquivos europeus e pelo pouco interesse que o tema recebeu da historiografia.
Os cronistas da Companhia de Jesus que escreveram sobre a instituição
amenizaram o aspecto econômico, focalizando sua atenção principalmente na
ação catequética e educativa. Conseqüentemente, enfatizaram o conflito entre
inacianos e colonos, e somente nos estreitos limites da discussão da força de
trabalho indígena, tomando como referência o universo das aldeias e das
missões jesuítas, na maioria das vezes partindo de uma visão eurocêntrica e
teológica, fundamentada na doutrina católica apostólica romana.
Esses cronistas partem de situações específicas demarcadas pela
caracterização de um mundo colonial permeado de vícios que se mesclam a um
tom apologético da luta dos “homens de negro” como salutar para a
constituição de uma identidade cultural brasileira e latino-americana. Nesta luta
de cunho maniqueísta, até mesmo Serafim Leite (1937, p. 7) é emblemático:
39
O combate ao vício de comer carne humana principiou muito antes
da catequese propriamente dita. Os padres chegavam a arrancar, em
pleno terreiro, das mãos das velhas, dispostas já a cozinhá-lo para
um banquete, o corpo morto de um índio. Tal audácia ia-lhes
custando a vida. Com a ajuda de Tomé de Souza saíram felizmente
indemmes (sic). E, com o método e cooperação de Mem de Sá, que
impôs sanções legais contra esse costume, a antropofagia
desapareceu em breve entre os índios, que se punham em contato
com os portugueses. Foi uma das primeiras conquistas morais dos
jesuítas.
Os cronistas da Companhia centram sua análise no ato catequético,
ratificando os benefícios da pedagogia e da educação jesuítica e tendem arvorar
para si e para os membros da ordem o poder exclusivo da lucidez no exame dos
fatos, como evidencia Francisco Rodriguez (1935, p. XII):
[...] podem bem um jesuíta, se não lhe escasseiam as qualidades de
historiador, escrever a história de sua Companhia. Antes, é forçoso
confessar que ele está mais apto para esse feito de que os estranhos,
porque melhor conhece a sua Ordem e seu espírito particular e sabe
mais exatamente avaliar as ações que ela pratica.
Apesar de inegável importância dos cronistas da Companhia de Jesus
nesse campo, as análises não articulam as ligações entre as demais atividades
exercidas pelos jesuítas em Portugal, na Espanha e nas colônias. Por minimizar
e omitir as atividades econômicas praticadas, e destacar o espírito catequético
da ordem, os cronistas inacianos impuseram uma leitura das práticas e ações da
Companhia a partir de uma perspectiva unilateral.
Serafim Leite, em sua vasta obra, mesmo partindo de sua visão parcial,
foi um dos estudiosos que conseguiu resgatar o papel dos jesuítas em terras
brasileiras, enfatizando o desempenho destes na educação, na literatura, no
desenvolvimento científico e nas artes.
Ele se preocupava em registrar o nascimento e o desenvolvimento da
Companhia. Por ele ser jesuíta, teve acesso a diversas fontes documentais, das
quais outros foram privados. O mérito de Serafim Leite consiste nos dados que
ele apresenta, facilitando, pelo menos parcialmente, a tarefa de outros
pesquisadores que, partindo de um outro referencial teórico e metodológico,
possam analisar essas informações na perspectiva de compreender esse
processo em sua totalidade e desvendar os antagonismos dessa sociedade,
40
revelando o papel dos jesuítas na síntese da construção do edifício católico
latino-americano.
Contudo, essa atuação ofuscou, por muitos anos, as demais atividades
exercidas pela Companhia de Jesus e condicionou a maioria dos trabalhos que
discutem o impacto da doutrina cristã no contato com os índios do novo mundo
ou analisam o modelo adotado no campo educacional pelos jesuítas na
América.
Dentre os cronistas da Companhia de Jesus que realizaram pesquisas
importantes na América espanhola, destaca-se o sacerdote jesuíta Guilhermo
Furlong, com nove obras, publicadas pela Ediciones Theoria, de Buenos Aires.
Nessas obras, ele faz uma radiografia completa da atuação jesuítica nas missões
do Cone Sul da América Latina. O trabalho tem como fonte documental as
cartas enviadas por jesuítas a outros sacerdotes no período colonial. A obra de
Furlong é de fundamental importância no sentido de compreender, a partir do
relato dos próprios jesuítas, o contexto histórico e político desta região e, para
descortinar a construção do imaginário social do Cone Sul da América Latina.
Outro cronista da Companhia de Jesus, Antonio Seep, em sua obra
Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos (1980), traz uma
contribuição importante no sentido de polemizar, com alguns autores, os quais
afirmam que a prática jesuítica era reacionária às mudanças naquele contexto e
que sua ação educativa e missionária estaria ligada ao pensamento feudal
inserido no contexto da Contra-Reforma.
Antonio Seep, que nasceu em 1655 e que chegou à América do Sul em
1691, descreve que, nesse momento histórico, as missões passavam por um
grande desenvolvimento científico e cultural. As missões jesuíticas do Cone Sul
eram visitadas por filósofos, arquitetos, músicos, pintores, poetas, engenheiros,
vindos da Europa, que davam cursos nas reduções, assim como auxiliavam na
construção das igrejas, das casas das missões, trazendo inovações no campo
intelectual e científico.
O segundo grupo de autores apresenta obras acadêmicas, e dentre
estes, José Maria de Paiva, em sua obra Colonização e Catequese (1982),
disserta sobre o processo de conversão dos costumes, realizado pelos religiosos
e a meta colonizadora do homem do Renascimento. Paiva destaca o fato de que
o projeto catequético foi um instrumental impositivo de usos e costumes dos
41
patrícios de Camões, em que os “homens de negro” foram os engenhos de
ajustamento cultural.
Luiz Baeta Neves, em O Combate dos Soldados de Cristo na Terra
dos Papagaios (1978), apresenta um trabalho acadêmico importante,
fornecendo reflexões estruturais sobre a presença inaciana, destacando o
controle exercido pela Igreja e pelo Estado, trazendo a confusão entre o saber e
o poder, império e fé. Enfocando o tema jesuítico como parte de propostas mais
abrangentes, esses estudos salientam as formas de repressão dos inacianos ou
sua interferência direta na formação cultural religiosa das sociedades onde
atuaram.
A própria catequese e os outros processos de aculturação (vestir os
índios ou ensiná-los a confeccionar instrumentos musicais ocidentais ou, ainda,
ensino de canto gregoriano) deve ser entendida como tentativa de introduzir os
indígenas nas instituições sociais do mundo ocidental, sejam religiosas,
culturais ou econômicas.
Muitos autores fizeram trabalhos acadêmicos e dedicaram especial
atenção aos problemas da colonização e da atividade produtiva nas importantes
propriedades jesuíticas, principalmente nas reduções guaraníticas localizadas
em território espanhol e, a partir desses estudos, provocaram grandes problemas
no campo teórico.
Dentre esses autores, podemos destacar Neimar Machado (2002),
Ruggiro Romano (1973), Alicia Juliana Pioli (2002), Clóvis Lugon (1977),
Decio de Freitas (1982), Regina Maria A. F. Gadelha (1980), Lúcia Galvez
(1995), Maxime Haubert (1990), Tau Golin (1999), Julio Quevedo (2000) e
Arno Alvarez Kern (1982).
Esses autores analisam a ação dos inacianos a partir do enquadramento
espacial das reduções jesuíticas, desde a sua formação até a expulsão dos
religiosos, discutindo as estruturas sócio-econômicas das missões como um
processo ímpar. As reflexões contemplam temas como o mundo tupi-guarani, a
evangelização, a organização do trabalho, a questão espiritual, a política
“encomendeira”, as relações de produção, bem como as venturas e desventuras
de uma região de fronteira marcada pela disputa de território pelas coroas de
Portugal e da Espanha.
42
Esses trabalhos que registram a construção do espaço das missões e a
defesa dos índios, resistindo às tropas luso-espanholas, devem ser entendidos
como estudos específicos sobre a questão guaraní na região, descrevendo
aspectos das particularidades de cada redução. Porém, em muitas análises, os
autores não fazem a inter-relação dessas reduções com outros acontecimentos,
em um contexto universal.
A obra de Maxime Haubert traz uma contribuição importante para a
compreensão da formação social-histórica do Paraguai e provoca um debate
teórico sobre o modo de produção colonial, ao afirmar que esse, naquele
contexto, era feudal. Outras contribuições fundamentais de Haubert (1990, p.
15) são as informações sobre a produção econômica das reduções jesuíticas e,
através de farta documentação da época, informa que, quando os jesuítas foram
expulsos, em 1767 (das possessões espanholas), “os rebanhos das reduções
contavam com mais de um milhão de bovinos, trezentos mil carneiros e cem
mil cavalos”. Evidentemente, relações de produção e criação de gado dessa
ordem não poderiam ser feudais.
O modo de produção nas missões jesuíticas é alvo de acirrados debates
sobre o aspecto se houve uma sociedade comunista ou um “comunismo
missionário”. Clóvis Lugon é o principal representante da “corrente do
comunismo”. Na sua obra República “Comunista” Cristã dos Guaranis (1977),
ele fundamenta sua tese nos conselhos comunitários que administravam a
redução e que nutriam uma autonomia administrativa. Formando com as demais
reduções uma Confederação Soberana (República), Lugon fundamenta sua tese
no trabalho comunitário e na propriedade coletiva.
Décio de Freitas corrobora a tese de Lugon e em sua obra O
Socialismo Missioneiro (1982) destaca os elementos formadores da sociedade
socialista, dando ênfase na questão da propriedade, na gestão e apropriação
comum presentes na redução. A tese da República “Comunista” Cristã dos
Guaranis, assim como a tese do Socialismo Missioneiro é um mito, pois as
reduções estavam submetidas à legislação espanhola.
As Leis das Índias e as Ordenanças de Alfaro estipulavam quem
deveria pagar tributo e quem não pagava, portanto, as reduções não tinham
autonomia fiscal. Observa-se ainda que os Guaranis reduzidos podiam ser
requisitados, bem como outros grupos étnicos para executar trabalhos públicos
43
para o Estado espanhol. Muito comum era a formação das tropas guarani para
atuarem na defesa das cidades que eram atacadas por indígenas e, também, para
combater os avanços das bandeiras paulistas sob o território espanhol.
A análise que considera uma economia missioneira desvinculada da
economia mercantil está expressa em Caravaglia. Na obra Conceito de Modo de
Produção (1978), de acordo com o autor, o padre missioneiro é o principal
responsável pela dominação do branco e pela instauração de uma camada que
organiza e controla a produção.
Na análise de J. Monteiro (1999), essas abordagens, embora bastante
difundidas nos meios acadêmicos, são corroboradas pelo fato de que as missões
surgiram no bojo do sistema colonial espanhol e permaneceram fortemente
vinculadas a esse sistema, até a expulsão da Companhia de Jesus das possessões
espanholas, em 1767.
Um outro elemento que falseia a tese do Estado Teocrático é a própria
finalidade que tinham as missões de prover de braços úteis os colonos, súditos
da Coroa, além de fornecer soldados para defender os territórios pouco
povoados e milícias para socorrer eventualmente as cidades espanholas e,
principalmente, fornecer mercadorias para atender a um mercado que se
internacionalizava progressivamente.
Arno Alvarez Kern busca em seu livro Missões: uma Utopia Política
(1982), uma síntese que, ao mesmo tempo, procura superar as teses anteriores,
ao concluir que a organização política das missões não foi uma antevisão do
futuro nem aplicação de utopias renascentistas e muito menos ponto de partida
para o estabelecimento de um “Estado Jesuítico”. Para ele, as reduções foram o
resultado da busca de estabilização entre a sociedade espanhola e a indígena,
entre os interesses das frentes de expansão colonizadora luso-espanhola e os
desígnios dos evangelizadores da ação missionária, entre o trono e o altar.
Kern revela
informações importantes sobre os trinta povos
missioneiros da província do Paraguai, que se estabeleceram nessa região a
partir de 1607. Especificando com clareza as áreas ocupadas pelas missões
jesuíticas junto aos guaranis, que se expandiram, inicialmente, rumo ao Guairá
(Paraná), Itatim (Mato Grosso do Sul) e Tape (Rio Grande do Sul) e que,
posteriormente, retraíram-se ante os ataques dos paulistas em direção às
proximidades de Assunção e Buenos Aires. A obra de Kern destaca também a
44
produção econômica das reduções guaranís, baseadas na criação de gado e na
extração da erva-mate.
Entretanto, não se pode deixar de salientar que o capitalismo se institui
em todo o mundo subsumindo outras formas de relações de trabalho, como a
escravidão nos Estados Unidos, ou formas servis nas Índias ocidentais e
orientais6.
Quanto ao Itatim, a dissertação de Neimar Machado (2002) busca
analisar a história da Redução Nuestra Señora de la Fé, fundada em 1631, no
alto do Rio Paraguai. A partir da releitura das cartas anuais dos jesuítas que
atuaram na região do Itatim. Neimar parte de uma perspectiva teórica
denominada “nova historiografia indígena”. A proposta da pesquisa é trazer à
luz uma situação de contato intercultural, no qual coloca, de um lado, a
dominação do sistema colonial espanhol, pressão das incursões escravistas dos
bandeirantes e a introdução de novos valores por parte dos jesuítas e, de outro, a
resistência do guarani frente a um modelo imposto pelo colonialismo lusoespanhol.
O estudo de Neimar Machado está relacionado ao abrangente processo
que vai do estabelecimento da redução, em 1631, até seu abandono, em 1659,
devido à pressão dos bandeirantes. A idéia central é de que os guaranis não
foram meras vítimas da história, mas que resistiram do ponto de vista cultural,
religioso e até físico, para preservar sua identidade. Neimar Machado destaca
que os índios das missões foram agentes ativos da história, fazendo alianças
políticas para se protegerem dos encomendeiros e bandeirantes.
Em relação ao Itatim (Mato Grosso do Sul), um trabalho importante
devido à clareza com que relaciona as missões aí estabelecidas dentro do
contexto da economia do Paraguai colonial é a obra de Regina Gadelha, As
Missões Jesuíticas do Itatim (1980). Nessa obra, a autora realiza um estudo em
que a economia colonial, baseada no trabalho indígena, era na visão da autora
______________
6
No aspecto estrutural, de acordo com Marx (1968, p. 829), “assim como os meios de produção
e os de subsistência, o dinheiro e a mercadoria, em si mesmo, não são capital, portanto, tem que
ocorrer alguma transformação em determinadas circunstâncias”. E as circunstâncias históricas
que proporcionaram as profundas transformações ocorreram em diversos campos de forma
sistêmica, inter-relacionadas e interdependentes. Um magma de determinações que se evidencia
em uma parte sólida já instituída expressa no conhecimento técnico largamente acumulado
pelos europeus da última fase da Idade Média.
45
“proeminentemente natural” e que a sonegação do trabalho indígena da parte
dos jesuítas gerou diversos conflitos.
Os argumentos explicitados por Gadelha, evidenciam que neste
contexto histórico no Cone Sul da América Latina, havia uma “economia
natural”, não havendo circulação de moedas e que a produção era efetivada
apenas para subsistência e, se houvesse algum excedente, este seria
simplesmente trocado por outro produto.
No entanto, a centralidade se insere no movimento da compreensão
que as relações de produção desta região estavam inseridas na lógica da
acumulação primitiva do capital7 ,que apresentava esta configuração na
particularidade paraguaia. Esse contexto de transformação social e da base
produtiva se caracterizava pela produção de mercadorias primárias e de pouco
valor agregado, e que atendiam à demanda do mercado local (ainda que
incipiente) e regional (Vice-Reino do Peru). Logo, uma economia com
configurações próprias, porém amba, inseridas na lógica da circulação do
capital8.
De grande importância nessas obras que tratam das reduções jesuíticas
na região dominada pela Coroa espanhola, são as fontes documentais das cartas
anuais da província do Paraguai, pertencentes originalmente à coleção
particular do político e bibliófilo argentino naturalizado, Pedro de Angelis
(1784- 1859).
Uma parte dessa coleção foi vendida ao governo brasileiro durante o
Segundo Império e incorporada ao acervo da Biblioteca Nacional. Os
manuscritos da coleção de Angelis foram publicados respectivamente em 1951
e 1969 e divididas em sete volumes.
______________
7
Marx (1969) afirma que este processo precisa ser compreendido na transformação da
exploração feudal em exploração capitalista, nesta acepção e, para entender a sua marcha, não
se precisa ir muito longe na história. Embora um prenúncio da produção capitalista já se
evidenciasse, nos séculos XIV e XV, em algumas cidades mediterrâneas, a era capitalista
destacada por Marx (1969, p. 831) “data do século XVI”. Onde ela surge, a servidão já está
abolida há muito tempo, e já estão em plena decadência as cidades soberanas que
representavam o apogeu da Idade Média.
8
Marx (1969, p. 867) reconhece que a manobra lenta do período infantil do capitalismo não se
coordenava com as necessidades do novo mercado mundial criadas pelas grandes descobertas
dos fins do século XV. A Idade Média fornecia duas formas de capital nas mais diferentes
formações econômico-sociais e foram as que emergiram como capital antes de despontar a era
capitalista, a saber, o capital usurário e o capital mercantil.
46
Recentemente foram publicados alguns trabalhos específicos que
tratam da administração da propriedade e da avaliação dos bens inacianos,
demonstrando que os estudos mais detalhados sobre as práticas econômicas dos
jesuítas são de suma importância para a compreensão de como o projeto
catequético e educacional foi sustentado.
Herman Konrad (1989), em sua obra Una Hacienda de los Jesuítas en
el Mexico, Santa Lucia, 1576-1767, descreve que, na América espanhola,
particularmente no México, a Companhia de Jesus estava ligada diretamente à
produção de mercadorias. De posse de uma farta documentação epistolar e
administrativa, revela o latifúndio de Santa Lúcia, na região central do México,
enfatizando a exploração de atividades agrícolas e a criação de gado,
destacando que as fazendas dos jesuítas possuíam administração rígida, sendo
expressa por uma economia sólida em comparação a outras fazendas de
colonos, neste período.
Herman Konrad constatou a aquisição de propriedades, assim como no
caso do Brasil, revelando doações de terras para a Companhia de Jesus e,
conseqüentemente, detectou a competição intercapitalista. Conflito este advindo
da competitividade de uma nova política administrativa praticada pelos jesuítas,
que buscaram um caminho expansionista, tendo como base a eliminação de
concorrentes fracassados, incorporando fazendas improdutivas e arrendando
terras.
Este exemplo é significativo, revelando que na ação objetiva das
grandes navegações, dos “descobrimentos” e da conquista, foram amalgamados
os interesses econômicos com a fé. As ações não ficaram restritas apenas à
monarquia e à incipiente burguesia mercantil, ávida em auferir lucros e
acumular capital9. A Companhia de Jesus se entrelaçou a esses interesses, se
miscigenando a este incipiente universo e incorporando os valores do
imaginário social da modernidade para dar prosseguimento à indústria da fé,
objetivando a expansão da Ordem.
______________
9
Marcam este período na história da acumulação primitiva todas as transformações que servem
de alavanca à classe capitalista em formação, sobretudo aqueles deslocamentos das grandes
massas humanas. Súbita e violentamente privada de seus meios de subsistência e lançados no
mercado de trabalho como levas de proletários destituídos de direitos. A exploração do produtor
rural, do camponês, que assim privado de suas terras, constitui a base de todo o processo. Assim
como também os cercamentos, onde os antigos senhores feudais expulsam os seus servos da
terra, pois era mais lucrativo criar ovelhas e vender a lã à incipiente indústria manufatureira.
47
Os empreendimentos econômicos foram administrados habilmente
pelos jesuítas, com uma organização férrea e uma enorme agressividade
concorrencial, fazendo com que fossem questionados e sofressem oposição de
diversos setores da neófita sociedade que estava se instituindo.
Ao mesmo tempo em que se defendiam dos ataques feitos em relação à
sua interdependência com os Estados aos quais serviam, e também no que tange
à posse de muitas riquezas, justificavam as suas práticas e relações econômicas.
Assim não era possível manter a instituição religiosa se não existisse um
mecanismo capaz de sustentar as vultosas despesas para a manutenção dos
colégios, para a construção de igrejas, atendimento aos desvalidos e à
catequese. Partindo de sua visão de mundo, a retórica de defesa dos jesuítas
centrava-se nas “virtudes” de seus atos.
O historiador estadunidense Nicholas Cushner demonstra, em suas três
obras publicadas, respectivamente, em 1980, 1982 e 1983, as atividades
econômicas jesuíticas em três regiões distintas da América espanhola. Em suas
obras, Cushner apresenta um estudo sobre a produção açucareira e de
vinicultura da região peruana; o complexo produtivo das fazendas e a fábrica de
tecidos nesta região dos Andes. Descreve a criação de muares e as propriedades
jesuíticas produtoras de vegetais, grãos e vinhos da região da Bacia do Prata.
Cushner afirma que o modelo implantado pelo Estado espanhol foi assimilado
pelos inacianos nos séculos XVII e XVIII.
As propriedades dos jesuítas analisadas pertenciam aos colégios dos
religiosos, apresentando grande similitude com as propriedades brasileiras, pois
muitas dessas propriedades foram doadas por particulares. Nas três regiões
analisadas por Nicholas Cushner (Equador, Peru e Bacia do Prata), foram
fundados grandes colégios ou universidades. Em Tucumã (Argentina), a
Universidade de Córdoba; em Lima (Peru), a Universidade de São Marcos; em
Quito (Equador), o Colégio Maior de Quito, que abrigava de setenta a cem
jesuítas.
De acordo com Cushner (1980 – 1982 – 1983), as propriedades dos
jesuítas foram adquiridas por meio de compra ou de herança, produzindo
litígios e conflitos com os vizinhos e com os nativos das regiões onde se
instalaram.
48
Ao fazer um inventário e descrever as propriedades, expressa a
estrutura da empresa jesuítica e suas complexidades, abrangendo um mosaico
de iniciativas que impulsionavam os administradores a se preocuparem com o
pagamento de salários, a observância do fluxo de entrada e saída de capital,
planos de investimentos, controle do custo de produção, verificação das taxas
de rentabilidade, além do gerenciamento da força de trabalho assalariada e
escrava.
Cushner afirma que as empresas agrícolas dos jesuítas eram
extremamente lucrativas, pois ao analisar o fluxo de reinvestimentos do capital
no sistema produtivo, constatou-se que as práticas empreendidas pelos
inacianos obtinham maiores resultados que nas propriedades dos colonos. Logo,
as propriedades dos jesuítas apresentavam grande prosperidade, indo na
contramão dos regulamentos da Constituição dos jesuítas que apregoavam o
voto de pobreza.
Outra obra acadêmica importante é a tese de Paulo de Assunção,
Negócios Jesuíticos: a Administração dos Bens Divinos (2004), baseada em
uma pesquisa minuciosa e fundamentada em fontes documentais extraídas do
Arquivo do Tribunal de Contas de Lisboa (ATC); da Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro (BNRJ); da Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL) e do Instituto
dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo (IANTT). Apoiada em uma vasta
bibliografia, a obra de Paulo de Assunção cumpre um papel determinante ao
traçar uma radiografia completa dos empreendimentos jesuíticos e lança uma
luz para desvendar o seu caráter capitalista, evidenciando as políticas temporais
de cunho econômico dos inacianos.
Em resumo, ao revisarmos as produções bibliográficas que tem como
objeto a Companhia de Jesus, observa-se que as atividades econômicas dos
jesuítas receberam uma atenção diminuta frente à problemática indígena,
pedagógica e cultural que, guardada as devidas proporções, nem sempre foram
os únicos alvos de interesse dos jesuítas.
Nos últimos anos, houve um crescente interesse nos estudos sobre as
relações entre as ordens e congregações religiosas e as instituições do mundo
capitalista, além da esfera da educação, como a ciência, a cultura, as artes e a
política. O interesse pelos jesuítas é motivado pelo embate estabelecido no
campo teórico, que tem como base conclusões instituídas, em alguns casos,
49
somente na aparência do fenômeno. Em outros casos, os estudos estão
carregados da visão teológica.
O pensamento liberal coloca as atividades jesuíticas como reacionárias
ao desenvolvimento das relações capitalistas, tendência representada pelos
liberais pombalinos. Esta posição, de acordo com os liberais, estaria interrelacionada com uma resposta da Igreja Católica em relação às reformas
protestantes. Sobre a posição do pensamento liberal em relação à ordem
inaciana, Tobias (1986, p. 31) traz a comprovação dessa tese:
De grande júbilo encheu-se a alma de Ribeiro Sanches ao saber do
alvará que tirou a educação portuguesa e brasileira das mãos dos
jesuítas. Na introdução às cartas, exclama o médico: Deus seja
louvado! Deus seja louvado, que me chegou ainda a tempo que os
padres da Companhia de Jesus não são já confessores, nem mestres
– porque se conservassem ainda aquela inquisição tão antiga,
nenhuma das verdades que se leram nesse papel poderiam ser
caracterizadas com outro título que de heresias! À Deus sejam
dadas todas as graças que, pela infatigável providência de S.
Majestade, todos esses obstáculos se dissipam.
Em outro sentido, os escritores ligados ao pensamento teológico
apresentam a ação inaciana ligada à questão da fé, como atesta Leite (1937, p.
15): “Enquanto o governador tratava da fundação e da posse da terra, os jesuítas
cuidavam da conquista do espírito”.
Leite (1937, p. 33) demonstra o pensamento etnocêntrico: “Quando os
jesuítas chegaram ao Brasil, os índios eram, pois, naturalmente incultos. Era
preciso iluminar a sua inteligência com as idéias mais nobres da época”. Leite
(1937, p. 14) também estabelece o papel central que os inacianos tiveram em
relação à formação do Brasil:
Sem desconhecer o concurso dos demais, pode-se, sem receio
emitir esta proposição exata: a história da Companhia de Jesus no
Brasil, no século XVI, é a própria história da formação do Brasil
em seus elementos catequéticos, morais, espirituais, educativos e,
em grande parte colonial. A contribuição de outros fatores
religiosos não modifica sensivelmente este resultado.
No campo marxista, Antonio Gramsci apresenta o jesuitismo como a
forma organizacional, ideológica e política da Igreja desde o Concílio de
Trento.
50
Portelli (1984, p. 156) confirma o pensamento gramsciano:
O influxo jesuíta sobre o aparelho eclesiástico é um acontecimento
essencial da história da Igreja. Gramsci julga, além disso, que
marca a passagem do ‘cristianismo ingênuo’ à um ‘cristianismo
jesuitizado’, que não passa de grande hipocrisia social. O
jesuitismo é a forma organizacional, ideológica e política da Igreja
desde o Concílio de Trento.
Em relação ao papel dos jesuítas na Contra-Reforma, o pensamento
gramsciano e o pensamento liberal tem a mesma posição. Gramsci (1978, p. 20)
afirma que:
A Contra-Reforma esterilizou este pulular de forças populares: a
Companhia é a última grande ordem religiosa, de origem
reacionária e autoritária, com caráter repressivo e ‘diplomático’ que
assinalou com o seu nascimento o endurecimento do organismo
católico. As novas ordens surgidas posteriormente têm um
pequeníssimo significado ‘religioso’ e sim grande significado
‘disciplinar’ sobre as massas de fiéis. São ramificações e tentáculos
da Companhia de Jesus (ou se tornam isso), instrumento de
‘resistência’ para conservar as posições políticas adquiridas e de
modo nenhum forças renovadoras de desenvolvimento.
A grande marca da atuação teórica do jesuitismo foi expressa no
Concílio de Trento, cuja formulação de Loyola, Lainez e Canisio constituíu um
instrumental para propagar a imagem da Companhia, transformando-a em uma
“máquina de guerra” contra o luteranismo e o calvinismo. Em essência, a tese
apresentada pelos jesuítas apregoava a necessidade de um retorno à fonte de um
cristianismo primitivo, objetivando manter a hegemonia da Igreja Católica
Romana no mundo cristão.
No decorrer deste debate, Gilberto Luiz Alves, em sua obra A
Educação e História em Mato Grosso: 1719- 1864 (1984), afirma que a posição
da Companhia de Jesus estava vinculada às idéias feudais. Alves destaca que a
oposição entre o sistema jesuítico de instrução e as reformas pombalinas só
seriam suficientemente compreendidas quando colocadas sob parâmetros
concretos. Partindo da categoria da totalidade concreta, na sua concepção, que
corresponde
apreender
a
totalidade
em
pensamento,
analisa
esses
empreendimentos a partir da ótica dos antagonismos de classe e dos interesses
materiais que essas classes defendem, desvelando-se todas as suas mais
51
recônditas manifestações ideológicas e, como conseqüência, seus sentidos: se
voltados para o passado, ou se projetados para o futuro.
Alves (1984, p. 36-37) assevera:
Quando se realiza essa forma de abordagem metodológica, todas as
falsas questões, que têm cercado as análises da educação brasileira
no período manufatureiro, revelam-se na sua exata condição, e a
conclusão a que se chega é uma única: a despeito da mais elaborada
materialização de seu sistema de ensino, a Companhia de Jesus
enraizou toda a sua ação no sentido de preservar idéias vinculadas
ao feudalismo, ordem social que encarnava o passado. Perspectiva
progressista, no período em foco, foi aquela em que se manifestou a
orientação revolucionária da burguesia. No caso do Brasil-Colônia,
essa orientação emanou unicamente das reformas pombalinas, cujo
melhor indicador foi seu compromisso com a “introdução da
filosofia moderna e das ciências da natureza em Portugal”. A
apologia da política desenvolvida pela Companhia de Jesus no
plano do ensino, estreitamente vinculada à ordem feudal e, portanto
reacionária, é, no mínimo, demonstração de ignorância histórica.
Ao analisarmos a inserção dos jesuítas na América Latina não
podemos privilegiar em nossa análise apenas aspectos objetivos ou subjetivos,
pois foi a síntese dos aspectos objetivos e subjetivos que propiciou a integração
dessas sociedades distintas. Porém, a ação jesuítica não foi fundamentada na
metafísica, pois para adentrar na cultura do “outro”, estes procuraram dominar
os códigos desta sociedade. Aprenderam a língua, dominaram a sua escrita,
procuraram conhecer a sua história, buscaram conhecer a sua economia e a sua
relação de poder, etc.
Isto é, assimilaram a cultura do “outro”, incorporaram em seus ritos
religiosos traços das religiões dos silvícolas. Ao mesmo tempo, transmitiram
valores da cultura ocidental, a sua visão de mundo, a crença em uma religião
monoteísta, sua concepção de Estado, sua articulação política e, principalmente,
suas relações econômicas, tendo como centro a produção de mercadorias com
valor de troca e, conseqüentemente, a circulação e o consumo destas. O
empreendimento jesuítico não foi uma ação de amadores, organizada de forma
aleatória, pois o processo de aculturação foi totalmente contraditório à visão
teológica e escolástica. A práxis jesuítica comprova que estes não estavam
ligados umbilicalmente aos pressupostos do feudalismo, tanto nos aspectos
objetivos, quanto nos subjetivos.
52
O feudalismo partia de sua organização fundamentada em dois
aspectos centrais: a não produção de excedentes para serem vendidos no
mercado e a falta de mobilidade social. E no campo subjetivo estava
fundamentada na escolástica: Deus explicava o mundo. Feita essa exposição,
deve ser reafirmado que a Companhia de Jesus, em seus empreendimentos,
produzia excedentes que eram vendidos no mercado mundial.
Outra contribuição de Alves é sua obra: O Pensamento Burguês no
Seminário Olinda (1800-1836), publicada em 1993, na qual expõe o caráter
burguês do plano de estudos do Seminário de Olinda, tanto indiretamente, por
meio das inspirações econômicas, quanto pelo ideário pedagógico de Azeredo
Coutinho, seu autor. Nesse caso, no Seminário de Olinda, foi a vitória no
campo pedagógico do Iluminismo português sobre a educação jesuítica.
Ainda uma outra contribuição de Alves é um trabalho introdutório do
projeto de pesquisa Gênese e Desenvolvimento da Escola Pública no Brasil,
com o título Origens da Escola Moderna no Brasil: a Contribuição Jesuítica.
Nesse trabalho, Alves analisa o patrimônio histórico educacional no Brasil, que
tem transitado abruptamente em relação à atividade inaciana, da apologia à
crítica negativa.
O autor entende que nenhum desses caminhos é o caminho da crítica
científica, pois o caminho seria da superação por incorporação. Portanto, a
discussão da contribuição educacional da Companhia de Jesus no Brasil deve se
distanciar de todos aqueles trabalhos que têm feito apologia da congregação ou
condenado a sua ação catequética e missionária.
Alves esclarece que não há lugar para o elogio de uma pretensa
epopéia jesuíta nos trópicos, nem encontra eco a crítica que pretendeu
identificar a atuação dos inacianos com o obscurantismo feudal, ou interpretá-la
no contexto de uma pretensa xenofobia pombalina ou, ainda, reduzi-la a
instrumento de dominação da burguesia mercantil.
No entanto, a contribuição mais significativa de Alves é o livro O
Trabalho Didático na Escola Moderna: formas históricas, que tem por objeto,
no capítulo II, O ensino jesuítico, a organização do trabalho didático e a
manufatura nascente, discutindo o patrimônio legado pelos jesuítas para a
instauração da escola moderna. Alves (2005, p. 14) afirma que: “Com essa
intenção, analisa aspectos constitutivos da organização do trabalho didático
53
difundida em seus colégios, que ensejaram à Companhia de Jesus uma posição
de vanguarda na educação, desde o primeiro tempo de sua existência”.
O autor entende esse processo como uma síntese de múltiplas e
complexas determinações, ao passo que o recurso instrumental que coloca luz
para o entendimento é a compreensão do caráter universal e da singularidade da
atuação jesuítica no Brasil.
Assim, verifica-se nas obras de Alves, uma mudança em suas análises.
Nas primeiras obras, o autor relacionava a ação inaciana como reacionária e
ligada ao modo de produção feudal e, em suas obras mais recentes, coloca a
Companhia de Jesus em uma posição de vanguarda na educação.
Recuperando-se as obras historiográficas que têm como objeto a
Companhia de Jesus, pode-se detectar que os propósitos da Companhia de Jesus
foram sendo alterados com o decorrer do tempo, estando sujeito aos
mecanismos do contexto secular. Os negócios temporais realizados pelos
jesuítas foram norteados por atitudes, práticas e regras de caráter econômico,
em consonância com o modo de exploração colonial, que permitiram consolidar
a imagem do poder temporal.
Para uma melhor distinção epistemológica, nós separamos as obras
historiográficas em dois grupos distintos. O primeiro grupo, composto pelos
cronistas da Companhia de Jesus, concebe essa relação (Companhia de Jesus e
Capitalismo) como essencialmente harmoniosa e que a tendência dessa relação
foi a integração dos europeus e dos silvícolas.
As obras desse grupo partem de um referencial teórico idealista,
positivista. Analisam a relação econômica e catequética de forma naturalizada e
harmoniosa e descrevem a história colonial de forma linear, com fases de
desenvolvimento. Muitas dessas obras amenizam o aspecto econômico,
focalizando sua atenção principalmente na ação catequética e educativa e,
conseqüentemente, no conflito entre inacianos e colonos, e somente nos
estreitos limites da discussão da força de trabalho. Tomando como referência o
universo das aldeias e das missões jesuíticas, na maioria das vezes partindo de
uma visão eurocêntrica, teológica e metafísica, fundamentada na escolástica e
na doutrina católica apostólica romana.
O segundo grupo de autores concebe essas relações (Companhia de
Jesus, economia, catequese e educação) como essencialmente marcadas pela
54
contradição, entre grupos de classes antagônicas que se relacionam à base da
força, a qual se manifesta fundamentalmente nas condições de produção da vida
material. O recurso que possibilita a distinção entre esses dois grupos de autores
que tem como objeto a Companhia de Jesus e suas relações econômicas,
educativas e missionárias é a epistemologia.
O conhecimento, de acordo com Lefebvre (1983), é um fato
inquestionável. Desde a vida mais imediata e mais simples, os objetos, seres
vivos, seres humanos são observados, analisados e deles se adquirem
conhecimentos. O padre Serafim Leite tem uma extensa obra que conta a
história da Companhia de Jesus, e isso constitui conhecimento. É possível, e
mesmo indispensável, examinar e discutir os meios de aumentar esse
conhecimento, de aperfeiçoá-lo, de acelerar seu desenvolvimento. Mas o
conhecimento, em si, deve ser inquestionável. Em termos filosóficos, o sujeito
– o pensamento do homem que conhece – e o objeto (os seres conhecidos)
agem e reagem initerruptamente, um sobre o outro. O sujeito do conhecimento
age sobre o objeto, explora-o, experimenta-o, ele resiste ou cede à ação do
sujeito, revela-se. O sujeito o conhece, aprende a conhecê-lo. O sujeito e o
objeto estão em perpétua interação entre dois elementos opostos e, não
obstante, partes de um todo, como numa discussão ou num diálogo. Por
definição, se trata de uma interação dialética.
O que distingue as análises efetuadas neste trabalho em relação às
análises dos cronistas da Companhia de Jesus, no que tange às atividades
econômicas, educativas e culturais nas reduções jesuíticas do Paraguai, é este
princípio
gnosiológico
da
dialética.
A
principal
característica
deste
conhecimento é que ele se revela na prática. Antes de elevar-se ao nível teórico,
todo conhecimento começa pela experiência prática. Tão somente a observação
prática das realidades objetivas leva à análise que produz o conhecimento. O
segundo aspecto é que o conhecimento humano é social, pois é na vida social
que se descobrem os outros seres semelhantes que agem sobre o observador. O
terceiro aspecto a ser considerado é que o conhecimento tem um caráter
histórico. Todo conhecimento foi adquirido e conquistado por toda a
humanidade, porém, em determinado momento histórico, foi monopolizado por
uma classe e, conseqüentemente, ganhou o “status” de ciência.
55
Neste aspecto, Dangeville (1973, p. 10) afirma que: “à medida que a
divisão do trabalho se desenvolve, o saber, a arte e a cultura separam-se dos
produtores, passando para as superestruturas e sendo monopolizadas pelas
classes dominantes”. O recurso que possibilita a distinção epistemológica que
tem como objeto as reduções jesuíticas do Paraguai e suas atividades
econômicas, culturais e educacionais é a teoria.
Em resumo, neste capítulo buscou-se demonstrar o contexto histórico
em que emerge a Companhia de Jesus no período de acumulação primitiva do
capital e apresentar as controvérsias contidas nas análises historiográficas
acerca de sua atuação econômica, missionária e educacional.
Marx (1969) afirma que o processo que cria o sistema capitalista
consiste apenas no movimento que retira ao trabalhador os seus meios de
trabalho. Um processo que transforma em capital os meios sociais de
subsistência e os de produção e converte em assalariados os seus produtores
diretos. A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que
dissocia o trabalhador dos meios de produção.
É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do
modo de produção capitalista. A estrutura econômica da sociedade capitalista
nasceu da estrutura econômica da sociedade feudal. A decomposição da
sociedade feudal liberou os elementos para a formação da sociedade capitalista.
O produtor direto, o trabalhador, só pode dispor de sua pessoa depois que
deixou de estar vinculado à gleba. Para alienar livremente sua força de trabalho,
levando sua mercadoria a qualquer mercado, teve ainda que livrar-se do
domínio das corporações, dos regulamentos a que elas subordinavam os
aprendizes e oficiais e das prescrições com que entravavam o trabalho.
Desse modo, um dos aspectos desse movimento histórico que
transformou os produtores em assalariados é a libertação da servidão e da
coerção corporativa. Mas os que se emanciparam, só se tornaram vendedores de
si mesmo depois que lhes roubaram todos os meios de produção e os privaram
de todas as garantias que as velhas instituições feudais asseguravam à sua
existência. E a história da expropriação de que padeceram foi escrita a sangue e
fogo nos anais da humanidade. Os capitalistas industriais, na luta pela
hegemonia, tiveram de remover os mestres das corporações e os senhores
feudais que possuíam o domínio dos mananciais de riquezas. Sob esse aspecto,
56
representa-se sua ascensão como uma luta vitoriosa contra o poder feudal e os
seus privilégios revoltantes, contra as corporações e os embaraços que elas
criavam ao “livre” desenvolvimento da produção e à livre exploração do
homem pelo homem.
Contudo, os cavaleiros da indústria só conseguiram expulsar os
cavaleiros da espada explorando acontecimentos para os quais em nada tinham
concorrido. Este processo, que cria o assalariado e o capitalista, tem suas raízes
na sujeição do trabalhador. O progresso constitui-se numa metamorfose desse
condicionamento, na transformação da exploração feudal em capitalista. A
Europa é o centro do capitalismo e como uma pedra que se atira na água, o
capitalismo se expande em ondas, alcançando os mais longínquos lugares.
Marx (1969) afirma que marcam época na história da acumulação
primitiva, todas as transformações que serviram de alavanca à classe capitalista
em formação. Sobretudo aqueles arrastos de grandes massas humanas
subitamente privadas de seus meios de trabalho como levas de proletários
destituídos de direitos. A expropriação do produtor rural, do camponês, privado
de suas terras, constituiu-se na base de todo este processo. Em cada país há as
suas singularidades e particularidades, porém, todos estavam inseridos na
totalidade da acumulação primitiva do capital.
Reconsiderando as controvérsias contidas na historiografia acerca da
ação inaciana no campo econômico, missionário e educacional, são os
elementos teóricos que evidenciam o grau de consciência que estes jesuítas
expressavam acerca das condições sociais dos países em que atuaram e como
reagiram aos limites, postos por estas condições, visando realizar seus
objetivos. Os homens da Renascença sejam eles Jesuítas, Montaigne, Voltaire,
Vieira, Las Casas, Colombo, expressam a contradição deste contexto socialhistórico, em que o próprio pensamento europeu passava por profundas
transformações.
Porém, as idéias progressistas não eram hegemônicas nem se davam de
forma linear, mas sim, em ciclos, com avanços e recuos. Vale a pena ressaltar
que, neste contexto, há uma profunda radicalização das forças conservadoras
remanescentes do antigo modo de produção, que estava sendo corroído
lentamente em suas estruturas. Este antagonismo estava presente no interior das
instituições, cuja expressão latente era a luta de classes.
57
Neste sentido, o antigo modo de produção feudal lutava com todas as
suas forças tentando impedir a sua derrocada. A nova classe em ascensão (a
burguesia), com a “descoberta” do novo mundo, ampliava o teatro desta luta
para além do horizonte europeu. Em cada região, este embate ganhava uma
configuração particular.
Portanto, a análise a ser desenvolvida no capítulo seguinte, sobre o
contexto social-histórico em que emergem as reduções jesuíticas na Província
do Paraguai, toma como referência as formas mais desenvolvidas para
interpretar este contexto histórico, levando em conta este fenômeno em sua
totalidade. Os exemplos retirados em caráter universalizante são matérias que
ajudam a fundamentar as análises relativas à tentativa de captação do
movimento da ação catequética e educativa e seus empreendimentos
econômicos em escala mundial.
A partir da visão do conjunto podemos demonstrar a particularidade
desta ação no Paraguai, objeto central deste trabalho. As análises a serem
desenvolvidas nos capítulos seguintes estarão inseridas na totalidade do modo
de produção capitalista. Essa exposição se faz necessária, pois as considerações
do objeto e dos objetivos centrais do trabalho poderiam levar à falsa impressão
de que pouco há a acrescentar a tudo o que foi escrito sobre a ação inaciana.
CAPITULO II
O CONTEXTO SOCIAL-HISTÓRICO EM QUE EMERGEM AS
REDUÇÕES JESUÍTICAS DO PARAGUAI.
De acordo com Gadelha (1980), a Governação e Província do Paraguai
abrangia um território extenso que pertence atualmente ao Brasil, Uruguai,
Argentina e Bolívia. Como evidenciamos em Capítulos anteriores, o Tratado de
Tordesilhas fixava, para a Coroa Portuguesa, as terras situadas a apenas 370
léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde, mas devido à força portuguesa no
mar, esta linha imaginária deslocou-se para 270 léguas para o oeste e uma parte
que é atualmente o Brasil deslizou para a metade portuguesa.
Pelo Tratado de Tordesilhas as duas Coroas comprometeram-se que
não enviariam armadas para fazer novos “descobrimentos”, comércio ou
conquista, em respeito ao Tratado. Assim, a área de jurisdição (formal) da
Província do Paraguai no período delimitado (1540 – 1759) abrangia limites
territoriais mais extensos que os atuais.
Gadelha (1980, p. 46) esclarece:
O Paraguai limita-se ao norte, com a capitania de São Vicente, pois
a linha imaginária a separar os territórios de Espanha dos de
Portugal, passava sobre Iguape, no atual Estado de São Paulo; ao
Sul com o Rio da Plata; a leste com o Oceano atlântico e a oeste a
Província de Tucuman, atualmente pertencente a Argentina. Um
pouco mais acima ficava Santa Cruz de La Sierra, cidade fundada
por Nuflo de Chaves em 1560 e elevada à Província desmembrada
do Paraguai pelo então Vice-Rei do Peru, Marquês de Coñete.
Gadelha esclarece ainda que neste contexto histórico, o Paraguai
possuía jurisdição sobre os atuais Estados brasileiros do Paraná, Santa Catarina,
Rio Grande do Sul, Sul de Mato Grosso (atualmente Mato Grosso do Sul) e
parte do Pantanal Mato-grossense, subindo a bacia do Amazonas. Vale a pena
ressaltar que a região amazônica nunca foi colonizada pelos espanhóis.
Pierre Chaunu (1969, p. 33) afirma que seria necessário evocar
também as variações da fronteira paraguaia, cujo território oscilou entre 500,
59
000 e 250, 000 Km2 em torno de um sólido núcleo de povoamento guarani,
“coração batalhador desse herdeiro bárbaro das grandes reduções jesuíticas do
século XVIII”, na visão deste historiador. Neste contexto histórico, a região do
Rio da Plata ficou um pouco esquecida, uma espécie de criança perdida e muita
tarde encontrada pelos colonizadores espanhóis, pois os olhos destes estavam
voltados para outras possessões mais lucrativas onde brotavam o ouro e a prata
em borbotões.
De acordo com Chaunu, Buenos Aires fora fundada pela primeira vez
em 1536, e posteriormente abandonada pelos seus habitantes em 1541, os quais
viviam sobre pressão dos diversos grupos indígenas nativos da região. A
fundação de Santa Cruz de La Sierra (1561), de Santa Fé (1573) e a refundação
de Buenos Aires (1580) e de Corrientes (1588) marcam o traçado de uma linha
de comunicação em direção aos Andes (Potosi) e ao Peru (Cuzco) onde estavam
as grandes minas de prata e ouro da América andina. Neste sentido Buenos
Aires seria o ponto de partida e o ponto de chegada dos colonizadores
espanhóis.
A colonização da América pelos espanhóis consolidou-se com o
investimento do capital privado de empresários e banqueiros e, também, com o
concurso de aventureiros que ansiavam por grandes lucros. O Moderno Estado
Espanhol emerge neste contexto histórico constituindo-se em representante
desses interesses, no sentido explicitado por Alves (2001, p. 191): “Reconheçase que, na fase competitiva da sociedade capitalista, o que se tinha era o Estado
da burguesia. Cujo reconhecimento concreto se efetivou na implementação de
uma superestrutura política e jurídica institucionalizada para gerir este
empreendimento”.
É relevante considerar que o contrato de Capitulação foi o documento
que institucionalizou a conquista e assentou as bases jurídicas que vinculavam o
Estado Espanhol à legitimação da pilhagem.
Era um contrato relativo, pois não impedia que o Estado Espanhol, na
figura de seu Rei, tivesse a competência de rescindi-lo, se este não estivesse de
acordo com os interesses do Estado, principalmente se este empreendimento
não estivesse produzindo lucros satisfatórios. Vale a pena ressaltar que em
muitos empreendimentos (os mais lucrativos), o Estado Espanhol era sócio
majoritário na rapina. Evidentemente, quando os investidores privados não
60
conseguiam uma alta rentabilidade, o Estado retomava os direitos de
exploração, pois acumular era preciso.
Em sua gênese a Província do Paraguai é uma propriedade privada do
Moderno Estado Espanhol, uma grande propriedade “improdutiva”. Logo, este
Estado instituiu uma série de medidas, que denominavam de leis, na direção de
ordenar a sua exploração.
Feita essa exposição, deve ser reafirmado que desde a sua gênese a
província do Paraguai não possuía nenhuma autonomia jurídica institucional,
estando sob o controle da metrópole (Espanha), sob o domínio estrutural e
superestrutural e, principalmente, sob a égide jurídica e institucional que
emanava da conquista.
A região do Rio da Plata, no primeiro momento ficou um pouco
esquecida pela metrópole, pois o principal interesse desta era o ouro e a prata
que eram extraídos, respectivamente, no Peru e na Bolívia, sendo que a
ocupação da região do Rio da Plata era fundamental para a Espanha, no sentido
geopolítico estratégico, para evitar o avanço dos portugueses vindos do Brasil.
Gadelha (1980) esclarece que os termos das Capitulações variavam em
seus pormenores mas, no geral, nelas os chefes de expedições se obrigavam a
não tocar nas costas de domínio português e nas terras descobertas por
Colombo, em respeito à Capitulação de Santa Fé, de 17 de Abril de 149210.
Foram estas mesmas Capitulações concedidas a Hernan Cortez, que em 1517,
destruiu e conquistou o Império Asteca, numa ação de rapina que poucas vezes
a humanidade presenciou.
As capitulações, portanto, também deram o ordenamento jurídico
“legal” que concedeu o “direito” de Francisco Pizarro apoderar-se e destruir o
Império Incaico.
Neste sentido, Marx (1952) entende que este poder estatal centralizado,
com os seus órgãos onipotentes – órgãos que estabeleceram que a metade do
mundo pertencesse à Espanha – com base em um exército permanente, a
polícia, a burocracia, o clero e a magistratura, órgãos que foram criados a partir
de um plano de divisão sistemática e hierárquica do trabalho, este proceder teve
a sua gênese nos tempos da monarquia absoluta, e serviu à neófita burguesia
______________
10
Esta capitulação foi a que forneceu a base jurídica para a exploração da América antes desta
ser “descoberta” , estabelecendo muitos privilégios ao Almirante Cristóvão Colombo.
61
como arma poderosa em sua luta contra o feudalismo e na conquista do “novo
mundo”.
Portanto, as Capitulações devem ser entendidas e analisadas como um
mecanismo legal que se baseou na vontade de uma classe dominante, de qual o
Estado Espanhol era representante, como assevera Marx (Apud Ianni, 1984, p.
32): “Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, além disso, na vontade
separada de sua base real, na vontade livre. E, da mesma maneira, por sua vez,
se reduz o direito à lei”.
Prosseguindo, afirma-se que a conquista colonial se desenvolveu a
partir do uso da força, tendo a sua tarefa facilitada pelo alto desenvolvimento
tecnológico do europeu em relação aos grupos nativos. O outro aspecto
facilitador da dominação foi a divergência entre os grupos étnicos que
habitavam a América, facilitando aos espanhóis a tarefa de criarem alianças
com determinados grupos, usando a estatégia de “dividir para reinar”.
As cisões das diversas etnias nativas estavam historicamente
condicionadas pelo domínio dos grandes impérios: Inca, Maia e Asteca, que
exerceram a dominação de outros grupos étnicos por centenas de anos, antes de
Colombo. Esta dominação se dava fundamentalmente através de um sistema
coletivo de produção e de prestação de serviço, denominado de Mita. Este
sistema foi incorporado pelos conquistadores espanhóis.
As Capitulações, que eram o instrumento jurídico que garantia o
“direito” do espanhol de se apoderar das riquezas do novo mundo e a Mita, reinstituída com características espanholas, fundamentavam a exploração da força
de trabalho e do pagamento de impostos por parte da população nativa.
É ilustrativa a questão do “direito” explícito nas Capitulações e na
Mita. Como também é elucidativo o “direito” que autorizava a pilhagem do
Império Inca e do Império Asteca. A pergunta que se faz é: quem concedeu o
direito sobre esse “direito”? Neste sentido é pertinente à análise como se
instituiu toda a base jurídica da pilhagem colonial.
De acordo com Marx (1978), o Estado não paira sobre a “sociedade
civil” e muito menos exprime a “vontade geral”. Nesta acepção, quando o
Moderno Estado Espanhol se reuniu em Tordesilhas com o Moderno Estado
Português, sobre as bênçãos do papa, e dividiram o mundo por uma linha
imaginária norte-sul, de pólo a pólo, passando a 100 léguas a oeste e ao Sul dos
62
Açores e Cabo Verde, decidindo que para além dessa linha, todas as ilhas e
terras “não possuídas” anteriormente por um Príncipe Cristão, descobertas ou
a descobrir, pertenceriam a Coroa de Castela, com certeza não expressavam a
vontade geral de toda a humanidade.
Eis aqui o codicilo do testamento de Adão, segundo as próprias
palavras de Francisco I. Evidentemente eles não representavam a “sociedade
civil”. Estes dois Estados estavam inseridos em um jogo de relações entre
grupos, pessoas e classes sociais. Logo, a Bula Inter Coetera, assim como o
Tratado de Tordesilhas, as ordenanças, as capitulações, o padroado, a mita, a
encomienda, a escravidão, as capitanias hereditárias, não foram estabelecidas
pela vontade geral, muito menos pela vontade divina, como querem fazer
acreditar.
Sob essa perspectiva, o direito a ter direito passa pela compreensão
dialética do Estado Moderno que emerge neste contexto histórico.
Não há como escamotear o fato que o Estado Espanhol e o Estado
Português, assim como a sociedade espanhola e a sociedade portuguesa não
eram politicamente distintas. O Estado Moderno é a expressão dessa sociedade,
porém não é expressão harmônica e abstrata. Pelo contrário o Estado Espanhol
e o Estado Português já se constituíam como um produto das contradições
políticas. A causa do direito a ter direito se evidencia pelas dimensões políticas
dessas relações.
É necessário retomar, de início, uma idéia já exposta por Marx (Apud
Ianni, 1984, p. 31) afirmando que o “Estado se funda na contradição, entre o
público e a vida privada, entre o interesse geral e o particular”. A questão deve
ser mais bem colocada.
Para se realizar, o Estado não pode aparecer para a humanidade dessa
forma, simplesmente como fruto ou como produto de antagonismo ou como um
poço de contradições. Isso seria muito evidente e provocaria guerras
intermináveis. Por conseguinte, para se realizar, de acordo com Marx (Apud
Ianni, 1984, p. 32), “[...] neste processo de sua realização o Estado já se
constitui fetichizado”.
Não há como deixar de reconhecer que na consciência das pessoas e,
conseqüentemente, na práxis cotidiana, o Estado tende a aparecer sob uma
forma abstrata, como um ato da vontade coletiva, ou como forma externa da
63
sociedade civil, ou metafisicamente pela vontade de Deus, ou idealisticamente
pela vontade do absoluto.
Esta longa digressão se fez necessária para estabelecer claramente a
premissa teórica que sustenta a discussão que está sendo travada acerca do
direito a ter direito dos espanhóis sobre a América espanhola e sobre que bases
se fundamentam as suas leis.
Retomando a questão mais diretamente referida sobre a “descoberta” e
a exploração das regiões meridionais da América do Sul e do Rio da Plata,
estas, portanto, estavam inter-relacionadas e interdependentes no processo
globalizante das grandes navegações e inseridas na lógica da acumulação
primitiva do capital.
Gadelha (1980) informa que o Estado Espanhol fomentou por diversas
vezes expedições marítimas para as Índias Orientais. Juan Dias de Solis é tido
como o primeiro navegador espanhol que tentou encontrar a confluência
interoceânica chegando à região do Rio da Plata em 1516. Solis não efetivou o
seu projeto, pois teria sido morto pelos índios da região, porém deixou sua
marca na região e este rio passou a ser denominado de rio de Solis. Depois dele,
Aleixo Garcia (1524), Fernando de Magalhães (1520), Jofre de Loyeza (1526),
Sebastião Caboto (1527) e Diogo Garcia (1527) foram alguns dos navegadores
que estiveram nesta região, porém não encontraram as riquezas ambicionadas.
Porém, estas expedições só foram importantes para demonstrar a
presença espanhola na província e, conseqüentemente, com o retorno destes a
Espanha alimentar o imaginário da existência de metais preciosos,
principalmente da prata, e ao mesmo tempo detectar a presença de exploradores
portugueses.
Foi em 21 de maio de 1534 que o Rei Carlos I firmou uma capitulação
com D. Pedro de Mendonza no intuito de conquistar e povoar a província em
que se encontrava o Rio de Solis, e que muitos chamavam de Rio de la Plata.
Gadelha (1980, p. 70-71) esclarece:
A expedição de D. Pedro de Mendonza foi das mais importantes
que partiram da Espanha rumo a América. Nela estavam bem
representados os interesses mercantis de diversos banqueiros e
mercadores, especialmente dos alemães Sebastião Neithart e Jacó
Welser. D. Pedro de Mendonza, que devia conduzir e custear ás
suas expensas 1.000 homens na primeira viagem que realizasse ao
64
Rio da Prata, levando mantimentos para um ano, contou com o
apoio desses banqueiros e de outros estabelecidos em Sevilha.
Também não lhe faltaram homens desejosos de se aventurar nesta
expedição, pertencentes ás mais nobres casas de Espanha11.
De fato não há como tergiversar o reconhecimento de que o
empreendimento colonizador foi financiado pela iniciativa privada, tendo a
frente mercadores e banqueiros europeus.
O que se constata, portanto, é que este empreendimento foi
extremamente organizado, com capital sendo investido na construção de navios,
na compra de mantimentos etc, e cuja participação do Estado não pode ser
negligenciada, porque este emerge simultaneamente na produção material da
sociedade (estrutura) e cria toda uma superestrutura jurídica (expressa nas
capitulações) e políticas (quem recebia as capitulações) contribuindo para
firmar o ideal de homem compatível com os interesses materiais.
O entrelaçamento dos dois aspectos abordados, associado ao
financiamento privado, comprovados por Gadelha, compatibilizaram a
expressão
singular
do
fenômeno
universal,
desvelando
que
este
empreendimento tinha a marca indelével do capital. O que se constata, portanto,
é que não procede o argumento de que as relações sociais que posteriormente
foram estabelecidas na colônia eram relações feudais.
Marx (1968, p. 883) afirma que “o prelúdio da revolução que criou a
base do modo de produção capitalista ocorreu no ultimo terço do século XV e
nas primeiras décadas do século XVI”, tendo como ponto de partida a
dissolução das vassalagens feudais – muitos destes migraram para o “novo
mundo” - e os que permaneceram na Europa foram lançados ao mercado de
trabalho, tornando-se uma massa de proletários e de indivíduos sem “direitos”,
que por toda parte enchiam inutilmente os solares.
Uma boa parcela destes homens desenraizados da terra enchia os
navios que partiam rumo às colônias americanas (inglesas, espanholas,
portuguesas, francesas, holandesas). Os lucros que esta aventura prometia com
a possibilidade de acumular riquezas era um grande estímulo. Na Espanha, e de
resto em quase toda a Europa, podia se oferecer muito pouco a esta leva de
______________
11
Ver mais sobre este assunto: Azara, Felix de – “Descripción de Paraguai y...”, in op. cit, p.
442-3, fornece com detalhes a lista dos nobres que vieram nesta expedição de D. Pedro
Mendonza.
65
homens expulsos do campo, com suas terras esgotadas e divididas, com os
centros urbanos super-povoados, e com a riqueza concentrada nas mãos de
poucos. Estes homens encontraram na aventura americana a oportunidade de
fugir desta condição miserável. Os que concentravam a riqueza européia
precisavam de braços para empunhar as armas que garantiria mais uma fonte de
renda, pois eram os mesmos que financiavam a pilhagem colonial.
A luta para a conquista e ocupação do cone-sul da América Latina foi
árdua, pois os povos que habitavam a região resistiram bravamente à chegada
dos invasores. As diversas etnias que habitavam estas vastas e inóspitas
cercanias, cada qual a sua maneira, foram refratários ao colonizador europeu.
Charruas, Guarani, Mbya, Guaicurus, Paiáguas, adotaram estratégias diferentes
em relação aos conquistadores. No entanto, devido ao poder bélico e estratégico
do inimigo (europeu), foram acumulando derrotas.
Algumas etnias indígenas por aspectos culturais e estratégicos,
firmaram aliança com os espanhóis. Gadelha (1980, p. 74) esclarece:
Na sua viagem de busca ao Peru, Ayolas entraria em contato com a
tribo dos cário. Pertenciam estes à avançada nação dos guaranis.
Agricultores e sendetários achavam-se no estágio neolítico à
chegada dos conquistadores. Firmaram com os espanhóis uma
aliança defensiva-ofensiva e de parentesco, o que permitiu e
facilitou a permanência definitiva destes últimos no território.
Embora se defendessem inicialmente dos intrusos, foram os cário
vencidos pela superioridade das armas e da técnica espanhola.
Evidentemente, Gadelha parte de uma teoria evolucionista, quando
classifica os guaranis no estágio neolítico, por serem agricultores e sedentários,
partindo de uma visão de uma história linear com fases de desenvolvimento.
Também parte de um critério de desenvolvimento técnico para estabelecer esta
classificação, porém, isto não invalida as suas informações de que os Cário
fizeram aliança defensivo-ofensiva com os espanhóis.
Um dos objetivos centrais dos espanhóis era chegar ao Peru, por dentro
do continente, pois tinham informações precisas da existência de grandes
reservas de ouro e posteriormente com a descoberta da Prata em Potosi
(Bolívia). Porém Pizarro chegou primeiro ao Peru, entrando pela América
Central, inviabilizando o sonho dos espanhóis que buscavam chegar ao Peru
partindo do cone-sul da América Latina. Com a morte de Mendonza, dono das
66
capitulações para a exploração da região do Rio da Plata, este deixou como seu
sucessor Juan de Ayolas.
Ayolas fez um acordo de paz com os Cário, em seguida os espanhóis
derrotaram os caciques Lambaré e Naduá e estes fatos que abriram as veredas
para a fundação de Assunção.
Assunção foi fundada por João Salazar em 15 de Agosto de 1537, e se
tornaria o centro de onde se irradiaria toda penetração espanhola. Com a morte
de Juan Ayolas, elegeu-se Irala como chefe dos espanhóis da região. Como
Buenos Aires estava constantemente sendo atacado pelos indígenas, Irala reuniu
todas as pessoas de Buenos Aires, transferindo-as para Assunção (1541).
Gadelha (1980) informa que em 1542 foi nomeado pelo Rei um novo
“Adelantado”: Alvar Nunez Cabeza de Vaca. Esta nomeação provocou uma
crise com os espanhóis de Assunção, quando da chegada de Cabeza de Vaca
este foi preso e enviado a Espanha (1545). Os colonos da região preferiam
Domingos Martinez de Irala que devido a sua facilidade de articulação junto
aos índios, principalmente os Cário, conquistara confiança junto aos espanhóis,
agora concentrados em Assunção. Vários outros Adiantados foras designados
pela Coroa espanhola, mas não chegaram a tomar posse da governação. E Irala
acabou conquistando definitivamente o governo do território.
Domingos Martin Irala instalou definitivamente os espanhóis no
Paraguai, organizou politicamente seu governo e expandiu as ações
colonizadoras, fundando novas vilas e estabelecimentos.
Gadelha (1380, p. 75) esclarece:
As tribos indígenas são pacificadas ou dominadas e, auxiliados
pelos cário agora inteiramente subjugados, os espanhóis poderão se
dedicar inteiramente á colonização do território. Não desaparece,
porém o sonho de enriquecimento rápido, e a procura do ouro ou
prata ainda nortearão por muito tempo as idéias do colono. Porém,
na Espanha, os comerciantes não querem empregar seu capital em
áreas que não oferecem esperança de lucro. O Paraguai
sobreviveria como zona pobre, carente de produtos valorizáveis. E
isto se deveu principalmente graça à aliança cário-espanhola,
formadora de uma sociedade plástica e à fixação do elemento
branco nestas regiões.
Colocada tal discussão no leito econômico, e conferido um outro realce
a este contexto histórico do Paraguai Colonial, o principal objetivo dos
67
financiadores do empreendimento era auferir lucros. Porém nesta região não
fora descoberto nem ouro, nem prata, logo não houve investimentos
substanciais, pois os riscos deste financiamento eram calculados pelo
investidor. Neste sentido Alves (1993, p. 62) esclarece: “Um mercador, por
exemplo, enfrentava no cotidiano o risco de prejuízos. Para reproduzir-se,
enquanto mercador deveria entregar-se a cálculos de custos, cuidados com a
produção das mercadorias e com a organização das caravanas”. Portanto o
investidor manipulava informações práticas e neste sentido não vislumbrava
rentabilidade em um investimento na região.
Realizar a articulação entre o universal e o singular representa,
sobretudo, a compreensão de dois movimentos que foram efetivados.
O primeiro movimento foi o recuo dos investidores burgueses, pois o
empreendimento não apresentava perspectiva de florescimento, portanto, o
conceito que esta região permaneceu pobre, surge a partir da lógica universal
neófita burguesa. Pois se a região estivesse produzindo ouro e prata, dentro de
um conceito universalizante, seria considerada rica. Portanto o conceito riqueza
e pobreza ratificam a lógica universalizante do sistema capitalista que vê em
todas as ocasiões a oportunidade de auferir lucros.
A região foi considerada pobre, pois se encontrava na periferia da
lógica do sistema mercantil colonial, porém regiões como Cuzco (Peru) e Potosi
(Bolívia) eram consideradas ricas. Ricas para quem? Evidentemente, não para
os milhares de trabalhadores indígenas escravos, que no regime da Mita,
instituídas pelos espanhóis, morriam aos milhares nas minas.
Chaunu (1969, p. 98) esclarece:
As condições de vida de Potosi são atrozes. O enorme pão-deaçúcar emerge de um planalto situado a 3.000 m, o cume atinge
4.890 m; as galerias desembocam a maior parte das vezes a 4300 m
a 4500 m. À falta de oxigênio (tanto mais penoso quanto o esforço
exigido para o transporte do minério às costas dos homens é ainda
mais duro) soma-se o frio, as diferenças de temperatura, a falta de
alimentos. Esses planaltos são frios demais para assegurar às
culturas de subsistência um rendimento capaz de enfrentar uma tal
concentração humana.
Portanto, riqueza e pobreza são apresentadas e conceituadas a partir da
lógica do colonizador e a presença deste nesta região não tinha o caráter
68
“civilizador”, mas sim, o de auferir riquezas. Pois na lógica universalizante do
sistema, a mercadoria precisava se realizar. Como na região do cone-sul da
América Latina esta premissa universalizante era tímida, a região não se
“desenvolvia”.
O segundo movimento foi efetivado pelos espanhóis que já estavam
estabelecidos na região do Rio da Plata. Não encontrando ouro, nem prata, eis o
caráter singular em articulação com o universal, a solução encontrada foi a de
se fixarem no território, a partir das condições objetivas dadas.
Devido ao domínio tecnológico, materializados em seus canhões,
armas de fogo, espadas, facas, cavalos, barcos, machados, bússolas e diversos
outros utensílios, que expressam bem o caráter universal do desenvolvimento
técnico, empreenderam a conquista. A sua grande vantagem de materialidade
técnica obtida sobre os silvícolas que resistiam com flechas, lanças e bordunas ,
fez com que apesar da diferença numérica a seu favor, não fossem páreo para os
espanhóis, que os derrotaram e subjugaram.
O entrelaçamento dos dois aspectos abordados – a falta de
investimentos externos e a disposição dos espanhóis já fixados na região de
buscar a conquista do território e apoderar-se da única riqueza, expressa na
força de trabalho indígena – determinou o processo de desenvolvimento
econômico do Paraguai.
Outro aspecto importante foi à capacidade dos espanhóis em fazer
alianças estratégicas com os nativos. Essas alianças eram facilitadas por alguns
traços culturais, que levavam os grupamentos indígenas a uma maior
aproximação com o colono e eram expressas no “cuñadazo”, que consistia no
casamento do espanhol com as índias nativas, tornando-se parte da família da
esposa e, portanto, um parente aliado.
Esses casamentos mestiços formularam a síntese das duas culturas,
evidentemente sob a égide do domínio espanhol, que vai permear a formação
social do Paraguai moderno. A partir dessas considerações, torna-se evidente a
necessidade de redirecionar a discussão de alguns antropólogos e sociólogos de
diversos matizes teóricos – culturalistas, estruturalistas, funcionalistas, pósmodernos - que apontam o contato entre estas culturas distintas como amistoso.
No cuñadazo, os guaranis mantinham como um de seus traços culturais mais
marcantes, o casamento exogâmico, possibilitando a aliança política com outros
69
grupos. Mas não se pode afirmar que somente este aspecto levou ao processo de
colonização “harmoniosa” entre estes dois grupos. Que houve este contato é
evidente. Que houve o processo de miscigenação também é evidente. Porém
este contato não foi pacífico, mas sim na base da força, expressa no poder das
armas dos invasores e no domínio da tática e da estratégia da guerra, de homens
que historicamente acumularam ampla experiência na arte da guerra, forjada
nas grandes batalhas empreendidas contra os mouros, portugueses, franceses,
anglo-saxões, com centenas de gerações consumidas em guerras intermináveis
como as cruzadas.
Este caráter do desenvolvimento tecnológico universalizante se
deparou, na singularidade paraguaia, com um grupo de homens sem este
desenvolvimento técnico. Foi a “incorporação pacífica” do canhão com a
borduna. Neste sentido, as análises efetivadas por antropólogos e sociólogos
não fazem a articulação entre o universal e o singular, dando ênfase apenas ao
aspecto “cultural”. Não se pode desqualificar as análises, porém é necessário
redimensionar o peso estabelecido pela aliança expressa no “cuñadazo”,
transformando-a em uma das determinações que possibilitaram o domínio
espanhol sobre o território guarani, mas não a única ou , talvez, nem mesmo a
mais importante.
A articulação do caráter singular com o universal possibilita a
compreensão que a materialidade estrutural espanhola criou as condições para a
aliança. “União” esta sob a égide espanhola, sob o traço dominante da sua
cultura, sob o peso da religião cristã, sob o império de suas leis e
principalmente sob o domínio da produção econômica. Foi a “união” do
encomendero com o encomendado, sob a égide da espada. Alves (1993, p. 62)
traz a seguinte colaboração:
O domínio dos negócios burgueses associa-se, diretamente, ao
próprio domínio do mundo material. Por isso, quando começa a se
desenvolver a ciência baseada na observação e na experimentação,
é o burguês o seu maior beneficiário. Os recursos que ela coloca em
suas mãos viabilizam o maior controle de seus negócios. Os
instrumentos, que passam a mediar as relações do homem com a
natureza e com os outros homens, dinamizam os empreendimentos
burgueses. As armas de fogo tornam as caravanas mais seguras. O
telescópio desenvolve a astronomia. A descoberta de novos astros e
estrelas faz o homem se aventurar por mares desconhecidos. São
registrados novos acidentes geográficos. São feitos mapas de
70
regiões até então ignoradas. Novos povos são contactados e seus
costumes estudados para favorecer o intercâmbio comercial.
Em síntese, além dos aspectos culturais da aliança expressa no
“cuñadazo”, outros fatores foram determinantes para a instalação e fixação dos
espanhóis no Paraguai. Para fundamentar mais claramente esse juízo,
considere-se que o alto desenvolvimento tecnológico dos espanhóis em relação
aos indígenas, aliada a experiência militar de várias gerações, criou as
condições materiais objetivas para submeter vários grupos étnicos nativos.
Esses últimos por questões históricas e culturais não haviam desenvolvido
técnicas, principalmente bélicas, tão diversas quanto as dos europeus, e este os
submeteu e escravizou.
Um fator importante a ser considerado na capacidade de resistência
dos povos nativos são as doenças trazidas pelos invasores. Os indígenas, sem os
anticorpos para combater as diversas moléstias européias, foram incapazes de
se opor a esta invasão silenciosa, mais dizimadora do que qualquer outra
técnica bélica, sendo quase que completamente exterminados.
Gadelha (1980) informa que foi Martin Irala quem desenvolveu um
plano de expansão territorial que visava, por um lado premiar os soldados
espanhóis com índios de serviços e, por outro a expandir territorialmente a
Província do Paraguai, uma vez que as tentativas de atingir o Peru haviam sido
frustradas, e a entrada de espanhóis vindos do Rio da Plata fora proibida pelo
Vice-Rei.
Em 1553, Irala iniciou a sua política expansionista, buscando evitar a
descida dos espanhóis do Peru, e conter um possível avanço dos portugueses de
São Vicente sobre o território do Guairá (Paraná). Neste território era farta a
mercadoria mais ambicionada na região do prata: a força de trabalho indígena.
Melia (1991) estima que na época da invasão européia a população guarani era
aproximadamente 2.000.000 de indivíduos. Esta era também a mercadoria
ambicionada pelos paulistas: força de trabalho para as plantações de cana-deaçúcar no
litoral brasileiro. Marx (1970, p. 40) esclarece:
“Todo
empreendimento de produção de mercadorias se torna ao mesmo tempo
empreendimento da exploração da força de trabalho”. A mesma mercadoria que
71
os espanhóis queriam monopolizar: força de trabalho, a energia humana que
produz o valor.
Gadelha (1980, p. 76) elucida a expansão territorial praticada por
Martin Irala:
A povoação serviria, ao mesmo tempo, de apoio para posterior
fundação de outras vilas na região, com finalidade de atingir Santa
Catarina, estabelecendo porto no litoral. Visava, assim, conseguir
mais rápida comunicação com a Espanha. Com este fim enviou, em
1554, o capitão Garcia Rodrigues de Vergara, com ordens de
fundar a Vila de Ontiveiros, sobre o Rio Paraná, o que se efetuou
sobre as terras do cacique Canendiyú. Em 1557 foi a vez da
fundação de Ciudad Real, na confluência do Rio Paraná com
Piqueri, povoação formada com habitantes de Assunção e
Ontiveiros. Assim estabelecia-se o espanhol na posse do Guairá.
O outro projeto de ocupação espanhola foi na Província do Itatim
(atualmente Estado de Mato Grosso do Sul e parte do pantanal mato-grossense),
pois esta província representava a porta de entrada para o Peru, cuja principal
estrada era o Rio Paraguai, que corta estes confins próximos à Bolívia na base
das Cordilheiras dos Andes. A partir da análise da singularidade paraguaia,
ratificamos que os espanhóis buscavam proteger a principal riqueza desta região
que era a força de trabalho indígena, pois a outra riqueza, a terra, só daria frutos
se esta força agisse sobre ela.
Marx (1968, p. 871) afirma: “O tratamento que se dava aos nativos era
naturalmente mais terrível nas plantações destinadas apenas ao comércio de
exportação, como as das Índias Ocidentais, e nos países ricos densamente
povoados, entregues à matança e a pilhagem [...]”.
Lugon (1977, p. 22) demonstra este fato no Paraguai destacando que
Martin Irala levou seus objetivos a bom termo, apesar de muitas revoltas dos
nativos:
Nos arredores de Buenos Aires, os mais bravos guerreiros de uma
tribo, retirados numa pequena fortaleza, mataram por suas próprias
mãos as esposas e filhos, precipitando-se depois do alto dos
rochedos para não caírem em poder dos espanhóis. Em 1557, um só
dos tenentes de Irala subjugou 40.000 guaranis; no ano seguinte,
Chavez submeteu um número ainda maior.
72
Logo, enganam-se aqueles que imaginam, a partir de uma análise
culturalista que o processo de colonização e consequentemente o processo de
miscigenação fora pacífico - pela aliança de parentesco. Neste sentido a tese do
cuñadazo perde um pouco a sua força, pois os cunhados espanhóis
demonstraram ser extremamente ferozes e conseguiram escravizar 40.000
(quarenta mil) “parentes” pela força em somente um ano.
Lugon (1977) esclarece que a escravidão para o indígena era a morte
em curto prazo pelos maus tratos, destacando que em duzentos e cinqüenta
anos, ou seja, até 1797, a população indígena do Paraguai desceu de um milhão
para oito mil e duzentos indivíduos, colocando fora desta contagem os guaranis
das reduções jesuíticas.
Informa ainda que os invasores também sofreram grandes perdas,
mesmo com o seu poderio militar em relação aos indígenas. De acordo com um
censo do próprio Irala, desembarcaram em Buenos Aires cerca de 30.000
conquistadores e, em 1538, destes não restavam mais de 600 (seiscentos)
homens. Porém, outras levas de homens chegavam constantemente na região.
Outro aspecto populacional a ser considerado foi o aumento do número
de mestiços. Lugon afirma que no decorrer da batalha de fundação de Assunção
e posteriormente, cada combatente recebera duas donzelas, ao passo que Juan
de Ayolas apropriou-se de seis.
Sobre o papel do sistema colonial, Marx (1968, p. 872) esclarece:
Então o sistema colonial desempenhava o papel preponderante.
‘Era o deus estrangeiro’ que subiu ao altar onde se encontravam os
velhos ídolos da Europa e, um belo dia, com um empurrão, joga a
todos eles por terra. Proclamou a produção da mais valia último e
único objetivo da humanidade.
Gadelha (1980) informa que em 1555 chegou ao Paraguai o primeiro
Bispo do Prata, Frei Pedro de Latorre, nomeado pelo papa. Neste mesmo
período Martin Irala recebia a carta régia nomeando–o Governador da Província
do Paraguai, em recompensa pelos “serviços prestados”.
O centro político e administrativo se constitui com a fundação de
Assunção e a consolidação do domínio espanhol no Paraguai. Não pode passar
sem registro que na região do Paraguai, no período pré-colombiano viviam
neste espaço aproximadamente 2.000.0000 (dois milhões) de seres humanos da
73
etnia guarani, que produziam e reproduziam a sua existência através da caça e
da pesca, mas principalmente eram agricultores. Tinham suas crenças, os seus
mitos, faziam a guerra com outras etnias, em igualdade de condições
tecnológicas.
De um momento para outro, as suas terras foram invadidas por um
outro grupo de seres humanos, de uma etnia diferente da sua, com a sua
religião, seus mitos, com outra forma de produzir e reproduzir a sua existência,
e que fazem guerra com um instrumental tecnológico superior aos dos nativos.
Este segundo grupo era denominado de espanhóis ou castelhano – por pertencer
ao reino de Castela. Produzia e reproduzia a sua existência fundamentada na
produção de mercadorias com valor de uso e valor de troca, para serem
comercializados.
O centro desta produção é a propriedade privada dos meios de
produção, e uma mercadoria é especial neste modo de produçã: a força de
trabalho. Esta mercadoria é especial porque é a única que pode produzir mais
valor. Estes dois grupos se encontram em determinadas condições históricas, o
segundo grupo precisa da força de trabalho do primeiro no sentido de
produzirem excedentes e vendê-los no mercado mundial que estava se
expandindo.
Marx (1978, p. 129-130) corrobora:
[...] na produção social da própria vida, os homens contraem
relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção estas que correspondem a uma etapa
determinada do desenvolvimento das forças produtivas materiais. A
totalidade dessas relações de produção forma a estrutura da
sociedade a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura
jurídica e política, e à qual correspondem formas determinadas de
consciência. O modo de produção da vida material condiciona o
processo em geral da vida social, política e espiritual. Não é a
consciência do homem que determina o seu ser, mas o contrário, é
o seu ser social que determina a sua consciência.
Na totalidade dessas relações de produção emergem as estruturas
sócio-econômicas do Paraguai colonial, sobre a qual se erigiu uma
superestrutura jurídica e política. A partir delas se fundamentou a
“encomienda”, termo jurídico que designava um conjunto de direitos e deveres
do tipo senhorial reconhecidos pelo Estado Espanhol aos conquistadores e a
74
seus descendentes, sobre os grupos indígenas. A “encomienda” legalizava e
consequentemente disciplinava a exploração da força de trabalho dos indígenas.
Chaunu (1969, p. 99) esclarece:
Sem a exploração feroz dos índios e já dos negros, não haveria
América possível antes do século XVIII, os fracassos das
colonizações pacíficas promovidos por Las Casas estão aí para
demonstrá-los. Para forçar os índios a entrar numa economia
moderna, para coagi-las a criar riquezas susceptíveis de anexar a
América á Europa, para desenvolver a produção disponível para
uma capitalização em longo prazo, duas soluções somente são
possíveis, de início, soluções que na prática se confundem: a
escravatura tal como a Antiguidade legara à Europa moderna
através da continuidade medieval da instituição, e essa solução
intermédia, a chamada “encomienda”, a encomenda diríamos nós,
de índios repartidos.
Os juristas e teólogos burgueses buscam destacar que a “encomienda”
fora um “avanço” em relação à escravidão da antiguidade e a dos negros
africanos na modernidade. Porém o “avanço” era somente a institucionalização
jurídica expressa na “encomienda”, que na escravidão da antiguidade e na
escravidão negra não aparecia de forma sistematizada. Assim com a
“encomienda” havia um ordenamento jurídico que dava amparo legal aos
“encomenderos” através de uma legislação especifica para reivindicar o seu
direito senhorial e hereditário para a exploração da força de trabalho indígena.
Gadelha (1980) esclarece que a conquista e povoamento da América
desde a sua gênese, foi regulamentada pelas leis e ordenanças do Estado
espanhol, representado na figura do Rei, evidentemente em síntese com os
interesses da classe dominante local.
O Estado espanhol mantinha o controle sobre a Província do Paraguai
através de seus funcionários, esta burocracia estatal se expressava através dos
oficiais e prelados. Conjuntamente com os colonos espanhóis, estavam clérigos,
religiosos, funcionários públicos, representantes do Estado e da Igreja. Como
tal, exerciam influencia política e religiosa e eram instrumentos também de
fiscalização e da instituição da “ordem” espanhola.
Na síntese da dominação foram instituídas algumas práticas originárias
da própria América que se revelam na Mita, tal como realizada pelo antigo
Império Inca, que consistia em um imposto estabelecido para a exploração da
coca, planta da família das Eritroxiláceas, no reverso amazônico dos Andes e
75
para a manutenção de estradas e pousadas. A aplicação da Mita foi incorporada
pelos conquistadores espanhóis para o serviço nas minas de prata (Potosi) e de
mercúrio (Huancavelica). E principalmente na extração da erva-mate (planta da
família das Aqüifoliáceas), com cujas folhas se preparam o chimarrão, o tereré e
um chá, muito apreciado pelos indígenas no Paraguai. A aplicação da Mita no
modelo espanhol provocou grandes abusos e enormes atrocidades sobre as
populações indígenas submetidas.
Com a institucionalização da “encomienda” e da “Mita”, a Província
do Paraguai se tornou um grande campo de caça ao índio. Objetivando seu
apresamento foram organizadas as “malocas”, a visão espanhola das bandeiras
paulistas, expedições armadas que se destinava a explorar os sertões,
principalmente cativar os gentios, constituíndo-se no meio mais eficaz de
apropriação da força de trabalho. A riqueza dos espanhóis era medida pela
quantidade de índios que conseguiam aprisionar, como demonstra Gadelha
(1980 p. 103): “o índio apresado ou escravizado era o bem pelo qual se medirão
as fortunas locais dos conquistadores”.
Gadelha reproduz as informações por meio dos relatos do Sacerdote
Jesuíta Diogo Gonçalves, que esteve nesta região em 1610, e distingue três
tipos de “malocas”.
O primeiro tipo era direcionado aos grupos indígenas que nunca
fizeram mal aos espanhóis. O segundo tipo de “maloca” era direcionado aos
índios fugitivos do regime de “encomienda” e da “mita”, que escapavam dos
maus tratos. O terceiro tipo era praticado sob o pretexto da guerra justa contra
aqueles que tivessem atacado os colonos. Enfim as “malocas” eram efetivadas
sobre todos os grupos indígenas do Paraguai. Acrescente-se, ainda, que os
soldados espanhóis tinham seus salários pagos com peças índias.
No quadro geral esboçado, a conclusão é a de que na produção social
de sua própria vida, os homens (espanhóis e indígenas) contraem relações
determinadas (“encomedero” e
“encomendado”,
“mita”
e
“mitayos”)
necessárias e independentes de sua vontade. Contraem relações de produção.
De acordo com Marx (1978), estas relações correspondem às fases
determinadas de desenvolvimento das forças produtivas – que se explicitam na
fase da acumulação primitiva. Foi a totalidades dessas relações de produção que
erigiu à estrutura da sociedade paraguaia, nesta base real se levantou toda uma
76
superestrutura jurídica12 e política que institucionalizou as ordenanças, a
“encomienda”, a “mita”. As quais correspondem formas determinadas de
consciência!
Na consciência espanhola emerge a expressão da classe dominante,
conquistador, hierarquicamente superior, instituidor de discriminação racial, o
possuidor da ordem social e econômica. No indígena nasce a consciência de
subjugado, encomendado, mitayo. Nesta acepção, Ianni (1984) esclarece que,
no entanto, as modalidades da consciência social não se exprimem nem se
relacionam de modo harmônico. Tanto as pessoas como os grupos sociais
apreendem as suas relações sociais reais de maneira diversa e antagônica,
quando não de forma incompleta, parcial ou fetichizada.
Marx (1974) esclarece que essa produtividade natural do trabalho
agrícola (que abrange o simples trabalho de colher, caçar, pescar, criar gado) é a
base de todo o trabalho excedente; todo trabalho no início e na origem destina a
apropriar-se da alimentação e a produzi-la.
Porém o trabalho excedente não deve ser confundido com produto
excedente e renda fundiária, que se efetivava no Paraguai neste período. Pois na
origem, de acordo com Marx (1974, p. 726) “o trabalho agrícola e o industrial
não estão separados, um ligava-se ao outro”. O trabalho excedente e o produto
excedente da tribo, do clã ou da família de agricultores corresponde tanto ao
trabalho agrícola quanto ao industrial. Ambos marcham juntos. Caça, pesca,
agricultura são impossíveis sem os instrumentos adequados.
Marx (1974, p. 726) esclarece:
Esse trabalho puramente agrícola não procede da natureza, mas é
um produto bem moderno, que não se encontra por toda parte, do
desenvolvimento social, e corresponde a fase claramente
determinada da produção. Parte do trabalho agrícola se materializa
em produtos que constituem artigos de luxo ou serve de matéria
prima para a indústria, mas não entra na alimentação, e muito
______________
12
A conquista e a colonização do Paraguai, no decorrer do século XVI, anularam os direitos dos
guaranis sobre as terras. Os reis católicos pautados na Bula Papal de 1493, declararam em 1519
o seguinte: “Por donación de La Santa Sede Apostólica y otros justos y legítimos títulos, somos
senõres de Las Índias Occidentales, Isla y Tierra firme del mar océano, descubiertas e por
decubrir y están incorporadas en nuestras Real Corona de Castilla”. A ocupação das terras do
Paraguai exigiu a instituição de um aparato legal denominado Leyes de Índias. Como
evidenciamos no fragmento acima citado, essa legislação buscava preservar os interesses do
Estado Espanhol sobre a América. Ver mais: Compilación de las Leys de Índias. Ley I, Título I,
Libro III. V edición, Madrid, 1841. In: Quevedo, Julio. Guerreios e Jesuitas na Utopia do Prata.
Bauru: Edusc, 2000. P. 65-66.
77
menos ainda na das massas; por outro lado, parte do trabalho
industrial se materializava em produtos que constituem meios de
consumo necessários aos trabalhadores agrícolas ou não. Sob o
aspecto social, é erro considerar o trabalho industrial como trabalho
excedente. É em parte tão necessária quanto a parte necessária do
trabalho agrícola.
Na singularidade da América colonial se confirma que esse trabalho
puramente agrícola não procede da natureza. Esta acepção vai contra a posição
de alguns autores que apontam que a economia paraguaia era estritamente
natural, a produção estava inserida na lógica da modernidade, e corresponde á
fase determinada da acumulação primitiva do capital.
Parte deste trabalho agrícola produzia artigos de luxo, o açúcar é um
exemplo, e outros produtos se constituíam em matérias-primas, como o
algodão, produzido no sul dos Estados Unidos e o couro produzido no Paraguai
e no Rio da Prata , que alimentavam as indústrias de tecelagem e da produção
de botas, sapatos etc. Esses produtos não eram para a alimentação, e muito
menos das massas; o trabalho industrial produzia biscoitos, manteigas, vinhos,
aguardente, azeite, sardinhas, etc. e se materializava em produtos que se
constituem em alimentos aos trabalhadores, agrícolas ou não.
O esforço e captação das linhas gerais da discussão acerca da
utilização da força de trabalho indígena, do trabalho excedente e, por
conseguinte, do produto excedente geral com a renda fundiária, parte do
volume e qualidade do produto excedente, pelo menos na base do modo
capitalista de produção.
Em suma, na base do trabalho excedente, de acordo com Marx (1974,
p. 725), “a condição sem a qual ele não é possível é a circunstância de a
natureza fornecer – em produtos do solo, vegetais ou animais, da pesca, etc – os
meios de subsistência necessária com o emprego de um tempo de trabalho que
não absorva a jornada toda”. Efetivamente esta condição não se explicitava no
Paraguai Colonial em sua totalidade.
O Estado Espanhol era “proprietário” do Paraguai, dono dos produtos
do solo e do subsolo, dos indígenas e dos animais etc. Ele cedeu o direito de
propriedade para indivíduos espanhóis e estes formaram as suas fazendas, onde
plantavam algodão, criavam gado, produziam açúcar e aguardente.
78
Com a força de trabalho indígena, utilizando arado para a sua
plantação, com cavalos importados da Europa para cuidar do gado também
trazido da Europa e investindo capital para insumos agrícolas etc, logo, estavam
criadas as condições sociais para a produção de excedentes, que seriam
comercializados tanto no mercado interno como no mercado externo. Em
síntese, inserida no mercado mundial, portanto não havia, sob forma
hegemônica, uma economia natural no Paraguai.
Marx (1968, p. 879) afirma que isto quando não é a transformação
direta de escravos e servos em assalariados, mera mudança de forma, “significa
apenas a expropriação dos produtos diretos, isto é, a dissolução da propriedade
privada baseada no trabalho pessoal”. Com o desenvolvimento da produção
capitalista durante o período manufatureiro, evidencia-se que as idéias
hegemônicas em um determinado momento histórico são as idéias da classe
dominante, que se desvela na hipocrisia da lei burguesa e dos seus intelectuais
que expressam um total despudor em relação à exploração da força de trabalho,
escrava ou assalariada.
Logo, a exploração do trabalhador ganha nomes diferentes nas diversas
partes do mundo – no Brasil e no sul dos Estados Unidos eram escravos, nas
Índias Orientais eram servos, no Paraguai eram índios encomendados e
mitayos, na Europa respondiam pela alcunha de trabalhadores assalariados.
O elemento teórico construído em torno desta questão é a compreensão
da totalidade, como afirma Marx (1978 p. 105): “[...] a produção também não é
apenas uma produção particular, mas é sempre, ao contrário, certo corpo social,
sujeito social, que exerce sua atividade numa totalidade maior ou menor de
ramos de produção”. A compreensão das relações sociais de produção do
Paraguai
Colonial
passa
pelo
entendimento
da
inter-relação
e
da
interdependência da inserção deste no mercado mundial.
Para efeito de exemplo, a produção de algodão no sul dos Estados
Unidos era efetivada pela força de trabalho escrava, o algodão produzido nestas
condições era posteriormente exportado para a Inglaterra. O algodão era
processado na Inglaterra em suas manufaturas – período infantil da indústria
moderna. De acordo com Marx (1968, p. 875) “estas fábricas eram movidas
pela força de trabalho de crianças raptadas”.
As fábricas inglesas, como
também a Real Marinha Britânica, recrutavam os seus contingentes à força.
79
Logo, o algodão produzido por escravos negros, fiados por crianças raptadas,
compradas por mercadores ingleses, vendidos por mercadores espanhóis e
portugueses, iria cobrir os corpos de escravos africanos no Brasil e o colono
espanhol do Paraguai.
Portanto, a moderna indústria inglesa tem em seu DNA o roubo e a
escravização de crianças inglesas, para transformar a exploração manufatureira
em exploração industrial e estabelecer assim a correta proporção entre capital e
força de trabalho. Marx (1968, p. 878) esclarece:
A indústria algodoeira têxtil, ao introduzir a escravidão infantil na
Inglaterra impulsionava ao mesmo tempo a transformação da
escravatura negra nos Estados Unidos que, antes, era mais ou
menos patriarcal, numa exploração mercantil. De fato, a escravidão
dissimulada dos assalariados na Europa precisava fundamentar-se
na escravatura, sem rebuços do Novo Mundo.
Marx (1970) busca esclarecer que a criação do mercado mundial está
inter-relacionada e é interdependente, pois as mesmas circunstâncias que
produzem a cláusula fundante da produção capitalista, a existência de uma
classe assalariada – no contexto histórico, o trabalho assalariado era
hegemônico na Europa ocidental – exige a transição de toda produção de
mercadorias para a produção capitalista de mercadorias. Esta, à medida que se
desenvolve, decompõe e dissolve as velhas formas de produção voltadas para a
subsistência imediata, como ocorreu na região do Rio da Plata.
Marx (1970, p. 39) esclarece: “começa generalizando a produção de
mercadorias e em seguida transforma progressivamente em capitalista toda a
produção de mercadorias”. Em resumo, ao aprofundarmos a análise do modo de
produção capitalista, comprovamos que o Estado Moderno é, em última
instância, um órgão da classe dominante, na direção apontada por Marx que o
monopólio do aparelho estatal, diretamente ou por meio de grupos interpostos,
é a condição básica do exercício da dominação. O governo moderno espanhol
neste contexto social histórico (1549-1759) é a expressão do poder organizado
de uma classe para a opressão de outra.
80
2.1. O PROCESSO DE PRODUÇÃO MATERIAL NA SINGULARIDADE
PARAGUAIA.
Historicamente, a origem da prestação obrigatória de serviços pelos
indígenas provém das capitulações de Colombo. Em um processo denominado
de “repartimientos”, as populações indígenas foram distribuídas aos colonos,
quando da primeira invasão espanhola.
Na singularidade paraguaia, a legislação espanhola que tratava
especificamente da questão indígena estabeleceu duas espécies de prestação de
serviços (nos termos semânticos da escravidão) tendo como base à
“encomienda”, que seria a “prestação de serviço pessoal”, e a “Mita”, que
estava relacionada à pagamento de tributos.
A base econômica que se instalou no Paraguai, a partir da invasão
européia, tinha em seu centro a exploração dos recursos naturais. Porém a
circulação destas mercadorias no mercado mundial era pouco expressiva, pois
estava afastada dos grandes mercados consumidores europeus e asiáticos. A
incipiente produção atendia precariamente o mercado local e regional. No
âmbito regional, o mercado mais significativo era o Vice-Reino do Peru, pois
nesta região havia um mercado florescente, com a produção de ouro e prata.
Potosi, na Bolívia, era um grande mercado para a circulação de mercadorias,
com uma intensa produção de prata. A principal mercadoria do Paraguai era a
força de trabalho indígena, e os “encomenderos” foram os primeiros que se
apropriaram desta. Aguirre (1948) esclarece que os primeiros “empadroados”
em uma extensão de 50 léguas ao nordeste e sudeste em volta de Assunção,
confirmaram a existência de aproximadamente 27.000 indígenas. E estes foram
divididos em 400 encomendas, doadas conforme o mérito de cada conquistador.
Uma tese comumente utilizada por alguns historiadores, dentre estes
Gadelha (1980, p. 106), destaca que “a ausência de mercados e produtos
comerciais, não permitiu a substituição da mão-de-obra indígena por outros
elementos ou recursos”. Como por exemplo, o escravo negro, pois estes
custavam muito caro e os assuncenhos não dispunham de capital.
A pergunta que se faz é por que os assuncenhos iriam gastar seus
recursos financeiros em escravos negros, se a 50 léguas de Assunção, como nos
81
informou Aguirre, existiam 27.000 silvícolas? Pois, qual seria a diferença da
força de trabalho escrava negra e indígena?
Esta indagação é um dos mitos da historiografia que trata da questão
indígena, que os indígenas não serviam para o trabalho agrícola, que eram
indolentes, e que ao serem escravizados, morriam de tristeza. Este mito não se
comprova, pois no período pré-colombiano, por exemplo, a base da produção
da existência e da subsistência guarani era a agricultura. Como destaca Melia
(1991), eles não eram nômades que dependessem exclusivamente da caça, da
pesca, eram acima de tudo agricultores que sabiam explorar bem a terra, cujas
árvores derrubavam e queimavam e na qual plantavam. Este mito está
estreitamente relacionado no fato de que a força de trabalho indígena no
Paraguai, assim como também no norte do Brasil, fora concedido como
monopólio para a Companhia de Jesus.
Porém, em muitas circunstâncias, a Companhia de Jesus não conseguiu
resistir às investidas de outros setores do sistema colonial ávidos para explorar
essa mercadoria, como foi o caso dos “encomenderos” do Paraguai e dos
bandeirantes paulistas. Esse conjunto de considerações desmistifica o mito da
não exploração da força de trabalho indígena.
Prosseguindo, afirme-se que as diversas etnias indígenas resistiram
bravamente aos conquistadores, vendendo caro a sua liberdade, sendo que neste
processo centenas de grupos indígenas foram completamente exterminadas.
Para efeito de exemplo, podemos citar os índios Paiaguá.
Garay (1948) informa em ordenança de 27 de outubro de 1578 que os
índios Cário decresceram em mais de três partes. Esta análise de resistência
indígena está expressa na obra de Souza (2002), que afirma “os Guaranis não
foram meras vitimas da história, mas resistiram do ponto de vista cultural,
religioso e em guerras para preservar a sua identidade”. É relevante considerar
que os índios foram agentes ativos da história, fazendo alianças políticas para se
protegerem de bandeirantes e “encomenderos”. A ideologia dominante expressa
na linguagem busca apresentar uma distinção semântica, afirmando que os
índios não foram “escravizados”, mas sim “encomendados”, pois a Igreja
Católica através da bula papal de 1537 declarou os ameríndios como “homens
verdadeiros”. Isto, entretanto, não foi o suficiente para impedir que os
espanhóis os submetessem a todo tipo de exploração. Sob o signo da
82
“encomenda” e da “mita” que materializou a escravidão indígena nas
possessões espanholas.
Gadelha (1980) descreve que os mitaios eram índios aldeados, que
possuíam caciques e que foram encomendados pelo governador Martin Irala aos
espanhóis beneméritos de Assunção para lhes prestarem tributo. No sistema de
mita, cada cacique era responsável pelo cumprimento do tributo por parte dos
índios, cujo trabalho era feito por turnos de quatro a seis meses de duração.
Feita essa exposição, deve ser reafirmado que os primeiros espanhóis
que vierem para o Paraguai buscavam prioritariamente ouro e prata. Como não
encontraram, desenvolveu na singularidade paraguaia uma economia baseada
na agricultura, na criação de gado e no extrativismo.
No primeiro momento criaram as condições de apoderar-se da terra
que foi obtida através da força, e após a conquista deu-se à ocupação dos
territórios indígenas. O núcleo da produção agrícola era intitulado “Casona”,
que no primeiro momento mantinha a sua subsistência e posteriormente
começou a produzir excedentes comercializados no mercado local e regional.
Com as descobertas das minas de prata de Potosi (Bolívia) em 1545, foi
impulsionado o desenvolvimento econômico das províncias pertencentes ao
então Vice-Reino do Peru, que era composto por Chile, Tucuman e Rio da
Plata, estabelecendo dois territórios com características distintas.
O alto-Peru era grande produtor de ouro e prata, consequentemente
havia uma grande circulação monetária e as regiões do Chile, Tucuman e Rio
da Plata desenvolveram uma economia voltada para a produção agropecuária,
que atendia a região do Alto-Peru com produtos como gado, couro, erva-mate,
vinho, açúcar, etc. Gadelha (1980, p. 108) afirma que:
O Chile, Tucuman e Rio da Prata eram uma economia caracterizada
pela pouca circulação de moedas e os produtos produzidos eram
destinados à exportação, sem recursos para desenvolver uma
economia própria. Sua existência seria apenas como zona produtora
e fornecedora de gado e produtos agrícolas destinados a suprir as
necessidades primárias dos mercados alto-peruanos.
Radicalizando a discussão em andamento, vale reforçar que neste
sentido a categoria que possibilita a compreensão deste processo é a totalidade,
pois demonstra a interdependência e a inter-relação das regiões da província do
83
Paraguai e Alto Peru inseridos no caráter universalizante da constituição do
mercado mundial, onde a Espanha ocupava um lugar de destaque.
A região do Chile, Tucuman e Rio da Prata desenvolveu sua economia
com produção agropecuária para atender o mercado do Alto-Peru. Portanto, a
baixa circulação monetária (que Gadelha caracteriza como ausência de moeda)
não implica que esta região praticasse uma “economia natural”, mas sim era a
característica particular desta região inserida na totalidade da acumulação
primitiva do capital. Na particularidade, a província do Paraguai estava ligada
ao Alto-Peru, e mesmo que timidamente ao mercado mundial, como
fornecedora de produtos primários com pouco valor agregado, porém inserida
na trama do modo de produção capitalista.
Portanto, é a produção de mercadorias e o comércio, forma
desenvolvida da circulação de mercadorias que constituem as condições
históricas que dão origem ao capital. A visão exposta demonstra que o
comércio e o mercado mundial inauguraram no século XVI a moderna história
do capital.
Para efeito de exemplo, o gado que era produzido no Paraguai, assim
como a erva-mate, quando levado para o Alto-Peru, demonstra a circulação de
mercadoria. Isto é, a troca dos diferentes valores de uso, pois o proprietário do
gado e da erva-mate recebia em troca ouro, prata ou moedas, para considerar
apenas as formas econômicas engendradas neste processo de circulação,
encontraremos o dinheiro como produto final.
Em grande ou pequena quantidade, esse produto final da circulação das
mercadorias é a primeira forma na qual aparece o capital. Logo, todo capital
novo, para entrar em cena, surge no mercado de mercadorias, de trabalho ou de
dinheiro, sob a forma de dinheiro que através de determinados processos, tem
de transformar-se em capital. Nesta acepção, a produção agropecuária
/extrativista do Paraguai em sua relação com o Alto-Peru estava inserida na
lógica da circulação mundial, pois os capitais que financiavam a extração da
prata de Potosi, por exemplo, perfaziam este mesmo circuito. O mesmo fazia
com o dinheiro o proprietário do gado e da erva-mate, quando comprava
insumos para uma nova produção (machados, facão, foice, cavalos, asno,
carroça, armas, pólvora, alimentação, etc).
Marx (1984, p. 166) demonstra que:
84
O dinheiro que é apenas dinheiro se distingue do dinheiro que é
capital através da diferença na forma de circulação. A forma
simples da circulação de mercadorias é M – D – M, conversão da
mercadoria em dinheiro e reconversão de dinheiro em mercadoria,
vender para comprar. Ao lado dele encontramos uma segunda
especificamente diversa, D – M – D, conversão do dinheiro em
mercadoria e reconversão de mercadorias em dinheiro, comprar
para vender. O dinheiro que se movimenta de acordo com esta
última circulação transforma-se em capital e, por sua destinação é
capital.
Partindo dos fundamentos teóricos elaborados por Marx (1984)
veremos que este circuito D – M – D percorre duas fases opostas, conforme
sucede a simples circulação. Na primeira fase, dinheiro (pesos) compra, por
exemplo, erva-mate, transforma-se em mercadoria. Na segunda, a erva-mate é
trocada por dinheiro, venda, a mercadoria volta ser dinheiro. O que caracteriza a
união de ambas as fases é o movimento conjunto em que se permuta pesos por
erva-mate e a erva-mate por pesos. Compra a erva-mate para vendê-la, ou
abandonando-se as diferenças formais entre a compra e a venda. Portanto, neste
contexto histórico, na região do Alto-Peru e nas regiões do Chile, Tucuman e
Rio da Prata comprava-se mercadoria com dinheiro e dinheiro com mercadoria.
O resultante final de todo este processo é a troca de dinheiro por
dinheiro, D – D. Merece ser ilustrado, ainda, que o mercador espanhol de
Assunção comprava 3.000 quilos de erva-mate13 por 100 pesos, depois vendia
para o comerciante do alto-Peru por 110 pesos, este mercador assucenho teria
por fim trocado 100 pesos por 110, dinheiro por dinheiro.
Evidentemente que a circulação D – M – D seria absurda e sem
sentido, se o objetivo do mercador fosse o de trocar duas quantias iguais, 100
pesos por 100 pesos. Seria mais simples e mais acautelado ele guardar estes 100
pesos de que expô-los aos riscos da circulação. O comerciante do Alto-Peru
pode ter vendido por 110 pesos ou por 100 pesos a erva-mate, ou por um
motivo qualquer foi obrigado a desfazer de sua mercadoria por 50 pesos, mas,
de qualquer maneira, seu dinheiro descreveu um movimento característico e
original, diferentemente do efetuado na circulação simples. Um outro exemplo
______________
13
De acordo com Quevedo na Província do Paraguai e Rio da Prata a erva “Caa ivirá” (erva de
pau-não peneirada) era utilizada também como moeda, sendo o seu valor taxado por uma
unidade imaginária conhecida como peso oco, que segundo as Ordenanzas de Alfaro e as Leyes
das Indias, deveria Valer seis (6) reais, embora este valor tenha se reduzido posteriormente. Ver
mais sobre este assunto: Quevedo, J. Guerreiros e Jesuítas na utopia do Prata. Bauru: Edusc,
2000.
85
é elucidativo: a de um pequeno agricultor paraguaio que produzia algodão, e
que vende o seu algodão e com o dinheiro obtido compra mandioca. O
fundamental nesta análise é conhecer as marcas distintas que diferenciam as
formas destes circuitos D – M – D e M – D – M, descortinando a diferença de
conteúdo que permanece latente sob a diferença de forma. Vamos desvelar o
que é comum em ambas as formas, pois de acordo com Marx (1984, p. 167)
“ambos os circuitos se decompõem nas mesmas duas fases antitéticas”.
Mercadoria – Dinheiro, Venda e Dinheiro - Mercadoria e Compra.
Destacamos que em cada uma destas duas fases se entrelaçam os mesmos
elementos materiais mercadoria e dinheiro, e os mesmos personagens da
economia comprador e vendedor. Marx (1984, p. 167) afirma que: “cada um
dos dois circuitos constitui a unidade das mesmas fases antitéticas, e em ambos
os casos essa unidade é efetivada pela intervenção de três contratantes, dos
quais um apenas vende, o outro só compra e o terceiro compra e vende
alternadamente”.
Para exemplificar: o produtor da erva-mate só vende, o consumidor da
erva-mate só compra e o comerciante assucenho compra e vende. O que
diferencia os dois circuitos Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria e Dinheiro –
Mercadoria – Dinheiro é sucessivamente a inversão de ambas as fases opostas
da circulação.
A circulação simples da mercadoria, de acordo com Marx (1984),
começa com a compra e termina com a venda. No primeiro caso é a mercadoria
e, no segundo o dinheiro, o ponto de partida e a meta final do movimento. Na
primeira forma do movimento, o dinheiro serve de intermediário e, na segunda
a mercadoria.
Na circulação Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria, o dinheiro vira
mercadoria, que serve de valor de uso. O dinheiro é gasto de uma vez para
adquririr definitivamente a mercadoria. Na forma Dinheiro – Mercadoria –
Dinheiro, o comprador gasta dinheiro, para fazer dinheiro como vendedor. Com
a efetivação da compra lança-se dinheiro em circulação, para retirá-lo delas
depois com a venda da mesma mercadoria. O dinheiro é empreagado com a
intenção de apoderar-se dele novamente.
No caso de mercador de Assunção que compra a erva-mate, ele apenas
adianta o dinheiro. No caso do agricultor paraguaio que compra mandioca, sem
86
o intuito de vendê-la, pode se dizer que a soma empregada foi efetivamente
gasta. Para Marx (1984), o circuito Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria, o
mesmo dinheiro muda de lugar duas vezes. O vendedor recebe-o do comprador
e passa para outro vendedor. O processo tem sua gênese com a posse do
dinheiro em troca de mercadorias. O que ocorre de forma inversa na forma
Dinheiro – Mercadoria – Dinheiro. Não é o mesmo dinheiro que muda de lugar
duas vezes e sim a mesma mercadoria.
Um outro exemplo é elucidativo: O mercador assucenho recebe das
mãos do vendedor 100 quilos de erva-mate e as transfere para as mãos de um
outro comprador. A circulação simples das mercadorias, como acentuou Marx
(1984, p. 168) “a dupla mudança de lugar da mesma peça de dinheiro ocasiona
sua transferência definitiva de uma mão para outra”. Já na circulação do
mercador assucenho ocorre à circulação Dinheiro – Mercadoria – Dinheiro,
uma dupla mudança da mesma mercadoria, ocasionando o retorno do dinheiro
na mão do mercador. Não importa se este vendeu a erva-mate mais cara do que
foi adquirida. Este aspecto só influi no montante da soma do dinheiro que
retorna ao mercador. Marx (1984, p. 468) esclarece esta questão: “A volta
propriamente se dá logo que se vende a mercadoria comprada, concluindo
inteiramente o circuito D – M – D. Pois aí transparece a diferença entre a
circulação do dinheiro na função de capital e sua circulação como dinheiro
apenas”.
Essa longa exposição se fez necessária para estabelecer claramente a
premissa teórica que sustenta a discussão que está sendo travada acerca da
afirmação de Gadelha (1980 p. 135):
A economia que se desenvolveu no Paraguai nunca deixou de ser
incipiente, baseada nos recursos oferecidos pela agricultura e
criação de gado. A célula da produção era a “casona”, geradora de
uma economia auto-subsistente, apoiada na abundância da mão-deobra, recursos naturais e de produtos comercializados à base da
simples troca.
E de Haubert (1990, p. 204) que afirma: “a economia não é
monetária”, e paradoxalmente ele afirma: “e a negligências dos guaranis
obrigam os jesuítas a mandarem efetuar trabalhos necessários à obtenção dos
produtos que em seguida serão vendidos nas cidades coloniais”. Haubert
87
assevera que ocorria no Paraguai o modo de produção feudal, pois ele parte de
categorias constitutivas deste modo de produção para explicar as relações
econômicas, por exemplo: “corvéias públicas” e ”vassalos”, para aclarar a
exploração da força de trabalho indígena na construção de edifícios ou
fortificações públicas.
Os argumentos de Gadelha (1980) afirmando que neste contexto
histórico no cone-sul da América Latina, havia uma “economia natural”, não
havendo circulação de moedas e que a produção era efetivada apenas para
subsistência. E se houvesse algum excedente, seria simplesmente trocado por
outro produto. Conseqüentemente, os argumentos de Haubert afirmando que a
produção e as relações sociais no Paraguai eram eminentemente feudais.
Para radicalizar a discussão, entendemos que a centralidade da reflexão
se insere no movimento e na compreensão que as relações de produção desta
região estavam inseridas na lógica da acumulação primitiva do capital e
apresentava esta configuração na particularidade paraguaia. O contexto de
transformação social e da base produtiva se caracterizava pela produção de
mercadorias primárias e de pouco valor agregado, que atendia a demanda do
mercado local (ainda que incipiente) e o regional (vice-reino do Peru). Uma
economia com configurações próprias, porém ambas inseridas na lógica da
circulação do capital.
Cabe destacar que o argumento da “economia natural” deu-se porque o
Paraguai não explorava a produção de mercadorias com grande aceitação no
mercado Europeu, como por exemplo, o açúcar do Brasil e o cacau da
Venezuela. E uma das causas apontadas para este “atraso” seria a falta de
capital para a compra de força de trabalho de escravos negros.
Como já foi ressaltado anteriormente, o Paraguai desenvolveu a sua
economia numa configuração própria, a partir das condições objetivas dadas e
que atendia às necessidades regionais. Pois a instituição da “encomienda”
garantiu a classe dominante paraguaia força de trabalho barata até o princípio
do século XIX. E sua economia se fundamentou nesta exploração. Um exemplo
elucidativo desta exploração foi a produção e comercialização de tecidos de
algodão produzidos nos teares das “Casonas”, explorando a força de trabalho
das mulheres indígenas “encomendadas”.
88
Nesse aspecto, torna-se imprescindível relatar que o Paraguai, neste
período, também desenvolveu uma pequena, porém eficiente, produção de
açúcar e aguardente e produzia também uva de boa qualidade para a extração de
vinho, que atendia ao mercado regional como Buenos Aires.
Além disso, foram introduzidas a produção de trigo, cevada, batata e a
expansão da produção de mandioca e outras raízes da cultura indígena,
plantações de milho, feijão e algodão. Na produção extrativista os principais
gêneros eram a cera, o mel e o tabaco “peten”, mas a principal mercadoria era,
sem dúvida, a erva-mate. Esta planta nativa da região exercia na economia
paraguaia uma função paradoxal, pois através de sua extração produzia a
riqueza para os “encomenderos”. E por outro lado, provocava a pobreza, a
miséria e a opressão sobre os “encomendados” e mitaios, a força de trabalho
que retirava das profundezas da selva a erva-mate sob as condições mais
degradantes. Como a falta de alimentação, maus tratos e precárias condições de
trabalho. Gadelha (1980, p. 139) esclarece:
A erva e o tabaco, “peten” como era chamado embora considerados
“vícios”, também eram explorados. Em 1608, a erva já pagava
dízimos no valor de 37 pesos e 4 reais, valor um pouco inferior aos
dízimos do açúcar que eram, então, de 38 pesos e 7 reais (por cada
2/9 de direitos pagos).14
Outra mercadoria produzida nesta região era o gado bovino.
Introduzido pelos primeiros colonizadores, se espalhou pelos campos e
pradarias selvagens, embrenhando-se pelas matas, e favorecido pela farta
alimentação e mananciais de água, se multiplicou rapidamente. Com o decorrer
dos anos o gado penetrou mata adentro e foi se procriando sem controle, criados
selvagens, transformando-se em grande manadas. Chaunu (1969, p 134)
esclareceu a importância do gado na região de Buenos Aires:
A cidade vive no século XVII, do contrabando da prata de Potosi e
do abastecimento do Brasil açucareiro, no século XVIII, da
exploração do gado que se aproveita o couro. A sua mudança
quantitativa situa-se entre 1730 e 1775 e atinge vitoriosa criação,
em 1756-1775, do quarto e último vice-reinado, de La plata.
______________
14
Ver mais sobre este assunto: Aguirre, Juan F. – “Diário del Capitán de Fragata de la Real
Armada, Juan Francisco Aguirre”. Revista de La Biblioteca Nacional. 19 (47-48): 9 – 598,
1948. t 2, 2 pt.
89
O “ganado” designava o conjunto de manada ou do rebanho. Aplicamse, geralmente nos finais do século XVI e XVII a uma manada ou rebanho
semi-selvagem que os vaqueiros e posteriormente o gaúcho controlava de
longe. Na função de vaqueiros, se destacam os indígenas e os mestiços.
Canabrava (1944) esclarece que as principais cidades desta região
eram: Córdoba, Salta, La Rioza, Madrid, Tujui, Santa Fé, Bermejo, Buenos
Aires, Corrientes, porém estas cidades viviam sempre à sombra de Tucuman,
pois esta era a principal rota terrestre que estabelecia a conexão entre as
Províncias do Prata e de Tucuman com o Alto-Peru.
Gadelha (1980) ilustra que Assunção ocupava uma posição central
nesta região, dando uma enorme contribuição em homens (crioulos e mestiços)
e também em indígenas, gado, armas, diversos gêneros alimentícios, e socorria
as outras cidades que sofriam ataques de índios.
Como já foi ressaltada anteriormente a descoberta das minas de prata
em Potosi (1545) acelerou o processo de desenvolvimento econômico do conesul da América Latina. O brilho da prata propiciou uma grande concentração
demográfica em torno das cidades de La Paz, Chuquiasca e Potosi. Capoche
(1969) afirma que Potosi possuía um grande mercado bem sortido, com uma
quantidade inominável de objetos de luxo extremamente requintados de várias
partes do mundo: sedas, brocados, tecidos bordados em ouro, etc.
Paradoxalmente, a prata produzia riqueza para um pequeno grupo, e
espalhava a miséria para a grande maioria dos “pongos” trabalhadores das
minas. De acordo com Canabrava (1944, p.13), “havia em Potosi muita miséria
e pobreza que contrastava com a riqueza, havendo muita prostituição que não se
restringia apenas às mulheres indígenas, mas também mulheres européias”. Em
relação aos bordéis existentes na cidade, de acordo com Canabrava: “havia 120
mulheres brancas espanholas”. Mercadores, aventureiros, jogadores foram
atraídos para Potosi e superlotavam os bordéis, as casas de jogos e as casas de
danças.
Como nas colônias não era permitido legalmente a cunhagem de
moedas, com essa grande movimentação econômica ocorria a escassez de
moedas. A moeda utilizada era o próprio metal (prata), com os quais se
efetuavam os pagamentos dos mineiros livres, que com ela compravam comida
e desenvolviam a prostituição. Partindo desta falta de liquidez (escassez de
90
moeda) é que emerge o mito de que as relações econômicas eram efetivadas
pela simples troca, baseadas em uma “economia natural”. O padre Vargas
Ugarte (1954, p. 54) afirma que “grande parte do comércio de Potosi, Santa
Cruz e Churquiasca estava monopolizada por um pequeno grupo de
comerciantes de Lima, sede do Vice-Reino do Peru. Estes mercadores locais
mantinham estreita relação de sociedade com a burguesia comercial de
Sevilha”.
Logo, a tese que apresenta as economias coloniais isoladas e que a
produção
de mercadorias estava no
estreito limite da subsistência,
fundamentada apenas na troca da produção excedente, não se sustenta. De
acordo com Ugarte, o comércio desta região estava sob o monopólio de um
grupo de comerciantes de Lima, associados aos burgueses de Sevilha,
demonstrando a inter-relação e a interdependência da colônia em relação à
metrópole, e conseqüentemente ao incipiente mercado mundial.
Ugarte (1954) argumenta que os diversos segmentos da produção e do
comércio estavam extremamente organizados em associações (grêmios)
existindo um grande número destas: alfaiates, sapateiros, maleiros, confeiteiros,
espadeiros,
carroceiros,
açougueiros,
carpinteiros,
etc.
As
principais
corporações eram a dos sapateiros e carpinteiros. Eis, portanto, alguns
elementos que nos auxiliam a apreender que a economia do Paraguai,
materializada nesta inter-relação comercial com o alto-Peru, estava inserida na
singularidade econômica regional.
Entretanto, a construção histórica deste processo não se deu de forma
linear – em fases de desenvolvimento – estas relações se cristalizaram pelo
antagonismo entre diversas frações de classe em ascensão. O princípio que
norteou este processo foi o da contradição entre exploradores (encomenderos,
comerciantes, banqueiros, etc) e explorados (trabalhadores assalariados,
escravos, mitaios, índios encomendados). Este antagonismo também se
expressava na luta entre as frações da classe dominante. Em determinado
período por disputas regionais e em outros, por fatores externos como as
medidas protecionistas do Estado espanhol, que buscava a partir dos interesses
da metrópole controlar e monopolizar as atividades comerciais mais rentáveis.
O Estado espanhol não possuía uma grande estrutura para controlar
todas as atividades econômicas e floresceram o contrabando e o comércio
91
“ilegal” entre a região do Tucuman, Chile, Paraguai, Rio da Prata, Brasil e o
Alto-Peru. Grandes variedades de mercadorias eram contrabandeadas, como a
erva-mate, ouro, prata, gado, açúcar, tabaco, aguardente, armas de fogo, ferro.
Felipe II estabeleceu o sistema de comboios para frotas e galões com
data de saída rigorosamente controlada pela Casa de Contratação, cujo objetivo
era proteger as remessas de ouro e prata para a Espanha. O sistema objetivava
controlar as importações e exportações e evitar o ataque de piratas e corsários.
Chaunu (1969, p. 87) afirma que “mesmo com estas medidas o contrabando não
cessou e, entre 1640 e 1760, o contrabando superou o tráfico oficial”. Chaunu
assegura que a base econômica de Buenos Aires no século XVII era
fundamentalmente o contrabando da prata de Potosi e o abastecimento do Brasil
açucareiro.
Cortesão (1951) destaca que com a construção do porto de Buenos
Aires, o comércio interior e o comércio exterior deram um salto quantitativo na
região platina através da permissão de navios soltos, ou do contrabando. Outro
fato positivo para essa integração comercial foi a União Ibérica (1580 – 1640),
que alimentou o comércio com os portugueses, principalmente com o Brasil e
com Angola. Bastos (Apud Alves, 2005) refere-se ás mancomunações de
comerciantes portugueses e espanhóis na realização de contrabando entre o
Brasil, tendo como centro Vila Bela, e a América espanhola. Por força da
natureza dessa atividade, as informações existentes que a atestam são muito
parciais mas há evidências que uma das práticas mais utilizadas era a troca do
ouro pela prata, que permitia aos comerciantes, tanto portugueses quanto
espanhóis, escaparem ao controle do fisco. Pois a prata não era taxada no
Brasil, nem o ouro na América espanhola.
Outro mito da historiografia que estuda a relação da América
espanhola com a América portuguesa afirma que estas regiões estavam
isoladas. O Brasil neste mito aparece como se estivesse a milhões de
quilômetros de distância, totalmente disjunto, como se não houvesse nenhum
contato entre os portugueses e os espanhóis. Contudo, é importante ressaltar
que em outros momentos alguns historiadores apresentam esta relação como
extremamente conflituosa, e que os encontros se davam apenas nas matas, entre
os bandeirantes e mamelucos brasileiros buscando escravizar os indígenas que
“pertenciam” aos espanhóis.
92
Além disso, aparecem na historiografia os espanhóis lutando
bravamente contra os portugueses, no sentido de preservar a sua mercadoria.
Em muitos momentos estes fatos realmente ocorreram, como já foram
demonstrados em inúmeros trabalhos historiográficos. Porém, esta relação não
era somente conflituosa, e havia neste período uma intensa relação comercial
com o Brasil. Canabrava (1944) assevera que com a União Ibérica (1580-1640)
houve um grande incentivo nesta relação e aprofundou-se ainda mais este
comércio, pois os portugueses já estavam presentes em grande parte da América
espanhola.
Chaunu (1969) também corrobora esta argumentação, afirmando que
os portugueses monopolizavam com seus produtos o comércio de Buenos
Aires, Tucuman, Potosi, Alto-Peru, formando uma extensa rede comercial,
fixando-se como
comerciantes, banqueiros, agiotas e prestamistas e
desempenhando os mais variados ofícios.
Gadelha (1984) esclarece que no fim do século XVI, as Ordenanças do
governador de Assunção Juan Cabellero (1593) descrevem os caminhos
percorridos pela circulação de mercadorias em um mercado regional (latinoamericano). Neste sentido, as Ordenanças estabeleciam benefícios para os
produtores de cana-de-açúcar e a fabricação de açúcar e de vinhos, medidas
estas para suportar a concorrência brasileira (açúcar) e chilena (vinhos). Outra
informação importante que Gadelha apresenta diz respeito a venda da erva-mate
nos mercados de Tucuman, destacando também que o contrabando da prata
aumentava este comércio, e era uma preocupação constante das autoridades
coloniais do Paraguai.
Gadelha (1984, p. 149) enfatiza que “pela cidade de Assunção e
também por Buenos Aires passava grande quantidade de prata em contrabando
para o Brasil e consequentemente era a porta de entrada de mercadorias
brasileiras, portuguesas e européias”, dentre as quais o açúcar, azeite, ferro,
fazendas, móveis, negros, armas e gêneros vários, que em relação à Espanha e
ao Peru apresentavam preços inferiores. As informações apresentadas por
Gadelha tornam evidente a circulação de mercadorias no cone-sul da América
Latina, se contrapondo ao mito do isolacionismo criado por alguns
historiadores. Outro comércio bastante ativo era o comércio de negros escravos
para as minas de prata de Potosi. O Paraguai estava integrado ao mercado
93
latino-americano e este estava inter-relacionado com o incipiente mercado
mundial. Porém apresentava as suas particularidades devido ao lugar que
ocupava na produção, isto é, produzia produtos primários com pouco valor
agregado e comprava produtos manufaturados com maior valor agregado.
Valeria acentuar, ainda, que o Paraguai estava arraigado nas relações
de produção do capitalismo comercial, aliás, a sua constituição emerge deste
processo, portanto não se sustenta a tese que isola a sua existência dos
condicionamentos econômicos globalizantes que se refletem no argumento da
“economia natural”, e que ajuíza a “ausência” de comércio, e que os produtos
excedentes eram negociados com base em um sistema de simples troca.
Portanto a tese de uma “economia natural” – de um fazendeiro
espanhol vivendo isolado, com centenas de índios cultivando a terra, se
alimentando de carne bovina, rebanho que é criado em estado “semi-selvagem”,
produzindo mandioca e outras raízes apenas para a sua subsistência, sendo o
produto excedente trocado nas pequenas Vilas de Assunção e Buenos Aires,
não precede. Como assevera Marx (1978, p. 109), “são as pobres ficções das
robinsonadas do século XVIII. Estas não expressam de modo algum como se
afigura aos historiadores da civilização, uma simples reação contra os excessos
de requinte e um retorno mal compreendido de uma vida natural”.
Nesta
acepção,
é
necessária
a
compreensão
histórica
do
desenvolvimento das novas forças produtivas que se ampliaram a partir do
século XVI, a compreensão deste processo como um resultado histórico, como
um ponto de partida e não como a resultante final – e não considerar estas
relações conforme a natureza, mas como um processo social. Marx (1978, p.
104) esclarece:
A produção de um individuo isolado fora da sociedade – uma
raridade, que pode muito bem acontecer a um homem civilizado
transportado por acaso para um lugar selvagem, mas levando
consigo já, dinamicamente as forças da sociedade – é uma coisa tão
absurda como o desenvolvimento da linguagem sem indivíduos que
vivam juntos e falem entre si.
No caso da Província do Paraguai evidentemente ocorreram fatos
isolados com grupos indígenas, que devido à invasão de suas terras penetraram
mata adentro, fugiram para o interior da selva vivendo afastados da sociedade
94
colonial. Na particularidade da Província do Paraguai devido a enorme
distância em relação à metrópole, e mesmo em relação a outras localidades na
própria América, devido à dificuldade de transporte ocorria certo isolamento
localizado, porém não pode generalizar o isolamento para todo Paraguai
colonial.
Portanto a tese que aponta o isolamento conjuntural inter-relacionado
com uma economia também isolada não se sustenta, pois o Paraguai estava
inserido nessas relações de produção. Marx (1978, p. 107) reconhece que:
Quando as condições sociais, que correspondem a um grau
determinado da produção, se encontram em vias de formação ou
quando já estão em vias de desaparecer, sobrevém naturalmente
perturbações na produção, embora em graus distintos e com efeitos
diferentes. Em resumo: existem determinações comuns a todos os
graus de produção, apreendidas pelo pensamento como gerais; mas
as chamadas condições gerais de toda produção não são outra coisa
senão esses fatores abstratos, os quais não explicam nenhum grau
histórico efetivo de produção.
Em resumo: a província do Paraguai emerge na gênese do modo
capitalista de produção, como propriedade privada do Estado Moderno
Espanhol, os primeiros conquistadores vêm para o cone-sul da América Latina
em busca do ouro e da prata. Porém não as encontram, consequentemente
diminui o investimento neste empreendimento, porque a lógica dos investidores
era o lucro fácil e rápido. Os primeiros conquistadores espanhóis, portanto, sem
muito capital, passam a desenvolver uma economia de acordo com a
configuração particular desta região. Por habitar nesta província uma grande
população nativa de diversas etnias e favorecidos por um conjunto de “leis”
como a “encomienda” e a “mita”, os espanhóis passam a explorar as riquezas da
terra (que era a força de trabalho indígena) balizando a exploração econômica
na produção de produtos primários com pouco valor agregado. O alicerce de
sustentação desta economia era a criação de gado e a extração da erva-mate,
além de uma incipiente produção agrícola.
O processo institucionalizado pelo Estado espanhol através de suas leis
e da práxis efetivada pelos espanhóis no Paraguai para subjugar o indígena foi
caracterizado pelo uso da violência. Devido a grande vantagem tecnológica
95
expressa em um forte poder bélico, os grupos indígenas foram dominados e
subjugados pelos conquistadores.
Porém os indígenas resistiram à invasão e à escravização, algumas
etnias indígenas, principalmente os guaranis, por uma questão estratégica e por
alguns traços culturais construíram com os espanhóis alianças ofensivas e
defensivas. As alianças foram estabelecidas pela ligação de parentesco
(cuñadazo), favorecendo um processo de miscigenação entre conquistadores e
conquistados.
A partir das relações econômicas fundamentadas na produção e
circulação de mercadorias com poucos valores agregados, e favorecidos pela
descoberta de ouro e prata na região do Alto-Peru, criou-se um mercado
regional incipiente com a produção e comercialização de mercadorias como:
erva-mate, gado, couro, vinho, trigo, aguardente, cevada, algodão etc. Portanto
esta região se constitui em um ponto estratégico para a circulação de
mercadorias com a fundação do Porto de Buenos Aires. Mercadorias estas
“legais” ou contrabandeadas, sendo, portanto um ponto estratégico de produção,
circulação e de consumo no cone-sul da América Latina.
A análise se faz necessária no sentido de esclarecer o leitor sobre o
contexto histórico em que se estabeleceu no Paraguai a Companhia de Jesus. A
compreensão histórica da formação econômica e social da Província do
Paraguai e consequentemente descrever as suas particularidades nos
possibilitará uma melhor compreensão da ação da Companhia de Jesus em suas
relações econômicas, sociais, religiosas e políticas, inseridas nestas teias de
relações.
2.2 A CULTURA GUARANI.
Melia (1991) esclarece que o tupi-guarani, como linguagem e como
cultura, é um ramo do tronco lingüístico tupi mais antigo, a partir do qual toma
características próprias e diferenciadas, provavelmente desde o primeiro
milênio antes de Cristo, aproximadamente de 3.000 à 2.500 anos atrás. Ainda
de acordo com o autor, os guarani migraram da bacia amazônica,
hipoteticamente motivados por um notável aumento demográfico, intensificado
96
em um período que coincide com o período da cultura ocidental de
aproximadamente 2.000 anos.
Os grupos étnicos denominados atualmente de Guarani passaram a
ocupar as selvas subtropicais do Alto-Paraná, do Paraguai e do médio Uruguai.
Os índios se locomoviam de um lugar para outro em busca de novas terras,
porém não eram nômades que dependiam impreterivelmente da caça, da pesca e
da coleta para a produção e reprodução de suas existências. Eram acima de tudo
agricultores que sabiam explorar eficazmente as terras selvagens, cujas árvores
derrubavam e queimavam e na qual plantavam mandioca, legumes, etc.
Eram extremamente hábeis na arte da cerâmica, cujos artefatos
produzidos eram utilizados para preparar e servir seus alimentos. Como colonos
dinâmicos continuaram a sua expansão migratória até aos tempos da invasão
européia no Rio da Prata (na década de 1520). A migração, como história e
como projeto, constitui uma de suas marcas características, ainda que muitos de
seus grupos tenham permanecido por séculos em um mesmo território e nunca
tenham feito uma migração efetiva.
O mito guarani da busca da “tierra sin mal” e de uma “tierra nueva” é
uma estrutura marcante de seu pensamento e de sua vivência; na realidade, a
“tierra sin mal” é uma síntese histórica e prática de uma economia vivida
profeticamente. Melia (1991, p. 14) esclarece: “[...] Animicamente el Guaraní
es un pueblo em éxodo, aunque no desenraizado, ya que la tierra que busca es la
que le sirve de base ecológica, hoy como en tiempos pasados y como será
mañana.”
Melia afirma que ao longo destes últimos 1500 anos, período em que
as tribos podem considerar-se formadas com suas características próprias, os
guaranis têm se mostrado fiéis a sua cultura original, não por inércia, mas pelo
trabalho ativo na busca das condições ambientais mais adequadas para o
desenvolvimento de seu modo de ser. De acordo com Melia (1981, p. 15): “La
tradición en este caso es profecía viva. La búsqueda de ‘la tierra sin mal’ como
estructura del modo de pensar de Guaraní, informa el dinamismo económico y
la vivencia relígiosa, que le son tan propias”.
Com a invasão espanhola nos séculos XVI e na medida em que
avançaram no território no século XVII, em suas viagens de exploração e em
suas expedições de conquistas e consequentemente acompanhados dos
97
missionários em sua “conquista espiritual”, os europeus encontraram os
Guaranis organizados formando conjuntos territoriais mais ou menos extensos,
que denominaram de “províncias”, que eram reconhecidas pelos nomes
próprios dos grupos indígenas que ali habitavam: Cário, Tobatín, Guaramboré,
Itatin, Mbaracayú, gente del Guairá, del Paraná, del Uruguai, los del Tape.
As províncias abarcavam um vasto território que ia da costa do
Atlântico ao Sul de São Vicente, até a margem direita do Rio Paraná, e desde o
sul do Rio Paranapanema e do Grande Pantanal (o lago de Los Jarayes) até as
ilhas do delta, junto a Buenos Aires. Por sobre as denominações particulares (de
cada grupo), prevaleceu o nome genérico de Guarani, devido à unidade
lingüística dos dialetos desses grupos e as profundas semelhanças em sua
organização sócio-política e em suas expressões culturais. Melia (1991, p. 15)
traz a seguinte colaboração:
El Guaraní era la “Lengua General” de gentes que cubrían una
amplísima geografia. Debe tenerse en cuenta, sin embargo, que en
ese espacio estaban enclavados otras “naciones”, generalmente
pobladores más antiguos, con áreas de ocupación bastante desigual
y con relaciones más o menos conflictivas con los Guaraní.
Melia esclarece que na época dos primeiros contatos com os europeus,
a população guarani alcançava cifras consideráveis. A hipótese de uma
população de aproximadamente 1 500 000 até 2 000 0000 (dois milhões) de
indivíduos. Ainda que pareça forte e superestimada, parte de um fundamento
sério que emerge da documentação histórica ganhando veracidade quando se
considera a boa produtividade que alcançaram os grupos neolíticos com sua
economia baseada na reciprocidade que estava ligada profundamente com a sua
vida religiosa. Durante o processo colonial, o censo demográfico alarmou os
próprios governadores da província.
Pois, províncias inteiras desapareceram ou foram subjugadas pelos
encomenderos e as que sofriam ataques constantes dos bandeirantes paulistas
em busca de escravos, além das doenças trazidas pelos brancos que dizimaram
grandes contingentes de indígenas. Sobre a dizimação dos indígenas Melia
(1991, p. 16) afirma:
98
La Província Del Guairá, por ejemplo, que contó com más de 200
000 indios (y tal vez hasta 800.000), fue reducida a prácticamente
ningún habitante. La mayor parte de esta gente se han muerto de
pestiléncia, malos tratamiento y guerras... (BARZANA, 1594, in:
Monumenta Peruena V, 1970: 590-91). Guerras, malos tratos,
epidemias y cautiverios fueron los cuatro jinetes de aquel
apocalipsis colonial que se abatió sobre el pueblo guarani.
Uns poucos milhares de guaranis foram absorvidos pela mestiçagem
biológica e social, entretanto outros eram reduzidos em missões franciscanas
(desde 1580) e jesuítas (desde 1605). Melia (1991, p. 16) afirma que quando
esses povos foram desintegrados como gupos ao longo do século XIX: “[...] Sus
pobladores tornáranse miembros del nuevo Estado Paraguayo que los
assimilaba y les imponia, uma vez más, outro processo de ‘reducíon’ hacia la
condición de campesino pobre”.
A opressão colonial mencionada por Melia foi sentida desde que se
instauraram os repartimentos dos índios para os encomenderos (1556). O
processo provocou várias rebeliões contra os cristãos. No período de 1537 a
1616 se registraram mais de vinte e cinco revoltas contra os conquistadores.
Um traço característico deste momento foi o surgimento de manifestações
proféticas contra a dominação.
Ao serem subjugados e angustiados pela feroz dominação, alguns
grupos guaranis se apegaram as religiões de salvação parecida com a de muitos
povos oprimidos – o caso do povo judeu é emblemático nesta questão15. Pois
Jesus de Nazaré predisse a queda dos maus, justiça para os pobres, o fim da
miséria e do sofrimento, reunião com os mortos e um novo reino dos céus.
Porém os traços desta pregação eram intrinsecamente pagãos: por mais
que as crenças tradicionais fossem alteradas, a pregação dos “messias”
indígenas se apresentava com força revigorada buscando recuperar a felicidade
ancestral que fora usurpado pelos conquistadores. Esses movimentos indígenas
com estas características “proféticas” eram direcionados contra os estrangeiros.
______________
15
De acordo com Marvin Harris (1978, p. 121) “o cristianismo nasceu, inicialmente, na
Palestina entre os judeus. A crença na vinda de um salvador chamado o messias – era uma
importante feição no tempo de Cristo, pois este Deus tinha feições do homem. Os primeiros
seguidores de Jesus, quase todos judeus, acreditavam ser ele esse salvador. (Cristo é uma
palavra derivada de Krystos, termo com que os judeus, ao falarem grego, referiam-se a seu
esperado salvador). Todos os povos antigos – não diferindo da maioria dos povos modernos –
acreditavam que as batalhas não poderiam ser ganhas sem a assistência divina. Para ganhar um
império ou simplesmente para sobreviver como um Estado independente, devia haver soldados
com os quais os antepassados, os anjos ou deuses estivessem dispostos a cooperar”.
99
Os chefes dessas rebeliões eram na maioria das vezes caciques e xamãs, ou
seja, homens que foram os mais humilhados pela opressão cristã. Haubert
(1990, p. 160) descreve um desses movimentos:
Em San Ignacio, por exemplo, os jesuítas decidiram finalmente
tirar as concubinas de Miguel Altiguaye, cacique poderoso e
respeitado, por eles nomeado capitão geral da redução. Este
proclama que os padres são “alcoviteiros” e ri das ameaças do
inferno, “onde conta se divertir”. Ele próprio se faz padre e oficia
em sua choupana. Vestido com uma alva e uma murça de penas
multicores, diz a missa a sua maneira, com uma torta de mandioca
e -, numa cabaça pintada de várias cores – a chicha ancestral; fala
entre os dentes, mostra a torta e a chicha aos assistentes, consome
tudo; finalmente faz mil cerimônias e é objeto de grande veneração.
Melia (1991) destaca que estas rebeliões arrancadas da tradição
religiosa indígena, em que os índios ao se sentirem ameaçados se manifestam
através de gestos e palavras também religiosas – que na expressão de Haubert
seria “Messias contra Messias”16. Uma das mais significativas respostas
proféticas contra a opressão colonial foi a de Oberá (1597).
Os
guaranis
que
seguiam
Oberá
cantavam
e
dançavam
ininterruptamente durante vários dias. Desbatizando os que haviam sido
batizados pelos padres cristãos, lhes conferiam novos nomes conforme a
tradição indígena. Estes e outros levantes foram movimentos de libertação
contra a escravidão colonial e a opressão cristã, e ao mesmo tempo uma
confirmação, na expressão de Melia (1991) do seu modo de ser tradicional, que
na religião encontra sua expressão.
Talvez o Guarani em épocas anteriores à da colonização pudessem, ter
sentido às vezes a terra que habitavam assolada por catástrofes naturais, como
inundações, secas, enfermidades, distenções internas, ataques de outros povos
(tribos inimigas). Não resta nenhuma dúvida, contudo, que o maior cataclisma
que enfrentaram foi o da dominação, sob o julgo dos colonizadores, como um
sistema que lhes retirou a liberdade. Melia (1991, p. 17) entende que:
______________
16
Marvin Harris (1978, p. 121) traz um exemplo elucidativo: “Davi, o fundador do primeiro e
maior império judeu; declarava ter participação divina com o Deus Jeová. O povo judeu
chamava Davi de Messiah (em hebreu mashia), termo aplicado a sacerdotes, escudos, a Saul,
predecessor de Davi, e a Salomão, filho de Davi. Assim, Messiah, originariamente, significaria
qualquer coisa possuidora de grande poder sagrado e de santidade. Davi foi também chamado
de Ungido – aquele que, colaborando com Jeová, fora autorizado a governar os domínios
térreos de Deus”.
100
[...] no hay duda que las crisis de éstos y más terribles males es la
dominación colonial que como sistema le quita la libertad. Incluso
las reducciones jesuítas, com su declarado intento de libertalos de
la encomienda y del servicio personal, no eran sino espacios de
libertad reducida donde el “modo de ser religioso” tradicional se
veía descreditado, ridiculizado y hasta físicamente perseguido.
Haubert (1990) explica que a entrada dos jesuitas no mundo guarani
esteve acompanhada durante anos de uma verdadeira “guerra de messias”. Se
bem que os jesuítas, de acordo com Melia (1991, p. 17):
[...] entron en un relativo diálogo con el pueblo guaraní cuando se
trataba de comunicación linguistica y de ciertas concepciones de la
vida económica y política, el antagonismo en el campo religioso,
tanto en el campo de las creencias como en el de la expresión ritual,
fue total.
O que se pode demonstrar a partir destas análises é que a resistência
Guarani se deu em diversos campos – armada, em aliança ofensiva e defensiva,
etc. O Paraguai colonial também foi durante séculos a terra de eleição de
messias e de profetas indígenas. Em nenhuma outra região se podem constatar
tantos movimentos de libertação tendo como base a mística. Os movimentos se
multiplicaram a partir do momento em que os conquistadores e jesuítas
estabeleceram a sua dominação e jogaram decisivamente no intuito de destruir a
antiga civilização. Estes fatos explicam o desespero que se apoderou dos
Tupinambás e dos Guaranis. Melia (1991, p. 17-18) esclarece: “Esta
desesperación los habría animado a escuchar a los profetas que se levantaban
entre ellos y que les ofrecian como solución la huida hacia la tierra – sin – mal
o la venida próxima de una edad de oro”.
Melia afirma que tanto na área de dominação colonial propriamente
dita quanto nas áreas de missões (reduções) foram se processando gradual e
firmemente a substituição da religião indígena pela religião cristã. Um
fenômeno cujo alcance e valor não se pode medir, mas que teve certamente
mais implantação exterior que de aculturação participada. Melia (1994) não
nega a autenticidade das conversões, nem a verdade de suas novas expressões
rituais, tão pouco discute a profundidade da vivência cristã, inclusive em suas
manifestações místicas, entre os índios guaranis, nem a profunda religiosidade
paraguaia. Pois de acordo com este autor, estas são derivações que se separam
101
da experiência religiosa do Guarani tribal, e que devem ser tratados
especificamente como fenômeno de religiosidade popular. Uma das fontes mais
importantes na busca da compreensão da cultura Guarani é uma leitura atenta
das cartas, informes e crônicas dos primeiros tempos de colonização.
Cadogan (1992), em um estudo antropológico, descreve a experiência
religiosa guarani que tem sido vivida por mais de um milênio nessas terras por
gerações e gerações de homens e mulheres.
Para Cadogan a experiência
religiosa segue sendo o signo que dá sentido a vida de muitas pessoas. Em
relação à religiosidade Guarani desde a gênese da colonização, diversos autores
descrevem a importância desta na sociedade Guarani. Já em 1594 o padre
Alonso Barzana havia captado alguns aspectos fundamentais da religião
Guarani. Seus textos, se os despojarmos de suas concepções mais
preconcebidas, possibilita-nos alcançar os elementos mais importantes e
essenciais dessa religião.
Melia (1991, p. 23) descreve a visão de um missionário sobre a
primeira síntese da religião Guarani:
Es toda esta nación muy inclinada a religión, verdadeira o falsa, si
los cristianos los hubieran dado buen ejemplo y diversos hechiceros
no los hubieran engañado, no sólo fueran cristianos, sino devotos.
Conecen toda la inmortalidad del alma y temen mucho las anguera,
que son las almas salidas de los cuerpos, y dicen que andan
espantando y haciendo mal. Tienen grandísimo amor y obediencia
a los padres, si los padres, si los ven de buen ejemplo, y la misma y
mayor a los hechiceros que los engañan en falsa religión, tanto, que
si lo mandan ellos, no sólo les dan su hacienda, hijos e hijas, y los
sirven pecho por tierra, pero no se menean por su voluntad17. Y esta
propensión suya a obedecer a titulo de relígión, ha causado que no
sólo muchos indios infieles se hayan fingido entre ellos hijos de
Dios y maestros, pero indios criados entre españoles se han huido
entre los de guerra, y unos llmádose e Jesuscristro, y han hecho
para sus torpezas monasterios de monjas quibus abutuntur, y hasta
hoy, los que sirven y los que no sirven ( a los españoles) tienen
sembrados mil agüeros y supersticiones y ritos de estos maestros,
cuya principal doctrina es enseñarles que bailen de dia y de noche,
por lo cual vienen a morir de hambre, olvidadas sus sementeras...
Bailes tienen tantos y tan porfiados, fundados en su religión, que
algunos mueren en ellos [...].
______________
17
Melia obteve estas informações em: Monumenta Peruana V, 1970: 589-90.
102
Melia esclarece que outra síntese histórica da religião Guarani na visão
missionária é a que oferecem Antonio Ruiz de Montoya18, que apresenta uma
defesa dos indígenas contra os “encomenderos” e bandeirantes, porém no que
tange ao aspecto religioso mantém uma visão conservadora, principalmente em
relação aos “feiticeiros”, aos quais qualificam de “diabólicos”.
Melia (1991) destaca a relativa incapacidade que repetidamente tem
mostrado os missionários para entrar em diálogo com o “espírito” da sociedade
indígena que é tão acentuadamente mística, como é a sociedade Guarani, e esta
questão representa um problema teológico de certa importância. Na realidade,
seriam problemas sociológico e antropológico, que se expressa no caráter da
não compreensão por parte dos jesuítas do aspecto central ocupado pela religião
e consequentemente as relações sociais da constituição desses grupos indígenas.
No aspecto antropológico, em muitos outros momentos os jesuítas
buscaram relativizar os aspectos culturais. Porém no campo religioso
(cristianismo) evidenciou-se a lógica do etnocentrismo europeu que consistiu
fundamentalmente em isolar uma característica da própria cultura e elevá-la à
condição de definidora da “natureza humana”.
De acordo com Rodrigues (1989, p. 150), “tal operação se faz sempre
de modo a reservar para a cultura classificadora o lugar mais confortável, pois a
característica isolada, considerada universal e inevitável, está acima de qualquer
discussão”. Na particularidade do Paraguai devido à força da colonização, os
jesuítas buscaram impor radicalmente a visão de mundo “cristã”, fundamentada
nos dogmas e nos ritos da igreja e a imposição da “moral” cristã, desvelada na
proibição da antropofagia, no casamento monogâmico.
Um traço característico e fundamental para a compreensão da cultura
guarani é a “palavra”. Para o Guarani a “palavra” tem uma grande
representação e na sua visão de mundo, este traço cultural capacita o Guarani a
qualquer diálogo. Na visão etnocêntrica da sociedade européia e principalmente
do missionário católico, este traço da cultura Guarani foi interpretada como
uma predisposição as questões espirituais e que esta “tolerância” estava mais
voltada ao caráter “primitivo” dos indígenas. Curt Nimundajú (1987, p. 14)
______________
18
Ver mais sobre este assunto: MONTOYA, Antonio Ruiz de. Conquista espiritual hecha por
los religiosos de la Compañia de Jesús e las provincias del Paraguay, Paraná, Uruguay y Tape.
Madrid (2. ed. Bilbao, 1892). Nueve Edición: Rosario, 1989.
103
esclarece: “[...] aunque naturalmente el guarani en lo intimo de seu ser, esté tan
convencido de la verdad de su religión como el cristiano más fervoroso, nunca
es intolerante”.
A preocupação, ao desenvolver esta análise, tem por objetivo a melhor
compreensão das relações sociais que se procederam no Paraguai, entre os
jesuítas, os guaranis e os conquistadores espanhóis. O entendimento
aprofundado dessas relações está entrelaçado na trama da instituição da
sociedade. Ao desvelar a importância da “palavra” para a cultura guarani, revela
aspectos significativos da formação social do Paraguai.
De acordo com Melia (1991, p. 23-30) “para o Guarani a palavra é
tudo. E tudo para eles é a palavra”. Esta afirmação na visão eurocêntrica podem
ser atribuídas a alguma influência da cultura ocidental, que tem sua matriz
filosófica em Platão. É sem dúvida a “palavra” a expressão mais constante pela
qual os guaranis desvelam o seu modo de ser, e se manifesta através de seus
mitos, de seus cantos e de seus ritos. Neste sentido, a visão de mundo guarani
tem a sua expressão máxima na palavra.
Porém Melia (1980) alerta que não é fácil sistematizar o vocabulário
para o Guarani, devido às várias subculturas19, cada uma com suas
características particulares. Há a necessidade de recorrer a textos particulares e
buscar o valor semântico em um contexto mais global, e verificar sua realidade
nas experiências de vida.
Partindo de uma análise da particularidade da cultura Guarani Cadogan
(1992, p. 33) descreve o mito “Mbyá – Guarani Ayvu rapyta (o fundamento da
linguagem humana)”, e possibilita uma melhor compreensão deste, em interrelação com o contexto mais global:
______________
19
Nesta análise cultura tem o sentido explicitado por Santos (1983) como uma dimensão do
processo social, não se limitando apenas a um conjunto de práticas e concepções, como por
exemplo, se poderia dizer da linguagem. Não é, portanto apenas uma parte da vida social como,
por exemplo, se poderia falar da religião. A cultura não é algo independente da vida social, algo
estranho com a realidade que existe. Partindo deste entendimento, a cultura diz respeito a todos
os aspectos da vida social, e não se pode dizer que ela existe em alguns contextos e não em
outros. Logo, a cultura é uma construção histórica, seja como dimensão do processo social, ou
seja como concepção. A cultura não é algo natural, não é uma decorrência de leis físicas ou
biológicas. Muito pelo contrário, a cultura é um produto coletivo da vida humana. Isso se aplica
não apenas à percepção da cultura, mas também a sua relevância, à importância que passa a ter.
Portanto, aplica-se ao conteúdo de cada cultura particular, produto da história de cada
sociedade.
104
El verdadero Padre Ñamandú, el primero de una pequeña porción
de su própria divinidad, de la sabiduría contenida en su própria
divindidad, y em virtude de su sabiduría creadora hizo que se
engendrasen llamas y tenue neblina. Habiéndose erguido,de la
sabiduría contenida em su própria divinidad y en virtud de su
sabiduría creadora, concebio el origem del lenguaje humano. De la
sabiduria contenida em su propria divinidad, y en virtud de su
sabedoria creadora, créo nuestro Padre el fundamento del lenguaje
humano e hizo que formara parte de sua propria divindad. Antes de
existir la tierra en medio de las tinieblas primigenias, antes de
tenerse conocímiento de las cosas creó aquello que sería el
fundamento del lenguaje humano, e hizo el Primer Padre
Ñanmandú que formara parte de su propia divindad [...].
Foram apresentadas apenas as duas primeiras estrofes do mito Mbyá –
Guarani Ayvu rapyta, que fora apresentado por Cadogan depois de ter escutado
e registrado etnograficamente. O desenvolvimento deste mito ratifica a
importância da palavra na cultura guarani, e possibilita uma melhor
compreensão do antagonismo provocado neste povo quando estes foram
subjugados pelos europeus. Melia (1991) afirma que estes versos, transcritos
por Cadogan, constituem uma das expressões mais importantes da religião
Guarani. O dom da palavra por parte dos padres “divinos” e a participação da
palavra por parte dos mortais, marca o que é e o que pode ser um Guarani. O
que podemos apreender destes estudos etnológicos sobre a cultura Guarani é
que em todas as instâncias críticas deste povo, como por exemplo, a concepção,
o nascimento, quando se recebe o nome, a iniciação, a paternidade, a
maternidade, como também na enfermidade, na vocação chamânica, morte e
“pós-morte”, esses momentos se definem em função de uma palavra única e
singular, que faz o se que diz, que em outra forma dá substância à pessoa. Toda
essa reflexão poderia parecer uma gratuita transpiração platônica ocidental para
o universo guarani. Porém existe uma farta documentação registrada por várias
fontes etnográficas, que descrevem este aspecto da cultura Guarani. Em síntese,
estes estudos etnográficos nos possibilitam entender que é sempre em função da
palavra inspirada que o Guarani cresce em sua personalidade, em seu prestígio
e até em poder político ou mesmo em poder “mágico” ou em ambos juntos, o
que é mais comum.
Melia (1991) assegura que a educação do Guarani é uma instrução da
palavra, pela palavra, porém não é educado para aprender e muito menos para
memorizar textos, mas sim para escutar a palavra que receberá do “alto”, e
105
geralmente através de sonhos. Portanto para Melia o Guarani busca a perfeição
de seu ser na perfeição de sua fala, sua valorização e seu prestígio entre os
membros de sua comunidade e entre as comunidades vizinhas, vêm na medida
pelo grau de perfeição e inclusive a quantidade de cantos e modos de dizer que
possui. Podemos ratificar pela análise de Melia que a cultura Guarani se
fundamentava na oralidade, uma sociedade fundamentada em códigos sociais
transmitidas por milhares de anos, utilizando-se apenas da linguagem falada,
que se defrontou a partir do século XVI com uma outra sociedade que se
fundamentava além da oralidade, também na linguagem escrita, cujos códigos
se expressavam em “leis” escritas. O seu próprio mito da criação estava
expresso na linguagem escrita.
Nesta acepção Meliá esclarece que na cultura Guarani a sabedoria
procede do desenvolvimento de sua palavra e esta por sua vez, da propriedade e
intensidade de sua inspiração. É fácil verificar como é essencial para o Guarani
a experiência propriamente religiosa, que nem todos conseguem no mesmo
grau, mas que todos de um modo ou de outro aspiram. Nesta direção Melia
(1991, p. 36) corrobora: “Em potencia, cada Guarani es un profeta – y un
poeta”. Manifestada no plano ritual e no plano cerimonial, a religião se
expressa também através de um discurso místico que em sua origem emerge do
modo de ser Guarani, onde as relações sociais estão entrelaçadas á sua
cosmovisão, numa prática social da reciprocidade. A compreensão desta prática
social da reciprocidade Guarani entrelaçada a prática social do conquistador
europeu em sua lógica mercantil, possibilitará abarcar a singularidade das
relações sociais do Paraguai colonial.
Na cultura Guarani, de acordo com Meliá (1991), a palavra original é
caracterizada pela palavra que conta os mitos, palavra que significa a
reciprocidade de saber dar esse grande dom que são as palavras. Para Meliá,
palavras ritualizadas e palavras profetizadas são formas de comunicação e
intercambio de mensagens.
106
Em 1914 o antropólogo Curt Nimuendaju20 transcreveu em idioma
Guarani o que denominou de: As lendas da criação e destruição do mundo
como fundamentos da religião dos Apapocúva – Guarani.
É uma tarefa difícil oferecer um resumo destes mitos, mas para uma
compreensão melhor do leitor é importante descrever a visão de mundo
Guarani, no sentido da apreensão de aspectos fundantes de sua cultura
indispensável para revelar as complexas relações sociais que se processaram na
Província do Paraguai.
Nimuendajú (1987) assevera que na mitologia Guarani a figura central
Ñande Ru Vusu – Nosso grande pai – veio primeiro e se deixou conhecer no
meio da escuridão originária, e em seu peito havia uma luz como o sol. Ele dá a
terra, seu princípio colocando-a sobre firme suporte. Esse grande pai é
“conhecedor das coisas” e encontra uma mulher, que o Guarani denominava de:
“Nuestra Madre”.
Os dois se casam, e “Nuestra Madre” fica grávida de gêmeos. Ñande
Ru Vusu (Nuestro Padre), enojado, abandonou “Nuestra Madre” na terra e saiu
de cena para voltar apenas no final, quando se faz presente na liturgia. A mãe
grávida se põe a caminhar em busca do marido, porém é devorada por tigres; os
gêmeos nascem, por conseguinte órfãos. Os gêmeos convivem primeiro na casa
dos tigres, mas eles se vingaram dos assassinos de sua mãe. O primeiro foi
denominado irmão maior e o segundo irmão menor, ambos saem para
caminhar. Eles tentam recompor a sua mãe a partir de seus ossos, porém não
conseguem, e a morte está definitivamente instalada na terra.
De acordo com Schaden (1976, p. 841) “são estes heróis que
‘Guaranizaram’ o aspecto do mundo, fizeram que o mundo fosse ‘Guarani’
tanto em sua natureza como na ordem social e cultural”.
Retomando ao mito da criação, estes “heróis” continuam a sua
caminhada, sempre em marcha, provocando e produzindo típicas situações da
cultura: dão nome às frutas, roubam o fogo dos corvos, encontram outros
semelhantes, inimigos e futuros cunhados. Por fim se encontram de novo com o
pai, mediante a dança ritual e ao som da maracá. O pai lhe deixou o que traz
______________
20
Ver mais sobre esse assunto: NIMUENDAJU, Curt. As lendas da criação e destruição do
mundo como fundamentos da religião Apapocúva – Guarani. São Paulo: Hucitec. Editora da
Universidade de São Paulo, 1987.
107
entre as mãos: seus atributos de xamã; e se esconde de novo. A terra está
ameaçada; a obscuridade com seus morcegos podem cair sobre todos e o tigre
azul os quer devorar. Entretanto, “Nuestro Padre”, fez a pessoa de Tupã, que ao
mover-se pelo céu provoca trovão e relâmpagos. Este discurso mítico expressa
a visão de mundo Guarani. E promulga traços de sua cultura e se manifesta
socialmente na dança, como um ritual que revela o encontro do Xamã com o
que este considera “Nuestro Padre” que lhes revela o caminho. Este caminho
conduz a casa de “Nuestra Madre” onde não falta fruta nem chicha para beber.
É a festa. Meliá (1991) esclarece que este mito dos gêmeos é comum a todo
Guarani, da costa Atlântica até a Cordilheira boliviana. Apesar de algumas
expressões que provavelmente registram preocupações mais modernas.
Outro aspecto importante da cultura Guarani está relacionado à sua
estreita ligação com a terra.
De acordo com Melia (1991), em estudos arqueológicos dos Guaranis,
sobretudo através pedaços de cerâmicas, localizadas em antigas aldeias,
oferecem algumas evidências para compreendermos o processo histórico
cultural dos Guaranis. Um desses aspectos explicitados por Meliá (1991, p. 64)
evidencia através destes estudos que “o Guarani é um povo cujo raio de ação
abarca uma grande geografia com migrações eventuais a regiões muito distantes
e com deslocamentos freqüentes dentro de uma mesma região”. Não são
propriamente nômades, mas, de acordo com Melia são colonos dinâmicos.
Melia (2004, p. 71) esclarece:
Los Guarani saben que el tekoa no es sólo lugar natural; también es
el techo. No es pura técnica agrícola; es mas apropiación tecnica de
um lugar por el conjunto de los que están unidos bajo el mísmo. El
tekoa viene a ser el espacio y las técnicas adaptadas a la natureleza
de los que comparten la misma unidad.
Os Guarani ocupam terras com características ecológicas constantes;
de fato, as terras mais aptas para o cultivo de: maiz, mandioca, milho, batata,
porongos e cabaças. Essas terras oferecem um horizonte ecológico bem
definido, cujo limites dificilmente são quebrados. Portanto, por estas
características pode se identificar uma “terra Guarani” e a práxis não desmente.
Os Guarani escolheram climas úmidos, com uma temperatura média de 18 a 28
graus, que se localizam perto de rios e lagoas, em lugares que não excedem aos
108
400 metros do nível do mar, habitando bosques e selvas típicas da região
subtropical. Evidentemente que no processo histórico estas características não
foram inflexíveis e imutáveis. Melia (1991) destaca que a boa terra para o
Guarani é tão real porque se fundamenta não na natureza mais sim no “ato
religioso” que é o seu princípio, e por esta razão ele a conserva.
A mitologia Guarani explicita a profunda ligação do Guarani com a
terra, como assevera Melia (1991 p. 68):
El fundamento de la tierra Guaraní acaba siendo de este modo, la
fiesta, donde se comparte la alegre bebida de la chicha: kawi, fruto
de la tierra y del trabajo de muchos, unidos em minga (mutirão):
potyrõ, donde también el hombre se hace palabra dívina y esa
palabra es compartida por todos. Donde hay una fiesta guaraní, ahí
esta en fin de cuentas el centro de la tierra y la tierra buena y
perfecta a la que se aspira.
Outro aspecto significativo da cultura Guarani é a linguagem dos
sonhos e visões. Ao descrever esta particularidade o leitor tem uma melhor
compreensão de como vai se expressar a construção da psique do índio
reduzido, em síntese dialética com os dogmas e os ritos do cristianismo imposto
pelos jesuítas. Como esclarece Marx (Apud Ianni, 1984, p. 146):
[...] A bem dizer, na história passada é um fato perfeitamente
empírico que, pela transformação de sua atividade em atividade
universal, os diversos indivíduos foram cada vez mais submetidos a
um poder que lhes é estranho (opressão que tomavam por uma
chicana daquilo que denomina o Espírito do Mundo), poder que se
tornou cada vez mais maciço e se revela, em última instância, como
mercado mundial.
Meliá (1991) afirma que assim como outros índios da família tupiguarani se guiam pelos sonhos, este conteúdo latente de sua psique emerge na
prática social ritualizada. O xamã na sociedade Guarani representa o modelo
ideal de pessoa, e tem nos sonhos uma de suas principais atividades; e são
guiados por estes sonhos.
O etnógrafo Curt Nimundajú (1987, p. 34) constatou este fenômeno e a
grande importância do sonho entre os Apapokúva da etnia Guarani:
[...] se refiere a las experiências del alma en el sueño, concuerdan
los Apapokúva con todos os demás indios que se trata de sucesos
109
reales, que pueden influir muy significativamente en el curso de
vida de las personas. Aunque de los sueños naturalmente no se
produzca ningun resultado inmediatamente palpable, ellos
representam experiencias de las cuales resultan en saber y un poder.
Quien sueña sabe y puede mucho más que el que no sueño por esto;
los payés cultivam ciertamente el soñar como una de las más
importantes fuentes de su saber y de su poder.
Estes elementos apresentados pela etnologia contemporânea – a
palavra, o sonho e a religião – são algumas categorias antropológicas altamente
pertinentes, quando se trata de analisar e compreender a produção social de uma
determinado grupo indígena. Porém muitas destas análises partem de um
referencial epistemológico sistêmico e funcional, cuja função da palavra, da
religião e do sonho seria a de manter a coesão social da sociedade analisada.
Outro grupo de etnólogos parte de referenciais estruturais, cuja estrutura
elementar permanece a-histórica, e a forma manifesta, o rito, o xamã, a festa, o
som da maraca – vem no sentido de expressar estas estruturas elementares que
permanecem latentes.
Muitas destas análises colocam as sociedades indígenas apartadas e
isoladas da totalidade. Como se estas sociedades fossem imunes às
interferências
externas.
Apresentam
estas
sociedades
hipostaziadas,
petrificadas. Sociedades sem história. Neste sentido o recurso que possibilita
lançar uma luz nas relações sociais produzidas a partir do processo de
dominação européia no Paraguai e consequentemente esclarecer as relações
econômicas e sociais a partir da conquista é a história. Pois nas análises
sistêmicas, funcional, estrutural deixam ou deixaram completamente de lado a
história, ou a consideraram uma coisa acessória, sem qualquer vínculo com a
marcha da humanidade. Marx (Apud Ianni, 1984, p. 147) traz a seguinte
contribuição:
Por isso história deve sempre ser escrita de acordo com uma norma
situada fora dela, a produção real da vida aparece como não sendo
histórica, enquanto o que é histórico aparece como separado da
vida ordinária, como extra supra-terrestre. A relação do homem
com a natureza é, assim excluída da história, o que gera a oposição
entre natureza e história. Consequentemente, essa concepção não
pôde ver na história senão os grandes acontecimentos políticos e as
lutas religiosas e, afinal de contas teóricas, e foi constrangida a
partilhar especialmente, em cada época, supõe-se, por exemplo, que
seja determinada por motivos puramente “políticos” ou
“religiosas”, embora “política” e “religião” não sejam senão formas
110
de seus motivos reais: seu historiador aceita essa opinião. A
“imaginação” ou a “representação”, que esses homens
determinados tem de si de sua prática real, transforma-se na única
força determinante e ativa, que domina e determina a sua prática.
Portanto, a palavra, a terra, o sonho e a religião Guarani não se
explicam por si só, são elementos que possibilitam entender as teias de relações
sociais da sociedade paraguaia do período colonial. Estes elementos
possibilitam a compreensão de como se deu a síntese dialética da cultura
Guarani e européia. E consequentemente patentear como a instituição do
capitalismo se institui subsumindo todas as antigas formas de produção. Como
por exemplo, o trabalho servil nas índias ocidentais, o trabalho escravo no sul
dos Estados Unidos e no Brasil, assim como também as outras formas de
economia como as do Guarani, fundamentada na reciprocidade.
Partindo de questões de caráter universal e com a utilização de
recursos históricos e antropológicos, conduzem a uma reflexão filosófica mais
geral.
As análises arroladas neste capítulo não concernem somente ao
patrimônio de uma sociedade particular (Guarani). Mas parte de um principio
universalizante na ótica reconhecida por Meliá (2004, p. 11) “[...] hay que
poner de reliéve y revelar lo que desde los orígenes de la humanidad permanece
intangible y primordial en todas las comunidad del mundo: las matrices de los
valores humanos”. Porém estes valores não estão petricados e estanques. São
processos históricos, portanto, o mundo sensível não é um objeto petrificado e
muito menos um objeto dado, diretamente por toda a eternidade e sempre
semelhante a si mesmo. Porém é produto da indústria do estado da sociedade
(Guarani). È um produto histórico, resultado da atividade de toda série de
gerações. Na visão de Marx (Apud Ianni, 1984, p. 151) “e em cada uma iça
sobre os ombros da precedente, aperfeiçoa sua indústria e seu comércio, e
modifica seu regime social, em função da transformação das necessidades”.
O esforço de captação das linhas gerais da discussão acerca da cultura
Guarani, em seus traços mais característicos como a linguagem, a religião e o
sonho, decorre no sentido de pensarmos em cultura como dimensão do processo
social. Podemos também revelar a cultura numa sociedade “primitiva”, em
111
cultura das sociedades indígenas paraguaias, por exemplo. Santos (1986, p. 46)
esclarece que:
Mas notem também que nem cultura é a mesma coisa lá e aqui,
nem seu significado é igual em ambos os casos. Apenas nesse
sentido de serem a dimensão do processo é que se pode falar
igualmente em cultura. Como se tratam de sociedades com
características que as diferenciam bastante, os conteúdos do que é
cultura, a dinâmica da cultura, a importância da cultura – tudo isso
deve variar bastante.
As considerações expostas desvendam que as sociedades indígenas
mantinham uma interação crescente com as diversas etnias que habitavam esta
região, anterior ao período colombiano. Após a conquista manteve relações com
a sociedade colonial e, posteriormente com a sociedade nacional. Em todos
estes períodos históricos participaram de processos sociais comuns, partilharam
de uma mesma história. Nesse processo suas culturas mudam de conteúdo e de
significado. Estas podem se expressar como traços de resistência a sociedade
que as quer subjugar, tomar suas terras e colocá-las sob controle. Porém é
inevitável que incorporem novos conhecimentos para que possam melhor
resistir, que as suas culturas se transformem para que as sociedades sobrevivam.
Assim analisar a cultura Guarani implica em descortinar o processo social
concreto: as lendas e crenças, a linguagem, o sonho, as festas ou jogos,
costumes e tradições. Esses fenômenos não dizem nada por si mesmos, como
esclarece Santos (1986 p. 47): “eles apenas dizem enquanto parte de uma
cultura, a qual não pode ser entendida sem referencia à realidade social que faz
parte, a história de sua sociedade”. A idéia que tem a centralidade desta análise
é a de processo, pois é comum em diversos campos teóricos que cultura
Guarani seja pensada como algo estático, parado, petrificado.
Portanto, nada do que pertence à cultura pode ser estanque, porque a
ela se insere em uma realidade onde a mudança é um aspecto fundamental. A
visão exposta é antagônica á visão dominante que apresenta a cultura Guarani
como se fosse um produto, uma coisa com começo, meio e fim, com
características definidas e um ponto final. Em muitos casos o etnólogo extrai da
experiência histórica do povo Guarani produtos, estilos, formas, mitos e
constrói-se com isso um modelo de cultura. Essas construções podem servir
112
para fins políticos, como, por exemplo, tornar ilustre a imagem de uma potência
dominadora.
Ao mesmo tempo, é comum que os interesses dominantes de uma
sociedade expressem uma definição de cultura dessa sociedade que seja de seu
agrado. Vale a pena ressaltar que nem todos esses modelos se esgotam nesses
fins. Nesta análise, a cultura Guarani é a dimensão da sociedade que inclui todo
o conhecimento num sentido ampliado e todas as maneiras como esse
conhecimento é expresso. Logo, é uma dimensão dinâmica, criadora, ela mesma
em processo, uma dimensão fundamental das sociedades contemporâneas.
A preocupação em descrever traços da cultura Guarani e a
compreensão da síntese por incorporação com a cultura do conquistador
europeu, permite efetuar a síntese dialética dos aspectos objetivos e subjetivos
que teceram a trama do tecido social das reduções jesuíticas da Província do
Paraguai. A aproximação em relação aos aspectos culturais, sociais e
antropológicos da etnia Guarani propicia uma melhor compreensão das relações
sociais empreendidas entre jesuítas, Guarani e encomenderos na Província do
Paraguai.
2.3 JESUÍTAS, GUARANIS E ENCOMENDEROS NA PROVÍNCIA DO
PARAGUAI.
Benitez (1981) informa que os primeiros jesuítas que chegaram ao
Paraguai em 1588 vieram do Brasil, a pedido do Bispo Alonso da Guerra. Eram
os seguintes jesuítas: P. Leonardo Armini, Juan Saloni, Tomás Fields, Manuel
Ortega e Esteban Grao, que se juntaram aos Padres Francisco de Angulo e
Marcial de Lorenzana, vindos do Peru. Astrain (1996) esclarece que estes
missionários iniciaram a sua pregação entre os indígenas e brancos em
Assunção, no Guairá, Villarica, Ciudad Real, chegando até Xerez na Província
do Itatim. Desde a chegada não faltou financiamento aos padres por parte dos
espanhóis. O padre Ortega recebeu as primeiras doações de terras em 1594,
efetivadas pelo tenente General do Guairá Rui Diaz Gusman, terras estas na
113
província de Villarica21. Os jesuítas tomaram posse dessas terras em 20 de julho
de 1595 na presença do Alcaide Ordinário e o Escrivão da Vila. A Companhia
de Jesus não foi a primeira ordem religiosa a atuar no Paraguai, antecederam a
eles, os clérigos seculares e membros de outras ordens religiosas. Benitez
(1981, p. 17-18) esclarece:
Debe recordase que desde la fundación mísma de la Asunción, los
religiosos trabajaron hombro a hombro con los conquístadores en la
tarea de incorporación de la problación nativa a la vida civilizada.
Fundación de “reducciones” y pueblos, catequización, organización
de la familia de acuerdo a los principíos de la religión católica,
constituyen apenas un esquema de la grande y sacrificada labor de
mercedários, jerónimos, dominicos e franciscanos, y jesuítas luego,
en los arduos dias iniciales de la conquista y colonización.
Benitez (1981) assevera que em 1604 foi criada a Província Jesuítica
do Paraguai e desde então cresceu a influência dos missionários desta ordem no
Paraguai. Prosperava a ação catequética e missionária, mas a extensão da
Província causava graves entraves, dificultando o seu governo e a manutenção
do trabalho, pois mesmo com o apoio do governo local, as longas distâncias e a
dificuldade de locomoção criavam grande empecilho. Astrain (1996, p. 13)
corrobora:
Antes de entrar em la relación de los primeros pasos que dieron los
jesuítas em la vastas regiones por el Paraná, bueno será presentar
algumas nociones geográficas, acerca del territorio que abarcaba lo
que llamamos la provincia jesuítica del Paraguay. Al oir esta
palabra, se imaginarán algunos lectores modernos, que la província
de la antigua Campañia estaba reducida a los limites de la actual
República que lheva ese nombre. [...] la gobernación del Paraguay
comprendia los inmensos territorios que hoy forman las Repúblicas
de la Argentina, del Paraguay, del Uruguay y as provincias
merindionales del Brasil, ocudas entonces por los españoles.
Primeiramente os jesuítas organizaram colégios para os filhos dos
conquistadores, partiram também para missões ambulantes pelo interior do
Paraguai, em trilhas já abertas pelos franciscanos Francisco de Solano e Luis
Bõlanos, passando a cuidar dos neófitos cristãos indígenas, principalmente os
______________
21
Ver mais sobre este assunto: Diaz de Guzman, Ruy. Merced de Tierras hechas al Colégio de
La Companhia de Jesus para la fundacion de un Colégio... publicado In: Cortesão, J. Org.
Jesuítas e bandeirantes no Guairá (1549-1640). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951
(Manuscritos da Coleção de Angelis, V. 1) p. 10-90.
114
da etnia Guarani que tinha uma pequena iniciação do cristianismo. Os jesuítas
se ocuparam de pequenos grupos de “fiéis” sem pastor. Charlevoix (1747, p.
180) confirma “que durante alguns meses, os padres Ortega e Fields
percorreram solitariamente as montanhas, florestas e povoados da província do
Guairá”. E quando voltaram a Assunção informaram aos seus superiores que
tinham observado aproximadamente duzentos mil Guaranis. Astrain (1996, p.
21-22) esclarece:
Imposible no es explicar uno por uno los sucesos particulares y las
aventuras apostólicas que fueran corriendo los pp. Ortega e Fields
entre los pueblos del Paraguay. Indios buscados entre los bosques,
caminos atravesados en medio de dificultades horribles, hambre y
sed en jornadas por terrenos abandonados, trabajo molesto en la
instrucción de indios rudos, resistencia en pecadores obstinados,
todos estos pormenores que lheva consigo la vida apostólica, sobre
todo en pueblos y países no muy cultivados por los ministros
evangélicos, fueron experimentando en aquellos primeiros años los
pp Ortega e Fields en la parte central y oriental de la actual
República del Paraguay.22
Alguns fatores dificultavam a atuação dos primeiros jesuítas no
Paraguai, primeiramente a dificuldade de locomoção por esse extenso território,
a segunda era o desconhecimento da língua indígena e o terceiro aspecto era a
instituição da encomenda. Neste primeiro momento não havia ainda se
estabelecido o confronto entre os religiosos e os “encomenderos”, pois em
Assunção a elite local tratava com respeito os padres e rapidamente já lhes
havia edificado uma casa, um colégio e uma bela igreja (1595). A missão no
Paraguai, na visão dos colonos neste primeiro momento, parecia estar de acordo
com os seus interesses. Com os inacianos usando sua influência para apaziguar
os índios das vizinhanças, seguindo o modelo das missões peruanas, isto é, de
pleno acordo com a lógica do mundo colonial.
De acordo com Astrain (1996) a fundação da província jesuítica do
Paraguai foi negociada pelo Padre Diego de Torres em Madri e Roma, missão
atribuída pela congregação provincial do Peru através do padre visitador
Esteban Paez. A negociação ocorria desde o princípio do ano de 1602. A
proposta foi levada para o preposto geral Cláudio Aquaviva que decidiu dividir
______________
22
O atual Paraguai não deve ser confundido com o que os jesuítas chamam de “Província” do
Paraguai, ou paraguaia. Sabe-se que a Companhia de Jesus é dividida em províncias, elas
próprias reagrupadas, em “assistência” – Itália, Alemanha, etc.
115
a Província do Peru, formando ao norte e ao sul duas vice – províncias. A
primeira foi denominada de Novo Reino de Granada (atual Colômbia) com a
qual se juntaria o colégio de Quito, e a segunda foi intitulada de Santa Cruz de
La Sierra (atual Bolívia) por se localizar mais ao sul da província do Peru.
Como esclarece Astrain (1996 p. 33): “[...] empezadas en las regiones del
Tucuman. al principio admitió el P. Aquaviva este plan trazado en el Perú, y
despachó al Padre Torres con la respuestas de que se ejecutase aquella
división”.
Ao mesmo tempo o Padre Aquaviva concedeu ao Padre Torres a
disponibilidade para levar consigo para o Peru, trinta e cinco missionários que
foram recrutados das províncias da Itália e da Espanha; posteriormente estendeu
este número para quarenta e cinco. Portanto, a fundação da Província Jesuítica
do Paraguai como conseqüência da cisão da Província do Peru compreendia
mais ou menos os territórios atuais da Argentina, do Uruguai, do Paraguai do
Rio Grande do Sul (Brasil), da Bolívia oriental e inicialmente o Chile. A
maioria das obras consagrada aos jesuítas do Paraguai diz respeito às missões
Guaranis, situadas na atual República do Paraguai, e também na Província
Argentina de Míssiones e nos territórios meridional do Brasil. Embora os
Guaranis seja o tema central desta análise, não há motivo para limitar o estudo
das relações sociais, econômicas e políticas em relação a outros grupos étnicos.
Pelo contrário ao recolocá-los inseridos na totalidade das relações da Província
do Paraguai, teremos a oportunidade de captar as razões e a práxis missionária
entre os Guaranis.
Gadelha (1984) afirma que em 1607 o provincial da Companhia de
Jesus no Paraguai Diego Torres regressou do Peru trazendo consigo doze
missionários. E em 1608 se reuniu no Chile a primeira congregação provincial,
que discutiu as diretrizes básicas de ação a ser adotada pela Companhia na
província. A retórica jesuítica desde o primeiro momento definia claramente os
seus objetivos: a conquista do território da província, catequizar os índios e
“salvar suas almas”. Gadelha (1984, p. 193) corrobora: “Não menos prejudicial
á obra da conversão dos índios, era a instituição da ‘encomienda’ e do serviço
pessoal”. Sobre o tratamento que os índios recebiam dos encomenderos
escrevia Torres (Apud Gadelha, 1984, p.193):
116
Es general y comum en tres gouernaciones el seriu23 personal que
los españoles encomederos y vezinos (que llaman) tienen de los
yndios que es seguirse dellos y de sus mugeres y hijos como de
esclavos sin que ellos tengã cosa ppia y algunas vezes apartando los
maridos de las mugeres y mui de hordin los hijos de los padres y lo
que a los mas les dan es algunas pocas tierras [g] de las muchas que
les tienen usurpadas en que hagan sus pobres sementerillas y a
malas penas les dan tiempo para ello y a tros tienen sus cassas y les
dan nas muy limitadas raciones de maiz o trigo, y rraras ueces
alguna carne y un misarable uestidillo [..].
No território da província do Paraguai os indígenas, após um século da
conquista e da colonização, estavam quase que totalmente subjugados. Se no
primeiro momento houve uma feroz resistência, neste período era domínio, que
se dava sob vários aspectos. O regime da “encomienda” dizimou milhares de
indígenas no trabalho das lavouras, na extração da erva-mate e na criação de
gado. Os indígenas “encomendados” tinham uma vida miserável, recebendo um
tratamento pior que a de “escravos”, provocando a destruição de suas famílias,
a fome e os maus tratos. As fugas eram constantes e a redução da média de vida
era a expressão prática destes cem anos de dominação espanhola. Os indígenas
buscavam refúgio nas florestas no interior da província em lugares inacessíveis
e distantes dos brancos, e continuavam sendo perseguidos pelos espanhóis e
pelas bandeiras paulistas. A institucionalização da “encomienda” fez da
província do Paraguai um campo de caça ao índio.
Simard (2004) esclarece que a violência está na origem da relação
colonial.
Seja
pelas
armas
quanto
pelo
constrangimento,
foi
pela
desestruturação dos quadros sociais existentes que a potência espanhola pode se
instalar. Mais que a colaboração das elites cacicais, foi o seu enfraquecimento
no principio, e, posteriormente, sua inserção na máquina administrativa e nos
mecanismos econômicos, que permitiram ao sistema manter-se e reproduzir.
Mas, se alguns desses elementos de articulação se pode vislumbrar em outras
colonizações, os espaços de mobilidade, as margens de manobras deixadas, das
quais se aproveitaram os índios, numa palavra, o jogo que as engrenagens
coloniais comportavam, eram particularmente importantes na América
espanhola. Esta resistência ao domínio se deu também pela guerra, pois os
______________
23
Gadelha obtém essas informações em: Astrain, Antonio (sj) – História de la Compañia de
Jésus em la asistencia de España. Madrid: Administración de La Rázon y Fé, 1913, 4 v., t4.
117
índios guaicuru24 atacavam os povoados dificultando também o comércio entre
o Paraguai e o Peru. Os índios paiaguás mantinham uma resistência acirrada
em um outro corredor de transporte – o rio Paraguai e seus afluentes
dificultando a navegação e a circulação de mercadorias.
Neste processo a evangelização e a colonização do imaginário foram
as missões incumbidas à igreja. Conter a revolta armada buscando pacificar
pela catequese, o controle dos ritos de passagem pela obrigação do batismo, do
casamento e dos funerais religiosos, a luta contra a poligamia, a imposição de
novos valores morais, a integração social das camadas mais humildes são
aspectos desse processo de ocidentalização que tem a sua gênese neste contexto
social histórico do Paraguai.
É difícil falar da Igreja de maneira uniforme, abstraindo a diversidade
de atitudes, das políticas e das estratégias das ordens religiosas encarregadas da
cristianização. Os jesuítas pela sua experiência acumulada durante longos anos
de ação pelos quatros cantos do mundo, aliada a boa formação intelectual e a
constante troca de informação com outros colégios em várias partes do mundo,
desenvolveram seu empreendimento com uma configuração singular a realidade
social, histórica e cultural do Paraguai. Partindo da práxis jesuítica,
comprovaram que o grande entrave para o seu empreendimento – catequese,
educação e a instituição dos códigos sociais do mundo ocidental – estava
relacionada com a “encomienda”. Estas análises da conjuntura política do
Paraguai eram repassadas ao preposto geral em Roma, que levava estas
informações ao Rei da Espanha, e a indagação era: como converter em
“cristãos” e tornar “civilizados” os indígenas escravizados?
O Estado espanhol buscava de toda maneira defender os seus
interesses estratégicos, pois a colonização do continente americano se inscreve
num processo globalizado e de integração de populações que, até aquele
momento, haviam vivido isoladas do velho mundo. Paradoxalmente no “Novo
Mundo” o Estado espanhol se utilizou de uma instituição arcaica, o tributo,
facilitando a “integração” econômica dos índios. Essa forma de imposto era
______________
24
Os Guaicurus eram os índios “cavaleiros”, pois nesta região do Rio da Prata, o conquistador
Pedro de Mendonza levou alguns cavalos em 1536. Por ocasião da segunda fundação de Buenos
Aires, em 1580, Juan Garay, encontrou milhares de cavalos selvagens que percorriam a Planície
circundante. Os índios, que haviam temido aqueles animais, bem depressa compreenderam a
utilidade que eles podiam ter e tornaram-se cavaleiros muito hábeis.
118
diferente de todas as outras taxas, pois era cobrada sobre uma categoria da
população singularizada por suas origens. Bernand (2004, p. 168) esclarece que
justificação era claramente exposta pela legislação: “Porque é coisa justa que os
índios, que estariam pacificados e reduzidos á nossa obediência e vassalidade,
nos sirvam e nos devam tributos, a nós enquanto suseranos, como o fazem
todos os súditos vassalos25”.
Portanto, era também de interesse do Estado espanhol que este grande
contingente pagasse seus tributos a Coroa, pois a exploração da “encomienda”
havia dizimado uma grande quantidade de silvícolas. Neste sentido emerge na
metrópole outra indagação: como desenvolver economicamente o cone-sul da
América Latina e fazer com que esta se torne lucrativa e os indígenas possam
pagar seus tributos?
Diante desse quadro a articulação jesuítica junto ao Rei da Espanha
passou a fazer sentido, pois entrelaçava os interesses da Companhia de Jesus e
do Estado Espanhol. E os jesuítas possuíam grande credibilidade, pois os seus
empreendimentos em diversas partes do mundo eram extremamente lucrativos.
Parece, numa primeira aproximação, que o segredo é muito simples: a
província do Paraguai precisava ser lucrativa. Logo, a Companhia de Jesus
começou a montar a sua estrutura. De acordo com Gadelha (1980, p. 94)
“dispunha neste período a Província Jesuítica do Paraguai de cinqüenta e sete
membros, entre sacerdotes e irmãos’. Este pessoal foi repartido pelas casas e
missões que a Companhia dispunha. E foram assim distribuídos: treze
sacerdotes no Chile, sete em Tucuman e nove no Paraguai. Nesta contextura já
estavam em funcionamento os colégios de Santiago (Chile) e o de Assunção
(Paraguai), possuindo a Companhia de Jesus outras duas residências em
Santiago de Tucuman e em Córdoba, as duas últimas cidades pertencentes a
governação do Tucuman. Outra ação estratégica da Companhia foi a construção
de uma casa em Buenos Aires.
Esta cidade por ser uma região portuária, era a porta de entrada de
missionários e de mercadorias que vinham do Brasil e da Europa. A construção
de uma casa jesuíta em Buenos Aires desvenda a perfeita consciência, por parte
da Companhia, de assegurar uma base sólida no campo material para o
______________
25
Ver mais sobre este assunto: Leyes de Índias, livro VI, Cap. V, lei I.
119
desenvolvimento de sua empresa na província do Paraguai. Como revela Seep
(1980 p. 67): “[...] no dia 17 de janeiro, dia de Santo Antônio entramos a toda à
vela em Buenos Aires. [...] Nossos navios estavam carregados com pelo menos,
doze milhões de toda espécie de mercadorias, como ferro, cobre, linho e, até
madeira”.
Buenos Aires seria um importante entreposto comercial e o ponto de
partida e de chegada utilizado pelos padres em sua relação com a Europa.
Gadelha (1980, p. 195) afirma que “era por Buenos Aires que se enviavam
navios com os seus procuradores, e recebiam mercadorias e auxílios da
Europa”. Seep (1980) comprova que a casa de Buenos Aires seria o ponto
obrigatório e de apoio ao conjunto das missões do Paraguai. A Companhia de
Jesus se tornou um fator importante na vida econômica da cidade. Os jesuítas
organizaram as suas estruturas e partiram para a ação de forma organizada,
atuando em duas frentes.
A primeira seria a consolidação e a ampliação desta base material. E na
segunda frente, a constituição de uma superestrutura jurídica, política e
educacional no sentido de legitimar a sua visão de mundo, fundamentados na
síntese de preceitos cristãos, no campo moral e religioso, e o desenvolvimento
das instituições do capitalismo. Pois era incongruente aos preceitos mercantis a
não existência de consumidores, devido à miséria e a pobreza que assolava a
maioria da população do Paraguai colonial. A elite local que no primeiro
momento via com bons olhos e apoiava a ação inaciana pelo seu aspecto
“civilizador” de vestir os índios, ensiná-los o catecismo, introduzi-los ao canto
gregoriano e na música, ensinando-lhes os valores da cultura ocidental,
prontamente se voltou contra jesuítas, pois no centro da política empreendida
por eles estava o fim da “encomienda” e a defesa do trabalho assalariado.
A elite percebeu que os jesuítas tinham um projeto próprio que
rivalizava com os seus interesses. Logo, jesuítas e Guaranis se uniram para
fazer frente aos encomenderos, a partir deste momento se acirraram as
contradições entre estes grupos, que culminaram em quase dois séculos de
profundo antagonismo.
No início, os encomenderos haviam apoiado a idéia de reduzir os
índios em missões e “pueblos”, pois isso lhes facilitaria a obtenção da força de
trabalho necessária. Para o Estado Espanhol a redução era um instrumento
120
estratégico na cobrança dos tributos, pois com o declínio demográfico o Estado
perdia receitas. Esses desequilíbrios entre a taxação dos tributos e o declínio
populacional permaneceram durante toda época colonial, apesar de alguns
esforços de recomposição dos encargos fiscais. Um desses esforços foi o
modelo de índio reduzido.
Bernand (2004, p. 168) especifica que “o índio tributário era um adulto
entre dezoito e cinqüenta anos de idade, sendo que os caciques e suas famílias
eram isentos de tributos”. O tributo, num primeiro momento foi cobrado em
espécie: erva-mate, produtos agrícolas, animais etc. Mas, já na segunda metade
do século XVI, passou a ser exigido em dinheiro. Na singularidade Paraguaia o
pagamento do tributo em dinheiro foi assim descrito por Astrain (1996 p.198):
Una pesada tribulación vino afligir a los jesuítas del Paraguay a
mediados del siglo XVII, y fue la forma de pagar el tributo que se
les impuso a los índios en 1658. Después de largas discusiones que
seria prolijo, referir, por fin se había precisado el tributo que debían
pagar los indios Paraguayos y esto se habia hecho a petición de los
mismos Padres de la Compañia.
De acordo com Quevedo (2000, p. 71) “o modelo adotado foi as
reduções que seria a concentração de índios em pequenos povoados para
convertê-los à fé católica reformada, conforme estipulado pelo Concílio de
Trento (1545-1563)”. Foi nesse contexto da exploração da terra e da força de
trabalho indígena que o padre Diego de Torres Bollo fundou em 1607 a
província jesuítica do Paraguai. Ação articulada com o governador
Hernandarias, na busca da “conquista espiritual” e material dos Guaranis. As
reduções emergem como uma síntese dialética que marcam a transição da
sociedade tribal à sociedade moderna do Estado absoluto.
Gadelha (1980, p. 195) descreve os objetivos das primeiras reduções:
[...] Os objetivosa atingir através da fundação das três missões estão
claramente indicados [...]. A primeira missão em terras do Guairá e
Tibajiba tinha por finalidade impedir a fuga dos índios motivados
pela prestação obrigatória aos espanhóis, do detestado “serviço
pessoal”. [...] A segunda missão, entre os índios Paraná, era
considerada como sendo de suma importância: “porque estos indios
121
Paranaes impediam la nauegación, y comercio que ay por este rio a
todas las ciudades”.26
A terceira missão de acordo com Gadelha (1980) que tem como fonte
o Padre Diego Torres era reduzir e aldear os índios guaicurus. As missões eram,
portanto essenciais aos interesses dos colonos espanhóis. Principalmente a
missão dos guaicurus que era estratégica para a manutenção do comércio entre
Assunção e as demais regiões. A dificuldade imposta pelos ataques indígenas
dificultava esta ligação isolando a região do Paraguai e conseqüentemente
impedindo as relações econômicas com o Alto-Peru, Rio da Plata e Tucuman.
Porém as tentativas de reduzir os guaicurus foram inúteis, como
esclarece Astrain (1996 p. 75): “Bien se esforzaron los jesuítas em ganar a los
gaycurus, pero fue imposible conseguir nada de provecho”. A partir dessas
considerações, torna-se evidente a necessidade de redirecionar a discussão que
alguns autores apresentam sobre o processo de catequese que estabelece o
caráter “heróico” dos padres da Companhia de Jesus. E que estes se
embrenhavam sozinho pelas matas subtropicais da América espanhola e sem
nenhum outro propósito além de “salvar as almas” dos “selvagens”. Um dos
autores que apresenta esta visão é Haubert (1990), afirmando que em 1610
pouco ao sul de Assunção, hoje capital do Paraguai, dois jesuítas despojados de
tudo conseguem reunir algumas centenas de “selvagens” guaranis numa aldeia
missionária. Haubert (1990, p 21) completa a sua apologia: “Os polemistas
católicos concordam em que tendo encontrado nas florestas americanas almas
ainda virgens de toda a escória da civilização, os jesuítas puderam, apenas pela
virtude dos Evangelhos, fazer dos guaranis ‘os mais puros e felizes dos
homens’”.
Haubert (1990) não demonstra que o projeto de reduzir os índios
guaranis não era um projeto individual e isolado de apenas dois jesuítas. Mais
sim era um projeto do Estado Espanhol em aliança com a Companhia de Jesus
na figura de seu preposto geral Cláudio Aquaviva. O projeto contava com o
apoio das autoridades locais na figura do governador Hernandarias e do
provincial da Companhia de Jesus no Paraguai Diego de Torres. Pois era do
entendimento geral que caberia aos jesuítas apaziguar os indígenas e reduzi-los,
______________
26
Ver mais em: Torres, Diego de (s.j)- “Segunda Carta, Del.P.Diego deTorres (6juniode1610).
In:Ravigani,Emilio(org).Iglezia.Cartas annuas de la Provincia Del Paraguay.p41-48.
122
assegurando assim, força de trabalho para os colonos e tributo para o Estado
Espanhol.
No primeiro momento a Companhia de Jesus incorporou este papel de
“civilizador” e por um curto período conseguiu conciliar os interesses das
diversas frações da classe dominante local. Porém, o processo de instalação das
reduções gerou as contradições entre jesuítas e “encomenderos” (elite local),
que vai se materializar em dois projetos distintos. Dos colonos que lutariam
com todas as armas para manter os seus privilégios na exploração da força de
trabalho indígena sobre a sua hegemonia. E, por outro lado, o projeto jesuíta
que através de uma forte articulação política conseguiu o monopólio sobre as
aldeias reduzidas e através de leis específicas, que garantiam a isenção por dez
anos de pagamentos de impostos – que era cobrado pelo trabalho pessoal,
consequentemente conquista a hegemonia do corpo e da alma dos indígenas
reduzidos.
A carta magna expedida pelo Rei da Espanha foi fundamental para a
estratégia jesuítica. Este fato se deu em 1610 e foi comprovado pelo Provincial
da Companhia de Jesus no Paraguai, Diego de Torres apud Gadelha (1980 p.
196):
Ilegado yo este puerto de Buenos Aires a visitar esta casa y el
nuevo gouernador que es muy afecto a la Companhia halle bien
acaso outra cédula y carta de su magª en la carta manda que bayan
p. es a las prou.as de guayra, y que los trae el p.e mexia que se
apliquem ([ocho]) (6) para esta mision y que se les prouea de lo
necesario. Y en la cédula ordena, que todos los indios que se
convirtieren por el evangelio se pongan em su Real corona y por
diez años no paguem cosa alguna, y prouen a los religiosos de lo
necesario a su costo y por este respecto há mandado el gouernador
que las dichas tres misiones se prouean de ornamentos y campanas,
y a cada dos p.es
se den trecientos pesos para su vestuario y
sustento y se nos ha começado a pagar.
Logo, o projeto dos jesuítas avança com o apoio da Coroa espanhola,
bastava agora reduzir os índios, convertê-los ao cristianismo, conseqüentemente
os indígenas também se beneficiaram deste processo, pois ficavam isentos do
pagamento do tributo. Esta Carta Magna representava uma derrota no campo
político aos encomenderos, passando o monopólio da força de trabalho indígena
para outras mãos. Esta estratégia já estava amadurecida há algum tempo, pois o
provincial das missões jesuítas no Paraguai Diego de Torres, já havia abolido o
123
serviço pessoal nos Colégios e nas propriedades jesuíticas27, e as medidas
haviam sido ordenadas pelo proposto geral da Companhia Cláudio Aquaviva.
Neste sentido fica evidente que desde a sua fundação a Companhia de
Jesus usava de seu prestígio político junto aos reis e ao papa, buscando obter
vantagens para sua ação econômica, catequética e missionária. E na
singularidade Paraguaia não foi diferente. Os jesuítas ao decodificar o processo
de mudança profunda nas relações sociais provocadas pelo procedimento de
acumulação primitiva. Com o desenvolvimento das forças produtivas,
buscavam se integrar nesta ação, incorporando em suas práticas os novos
códigos sociais 28 que emergem em instituições jurídicas, que davam
“legalidade” aos seus atos. Um exemplo elucidativo desta nova configuração
estatal se expressa nas Leis das Índias e na Carta Régia. A mesma dificuldade,
no entanto, encontrava o vice-rei em obrigar os desocupados e mendigos
brancos a trabalhar.
O Peru carecia de negros que substituíssem a força de trabalho
indígena e, em 1604, a Real Audiência chegou à mesma conclusão, que era
impossível por em prática o conteúdo da Carta Magna sem causar a falência
total do Vice-Reino do Peru.
No ano de 1606, o Vice-Reino do Peru sob forte influência dos
jesuítas, esteve a ponto de abolir o serviço pessoal, porém por uma fatalidade o
Vice-Rei faleceu, e o seu sucessor, o Marquês de Montesclaro, agiria com
cautela e em 1608 não demonstrou intenção de abolir o serviço pessoal. A lei
existia, porém a conjuntura política e econômica inviabilizava a sua execução.
Foi neste contexto desfavorável à proposta de abolição do serviço pessoal que o
provincial da Companhia de Jesus Diego de Torres decidiu colocar em prática a
Carta Régia que abolia o serviço pessoal nos colégios e nas propriedades da
Companhia.
______________
27
Ver mais sobre este assunto: Chaunu, P. A América e as Américas. Lisboa – Rio de Janeiro:
Cosmos, 1969. P. 100-102.
28
A Carta Régia de 24 de novembro de 1601 no Vice-Reino do Peru demonstra claramente a
dificuldade em se adaptar a realidade a uma lei. Aparentemente a legislação resolvia o problema
da força de trabalho, pois o Rei compelia e dava instruções às autoridades coloniais que
impulsionasse os indígenas no sentido de alugarem seus serviços em praça pública, em troca de
salários e alimentação. Quanto aos “yaconos”, eles eram considerados “livres” e não poderiam,
sob o pretexto de não possuir aldeias ou estarem desenraizados de suas terras, de forma alguma
serem vendidos junto com a terra.
124
Logo, todas as informações colhidas tendem a reforçar a influência da
Companhia que buscava articular junto à metrópole a imposição do fim do
serviço pessoal. Um exemplo elucidativo sobre este processo fica manifesto
quando o preposto geral da Companhia escreveu de Roma ao provincial do
Paraguai Diego de Torres informando a respeito da nomeação do novo
governador do Paraguai (1611) Diego Martin Negron, que era favorável às
posições políticas da Companhia. Torres apud Gadelha (1980, p. 198-199)
descrevem o conteúdo desta carta:
Há uenido a este Gouierno por G.or um Caballero muy christiano, y
afecto a la Comp.a y aunque es gran soldado há escripto a su
Magestad que no trate de enuiar otros soldados para las conquistas
de ynfieles que padres de la Companhia, ni hazer guerra con otras
armas, q con el Sancto Euangelio, y cierto no ay outro camino ni
mas seguro, ni mas breue. Há dado tambien trecientos y cinqüenta
patacones – para cada mission por una cédula de su Magestad con q
se há suplido algo de la mucha necessidad.
A carta também informava a chegada do visitador real D. Francisco de
Alfaro, enviado pelo Estado Espanhol com a instrução de visitar o Paraguai e
Tucuman, no sentido de buscar uma solução para os problemas do “serviço
pessoal”. E buscar uma saída negociada para o conflito instalado entre os
colonos e os jesuítas. A perspectiva dos jesuítas e do Estado Espanhol era a
transformação do indígena escravo em trabalhador assalariado. A retórica
oficial era que o Estado Espanhol estava extremamente preocupado com a
destruição dos povos nativos. A Companhia através de seus representantes
aproveitou a vinda do visitador Francisco de Alfaro e impôs a sua presença.
Acompanhando o visitador quando este inspecionava as governações e
manifestando a posição da Companhia. A ordem jesuita se colocou em oposição
ao ex-governador da Província do Paraguai Hernandarias de Saavedra, que
possuía grande prestigio na província.
Alfaro atendeu a posição da Companhia de Jesus, apresentando
discordância apenas pontuais. Como, por exemplo, em relação ao montante de
tributo que os “encomenderos” deveriam receber dos índios. Destaque-se que já
na metade do século XVI os tributos na América Espanhola, passaram a ser
exigido em dinheiro, e para obter, os tributários foram obrigados a trabalhar,
mediante um salário, nas minas, nas oficinas têxteis ou nos diversos campos de
125
ofícios. Nas áreas mineiras da Nova Espanha e do Peru o trabalho assalariado e
a agricultura de mercado tornaram-se uma circunscrição permanente do sistema
econômico. Este modelo era que os espanhóis queriam planificar na província
do Paraguai.
Porém os colonos do Paraguai acusaram, e com razão, que a
Companhia de Jesus era a mentora das ordenanças de Alfaro29. Os
“encomenderos” se sentindo prejudicados apelaram para a Audiência de
Charcas e enviaram procuradores ao Rei da Espanha. Nestas manifestações os
“encomenderos” receberam o apoio do governador Hernandarias de Saavedra
em defesa da manutenção da “encomienda”.
Iniciou-se então na Província do Paraguai uma dura perseguição contra
os jesuítas, que foram obrigados a fugir de Assunção, por aproximadamente três
meses, até que os ânimos se acalmassem, regressaram amparados por
Hernandarias. Não pode passar sem registro alguns pontos das Ordenanças de
Alfaro, demonstradas por Astrain (1996). Apresentaremos brevemente as
principais destas ordenanças, para que o leitor forme idéia sobre o antagonismo
desse processo. Astrain (1996, p. 58) esclarece:
En el primeiro dice el oidor: “Primeiramente declaro, que por una
junta hecha en esta ciudad de Santiago del Estero, con el dicho Sr.
Obispo, prelados de las órdenes y letrados que en esta ciudad se
hollaron, religioso y legos, se declaró por todos, sin que hubiese
persona contraria opinión, que el servicio personal que en esta
província se ha usado conforme a las que han llamado ordenanzas y
tasa, ha sido y es injusto y contra todo derecho, y asi lo declaro.
Astrain esclarece que no segundo item das Ordenanças se fizesse
cumprir a cédula real que ordenava que os índios não pudessem ser dados como
escravos e nem vendidos. Declarando assim nulas todas e qualquer comércio de
indígenas. E que daquele momento em diante nenhuma pessoa estava
autorizada a vender e a comprarem índios, proibia também a captura de índios
através das “malocas”, e estipulava uma pena de seis anos de prisão. A pena
seria cumprida dentro de uma galera e o prisioneiro seria obrigado a remar por
seis anos.
______________
29
De acordo com Magnus Morner (1968, p. 39) Hernandarias de Saavedra possuía as melhores
encomendas de indígenas existentes e dispunha de muitos escravos negros, o que não era muito
comum entre os colonos. Neste sentido se justifica a posição deste que foi contra os inúmeros
itens das Ordenanças de Alfaro.
126
A ordenança de número 25 estabelece que nos povoados indígenas não
fossem permitido residir nenhum espanhol, nem mestiço, nem negros e
mulatos, sob pena de pagar cem pesos espanhóis e ser castigado com cem
açoites. A ordenança de número 28 tinha um caráter “moral” e proibia que
qualquer mulher, sogra, irmã ou mãe de “encomendero”, estava impedida de
entrarem nos povoados índios, ainda que sob o pretexto de curar os enfermos.
Outro ponto central das ordenanças foi a que estabeleceu o trabalho assalariado.
Astrain (1996, p. 59) explicita:
La 48 dice asi: “Declaro que la mita ha de ser la sexta parte de los
índios del pueblo que deban pagar tasa, porque de mujeres
muchachos ni viejos no se há de dar mita. El alcalde repartirá,
según su prudencia, los indios que vienen de mita”. A estos indios
encarga el oidor que no se les impognan trabajos demasiado
penoso, el llevar sillas de manos, el mover molinos a brazo y otros
que podrían estragarles la salud. El cuidado de que se pague
religiosamente a los pobres indios el jornal que merecen por su
trabajo, se ven la ordenanza 60, cuyo texto dice asi: “Item. Declaro
que los indios jornaleros que sirven en los pueblos de españoles o
en edificios hayan de ganar y ganen un real de plata moneda de
Castilla y de comer, todo el tiempo que estuvie ocupados,y el indio
estuvieren en estancia de ganado mayor haya de ganar y gane lo
que montare la tasa que pague aquel año y más doce pesos, y el
guarda de ganado menor gane lo que pague un indio de tasa,
aunque le sea reservado, y más otro doce pesos”.
Astrain esclarece que no artigo 63, Alfaro declara que a jornada de
trabalho indigena deveria ser paga semanalmente, antes que o índio lhes
pedisse, e deveria ser entregue em suas próprias mãos, em dinheiro. Estabelecia
que de modo algum fosse permitido que as mulheres indígenas acompanhassem
seus maridos no trabalho. Porém um dos pontos mais delicados que atendeu o
visitador foi o de fixar a taxa, isto é, decidir sobre a contribuição que os índios
deviam pagar aos encomenderos. Astrain (1996, p. 60) esclarece que depois de
longa discussão junto ao Bispo, e com os Provinciais das Ordens religiosas,
disse Alfaro:
Se declaró por todos, sin contradicción de nadie, que las mujeres,
de qualquier edad que fueren, los viejos y muchachos no tienen
obligación de paga tasa ni servicio personal, y asimismo lo declaro
yo por esta ordenanza. Los indios que han pagar tasa son los
varones desde diez y ocho hasta cincuenta años, salvo los que
tuvieren enfermedad que no puedan trabajar para ganarlo y los
caciques principales y alcaldes, sacristanes y cantores, que
asimismo son libres de tasa.
127
As ordenanças foram apoiadas pelo Bispo de Tucuman, pelo
governador do Chile e de Tucuman e pelos franciscanos e jesuítas. As
ordenanças marcaram profundamente o antagonismo entre os espanhóis locais
(colonos) e a Companhia de Jesus que permeará durante os séculos XVII e
XVIII. Essa luta histórica culminará com a expulsão dos jesuítas da Província
do Paraguai na segunda metade do século XVIII.
Suznik (1965) destaca que as Ordenanças de Alfaro, não foram
compreendidas em sua extensão, nem mesmo pelos indígenas que reagiram,
entendendo que as ordenanças seriam outra forma de exploração. Quanto aos
“mitaios”, reagiram às ordenanças e fizeram grandes revoltas e se recusavam a
pagar os tributos. Os jesuítas sentiram-se fortalecidos, pois os encomenderos –
que haviam recorrido das ordenanças junto á Audiência de Charcas – foram
derrotados por três vezes consecutivas em suas apelações.
Em 1615 Hernandarias de Saavedra fora nomeado Governador do
Paraguai e do Rio da Prata, e este cumpriu rigorosamente as ordenanças. Com a
confirmação das ordenanças de Alfaro por Felipe III, em 1618, ficou
sacramentada a vitória “legal” da Companhia de Jesus. Porém na praxis
cotidiana da Província do Paraguai a encomienda (Prestação de serviço pessoal)
continuou até o fim do regime colonial.
Os jesuítas utilizaram todos os artifícios para que houvesse o
cumprimento das ordenanças de Alfaro, recusando-se a absolver em confissão
os encomenderos e ameaçando-os de excomunhão. Porém nada podia conter a
ganância dos encomenderos. Pois na materialidade da produção, o Paraguai
Colonial não havia ainda criado as condições objetivas e subjetivas para a
transposição imediata para o trabalho assalariado. Assim como era impossível
substituir a força de trabalho indígena, pela africana, pois os colonos não
haviam acumulado capital suficiente para o desenvolvimento das forças
produtivas locais. Pois estavam na periferia do sistema, cujo papel que lhes
cabia, neste contexto histórico, era de exportador de produtos primários com
pouco valor agregado, inseridos prioritariamente no mercado regional, cujo
centro era as regiões produtoras de ouro e prata.
Neste sentido, na práxis cotidiana as leis apregoadas nas ordenanças de
Alfaro estavam fora de lugar, no tempo e no espaço. As ordenanças de Alfaro
não foram cumpridas, e os quase dois séculos seguintes foram de luta. Os
128
colonos fortaleceram a sua produção econômica com o instrumental que
possuíam: burlando as ordenações e prosseguirão na exploração da força de
trabalho indígena. Bernard (2004.p.169) afirma:
A bem da verdade, a fronteira que separa a mita dos serviços
pessoais é tênue. Sem os índios, os espanhóis não podiam nem
movimentar-se, nem comer, nem viver, “e apesar disso nos
esperamos a hora de acabar com eles”; E nos termos seguintes que
se expressa Fray Rodrigo de Loayza, em 1586: “Se o fazem
carregar uma carga de quatro ou cinco arrobas [1 arroba = 11,5
Kgl], ele a transporta por dez léguas até cair sobre o peso sem
conseguir levantar-se, e o espanhol o ajuda á força de pontapés e
puxa-lhe o cabelo, que todos têm muito longos, para sua desgraça,
porque os espanhóis se servem deles como se fosse cordas para
arrastá-los [...], e muitos índios não esperam que os venham
reerguer e, vendo-se esmagados pelo trabalho, pelas taxas e pelos
tributos, sufocam-se enrolando os cabelos em torno do pescoço, e
alguns, ainda mais desesperados, enforcam-se numa árvore e
enforcam seus filhos para livrá-los de uma tal sujeição e miséria.
Esse testemunho, entre muitos outros, é revelador do desalento dos
índios diante da exploração de que eram vitimas. Os jesuítas mantiveram a sua
estratégia de atuação, era orientação do preposto geral da Companhia Cláudio
Aquaviva com base em uma larga experiência de mais de 50 anos de atuação no
Brasil (1549) e com o trabalho que realizavam com sucesso no Peru. Para evitar
que as dificuldades encontradas no Paraguai repercutissem negativamente em
outras províncias. O provincial do Paraguai recebeu ordens para renunciar as
missões itinerantes, e estabelecer missões estáveis em locais determinados e
afastados dos conglomerados coloniais. E o modelo adotado foi a do “índio
reduzido”, Quevedo (2000, p.65) assevera que:
Para que a conversão tivesse continuidade, eram necessários os
aldeamentos de índios cristãos, nos quais se procedia à redução do
índio à fé católica. Para os católicos, a Redução significava trazer
de volta a fé cristã os filhos que se desgarraram no caminho
verdadeiro de Cristo e da fé católica. Portanto, reduzir é reconverter
o índio ao cristianismo.
Logo, as reduções disseminaram-se pelo Paraguai e Rio da Plata,
fundamentadas no caráter legal estabelecido nas Ordenanças de Alfaro. E
estabeleciam à redução do índio a fé católica pelo isolamento dos povoados
indígenas, que teoricamente “pretendia-se proteger”. Na ótica de Lugon (1977)
129
pelo isolamento pretendia-se proteger com a moralidade, a liberdade das tribos
ainda não submetidas. O monopólio jesuíta sobre a força de trabalho indígena
começava a se configurar, contando com o apoio do Estado Espanhol.
Lugon (1977, p. 30) desceve esse processo:
O governador do Paraguai, Hernandarias de Saavedra anunciara há
pouco ao Rei da Espanha que se revelava impossível subjulgar os
150.000 índios do Guairá. O Rei Felipe III, cercado de boas
influências e persuadido das vantagens políticas e militares que
poderia resultar da solução preconizada pelos jesuítas, respondera:
“Mesmo que possuíssemos as forças necessárias, os índios do
Guairá só devem ser submetidos pelos ensinamentos do Evangelho.
(15 de julho de 1608). A 26 de novembro de 1609, o tenientegeneral do governador das províncias do Paraguai e do Prata
ordenava ao capitão Pedro Garcia que impedisse aos colonos
recrutarem escravos na província de Guairá tendo ficado a redução
dos habitantes confiada, a título exclusivo, aos padres Cataldino e
Maceta.
A força de trabalho mudava de mãos, e passou para o monopólio da
Companhia de Jesus. Neste sentido destrói-se o mito de que um grupo de
religiosos abnegados que saiam sozinhos pelas selvas subtropicais, e
começaram as suas pregações e, pelo “poder de Deus” converteram milhões de
“selvagens” à fé católica e que seus únicos objetivos eram catequizar e “salvar
as almas dos indígenas”.
A luta na realidade era mais pelo corpo dos indígenas do que pela sua
alma, pois com a sua força de trabalho estes poderiam produzir o valor.
Portanto, o projeto jesuítico no Paraguai não foi efetivado aleatoriamente, foi
um projeto planejado e extremamente organizado, contando com o apoio do
Moderno Estado Espanhol. Apoio que se materializou financeiramente,
fundamentado em uma legislação (Ordenanças de Alfaro e Leis das Índias) e no
apoio militar, para que o empreendimento jesuítico pudesse prosperar.
Os governantes espanhóis não davam um salto no escuro, conheciam
profundamente a práxis jesuítica em diversas partes do mundo. As propriedades
jesuíticas (estâncias, fazendas, colégios, etc) no México, no Chile, no Peru eram
extremamente produtivas. Também conheciam os empreendimentos jesuíticos
no Brasil, em Goa (Índia), no Japão. Compreendiam que apoiando a Companhia
de Jesus, breve esta região se tornaria próspera e desenvolveria novas relações
de produção, e toda forma de lucro era muito apreciada pela Coroa espanhola.
130
Lugon (1977) afiança que o empreendimento jesuítico (denominado de
redução) estava apoiado na legislação espanhola: Um decreto oficial do
visitador régio só foi obtido, porém a 11 de outubro de 1611. As primeiras
reduções já estavam estabelecidas. Declarava Felipe III: “Esses índios não
devem ser entregues em sujeição a ninguém”. O estatuto das reduções foi
confirmado em 1631, 1633 e 1647.
Aqui também se quebra outro mito: que as reduções eram produção
independente, desvinculadas das relações coloniais.
Desde a sua gênese as reduções jesuíticas foram constituídas
intrinsecamente na lógica das relações coloniais. Portanto, a tese apresentada
por Lugon (1977) de que fora instituída uma República “comunista” Guarani,
que contava apenas consigo. E que esta República mostrou-se capaz de
salvaguardar a sua liberdade, pois podia se defender com armas iguais. A tese
apresentada por Lugon é paradoxal, pois ao mesmo tempo evidencia que as
reduções foram constituídas sob a égide do Estado Espanhol, em um segundo
momento só podiam contar consigo.
Portanto a tese não procede, o próprio Lugon paradoxalmente
confirmou que as reduções eram legitimadas juridicamente por leis espanholas.
Ao aclarar essas relações, fica explicito que a Republica “Comunista” Guarani
só existiu imageticamente (na imaginação do autor), pois, na práxis, estava
sobre a égide do Estado Moderno Espanhol. Quevedo (200, p. 78) esclarece
que, “em 1609, Pedro de Anasco governador do Paraguai e Rio da Prata,
proibira a entrada de espanhóis na zona do Rio Paranapanema, na província do
Guairá, bem como o recrutamento de índios para o serviço pessoal”. O evento
possibilitou a incursão de jesuítas no Guairá, em 29 de dezembro de 1609, e a
fundação da primeira redução sob o comando dos padres jesuítas Lorenzana e
San Martin, em Santo Ignácio Guaçu, na confluência dos rios Paraná e
Paraguai.
Vale ressaltar que a região do Guairá fica a oeste do atual estado do
Paraná (Brasil) e neste período estava ocupada por encomenderos. Existiam
neste local as cidades espanholas de Ciudad Real (1550) e Vila Rica (1570). A
partir de 1610, os inacianos penetraram profundamente nesta região, fundando
mais de 14 reduções, entre os rios Tabagi e Iguaçu. Foram assim organizadas:
Loreto (1910); S. Inácio Mini (1611); S. Francisco Xavier (1622); S. José
131
(1625); Encarnação (1625); São Paulo (1626); S. Miguel (1626); S. Antonio
(1627); Conceição (1627); São Pedro (1627); Sete Arcanjos (1628); S. Tomas
(1628); Jesus e Maria (1628); Maria Maior (1629). Nossa Senhora de Loreto foi
a primeira redução e nesta foi concebido o projeto geral das futuras reduções.
Os padres Cataldino e Maceta foram enviados de Assunção pelo padre
Diego Torres. Com o apoio do Bispo e do Governador que lhes conferiram
amplos poderes para reunirem os “índios cristãos” a serem convertidos em
povoados. Os padres teriam autoridade para governarem sem dependência em
relação às cidades paraguaias e fortalezas vizinhas dos lugares em que se
estabelecessem.
Estavam os jesuítas autorizados para construír igrejas em todas as
localidades, e em nome do Rei fazer com que se cumprissem a Carta Magna de
1601 e as Ordenanças de Alfaro, pois os novos cristãos estavam “livres” do
serviço pessoal em relação aos colonos e passaram a estar sob a tutela dos
jesuítas.
Charlevoix (1747) afirma que nos primeiros dias de julho de 1610,
Nossa Senhora do Loreto foi fundada, à margem do rio Piraga e ao norte do
Iguaçu, no Brasil atual30. Nossa Senhora de Loreto em pouco tempo ficou
super-povoada, os jesuítas expuseram com clareza as vantagens de estarem
reunidos em reduções e que estariam protegidos dos encomenderos e
bandeirantes paulistas. Logo foi preciso fundar outra redução com o apoio de
um cacique de nome Aticaya. Inauguraram a segunda redução
a
aproximadamente uma légua e meia de distância e deram-lhes o nome de Santo
Inácio Mini, que abrigou desde os primeiros dias várias centenas de famílias.
Diacronicamente outro grupo estava em vias de formação no norte do
Paraná, no Paraguai atual, a quatrocentos quilômetros de Nossa Senhora de
Loreto e das outras reduções do Guairá. O fundador das reduções do Paraná foi
o padre Lorenzana que era reitor do Colégio de Assunção, e em 1609, decidiu
partir neste empreendimento de implantar as reduções jesuíticas entre os
Guaranis.
Lugon (1977) esclarece que no final de 1610, o padre Lorenzana
fundou entre os rios Paraná e Paraguai a redução de Santo Inácio Guaçu. Esta
______________
30
Ver mais sobre este assunto: CHARVELOIX, Pierre. F. Xavier de. (SJ). Historie du
Paraguay. Paris: 1747. Tomo I.P. 226.
132
redução prosperou e novas filiais foram fundadas sob a direção do Padre
Gonzalez. Foi em 1612 que chegou da Espanha Antonio Ruiz de Montoya,
considerado o grande realizador das reduções jesuíticas, superior geral de 1620
a 1637. Montoya escreveu, em 1639, uma obra impressa em Madri denominada
A Conquista Espiritual, em que narra a sua ação neste empreendimento, sendo
um documento importante para a compreensão da visão inaciana sobre este
processo.
Montoya (Apud Lugon, 1977, p. 35) descreve como foi o processo da
fundação de reduções, e em que estágio encontrou os “novos cristãos”:
Do ponto de vista religioso, eis o estado em que ele encontrou as
quatro primeiras reduções: “Elas não estavam ainda muito
povoadas de cristãos, porque os padres tinham observado que a
maioria dos prosélitos só era atraída para aí pela a esperança de não
ser mais inquietada pelos espanhóis e pelos portugueses do Brasil e
de ficar em melhor situação para se defenderem de seus antigos
inimigos”.
A informação apresentada por Montoya revela a adesão estratégica por
parte dos Guaranis que se aliaram aos jesuítas para garantir a sua liberdade,
mesmo que reduzida, frente aos encomenderos. O outro aspecto que facilitou a
adesão do guarani ao modelo de índio reduzido, foi que o Estado Espanhol lhes
garantia por lei – em caso de conversão ao cristianismo – a isenção por dez
anos do “serviço pessoal”.
A política implementada com as reduções cumpria um papel
geopolítico importante também para o Estado Espanhol, com a ocupação
territorial efetivada pelos padres jesuítas e com o processo de sedentarização
dos nativos sob a bandeira espanhola, dificultavam o avanço português. Muito
embora neste período histórico (1580 – 1640) houvesse ocorrido a União
Ibérica sob o controle da Espanha. Os portugueses do Brasil não aceitaram
passivamente o domínio espanhol, e as invasões das terras espanholas eram
constantemente efetivadas pelas bandeiras paulistas.
Lugon (1977) informa que cada redução, neste período, contava
aproximadamente com mais de dois mil habitantes cada. E os missionários
atuavam como fermento no meio da massa, ampliando estes contingentes.
Atuando no sentido de mudar os hábitos sociais, buscando estabelecer uma
133
disciplina coletiva arraigando novos mecanismos de organização social. Após a
conversão, os jesuítas iniciaram o projeto de produção e reprodução da vida
material nas reduções. Assim que uma tribo aceitava renunciar a vida nômade e
se descobria uma localização favorável, era preciso construir, semear e comprar
gado. É a partir deste momento que começa o empreendimento jesuítico das
reduções da Província do Paraguai.
Quevedo (2000, p. 11) afirma que um dos pontos centrais da missão
era o modelo de “índio reduzido”. Havia dois elementos que fundamentavam
toda a organização da propriedade da terra e da produção. Instituem-se nas
reduções dois tipos de propriedade: a primeira era denominada de Tupambaé –
propriedade coletiva, na qual se desenvolviam as atividades agropecuaristas
para garantir a auto-suficiência e a produção de excedentes para a economia
colonial espanhola.
A segunda era denominada de AMAMBAÉ31 – a atividade agrícola,
por meio do trabalho familiar, para a auto-suficiência da família indígena. No
idioma Guarani Tupambaé significa “terra de Deus”. Os jesuítas organizaram
este modelo de produção coletiva, onde se aplicava toda força de trabalho
disponível na redução, alguns dias da semana ou intensivamente em épocas de
plantio e de colheita. A criação do gado pertencia ao tupambaé32 , os excedentes
eram vendidos no mercado, e o capital obtido era reinvestido na produção. Esta
forma de organização econômica implicava de acordo com Quevedo (2000) em
______________
31
De acordo com Peramás (2004, p. 57) “Entre los guaranies habia cosa comunes, otras no. A
cada cual se la asignaba uma cierta extensión de campo, bastante grande por cierto, en la que
los jefes de família plantaban para si y los suyos el trigo de las Índias [el maiz], ésta para ellos
su principal cosecha, pues nuestro trigo poco lo aprecian, y varias otras especie de legumbres de
varia clases, asi como raices comestibles de las cuales as unas llaman mandió y otras manduvi,
que en el mismo tallo y en el extremo de la raiz contienen unas vainas con unas como nueces,
algo semejantes a nuestra almendras. [...] Todo esto era propriedad de los colonos y se llaman
avambaé, es decir, cosa privada de cada índio. Los bueyes del común se prestaban por seu turno
a los cabezas de famílias para que araran sus própios campos”.
32
Peramás (2004, p. 58-59) esclarece: “En determinados dias del año, los pobladores trabajaban
para la comunidad en los respectivos campos comunes, ya que todos, aun el alcalde y las
autoridades, conforme a la antigua constumbre romana, se dedicaban a las cosas del campo, lo
que ciertamente hubiera aprobado también aquel ilustre varón Tomás Moro, que queria que
fueron agricultores todos los que se juntaram en aquella república a UTOPIA. También el
templo, las casas particulares y todas las démas construcciones del pueblo las edificaban y las
refaccionaban los Guaranies. Las casa, sin embargo, eram asignadas a cada uno por la
autoridad, de acuerdo con el cura, no por sorteo como queria platón, y las conservaban los jefes
de família para si los suyos, a no ser que, aumentado la família, hubiera que dar outro hogar a
los hijos que contraian matrimonio. [...] De esta forma todas las famílias eran casi iguales y
poseian los mismos bienes, a no ser que alguno cultivara su campo com más empeno y sacara
de él más benefícios”.
134
relações de trabalho simultaneamente familiar e coletivo sob a direção dos
caciques, do cabildo e dos padres jesuítas. Os jesuítas buscaram especializar a
força de trabalho. Provocando o surgimento e o desenvolvimento de vários
novos ramos na produção, e o aparecimento de trabalhadores em tecelagem,
carpintaria, olaria, curtição de couro, criação de animais e agricultores.
Quevedo descreve que a divisão social do trabalho nas reduções jesuíticas era
por idade, sexo e existia regra referente a turno de trabalho. Esta síntese de
complexos elementos é apontada por Quevedo como a responsável pelo êxito
sócio econômico das reduções jesuíticas do final do século XVII até a segunda
metade do século XVIII.
Em
uma
síntese
dialética
simultaneamente
ao
processo
de
transformação da terra, os guaranis também se transformaram, e gradativamente
foram incorporando os valores sociais do ocidente. A produção econômica se
explicita pela utilização da técnica ocidental em síntese com a cultura Guarani e
a quantidade expressiva de trabalhadores. Carlos Pastore (1972, p. 18)
esclarece:
Las tierras del Paraguay fueran dívididas en tierras de españoles y
en tierras de los indios, y cada una de las partes en tierras de la
comunidad y en tierras de dominio privado se subdividíron en
solares, peonias y cavallorias. Españoles e índios fueran a la vez
agrupados en partidos y los ultimos también en aldeas, fijandales
los limites territoriales de los partidos y de las aldeas.
Os acontecimentos comprovaram que já nas primeiras reduções, os
jesuítas reorientaram e especializaram o trabalho indígena e consequentemente
os indígenas obtiveram uma “autonomia reduzida” em relação ao branco. Os
jesuítas consolidaram o seu empreendimento, garantindo uma sólida
organização administrativa entrelaçada com uma forte ação política junto aos
indígenas. Introduziram o gado, a partir de 1615, estabeleceu o plantio de trigo,
cana-de-açúcar, uva e outros cereais. Garantiram com este empreendimento a
sobrevivência dos indígenas reduzidos, evidentemente sob seu controle.
A relativa prosperidade e a grande concentração demográfica
aumentaram a cobiça dos encomenderos e dos bandeirantes interessados nessa
força de trabalho que começava a se especializar. Quevedo (2000, p. 78-79)
assevera:
135
Os colonos sentiam-se prejudicados, achando que os padres
disputavam com eles o controle do trabalho indígena. Por isso em
1618 os bandeirantes declararam guerra aos jesuítas do Guairá,
escravizando índios reduzidos. A população das reduções, em
1628, era de aproximadamente 27.500 índios. Os bandeirantes
escravizaram cerca de 20.000 índios dessa região. Finalmente, em
1631, só estavam intactas as reduções de Loreto e S. Ignácio Mini.
A defesa do índio gerava um profundo conflito com os colonos33.
Astrain (1996) afiança que neste contexto histórico a cidade de São
Paulo era uma das mais importantes do Brasil. Pela sua grandeza, pela
fertilidade de seu solo considerada pelo seu comércio ativo com as outras
grandes cidades. Por estes motivos era uma das cidades mais prósperas da
América Meridional. Era uso corrente e uma tradição nas colônias portuguesas
na América e nas ilhas Atlânticas, adentrarem na selva desses países e cativar
índios e buscar pedras preciosas, ou qualquer outro objeto que lhes fosse de
alguma utilidade. Os colonos de São Paulo exercitaram mais que qualquer outro
estas empresas, chamadas de bandeiras. Destas bandeiras resultou um
fenômeno etnográfico singular, pois quando partiam nestas bandeiras, os
portugueses não traziam ao retornar somente os índios cativos. Durante a longa
jornada mantinham relacionamentos com as índias cativas, tendo como
resultantes filhos mestiços (mamelucos). Os espanhóis denominavam os
paulistas, de mamelucos, e estes invadiam o território espanhol em busca de
índios para trabalharem em suas lavouras. Astrain (1996, p. 114) descreve que:
La primeira irrupción de los paulistas en las cristandades fundadas
por nuestros padres se remonta al año 1611. Nos da noticia de este
hecho el capitán Antonio Añasco, que procuró resistir en cuanto
alcanzaron sus fuerzas al brío de los invasores y arrebatarles la
presa. [...] Estas entradas de los paulistas una veces a mano armada,
para apoderarse violentamente de los indios fieles o infieles y
llevárselos como esclavos, otras veces con engaños y dádivas para
atraer hacia si a los infelices que vivian en las selvas, se fueran
repetiendo lo ãnos seguintes y nuestros Padres deliberaron que
convenia resistir com las armas a estas invasones, exhortando a
nuestros indios a pelear en campo abierto contra otras la fuerza de
los enemigos.
Com a devastação bandeirante da região do Guairá, os inacianos foram
obrigados a ir para o sul e para o Itatim, á aproximadamente 500 km ao norte de
______________
33
Ver mais. CORTESÃO, Jaime – Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. Lisboa:
Portugália, 1966. 2 v.
136
Assunção. O Itatim teve uma pequena sobrevida de 1631 a 1669 com os
povoados de: Encarnação (1633), Apósteles (1633), natividade (1632), São
Benito (1632), São José (1631) e Anjos (1631).
Quevedo (2000) afirma que no sul instalaram-se na bacia do Paraná e
na margem direita do Uruguai, (atual Argentina), fundando Santo Inácio Guaçu
(1610), Itapuã (1615), Conceição (1619), Japeju (1627) e São Xavier (1627). À
margem esquerda do Rio Uuruguai, nas bacias do Rio Ijui, Ibicui e Jacuí e no
planalto central do atual Rio Grande do Sul, surgiram às reduções do Tape. As
três regiões que possuíam reduções neste período ficaram assim configuradas –
Itatim, Guairá e Tape.
De acordo com Quevedo o governador da Província do Rio da Prata,
D. Francisco Céspede autorizou a redução dos índios da região do Tape, em
1626. E assim foram fundadas 18 reduções: Candelária (1620), S. Nicolau
(1626), S. Francisco Xavier (1626), Candelária do Caaçapá (1627), N. S. de
Assunção (1828). Todos os Santos (1628), São Carlos do Capi (1631), Apóstolo
São Pedro e São Paulo (1631), São Tomé (1632), São Miguel (1632), São José
(1632), Santa Teresa (1632), Santa Ana (1633), São Joaquim (1633),
Natividade (1633), Jesus e Maria (1633), São Cosme e Damião (1634) e São
Cristóvão (1634).
Porém este processo de redução não ocorreu harmonicamente e de
forma linear, foi um processo fundamentado na contradição, pois havia uma
resistência indígena à evangelização. Esta resistência em muitos momentos não
foi pacífica, e os jesuítas defrontaram-se com muitas adversidades. Tanto no
âmbito interno da redução com sublevações de indígenas já reduzidos. Quanto
no âmbito externo, pelos ataques de encomenderos espanhóis e de bandeirantes
paulistas.
Quevedo (2000, p. 80) descreve que “o ano de 1635 foi
particularmente desastroso para as reduções jesuíticas, pois uma bandeira
paulista chefiada por Raposo Tavares, atacou estrategicamente a redução de
Jesus e Maria”. A redução dispunha de um pequeno arsenal de guerra que era
utilizado pelas demais reduções. André Fernandes, cristão-novo, liderou a
bandeira, invadindo e ocupando a redução de Santa Tereza. Os ataques e
consequentemente a resistência era utilizado pelos jesuítas como uma
propaganda ideológica. Os jesuítas em suas pregações exortavam que este
137
processo era uma “guerra santa”, e o fato da bandeira paulista ser liderada por
um “cristão novo” fortaleceu esta idéia.
No imaginário jesuíta a luta representava uma cruzada do fiel católico
contra o infiel, em uma visão maniqueísta da luta do bem contra o mal. De
Deus contra o Diabo. Quevedo (2000, p. 80-81) esclarece:
A luta contra os bandeirantes escravistas conferia novos termos à
luta do bem contra o mal. Se esta visão dinâmica social ganhava
um estatuto místico nos Exercícios (como já foi apontado), na
América a luta se tornava real: o gentio estava ali, na figura do
bandeirante, rugindo ferozmente como um turco infiel que
ameaçava a Cristandade.
Quevedo (2000) esclarece que as bandeiras que vinha de São Paulo em
direção ao Tape (Rio Grande do Sul atual), assassinavam os indígenas que não
conseguiam levar, e aprisionava os demais, levando-os para São Paulo, onde
eram vendidos como escravos. Em 1637 chegou ao Tape a bandeira de Fernão
Dias Paes, só que ela foi surpreendida, por uma pequena e bem armada milícia
indígena que expulsou o inimigo. Este processo de luta foi liderado pelo
cacique indígena Nicolau Neenguire, da redução de Apósteles del Caaçapa –
Guazu, que ajudou a aniquilar parte da bandeira de Dias Paes.
A ação escravista dos bandeirantes era nociva á proposta dos jesuítas.
Por um lado, os índios começaram a não mais desejar ir para as reduções que
eram constantemente atacadas. Por outro lado foi positiva, pois fortaleceu os
laços sociais entre os jesuítas e as lideranças indígenas. Ambos defendiam o
mesmo projeto – a luta pela vida. Os jesuítas solicitaram junto ao Estado
Espanhol que pudessem armar os índios para expulsar os bandeirantes das
reduções. O Estado Espanhol que também tinha um grande interesse em manter
esta região sob o seu controle, autorizou isso, e em 1641 a milícia indígena
armada pelo Estado Espanhol e pelos jesuítas reagiu contra os bandeirantes
expulsando-os das reduções.
Em resumo descrevemos neste capítulo que os primeiros jesuítas
chegaram ao Paraguai em 1588, e iniciaram a sua pregação entre os indígenas e
os brancos em Assunção. Neste primeiro momento receberam o apoio da elite
local que esperava que os jesuítas apaziguassem os indígenas e os catequizasse,
e os instituísse nos códigos sociais ocidentais, facilitando assim a sua
138
exploração no regime da “encomienda”. Os jesuítas com uma larga experiência
acumulada durante anos de ação em outros lugares perceberam que o entrave
para o desenvolvimento econômico e social desta região era o regime da
“encomienda”. E passaram a articular politicamente no sentido de abolir o
serviço pessoal.
O Estado Espanhol também ansiava pelo desenvolvimento econômico
desta região, pois queria auferir lucros, expressos na cobrança de tributos, e
buscava assegurar o domínio deste território que era constantemente invadido
pelos paulistas. A disposição de por fim na encomienda alocou os jesuítas em
posição antagônica em relação aos interesses da elite local. Para concluir as
necessárias definições iniciais referentes à ocupação da terra e da exploração da
força de trabalho indígena, os jesuítas intervieram política e socialmente
conquistando vitórias expressivas no aspecto “legal”. É importante mencionar
as Ordenanças de Alfaro, que adaptaram definitivamente as Leis das Índias á
singularidade Paraguaia. As Ordenanças foram editadas em 1611. Francisco de
Alfaro, então visitador da Audiência de Charcas, foi até a futura capital para
vistoriar e informar ao Estado espanhol sobre o funcionamento das
encomiendas que registravam níveis elevados de evasão indígena, com milhares
de mortes e uma grande parcela submetida a maus tratos constantes –
provocando uma baixa densidade demográfica.
As Ordenanças de Alfaro suprimiram as encomiendas de serviço
pessoal e mantiveram a encomienda de tributos e a compensação do trabalho
indígena por meio da remuneração pela jornada de trabalho. Os jesuítas tiveram
uma participação ativa neste processo influenciando Alfaro, no sentido de
elucidar que o declínio econômico e social do Paraguai estava entrelaçado com
o antigo modelo de encomienda. Pois o trabalho forçado obrigava o índio a
migrar, o que por sua vez provocava redução na produção, e com a morte de
muitos e sem um mercado interno, não havia circulação de mercadorias e nem
de capital, provocando a estagnação econômica e social.
Apesar das Ordenanças de Alfaro os encomenderos continuaram
forçando os indígenas ao trabalho e usurpando suas terras – que se expressa em
um ditado popular da época “se acata, pero no se cumple”. Neste sentido as
Ordenanças podem ser consideradas um avanço como expressão jurídica de um
Estado, que orientado por “princípíos” religiosos e com uma visão estratégica
139
em relação à geopolítica regional e á racionalidade econômica que marca a
gênese do capitalismo. Assume mesmo que teoricamente a proteção dos
nativos, entregando uma parcela considerável desta força de trabalho para a
tutela da Companhia de Jesus. E o modelo econômico, social e político adotado
pela Companhia foi a do “índio reduzido”. De acordo com Quevedo (2000) as
reduções foram a concentração de índios em pequenos povoadas, para convertêlos à fé da Igreja Católica reformada, conforme estipulado pelo Concilio de
Trento (1545 – 1563). As reduções eram, portanto, povoados exclusivamente de
indígenas, principalmente da etnia Guarani. Com igrejas, residência de índios e
que devido às hostilidades de encomenderos e bandeirantes impunham um
caráter itinerante ao empreendimento. A produção econômica das reduções se
fundamentava em dois elementos: 1) a propriedade coletiva de todos os meios
de produção (o Tupambaé), que na linguagem indígena significa – a “terra de
Deus”, na qual se desenvolviam as atividades agropecuaristas, sob a direção dos
jesuítas.
O segundo elemento era a propriedade particular dos meios de
produção (o Amambaé ou Avambaé), onde se praticava a atividade agrícola,
por meio do trabalho familiar. As reduções disseminaram-se pelo Paraguai e
pelo Rio da Prata, tendo como base legal as Ordenanças de Alfaro e alcançaram
grande prosperidade e grandes contradições.
2.4 A PRODUÇÃO ECONÔMICA NAS REDUÇÕES JESUITICAS DO
PARAGUAI.
Para a análise da produção econômica nas reduções jesuíticas da
província do Paraguai é necessário o concurso de fontes primárias e secundárias
produzidas desde meados do século XVI. A análise dessas fontes permite,
ainda, ilustrar como se deu a interação de seu elemento central, a produção
econômica com os elementos complementares, o financiamento das atividades
missionárias e educativas e a instituição do imaginário capitalista fundamentado
no trabalho. Uma das mercadorias responsáveis pelo êxito do empreendimento
econômico, missionário e educacional nas reduções jesuíticas foi em grande
parte à produção da erva-mate.
140
Quevedo (2000, p. 135) revela que “após a licença concedida pelo
Estado Espanhol, em 1645, este produto destacou-se no mercado interno,
superando a produção dos encomenderos paraguaios”. O comércio da erva-mate
gerava o capital que sustentava o empreendimento jesuítico, os recursos
financeiros provenientes da produção e circulação desta mercadoria mantinham
os Guarani e Jesuítas em paz com o Estado Espanhol. Permitindo-lhes pagar os
tributos a máquina administrativa, bem como adquirir tudo o que era necessário
para a produção e reprodução da existência das reduções. Temístocles Linhares
apud Quevedo (2000, p. 135) afirma que: “O mate preparado nas missões
passou a gozar da preferência do mercado, ou seja, da parte dos consumidores
espalhados não só na região do Prata como além dos Andes, em Potosi, no
Chile, no Peru em Quito”. Quevedo (2000) descreve que a produção de ervamate34 das missões era feita em alta escala e no decênio 1680 – 1690, a
exportação de erva-mate das reduções chegou a 9.000 arrobas anuais.
Na província do Paraguai e Rio da Prata a erva “Caá ivirá” (erva de
pau – não peneirada) era utilizada também como moeda sendo que seu valor
taxado por unidade imaginária conhecida como peso oco, que de acordo com as
Ordenanzas de Alfaro e a Leyes das Índias, devia valer (6) reais, embora este
valor tenha-se reduzido posteriormente. Assim o tributo pago pelos povoados
missionários ao Estado Espanhol eram em média trezentos a quatrocentas
arrobas anuais de erva-mate.
Magnus Morner (1969) afirma que devido à pressão dos colonos
paraguaios que reclamaram junto ao Governo Espanhol, e este através de uma
cédula real limitou o comércio da erva-mate, em 12 mil arrobas. E apesar da
imposição de limites ás exportações, estas continuaram. Na década de 1670 as
reduções jesuíticas produziram e exportaram 40.000 arrobas anuais de ervamate e, na década seguinte, a exportação chegou a 60.000 arrobas. Os maiores
consumidores da erva-mate produzida pelas reduções jesuíticas era a população
de Tucuman e a do Rio da Prata que consumiam aproximadamente entre 20 mil
______________
34
ASTRAIN (1996, p. 100) esclarece: “Cultivan también los índios la llamada ‘yerba do
Paraguay’, que todavia se usa en infusión como el té y el café. La yerba mate, - dice P.
Hernandez, no tiene de yerba sino el nombre, porque no es yerba, sino hojas de un árbol,
después de tostada y molidas. El arbol que la produce es en su figura y en su hoja muy parecido
al naranjo, y alcanza desde cinco metro hasta diez y doce de altura, dándose algunos ejemplares
que llegan a quince. Cuando llegaran los padres al Paraguay, hallaron que los indios solian
recoger esta yerba y servise de ella como licor confortante y aun nutritivo”.
141
e 30 mil arrobas anualmente. Morner tem como fonte de sua pesquisa
documentos do governador de Buenos Aires D. José de Garro, esclarecendo que
em 1683 chegara a Província do Rio da Prata, aproximadamente 50.000 arrobas
de erva-mate, vindas do Paraguai, mais especificamente das missões jesuíticas.
Lugon (1977) também destaca a produção da mercadoria (erva-mate)
nas reduções do Paraguai, elucidando que a “yerba” dos espanhóis e
denominados pelos Guaranis de Caa, primeiramente era extraída no meio da
selva. Pois estas cresciam em estado selvagem em meio à floresta. Chaerlevoix
(1747) afirma que se tratava da folha de uma árvore do tamanho de uma
macieira mediana. Esta planta foi classificada pelo botânico Geoffroy SaintHilare por: Ilex Paraguariansis. O hábito de tomá-la sob a forma de infusão é
um costume indígena que se espalhou também entre os conquistadores.
Lugon (1977) revela que cada família consumia pelo menos uma
arroba de folhas da Caa por ano. De manhã, após a missa eram distribuídas aos
punhados pelos padres jesuítas. Para os colonos “escravistas” a qualidade mais
preciosa da erva-mate era o seu valor de troca, assim como também para os
jesuítas que no primeiro momento extraia esta mercadoria da selva e a colocava
em circulação em uma pequena parcela no mercado regional. Porém esta
situação mudou completamente no começo do século XVIII. Lugon (1977, p.
127) afirma que:
Os pacientes ensaios de cultura e de reprodução da yerba, nas
plantações artificiais, tinham finalmente sido coroados de êxito.
Imensas áreas foram consagradas a yerba, nas cercanias de cada
redução. Foi um dos maiores agrônomos dos jesuítas Aimé
Bonpland, que viveu in loco antes da ruína das plantações, diz que
a yerba cultivada era mais fina e de aspecto melhor e de melhor
qualidade. Em geral, de resto, “todos os produtos das missões
tinham superioridade sobre os outros, porque a sua preparação era
racional e saia da rotina em que voltou a cair depois nessas mesmas
regiões”.
A “encomienda” desenvolveu-se no Paraguai, no princípio da
colonização também fundamentada no extrativismo da erva-mate. Os índios a
serviço dos espanhóis era a força de trabalho que agia sobre a natureza
transformando a Caa em mercadoria. A extração da erva-mate era um trabalho
penoso, para os índios sob o regime da “encomienda” morriam aos milhares, no
meio da floresta, sem alojamento, sem alimentação adequada (escassez de
142
alimentos) e submetida a maus tratos. Eram chicoteados e mortos por motivos
fúteis no interior das selvas subtropicais para extrair a erva, que se tornaria a
riqueza do “encomendero”.
Lugon (1977) descreve que para o Guarani das reduções jesuíticas, no
princípio, quando ocorria o processo extrativista35 era também um trabalho
árduo. Uma cinquentena de homens, por redução, tinha de viver durante
semanas quando não meses, longe dos seus, em condições bastante precárias e
irregulares, sob a ameaça permanente das serpentes e das feras. No segundo
momento em que se desenvolveu através da agronomia o cultivo da erva-mate
nas proximidades das aldeias, os jesuítas aumentaram o número de
trabalhadores no Tupambaé (a terra de Deus) aumentando a produção e a
lucratividade.
Quevedo (2000) afirma que a erva produzida nas reduções reunia
quantidade e qualidade, tornando-se superiores aos demais produtos do
Paraguai. Os guarani-missioneiros produziram o tipo “caamini”, que era mais
selecionada e suave que a “yerba de palos” produzidas nas encomiendas
paraguaias. Após a colheita a erva “caamini” era transportada por via fluvial
desde as missões até Santa Fé (Província do Rio da Prata). Esta rota da ervamate dos povoados da margem oriental do rio Uruguai tinha em São Borja seu
escoadouro natural, após percorrer uma distância que variava de 400 a 600 km.
Eram transportadas em enormes carretas puxadas por bois. Partindo de São
Borja seguiam para Santa Fé, onde ficava o entreposto no qual um padre
procurador-geral da Companhia Jesus se encarregava de comercializar o
produto.
Astrain (1996.p.100-101) assevera: “Com el poducto desta yerba
adquirian los pueblos guaranies las ropas, herramientas, alhajas de iglesia y
otros objectos de que necasitaban. Sin embargo, nuestros padres hubieran de
tomasse um cuidado más que regular para el buen despacho de este comercio.”
Os ervais pertenciam ao Tupambaé (Terra de Deus) que era administrada pelos
jesuítas, porém não se impedia que no Amambaé (Terra do Índio) estes
______________
35
De acordo com Astrain (1996, p. 100): “Para recogerla necessitaban a veces apartase 50 y 60
leguas lejos de sus terras, lo cual acarreaba algún desorden en el pueblo. Dispusieron pues, que
cada uma de la reducciones tuviese algún campo plantado de esta yerba, y estos terrenos, que se
llamaban yerbales, venian a constituir uma riqueza considerable para los pueblos, pues alli se
recogia no solamente la yerba necessaria para el consumo de los indios, sino también outra
cantidad mucho mayor que se empezó a exportar hacia Santa fé y Buenos Aires”.
143
tivessem uma pequena plantação de erva-mate, cujo excedente desta produção
privada era vendida conjuntamente com o grande carregamento do Tupambaé,
ou comercializavam para os próprios jesuítas. A nomeação de um procurador
para gerir os negócios indígenas foi assim esclarecida por Astrain (1996, p.
101),
Observaron, en efecto, que en Santa Fé los españoles cometián con
los pobres indios que llevaban las cargas de yerba tan irritantes
injusticias, que juzgaron indispensable nombrar un padre, que fuese
procurador de los indios, y que con él, y no inmediatamente con los
indios, se entendieran los compradores de la yerba.
De Santa Fé o produto seguia por terra até Buenos Aires, nesta cidade
era comercializado com mercadorias de várias nacionalidades e sua circulação e
consumo atingia todo mercado regional Latino Americano de Tucuman a
Potosi, de Quito a Buenos Aires, e a mercadoria (erva-mate) se realizava como
mercadoria no consumo. De acordo com Linhares (1969 p. 25): “As missões
jesuíticas faziam mais comércio do que as três províncias reunidas (Tucuman,
Buenos Aires e Paraguai)”. E este comércio era regulamentado pelo Estado
Espanhol como assevera Peramás (2004 p. 126):
Una Cédula real habia concedido a los trinta pueblos de Guaranies
exportar doce mil arrobas de yerba paraguaya (lá arroba española es
de 25 libras de peso y asi de ella usamos para hacer la cosa más
fácil de entender). Doce mil dividido entre treinta pueblos,
corresponde a cada pueblo 400 arrobas. Esta cantidad y no mayor,
se les permitió a los indígenas para no perjudicar los interesses de
los españoles de la ciudad de Asunción, cuyos bienes dependen
sobre todo comercio de la yerba.
Este exemplo de Peramás é elucidativo, no sentido que aclara a luta
entre as frações da neófita burguesia do Paraguai, na disputa por mercado. O
jesuíta fundamentado na técnica desenvolve através de estudos agronômicos o
cultivo da erva-mate. Criaram, portanto, por suas próprias experiências, uma
ciência agrícola adaptada às condições geográficas e climáticas do Paraguai.
Portanto ocorre produção de mercadorias.
A erva-mate que de acordo com Morner (1969) em 1683, chegava a
Província do Rio da Prata 50.000 arrobas de erva-mate e tabaco, patenteia a
circulação de mercadorias, cujos maiores consumidores residiam na província
144
de Tucuman e Rio da Prata. Porém muitos autores que escrevem sobre o tema
apresentam a erva-mate, não como uma mercadoria, demonstra este circuito
Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria, de forma fetichizada. Marx (1984) assevera
que a mercadoria, a primeira vista, parece ser coisa trivial. No caso analisado da
erva-mate vê-se que ela é algo muito estranho, cheia de sutilezas metafísicas e
argúcias teológicas. Porém como valor-de-uso, nada há de misterioso nela, quer
a sob o aspecto de que se destina a satisfazer necessidades humanas, com suas
propriedades, quer sob o ângulo de que só adquire essas propriedades em
conseqüência do trabalho humano.
Evidentemente os Guaranis anteriores ao período colombiano, com a
sua atividade, modificavam este elemento natural de modo a torná-lo útil. Mais
ao modificar a Ilex Paraguariansis, quando faz dela Caa (erva-mate). Não
obstante a erva-mate ainda é planta, coisa prosaica, material. Nas reduções logo
ela se revelou mercadoria, transformou-se em algo ao mesmo tempo perceptível
e impalpável. Além de estarem embaladas em sacas e cestos firma a sua posição
perante outras mercadorias – chega a ser medida de valor – expande as idéias
fixas de sua cabeça de planta, fenômeno mais fantástico do que se tocasse
violino e cantasse o canto gregoriano por iniciativa própria.
Marx afirma que o caráter misterioso da mercadoria não provém do
seu valor-de-uso, nem tampouco dos fatores determinantes do valor. E por isso,
existem algumas motivações. Marx (1984, p. 80) corrobora:
Primeiro, por mais que difiram os trabalhos úteis ou as atividades
produtivas, a verdade fisiológica é que são funções do organismo
humano, e cada uma dessas funções, não importa a forma de seu
conteúdo, é essencialmente dispêndio de cérebro, dos nervos dos
músculos e dos sentidos etc, do homem. Segundo, quanto ao fator
que determina a magnitude do valor, isto é a duração daquele
dispêndio ou a quantidade de trabalho, é possível distinguir
claramente a quantidade e a qualidade do trabalho.
Neste sentido o tempo de trabalho historicamente sempre interessou
aos homens, e em cada época ganhou uma configuração particular. Na análise
da produção da erva-mate a quantidade e a qualidade desta produção também se
expressam em dois momentos distintos: no primeiro momento quando o
processo era extrativista o tempo e a qualidade do trabalho se expressava
145
diferentemente do segundo momento quando havia extensas plantações de ervamate a poucos metros de suas residências.
O tempo do trabalho e a qualidade do trabalho se mostram na
produtividade que aumentou consideravelmente. Depois o preço desta
mercadoria levava vantagem em relação ao preço da erva-mate do
“encomendero” que a produzia de maneira extrativista. Que aumentava o tempo
de trabalho e conseqüentemente a qualidade do trabalho. E se materializava na
morte de milhares de trabalhadores indígenas por exaustão. Logo, por estes
fatores a produção de erva-mate das reduções guaraníticas era maior que a das
três províncias reunidas: Tucuman, Buenos Aires e Paraguai.
Ao elucidar que desde que os homens, não importa o modo, trabalhem
um para os outros, adquire o trabalho uma forma social. Portanto, o caráter
misterioso da mercadoria que é fruto do trabalho como valores, Marx (1984, p.
80) esclarece:
[...] a medida, por meio da duração, do dispêndio da força humana
de trabalho toma a forma de quantidade de valor dos produtos do
trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se
afirme o caráter social dos seus trabalhos, assumem a forma de
relação social entre os produtos do trabalho.
Neste sentido a erva-mate é misteriosa porque oculta as características
sociais do próprio trabalho dos homens, os escravos, assalariados e servos. Esta
mercadoria se apresentava como características materiais, tais como, folhas e
galhos moídos, “yerba em palos”, além de propriedades sociais. Sendo
utilizadas em processo de infusão, era refrescante, pertencendo à cultura
indígena, com propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho. Por
ocultar, portanto, a relação social existente: encomenderos e encomendados
índios reduzidos e jesuítas, indígenas e Estado Espanhol. Pois omite a relação
social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refletila como relação social existente, à margem deles entre os produtos do seu
próprio trabalho. Marx (1984) esclarece que através desta dissimulação, os
produtos do trabalho se tornaram mercadorias, coisas sociais, com propriedades
perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. Portanto, uma relação social
estabelecida entre os homens assume a forma fantasmagórica de uma relação
146
entre coisas e para encontrar uma similitude, temos que recorrer a uma região
nebulosa que é a crença. Marx (1984, p. 81) esclarece:
Ai os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida
própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os
seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no
mundo das mercadorias. Chamo isso de fetichismo, que está
sempre grudado ao produto do trabalho, quando são gerados como
mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.
Esse fetichismo do mundo das mercadorias decorre conforme
demonstra a análise precedente, do caráter social próprio do trabalho que
produz mercadorias. Na apreciação da produção econômica das reduções
jesuíticas este fetichismo se explicita de forma latente, por ocultar que as
50.000 arrobas de erva-mate produzidas em 1683, aparecem de forma
fetichizada como “produção jesuítica” e não como produção do trabalho social
indígena cristalizado.
Ao lado da atividade ervateira se desenvolveu também a pecuária36. De
acordo com Quevedo (2000, p. 139) “quando os jesuítas iniciaram a
missionarização dos Guaranis Tape da margem oriental do Rio Uruguai, em
1626, notaram que as pradarias da região eram adequadas para a pecuária”. O
gado foi introduzido na região de São Miguel em 1634, pelo jesuíta Cristóvão
de Mendonça e depois distribuído entre as demais reduções. O primeiro lote
(cerca de 1.500 reses) veio de Corrientes e cada redução (no Tape) recebeu em
média 99 cabeças de gado, em função de seu campo de pastagens comportarem
a um número maior ou menor delas. Devido à ação escravista dos bandeirantes
paulistas que assolavam a região do Tape (Rio Grande do Sul), os Guaranis
reduzidos migraram para a margem ocidental do Rio Uruguai, tendo de deixar
centenas de cabeça de gado na área circundada pelos rios Ibicui e Quarai, na
direção dos rios Negro e Jacui.
Estas reses sobreviveram abandonadas e reproduziram-se sem qualquer
domesticação, tornando-se bravios. Bruxel (1961, p. 166) descreve que “no fim
do século XVII já havia mais de um milhão de reses selvagens na Banda
______________
36
Bernard (2004) esclarece que o gado na América hispânica fazia parte da paisagem na
segunda metade do século XVI. O governador Hernandarias havia deixado, em 1587, cem
cabeças em torno de Santa Fé do Paraná (Argentina); quinze anos depois, havia cerca de cem
mil.
147
Oriental”. Esta imensa reserva é conhecida como Vacarias do Mar (alusão ao
Mar Del Plata), e os jesuítas instalados nos povoados de Japejú, La Cruz e São
Tomé exploravam comercialmente o gado desta região. O padre Diego
Altamirano apud Quevedo (2000) referiu-se a esse um milhão de cabeças de
gado chimarrão que descia pela margem do Rio Jacui na direção do Rio Negro
em 1686 (mesmo período que os jesuítas exportaram 50 mil arrobas de ervamate), e em 1717, os castelhanos obtiveram a concessão do governador do Rio
da Prata para explorar a Vacaria do Mar.
Com o avanço luso-brasileiro e dos castelhanos sobre as reduções e
também sobre o gado a formação de estâncias para a criação de gado37 foi uma
necessidade imposta pelas vicissitudes. Pois havia um desafio irremediável, a
dizimação do gado pelos lusos e castelhanos que exigia respostas. O gado
juntamente com a erva-mate eram os pilares de sustentação da materialidade
das reduções, e era de fundamental importância mantê-la38.
A solução encontrada foi dividir o gado em grandes estâncias que se
estendiam por centenas de hectares. Lugon (1977) informa que estas estâncias
eram cercadas de muralhas de cercas vivas de cactos, de sebes ou de valados.
Cada estância estava dividida em vários distritos ou rodeos, contendo cada uma,
cinco a seis mil cabeças de gado.
Para Moussy (1993, p. 672) as estâncias dos jesuítas “eram as mais
belas de todo pais, [...] cada fazenda tinha sua capela, seu laranjal e outras
árvores frutíferas [...]. Todos os seus estabelecimentos eram magníficos”.
Lugon afirma que de acordo com os regulamentos das reduções, o pároco ou os
seus auxiliares tinham que visitar as estâncias uma vez ao ano pelo menos. O
______________
37
Astrain (1996, p. 101) esclarece: “Si para sustento de los indios bastaba con la labranza, el
ganado vacuno y el producto de la yerba, tabién procuraran nuestros padres ensenãr a sus
neófitos las artes e ofícios mecánicos que necessitan en todo pueblo culto. Aprendieron los
indios bien aquellos ofícios, aunque nunca poseyeran la cualidad de inventar en ninguno de
ellos. Hay, dice Cardiel, todo género de ofícios mecánicos necesarios en una población de
buena cultura. Herreros, carpinteros, tejedores, estatutarios, pintores, doradores, rosarieros,
torneros, plateros, materos o que hacen mates, que es la vasija en que se toma la yerba del
Paraguai llamada mate y hasta campeneros y organeros hay en algunos pueblos”. A partir
dessas relações sociais emergiram novas necessidades impostas pelas vicissitudes.
38
Astrain (1996, p. 100) revela que: “Espantan a primera vista los números que cita el P.
Cardiel de la vacadas que en su tiempo existian. Con facilidad pasmosa se reunían rebaños de
30.000, 50.000 y 80.000 vacas, que andaban perdidas por aquellos bosques y fácilmente podian
ser comidas y aprovechadas. Procuraron los Padres que cada pueblo tuviese uma estancia de
estas vacas y también cabezas de otros ganado, con lo cual estaba asegurado el sustento de
carne para todo el año”.
148
gado compreendia a espécie bovina e lanífera que estavam concentrados nos
onze principais grupos de estâncias situados ao sul do Uruguai.
Montoya (Apud Lugon, 1977, p. 128) esclarece que “comprara dez mil
bois de uma só vez, após a grande migração de 1631, para duas reduções
fundadas por foragidos do Guairá”. É nesse contexto que o Colégio de Buenos
Aires cumpria um papel estratégico na circulação da mercadoria, servindo de
entreposto comercial39. Neste sentido Seep (1980, p.39) assevera:
A terra, note bene, (sic) é tão fértil, que por toda parte encontrará
uns doze a quinze mil bois e vacas, dos maiores e mais bonitos
deitados no capim ou pastando. São livres e não fazem parte de
nenhum rebanho. Se te aprouver carnear uma rês basta ires ao
campo, atirar-lhe uma corda pelos chifres, trazê-la para casa;
pertence-te. Nosso Colégio recentemente, mandou reunir 20.000
cabeças de gado e o vendeu por 12.000 talers. [...] não seria isto um
alto negócio para os mercadores de gado e corretores da Europa.
Os animais importados pelos espanhóis e jesuítas tinham se
multiplicado, de modo prodigioso nas pradarias verdejantes do prata. Para a
Companhia de Jesus a força de trabalho que capturava a riqueza era os Guaranis
que os entregava para os procuradores da Companhia comercializar. Seep
(1980) afirma que os jovens guaranis de quinze a dezesseis anos eram capazes
de capturar bois enormes, um grupo montado podia perseguir as manadas e
apossar-se delas, não sem à custa, de muito cansaço. Lugon (1977, p. 128)
corrobora:
Os homens da redução do Padre Sepp reuniram, assim, cinqüenta
mil bois em dois meses. Foi apesar de tudo uma oportunidade
excepcional. Quando os paulistas destruíram ou roubaram as
oitenta mil cabeças de gado da “Valqueria de Los Pinares”,
recentemente criada, e segundo plano estabelecido, teria
representado em oito anos 400 a 500 mil reses, a perda fora sentido
como um desastre.
Lugon (1977) que tendo como fonte o padre Huander anuncia que uma
única redução possuía em período normal até cem mil bois. No recenseamento
efetuado após a expulsão dos jesuítas, e a dispersão deu ainda cinco a seis mil
______________
39
De acordo com ASSUNÇÃO (2004, p. 80) “A modernidade da Companhia de Jesus não
estava só na sua proposta de inserção junto à sociedade, na luta pela fé, na catequização
indígena ou na pedagogia dos colégios jesuíticos. Esta modernidade ia além. Compartilhava de
uma mudança do espírito econômico que fora tecido nos séculos XV e XVI”.
149
bois para certas reduções, doze, trinta e cinqüenta mil para outras e cerca de
oitocentos mil para o conjunto das reduções. Não compreendidas as estâncias
de Santo Ângelo e São Borja, nem as estâncias gigantescas de S. Miguel e
Yapeyu, por si só mais populosa que todas as outras e cujas manadas era
“inumeráveis”.
Um pouco antes, o Padre Dobrizhoffer (Apud Furlong, 1960) escrevera
que em Yapeyu possuía 500 mil reses e São Miguel ainda mais, o que dá um
total de mais de dois milhões. Lugon (1977, p. 129) descreve que no Paraguai
moderno não contava com mais de 206 mil bois em 1876. Quanto ao gado
ovino e caprino, o recenseamento parcial de 1768 dava um total de 238.141. O
padre Huander (Apud Lugon, 1977) escreveu que certas reduções possuíam
entre 20 a 30 mil ovelhas40. Por volta de 1690, uma única redução, São Tomé,
contava com 40 mil. As cabras eram pouco numerosas. Lugon (1977) assegura
que bois e ovelhas pastavam em liberdade nos limites da estância. Não havia
estábulos nem manjedouras.
Tratava-se exclusivamente de gado de abate, semi-selvagem. A
produção de leite não entrava na conta. Yapeyu e São Miguel abatiam, em
média, quarenta reses por dia para o consumo dos habitantes. Quanto aos
cavalos, uma redução que não possuísse três a quatro mil era considerada muito
pobre. Em 1768, foram recenseados 86.394 cavalos e potros, 38.262 mulas e
14.975 burros. Os asnos e mulas, assim como uma parte dos cavalos, eram
guardados nas próprias localidades, onde os utilizavam como animais de carga
e tiro, para trabalhos e transportes de uma redução para outra. Os cavalos eram
empregados tanto para a caça como para os exercícios militares e paradas, para
viagens e para malhar o grão. Muratori (1826, p 162) revela que “os guaranis
eram bons cavaleiros e mantinham um ou dois cavalos perto de casa, numa
espécie de pátio, para seu prazer, assim como para o trabalho”.
______________
40
Sepp (1980, p. 155) revela: “Também não nos faltam galinhas, leitões, cordeiros, ovelhas,
cabras. A aldeia de São Tomé já há anos conta com mais de 40.000 ovelhas”.
150
Haubert (1990) também traz informações importantes sobre a
produção econômica das reduções41 jesuíticas, assegurando que afora algumas
cabeças de gado a produção pecuária era exclusivamente do Tupambaé.
Haubert também mostra os dados expressos no censo realizado pelo Estado
Espanhol, que afirma como já foi apresentado em capítulos anteriores que no
momento de expulsão dos jesuítas, as reduções guaranis possuíam mais de um
milhão de cabeças de bovinos, cerca de trezentos mil carneiros e cabras, cem
mil cavalos, cinqüenta mil mulas e vinte mil asnos. Estes rebanhos são
gigantescos, se compararmos com o conjunto das reduções, que abrigavam
então mais de noventa mil habitantes. Evidentemente os números apresentados
por Haubert (1990) e por Lugon (1977) não são exatos, pois estimados, dandonos a compreensão das dimensões do empreendimento pecuário das reduções
jesuíticas. Haubert entende que esse conjunto de bens e de empresas era gerido
pela “comunidade”, ou seja, estava sob a direção direta dos jesuítas. Logo
estava sob o controle da Companhia de Jesus42, pois a propriedade “comunal”
imposta em seu principio pela legislação colonial, correspondia a exigência da
missão. Haubert (1990, p 204) esclarece que:
Passados os vinte anos de isenção após a submissão à Espanha, os
neófitos devem um tributo ao Rei. Considerando-se o serviço
militar prestado pelos Guaranis, esse tributo é fixado em peso por
cabeça. A ele são sujeitos todos os vassalos do sexo masculino
entre dezoito e cinqüenta anos exceto os caciques, seus filhos
______________
41
Gadelha (1980, p 303) afirma que: há luta pela apropriação da “mão-de-obra” indígena, com
os vizinhos paraguaios enfrentariam um poderoso rival, nos padres da Companhia de Jesus os
quais desde 1610, iniciam uma luta pela conversão dos índios ao cristianismo e pela libertação
dos Guarani encomendados. Para a realização desse ideal, os jesuítas tentaram fundir alguns
elementos das duas culturas, conseguindo desenvolver em suas reduções, um sistema de
economia e de vida com características peculiares; aproveitaram elementos da cultura
comunitária indígena, aliados a uma rígida disciplina interna nas reduções em prol de seu
objetivo sócio-religioso. A aspa sobre o conceito de “mão-de-obra” é nossa, pois entendemos
que á categoria que melhor explica essa relação seria força de trabalho.
42
ASSUNÇÃO (2004, p 83) esclarece que: “Regulamentos referentes à administração das
unidades produtivas foram elaborados pelos padres-procuradores com freqüência, dando
orientações àqueles que assumiam funções administrativas. Apenas de os registros não serem
abundantes nos arquivos, as práticas de regulamentos devem ser comuns pela própria forma de
organização interna, para dar continuidade aos empreendimentos, evitando que os religiosos,
por despreparo ou falta de habilidade, cometessem erros básicos ou agissem de maneira de
forma inadequada na sociedade onde estivesse atuando”. Dentre os dezoitos itens, pode-se
destacar o aconselhamento do procurador para: não incorrer em débitos; assegurar-se de que
todos os títulos de propriedades e os direitos de possessão estivessem em acordo com as normas
prescritas em lei, visitar freqüentemente as propriedades para assegurar o andamento das
atividades; controlar os livros de debito e de créditos para o ajustamento de contas e para que
pudessem ficar arquivados para dirimirem possíveis duvidas.
151
primogênitos, os sacristãos, os corregedores e os magistrados
municipais. O tributo deve ser pago em dinheiro.
Este exemplo é elucidativo, no sentido de apontar a movimentação
econômica, e por outro lado entender as relações sociais produzidas pela
criação do mercado mundial. Reconhecendo que a República “Comunista” dos
Guaranis é um mito, pois estes estavam submetidos à legislação espanhola, e
esta, estipulava quem deveria pagar tributo, e quem não pagava tributo,
portanto, as reduções não tinham autonomia fiscal. Observa-se ainda que os
Guaranis reduzidos podiam ser requisitados, bem com outros grupos étnicos
para executar trabalhos públicos para o Estado Espanhol, como por exemplo, a
construção de edifícios e fortificações. E o mais comum era a solicitação das
tropas Guarani para atuarem na defesa das cidades que eram atacadas por
indígenas e também para combater os avanços das bandeiras paulistas sob o
território espanhol.
Sobretudo os neófitos deveriam prover todas as necessidades das
reduções. Tais como: construção de edifícios públicos, fabricação ou
pagamento do mobiliário, dos objetos de culto, das vestes sacerdotais, estátuas,
lustres; aquisição de hóstias, do vinho da missa, dos santos óleos, de cera, da
manutenção parcial ou total dos funcionários e magistrados municipais,
milicianos, recepção de autoridades. Todos estes custos incluindo os tributos
individuais eram mantidos com os recursos provenientes, da produção do
Tupambaé. Neste sentido a base econômica que financiava o empreendimento
tinha como pilares fundamentais a erva-mate e o gado bovino. Portanto era a
força de trabalho indígena que produzia o valor e impulsionava o
empreendimento das reduções jesuíticas43. Haubert (1990) é um dos autores que
afirmam que no contexto das reduções, estas não estavam inseridas em uma
economia monetária. Esta afirmação é paradoxal, pois em sua obra afirma que
os jesuítas nomeavam procuradores para comercializar a produção das
reduções.
______________
43
MELIÁ (1986, p 174-175) assevera que: “Hechos similares se repitieron no pocas vezes. El
arado tirado por bueyes, la cria de ganado, la racionalizacion de los cultivos,e especial el de la
yerba mate, la sedentarizacion definitiva Del problado misionero... fueron otros tantos cambios
importantes em la vida guarani, la modernizacion técnica sin duda se reflejó en los modos de
produccion y em las formas de cooperacion, que resultaron ahora mas complejas y
planificadas”.
152
O padre Seep (1980) descreve que o Colégio de Buenos Aires havia
vendido 20.000 cabeças de gado por 12.000 talers. Evidentemente que o
dinheiro fruto da produção do Tupambaé não estava nas mãos dos indígenas.
Estava sendo administrado pelos jesuítas, os índios estavam sob a tutela da
Companhia de Jesus de acordo com a legislação espanhola. Assim como no
Brasil atual, cujos indígenas estão sob a tutela da Funai, pois a classe dominante
considerava (e considera atualmente) o indígena “incapaz” de gerir a sua
própria existência.
Haubert (1990, p 205) anuncia a ideologia da classe dominante quando
afirma “Ora, todos os membros da sociedade Guarani são crianças, incapazes
de satisfazer obrigações de caridade”. Melia (2004, p 213) assevera: “En la
história da las reducciones actuaron sin duda factores sociales, políticos y
económicos que ‘reducian’ a los Guaranies, asi como una ideologia que nunca
dejó de ser, en sus raices, colonial y etenocêntrica44.” Mas os guaranis eram
suficientemente adultos para produzir mais de um milhão de cabeças de gado e
exportar 50.000 arrobas de erva-mate no ano de 1683, e a servir ao Estado
Espanhol nas guerras territoriais. Porém para a ideologia da classe dominante
estes não estavam “preparados” para gerir o capital que era produzido pela sua
força de trabalho. Nesta acepção os indígenas eram considerados “incapazes”.
Pois na visão eurocêntrica o jesuíta estava mais “preparado”, pois estes
dominavam os códigos sociais da sociedade instituída. Cujo Deus atenderá pelo
singelo nome de Capital, e seu objetivo na terra era a reprodução ampliada.
Melia (2004, p 208) assegura que a redução não é somente uma redução
espacial mais sim política:
En primer momento se trata de una reducción espacial: la reducción
se opone a la dispersion. “juntar los indios” es la principal
defeniccion da la reduccion. La intencion de esta concentracion de
los indios, sin embargo, responderá a diversos intereses: servicio a
los encomenderos, facilidad para la mision, pero también defensa
de los própios indios y proyecto de tornarlos más “políticos e
humanos”. De todos os modos, la reducción, aun con su mera
expresión de reduccion espacial, es ante de tudo una reduccion
política. Espacio y política son el eje central em torno al cual gira la
reducción. Reduciendo a la sociedad guarani se la reduce
politicamente.
______________
44
Ver mais sobre este assunto: Meliá, Bartomeu. Temple, Dominique. El don la venganza y
otras formas de economia Guarani. Asuncion: CEPAG, 2004. p 189 – 215.
153
Paradoxalmente Haubert (1990) reconhece o caráter tutelar e que os
jesuítas mantinham com sucesso o seu empreendimento devido ao pagamento
salarial ser efetivado em gênero alimentício. Nota-se que a Tutela missionária é
compreendida aqui num sentido bem mais amplo que a estrita tutela legal, mas
isso se deve também ao fato de os jesuítas estarem convencidos de que, “se o
estômago não estiver cheio de carne de boi, os guaranis fugirão por montes e
vale”. Por estar inserida na totalidade do modo de produção capitalista em sua
fase de acumulação primitiva, a produção econômica das reduções jesuíticas era
monetária, evidentemente para os gerenciadores do empreendimento, pois estes
comercializavam o gado, a erva-mate, o couro (que era exportado em enorme
quantidade para a Europa) que fora produzido pela força de trabalho indígena.
Com o dinheiro resultante do comercio compravam mantimentos,
insumos, ferramentas que eram distribuídos aos indígenas. O gado bovino da
produção45 “comunal” era controlado pelos jesuítas que ordenava quantas
cabeças deveriam ser vendidas e quantas cabeças de gado seriam abatidas e a
quantidade de carne que teria direito cada família indígena. Com o lucro
auferido com as vendas das mercadorias produzidas nas reduções os jesuítas
pagavam os tributos. A amortização do imposto era feito em dinheiro sobre a
força de trabalho indígena utilizada na produção (com as exceções já levantadas
nas páginas anteriores) ao Estado Espanhol.
O dinheiro, já na Europa comprava galeões, navios mercantes, canhões
e pagava os salários de seus funcionários etc. Colocava o capital em circulação
no mercado mundial46, mantendo o ciclo da reprodução ampliada, pois estes
navios, canhões, eram produzidos pela força de trabalho assalariada. Portanto, o
dinheiro do pagamento dos tributos dos índios do Paraguai, estava interrelacionado e interdependente na produção de mais valia para o capitalista
proprietário da fábrica de navios, de canhões etc. Por mais paradoxal que possa
______________
45
Para Dobb (1981, p 225) “a chamada ‘acumulação primitiva’, mostrou-se por um lado como
concentração de propriedade pela ação da pressão econômica e monopólio, usura ou
expropriação real, e, por outro, como o conseqüente desapossamento dos donos anteriores.”
46
Dobb (1981, p 225 – 226) esclarece que: “um tipo de propriedade nasceu das cinzas de um
tipo mais antigo: a grande propriedade atingiu a estatura adulta digerindo a pequena. Uma
classe capitalista surgiu como produto não da frugalidade e da abstinência, como os
economistas tradicionalmente afirmam mas do desapossamento de outros através da
superioridade econômica ou política. (...) A chamada acumulação primitiva, portanto, nada mais
é que o processo histórico de divorciar o produtos dos meios de produção...A expropriação do
produtor agrícola ou camponês, assim afastado de qualquer propriedade do solo, é a base de
todo o processo”.
154
parecer Máxime Haubert (1990.p.217) o mesmo autor que afirma que neste
contexto as reduções não estavam inseridas em uma economia monetária, traz a
seguinte colaboração:
O comércio entre as reduções não basta para satisfazer todas as
suas necessidades. A agricultura e o artesanato se ressentem
principalmente do ferro e de outros metais: produtos
semimanufaturados, instrumentos diversos e objetos manufaturados
(armas, facas, anzóis, medalhas.) constituem, portanto o essencial
das importações.
Marx (1968) afirma que neste contexto já está assegurado a expansão
dos mercados e conseqüentemente a transformação das linhas de tráfego que
trouxeram de inicio modificação substancial nos métodos mercantis. No
começo as corporações de comerciantes – estes mesmos que vendiam armas,
facas, anzóis, medalhas, ferro e outros metais para as reduções – ainda
predominavam no tráfico com a Índia e a América. Mas por trás destas
corporações estavam grandes nações47.
Por exemplo: no lugar dos catalães que negociavam com o Levante,
surgiu à Espanha inteira, ao lado da Espanha apareceram dois grandes países
Inglaterra e França; e mesmo os menores como Portugal e Holanda eram tão
grandes e forte como Veneza; a nação mercantil maior e mais forte do período
anterior. A força destes Estados Nacionais deu ao mercador navegante, nas
empresas aventuradas dos séculos XVI e XVII, um apoio que tornava a
corporação que protegia os associados, inclusive com armas, cada vez mais
supérflua, e os custos dela nitidamente importunos. Marx (1968, p. 1032-1033)
descreve este processo:
Então passou a desenvolver-se muito mais rapidamente a riqueza
individual, e logo apareceram comerciantes isolados que podiam
empregar em um empreendimento tanto fundos quanto uma
sociedade inteira. As sociedades comerciais sobreviventes em sua
maioria se transformam em companhias armadas que, sob proteção
e soberania da metrópole, conquistavam paises inteiros recém
descobertos e os exploravam em regime de monopólio. Quanto
mais nos novos territórios se estabeleciam colônias,
predominantemente fundadas pelo Estado, tanto mais o comercio
______________
47
Dobb (1981, p. 212) afirma que: “Em suma, o sistema Mercantil foi um sistema de
exploração regulamentado pelo Estado e executado através do comercio, que desempenhou um
papel importantíssimo na adolescência da indústria capitalista: foi essencialmente a política
econômica de uma era de acumulação primitiva”.
155
corporativo recuava ante ao comerciante individual e por
conseguinte cada vez mais o nivelamento da taxa de lucro estava na
dependência exclusiva da concorrência.
Até aqui encontramos como revela Marx taxa de lucro para o capital
mercantil, pois até então só havia, além desta o capital usurário, e ainda está em
sua gênese o capital industrial (que ainda não estava desenvolvido). Para uma
melhor compreensão do leitor é importante destacar que no principio deste
processo, fundamentado na teoria de Marx, ainda era hegemônica a produção de
trabalhadores que eram proprietários dos meios de produção, e assim o trabalho
deles não produzia mais-valia a capital algum48. Era obrigada a ceder grátis a
terceira fração do produto, faziam na forma de tributo ao senhor feudal. Marx
(1968, p. 1033) assevera:
Por isso, pelo menos no começo o capital mercantil só pode extrair
lucro dos compradores estrangeiros de produtos indígenas ou dos
compradores indígenas de produtos estrangeiros; só nos fins deste
período – na Itália, portanto no decair do império levantino – a
concorrência externa e as dificuldades do mercado podiam forçar o
artesão que produzia mercadoria de exportação e entregá-los ao
exportador abaixo do valor49.
Portanto, as transformações ocorridas na produção determinaram no
centro do capitalismo a superação do trabalhador artesanal pelo trabalhador
manufatureiro50, e nas colônias manteve-se o ciclo sistêmico do capital
mercantil expresso na extração de lucro dos compradores estrangeiros de
produtos indígenas. Como por exemplo, a erva-mate, gado, couro etc. E dos
compradores indígenas de produtos estrangeiros como: armas, ferro, facas,
panelas, anzóis, outros metais, etc. Além dessas mercadorias as reduções
necessitavam de outras como: sal (que era desconhecido nesta região); o vinho
que era preciso importar da Espanha ou do Chile (ou em Mendonza), a cera
______________
48
Grifos nossos.
DOBB (1981, p. 188) esclarece que: “[...] as condições para o investimento mais lucrativo na
indústria não tinham amadurecidos de todo nos séculos anteriores. Outros investimentos eram
preferíveis às dificuldades, riscos e menor liquidez do capital dedicado á empresa industrial”.
50
Dobb (1981, p. 188) afirma que: “As condições cruciais necessárias para tornar atraente o
investimento na indústria em qualquer escala considerável não podiam estar presentes até que o
processo de concentração progredisse o bastante para causar um desapossamento real dos
proprietários anteriores e a criação de uma classe substancial dos destituídos. Em outras
palavras, a primeira fase de acumulação – o crescimento da concentração da propriedade
existente e o simultâneo desapossamento – era um mecanismo essencial para criar as condições
favoráveis à segunda”.
49
156
européia para as velas, o óleo, e, sobretudo, os objetos e vestimentas de luxo
para o culto e outras cerimônias.
Logo, para comprar essas mercadorias e para pagar os tributos, houve a
necessidade premente de aumentar as exportações. Tratava-se principalmente
da erva-mate, do couro do boi, de tecidos de algodão e de lã, de tabaco, de
açúcar, do mel e de alguns produtos manufaturados como móveis de madeiras.
Haubert (1990) informa que todos os anos cada redução fretava varias balsas
(aquelas que não eram proprietária de várias) para transportar as mercadorias
para os estabelecimentos coloniais, navegavam pelos rios Paraná, Paraguai e
Uruguai. As viagens ocorriam geralmente após a estação agrícola. Para a
viagem recebia como provisões carne defumada, erva-mate, tabaco.
Em Santa Fé, Buenos Aires ou Assunção entregava as mercadorias aos
procuradores das missões. Os procuradores faziam todas as negociações e
operações comerciais. Haubert revela que os procuradores não era apenas
representantes comerciais do Tupambaé51, mas também dos índios que
individualmente (familiar) obtivera extraordinariamente, um pequeno excedente
e desejavam vendê-las ou trocá-las por mercadorias espanholas.
Os indígenas se hospedavam nos Colégios jesuítas52, e em edifícios
construídos com o capital das missões. Enquanto aguardava a mercadoria se
realizar na circulação e posteriormente no consumo, pois eles já haviam
iniciado todo esse circuito quando efetivaram a sua produção. O comércio
externo podia ser feito também de forma inversa com os viajantes e os
______________
51
Gadelha (1980, p.266) esclarece: “Vigiadas e sob rígida orientação do padre cura
desenvolviam-se, também, as plantações individuais de cada familia, inclusive a do cacique. Ao
lado destas surgiram plantações comunais de milho, legumes, algodão destinados à ‘Caixa da
Comunidade. Estes campos cultivados em comum, por todos os habitantes da aldeia seriam
denominados ‘Tupambaé’, isto é, ‘Terra de Deus’”.
52
No caso dos Itatim era o Colégio de Assunção que servia de intermediário as transações.
157
mercadores indo até as reduções. Porém a legislação colonial permitia que estes
permanecessem nas reduções apenas por três dias53.
Haubert (1990) destaca que a residência permanente destes
comerciantes nas reduções não era permitida desde 1618 pelas Ordenanzas de
Alfaro. Evidentemente, pois era monopólio da Companhia de Jesus o circuito
de produção, circulação de mercadorias nesta região, principalmente de uma
mercadoria especial a única que é capaz de produzir valor: a força de trabalho.
Este direito “sagrado” era resguardado pela lei espanhola.
______________
53
De acordo com Lugon (1977, p. 155): “Somente os mascates, os vendedores ambulantes
estrangeiros, podiam penetrar, algumas vezes, nas reduções e nelas permanecer até três dias,
ficando instalados numa casa especial situada no exterior do perímetro urbano e nas vizinhanças
do Colégio. Sob controle, era permitido a esses mascates oferecerem e trocarem suas
bugigangas. E era tudo. Para favorecer o comércio exterior com Assunção e Buenos Aires,
foram estabelecidos mercados mais ou menos regulares em Santo Inácio Guaçu, Santa Maria da
Fé, Santiago, Santa Rosa, S. Carlos, Yapeyu e São Cosme. O bispo Fajardo nota que e fervor
religioso era menos elevado nessas reduções, por causa de contado com os mercadores. As
feiras para o mercado interior não se revelavam necessárias, uma vez que todos os produtos
estavam concentrados e postos à disposição dos consumidores nos grandes armazéns
comunais”.
CAPITULO III
A
VIDA
CULTURAL
E
EDUCACIONAL
NAS
REDUÇÕES
JESUÍTICAS: A SÍNTESE DA EXPERIÊNCIA AGRÍCOLA GUARANI
COM A TÉCNICA EUROPÉIA.
As condições existentes no território ocupado pelas reduções eram
extremamente favoráveis ao desenvolvimento da agricultura. Dois fatores
foram fundamentais para o desenvolvimento da agricultura nas reduções
jesuíticas.
O primeiro fator é que o povo Guarani historicamente de acordo com
Meliá (1991, p. 14) “[...] son agricultores que saber explotar eficazmente essas
tierras de selva, cuyos àrboles derriban y queman y en cual plantan maíz,
mandioca, legumbres y muchos outro cultivos”. O segundo fator foi à técnica
trazida pelos europeus fazendo com que a antiga economia Guarani
fundamentada na reciprocidade fosse substituída por uma nova relação
fundamentada na propriedade, provocando uma mudança de perspectiva. A
relação secular fundamentada na reciprocidade foi substituída por uma nova
relação abalizada na propriedade. Pode-se ilustrar esta nova alternativa
observando a relação dos Guaranis com o machado de ferro (cunha). Que era
uma novidade nas reduções, como descreve o Padre Roque Gonzáles apud
Melia (2004 p. 201):
Para derribar estos àrboles, y lo que es más, para cavar sus canoas,
como no saben el uso de hierro (aunque hay minas de él en su
Uruguai) usan cuñas de piedra que es cosa que pone admiración
corten com ellas cuanto es menester com gran facilidad. Después
de reducirlos nuestros padres, les llevan esta misma forma de
cuñas, pero hechas de hierro, y com cada uma delas se gana una
família, que se reduce de buena gana, por tener com que hacer sus
canoas y sementeras.
Portanto a síntese de boas terras e hábeis agricultores e com novas
inovações técnicas trazidas pelos europeus. E consequentemente o acúmulo de
aproximadamente 2.000 anos de experiência dos Guaranis como agricultores,
aliada ao conhecimento técnico implementado pela Paidéia jesuítica floresceu.
159
Os Guaranis incorporaram estas novas técnicas como assinala Melia (2004 p.
202):
El hacha trae la forja el hierro, y la compra de Hierro. Al principio
la reciprocidad estaba integrada en una estructura de prestaciones y
ayudas personoles: alimentarse y educarse; casarse y hacer fiesta;
cuidar la salud y morir. Vengarse, a veces. El hombre y la mujer
son agricultores, son cazadores y son recoletores. Pero, he aquí que
viene el herrero.
A introdução da técnica, por outro lado, destrói a antiga economia
guaranitica fundamentada na reciprocidade, como ilustra Montoya (1633, p.
196) “el sentido de jo, recíproco mutuo, son ‘on’ ñomba’e, nuestras cosas
mutuas [...], orojohayhu, orojohayhu, amámonos ad invicem, orojopói,
convidámonos a comer”. Esta comunidade surge às vezes, por vicissitude
histórica muito concreta. Melia (2004, p. 29) afirma: “que van desde
cataclismos y fenómenos ecológicos adversos hasta pertubaciones sociales -,
una consciencia aguda de los males que afectam el buen modo de ser”. Nesta
acepção a inovação técnica introduzida pelos europeus cinge todo um sistema
econômico da reciprocidade guarani.
Meliá (2004) esclarece que no antigo modo de produção ocorria uma
igualdade na produção material da existência, porém com o ferro, emerge uma
nova estratificação econômica, pois o ferreiro cria um utensílio para dominar a
natureza, uma técnica que suplanta a eficácia dos processos naturais.
Na visão de mundo Guarani o ferreiro rompe com a natureza: não o
amansa ou domestica; a combate. Meliá (2004, p. 202) esclarece: “su trabajo se
pone al servicio de los productores tradicionales. Le da azada al agricultor y
espada al guerreiro. El herrero es de una ‘casta’ diferente. Es incluso temido ya
que su produccion es de terrible eficacia”.
A admissão de novas técnicas preparou o ingresso do dinheiro (moeda)
e com ela o valor, e o comércio, que entrou em profunda contradição com a
tradição guarani. A síntese dialética da técnica européia e da economia
fundamentada na reciprocidade guarani encontrou um campo fértil nas grandes
planícies cortadas de outeiros, vales marginados de suaves colinas, nas
campinas ao fundo, bosques altos nas cristas das elevações, tal é o aspecto geral
do Paraguai Oriental, onde se encontravam as antigas reduções do noroeste da
160
província. A síntese se expressou na grande produtividade agrícola e a criação
de um espaço singular o da redução, onde frutificou este processo.
Como revela Seep (1980, p. 145) “as roças são muitos férteis, mesmo
sem adubo dão literalmente frutos cem por cento, o cereal cultivado era o milho
(o chamado grão turco) que era produzido em grande quantidade”. Nas
reduções a síntese da técnica européia e a prática agrícola guarani produziam
grandes safras, e por outro lado grandes discriminações da classe dominante.
Dois exemplos são elucidativos nas palavras do padre Seep (1980.p.146):
“Nossos arados não são tão providos de relhas de ferro, porque donde tirar tanto
ferro, mas são feito do primeiro tronco de árvore que se encontre e apontado
como um arado. [...] freqüentes vezes também dá a este ou aquele índio umas
duas ou três geiras para lavrar”. A citação de Seep revela o contole jesuíta na
produção. E Seep mostra a visão eurocêntica: “Mas, que é que faz o índio
glutão? Pega da semente, que ele deveria confiar ao seio da terra tão fértil e da
qual poderia esperar uma cegadura abundante, e enfia em seu papo voraz”.
A citação do padre vem no sentido de trazer à baila que a síntese não
se deu pacificamente, foi fruto da contradição, sob a hegemonia da cultura do
dominante, pois Seep elogia o arado que é a demonstração da técnica, como se
a técnica, por si só, pudesse arar a terra. Por outro lado promulga a sua visão
eurocêntrica em que a força de trabalho aparece deslocada da produção com a
alcunha de: glutão. Esta contradição nas reduções também se proclamava
através da violência como descreve Seep (1980 p. 146):
E é completamente deshabitada(sic) e muitas vezes não se
encontrará uma só chocinha em 300 milhas de extensão. Mas nós
não conseguimos fazer com que os índios, em sua pura preguiça
semeiam mais de uma ou duas rocinhas de 18 passos de grão turco.
E mesmo isto só conseguimos com tundas. Ainda domingo passado
tornou-se absolutamente necessário passar uma sova em alguns
índios que não haviam amanhado a terra e nem haviam procurado
encontrar um arado.
O processo reducional, portanto, não era o paraíso como alguns autores
buscam salientar, pois a violência contra os indígenas era uma constante.
Morais, (1980, p. 147) busca justificar a violência:
161
Muito se discutiu em torno da questão dos castigos corporais, sob
forma de surras com açoites ou chicotes, administrados nas
reduções. Os críticos, no entanto, esquecem que nos séculos XVII e
XVIII se opinava a respeito de maneira bem diversa. Surras e
chicotes constituíam, naquelas épocas, a coisa mais natural deste
mundo [...].
Ao naturalizar as surras e açoites Moraes busca ocultar a contradição,
pois, esconde as relações de poder estabelecido, da mesma forma que os
escravocratas justificavam os açoites nos escravos negros “porque eles queriam
fugir”. O açoite anuncia o poder e a contradição entre aquele que ordena o
açoite e aquele que o recebe, pois na literatura que trata desse tema não se
encontra registrado o açoite em nenhum jesuíta. O processo ratifica que a
síntese entre a técnica européia e a experiência agrícola Guarani, teve como
resultante o aumento da produtividade, combinadas em surras e açoites, que se
constitui dialeticamente em uma nova tese que emerge nas relações sociais das
reduções guaraníticas.
Explicita-se a hegemonia jesuítica no empreendimento, pois ao
dominar a base material como esclarece Seep (1980) que estava sobre o
controle dos jesuítas todas as ferramentas utilizadas na produção, assim como
também os insumos (sementes, mudas, etc.), e quando chegava à época de
semear que era comumente no mês de junho e agosto, o padre concedia os bois
e o arado para o amanho da roça. Seep (1980, p. 147) esclarece: “[...] lhes
forneço a semente. O que isto me custa, em face dos seis a sete mil índios, pelos
que tenho de cuidar, o inteligente leitor que o diga”.
Lugon (1977, p. 122) esclarece que “quando os Guaranis arroteavam
uma terra, desbravavam uma floresta virgem, as cinzas, as raízes e as plantas
queimadas serviam de adubos. As reduções possuiam canais de irrigação que
levavam água aos campos, cujo leito deste era constantemente pavimentado”.
Máquinas hidráulicas extraiam água dos rios. Desde a sua chegada os jesuítas
encontraram pequenas plantações de milho, mandioca, batata-doce e erva-mate
em estado selvagem. Os jesuítas introduziram a cultura do trigo, cevada, arroz,
cana-de-açúcar, algodão, fumo. Sendo que o cânhamo fornecia o pano
necessário. E em que cada redução possuía seis a oito imensas hortas e
pomares, à parte o jardim dos padres, que era uma horta para experiência de
aclimatação e ocupava, por si só, até três hectares aos fundos dos colégios.
162
Seep (1980) afirma que a horta de sua redução produzia o ano inteiro
as mais variadas espécies de hortifrutigranjeiros e enumerava uma lista extensa
de legumes e verduras que vai da chicória ao melão, assim como flores e
plantas ornamentais. A outra grande produção das reduções era o algodão, Seep
(1980, p.210) destaca: “Mandei plantar algodão, absolutamente necessário para
os vestidos. A terra em que se planta denomina o índio de Mandiyuti. O
algodão cresce em abundância no Paraguai. [..] O algodão cresce destarte, em
belíssimas quão extensíssimas renques, ao modo das videiras”.
Lugon (1977) descreve que os padres possuíam livros de agricultura
trazidos da Europa e também criou com a sua própria experiência em síntese
com o conhecimento indígena uma ciência agrícola aplicada. Seus êxitos neste
campo foram anotados, cuidadosamente classificados e conservados. Também
foram concebidas e criadas ferramentas apropriadas, e em cada redução no
momento das lavouras seiscentos a oitocentos animais de tiro estavam em
atividade. O milho formava a base da alimentação junto com o centeio, o trigo,
o arroz e dava até quatro colheitas ao ano, e era um dos produtos também
comercializados. Lugon (1977, p. 125) informa que “a colheita do algodão
anual era em média de duas mil arrobas de onze quilos e meio por cada
redução”. Seep (1980) afirma que na nova redução de São João tinham sido
plantados cem mil pés de algodão no primeiro ano. Dois anos mais tarde
existiam trezentos mil que produziam mais de quatro mil quintais de algodão.
A cultura do algodão desapareceu depois da expulsão dos jesuítas.
Lugon (1977, p. 21) assevera que “a produção de cana-de-açúcar, cuja
prosperidade pode ser vista pela quantidade de açúcar branco armazenada na
redução de Santa Rosa em 1695: duzentos quintais de açúcar branco”. Outra
mercadoria produzida para a exportação era o vinho, sendo que as reduções do
Uruguai exportavam vinho para Buenos Aires, Assunção e Rio da Prata.
Bougard (1883, p. 351) esclarece que “outra mercadoria produzida nas
reduções jesuíticas e de grande aceitação no mercado era o tabaco, denominado
‘fumo do Paraguai’ que estava classificado ‘a par dos melhores Cruz de
Havana’”. A produção cobria as necessidades internas e permitia grande
exportação. Porém, como já demonstramos nas páginas anteriores as duas
principais atividades econômicas do empreendimento jesuítico era sem duvida a
produção da erva-mate e a criação de gado. Lugon (1977, p. 125) também
163
corrobora com esta afirmação: “[...] a erva-mate forneceu desde os primeiros
tempos uma fonte de grandes rendimentos. Um século após a expulsão dos
jesuítas, ainda se exportava aproximadamente, cinco mil toneladas de mate
(442. 940 arrobas), provenientes do território das missões”. Por ser um povo
que tinha desenvolvido durante milhares de anos a agricultura, os Guaranis
desenvolveram também a arte da cerâmica, como atesta Meliá (1991, p. 14):
“Son também hábiles ceramistas, cuyos artefactos necessitan para preparar y
servir sus alimentos”.
Logo, a riqueza do solo e o clima facilitaram além do desenvolvimento
agrícola, também o artesanato e a pequena manufatura que fora introduzido aos
poucos, principalmente o trabalho com cerâmica e com a madeira. Os Guaranis
tinham uma longa experiência nos ofícios manuais, principalmente na
fabricação de armas de guerra (arcos, flechas, lanças, bordunas etc.) e de canoas
para os transportaram pelos rios. A confecção de alguns ornamentos de plumas,
a cerâmica e o trabalho com o couro era uma técnica dominada por centenas de
anos por parte dos indígenas.
Cardiel (1990, p. 108) desataca que “os primeiros mestres profissionais
dos Guaranis foram os próprios padres, alguns dominavam um grande numero
de ofícios”. Bourges (1755) constatou que os jesuítas trouxeram para as
reduções profissionais em diversos ofícios para ensinar aos indígenas reduzidos.
Muratori (1983, p. 159) informa que “os irmãos jesuítas ligados aos grandes
colégios faziam intercâmbio com as reduções. Jesuítas de Córdoba ou de
Assunção, passavam longos períodos nas reduções, para iniciar os guarani em
vários ofícios e aperfeiçoá-los”.
A princípio a produção de manufaturas era somente no estreito limite
para a satisfação das necessidades das reduções. Com o decorrer do tempo
ocorreu um desenvolvimento desta produção e esta também passou a ser
comercializado. Neste sentido se revelam a introdução de uma educação técnica
164
e profissionalizante inserida pelos padres jesuítas nas reduções, cujos alunos
aprendizes eram os índios Guarani54.
Lugon (1977) afirma que para a produção de vestuários dois teares
funcionavam em Itapuã, isto em 1627. E as outras reduções não estavam por
certo desprovidas desse equipamento. Muratori (1983) confirma essa suposição
de Lugon e que após a segunda migração todas as reduções eram autosuficientes na produção de vestuários, sendo que as mais modestas contavam
entre dez e vinte teares; e em Yapeyu, por exemplo, tinha trinta e oito. Muratori
descreve que por toda parte nas reduções observava-se um grande número de
tecelões que fabricavam continuadamente os tecidos para vestir todos os
habitantes da redução e produzindo excedentes.
Florentin de Bourges (1755) observou que os guaranis trabalhavam
todas as espécies de tecidos e panos que era preciso. Pois no verão os indígenas
vestiam-se de algodão e no inverno de lã, e estas fábricas tinham uma produção
considerável e os jesuítas enviavam os excedentes para Buenos Aires, Córdoba
e Tucuman, e as exportações se ampliou até a Europa. O tecido inicialmente
simples passou a ser decorados com flores e estampas variadas que provocou a
admiração do padre Seep (1980, p.245):
Quem foi que ensinou meus índios a tecer franjas e bordar rendas?
A costurar e fazer com a agulha corporais, cortinas, casulas e todas
as alfaias, de culto divino? Quem lhes guiou a mão para tornear do
chifre relicários romanos? Quem lhes ensinou a lavrar a pedra, a
burilar, com esforços incríveis, estátuas, altares, púlpitos e a fazer
mil outros trabalhos perfeitissímos. [...] Não quero mencionar os
tapetes de lã que as senhoras da nova colônia há pouco tempo
fizeram, em nada inferiores aos tapetes turcos.
O artesanato “moderno” e a pequena manufatura foram introduzidos
pelos jesuítas e estavam sobre o controle destes. Eles controlavam toda a
______________
54
Para uma melhor compreensão deste processo de educação profissionalizante (ofícios)
introduzido pelos jesuítas na província do Paraguai duas obras são emblemáticas. A primeira é:
Florentin de Bourges; O. F. M; Voyage aux Indes Orientales par lê Paraguay, lê Chili et lê
Perou; - publicado pelos padres jesuíta, volume V das Lettres Edificantes. O relato de Florentin
de Bourges constitui um documento precioso para a compreensão da ação inaciana no Paraguai;
pois é um testemunho direto da própria época. Frei Florentin era um padre capuchinho que
chegou as reduções por acaso, depois de ter vagueado um mês na floresta quando fora
abandonado por seus guias quando ia em direção a Cordóba. Residiu por dezessete dias na
redução de Francisco Xavier e também ficou um tempo em São Nicolaou e Concepcion.
Tradução espanhola de 1755, cartas Edificantes, tomo IX. A segunda obra é: Muratori, Antonio.
Relations des missions deu Paraguay. Paris: Macpero, La Découvert, 1983.
165
produção, as oficinas estavam estabelecidas no próprio recinto do colégio e,
cada ramo de atividade tinha a sua própria “fabrica” ou oficinas. E durante a
época de cultivo da lavoura ou na colheita da safra, os artesões trabalhavam
uma semana na oficina e duas semanas no campo. Haubert (1990) afirma que
por esta dupla função os Guaranis não recebiam nenhum pagamento, apenas
ganhavam uma ração suplementar. A exploração da força de trabalho indígena
se dava, portanto, em vários setores da produção: agrícola, artesanal e
manufatureira. Seep (1980, p. 245) descreve esta exploração:
Não relato aqui os talentos dos demais padres missionários, que
inventaram, em sua indefessa atividade, muitas coisas semelhantes
–. Ensinaram a fabricar sinos de bronze, a fundir tachos de estanho,
a preparar salitres, e nitratos em pó. Tenho visto, com grande
admiração minha, relógio feitos pelos índios, relógios que dão
horas e cujos ponteiros indicam o tempo; esferas ou cilindros
astronômicos, nos quais os indígenas lograram a gravar os graus e
os minutos com a precisão a mais exata. Assim como se torna
difícil distinguir um ovo do outro, o é igualmente difícil adivinhar
qual o relógio feito na Europa e qual no Paraguai.
Ao mesmo tempo em que relata a capacidade do guarani em produzir
sinos de bronze, a fundir metais e a produzir relógios, a visão etnocêntrica
também se expressa no pensamento de Sepp, no sentido de separar o trabalho
físico do trabalho intelectual, se utilizando do conhecimento técnico para
hierarquizar a cultura européia em relação à cultura indígena, expressando o
domínio de um grupo sobre o outro. Seep (1980, p. 245) assevera que:
Ao ler estas cousas (sic) quase incríveis, perguntará, com toda
razão, algum leitor europeu curioso, quem pôde civilizar a tal ponto
estes bugres estúpidos e broncos? Respondo eu: na verdade, são
estúpidos, broncos, bronquíssimos estes nossos silvícolas para
todos os assuntos espirituais, para tudo que reclama trabalho mental
e que se não pode ver com os olhos. Para os serviços mecânicos,
porém, tem olhos de lince.
Algumas empresas do Tupambaé tinham o caráter de pequenas
indústrias, como por exemplo, os moinhos, serrarias, olarias, instalação de
secagem de erva-mate ou de tratamento de cana-de-açúcar. Portanto, existia nas
reduções uma série de ofícios, a propósito a engenharia civil e arquitetura.
Peramás (2004, p. 33) corrobora:
166
Los pueblos de guaraníes contaban con edifícios comodísimos.
Siempre que posible, se construian en un alto. Un lado de la Plaza,
un cuadrado de uma 150 varas, lo ocupaba el templo, el
cementerio, la casa del cura y las oficinas de los artesanos; sobre
los otros tres lados se distribuian las casas de los indios, todas de
tapial y cubiertas con tejas acanaladas.
Haubert (1990) confirma também a existência de vários ramos de
ofícios como: carpinteiros, marceneiros, tanoeiros, torneiros, oleiros, curtidores,
sapateiros, seleiros, alfaiates, chapeleiros, douradores, fabricantes de terços e os
escultores. Estes ofícios foram introduzidos e ensinados pelos padres jesuítas,
que contavam com a contribuição de profissionais destas áreas para ministrar os
cursos.
A Tipografia criada pelos jesuítas foi durante muito tempo a única do
Paraguai e no Rio da Prata. A principio os inacianos se utilizavam o talento de
copista do Guarani, cujas letras de imprensa por eles forjadas eram tão perfeitas
que chegavam a enganar os peritos – pode se ver este talento em grandes infólios ainda conservados em algumas bibliotecas. Por várias vezes os jesuítas
haviam tentado trazer da Europa um tipógrafo, pois na Espanha a impressão de
livros em Guarani era muito difícil e o encaminhamento era custoso. Haubert
(1990, p. 213) esclarece:
Em 1770, finalmente o padre J. B. Neuman consegue com os meios
disponíveis construir uma pequena tipografia e fundir no estanho os
caracteres, entre os quais muitos são específicos da língua Guarani.
Os livros editados são normalmente em espanhol ou em guarani, e
o número de exemplares é muito reduzidos. A maioria das obras
são manuais para o uso dos missionários e catequistas [...]
O padre Dobrizhoffer (Apud Furlong, 1968) descreve que o papel
utilizado era importado da Europa e a tinta era extraída da madeira de tapy, cuja
fuligem da combustão era extraída e recolhida em um recipiente; vertendo água
quente e misturando com borracha e açúcar. Estava produzida a tinta. As
reduções também foi um espaço para o desenvolvimento de uma pequena
indústria química. Os jesuítas após um profundo estudo sobre a flora sulamericana ensinaram aos Guaranis, através de processos químicos a extrair
materiais corantes, perfumes, remédios, etc.
Um outro ramo da produção estabelecido nas reduções jesuíticas foi o
da construção civil, este trabalho se efetivava tanto internamente, quanto
167
externamente, pois em muitas oportunidades os Guaranis foram solicitados para
trabalharem nas cidades coloniais na construção de igrejas, fortalezas, colégios,
casas. A indústria da construção civil nas reduçõe ou nas cidades coloniais era
efetivada pela força de trabalho indígena.
Nas reduções devido ao aumento da população e o desenvolvimento
produtivo e com as constantes mudanças e o estabelecimento de novas
reduções. No primeiro momento foram construídos os galpões coletivos,
posteriormente foram às cabanas familiares, até chegar à sólida casa de pedra e
cal com amplas varandas. Nas cidades coloniais a força de trabalho Guarani
levantava as igrejas e colégios. Seep (1980, p. 68) esclarece:
Há cinco anos nossos padres descobriram cal, bem como a maneira
de queimar tijolos e telhas. Eis porque o telhado do colégio não é
feito de palha, mas de telhas, como na Alemanha. Da pedra referida
estamos construindo agora uma torre. É o começo duma igreja e
finalmente se porá também mãos ao colégio.
Lugon (1977) revela a qualidade profissional dos operários Guarani no
ramo da construção civil – como pedreiros, carpinteiros, pintores, marceneiros.
Este aspecto revela-se nos edifícios públicos e nos colégios que escaparam da
destruição e são ainda hoje utilizados como sede de prefeituras e quartéis. Os
pedreiros também eram explorados para a extração da pedra de talha e da
ardósia. O outro ramo da produção que também era explorado era o da
construção naval. Lugon (1977) afirma que nos estaleiros navais instalados nas
margens do Uruguai e do Paraná, construíam barcos de transporte bem
adaptados, extremamente resistentes, e canoas de guerra para trinta a quarenta,
homens, tendo a sua fabricação merecido a admiração dos espanhóis. Em
muitas reduções os estaleiros navais e o porto ocupavam uma vasta área55.
Lugon
descreve
que
turmas
de
trabalhadores
ocupavam-se
organizadamente da armazenagem de cereais, moagem e conservação de
reservas. Existiam moinhos de ventos e de água. Os moinhos, as serrarias e os
curtumes se localizavam a beira de cursos da água e eram grandes e sólidas as
construções. Os curtumes eram sem duvida um dos grandes empreendimentos
dos jesuítas, preparando uma das mercadorias que tinha grande aceitação no
______________
55
Ver mais sobre este assunto: Garsch; Bruno. Dei Einflus der jesuiten Missionen Wandel des
Naturlandsohaft Zen Kultenlandschaft. Breslou, 1934, p. 95
168
mercado europeu: o couro. Seep (1980, p. 143) expõe a dimensão das
exportações de couro:
O benévolo leitor poderá calcular facilmente quantas reses se gasta
aqui ao todo, quanto eu só já consumo tantas, e quantas ainda ficam
sobre os campos infinitos do Paraguai, para a procriação
indispensável. Nossos três navios levaram 300,000 couros para a
Espanha, mas não de vacas, e sim de touros mais crescidos. Aqui
um couro sai a 15 kreuzers, que vem a ser o salário para o serviço
de tirá-lo. Na Europa, no entanto, em qualquer parte vende-se um
couro de boi como estes por seis e mais Reichstaler. Daí poderá o
benévolo leitor mais uma vez fazer nova conta calculando o lucro
indizível que os espanhóis tiram só do couro. São as verdadeiras
minas indígenas de ouro e prata de sua Majestade Real.
Acrescente-se ainda, que assim como os curtumes, moinhos e serrarias,
havia também usinas de fabricação de açúcar e azeite, os fornos de tijolos e os
armazéns para a secagem e torrefação do chá, estes de acordo com Moussy
(1993) ficavam sempre situados na periferia da redução.
Lugon (1977) informa sobre a existência de forjas e fundições,
modestas, pois a região era pobre em metais, desenvolveu-se tanto que se
conseguiram fundir os sinos das igrejas das reduções como metal importado da
cidade de Coquinho (Chile), passou a fabricar também armas de fogo, canhões
e munições. Em cada localidade a fábrica de armas ocupava diversas oficinas.
Após várias décadas de implantação das reduções jesuíticas varias
profissões foram estabelecidas, como atesta Charlevoix (1756, p.242): “vêemse por toda parte oficinas de douradores, pintores, escultores, ourives,
relojoeiros, serralheiros, carpinteiros, marceneiros, tecelões, fundidores, em
uma palavra, todos os ofícios que passem ser útil”. Charlevoix enumera ainda
os sapateiros, alfaiates, padeiros, açougueiros, toneleiros, torneiros, telhadores,
violeiros, fabricantes de alfaias agrícolas (arados, charruas, grades, etc.) e de
carroças, fabricantes de rosários e círios, etc. Os vasos de estanhos ou terracota,
delicadamente trabalhados, comprovam a habilidade do Guarani na arte da
cerâmica, como demonstra Melia (1991, p. 14): “Son tambien hábile ceramista,
cuyos artefactos necessitan para preparar y servir sus alimentos.” A arte da
cerâmica já estava extremamente desenvolvida entre os Guaranis deste o
período pré-colombiano. Fato descrito por Lugon (1977 p 78): “os arqueólogos
admiram os vasos gigantes em que os guaranis inumavam os seus gloriosos
169
guerreiros”. Gaish (1934, p. 122) esclarece que “os missionários que visitavam
as reduções ficavam impressionados com o desenvolvimento: econômico,
social e principalmente o desenvolvimento dos ofícios, comparando o trabalho
artesanal e submanufatureiro com os que ocorriam nas grandes cidades
européias da época”.
O padre Seep (1980, p. 165) afirma que “os Guaranis produziam
relógios, clarinetas e trombetas tão bem quanto na Alemanha”. A redução de S.
João possuía um relógio em que os doze apóstolos apareciam sucessivamente
nas doze pancadas do meio-dia. Esse relógio de acordo com Sepp fora
construído na própria redução, sem a ajuda de operários estrangeiros. Sendo
que todas as reduções estavam munidas de quadrantes solares e relógios que
regulavam as ocupações dos habitantes. Entre os mestres que aperfeiçoou os
guaranis e ensinou-lhes o ofício da relojoaria constam os nomes dos padres
Jaime Carreras e Charles Franck. Nesta acepção os jesuítas introduziram a
concepção de tempo nas reduções, uma das características distintivas da
modernidade. Pois, “tempo é dinheiro”.
Bonpland (Apud Lugon, 1977, p. 138) descreve o processo da
mudança de ritmo temporal no cone sul da América Latina: “descobriu um
relógio no claustro do Colégio de São Nicolau, em ruínas, que indicava á hora
local, á hora de Madri e a de Roma”. Charlevoix (1756. p, 241) destaca que “a
orientação profissional foi praticada nas reduções dois séculos antes de se
implantar na Europa, pois desde que as crianças atingiam a idade de trabalhar
eram conduzidas pelos jesuítas às diversas oficinas e fixadas naqueles para a
qual teria maior inclinação”. Neste sentido Charlevoix naturaliza a “vocação”
confundindo o caráter persuasivo dos jesuítas a uma “arte” guiada pela
natureza.
3.1 A ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DIVINOS DO TUPAMBAÉ.
As cartas – assim como o e-mail na atualidade – fizeram parte de um
sistema de comunicação interna e administrativa da ordem jesuítica, sendo
reguladas por uma seqüência (cartas anuais) de procedimentos administrativos e
religiosos rígidos que atendiam a uma infinidade de funções na ação inaciana.
170
Este procedimento era de forma geral, seja na Europa ou nos outros continentes.
O objetivo central era a troca de informações precisas e regulares dos membros
da ordem para com os seus superiores na Espanha e em Roma. Ao mesmo
tempo mantinha o espírito de corpo entre os membros da Companhia. De
acordo com Assunção (2004) os relatos edificantes dos novos membros da
Companhia, assim como revelavam ao público a conduta ética e moral;
elevando a abnegação e a vida sofrida e pobre dos missionários.
As cartas repetiam de ano para ano as atividades realizadas, tornandose a base dos textos que foram publicados em coletâneas, que sofriam um
trabalho editorial elaborado. Adriano Prosperi (Apud Assunção, 2004, p. 228)
afirma que: “feito de seleção e de censura, destinado a fornecer uma
determinada imagem da companhia e a controlar rigorosamente as reações dos
leitores”.
De acordo com Assunção (2004) que fez uma profunda e rigorosa
pesquisa historiográfica, nos arquivos consultados ocorrera uma diminuição
acentuada destes registros que se tornou a principal base de sustentação da
historiografia oficial feita pelos cronistas da companhia. Assunção (2004, p.
228) esclarece:
Edificar, num primeiro momento significou nortear os
comportamentos e confirmar a existência da cristandade ocidental;
posteriormente, assumiu outro significado particular além daqueles
que envolviam a conversão do gentio dos primeiros anos. As cartas
jesuítas não limitaram a retratar o cotidiano da conquista espiritual
da ordem durante os dois séculos na terra dos Brasis. As cartas de
negócios, pouco mencionadas por estudiosos ou pelas diversas
compilações de documentos relativos á atuação da companhia de
Jesus, revelam a faceta temporal da Instituição que, por vezes
comprometeu o discurso inaciano que afirmava dar mais de si
mesmo, antes mesmo de pensar em si próprio.
Este exemplo é elucidativo, pois desvela que o modelo das cartas de
negócios apresentava também na singularidade espanhola um arquétipo com
esta configuração. O modelo das cartas de negócios tinha em sua estrutura um
parágrafo introdutório de saudação registrando a felicidade de ser agraciado
com a carta, expressa também, o seu regozijo, ou pesar sobre a saúde e as novas
que recebera de seu correspondente.
171
Em seguida tinha inicio os registros pormenorizados do assunto, sendo
o número de parágrafos definido pelo tema que era objeto. A parte central da
carta era redigida de forma a demonstrar o respeito pela hierarquia e à
autoridade do padre provincial ou ao reitor. Da mesma maneira que se dava
satisfação das atividades, os religiosos solicitavam produtos e pareceres para a
condução de seus afazeres. O fechamento seguia a conversão de desejos de
saúde ao superior, respeito e submissão. Um exemplo ilustrativo destas cartas é
a escrita pelo Padre Nicolas Mastrilho Duran, em 1628, nesta missiva descreve
a Ciudad Real do Guairá.
Duran (Apud Ravignani, 1929, p. 303):
Los españoles que viven en esta ciudad seran [como 50. Barone]
hijos de la buena gente que vino de España al Paraguay [estan muy
ricos porque] se contentan com su pobreça el vestido ordinario es
de algodon [tenido];, í raras veces alcanzan algun vestido de
España a truque de Yerba, de la qual dire en su lugar.
A carta é um documento esclarecedor para a compreensão do processo
de funcionamento da Companhia de Jesus, fundamentado na hierarquia e na
administração centralizada. O modelo de organização era vertical. A
administração geral da Companhia estava centralizada na figura do preposto
geral, cuja sede era em Roma. As cartas enviadas aos padres provinciais
comprovam esta tese e expõe o caráter centralizador. Assunção (2004) afirma
que o padre provincial era o responsável pela concentração de todas as
informações referentes ao encaminhamento das atividades empreendidas nas
colônias. Porém a instância máxima de decisão era o preposto geral que residia
em Roma.
Pelo teor das cartas é possível identificar que nas dependências dos
colégios jesuítas nas colônias espanholas – que na realidade era um modelo
global – havia uma secretaria que guardava documentos diversos: como
contratos, registros de operações comerciais realizados com terceiros, etc.
172
As cartas anunciam as orientações56 dos padres provínciais aos padres
administradores com instruções e aconselhamentos específicos. Assunção
(2004) revela que havia nas Constituições da ordem instruções específicas de
como deveria ser a administração de um Colégio.
O sistema de controle era feito por um livro caixa, onde eram
registrados a movimentação financeira: crédito, débito, totais, subtotais, etc.
Evidentemente a rotatividade dos membros e as dificuldades da comunicação
impediram em muitas circunstâncias a clareza necessária na gestão das
propriedades. Porém o que marcava a ação inaciana era o caráter geral,
apregoada no controle sobre os negócios. O controle rigoroso permitiu a
elaboração de toda estratégia de atuação para a produção e reprodução da
Ordem. A hierarquia verticalizada, a ação organizada e a disciplina na execução
da ação, distinguem a identidade jesuítica em relação às outras ordens. A partir
dessas considerações, torna-se evidente a necessidade de redirecionar a
discussão para a particularidade administrativa das reduções. Porém não
perdendo o foco deste caráter generalizante da hierarquia política e
administrativa da Companhia de Jesus, inter-relacionada e interdependente da
singularidade colonial espanhola.
Haubert (1990) descreve que a administração das reduções era dividida
em dois distritos, sendo um deles parte da Província de Buenos Aires e o outro
da Província do Paraguai. Os governadores e as outras autoridades coloniais –
vices-reis, audiências, etc. – portanto, teoricamente eram as autoridades
coloniais que tinham o poder jurisdicional sobre as reduções. Porém, na prática
a tutela confiada aos jesuítas limitava consideravelmente a efetivação desta
autoridade. Tanto os governadores locais, quanto os jesuítas estavam,
submetidos a um poder superior; que se proclama na legislação espanhola.
Neste sentido a prestação de serviço militar é, ao lado do tributo, a
manifestação elucidativa da submissão do Guarani e do Jesuíta ao Estado
Espanhol. Porém a Campanha de Jesus é um grupo de pressão extremamente
eficiente, com um caráter internacional tanto no centro do capitalismo –
Portugal, Espanha, França, Roma – quanto nas colônias.
______________
56
Ver mais sobre este assunto: Ravignani, Emilio, org – Iglezias: cartas annuas de la Província
de Paraguay, Chile y Tucuman de la Compañia de Jesús (1604 – 1614). Con advertencia de
Emilio Ravignani e introduccion Del Carlos Leonhard, S. J. Buenos Aires, Jacobo Peuser, 1927.
T. 19 (Documentos para la historia Argentina), CXXIII t 580 p.
173
Portanto, o governador da província (nesta análise a província do
Paraguai) tinha o poder de nomear em cada redução o corregedor (prefeito),
assim como o tenente de corregedor (prefeito adjunto). Haubert revela que de
fato o governador nomeava o prefeito e do adjunto a partir da indicação do
provincial da Companhia de Jesus. Da mesma forma se dava em relação à
eleição dos outros membros do Cabildo (Conselho Municipal).
Sobre o governo civil das reduções Astrain (1996, p. 94) esclarece:
Volviendo ahora los ojos al gobierno civil de aquelas reducciones,
lo primeiro que suelle lhamar la atención del observador es la
separación absoluta que los jesuítas establecieron entre los indios y
todos los demás españoles. En esta separación creen ver algunos un
artifício de los jesuítas, para apoderarse de los indios y formar com
ellos, no una colonia de vassalos sometidos al Rey de España, sino
un imperio o reino jesuitico (asi se le ha llamado) destinado a
promover los intereses de la Compãnia de Jesús.
O cabildo, além do corregedor e do tenente de corregedor,
compreendia dois Alcaídes (os alcaídes eram encarregados da administração da
polícia e da justiça) um ou dois alcaídes da irmandade eram encarregados da
polícia dos campos, o alferes real (que carregava o estandarte real no dia da
festa do padroeiro) e quatro conselheiros municipais. Haubert (1990, p. 224)
esclarece:
Todo ano por volta do final do mês de dezembro, o conselho que
deixa o mandato escolhe os cabildantes do ano seguinte. Se essa
eleição não se fizer na presença do cura, leva-se lhe a lista, e ele
risca os nomes que acha indignos. E, este seu papel de tutor, e as
modificações são sempre aceitas.
Haubert afirma que o novo cabildo nomeava os diversos funcionários
da redução: os chefes militares, os encarregados do armazém, o mestre de
capela, o sacristão, os zeladores encarregados respectivamente da supervisão de
cada corporação, dos meninos, das meninas e das mulheres. Cardiel (1913)
observa que nessas “eleições” não havia rivalidades ou gratificações e ao sinal
de ambição o participante era excluído. Este exemplo apresentado por Cardiel é
elucidativo, pois decreve a consolidação da hegemonia social da sociedade
patriarcal espanhola.
174
Que a principio é legitimada pelo poder da força e posteriormente
transferida para os grupos justapostos pelo poder econômico. Com a
condescendência do Estado Espanhol, enraízam-se definitivamente as
instituições capitalistas, buscando reproduzir, tanto ao nível das relações
sociais, quanto na vida política, o mesmo sistema de tirania adotado na “gestão”
dos negócios do Estado. Porém quem tinha o poder real para detectar os “sinais
de ambição” era sem dúvida o jesuíta.
Nesta acepção, na esfera colonial a Igreja tinha uma enorme
importância no desempenho de funções públicas, situando-se ao mesmo nível
da administração do Estado. Cardiel (Apud Haubert, 1990) desvela este
processo, pois os magistrados desempenhavam para o cura o mesmo papel que
era desempenhado em um Colégio Jesuíta pelos “ministros” para com o reitor.
Ou o desempenho em uma escola maternal, por dois ou três alunos designados
pelos mestres quando há muitas crianças, para que estes façam os colegas
executarem as ordens. Como estes não podem punir ninguém, mas somente
prestar contas ao mestre do que está acontecendo; eles também são crianças,
embora um pouco mais capazes que as outras e se merecessem também seriam
punidos com chicotes.
Esta visão do sacerdote jesuíta Cardiel que escreveu este exemplo em
1747, divulga a prática da Companhia de Jesus em relação ao processo da
participação Guarani e conseqüentemente da gestão política e administrativa
das reduções. Ao fazer esta analogia em relação a administração da redução em
relação a um Colégio Jesuíta, acusa a visão hierarquizada verticalmente da
Ordem, cuja última palavra ou a última instância de decisão estava na figura do
preposto geral. Cardiel (Apud Haubert, 1990, p. 225) encerra essa analogia com
a seguinte frase: “Asi es acá – é assim que são as coisas em nossa redução”.
O sacerdote jesuíta Lupercio (Apud Haubert, 1990, p. 225) corrobora
com esta visão:
Um século antes o provincial Lupercio é mais brutal ainda em sua
Carta anual de 1664 ao padre Geral: “Todo ano elegemos
magistrados com nomes esplendidos, que dirigem a redução, mas
nada podem inovar, não podem castigar, nem ordenar nada sem
autorização expressa dos padres. Poderíamos até dizer que eles se
vangloriam por terem recebido este poder ocioso e a autorização de
usar varas. Assim Deus nos fez príncipes sobre esta terra, sobre
homens transtornados e dilacerados”.
175
A vida política na redução refletia a própria estruturação da sociedade
colonial. O príncipe reinava com a ajuda dos senhores da terra que governavam
homens transtornados e dilacerados. O gosto amargo da erva-mate, a
mercadoria mais importante produzida no Paraguai, expressa a síntese dessas
relações sociais do Guarani reduzido.
Portanto, para a estabilidade da sociedade colonial, esboçou-se um
paternalismo, enquanto fator legitimador do Estado Espanhol, em seu
colonialismo raquítico. Ao mesmo tempo em que se acentuavam os
antagonismos entre a riqueza dos senhores da terra (inclusive os jesuítas) e a
pobreza da grande maioria dos indígenas que estavam ainda na condição de
encomendados, dos arrendatários e dos pequenos agricultores. Os laços que se
estabeleceram nas reduções como a proteção física, a ajuda material ou mesmo
as relações afetivas (discípulos). Para um Guarani, portanto exercer um “cargo”
neste sistema significava um privilégio, havia vários interesses comuns entre
jesuítas e guarani, mesmo que pertencendo a grupos sociais diferentes. Tratavase de uma espécie de solidariedade, característica do paternalismo e que
funcionava como um instrumento de legitimação do cristianismo e do
patriarcalismo colonial.
Como destacamos anteriormente as cartas anuais são fontes
privilegiadas para a compreensão da visão dos membros da Companhia em
relação a sua ação e aos seus empreendimentos. Os resultados iniciais desta
análise mostram que na visão jesuítica emerge a figura do Guarani, não como
igual, mas do “Guarani tutelado” e a marca distintiva dessa tutela é “sua
inferioridade cultural”. A cultura Guarani era considerada pelos jesuítas como
inferior. Muito tempo antes de Augusto Comte ter teorizado sobre a lei dos três
estados, a Companhia vislumbrava uma história linear, em fases de
desenvolvimento, portanto, os indígenas estavam ainda no estado “selvagem”.
A análise mostra ainda que as reduções foram instituídas a partir da
cosmovisão dos dominadores, assim expressa por Astrain(1996, p. 94-95):
Formáronse, pues, las reducciones del Paraguay con la expresa
condición de que alli las autoridades habian de ser indios, aunque
asi éstos como todo el pueblo regonecian la autoridad suprema del
Rey de España y del Gobernador de la província, pagaban su
modesto tributo, socorrian al Estado con levas de soldados, como
176
veremos más adelante, y se portaban en todo como verdaderos
súditos del Rey de España.
Encontramos, então, no interior desta cosmovisão, assim como no
interior desta estratificação social, o mesmo fenômeno de aparente paradoxo.
Na cosmovisão do conquistador os indígenas seriam “reduzidos” e seriam
“livres” para exercer a autoridade. Na estratificação social os indígenas seriam
“livres” para obedecer ao Rei, seriam “livres” para pagarem seus tributos,
seriam “livres” para morrer como soldados do Estado Espanhol. Em ambos os
casos, é o artifício do paternalismo que legitima aquilo que, por natureza
deveriam ser antagônicos.
A relação paternalista do Estado no que toca aos privilégios de
conceder a tutela aos jesuítas, e posteriormente são retribuídos através do apoio
político-militar. Na estratificação social o jesuíta assegura a reprodução ao nível
ideológico via aliança. No econômico pela dependência na organização da
produção, circulação e consumo da mercadoria. No aspecto social pelos laços
religiosos e político. E consequentemente pela gestão, mesmo que incipiente na
“administração” reducional do Guarani.
Dessa forma os jesuítas por dominar os códigos sociais da sociedade
instituída exercem a tutela sobre o Guarani reduzido, que através de uma
organização hierarquizada verticalmente, busca nas práticas políticas e
administrativas inserir os indígenas nos códigos sociais da cultura ocidental.
Instituindo valores como a eleição do “corregidor” (prefeito), do
“teniente corregidor” (prefeito adjunto) e os membros do Cabildo (Câmara
Municipal). E principalmente do novo modo de produção que estava se
instituindo: o capitalismo. Neste sentido Sarup (1980, p. 151) afirma que: “no
processo de produção, o trabalhador produz não só coisas materiais, mais
também a si mesmo”. Neste contexto a economia, portanto, não produz somente
as mercadorias, mas também força de trabalho. Uma das várias instituições que
serviram para instituir esta estrutura foi à religião. A igreja católica, assim como
o protestantismo, ou como o islã reproduziu as formas de consciência exigidas
para a integração de uma nova geração no sistema econômico. Pois da mesma
forma, que o sistema educacional teve um papel central no preparo do indivíduo
para o mundo das relações do trabalho alienadas e estratificadas. Nesta acepção,
177
no contexto das reduções para reproduzir as relações sociais de produção,
dialeticamente ocorreram a reprodução da consciência. E o processo da
“administração” da redução desvenda esta reprodução. Manacorda (1996, p. 2)
esclarece:
O homem não nasce homem: isto o sabem hoje tanto a fisiologia
quanto a psicologia. Grande parte do que transforma o homem em
homem forma-se durante a sua vida, ou melhor, durante o seu
longo treinamento por tornar-se ele mesmo, em que se acumulam
sensações experiências e noções, formam-se habilidades,
constrõem-se estruturas biológico-nervosas e musculares-não dadas
a priori pela natureza, mas fruto do exercício que se desenvolve nas
relações sociais [...].
Contrapondo-se, a essa visão exposta por Manacorda, na ótica dos
cronistas da Companhia de Jesus o indígena aparece como uma criança que
precisa ser tutelada, pois a única sociedade aceita como tal, na visão jesuíta é a
sociedade européia. E o jesuíta, portanto cumprira o papel de civilizador. Esta
visão permanece até os dias atuais. No Brasil, por exemplo, as diversas etnias
indígenas estão atualmente sob a tutela da Funai. Portanto os jesuítas não
consideravam as relações tribais dos Guarani como sociais.
Lugon (1977) se contrapõe a visão de que os indígenas eram um
passivo rebanho sob a direção do cajado jesuíta, afirmando que na realidade nas
reduções existia uma democracia mais real do que as nossas democracias
burguesas. Clóvis Lugon destaca que as tribos Guarani foram levadas a aceitar
a vida nas reduções pelos seus caciques. Pois, segundo Lugon, esta autoridade
estava estabelecida, a milhares de anos na cultura guarani. A tese apresentada
por Lugon se opõe, portanto, a já apresentada pelos cronistas da Companhia,
destacando que com as várias fusões entre tribos, foram constituídos serviços
administrativos e a aplicação de novos regulamentos exigiu a criação de
funções numerosa que em um breve período fizeram passar para um segundo
plano e depois desaparecer a autoridade dos caciques.
O exercício dessas funções na ótica de Lugon suscitou o aparecimento
de uma elite não hereditária, independente dos antigos quadros. Lugon (1977, p.
89) explicita a sua visão da “democracia” guarani nas reduções:
178
É pelas eleições e pelo exercício das funções públicas que os
guaranis adquirem um sentimento tão vivo de sua autonomia
nacional e de sua responsabilidade em face ao bem comum. Toda
administração prática se encontrava em suas mãos. Os guaranis
zelavam pela boa ordem de sua cidade e tomavam eles próprios as
medidas e iniciativas úteis. Organizavam e dirigiam os trabalhos.
Administravam os armazéns. Rendiam justiça.
De acordo com Muratori (1983) o conselho de cada redução
compreendia o “corregidor” ou presidente, muitas vezes denominado caciques,
a qual tinha as suas ordens um comissário administrativo; o “tenente
corregidor” ou vice-presidente, dois alcaides (oficiais de polícia que dirigiam o
policiamento das ruas e dos campos); o fiscal e seu lugar tenente, encarregado,
entre outras coisas, de manter os registros de estado civil. Enfim quatro
“regedores” ou conselheiros assumindo diversos serviços e eventualmente,
assessores cujo número era proporcional ao número de habitantes.
Bourges (1755, p. 273) afirma que “a eleição dos chefes de setores
partia do critério que para ser escolhido o candidato ao posto de chefia deveria
ser o mais fervoroso cristão”. De acordo com Bourges o vice-presidente, ou um
alcaide, tinha a responsabilidade geral sobre a juventude até os dezessete anos.
Sendo que um alferes ou subtenente era o porta-estandarte da redução. A
representação simbólica expressa neste exemplo da instituição de um “porta
bandeira”, que conceituamos como colonização do imaginário.
Charlevoix (Apud Lugon, 1977, p. 89) destaca que “o corregidor e
todos os funcionários eram ‘escolhidos’ pelos próprios índios, em eleição
anuais, cujo processo eleitoral era coordenado pelos jesuítas, porém são poucos
os detalhes sobre o procedimento dessas eleições”.
As considerações expostas, portanto, vem no sentido de elucidar as
teses apresentadas por um grupo de autores que tem como ponto central a
“democracia” existente nas reduções. O primeiro grupo de autores, que tem
como principal interlocutor Clóvis Lugon afirma que o conjunto das reduções
formava uma República “Comunista” Cristã dos Guaranis. O segundo grupo de
autores que defendem a tese de “democracia” nas reduções tem como principal
interlocutor Josep Manuel Peramás que faz uma analogia entre as reduções
jesuiticas e a República de Platão. Vale a pena ressalta que esses autores
apresentam um protótipo de “democracia burguesa”, anterior as revoluçõs
burguesas do final do século XVIII.
179
A tese defendida por Lugon que nas reduções jesuíticas havia uma
“democracia” mais avançada que muitas democracias burguesas não se
demonstram na práxis. Pois o principio fundante da democracia é que o poder
emana do povo e em seu nome será exercido. Logo, este princípio fundante da
democracia não ocorria nas reduções jesuíticas do Paraguai. Porque a Lei que
garantia a existência da redução não emanava deste povo, mais sim das Leis das
Índias e das Ordenanças de Alfaro, leis estas que emanavam do Estado
Moderno Espanhol. Pois nem mesmo a Metrópole vivia sob um regime
democrático, mais sim em um regime monárquico, como esclarece Lefort (1991
p. 31-32):
Com efeito, é no quadro da monarquia, de uma monarquia de tipo
particular, desenvolvendo-se originalmente dentro de uma matriz
teológico-político, fornecendo ao príncipe um poderio soberano
dentro dos limites de um território, tornando-o, ao mesmo tempo
uma instância secular e um representante de Deus, que se
esboçaram os traços do Estado e da nação, e uma primeira
separação entre a sociedade civil e o Estado. Longe de se reduzir a
uma instituição superestrutural, cuja função derivaria da natureza
do modo de produção, a monarquia, por sua obra de nivelamento e
de unificação do campo social e, simultaneamente, por sua
inscrição nesse campo, tornou possível o desenvolvimento de
relações mercantis e um modo de racionalização das atividades que
condicionaram a emergência do capitalismo.
Outro aspecto a ser levantado é que no processo de indicação do
“corregidor”, esta nomeação era uma prerrogativa do governador da província
do Paraguai ou do Rio da Prata – nem mesmo este governador era eleito
democraticamente, mas nomeado pelo Estado Espanhol. Portanto não se
fundamente a tese de democracia nas reduções jesuíticas do Paraguai. Nem
representativa muito menos direta. A tese de democracia defendida por Lugon
(1977, p. 89) é extremamente paradoxal, pois “o padre tinha o direito de
controlar a lista dos eleitos perante a assembléia pública”. Portanto, não pode
haver um processo democrático, se a decisão estava sob o controle externo.
Vale a pena ressaltar que a própria condição de indígenas fora estabelecida
pelas leis espanholas, e dentre estas leis estava da “encomienda” que ainda
funcionava na prática. A tese apresentada por Peramás (2004. p, 151) parte do
seguinte pressuposto:
180
El modo de eligir las autoridades era el siguiente. Al final del mes
de diciembre, los que aquel año habian desempeñado um cargo
público, deliberaban entre si sobre quiénes tenian ser designados
para gobernar el pueblo el ano próximo. A los que parecian dignos
los ponian em uma tablilla. Para estos cargos electivos no habia –
como suele – niguna maniobra, ningún alboroto, ninguna intriga.
Paradoxalmente a tese apresentada por Peramás revela um processo
eleitoral, em que os Guaranis reduzidos elegiam os seus governantes. Este
processo é contraditório, pois o próprio Peramás (2004 p. 152) afirma que:
Escrita la lista, la llevaban al cura. Si éste encontraba que habían
nombrado a alguien que le constaba no era merecedor, avisaba para
que lo substituiyeran por outro, esto es segun las Leyes de Indias
que ordenan que los párrocos estén presentes en la elecciones de los
indígenas para se hogan con orden.
A partir dessas considerações, torna-se evidente a necessidade de
redirecionar a discussão em relação às teses apresentadas por estes autores. Essa
discussão precisa abandonar a visão unilateral e estruturante do materialismo
vulgar em que as relações sociais aparecem petrificadas apenas como reflexo da
produção material, e a utilização de categorias fundantes do marxismo
descontextualizadas historicamente. Conseqüentemente perde a visão de
totalidade deste processo. Por outro lado apreender essa pretensa verdade
metafísica e idealista que postula a separação entre a prática e a teoria, entre a
vida e o pensamento, cujo resultante é inspirada ou fruto de um raciocínio
individual.
Pois ao apresentar a redução jesuítica como um protótipo da República
de Platão, que se realizou, essa tal “verdade” metafísica se apresenta como um
bloco, dogmática e sistêmica; como uma revelação que o metafísico atribui a si
mesmo, ou que generosamente empresta à espécie humana. Como afirma
Lefbvre (1983, p. 53) “no fundo essa ‘verdade’ metafísica aparece sempre
pronta acabada; ela existe previamente, em Deus, por exemplo, que tudo sabe e
tudo vê”.
Neste sentido podemos afirmar que os Guarani não eram “crianças”
que necessitavam de tutela. E muito menos se encontrou com o homem branco
“mau” e foi submetido por estes. Muito menos os Guarani eram um povo
altamente “democrático” e com o apoio de uma vanguarda intelectual (os
181
jesuítas) fundaram no interior do Paraguai a República “comunista” cristã dos
Guaranis. Tendo como base para tal concepção a produção “comunitária” e a
gestão compartilhada.
Portanto, estes autores apresentam a relação indígena e jesuíta, como
algo imóvel. A categoria que possibilita uma melhor compreensão deste
processo é a contradição, pois esta impede o pensamento ao analisar estas
relações de estacionar, “impele-o para frente”, ao mesmo tempo porque o
pensamento só é verdadeiro em movimento e porque o real é móvel.
Logo, a análise destas relações parte de condições históricas em que se
estabeleceu o encontro destas duas sociedades distintas, deste a sua gênese
fundamentada na contradição. Nesta análise a categoria totalidade reveste-se de
um caráter central, ao compreender a essência e a aparência do fenômeno
possibilita-nos a apreensão das leis que regem a sociedade capitalista desde a
sua formação. Pois ao se instituir o modo de produção capitalista traz em seu
cerne o principio da contradição, que na singularidade colonial paraguaia se
expressou no processo de dominação, fundamentada na pilhagem e na
escravidão. Instituindo o contra-senso entre conquistadores e conquistados.
Nesta acepção quando estes autores apresentam apenas uma visão
unilateral: “os Guarani eram crianças e precisavam ser tutelados”. A tese
apresentada expõe um sofisma, pois de acordo com Kant (Apud Lefbreve,
1983) duas proposições, opostas são necessários ao mesmo conceito, não sendo
válidas em sua unilitariedade, cada uma para si, mas têm sua verdade tão
somente na unidade do seu conceito. Lefebvre (1983, p. 263) esclarece:
Com efeito, formalmente, duas proposições opostas podem ser
simultaneamente falsas, mas não podem ser simultaneamente
verdadeiras. Não obstantes, elas o são; e isso, por conseguinte, não
em si, mas na unidade superior. O falso, portanto, é precisamente o
unilateral; a verdade se encontra na totalidade. Por outro lado, já
que o ser é processo, a unidade e a totalidade só podem ser
momentâneas, o que é uma outra maneira de dizer que o processo é
necessariamente contraditório.
Portando a compreensão da totalidade nos permite apresentar verdades
relativas como, por exemplo: o que possibilitou o domínio europeu sobre os
guarani foi o seu maior desenvolvimento tecnológico, expressos em suas armas
de fogo, canhões, caravelas, machado, arado, etc. Por outro lado se apresenta
182
outra verdade relativa: os indígenas resistiram bravamente a esse domínio, sob
vários aspectos: religiosos e revoltas.
A síntese dessas verdades relativas se expressa no domínio pela força
do Estado Espanhol, que a partir dessas contradições urgiu toda uma
superestrutura jurídica, política e religiosa para manter o seu domínio. A partir
desta síntese emerge em aspiral uma nova tese: o indígena submetido sob a
égide da lei espanhola, e neste sentido desenvolve novas relações sociais que
não estão petrificadas, mas sim em movimento. A análise sobre este processo,
desvela a não existência de uma linha de demarcação insuperável entre a
verdade relativa e a verdade absoluta.
Em resumo a organização política e administrativa das reduções
jesuíticas foi um modelo institucionalizado pelo Moderno Estado Espanhol,
expresso na tutela concedida para a Companhia de Jesus. Contraditoriamente no
interior das reduções a partir dessas novas relações sociais também foi impressa
a marca distintiva da organização social guarani. Fundamentada na vida
comunitária que se expressou em suas decisões coletivas. Marca distintintiva de
sua ancestralidade, que emerge nas reduções na figura de seus caciques e
xamãs. Nesta síntese, a administração política / administrativa das reduções
proclamadas nas relações sociais surgem sob a égide hegemônica do
conquistador – economia, política, religião. Porém apesar da “liberdade
reduzida” o fazer social Guarani se expressou na práxis comunitária, na
produção coletiva, que mesmo submetidos impôs a marca de sua sociedade.
Desta síntese erigiram a tese de uma sociedade “reduzida”, cujos
elementos provocaram um relativo desenvolvimento econômico e social. O
desenvolvimento econômico e social evidentemente a partir da lógica do
conquistador acabou provocando – com a luta pela hegemonia na sociedade
colonial Paraguai – a destruição deste modelo de “índio reduzido”, para um
outro modelo a do “índio pobre”. No capítulo seguinte buscamos descrever a
história da educação paraguaia na época colonial, demonstrando a contribuição
jesuítica neste processo.
183
3.2 A INTERRELAÇÃO RELIGIÃO/EDUCAÇÃO E A INSTITUIÇÃO
DO IMAGINÁRIO CAPITALISTA.
Benitez (1981) apresenta um estudo importante sobre a história da
educação paraguaia no período colonial. Destacando que quando da invasão
espanhola evidentemente a educação não era o objetivo central dos
conquistadores – pois estes possuíam outros objetivos já explicitados nos
capítulos anteriores.
Portanto, nos primeiros anos da conquista não havia um programa de
ação educativa a ser desenvolvido no Paraguai e Rio da Prata. Após algumas
décadas as instruções básicas passaram a despertar interesse por parte das
autoridades coloniais já estabelecidas – governadores e cabildos.
Evidentemente a educação não poderia ser o objetivo e a preocupação
dos primeiros conquistadores nos primórdios do século XVI, já que estes
vieram para a província do Paraguai em busca de ouro e prata. Ao se deparar
com a realidade paraguaia e consequentemente com a ausência do ouro e da
prata, se estabeleceram na região, buscando explorar a terra e a força de
trabalho indígena através da “encomienda”. Ao se estabelecer os colonos
passaram a constituir famílias. A partir do aumento demográfico de crianças
espanholas e mestiças as autoridades locais passaram a se interessar sobre a
questão educacional. Primeiramente de forma tímida através do Cabildo de
Assunção, de alguns governadores, mas principalmente das Ordens Religiosas.
De acordo com Benitez foi Domingo Martinez Irala, na primeira época
da colonização que criou as primeiras escolas e “doctrinas” que ficaram a cargo
dos religiosos. Posteriormente o governador Hernandarias de Saavedra foi
quem teve essa iniciativa, com a incorporação da Companhia de Jesus e
consequentemente a criação de instituições de ensino, isto já no primeiro quarto
do século XVII. A luta pela primeira universidade surgiu com Jaime Sanjust já
na segunda metade do século XVIII. Porém foi Augustin de Pinedo que fez
reiteradas gestões para conseguir a habilitação de uma universidade, mas a sua
pretensão ficou abaixo do esperado. A Cédula Real de 1776 autorizou apenas a
abertura de um Colégio-Seminário, que foi o de São Carlos, frustrando a
perspectiva da elite local que ansiava por uma universidade.
184
O Real Colégio de São Carlos foi inaugurado em 1783, no governo de
Pedro Melo de Portugal e adotou várias disposições para normatizar o seu
funcionamento. Outro projeto relacionado à educação fora apresentado por
Lazáro de Rivera em 1796, que previa a introdução de uma Cartilha Real, como
texto de aprendizagem nas escolas elementares.
Benitez (1981, p. 10) esclarece:
Debe señalarse que algunos monarcas: Carlos V, Felipe II, Felipe
IV, Carlos III; produjeron instrucciones para a educación de los
indigenas, en las que se recomendaba especialmente la utilización
del idioma castellano como instrumento educativo particularmente
para la enseñanza de la doctrina Cristiana. En la práctica, aquellas
instrucciones no tuvieron vigencia, pues los indigenas opusieron
tenaz negativa al aprendizaje del idioma español. Em consecuencia,
la norma fue el aprendizage del idioma guarani por los misioneros,
como medio de comunicación e integración cultural, pues hasta
catecismo y libros imprimieron en el idioma autóctono.
Como podemos evidenciar pela tímida preocupação de reis e
governadores que manifestaram uma preocupação diminuta em relação à
questão educacional em mais de dois séculos da vida colonial. Com a ausência
de um propósito definido no campo da educação, apregoado pelas inúmeras
dificuldades em relação à carência de professores, acompanhado pela dispersão
da população e a precariedade das comunicações.
Enfim não havia interesse político da metrópole em desenvolver um
projeto neste sentido. Pois a maioria da população era indígena, para o
colonizador o seu interesse, de acordo com Meliá (1997, p. 34) era:
Es un hecho que hasta ahora la civilización occidental, en vez de
otogar a los indios una situacion de miembros dignos y conscientes
de la sociedad dominante, ha despojado a los indios de su identidad
cultural para convertirlos en sujetos dependientes de los colonos, y
en muchos casos sus esclavos.
Em geral a grande miséria em que viviam a maioria da população
tornou quase que impossível a utilização generalizada do recurso da Cátedra
livre e somente uma minoria ínfima dos jovens paraguaios (filhos de elite local)
saiam para fazer seus estudos fora da província.
185
A despeito da despreocupação geral dos governantes, o Cabildo de
Assunção demonstrou um pouco de interesse sobre este tema, no decurso do
período colonial.
Fatos estes apresentados por Benitez (1981, p. 11):
El cabildo asunceno fue tomando iniciativas y disposiciones en
beneficio de la educación en la Província; asi por ej. ortogo solares,
proveyó locales, procuró y costéo maestros, tomó a su cargo la
fiscalización de la administración educacional, autorizando el
desempeño de los maestros y fijando emolumentos y
responsabilidades. El Cabildo alentó el desarrollo de la educación
en toda la provincia, no solamente la creación de escuelas de
primeiras letras sino también otogando facilidades para la
instalación de instituiciones del nivel superior e las simples
escuelas elementares.
De acordo com Benitez, que possui como fonte o Arquivo Nacional do
Paraguai, para a habilitação do Colégio Jesuíta no século XVII, o Cabildo de
Assunção proveio o prédio necessário e concedeu outras facilidades para a sua
instalação. Em 1630 para remediar uma situação difícil, pois os jesuítas
entraram em conflito com os colonos por causa das questões da encomenda. E
foram expulsos de Assunção. Astrain (1996, p. 63) descreve o episódio:
Algo más de tres meses, según escribe el P. Torres duró esta
persecución y trabajo en el colegio de la Asunción. Al cabo, ya con
la paciencia de los Padres ya porque los ánimos se fuesen poco a
poco apaciguando, cesó la tempestad y vino la bonanza por medio
de un caballero muy ilustre, que era voz común, quien tenia más
indios encomendados en todo el Paraguay.
Em conseqüência do fechamento do Colégio jesuíta de Assunção neste
período de três meses, o Cabildo habilitou a própria Câmara Municipal para o
funcionamento de uma escola. Benitez (1981, p. 12) descreve um aspecto
importante da gênese da escola paraguaia:
[...] educación durante la colonia era solamente para los varones,
las niñas que tenia expresa prohibición de ser admitidas en escuelas
de varones, por lo general crecieron analfabetas con sólo la
instrucción religiosa y labores hogoreñas.
Podemos afirmar que neste contexto histórico a materialização do
ensino no Paraguai apresentava profundas dificuldades estruturais entrelaçadas
186
pelos aspectos culturais, demarcadas por questões étnicas e de gênero, marcas
características do seu tempo. Em síntese podemos destacar que o Paraguai do
século XVII, evidentemente não foi no aspecto educacional a Atenas de
Péricles. Porém estas etapas históricas foram superadas, pela ação localizada de
setores da sociedade do Paraguai Colonial. Principalmente as Ordens
Religiosas, contudo as dificuldades eram inumeráveis, a destacar a falta de
recursos e de um projeto educacional.
Seria simples demais reduzir todo o sentido desta breve análise da
história da educação paraguaia a uma questão de relações entre estrutura e
superestrutura. O desafio deste exame parte do referencial teórico de Marx
(Apud Manacorda, 1996, p. 97) que é buscar estabelecer uma relação no
mínimo tripla. A saber: a) detectar uma “base real”, dada pelo conjunto das
relações de produção, que, na realidade do Paraguai, já pressupõe “um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais” e
constituem “a estrutura econômica da sociedade”. b) e consequentemente a
implementação de toda uma “superestrutura jurídica e política” que se erigiu
sobre o Paraguai colonial e sobre esta base correspondeu, a terceira relação. c)
“determinadas formas de consciência social”, que tem como lócus a Província
do Paraguai.
Assunção é um exemplo elucidativo desta tripla relação, o núcleo da
conquista espanhola expressão da contradição hispano – Guarani. A base real
do conjunto das relações de produção era a exploração da força de trabalho
indígena. A relação de produção surgiu na contradição do explorador
(encomendero) e do explorado (índio). Cujo desenvolvimento das forças
produtivas se fundamentava na produção de mercadorias primárias com pouco
valor agregado e que atendia a uma incipiente economia regional na gênese da
acumulação primitiva do capital.
As formas determinadas de consciência anunciam a contradição entre
conquistador e conquistado. Sob a hegemonia do conquistador este estabelece
núcleos populacionais indígenas. Os indígenas que já não eram os mesmos da
conquista, já era uma outra geração fruto do genocídio, da mestiçagem, e
aculturados pelos dominantes. Estes núcleos populacionais organizados
paulatinamente sob a égide de uma superestrutura jurídica que se manifesta nas
leis das Índias, nas Ordenanzas de Alfaro. E na ação política que emerge na
187
organização provincial na figura dos governadores e do cabildo. No campo
religioso e educacional que se entrelaçam. Formando um amalgama responsável
de inserir os dominados nos códigos sociais da sociedade dominante, enquanto
organização social – casas, roupas, economia, religião, etc.
Portanto, estas relações são históricas e o antagonismo se anuncia sob
a hegemonia da classe dominante paraguaia, que paradoxalmente instituía a
encomienda e através das ordenanças estabelecia a “obrigação” de instruir o
indígena.
Como revela Benitez (1981, p. 14):
[...] la del gobernador Domingo Martinez Irala, fecha 14 de mayo
de 1556, para “... el bien provechoso, conservación, doctrina y
enseñamento de los dichos indios...” los encomenderos quedaban
obligados a tratalos”... como a prójimos, instruyéndolos y
doctrinándolos... y que las tales personas (los encomenderos)
procuren tener en sus casas dos o tres niños de diez años abajo de
los de su encomenda, para que aprendan la doctrina cristiana y vean
y entiendan las cosas de Dios y de su santa iglesia[...].
A contradição demarca o processo de ocidentalização da cultura do
“outro”, e é a partir desta perspectiva que, além da colonização por parte do
império espanhol, adquire grande significado a empresa religiosa e política que
será atribuída aos jesuítas, que atuaria em função de uma “correção da cultura”
– que na visão eurocêntrica estava pervertida mas não ausente. A partir dessa
visão de mundo que na realidade era a expressão da cúria romana, como
esclarece Reese (1999, p. 158):
Voltando ao século XVI, o sistema consistório, em que os cardeais
enquanto grupo aconselhava o papa, estava desaparecendo. Os
comitês ou congregações de cardeais eram formados para estudar
determinadas questões e relatá-las ao papa. Em conseqüência da
reforma, a primeira congregação permanente, o Tribunal da
Inquisição Romana e Universal foi estabelecido em 1542 para lidar
com questões da fé e heresia.
Na província do Paraguai o entrelaçamento da religião com a
educação, portanto ganha uma configuração particular, porém está inserida na
universalidade do cristianismo Romano. Neste contexto social histórico estes
dois aspectos são indivisíveis – de tal modo como as palavras jesuítas e
educação se tornaram sinônimas. Nas diversas Ordenanças fica explicita a
188
preocupação dos governadores com aspectos da imposição dos códigos
culturais ocidentais para a população nativa. O governador Hernandarias de
Saavedra que governou o Paraguai de 1598 / 1603. Apesar de todas as
disposições anteriores no sentido de apoiar através de “leis” a exploração da
força de trabalho indígena, manifesta esta preocupação em sua Ordenança de
1603. Benitez (1981, P. 15) descreve:
A respecto, el gran gobernante criollo escribe en la introducción de
sus Ordenanzas de 1603: “Por cuanto en esta ciudad de La
Assunción, cabeza de gobernación, y en la demás de esta Província,
hay y ha habido gran desorden y descuido en los encomenderos en
lo que toca a la doctrina y buena enseñanza y conservación de los
naturales a ellos encomendados... a cuya causa, la mayor parte de
Los indios... se han muerto, consumido y acabado... y que de hoy
en adelente haya orden en todo, y con más facilidad y menos
trabajo sean enseñados en las casas de nuestra santa fé católica, con
acuerdo y consejo de personas cristianas y doctas, hago, ordeno las
ordenanzas [...].
Em 31 artigos redigidos em espanhol e em Guarani, Hernandarias de
Saaverdra definiu com precisão o entrelaçamento da educação e a religião
cristã. Cuja síntese expressa a sua visão de mundo, e as contradições inerentes à
dominação exercida sobre os indígenas. O governador apresenta nestas
ordenanças a política do Estado Espanhol de “proteção” e a tentativa de uma
“elevação” cultural dos nativos, dos mestiços, dos criollos (como ele) criando
escolas de primeiras letras e instrução artesanal e de ofícios em vários
povoados. De acordo com suas Ordenanças de 1603, os homens menores de 15
anos e as mulheres menores de 13 anos e os velhos que já tivessem completado
60 anos estavam desobrigados do trabalho pessoal (encomienda). Outro
procedimento foi a obrigatoriedade imposta aos encomenderos de construírem
igrejas nos lugares de agrupamentos dos índios (Los pueblos) para que
pudessem receber a doutrina cristã proferida pelos padres todos os dias. Sendo
que o sábado seria o dia dedicado ao descanso e o domingo a prática do culto.
A partir dessa consideraçõs fica evidente o entrelaçamento educação e religião.
Como síntese de uma visão de mundo dominante neste período histórico, que
nasce no ocidente e ganha esta configuração particular na Província do
Paraguai.
189
A ordenança demonstra a visão eurocêntrica de mundo fundamentado
na escolástica. Neste sentido as “primeiras letras” e “doutrina cristã” são
sinônimas. Quando o visitador Francisco de Alfaro em 1611, foi enviado pela
Audiência de Charcas para a Província do Paraguai, objetivando verificar a
escravidão indígena, ante as numerosas denúncias de abuso dos encomenderos.
Se contrapondo aos encomenderos Alfaro em suas Ordenanças “aboliu” os
trabalhos pessoais dos indígenas e apoiou algumas iniciativas educacionais de
Hernandarias de Saaverdra. Pois foi Hernandarias quem solicitou a abertura de
um seminário e de um colégio que ficaria a cargo da Companhia de Jesus.
Devido ao entrelaçamento de “educação” e “doutrina católica” as Ordens
Religiosas foram as responsáveis pela primeira “educação” do Paraguai. Foram
as
Ordens
Religiosas
as
mentoras
e
realizadoras
deste
processo
educativo/religioso.
Desde
a
fundação
de
Assunção
os
religiosos
trabalharam
conjuntamente com os conquistadores no sentido de instituir os códigos sociais
do mundo ocidental ligado neste contexto histórico a gênese das instituições
capitalistas. Devemos, portanto, entender a própria catequese e os outros
processos de aculturação – vestir o indígena, ensiná-los a confeccionar
instrumentos musicais ocidentais, ou ainda, o ensino do canto gregoriano –
como uma marca indelével deste decurso.
A fundação de “reduções” e “pueblos”, a catequização, a educação, a
organização da família (de acordo com os princípios do catolicismo),
constituíram o campo de ação das Ordens Religiosas como os mercedários,
jerônimos, dominicanos, franciscanos e jesuítas. As ações das ordens religiosas
estavam amalgamadas com o projeto da conquista colonial; que era a expressão
singular da acumulação primitiva do capital. O aporte educativo ganha uma
configuração particular na Província do Paraguai, entrelaçada pelo caráter
universalizante, que tem o seu procedimento práxis das Ordens Religiosas.
Cabia às Ordens Religiosas o papel “modelador” e “civilizador” das
relações sociais estabelecidas com os indígenas, neste novo lócus. Nestas
relações antagônicas, as ordens religiosas seriam as mediadoras destas novas
analogias entre os diversos grupos e ao mesmo tempo incorporar os valores da
sociedade dos conquistadores. Por exemplo, na organização familiar instituiu o
casamento monogâmico, casa, roupa, trabalho, economia, religião e a
190
imposição de toda a estética da sociedade ocidental. O mesmo processo se deu
em relação aos crioulos e mestiços foi mediante a estas instituições: igreja,
escolas, cátedras livres e seminários que se formaram os primeiros sacerdotes,
governadores (Hernandarias) “filhos da terra”. Sob a égide das idéias
dominantes. É neste contexto histórico que a Companhia de Jesus, implementou
a sua ação no Paraguai colonial e nas reduções esse processo ganha uma
configuração particular.
Hernandarias solicitou a abertura de um Colégio e de um seminário
que ficaria a cargo dos jesuítas. Devido a este entrelaçamento entre “educação e
catolicismo” o papel desempenhado pelas ordens religiosas ocupou um espaço
central na incipiente colonização do imaginário, como destaca Benitez (1981, p.
23):
En 1604 fue creada la Província Jesuítica del Paraguay y desde
entoces creció la afluencia de los misioneros de la Orden en la
Provincial de Paraguay. Referida la trayectoria del Colégio
Jesuítico de la Asunción en otro lugar, cabe una reseña de otros
aspectos de labor cultural de la Compañia. Antes que nada, debe
mencionarse su labor fundacional: los 30 pueblos situados entre la
banda izquierda del Tabicuary, ambos márgenas de Paraná y ambas
márgenas del Uruguai.
Neste sentido, de acordo com Benitez (1981) os “pueblos” e as
reduções surgem também como um projeto educativo/religioso e os “pueblos”
que estavam sob a jurisdição paraguaia eram os seguintes: San Ignácio, Santa
Rosa, Santa Maria, Santiago, San Cosme, Itapúa, Jesus e Trinidad. Também
foram reduções jesuíticas: San Joaquim, San Stanislao, Belém, esta última era
uma redução de índios mbyá. O processo de aviltamento das reduções e dos
pueblos produzia também um processo de segregação com a criação de
“pueblos” de índios e cidades de brancos.
Porém no seio dessas relações estavam contidos os germes da
contradição, pois com a instituição das reduções transcendeu estas relações para
outros planos: culturais, econômicos, religiosos. Neste processo ocorreram
realizações inovadoras e a incorporação de materiais desconhecidos e que até
então não haviam sido utilizados pelos indígenas: a pedra para as esculturas e
para a construção civil, ladrilho, telha, adobe, couro de gado, madeira
trabalhada, portas e janelas. Nas igrejas começaram a ser produzidas magníficos
191
trabalhos de esculturas em madeira, frontais, colunas, capitólios, retratos,
imagens de santos, mobiliários e muitas pinturas primorosamente realizadas.
Estas obras foram realizadas pela força de trabalho indígena convenientemente
adestrada. Neste aspecto os Guarani mostraram-se desde o princípio muito
sensíveis e acessíveis a todas as espécies de artes. Eram notavelmente dotados
para a escultura, pintura e música.
Lugon (1977) desvela este processo educacional e afirma que o
primeiro mestre de música foi um jesuíta francês o Padre Luis Beguer, que
ensinou aos Guaranis a música instrumental e vocal. O padre Beguer que era
também pintor e escultor nasceu em Abbeville, em 1590, foi admitido na
Companhia em 1614 e chegou ao Paraguai em 1616, onde passou a vida toda
como professor de música, pintura e escultura. Depois de Luis Beguer foi o
padre Jean Baes, de origem belga, que fora antes um mestre renomado na corte
do Arquiduque Alberto, e depois junto a infanta Isabel e também como mestrede-capela na Corte de Carlos V. Jean Baes ensinou aos Guarani as notações
musicais mais desenvolvidas da época. O padre Baes foi o mestre dos Guarani
em música instrumental e vocal, passou também boa parte de sua vida como
professor e morreu em 1623 na redução de Loreto.
O padre Sepp que chegou ao Paraguai em 1691 é também apresentado
como um professor virtuoso em todos os gêneros musical e compositor, como
esclarece Furlong (1968, p.31): “Antonio Sepp, tan habilidoso en la musica, en
la pintura, en la escultura y en la arquitectura que era el assombro de sus
contemporâneos”.
O padre Sepp fundou reduções, construiu igrejas, de acordo Hoffmann
(1980, p. 34) “uma destas igrejas construídas não ficava devendo em beleza a
quaisquer outras da Bavária, com exceção da igreja de Munique”. Para
prevenir-se contra assaltos e ataques de bandeirantes, e de outros grupos
indígenas, rodeou toda a aldeia com muro e fosso. No lugar dos casebres de
barro e palha construiu casa de pedra. Foi um profícuo introdutor da cultura
ocidental nas reduções inserindo os indígenas em vários ofícios, na economia e
fez florescer a agricultura nas reduções que estavam sobre a sua direção. O
padre Sepp morreu em 1733, aos 78 anos de idade, tendo trabalhado 45 anos
nas reduções missioneiras. Hoffmann esclarece que para a história econômica
brasileira e latina americana, tem ainda o padre Sepp especial importância por
192
ser o primeiro precussor da siderúrgia brasileira e latina americana. Hoffmann
(1980, p. 38) esclarece:
Lendo a descrição do forno construído pelo padre Sepp, e os
métodos por ele usados na fusão do minério, temos o relato
completo dum Rennfeuer (fogo fluído ou fogo de refinação) como
haviam inventado os Galos e havia usado ao tempo de César (e, de
certo, já há muitos século antes) e, como, então, o passaram a usar
os germanos. [...]. De importância maior e especial é o fato de
haver o Padre Sepp, a esse tempo, fabricado aço, mediante
determinado processo, e de já fazer naquele tempo, distinção entre
ferro e aço, muito antes que essa classificação fosse usual pelo
mundo, como salienta o Padre Teschauer.
O espaço reducional possibilitou a instituição dos valores da cultura
ocidental em síntese com a cultura Guarani, possibilitando o acesso do
“Guarani reduzido” a técnica européia através de escolas de ofícios, do canto,
da música, como esclarece Lugon (1977, p. 144):
Desde o tempo do Padre Baes, em cada redução foi criada uma
escola de canto coral, música e dança. Diz Charlevoix: “Ai se
aprendem a tocar todos os tipos de instrumentos cujo uso é
permitido nas igrejas [...]. Tiveram muito pouco trabalho para
aprenderem a tocá-los como verdadeiros mestres. Aprenderam a
cantar pelas notas as melodias mais difíceis, e somos quase
tentados a crer que cantam por instintos como as aves”57.
Lugon esclarece que o “instinto” era desenvolvido diariamente, em
aulas que duravam várias horas. O padre Pipário (Apud Pastels, 1912, p. 543)
escreveu ao padre Provincial de Milão “que muitos indígenas já sabiam muito
bem compor músicas, que podiam rivalizar com os mais famosos músicos da
Europa58.”
Na maioria das reduções os mestres-de-capela era um Guarani e não
um jesuíta. Lacouture (1991, p. 455) descreve que “um grande músico desta
época, Domenico Zipoli, também jesuíta e rival de Vivaldi, contribuiu neste
______________
57
Ver mais sobre este assunto em: Charlevoix, Tomo I, p. 241-242.
Este processo foi apresentado pelo cineasta inglês Roland Joffé no filme A Missão –
contestável no plano histórico por concentrar num breve período fatos que desenrolaram ao
longo de mais de um século, e por abraçar rigidamente a visão jesuítica – Porém o filme de
Joffé explicita a instituição de valores da cultura ocidental como a música e os instrumentos
musicais como a flauta e o violino. Por outro lado o cineasta brasileiro Silvio Back no filme a
República Guarani, um documentário vigoroso, Back denuncia o que ele chama de “a ocupação
ideológica do indígena”. Explicitando também a instituição dos valores da cultura ocidental nas
reduções Guarani.
58
193
processo de instituição de valores da cultura ocidental através da educação
musical, compondo partituras para os Guarani com várias cantatas”. Lacouture
destaca que os índios ficavam fascinados com os ofícios cantados onde suas
vozes faziam maravilhas, e vários missionários deveram seus prestigio ao seu
talento de flautistas ou violinistas, como os padres Vaisseau e Berger.
O padre Sepp (1980) esclarece que neste processo foi instituída uma
Escola nacional de Música para a qual selecionavam os alunos mais destacados
de cada redução. Seep (1980, p. 247):
Estes índios paraguaios são, por natureza, como que talhados para a
música, de maneira que aprendem a tocar com surpreendente
facilidade e destreza toda sorte de instrumentos, e isto em tempo
brevíssimo. No que concerne ao mestre, quase o dispensam de
todo.
Muratori (1983, p. 96) revela que “nos primeiros tempos as menores
das reduções possuíam quatro organistas habilitados e músicos que se
destacam, por sua excelência, como tocadores de alaúde, flauta, espinhetas,
trombeta, fagote”. De acordo com Muratori muitos europeus que ouviram a
música dos índios (tocada pelos índios) garantiram não ser inferior o das
catedrais da Espanha. O repertório incluía além do canto coral e da polifonia do
Padre Baes, música de bailado e marcha, motete a várias vozes. Os violinistas
também se destacavam, em especial, tocavam as mais difíceis composições
européias com muito virtuosismo.
Muratori enfatiza que quando dois padres franceses vieram visitar as
reduções em 1628, cujos nomes eram: Hérnoad de Tuol e Noel Bethold, os
indígenas apresentaram em honra aos visitantes, bailados com uma música a
duas vozes, “ao bom gosto francês”. Este processo de aculturação e a
identificação do Guarani para com a música e a aptidão para com os
instrumentos musicais aparecem na visão dos cronistas da Companhia de Jesus
e para os autores que defendem a posição dos jesuítas como “modeladoras” e
“civilizatória” e que as manifestações culturais abriu as veredas para o papel
“civilizador” da cultura européia.
194
Nesta acepção SYLVIO BACK59 (Apud Lacouture, 1991, p. 460)
contesta esta posição resumindo desta forma este processo:
A redução dos amerindios do século XVII – ou de hoje – a uma
cultura estrangeira que substituiu um pensamento racional ao
pensamento mítico, e a ordem do Estado à relação libertária, só
pode ser considerada um progresso a partir de uma avaliação
puramente arbitrária das civilizações.
Meliá (1991) corrobora com a visão de Sylvio Bacck afirmando que os
Guaranis pré-colombianos não possuíam templos e nem imagens de ídolos,
portanto, os Guarani não podiam oferecer manifestações de artes plásticas, nos
primeiros tempos, aos conquistadores e missionários especialmente sensíveis à
arte barroca que possuía em suas igrejas uma expressão privilegiada. Assim
mesmo, os Guarani impressionaram sempre pela sua eloqüência em falar, eram
os “senhores da palavra”. Meliá (1991, p. 84) corrobora: “Toda la lengua
guarani, reconecian admirados los missioneros jesuítas, era un arte”.
Meliá revela, portanto, que essa palavra Guarani durante o processo
colonial, foi “reduzida” de muitos modos em especial pela tentativa de
substituição pela arte ocidentalizada do canto gregoriano, ou da introdução de
instrumentos musicais como o violão, violino, clarinete, órgãos etc. Mas como
afirmamos anteriormente ao instituir as reduções no sentido de segregar a
população indígena, se institui a partir do princípio da contradição. A palavra
guarani nunca foi completamente silenciada e foi o instrumento mais utilizado
pela resistência Guarani contra o invasor, no sentido de perpetuar traços de sua
cultura tradicional.
Melia (1991, p. 83) esclarece:
Belleza, fantasia y libertad, los Guarani los han expresado, sin
enbargo, en otro arte, que no se ve y no se toca. Lo mejor del arte
Guarani no se hace, se dice; no se ve, se escucha. La primeira y
fundamental arte del Guaraní es la palavra.
O aspecto da aculturação se manifesta em múltiplas facetas, em um
mosaico de determinações expressas na estética ocidental que emerge nas
______________
59
Sylvio Back concedeu esta entrevista exclusivamente para Jean Lacouture no dia 14 de
Outubro de 1990, no Rio de Janeiro.
195
reduções no signo das estátuas de madeiras e de pedras, nos afrescos e nos
quadros que substituíram e imitam muitas vezes o grego antigo, mimeses do
Renascimento. Lugon (1977, p. 148) afirma que Avé-Lallemont observou
“numa grande sala do Colégio de S. Lourenço, em ruínas trinta e três estátuas
de diferentes tamanhos reunidas pelos índios e cuidadosamente conservadas”.
A escultura foi no processo de colonização uma das expressões
estéticas mais utilizadas como bem observa Moussy (1852) que numa sala do
Colégio, de que ainda se conserva o teto fora colocado um São Miguel
derrubando um diabo, grupo colossal em madeira. Também foi observado por
Moussy o esmero artístico que os Guarani dedicava á lavra escultória das
arcadas e das galerias de mármore ao longo de certas ruas. Moussy descreve o
aspecto exterior das igrejas que eram construídas em pedras vermelhas, branca
e amarela, no estilo renascentista, e na maioria das vezes com três ou cinco
naves e um campanário em pedra rendilhada.
Lugon (1977) esclarece que as igrejas construídas pelos Guaranis eram
espaçosas e imponentes, estas construções provocaram uma rivalidade entre as
reduções em relação aos aspectos estéticos e também em relação a sua
suntuosidade, estimuladas pelos jesuítas. Lugon revela que neste ponto assistiuse à reconstrução de igrejas por inteiro, a fim de colocar ao mesmo “nível” de
outras, privando-se os habitantes do necessário para conseguirem.
Acentue-se, que o conjunto desta análise apresenta o processo
educacional como um aspecto mais amplo e que se dá em todos os setores da
vida cotidiana da redução. Neste sentido a instituição escolar tem a expressão
de Alves (2000) que se recusa a ver a instituição escolar como algo perene, cuja
função especificamente pedagógica se identificaria com a sua única razão de
ser.
Portanto, a estética ocidental revela este processo de aculturação do
imaginário, pois mesmo as pinturas das igrejas encerram o caráter pedagógico.
As igrejas eram decoradas de pinturas cujas representações destacavam os
“mistérios” da religião católica e as ações heróicas dos personagens bíblicos do
Antigo e do Novo Testamento.
Lugon (1977) enfatiza que essas pinturas estavam separadas por
festões e compartimentos de grinaldas feitas com folhas sempre frescas e
salpicadas de flores e que essas igrejas não ficariam atrás das mais belas da
196
Espanha e do Peru, tanto pela beleza da estrutura como pela riqueza e bom
gosto da prataria e dos ornamentos de todas as espécies60.
Sobre o processo de aculturação pela estética ocidental como
expressão do “belo”, do “rico”, do “suntuoso”, Florentin de Bourges (1755)
corrobora com os dados de Charlevoix, descrevendo que estas pinturas eram
realizadas pelos próprios índios e as sacristias eram bem sortidas de prataria e
ornamentos de culto com expressões e valores da cultura européia.
Lugon (1977) também confirma a acepção do valor estético ser medido
pelo grau de riqueza que pudesse contar com a expressão do “belo” estar ligado
ao “rico” e o “feio” ao “pobre”, pois no altar de São Miguel era tão
magnificamente esculpido que o orçavam em “trinta mil réis de prata, sem o
dourado da talha”.
A pedagogia da absorção, portanto, se dava em todas as dimensões
instituindo lenta e gradualmente a visão de mundo da sociedade européia. Este
processo ocorria na singularidade Paraguaia e ganhava nas reduções jesuíticas
uma conformação particular. O procedimento de aculturação se deu em todos os
campos: econômico, político, social, estético, etc. Porém no espaço reducional
estes valores emergem desde a sua gênese sob a égide da contradição, pois a
suntuosidade das igrejas e consequentemente a sua expressão material e estética
entram em contra-senso com a habitação indígena. Haubert (1990, p. 246)
descreve:
Os materiais de construção variam de acordo com a época e o
lugar. Para o teto, a telha começa a substituir a palha por volta de
1700. As paredes são de barro amassado com palha, de adobe, de
pedra talhada até cerca de oitenta centímetros do chão, depois em
tijolo de argila seca ao sol ou até inteiramente de pedra talhada. No
momento da expulsão dos missionários, ainda se encontram todos
os tipos de construção.
Como já vimos o processo pedagógico e educativo nas reduções é
muito mais amplo. É na verdade a instituição de padrões culturais, pois os
Guaranis pré-colombianos viviam em grandes “galpões” com várias famílias.
Os europeus impõem uma mudança profunda, ao instituir a “casa” para apenas
a família monogâmica, e além de impor “novo” modo de viver ainda os
______________
60
Ver mais em: Charlevoix, Tomo I, p. 242-253.
197
qualifica de “pobres”, “sujos”, como um valor estético da cultura ocidental que
se contrapõe com “mansões”, “castelos” no sentido de hierarquia estética, como
demonstração de dominação. Haubert (1990, p. 246) expõe essa contradição:
Em compensação não há qualquer diversidade no alojamento, que
se reduz por toda parte em um único cômodo quadrado de cerca de
cinco a seis metros de lado, não importando o tamanho da família.
Um couro de boi faz às vezes de porta. Não há janelas ou chaminé;
faz-se fogo num canto. O chão não é revestido. O mobiliário é bem
reduzido semelhante aos dos ancestrais; algumas redes ou peles de
jaguar e couros de boi estendidos no chão, o travesseiro, uma pedra
ou um pedaço de madeira [...]. No mesmo cômodo vivem e
dormem os animais domésticos, os cachorros e as galinhas [...]
Haubert (1990) revela que o padre geral recomendava em 1696 que os
curas visitassem regularmente as habitações e que estes não deveriam permitir
de maneira alguma que várias famílias vivessem sob o mesmo teto, como era
comum antes da chegada dos europeus e da conquista. Da mesma forma se deu
também em relações aos vestuários cujo traje dos homens consistia numa calça,
num colete e no ornado de franjas nas bordas, que em guarani chama-se aobaci.
E se conseguissem ganhar ou adquirir uma camisa e acreditava-se que com esse
traje estariam “decentemente” vestidos. As roupas eram de algodão, com
exceção do poncho de lã para os dias frios. Os cabelos dos Guaranis cristãos
eram cortados como os dos noviços. As mulheres só soltavam os cabelos
quando ia à igreja o que era considerado um sinal de reverência. Em tempos
normais elas prendiam os cabelos com rendinhas de algodão.
Em casa e nos trabalhos do campo usavam vestidos de talar sem
mangas. Para o culto vestiam usualmente por cima do vestido uma túnica
também de talar, que era denominado de tupai. Na expressão estética cristã a
mulher Guarani vestida dessa forma era um “retrato vivo de Nossa Senhora de
Loreto”. As mulheres cristãs Guarani não utilizavam mais a pintura corporal
nem no rosto, nem nos lábios.
Haubert (1990, p. 248) revela que “o uso de colares e brincos pela
mulher Guarani era permitido, estes eram feitos de vidros de todas as cores e os
brincos eram geralmente de cobre e podiam atingir até três dedos de diâmetro”.
Assim como fora instituído pelos jesuítas a questão habitacional, as vestimentas
198
das mulheres apregoam o sentido “estético” e ao mesmo tempo “moral” do
cristianismo.
Haubert (1990, p. 250) esclarece:
Pode parecer paradoxal os jesuítas, por um lado incitarem os índios
a aumentarem ao máximo sua produção e, por outro restringiram o
consumo de maneira tão draconiana. Bem que gostariam que os
neófitos demonstrassem mais interesse em garantir sua subsistência
e a decência de seu alojamento e de suas roupas, mas não poderia
permitir que esse interesse se transformasse em desejo “de enfeitar
o corpo desprezível ou parecer mais do que são”.
Este exemplo é elucidativo, pois divulga uma posição de classe,
evidentemente da dominante, fundamentada na “moral” cristã a instituição dos
códigos de sua sociedade, incentiva o aumento da produção, pois acumular era
preciso, restringe o consumo para servir a este propósito. A estética emerge
como uma distinção social e imposta como um valor moral. Síntese do
entrelaçamento da “educação” e do “dogma religioso” que insurge com uma
característica distintiva de uma classe embrionária que ansiava por acumular
riquezas sob a égide de um “moralismo” desmoralizado pela pilhagem, pelo
roubo, pela escravidão, marcas fundantes de um renascimento que emerge na
morte e no genocídio. Época das luzes, iluminadas pelas fogueiras da
inquisição, livre pensamento reduzido, sob a égide da luta de classe.
Neste sentido Haubert (1990, p. 250) corrobora:
Entre eles, no entanto, há pessoas de uma categoria mais alta, e os
jesuítas permitem que usem roupas mais ricas; até lhas dão às
custas do Tupambaé, se elas não tiverem condições de adquiri-las.
Além disso, quando os jesuítas dizem aos Guaranis “enriqueçam”,
acrescentam, segundo os preceitos do Evangelho, “mas
permaneçam pobres de espírito”.
Paradoxalmente a Companhia de Jesus é a expressão materializada do
enriquecer – pois era sem dúvida a ordem religiosa mais rica de toda a América
Colonial - a retórica do “permanecer pobre de espírito” e a expressão ideológica
de sua ação. Portanto na materialidade reducional o indígena poderia adquirir
riqueza, contando que sejam “pobres de espírito” para que aceitem
passivamente o domínio. Neste sentido como afirma Sarup (1980, p. 152): “A
alienação e a desigualdade têm suas raízes não na natureza humana, não na
199
tecnologia, não no sistema educacional, mas na estrutura da economia
capitalista”. Nesta definição as reduções jesuíticas são á expressão da gênese do
capitalismo (em sua fase de acumulação primitiva) que estimulou a produção
econômica e ao mesmo tempo legitimou a desigualdade econômica
proporcionando um mecanismo meritocrático para destinar os indivíduos a
posições econômicas desiguais.
3.3 A PRODUÇÃO CULTURAL: AS ATIVIDADES EDUCACIONAIS
NOS POVOADOS MISSIONEIROS DA PROVÍNCIA JESUÍTICA DO
PARAGUAI.
De acordo com Meliá (2004), os franciscanos foram os primeiros
organizadores de reduções no Paraguai, entre os anos de 1580 a 1615. Frei Luis
de Bolaños e Frei Alonso Buenaventura foram os protagonistas desse audacioso
empreendimento. A Companhia de Jesus buscou imprimir estrutura e
organização, formulando um projeto amplo e abrangente.
Projeto que contemplava todas as dimensões da vida humana, social,
política, cultural e, principalmente, religiosa. Para a implementação de uma
redução, os jesuítas faziam a escolha dos lugares mais elevados e de fácil defesa
para se estabelecer. Com alguns índios, iniciavam as plantações e as
construções e quando já estavam estabelecidos, vinham as famílias.
De modo geral, a redução possuía uma praça como centro e a igreja
como prédio mais importante. A redução procurava produzir uma nova
espacialidade social.
Seguiam, quase sempre, a mesma forma de urbanização, delimitando o
espaço físico com a intenção de introduzir os índios aos novos códigos sociais
da sociedade que estava se instituindo. Nas reduções, eram demarcadas, como
salientamos anteriormente, em primeiro, a igreja61 e a praça central e, a partir
______________
61
Duverger (1993, p. 102) afirma que: “... los frailes se consagran a construir sus monasterios,
pero paralelamente a la construción de los edifícios conventuales edifican en forma sistemática
un anexo con materiales ligeros destinados a servir de escuela. Desde su instalación, es alli
donde acogen a los hijos de las personalidades índias del lugar. Esos jovencitos reciben alli los
primeros rudimentos de la religión católica, aprenden de memória las oraciones principales –
Pater Noster, Ave Maria, Credo – en latín y son iniciados en los princípios de da escritura y de
la lectura”.
200
desse núcleo, traçavam-se as demais construções. Havia a sede administrativa,
denominada “cabildo”, a escola, o refeitório, as casas para as famílias, as
oficinas, o refeitório, o cotiguaçu (uma casa especial, destinada às viúvas, às
mulheres sozinhas e aos órfãos), a hospedaria e, ainda, a horta e o pomar,
chamados “quinta”. Este conjunto de construções formava uma vila, a partir da
visão organizativa européia.
Furlong (1933) descreve que foi estabelecida uma intercomunicação
entre todas as reduções; os rios eram munidos de pontes ou canoas e balsas para
o transporte.
Abriam-se estradas e, a cada cinco léguas, era exigida a construção de
uma capela provida de dois aposentos e alguma casa de índios, que agradavam
e acolhiam os transeuntes. Furlong esclarece que desde a vitória de Mbororé62,
as reduções jesuíticas mantinham guarnições de fronteira e comunicações
fluviais e terrestres entre si, como estratégia de defesa. Em diversas reduções,
no alto da torre da igreja, giravam espelhos solares. Desempenhavam o papel de
foto-telégrafo, como válidos instrumentos convencionais de intercomunicação
entre as reduções vizinhas.
Foi neste espaço social que ocorreu com uma configuração particular
toda a produção cultural dos povoados missioneiros do Cone Sul da América
Latina. O período que compreende todo este processo envolve os séculos XVI a
XVIII, aproximadamente 160 anos, sendo que o período áureo dos trinta povos
missioneiros vai de 1682 a 1767. No Paraguai, situavam-se as seguintes
reduções: Santo Inácio-Guaçu, Cosme Damião, Trindade, Jesus, Santa Rosa,
Encarnação, São Tiago Apóstolo, Nossa Senhora da Fé.
Na Argentina atual: Santo Inácio Mini, Santa A’na, Loreto, Candelária,
Corpus Christi, Conceição, São Carlos, São José, Apóstolos, Santa Maria
Maior, São Xavier, Mártires, São Tomé, Japeju e Santa Cruz.
No atual Rio Grande do Sul (Brasil), estavam localizadas as seguintes
reduções: São Francisco de Borja, São Nicolau, Bispo, São Luiz Gonzaga, São
______________
62
Em 1640, o papa excomungou os predadores de índios na América colonial. O documento em
referência foi apresentado pelo Padre Diáz Tano. As reduções jesuíticas prepararam um exército
para enfrentar os bandeirantes paulistas. O exército guarani contava com aproximadamente de
quatro mil homens armados. Após árduas batalhas, os guaranis conseguiram expulsar os
bandeirantes, em 28 de março de 1641. A batalha decisiva deste episódio foi a de Mbororé.
201
Lourenço, Mártir, São Miguel Arcanjo, São João Batista e Santo Ângelo
Custódio.
Estas reduções mantinham uma inter-relação e uma intercomunicação
constante. Havia, ao mesmo tempo, inter-ajuda e intercâmbio comercial e
cultural recíproco. Fazendo parte de uma complexa organização denominada de
Trinta Povos das Missões, da província jesuítica do Paraguai. É importante
descrever este processo enfatizando as atividades culturais dentro da redução,
envolvendo tanto a educação assistemática, a catequese, quanto a educação
escolar63.
O primeiro processo que apresentaremos será de como se deu a síntese
dialética da cultura guarani ao se fundir com a “cultura das imagens” trazida
pelos colonizadores e jesuítas e, consequentemente, descrever os artefatos que
constituíram o signo das expressões “artísticas” e educacionais no espaço social
da redução.
No período pré-colombiano, a expressão da arte guarani se realizava na
cestaria, na cerâmica e na pintura corporal. O acervo “artístico” guarani
originário, no espaço social da redução, passou por significativos acréscimos
com a feitura de imagens. Hoje, ainda se encontram os remanescentes
arqueológicos dos antigos povoamentos. Custódio (2000, p. 19) afirma que “o
espírito barroco missioneiro que restou deste grande naufrágio, material e
ideológico, impressiona a quantos puderem passar por lá. São anjos, arcanjos,
querubins, santos e índios. Cedro e arenito. Terra vermelha, fumaça, estrelas do
sul...”.
A maioria das imagens missioneiras guarani é de autoria desconhecida.
Charlevoix (1913) afirma que os jesuítas orientavam os indígenas nas oficinas
de arte, além de talhar algumas peças por inteiro. As figuras eram talhadas em
madeira, que depois eram policromadas. Seep (1980) revela que os altares,
também em madeira, eram coloridos e dourados, decorados com pilastras,
flores e santos.
Essas imagens serviam como elementos educativos e catequéticos.
Esse caráter didático da arte historicamente apareceu na Idade Média, como
______________
63
Nos primeiros anos, os sermões e os ensinamentos eram feitos com o auxílio de intérpretes,
mas a necessidade de dominar os códigos lingüísticos dos índios para tornar a catequese mais
eficiente acabou impondo-se. Dominando a língua nativa, os padres chegaram até às crianças,
fazendo com que elas levassem para as famílias os novos códigos sociais.
202
forma eficiente de ensinar a religião. No período barroco, houve uma
revalorização da imagem religiosa, como forma pedagógica de se referir às
pessoas.
Portanto, os jesuítas introduziram no espaço reducional, novas formas
de expressão cultural, até então desconhecidas pela sociedade guarani64.
Objetivando o sucesso da catequese, essas novas formas de expressão foram
usadas como formas de persuasão. E para que os indígenas compreendessem os
conceitos abstratos que estas expressões continham, foi necessário introduzir o
processo educativo.
Logo, catequização e educação estiveram amparadas na utilização e na
produção de imagens, pinturas, procissões, festividades, teatros, cantos, danças,
enfim, tudo o que pudesse ser exteriorizado, visível e palpável.
Nesta síntese da cultura guarani com o processo de catequização,
produziu-se no espaço social da redução um novo acervo de representações de
signos conduzidos habilmente pelos jesuítas. As imagens religiosas foram
importantes instrumentos à disposição dos jesuítas no trabalho de catequização
dos guaranis reduzidos.
Com isso, aparecem “santos” ligados ao cotidiano do homem comum,
proporcionando um contato mais “direto com Deus”.
Haubert (1990) descreve que nas reduções jesuíticas, o ano era
naturalmente marcado por festas religiosas e civis. As celebrações possuíam
uma particularidade notável que, antes de mais nada, se manifestavam pelo
fervor religioso e, também, pelo esplendor da cerimônia. Outro exemplo
elucidativo apresentado por Haubert é que durante o período de Quaresma, às
quartas e sextas-feiras à noite, após a missa, os homens e os meninos se
entregavam à flagelação pública.
A procissão da quinta-feira “santa” era feita à moda espanhola.
Compreendia a reunião de trinta crianças ou mais. Cada criança era escoltada
por dois homens, que carregavam tochas de fogo em suas mãos. Cada criança
carregava a representação de um instrumento que fora utilizado na “Paixão de
Cristo”. Após a realização destes eventos religiosos, se utilizavam do toque de
trombetas, terminando os espetáculos com a lamentação das mulheres e as
______________
64
Outro aspecto importante neste processo foi a conversão de alguns chefes indígenas, que
influenciou um grande número de silvícolas a aceitar o batismo, que foi realizado em massa.
203
flagelações dos homens. Haubert (1990, p. 233) afirma que: “As manifestações
de dor aumentavam na Sexta-feira Santa. Quando do relato da Paixão, o
sofrimento dos índios é tamanho que, ao ver suas lágrimas, o padre muitas
vezes não consegue conter as suas e é obrigado a interromper o sermão”.
Estas expressões catequísticas65 também se manifestavam nas
procissões. Havia a construção de todo um simbolismo nestes eventos, que se
materializava na utilização do fogo, com enormes tochas que os indígenas
carregavam e, também, nas grandes cruzes de madeira. Expressões simbólicas
do processo de instituição do imaginário social cristão. A Sexta-feira “Santa”
era a expressão do sofrimento. Já o sábado de “aleluia” ganhava uma nova
configuração, assim descrita por Haubert (1990, p. 276):
No sábado de aleluia, o fuego nuevo, o “fogo novo”, é aceso diante
do pórtico da igreja, e é aspergido e abençoado pelo padre; cada fiel
leva um tição para casa. No dia de Páscoa, os fiéis vão à igreja toda
iluminada e decorada com guirlandas, ao som de flautas e
tambores. A alegria explode em cânticos.
Estes exemplos apresentados por Haubert descrevem a estratégia
catequética dos jesuítas, assim como também reconhece a participação efetiva
da Igreja Católica.
Os concílios da Igreja Católica foram sempre enfáticos quanto à
importância da veneração das imagens e dos rituais religiosos, como as
procissões e a comemoração dos “santos padroeiros”.
Os hinos litúrgicos, a veneração dos santos, a harmonia dos sinais de
celebração religiosa, a prédica dos padres durante a missa, tinham a intenção de
gravar na memória dos guaranis a prática do cristianismo. Todas essas
expressões confirmam que a prioridade dentro do espaço social da redução era a
instituição dos códigos sociais da sociedade dominante66. Neste processo, as
procissões exerceram um papel fundamental no cenário barroco Contra______________
65
Nessa dinâmica de aprender a língua guarani, de introduzir as imagens, de construir igrejas e
escolas, de ministrar a catequese, a atividade escolar e traduzir catecismos para crianças e
adultos, de realizar casamentos coletivos em datas festivas dos padroeiros da igreja, o
cristianismo consolidou sua hegemonia, mesmo com todas as resistências enfrentadas.
66
Na espacialidade reducional, as artes tiveram um grande impulso, já com a estrutura urbana
dos povoados definida: ruas bem traçadas, casas circundando a praça e, como ponto de
referência, a igreja. Também estavam instalados os setores educacional e produtivo, incluído aí
as oficinas.
204
reformista. Os eventos desta natureza eram sistemáticos e acompanhados de
grandes preparativos, mobilizando todos os habitantes da redução e atraindo
participantes de outras reduções.
Haubert (1990, p. 277) afirma que:
Para o Corpus Christi erguem-se inúmeros arcos de triunfo ao redor
da praça, cada um dominado por uma estátua ou por um quadro.
Nos arcos, nas ripas que os unem, os fiéis penduram frutas ou
animais da região: pedaços de caças e peixes, crus ou cozidos,
pintinhos vivos em gaiolas, galinhas presas pelo pescoço, pássaros
de todas as cores presos por um fio, amarrados na pata, cães,
macacos, raposas, ovos de ema, etc.
As procissões, as festas religiosas, a produção e a utilização de
imagens, nas reduções, foram atividades em que se ocuparam os guaranis.
Percebe-se, através dos registros dos jesuítas, a importância do uso das
imagens67 como forma de persuadir os índios a participar frequentemente dos
rituais sacros e as orações, seja pela beleza externa dessas imagens, seja pela
expressão da hegemonia que elas representavam. As imagens eram usadas na
catequese e na educação como marcas distintivas da sociedade dominante. Ela
reforçava a pregação e a práxis cotidiana do empreendimento jesuítico. A
utilização de imagens com este propósito pode ser restituída historicamente. A
Igreja Católica, desde o Concílio de Nicéia II, passou a afirmar o valor das
“imagens sagradas”. Durante a Idade Média, usou-a em profusão com o sentido
catequético.
Grande parte das igrejas européias tinha os seus vitrais, as suas portas
laterais e suas portas principais esculpidas com temas bíblicos, e as laterais
dessas igrejas eram decoradas com imagens de “santos”. Nas reduções da
Província Jesuítica do Paraguai, o barroco jesuítico ganhou uma configuração
particular68, que se materializou mesclada à flora e à fauna locais. As flores
nativas, os frutos da região, os animais empalhados, ocuparam espaço na
decoração das igrejas. Nesta perspectiva, ocorreu a síntese da cultura guarani
______________
67
No contexto da arte sacra latino-americana, percebe-se que a escultura barroco missioneira
ainda é um assunto pouco estudado. Essas obras merecem especial destaque por ilustrarem a
originalidade da expressão indígena incorporada aos padrões europeus.
68
Maria Inês Coutinho (1996), em seu estudo sobre o imaginário missioneiro, classificou
tipologicamente as obras em três categorias: eruditas, mistas e primitivas. Nesse mesmo
trabalho, as peças também foram analisadas do ponto de vista técnico, estilístico, iconográfico,
de nomenclatura barroco-guarani, mas não chegam a ter um aprofundamento maior.
205
com as possibilidades tecnológicas advindas da Europa. Nas reduções, os
guaranis passaram a trabalhar com materiais que exigiam uma técnica mais
apurada, como, por exemplo, a aplicação de cor dourada nas imagens, a
confecção de alfaias, utilizando instrumentos de trabalho delicados e precisos.
Logo, a arte foi meio de imposição, propaganda, pregação catequética
e educativa, no Cone Sul da América Latina. Estas manifestações artísticas e
culturais se davam em diversos campos: produção de imagens, procissões,
festas. Nas festas e celebrações religiosas, eram representadas peças teatrais,
que tinham como roteiro as representações bíblicas.
De modo geral, a redução possuía uma praça como centro e a igreja
como prédio mais importante.
Na praça, desenvolvia-se a maior parte das atividades sociais, como as
festas, procissões, teatro e outras atividades. Como não existiam locais
específicos, destinados às representações teatrais, estas aconteciam nas praças,
nas ruas e dentro dos colégios e igrejas. Kostianovsky (1999) descreve que os
jesuítas recebiam, entre os ensinamentos de sua ordem, orientações sobre
técnicas teatrais, que consideravam mais eficazes e fascinantes para a catequese
e para a educação, do que, por exemplo, os sermões. Os jesuítas começaram,
então, a misturar os costumes, máscaras, pinturas e elementos do cotidiano
indígena aos seus apólogos educativos, que teve como resultante espetáculos
quase sempre litúrgicos de cunho eminentemente epistolar.
Nestes espetáculos, revela-se a síntese e o antagonismo da cultura
guarani e européia. A expressão desse antagonismo se manifestava nos anjos e
nas flores nativas, santos católicos e bichos nativos, demônios e guerreiros69.
Além de figuras alegóricas como o “temor a Deus” e o “amor de Deus”, as
personagens femininas (geralmente as “santas” da Igreja Católica) eram sempre
interpretadas por homens travestidos, já que as mulheres eram terminantemente
proibidas de participar das encenações. Para Furlong (1938), esta proibição era
para “se evitar o excesso de entusiasmo entre os jovens”.
Charlevoix (1747) afirma que boa parte dessas obras não era assinada e
pouco cuidado se dedicava à sua conservação. Normalmente, eram os próprios
______________
69
Na XV Carta Ânua (1984, p. 156), dirigida ao padre provincial Diego de Boroa, em 1635, da
Redução de Nossa Senhora de La Candelária, pode-se comprovar claramente este processo:
“Los índios se esmeraran notablemente en el aderezo de las calles”.
206
religiosos que escreviam as peças, embora os índios tenham também escrito
algumas peças, afirma Charlevoix.
Os
espetáculos
teatrais
eram
geralmente
auto-sacramentais,
apresentando os “mistérios” do catolicismo. Em geral, de acordo com
Charlevoix, as peças continham conteúdo doutrinal ou eram de caráter
“moralizante” e “edificante”, e eram divididas em dois tipos: as que eram feitas
para as cerimônias religiosas e as representadas em ocasiões especiais, como
visitas de bispos, superiores da ordem, entre outros. A canonização de Inácio de
Loyola, em 1622, motivou a criação de textos que exaltavam a glória desse
novo “santo” e da Companhia por ele fundada. O aspecto importante dessas
manifestações culturais foi a participação efetiva de toda a população das
missões nas festas e na produção das representações teatrais70. A síntese desta
participação da sociedade guarani incorporou a este processo rituais de sua
cultura ancestral. Os guaranis tradicionalmente se manifestavam através da
dança em suas cerimônias prévias às guerras e à caça. No espaço social da
redução, ocorreu a incorporação dessas manifestações lúdicas ao texto teatral
europeu. Os jesuítas mantiveram e estimularam a dança, introduzindo-a aos
poucos nas peças teatrais. Logo, a síntese por incorporação da dança e do canto
guarani ganhou um significado cristão. Devido a esta configuração particular,
as apresentações teatrais ganharam terreno no espaço social da redução, se
constituindo como uma manifestação coreografada.
Paralelamente a esse teatro com finalidade de catequese e de
doutrinação, os jesuítas mantinham uma atividade teatral em latim, praticada
pelos alunos dos colégios da Companhia de Jesus. Furlong (1938) afirma que as
peças teatrais eram sempre revestidas de valores morais, onde sobressaíam
repertórios de acontecimentos ocorridos na metrópole ou na colônia.
As peças teatrais nos Colégios eram escritas pelos próprios estudantes,
com auxílio dos padres, geralmente sendo realizadas com músicas e durava em
torno de duas horas. A arte, portanto, foi um instrumental utilizado habilmente
pelos jesuítas em seu empreendimento. Todo esse instrumental que fora
introduzido pelos jesuítas no espaço reducional, era desconhecido da cultura
ancestral guarani, o que nos leva a refletir sobre o impacto da iconologia cristã
______________
70
O período áureo da produção da arte e da evangelização aconteceu após 1640, quando as
reduções se estabeleceram em lugares definitivos, após o recuo dos bandeirantes.
207
incidindo sobre o imaginário social do guarani reduzido, como também sobre o
aspecto técnico deste impacto71. O fato de o guarani esculpir com novos
instrumentos, usando gaivas e cinzel, provocou uma nova relação social,
inseridos em uma nova forma de produção e reprodução de sua existência,
provocando novas necessidades.
Temos, portanto, na própria gênese do processo de instituição das
reduções, vinculada umbilicalmente com o processo colonizador, a instauração
de práticas educativas. Seja a produção de imagens, a representação de peças
teatrais ou a educação escolar – sustentadas por uma ortodoxia religiosa
católica, dirigida sobremaneira às sociedades indígenas, desdobradas em
diversas formas.
Os jesuítas, desde a sua chegada na Província do Paraguai, começaram
a ensinar a ler, a escrever, a contar e a cantar, como parte da estratégia de fazer
com que os “gentios” aderissem à cultura européia. Como afirma Melia (Apud
Emiri e Monsserat, 1989, p. 9): “De muitos e diversos modos conquistados, os
povos indígenas são, afinal, conquistados pela escrita”. A Companhia de Jesus,
dentre os vários interesses que permeavam a sua ação, ambicionavam a
conversão dos silvícolas ao cristianismo, fazendo com que os guaranis
reduzidos absorvessem os valores culturais da Europa.
Nesta síntese, os jesuítas, por dominarem os códigos sociais instituídos
pela sociedade dominante e contando com o apoio do Estado espanhol,
exerceram o comando sobre estas novas relações de produção social. Ao
dominar a produção da base material, erigiu toda uma superestrutura: religiosa,
jurídica, educacional e política, no espaço reducional, evidentemente,
vinculadas umbilicalmente ao Estado espanhol. No espaço reducional, a cultura
dominante impôs por rigor os seus fundamentos, isolando os opositores dessas
novas relações, representados pelos xamãs e pelos caciques, criando, a partir da
produção material, uma nova estratificação social na espacialidade reducional,
sob a sua hegemonia. Contraditoriamente, a sociedade guarani, pelas condições
históricas, entrou neste processo na busca pela sobrevivência física.
______________
71
É preciso esclarecer que, num primeiro momento, as casas e as igrejas eram feitas de madeira
e cobertas de palha, não havendo ainda as construções em pedra como são referidas atualmente.
De acordo com Maeder e Bolsi (1980), esse “momento clássico” só aconteceu com a
estabilidade dos povos e com a vinda às reduções, de escultores e arquitetos jesuítas. Podemos
destacar entre esses: Brasanelli, que esteve nas reduções entre 1697 a 1728; Primoli, entre 1693
a 1747; Antonio Sepp, de 1631 a 1733.
208
Conhecedores profundos da flora e da fauna da região, possuidores da
força de trabalho, com conhecimento empírico da produção regional e dos
produtos da natureza, encontraram na espacialidade reducional a possibilidade
de garantir a sua sobrevivência, protegidos do regime de “encomienda” e dos
ataques dos bandeirantes, em “liberdade reduzida”.
A partir destas condições históricas, buscaram, no espaço reducional,
sobreviver ao “cataclisma” que foi a invasão européia. Neste processo, a
Companhia de Jesus era a responsável perante o Estado espanhol, pela redução.
Havia conquistado o monopólio sobre a utilização da força de trabalho dos
indígenas que conseguissem agrupar em suas missões. Porém, neste novo
empreendimento que estava se instituindo, o trabalhador deveria dominar os
códigos sociais dessa nova sociedade72.
Portanto, era imperativo esse trabalhador ser cristão, freqüentar o culto
e a escola, ser monogâmico e, principalmente, dominar os novos instrumentos
técnicos da produção: o arado, o machado, a serra, a tecelagem, o cavalo, etc.
No espaço reducional, essas relações sociais produziram novos
imperativos, que obrigaram os índios a realizar novos sacrifícios e novas
inserções sociais, criando uma dependência em relação à produção material da
redução, desviando-os para novas formas de deleite, arruinando a sua antiga
organização política e econômica, esfacelando antigas instituições como o
“xamanismo” e a dos “caciques hereditários” 73.
Estas novas formas de deleite foram introduzidas pelos jesuítas, cujas
primeiras preocupações referiam-se à segurança alimentar. Para tanto, de
acordo com Furlong (1963), o padre Cristovão de Mendonça introduziu o gado
vacum, cavalos, ovelhas e animais domésticos. Também a agricultura foi
______________
72
Na visão dos historiadores ligados à Companhia de Jesus, três foram as maiores conquistas
que os jesuítas obtiveram em “favor” dos guaranis: 1. Erradicaram a “bebedeira”; 2. A
“poligamia”; 3. A “ociosidade”. Para terminar o hábito da excessiva bebedeira, estimularam o
chimarrão e o tereré. Para acabar com a poligamia, introduziram o conceito de matrimônio
monogâmico e de família. Para superar a ociosidade, introduziram as mais variadas frentes de
trabalho, permeadas por música e canto. O que podemos afirmar contraditoriamente a esta
premissa, é que através de aldeamento e do sistema educativo incluíam a leitura, a escrita e a
educação para o trabalho. A força de trabalho indígena foi explorada em grande escala, sendo
também um canal para a implementação de valores “cristãos” e eurocêntricos, adequados à
política colonialista.
73
Melia (2004, p. 210) afirma: “Cuando se reducian, los Guaranis se hacian “cristianos”, eran
bautizados, pero no se hacían españoles. Permanecia ava índio, ava karai, pero no ava y koarai;
índio “cristiano”, pero no índio y “español”. Con la reducción se mantienen los mismos
conceptos tradicionales de ava, karai y pai’i, pero dispuestos en otra figura. Karai puede
adjetivarse en el ava, pero no puede substantivarse simultáneamente con el índio”.
209
metodicamente desenvolvida em Tupambaé (Propriedade de Tupã-Deus) e
Amambaé (área designada ao cuidado de cada família). Após estruturar esta
base material, os jesuítas oriundos de diferentes nações européias introduziram
nas reduções as produções artísticas mais recentes de seus países. Toda essa
eloqüente produção funcionou como forma de aculturação, persuadindo os
indígenas à aceitação dos valores culturais da sociedade dominante. O guarani
reduzido foi arrebatado pelo poder das imagens, pelo canto, pela música e pelos
ritos religiosos (entre eles a ladainha e o sermão). A sociedade dominante,
representada na figura dos jesuítas, ao criar uma força estranha sobre os
guaranis, encontra, assim, satisfação para a escassez da Ordem.
Marx (1978, p. 16) afirma que:
No interior da propriedade privada [...] cada indivíduo especula
sobre o modo de criar no outro uma nova necessidade para obrigálo a um novo sacrifício, para levá-lo a uma nova dependência, para
desviá-lo para uma nova forma de gozo e, com isso, de sua ruína
econômica. Cada qual trata de criar uma força essencial estranha
sobre o outro, para encontrar satisfação para seu próprio
carecimento egoísta. Com a massa de objetos cresce, pois, o reino
dos seus alheios ao qual o homem está submetido e cada novo
produto é uma nova potência do engano recíproco e da pilhagem
recíproca.
A catequese dava sustentação à prática da exploração colonial. A
religião por meio da catequese e da educação aparece desde o início com a
retórica legitimadora da expansão colonial, que se apresentava como “conquista
espiritual”; é junto ao papado que os reinos ibéricos, pioneiros da colonização e
expansão, buscam autoridade para amenizar as disputas pela partilha do “Novo
Mundo”; é deste processo que advém a legitimação de conquista74 . Na gênese
do processo colonizador da Província do Paraguai, a instauração de práticas
educativas foi sustentada por uma ortodoxia religiosa católica, dirigida
sobremaneira às populações indígenas e desdobrada em diversas formas.
Furlong (MCMLIX, p. 124) afirma que:
Asi mismo hay en cada Colegio los maestros de escuela, los cuales
están al frente de los grupos de niños: el uno se ocupa en la
______________
74
De acordo com Meliá (2004, p. 213), “la reducción a veces pretendió la eliminación de
determinados costumbres y la extirpación de ciertos ritos, pero lo más ordinario era simples la
transformación gradual de práticas y hábitos tradicionales y comunes”.
210
enseñanza de la primeras nociones y el otro en explicar la
gramática, y uno y otro se dedican empeñosamente en formar los
corazones de los niños.
O processo de implantação de aldeamentos e sistemas educativos que
incluía a leitura e a escrita esteve desde o princípio sob o comando dos jesuítas.
Este processo é destacado em inúmeras cartas destes.
As artes são destacadas na correspondência do padre Betschon (Apud
Quevedo, 2000), afirmando que em todas as classes de ofícios (oficinas das
missões) havia entre eles alguns notáveis artistas. As atividades artísticas foram
amplamente desenvolvidas nas missões.
O conjunto dessas obras permite analisá-las sob o prisma da arte
guarani-missioneira, qual seja: estas manifestações artísticas foram elementos
importantes no processo de conversão dos indígenas, estando intimamente
ligado à evangelização e à educação assistemática no processo reducional. A
síntese deste processo se revela no acervo destas obras produzidas pelos
indígenas e fundamentadas em modelos europeus, possuindo a técnica européia
aliada ao espírito artístico e criativo do guarani, baseado nos paradigmas
escolásticos em síntese com o humanismo. Os missionários concebiam a arte
como uma virtude que se aplica ao fazer, atuando no sentido de uma repetição
magistral de um modelo. No processo de evangelização / educação, os jesuítas
partiam do pressuposto que as manifestações artísticas deviam ser um método
de ensinar e convencer os índios dos “verdadeiros” e “autênticos” valores da
cristandade ocidental.
A análise que se pode fazer da escultura e das igrejas revela que a
suntuosidade e o esplendor representavam a reverência que se colocava nas
“coisas de Deus”. A mesma reverência que se pôde evidenciar na produção do
Tupambaé (Terra de Deus).
A expressão deste poder pode se auferir pelas igrejas jesuítas que
possuíam no esplendor de seu interior o estilo barroco. O interior destas igrejas
apresentava uma característica cenográfica com a proposta de aguçar todos os
sentidos do neófito cristão. Pode-se, pois, avaliar o efeito dessa carga cultural e
visual sobre os catecúmenos. O padre tinha a missão de converter e educar o
guarani nestes novos códigos sociais. A conversão a fé católica através do
ensino da doutrina e o método utilizado para tal fim, encontravam-se na arte,
211
que facilitou o contato da psique do índio com esta nova realidade social. Este
processo catequético / educacional se desenvolvia em todas as dimensões do
cotidiano reducional. Porém, tal processo foi extremamente contraditório75. O
missionário precisava incutir os paradigmas “civilizatórios” da sociedade cristã
ocidental no índio, consequentemente, negando a arte ancestral guarani, que
possuía um caráter prático e simbólico. O guarani se expressava através de uma
educação assistemática, por meio de uma outra visão de mundo.
Fundamentado em uma concepção mágico-religiosa, neste processo,
teve que incorporar elementos da concepção cristã-ocidental, num processo
educativo / catequético com conteúdo e forma diferente da arte guarani. Santos
(1975, p. 53-54) esclarece:
A educação, como processo, deve ser pensada como a maneira pela
qual os membros de uma dada sociedade socializam as novas
gerações, objetivando a continuidade dos valores e instituições
considerados fundamentais. As sociedades tribais possuem
maneiras específicas de socializar seus membros jovens, dentro dos
padrões da cultura tradicional [...]. Não há, assim, escolarização
formal entre os indígenas, em termos das culturas tradicionais.
Neste primeiro período de educação escolar indígena no Paraguai
colonial, predominaram a catequese e as ações educativas acionadas para
desmantelar culturalmente o povo guarani e sua distinta identidade.
Logo, a ação catequética / educacional missionária reproduziu os
valores e a prática dessa nova sociedade que estava se instituindo. E o espaço
reducional foi o palco onde se evidenciou e se aprofundou essa contradição,
pois a arte era coletiva e anônima. Em sua manifestação coletiva, se expressa a
cultura tradicional guarani. Ao emergir anonimamente (sem o nome do autor),
temos expressa a cultura dominante, pois a arte se encontra materializada, sob o
signo (a imagem de um santo) do domínio. Pois sendo o Deus desse mundo o
capital, ao retirar o capital do trabalhador, fazem deste um ateu. O aparecer
social da obra jesuítico-missionária se manifesta anonimamente, mas seu
código social é o barroco.
______________
75
Este processo era contraditório porque pelo Concílio de Trento, a Inquisição, instituição
criada na Idade Média e também conhecida como Tribunal do Santo Ofício, foi reativada. Em
nome de Cristo e sob o pretexto de combater os hereges, a Inquisição condenou à tortura
milhares de pessoas. Nessa época foi criado também o Index, lista de livros proibidos pela
“Santa Igreja”, que dificultou o avanço cultural e científico do mundo moderno.
212
Este procedimento dificultava identificar os autores das obras. As
obras não eram assinadas, mas produzidas no “atellier” e, posteriormente,
encaminhadas às residências (que possuíam pequenos oratórios nas cavidades
das paredes) e às igrejas. Havia imagens que ficavam à disposição da
comunidade, sendo utilizadas em altares. A ruptura da visão de mundo guarani,
de padrões ancestrais, produziu uma nova realidade social no espaço
reducional.
Essa mescla de elementos nativos na escultura, na arquitetura, na
decoração dos retábulos, tendo como base os modelos europeus, resultou numa
produção peculiar. Nesta acepção, a práxis jesuítica foi apoiada no domínio dos
meios expressivos das imagens como manifestação do real, da verdade, da fé,
do dogma; todo esse aparato foi usado como “mediação” entre o homem e
Deus. A arte, a catequese, a educação assistemática e a educação escolar
influíram sobre a práxis indígena. E este, paradoxalmente incorporou o aparato
visual, cenográfico, educacional e tecnológico “oferecido” pelo jesuíta.
Antagonicamente, manteve traços de sua ancestralidade.
Tendo como síntese deste processo uma produção social com
características particulares no espaço reducional, inseridos no caráter
universalizante de acumulação primitiva.
Este processo teve como resultante uma produção social particular, que
teve como palco a espacialidade reducional. Um exemplo elucidativo desta
particularidade pode ser vista na arquitetura, que caracterizava-se pelo
rebuscado gosto cenográfico, com colunas, arcos, frontões e frisos fantasiosos e
subjetivos,
possuindo
movimentos,
formas
complexas,
luminosidade,
escadarias, como a igreja de Gesú, em estilo proto barroco. Guilherme Furlong
apresenta fartas e detalhadas descrições das igrejas dos Trinta Povos. Todas
eram espaçosas.
A igreja da redução de Japeju, por exemplo, oferecia lugar para oito
mil fiéis.
Furlong (1963) descreve que a pintura apresentava perspectivas,
geralmente em “trompe l’oeil”, integradas as camjas. Mas foi principalmente a
utilização de um delicado contraste entre luz e sombra que representou o ponto
culminante da pintura, com a estruturação de contrapontos cromáticos e a
exuberância física dos personagens. O artista procurava usar os efeitos
213
luminosos numa contínua e gradual mudança de intensidade nos vários planos
da tela. No caso da escultura, houve uma preocupação em fundi-la com outras
artes, especialmente a arquitetura. Nunes (1999, p. 123) afirma que:
O barroco, pelo seu gosto do monumental, pela sua vontade de
impressionar, ostentando a força e o poder, foi o instrumento da
espiritualidade católica a serviço de um humanismo, empenhado na
submissão das almas e na conversão dos povos. Tal aspecto sóciopolítico entrosa-se à ascese inaciana e, consequentemente, a
catequese jesuítica que acompanhou a expansão colonizadora do
século XVI em diante, trazendo-nos o barroco.
Na espacialidade reducional, as importantes construções das igrejas
faziam parte da estratégia de evangelização / educação. A arquitetura deveria
ser um símbolo de poder e de respeito ao cristianismo. Junto dos templos
religiosos e também dos mosteiros eram edificadas as escolas, destinadas a
preparar as crianças para as novas relações sociais que se instituía.
Haubert (1990) afirma que a educação escolar não era para todas as
crianças da redução. Se restringia aos filhos dos caciques, magistrados76,
funcionários, cantores e sacristãos, mais algumas crianças do povo,
particularmente dotadas. O objetivo do ensino impõe um limite duplo no
recrutamento e ao conteúdo, que só era dispensado aos destinados às funções
públicas (membros do cabildo, contadores e cantores), funções, portanto,
transmitidas por via hereditária nas estratificações “superiores” dos índios
reduzidos. Este ensino compreendia apenas as matérias estritamente
necessárias: leitura, escrita, aritmética77, canto.
______________
76
O processo este descrito por Peramás (2004, p. 77): “Ni todos los niños eran instruídos en la
lectura, escritura y en nociones de cálculo, sino tan sólo aquellos que pedia el bien de la ciudad.
De entre ellos eran elegidos después el corregidor, los cabildantes, los magistrados, escribanos y
procuradores públicos, los sacristanes y los médicos. Estos pocos niños eran principalmente de
famílias de caciques, y de índios principales a quienes tenia en especial consideración sobre los
demás. Leyan perfectamente en guaraní, en español y en latin y muchos de ellos escribian con
letra tan elegante que no desmerecía de los más bellos caracteres tipográficos”.
77
Peramás (2004, p. 78) afirma que: “Todos los domingos, después de recitadas las fórmulas
del catecismo por todos, y cantados por la comunidad los mistérios de la fe, dos que por su voz
eran mejores que otros, estando de pil en medio del templo, decian: aqui los mostramos en
orden y el nombre de los números: Uo:respondia el pueblo. Uno. Después ellos: dos, y a su vez
todos: dos. Después, tres, cuatro etc., y así por delante hasta ciento y mil. Después de esto, los
mismos directores de coro: aqui mostramos los nombres de los dias de la semana: domingo, y
repetian todos: domingo; después: lunes, y ellos, lunes, y así hasta el sábado. Así se conseguia
que los indígenas desde pequeños se hacieran familiares estos nombres y los usaran con
facilidad en las cazas sagradas y en las profanas”.
214
Os estudantes aprendiam a ler e a escrever (alguns em letras de
imprensa), não apenas em guarani, mas também em espanhol e até latim. Não
se lhes ensinava, no entanto, a compreender e a falar nas últimas duas línguas.
Haubert (1990, p. 261) descreve este processo:
De acordo com o caso, louva-se ou censura-se os jesuítas por terem
proibido o uso do espanhol a seus neófitos. Teriam, desta forma,
uma barreira lingüística com o objetivo de proteger seu “reino”,
impedindo os colonos de descobrir seus “mistérios” e seus súditos
de descobrirem que existia uma outra felicidade além da
obediência, ou de proteger suas ovelhas contra todos os vícios que
os castellanos veiculariam.
Pedro Lozano (Apud Furlong, MCMLIX) afirma que após esse ensino
rudimentar, alguns meninos que demonstravam aptidão eram admitidos numa
escola mais especializada. Cardiel (1913) afirma que o desenvolvimento da
dança seria uma dessas escolas especializadas, assim como também a escola de
música. Para este autor, o desenvolvimento da dança e da música deve-se muito
aos jesuítas estrangeiros que estudaram em colégios para nobres, na Europa, e
lá aprenderam e desenvolveram a arte recreativa. Peramás (2004) esclarece que
a educação e a disciplina dos guaranis reduzidos possuíam características
distintas. As crianças eram educadas um período em suas casas e um outro
período na comunidade.
Peramás descreve que as crianças eram despertadas ao amanhecer, ao
toque de uma campainha, iam para o templo, faziam suas orações e recebiam o
catecismo.
Este catecismo era dirigido por dois membros da redução, mais
experientes. Assistiam a missa e, ao sair do templo, recebiam as orientações do
dia, sendo servido a todas as crianças, no pátio da igreja, a primeira refeição do
dia. Nos dias normais, estas crianças eram conduzidas por uma pessoa mais
velha, para realizar trabalhos, como, por exemplo, a limpeza dos campos da
redução das ervas daninhas ou abrir os caminhos cobertos de pedras ou a
retirada de galhos que caíam das árvores.
À tarde, as crianças retornavam novamente para a igreja para receber a
catequese que era dirigida pelo cura. Após a catequese, tomavam a merenda na
215
casa do cura e retornavam às suas casas para ajudar as suas famílias nos
trabalhos domésticos.
Peramás afirma que a educação das meninas era diferenciada em
relação aos meninos. As meninas eram quase sempre acompanhadas por um
“guardião” e eram separadas dos meninos. Como evidenciamos anteriormente,
nem todas as crianças recebiam a educação escolar. Para receber esta instrução,
a criança deveria passar por um processo de seleção, fato este também
confirmado por Peramás.
Peramás (2004) afirma que estas poucas crianças selecionadas eram
principalmente das famílias dos caciques e das principais lideranças da redução.
Blás Garay apud Benitez (1981, p. 25) esclarece:
Cada reducción tenía su escuela en que unos pocos índios, los muy
precisos para ofícios de amamunces o desempeñar cargos
conjeciles, apreendian a leer y escribir en latin y castellano, mas no
hablarlos ni a entender su significado. La lengua española estaba
absolutamente prohibida a los neófitos.
Cabe lembrar, como se sabe, que as gramáticas e até mesmo os
catecismos destinam-se, essencialmente, ao uso dos padres. A circulação de
gramáticas e catecismos (impressos e manuscritos) nas reduções jesuíticas não
reduz, portanto, a mediação e a persuasão do missionário no processo de
instrução (o conteúdo que seria aplicado) religiosa / educativa do índio
catecúmeno. Na espacialidade reducional, a instrução religiosa / educativa tem
como prioridade “as coisas necessárias para a doutrina e o catecismo”. A
instrução escolar se impõe “nas regras e preceitos da língua”. E foram os
jesuítas quem estabeleceram as regras e os preceitos da língua guarani, já que
estes, em sua cultura original, possuíam apenas a linguagem oral78. Os jesuítas,
ao implementarem as reduções, partiram do pressuposto de que os guaranis não
possuíam “fé”, nem “lei, nem Rei”, e que viviam desordenadamente. Essa
suposição de uma ausência lingüística da “ordem” revela o ideal eurocêntrico
de colonização trazido pelos jesuítas.
______________
78
Felix Azara (Apud Furlong, 1978, p. 72) é um dos diversos autores ligados à Companhia de
Jesus, que não reconhecia os guaranis como seres humanos. Descrevendo a linguagem guarani
de maneira sarcástica, afirma: “A unidade da língua entre os guaranis, que ocupavam tão vasta
extensão do país, vantagem que nenhuma das nações cultas do mundo têm logrado ter, indica,
igualmente, que esses selvagens tiveram o mesmo mestre de língua que ensinou aos cachorros a
ladrar de igual modo em todos os países”.
216
E buscaram na espacialidade reducional superar a “desordem”, fazendo
obedecer a um “Rei”, difundindo uma “fé” e fixando uma “lei”. Historicamente,
a Companhia de Jesus desenvolveu uma práxis de buscar se adaptar à cultura
local. A adaptação aos costumes locais, em respeito à diversidade de regiões
sob o domínio jesuítico, era fundamental para a eficácia do empreendimento.
Estas orientações constavam nas Constituições da Companhia de Jesus e foram
apresentadas por Inácio de Loyola em 1550.
De fato, os jesuítas empreenderam no Paraguai uma significativa obra
missionária e educativa, especialmente fazendo uso de novas metodologias, das
quais a educação escolar foi uma das mais poderosas e eficazes79. Em matéria
de educação escolar, os jesuítas souberam construir a sua hegemonia. Não
apenas organizaram uma ampla “rede” de escolas elementares e Colégios, como
a desenvolveram de modo extremamente organizado, contando com um projeto
e sendo o Ratio Studiorum a sua expressão máxima.
Franca (1952) descreve que o Ratio Studiorum ou Planos de Estudos –
o método pedagógico dos jesuítas, publicado em 1599 – fora organizado e
sistematizado a partir da práxis pedagógica que tivera início no Colégio de
Messina – primeiro colégio aberto da Sicília, em 1548.
A partir da experiência italiana, criou-se no seio da Companhia uma
disputa sobre qual experiência pedagógica seria a aplicada pela Companhia: o
modus italicus ou o modus parisiensis. Prevaleceu o modus parisiensis, tendo
como modelo a Universidade de Paris, berço intelectual dos principais
fundadores da Companhia.
Este estatuto pedagógico jesuíta era composto de um conjunto de
procedimentos que envolviam desde a organização escolar e orientações
pedagógicas até a observância do dogma católico. De acordo com Franca, o
método de estudo contido no Ratio Studiorum compreendia o trinômio: estudar,
repetir e disputar, sendo prescrições estas estabelecidas nas regras do reitor do
colégio. Como exercícios escolares, havia a preleção, lição de cor, composição
e desafio, sendo estas práticas pedagógicas que remetem diretamente à
______________
79
Sobre este processo Melia (1997, p. 33) afirma que: “Socialmente, ‘civilizar’ a los índios
significa en muchos casos convertilos en el más bajo proletariado. Si civilizar significa
realmente convertirlos en hombres cultos y bien pagados, en hombres de ciências y financeros,
en altos funcionários, civilicemos en buena hora. Pero si civilizarlos és ponerles un simples
machete en la mano o un hacha, pagarles mal, tenerlos a nuestras órdenes y prohibirles un sin
número de actividades, entonces dejémoslos en paz y nos lo agradecerán”.
217
escolástica medieval, configurada como pedagogia tradicional que, na sua
vertente religiosa, tornava a educação sinônimo de catequese e evangelização.
Nesta acepção, as palavras jesuítas e educação consequentemente se
tornaram sinônimas.
O projeto educacional almejado pelo Ratio Studiorum objetivava a
formação do “homem perfeito”, do bom cristão. Este projeto estava centrado
em um currículo de educação literária e humanista.
No espaço reducional, o Ratio Studiorum foi aplicado ganhando uma
configuração particular. Além do projeto catequético e educacional, a
metodologia jesuítica ampliou este projeto para a transformação do “selvagem”
em “bom selvagem”. Se a educação literária e humanista estava voltada para a
formação da elite colonial, no espaço reducional, estas novas relações sociais
haviam constituído uma “elite indígena”, que era formada pelos caciques,
cabildos, administradores etc., que foram educados a partir desse plano de
estudo. Saviani (2004) afirma que a concepção pedagógica tradicional tem por
característica uma visão essencialista do homem. Nesta acepção, o homem é
concebido e constituído por uma essência humana e este processo é imutável.
Logo, a educação teria o papel de moldar a existência particular e real de cada
educando à essência universal e ideal que o define enquanto ser humano.
Esta práxis estava presente no espaço reducional, para os jesuítas,
tendo o homem sido feito por Deus à sua imagem e semelhança. Logo, a
essência humana é considerada, pois, criação divina. Consequentemente, o
homem deve se empenhar para fazer merecer a dádiva divina.
E a expressão mais acabada dessa vertente é dada por Tomás de
Aquino (tomismo), que consiste na busca de uma articulação entre a filosofia de
Aristóteles e a tradição cristã. Lacouture (1994) esclarece que neste período, os
colégios jesuítas começaram a se espalhar por toda parte, inicialmente para a
formação de jovens religiosos e, depois, para a formação gratuita da juventude.
As considerações expostas devem ser compreendidas no contexto ideológico da
Contra-Reforma, pois essa educação gratuita e para todos era uma característica
marcante nos países influenciados pela Reforma, como atesta Alves (2001, p.
172): “A tendência que germinava com a Reforma, contudo, revelou ser mais
apropriada, historicamente, ao processo de universalização da escola burguesa”.
Nesta acepção, a educação jesuítica emerge em contraposição à Reforma. E
218
estes colégios se espalharam no centro do capitalismo: Messina, Barcelona,
Pádua, Lisboa, Nápoles..., e na periferia do sistema: São Paulo, Goa, Buenos
Aires, Assunção, Santo Inácio-Guaçu, Japeju, São Miguel Arcanjo, etc.
Saviani (1996, p. 5) esclarece:
Portanto, ao deslocamento do eixo do processo produtivo do campo
para a cidade e da agricultura para a indústria, ao deslocamento do
eixo cultural do saber espontâneo, assistemático, para o saber
metódico-científico, correspondeu ao deslocamento do eixo do
processo educativo de formas difusas, identificadas com o próprio
processo de produção da existência, para formas específicas
institucionalizadas, identificadas com a escola.
O quadro de dificuldades posto pela produção desta nova instituição
educacional em escala mundial, fez com que em cada região a ação inaciana
ganhasse uma nova configuração particular. Inseridos na totalidade da força
expansiva do capital, que levou, de acordo com Saviani (1996, p. 6), “[...] à
criação do mercado mundial, é a tendência à universalização das formas
próprias das sociedades burguesas.”
E as reduções jesuíticas estavam inseridas nesta totalidade. E na
particularidade do espaço social reducional, podemos afirmar que a energia da
práxis jesuítica teve tolerância maior que a realizada pelos colonizadores leigos,
a qual revelou uma marca de violência mais acentuada que a dos religiosos,
pois de acordo com Agnolin (1998), entre os séculos XVI e XVII, a
evangelização e, consequentemente, a educação jesuítica teve como estratégia
particular o ato de se apropriar de repertórios culturais (dos povos dominados)
com a finalidade de conseguir uma penetração mais eficaz da sua mensagem.
A partir dessa estratégia, seguiram o caminho da catequese e do ensino
geral, usaram imagens, cantos, músicas, teatros, procissões nos dias santos e nas
festas do padroeiro local. As escolas dirigidas pelos jesuítas contribuíram
decisivamente para a formação dos novos líderes e para a criação de
universidades na América Latina. Os ensinamentos dos colégios jesuítas eram
procurados pelos antigos líderes indígenas. Por sua vez, os padres tinham sob
sua influência e orientação as crianças nativas, agora escolarizadas, que seriam,
no futuro, os dirigentes locais.
219
O que podemos evidenciar nesta análise é que a experiência do
encontro dessas duas culturas distintas (guarani – europeu) permitiu a síntese
por incorporação de preceitos religiosos, estéticos, educacionais etc. Essas teias
de relações sociais produzidas na espacialidade da redução estavam
entrelaçadas pelo caráter universalizante da acumulação primitiva do capital.
Demonstramos que a estratégia catequética e missionária se materializou, pois o
Cristianismo tem atualmente grande visibilidade no Paraguai. No aspecto
cultural, a estratégia jesuítica se efetivou parcialmente, sendo que o seu grande
mérito foi a preservação da língua guarani. No campo econômico, a estratégia
capitalista também se efetivou, já que no devir histórico transformou o guarani
reduzido no trabalhador pobre.
CONCLUSÃO
As reflexões que tecemos ao longo deste trabalho nos levam a apontar
alguns aspectos que merecem ser realçados. Evidentemente não propomos
enunciar nenhuma análise sumária nesta conclusão, uma vez que, estas
reflexões já foram por demais ratificadas no decorrer do trabalho. Portanto, as
conclusões confirmadas no decorrer da pesquisa não serão apresentadas de
forma linear, hierárquica e positiva, não resumindo assim as considerações
obtidas, em grau de importância em relação à totalidade do conteúdo exposto.
O primeiro aspecto tecido na trama da apresentação geral do trabalho é
a compreensão do contexto social e histórico em que foram instituídas as
reduções jesuíticas do Paraguai.
A companhia de Jesus emerge, portanto, na gênese da expansão do
modo de produção capitalista. Neste período as duas grandes potências
marítimas eram Portugal e Espanha que disputavam a hegemonia do processo
econômico. De acordo com Marx (1968) a movimentação do capital nessa fase
tem a aparência de um círculo vicioso, do qual só poderemos escapar se
admitirmos a existência de uma acumulação primitiva, anterior à acumulação
capitalista, isto é, uma acumulação que não decorre do modo capitalista de
produção, mas é seu ponto de partida. Marx afirma que essa acumulação
primitiva desempenha na economia política um papel análogo ao do “pecado
original” na teologia: Adão mordeu a maçã e, por isso, o pecado contaminou a
humanidade inteira. Da mesma maneira, a classe dominante procura explicar a
origem da acumulação por meio de uma estória ocorrida há muito tempo.
Essa tese afirma que em tempos imemoriais existiam, de acordo com
essa lenda econômica, duas espécies de pessoas: uma elite laboriosa, inteligente
e, sobretudo econômica, e um outro grupo constituído de vagabundos,
trapalhões que gastavam mais do que tinham. A lenda teológica descreve que o
homem foi condenado a comer o pão com o suor de seu rosto. Mas a lenda
econômica explica-nos o motivo por que existem pessoas que escapam a esse
mandamento de Deus. Aconteceu que a elite foi acumulando e a população
221
vadia ficou finalmente sem ter outra coisa para vender além da própria pele.
Marx (1968, p.829) afirma:
Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande
massa é pobre, apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria
força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de
poucos, embora esses poucos tenham parado de trabalhar há muito
tempo.
O primeiro aspecto realçado nesta conclusão é o papel fundamental
que a acumulação originária desempenhou na verdadeira história. Pela
violência, pela escravização, pela rapina, pelo assassinato, em suma pela
pilhagem colonial. Esse processo se deu em escala mundial e foram estes os
métodos utilizados pelos espanhóis no cone-sul da América Latina.
As conquistas espanholas não se deram por acaso, foram deliberadas e
bem planejadas, exercidas com audácia: uma alta inteligência técnica fora
colocada a serviço de “Deus” e do lucro, tendo como resultante um assalto
selvagem, pirático e de rapina, como poucas vezes o mundo testemunhara. E a
partir de 1540 os jesuítas se mostraram presentes neste processo. “Os filhos de
Cristo” seguiam esta senda de sangue, construindo suas igrejas, missões e
seminários, porque na práxis, a rapina se travestia de cruzada. Por maior que
fossem as recompensas deste mundo, as glórias sublimes de Colombo, Cortez,
Vespúcio, Pizarro, Cabeza de Vaca, Solís, e Caboto, seriam os galardões do
“outro mundo”.
O processo de instituição das reduções jesuíticas do Paraguai precisa
ser compreendido no movimento de inter-relação e interdependência com esse
processo histórico. Nesse sentido, Marx (1968) afirma que este processo precisa
ser compreendido na transformação da exploração feudal em exploração
capitalista. Na singularidade da produção social na Província do Paraguai
aparecem relações econômicas e sociais que se aproximam das formas de
relações da formação feudal, entretanto, somente no domínio da aparência, pois
em essência esse movimento contém os germes do capitalismo.
É um equívoco, cometido por parte de alguns autores, conceber estas
relações sociais como eminentemente feudais. E para entender essa marcha não
há necessidade de uma longa digressão na história. Embora um prenúncio da
produção capitalista já se evidenciasse, nos séculos XIV e XV, em algumas
222
cidades mediterrâneas, a era capitalista destacada por Marx (1986, p.831) “data
do século XVI”. Marx afirma que onde ela surge, a servidão já esta abolida há
muito tempo, e já estão em plena decadência as cidades soberanas que
representavam o apogeu da idade média.
Portanto, se na Espanha foram preponderantes as relações capitalistas,
não poderiam ser feudais as relações que ocorriam em suas colônias.
Marcam este período, na história da acumulação primitiva, todas as
transformações que servem de alavanca à classe capitalista em formação,
sobretudo, aqueles deslocamentos das grandes massas humanas, súbita e
violentamente privadas de seus meios de subsistência foram lançadas no
mercado de trabalho como levas de proletários destituídos de direitos. A base
de todo este processo foi a exploração do produtor rural, o camponês, que ficou
privado de suas terras. Para atender à incipiente indústria manufatureira, os
antigos senhores feudais expulsaram os servos de seus campos, pois era mais
lucrativo cercar as terras, criar ovelhas e vender lã. A história dessa
expropriação assume singularidades e particularidades (não é um todo
homogêneo) nos diferentes países, percorrendo várias fases (não de forma
linear) em seqüência diversa (com avanços e recuos) e em épocas diferentes,
permeada pelo caráter universal que é a reprodução ampliada do Capital. Logo,
o ouro e a prata extraídos nas colônias espanhola, à custa da morte e do
sofrimento de milhões de indígenas, contribuíram significativamente para o
desenvolvimento das forças produtivas da Inglaterra.
Portanto a análise da instituição das reduções jesuíticas, e
consequentemente as suas atividades econômicas, culturais e educacionais,
empreendida neste trabalho, se situa no conjunto dos estudos historiográficos
cujo conhecimento histórico efetivo é a compreensão deste processo em sua
totalidade. Alves (2001, p.19) afirma que: “Totalidade, no caso corresponde à
forma de sociedade dominante em nosso tempo: a sociedade capitalista.
Apreender a totalidade implica, necessariamente, captar as leis que a regem e o
movimento que lhe é imanente”.
A conquista e a exploração do “novo mundo” foi obra essencialmente
da iniciativa privada, assim como, também de aventureiros interessados na
empresa. Evidentemente, estes deveriam possuir capital e foram estimulados a
assinar contratos com o Estado espanhol para realizar seus empreendimentos.
223
Os “empreendedores” que representavam o domínio espanhol na América eram
denominados de “adelantados”. Juntamente com esse título vinham amplas
prerrogativas jurídicas e militares, entre as quais, o direito vitalício de fundar
cidades e construir fortalezas.
Em contrapartida deveriam promover a cristianização dos índios e
entregar ao estado um quinto da produção de suas terras. O poder local nas vilas
e nas cidades era exercido pelo cabildo, uma espécie de Câmara Municipal. Os
cabildos contavam com a participação de homens selecionados, eleitos em cada
municipalidade entre os mais ricos criolos (indivíduos de origem espanhola
nascidos na América), e que gozavam de certa autonomia.
Este modelo administrativo foi também implementado nas reduções
jesuíticas. Neste caso, os “adelantados” eram os jesuítas que haviam garantido o
amplo direito de fundar as missões, construir igrejas e monopolizar a força de
trabalho indígena. Em contrapartida, deveriam promover a catequização dos
índios, pagar os tributos e instituir na espacialidade da redução os códigos
sociais da sociedade colonial. O Estado espanhol surge neste período histórico
como a superestrutura desta sociedade. Porém o Estado não é a única
superestrutura, uma vez que, esta instituição coexiste dialeticamente com outras
superestruturas, dentre elas a própria Igreja. Logo, o Estado não pode emergir
como a expressão harmônica desta sociedade.
Assim como a Igreja, o Estado não é a expressão harmônica e abstrata
da sociedade espanhola. Ao contrário ele já se constitui como produto da
contradição política, no sentido enunciado por Marx (1963, p.222): “o Estado se
funda na contradição entre o público e a vida privada, entre o interesse geral e o
particular”. As relações sociais nas colônias estavam entrelaçadas e permeadas
por estas contradições. No Paraguai estas contradições ganham uma
configuração particular com o enfrentamento político entre jesuítas e colonos na
disputa pelo monopólio da força de trabalho indígena. A própria Igreja Católica
mantinha em seu seio outras ordens que discordavam da posição dos jesuítas e
também lutavam para conquistar privilégios junto ao Estado espanhol. Portanto
o princípio que rege este processo é o princípio da contradição entre as diversas
frações da sociedade colonial. O Estado espanhol implantou nas colônias o seu
modelo administrativo, criando duas instituições dotadas de ampla competência
administrativa e judiciária: o Vice-reino e as Audiências.
224
Os vice-reis eram responsáveis pelo controle das minas e de sua
administração e supervisionavam a evangelização dos nativos, além de presidir
às sessões das Audiências. O embrião do Estado Moderno espanhol, neste
período, já estava constitutivamente organizado e orientado pelas exigências do
capital. Desde a época da acumulação originária, o poder estatal surge
vinculado à burguesia. Uma das contribuições que este trabalho suscitou foi a
de afirmar que a Companhia de Jesus não possuía total autonomia jurídica nas
reduções. Portanto, as reduções jesuíticas do Paraguai estavam sob a égide da
legislação espanhola, expressa nas leis das Índias e nas Ordenanças de Alfaro.
Paradoxalmente estas leis não eram cumpridas, como descreve Gadelha (1980,
p.201):
Ao contrário do que ocorreu nas cidades espanholas do Rio da
Prata e Tucuman, onde o braço índio pode ser substituído de forma
relativamente rápida pelo negro africano, as encomendas,
obrigando a prestação do serviço pessoal por parte do índio
guarani, se prolongariam até o fim do regime colonial.
Neste período histórico a produção econômica das reduções jesuíticas
expressou a posição ocupada pelo Paraguai no mercado mundial. Consistindose em um empreendimento que explora a terra, com proprietários de estâncias
que criavam gado bovino, ovinos, cavalos e outras espécies. Possuíam também,
engenhos de açúcar, curtumes, marcenarias, atuavam no ramo da construção
civil e possuíam estaleiros, além de outros estabelecimentos. Eram exportadores
de mercadorias com pouco valor agregado. E toda esta incipiente produção era
sustentada pela força de trabalho indígena sob a tutela dos jesuítas.
O modelo adotado para a exploração da força de trabalho foi a do
“índio reduzido”. A partir dessas relações de produção se instituiu na
espacialidade da reducão uma nova sociedade guarani-missioneira, que se
desenvolveu com um caráter particular, inserida neste contexto globalizante.
Outra contribuição significativa neste trabalho foi inserir as bandeiras paulistas
na lógica da acumulação primitiva, não se esquecendo do papel das “malocas”
(versão espanhola das bandeiras paulistas) desempenhado neste mesmo
processo. No cone-sul da América Latina a acumulação originária ganhou esta
configuração particular. Transformando o cone-sul americano em um campo de
caça aos índios, que eram vendidos como escravos, para se estourarem de
225
trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar. Posteriormente o açúcar era vendido
como produto excedente na Europa, quando ocorria de fato a acumulação. Isto
ocorreu porque o dono do capital conseguiu vender as mercadorias produzidas,
fossem elas, açúcar, erva-mate, gado, couro, produtos agrícolas e converter o
dinheiro recebido em capital, como foi comprovado nas reduções jesuíticas.
Além disso, o fracionamento do mais valor em diversas partes em nada muda a
natureza nem as condições necessárias em que ela se torna fator de acumulação.
Qualquer que seja a proporção do mais valor que o produtor dono do
capital conserve para si mesmo ou ceda a outro é sempre ele quem se apropria
desse mesmo mais valor, tal como revelamos nas atividades econômicas das
reduções jesuíticas do Paraguai. A partir do domínio da base material, a
Companhia de Jesus erigiu com o apoio do Estado Espanhol toda uma
superestrutura religiosa, política e educacional. Marx (Apud Alves, 2001, p.1617) ilustra com êxito a essência da produção social:
O criminoso não produz apenas crimes, mas também o direito
criminal e, com este, o professor que produz relações de direito
criminal e, além disso, o indefectível compêndio em que lança no
mercado geral ‘mercadorias’, as suas conferências. Com isso
aumenta a riqueza nacional, para não falarmos do gozo pessoal que,
segundo uma testemunha idônea, o professor Roscher, os originais
do compêndio proporcionaram ao próprio autor. O criminoso
produz ainda toda polícia e justiça criminal, beleguins, juizes e
carrascos, etc.; e todos aqueles diferentes ramos que constituem
tantas categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem
capacidades diversas do espírito humano, criam novas necessidades
e novos modos de satisfazê-lo. Só a tortura suscitou as mais
engenhosas invenções mecânicas e ocupou na produção de seus
instrumentos muitos honrados artífices.
Logo, as reduções jesuíticas do Paraguai não produziram somente
“índios reduzidos”. Produziam também a espacialidade social da redução e com
isso criou-se todo um sistema social, gerando novas necessidades. Objetivando
cristianizar a qualquer preço o “índio reduzido”, os jesuítas buscaram substituir
as crenças ancestrais do guarani.
Nos primeiros anos, os sermões e os ensinamentos eram feitos com o
auxilio de intérpretes, acrescidos do imperativo de dominar os códigos
lingüísticos dos índios para tornar a catequese mais eficiente. Esta nova
necessidade provocou a produção de gramáticas na língua guarani. Ao produzir
a gramática surge a necessidade de ensinar os indígenas a ler esta gramática.
226
Nesta acepção criou-se no espaço social da redução a emergência de publicar e
imprimir esta gramática. Consequentemente, ao dominar a língua nativa, os
padres chegaram até às crianças, fazendo com que elas levassem para as
famílias as novas crenças e as novas condutas.
Este processo foi extremamente dinâmico e contraditório, pois, ao
aprender a língua guarani, o jesuíta europeu desenvolveu a gramática da língua,
e ao impedir o ensinamento da língua espanhola nas escolas das reduções
preservou-se a língua originária. Ao construir templos, possibilitou o
desenvolvimento da arquitetura guarani-missioneira, que contraditoriamente se
contrapôs à simplicidade e a rudeza das habitações guarani. Ao produzir as
belas imagens dos “santos católicos”, estas entravam em contradição com as
imagens de animais nativos da região. Estas imagens de “santos” mesclavam-se
com as imagens “míticas” da cultura original guarani, em um processo
dinâmico de produção de uma nova cultura, sintetizado pelos elementos da
cultura ocidental e guarani. Ao produzir novas necessidades, os jesuítas
precisavam instituir os conceitos abstratos para a compreensão do cristianismo.
Nesta acepção já não bastava a educação assistemática e a catequese,
surge então a necessidade da educação escolar para instituir os códigos sociais
da sociedade dominante.
Ensinar a matemática no sentido de quantificar a produção e identificar
o valor das moedas é um exemplo elucidativo deste processo. As crianças
catequizadas pelos jesuítas, posteriormente iniciados nas primeiras letras, se
transformaram nas novas lideranças indígenas substituindo os antigos lideres
hereditários. As antigas lideranças instituídas pela “hereditariedade cacical” e
“xamânica” fora substituída pelos “caciques cristãos”.
A partir da constituição de novos líderes nos filhos destes,
conjuntamente com os filhos de uma casta de administradores das reduções
(cabildos e administradores) tiveram acesso à educação escolar ministrada pelos
jesuítas.
Neste processo os jesuítas constituíram uma nova “elite” cacical não
mais ligada à cultura original (desestruturando antigas instituições guaranis),
mas pela capacidade que esses “novos líderes” tiveram de se incorporar aos
novos códigos sociais que estavam se instituindo. Outro aspecto importante que
este trabalho suscitou foi o entendimento da ação inaciana. Muitos autores
227
afirmam que as ações dos jesuítas estavam estreitamente relacionadas com a
Contra Reforma, e por esta razão a sua ação catequética e educativa era
reacionária em relação às grandes transformações sociais e econômicas que
estavam acontecendo naquele período histórico. Em nossas análises
desenvolvidas nas reduções jesuíticas do Paraguai detectamos que em muitos
aspectos no campo das idéias e na práxis cotidiana os jesuítas tiveram uma
atuação progressista em relação às idéias dominantes do feudalismo.
No campo das idéias, apesar do domínio da escolástica, a ação
catequética e educativa, assim como a própria prática econômica, entrou em
contradição com as antigas instituições. Criando, assim, uma pálida síntese
entre o catolicismo romano (conservador) e o humanismo (revolucionário),
ambos inseridos na gênese da Renascença, abrindo as veredas para o
Iluminismo do século XVIII. Os jesuítas foram a expressão prática dessa
contradição.
O catolicismo até então preso á visão escolástica, ao se deparar com
todas as contradições inerentes à conquista do “novo mundo” em um
determinado momento histórico se colocou – ainda que timidamente -, contra o
extermínio dos povos indígenas. Este ato de defesa dos indígenas foi unificado
na Província do Paraguai, como afirma Gadelha (1980, p.216):
Revela-se, portanto, difícil servir simultaneamente a Deus, ao rei e
aos colonos. Insurgindo-se contra a prática do serviço pessoal,
levantaram-se os jesuítas contra toda a estrutura, social e
econômica, sobre a qual repousava a sociedade Paraguai. Se a
encomenda era um mal, criticada por todos, no Paraguai, em
especial, era um mal necessário. Os franciscanos, que também
criticavam a encomenda, mantinham-se numa posição mais discreta
que a dos padres da Companhia.
O princípio da contradição estava alojado no seio das instituições, pois
ao mesmo tempo em que os jesuítas eram perseguidos no Paraguai por
defenderem a “liberdade” dos índios, paradoxalmente, de acordo com Alden
(1970), os jesuítas eram os maiores proprietários de escravos negros de toda a
América Colonial. Este período de transição da sociedade feudal para o
capitalismo traz em seu âmago o princípio da contradição. As lutas entre as
diversas frações desta sociedade se dão em todas as dimensões da vida social.
No interior das instituições religiosas existia também esta luta, que traz em seu
228
bojo os antagonismos das diversas frações da sociedade feudal em decadência e
as frações da burguesia em ascensão. Nas reduções jesuíticas nós consideramos
como progressistas o processo de aculturação que diz respeito à assimilação e à
síntese de aspectos culturais do “outro”, porém não de forma reflexa, de
conhecer para dominar, mas sim a síntese por incorporação.
O exemplo elucidativo deste processo foi a organização dos vocábulos
e da gramática da língua guarani. Aquilo que a principio deveria ser uma
simples lista de nomes, lista esta que iam passando de um padre para outro, com
o passar do tempo foi se ampliando ou aperfeiçoando sucessivamente.
Evidencia-se, dessa forma, a síntese dialética por incorporação, pois neste
processo ocorreu a dupla aculturação. Ocorre a utilização da linguagem falada
indígena (guarani) em síntese com a linguagem escrita (que era desconhecido
para o guarani).
Nesta dupla aculturação o guarani incorporou a linguagem escrita e o
jesuíta a língua guarani. Este fato apresenta uma característica progressista em
relação ao antigo modo de produção feudal, pelo simples fato da inteiração
entre europeus e ameríndios representa uma identificação entre integrantes da
espécie humana.
A visão dominante na sociedade européia, neste período
histórico, afirma que estas etnias não eram seres humanos.
Consequentemente, elas eram rotuladas de “primitivas”, “bárbaras”,
“selvagens”, e outras denominações pejorativas. Foi necessária uma bula Papal,
em 1537, que declarou os ameríndios como “homens verdadeiros”. Entretanto,
isto não impediu que os europeus os submetessem a todo o tipo de exploração.
A visão etnocêntrica não era uma exclusividade da Companhia de Jesus. A
compreensão que o etnocentrismo é uma característica de todas as sociedades,
pois simbolicamente esta é uma maneira de cada sociedade afirmar para si
própria a sua identidade. O que podemos destacar nesse trabalho é que a práxis
jesuítica não era um todo homogêneo.
Houve neste processo, por parte de um grupo de jesuítas certa
relativização cultural, no sentido conceitual explicitado por Rodrigues (1989),
que designa uma atitude conceitual diferente do etnocentrismo. Paradoxalmente
no que tange à antropofagia os jesuítas não relativizaram e combateram
arduamente.
229
Estes dois exemplos expressam a contradição deste contexto social
histórico em que o próprio pensamento europeu passava por profundas
transformações. Porém as idéias progressistas não eram hegemônicas, nem se
deram de forma linear, em fases de desenvolvimento, mas, em ciclos com
avanços e recuos. Esta contradição é a expressão da luta de classes no seio desta
sociedade que estava se instituindo.
Finalmente, merece ser destacada a inter-relação religião/educação que
se desenvolveu na espacialidade da redução. No espaço social da “redução” a
cultura guarani foi “reduzida” de muitos modos, em especial pela tentativa de
substituição pela arte ocidentalizada do canto gregoriano, ou pela introdução de
instrumentos musicais, como o violão, violino, clarinete e órgão. Porém este
processo se instituiu de forma contraditória, pois os indígenas resistiram no
sentido de perpetuar os traços genuínos de sua cultura. A palavra guarani nunca
foi silenciada e foi um mecanismo de resistência contra o invasor. A partir da
síntese da cultura européia, fundamentada no desenvolvimento tecnológico e no
cristianismo, com a cultura guarani, essencialmente baseada na reciprocidade se
desenvolveu na espacialidade da redução uma sociedade única denominada
guarani-missioneira. Neste contexto histórico os trinta povos missioneiros
desenvolveram uma sociedade com configuração própria, alcançando grande
desenvolvimento econômico e social. Paradoxalmente, produziram os
antagonismos que provocou a sua própria destruição.
Ao finalizar, se faz necessário deixar claro que as conclusões expostas
neste trabalho apresentam graus distintos de refinamentos. Isto é, não se trata de
algo acabado, pois a ciência é o devir da ciência. As balizas teóricas e
documentais da investigação nem sempre possibilitam dar-lhes um acabamento
definitivo. As análises apresentadas neste trabalho são, portanto, a expressão da
sistematização possível de ser alcançada em face dos condicionamentos
apontados. Outras investigações poderão trabalhar as questões não respondidas.
Merece uma investigação mais aprofundada o volume, o escopo e a extensão da
produção econômica das reduções jesuíticas.
O acesso e o levantamento exaustivo de fontes documentais e
historiográficas, acerca desse tema, poderiam clarear melhor a posição ocupada
pelo Paraguai Colonial em sua inter-relação com o mercado mundial. Poderia
revelar, também, a existência do trabalho assalariado no espaço reducional,
230
assim como a produção manufaturada nas reduções jesuíticas. Poderia
finalmente esclarecer quais foram verdadeiramente as causas que provocaram a
expulsão dos jesuítas das possessões espanholas. Ao descortinar todo esse
processo poderíamos conhecer melhor a práxis dos “homens de negro”, que
viveram na indivisível fronteira dos exercícios espirituais e da administração
dos empreendimentos jesuíticos, na tênue separação entre Deus e o lucro.
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as reduções jesuíticas do paraguai: a vida cultural