FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM EDUCAÇÃO - IESAE NOS LIMITES DO POSSÍVEL: UMA EXPERIÊNCIA POLÍTICO-PEDAGÓGICA NA BAIXADA FLUMINENSE ; ELIANE RIBEIRO ANDRADE ORIENTADORA: PROFa. ZILAH XAVIER DE ALMEIDA RIO DE JANEIRO - 1993 INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM EDUCAÇAO Praia de Bota fogo , 184 e 186 - ZC - 05 PARECER A Comissão de Exame, designada pela Resolução n9 22/1993, do Coordenador Geral do IESAE/FGV, para julgar a dissertação intitulada: "NOS LIMITES DO POSSíVEL: UMA EXPE RI~NCIA POLITICO-PEDAGOGIA NA BAIXADA FLUMINENSE", de auto ria da aluna ELIANE RIBEIRO ANDRADE e composta pelos abaixo assinados, após a apresentação pUblica da candidata e de ter esta respondido às argüições mesma pela que por seus membros foram feitas, concorda em que a referida dissertação merece ser aprovada com louvor, sendo sugerida a sua publicação. Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1993 ~ / Dissertação apresentada aos Srs.: Nome dos Componentes da f @~ )(;00->' d li '1(, 2 0vJ/\.O i Zilah Xavier de Almeida (Orientadora) Banca Examinadora olange Jobim e Souza Visto e permitida a impressão Rio de Janeiro, ~/ ~/ 1993 Coordenao.or Geral do IESAE dO A meus filhos Isadora e Vítor RESUMO o presente trabalho tenta reconstruir a trajetória do Projeto de Educação Básica para Jovens e Adultos na Baixada Fluminense - Projeto Baixada, a partir da análise da parceria estabelecida entre o poder público (Fundação Educar) e diversas entidades representativas dos movimentos populares da Baixada Fluminense, periferia da cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, optou-se por uma abordagem teórica que, valorizando as falas dos atores-autores envolvidos no processo, resgata e registra a história que precisa ser interpretadas em suas diferentes dimensões. Desenvolvido de fevereiro de 1986 até março de 1990, em pleno processo de redemocratização no Brasil, o Projeto Baixada ocorreu num período político marcado pelo fortalecimento dos movimentos SOCIaIS organizados, e, conseqüentemente, seu reconhecimento. Nesta conjuntura, pretendia-se com a parceria poder público/entidades dos movimentos populares formar e profissionalizar educadores originários da Baixada para a alfabetização de jovens e adultos, à luz de metodologias que estimulassem a emergência de cidadãos conscientes, com autonomia o bastante para enfrentar as dificuldades impostas pelas sociedades modernas e complexas. Para a construção de referenciais teóricos que pudessem interpretar tais registros, optou-se em ir além das análises pautadas em perspectivas macroestruturais, na tentativa de realizar uma nova abordagem na sistematização e análise de uma experiência social vivida entre parceiros no âmbito da educação, cujas relações revelam-se complexas, tensas e repletas de contradições. RÉSUMÉ La These reconstruit la trajectoire du Projet d'Education de Base pour Jeunes et Adultes dans la Baixada Fluminense - Projet Baixada - à travers une systématisation critique qui vise à rendre possible I' analyse de ce travail politico-pédagogique développé par le Pouvoir Public et des entités représentatives des mouvements populaires. Elle situe la problématique de l'alphabétisation au Brésil en établissant une relation entre la conjoncture politique et sociale dans laquelle le Projet Baixada eut son origine et les principales réflexions et questionnements qui motiverent le registre analytique de cette experiénce. Aprés avoir caractérisé la Baixada Fluminense et ses formes d'organisation populaire, elle décrit le Projet Baixada de as conception au quotidien de la salle de classe. Finalement, elle considere les limites ainsi que les possibilités de ce travail politico-pédagogique, en soulignant certains de ses principaux aspects par témoignages de participants. AGRADECIMENTOS A orientadora e amiga Zilah, meu agradecimento mais sincero e profundo, pela força intelectual, pelo conhecimento da filosofia e, principalmente, pela possibilidade de ser o que sou num espaço, muitas vezes, repleto de simulacros; A minha mãe e avó, pelo carinho, apoio e préstimos de avós; Ao Ricardo, companheiro fundamental; Aos amigos Luiz Carlos Gil Esteves, que com muito afeto, alegria e inteligência me ajudou a terminar este trabalho e Solange Jobim, estímulo intelectual decisivo; Aos queridos amigos: Miguel Farah Neto, pela revisão im-paciente, mas inteligente; América Ungaretti; Ângela Muniz; Aurelina Cruz (Leu); Fernanda Nunes; Iná Brito; Josinaldo Aleixo; Laura Fraguito e tantos outros que participaram afetuosamente desta caminhada; A Ana Lúcia, Heloísa Helena e Elias da secretaria do IESAE, pela atenção e sempre simpática convivência; A Vera Lúcia A. Lopes Rego, pela primeira digitação, fundamental para decifrar os manuscritos. "Desde os gregos nos defrontamos com uma encruzilhada: por um lado, a verdade absolutizada, única, fechada em si mesma; por outro, verdades contingentes, históricas. É o caminho dos homens de duas cabeças, da doxa, cheio de múltiplos caminhos, de insegurança, de diferenças. O caminho dos mortais ... " (José Américo Motta Pessanha) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................... 1 2 OUTROS OLHARES ........................................... 17 3 BAIXADA FLUMINENSE: QUE LUGAR É ESSE? ....................... 27 3.1 Características físicas e sociais da Baixada ............ 27 3.2 A esperança vem dos movimentos ......................... .31 4 PROJETO BAIXADA: CONCEPÇÕES, PRÁTICA E HISTÓRIA .............. 34 4.1 História iniciaL ................................................... .34 4.2 Critérios de participação no Projeto ................... .40 4.3 Características dos participantes ......................... .42 4.4 Projeto Baixada: prática e perspectiva pedagógica ....... 50 4.4.1 Princípios básicos ......................................... 55 4.4.2 Alfabetização ................................................ 60 4.4.3 Material didático ........................................... 66 4.4.4 Formação e acompanhamento ....................... 67 4.4.5 Avaliação ...................................................... 70 4.5.6 Troca de experiências ................................... 72 5 LIMITES E POSSIBILIDADES DE UM TRABALHO PEDAGÓGICO .................................................. 74 5.1 Papel do Estado ......................................... 75 5.2 Trabalho voluntário ................................... 77 5.3 Projetos alternativos ................................... 78 5.4 Educação de jovens e adultos ..................... 79 5.5 Importância da alfabetização ....................... 81 5.6 Visão da educação ....................................... 84 5.7 Conceito de analfabeto ................................. 86 5.8 Projeto Baixada............................................. 87 5.9 Os conflitos ................................................... 88 5.10 As tensões ................................................... 90 5.11 A cobrança é de todos os lados ................... 93 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................. 95 7 BIBLIOGRAFIA ................................................ 100 POLÍTICO- 1. Introdução A história tem mostrado que as políticas públicas, isoladas e sem participação efetiva da sociedade, não conseguem dar conta de um dos maiores problemas educacionais brasileiros: o analfabetismo e a baixa escolaridade. Estima-se que, hoje, o número de jovens e adultos brasileiros analfabetos chegue a 30 milhões. As crianças em idade escolar que jamais tiveram acesso à escola, ou que dela se afastaram precocemente, encontrando-se, assim, excluídas de qualquer atendimento educacional, somam oito milhões. Em linhas geraIs, a situação educacional brasileira caracteriza-se por: falta de escolas, repetência, número insuficiente de vagas, currículos inadequados, professores despreparados e desvalorizados, recebendo salários aviltantes, crianças que deixam de estudar porque necessitam trabalhar para sobreviver ou porque a escola não compreende a sua linguagem etc. Segundo Soares (1989), "a educação pública é uma progressiva e lenta conquista das camadas populares, mas nesta luta o povo ainda não é vencedor, já que não há escola para todos e a escola que existe é antes contra o povo que para o povo". Ainda de acordo com os dados apresentados pela autora (1989), baseados no censo de 1980, apenas 64,7% da população de 7 a 14 anos estavam matriculados no ensino de 1º grau, ou seja, mais de 30% estavam fora da escola. Outro ponto importante a se analisar é o grave problema das altas taxas de repetência e evasão, que denunciam sub liminarmente o fato de que quem consegue entrar na escola, nela não aprende ou não permanece. Soares (1989) cita estatísticas recentes, que demonstram que de cada 1000 crianças que iniciam a 1ª série, menos da metade chega à 2ª, menos de um terço consegue atingir a 4ª e menos de um 2 quinto conclui o 1Q grau. Um dos principais fatores que historicamente têm contribuído para a chamada "cultura do fracasso" na educação é o sistema sócio-econômico e político autoritário, implantado no país a partir de 1964. O regime militar deteriorou o já então precário estado da educação brasileira. Nada se poderia esperar senão o agravamento das deficiências educacionais de um sistema que se caracterizava pelo arrocho salarial, pela intensificação da concentração de renda, pela censura aos meios de comunicação, pelo desrespeito às liberdades individuais e partidárias e pela excessiva centralização de poderes dos órgãos governamentais, entre outros aspectos. Tradicionalmente, o sistema educacional brasileiro nunca contou com definições políticas que considerassem verdadeiramente a educação como questão nacional, importante para o desenvolvimento do país. Sempre foi e continua a ser considerada como um "problema". No que diz respeito à educação de jovens e adultos, encontramos, a partir dos anos 70, uma atuação quase que única no plano governamental- centralizada pela Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização- e algumas experiências significativas, porém não expressivas quantitativamente, no âmbito da sociedade civil. Como não poderia deixar de ser, esta modalidade educativa apresentou, em sua trajetória recente, os mesmos percalços característicos da conjuntura na qual ela esteve inserida, ou seja, a educação de jovens e adultos ainda não se arraIgou enquanto Política de Estado. Em 1970, isto é, em plena vigência do regIme autoritário, foi implantado pelo Governo Federal, em nível nacional, o Movimento Brasileiro de Alfabetização MOBRAL - cujo objetivo declarado era o de acabar com o analfabetismo no país. 3 Porém, inúmeras análises sobre o órgão denunciavam que o objetivo de sua ação era a imposição ideológica com vistas à criação de bases eleitorais para o partido do governo ditatorial. Segundo Cunha (1991), o objetivo de criar bases eleitorais mostrou-se fracassado com as eleições legislativas de 1974; e aliado a este fracasso, um outro objetivo começou a ser seriamente denunciado, inclusive pelos próprios pesquisadores do MOBRAL: apenas 15% dos alunos daquela instituição chegavam ao final do curso, o que desmascarava as estatísticas que escondiam as elevadas taxas de evasão. A manipulação dos dados estatísticos possibilitava diversas leituras em relação a esta questão. Por estes e outros motivos, extinguiu-se o MOBRAL em 1985, durante a chamada Nova República, e em seu lugar foi criada a Fundação Nacional para Educação de Jovens e Adultos - EDUCAR - , vinculada à Secretaria de Ensino de 1º e 2º graus (SEPS), do Ministério da Educação (MEC). Na verdade, segundo Cunha (1991), este foi um esforço de sobrevivência dos órgãos e das práticas herdadas dos governos militares, o que o autor identifica como estratégia de "transformar para sobreviver". Este processo de mudança e transferência de nomes e objetivos (veremos a seguir) acompanha exatamente o fim dos governos militares - a ditadura militar - e o início do chamado "governo de transição", ou seja, "a nova república". Para entender a conjuntura em que a Fundação Educar foi criada, é importante recuar um pouco na história. Em fins da década de 70, com o início do processo de reconquista de direitos pela sociedade civil, pode-se observar uma relativa distensão, que foi chamada de 4 "transição democrática", com eleições para os governos estaduais e municipais e uma mobilização popular por eleições diretas para presidente, que levou às ruas milhares de pessoas. Apesar de toda essa mobilização, não foi possível, naquele momento, a adesão do número de parlamentares necessário para a aprovação da eleição direta para a Presidência da República. Assim, através de eleição indireta pelo Congresso Nacional, foi escolhido o Presidente Tancredo Neves, que adoeceu no dia de sua posse e veio a falecer pouco tempo depois, sendo substituído pelo vice-presidente José Sarney, originário do partido que deu sustentação aos 21 anos de regime militar. Este governo, que tinha o compromisso formal de redemocratizar o país até a posse de um governo eleito pelo voto direto e popular, buscou promover, ainda que de forma discutível, entre outras coisas, uma "obrigatória" participação dos setores organizados da sociedade nas políticas públicas, participação esta que, em última instância, legitimaria este próprio processo político. É nessa conjuntura, então, que se dá a criação da Fundação Educar. Por maIS clara que pudesse estar a composição ainda autoritária do chamado governo da "Nova República", ocorriam sensíveis modificações, que traziam esperanças, principalmente pelo alívio causado pelo fim do regime militar e pela constatação de que vários cargos da administração pública vinham sendo ocupados por profissionais considerados comprometidos com a "democratização da educação". Goergen (1986), abordando as condições existentes no Brasil em 1986 para o desenvolvimento das pesquisas educacionais, argumenta o seguinte: "Este fato é certamente, em grande parte, decorrência do momento político que vivemos hoje, em que os interesses dos administradores 5 muitas vezes coincidem com os dos pesquisadores. Não podemos também esquecer que há um número considerável de pesquisadores que foram chamado a ocupar cargos importantes, tanto em nível de governo quanto de instituições que financiam pesquisas. (Goergen, 1986, p.8). fi Assim, pode-se constatar, dentro da maioria dos órgãos governamentais, uma certa euforia por parte dos profissionais que neles trabalhavam, interessados em desenvolver práticas institucionais de caráter mais democrático. Em alguns casos, esta intenção era claramente compartilhada por alguns dos dirigentes desses mesmos órgãos. Nesse contexto, a Fundação Educar foi definida como órgão governamental com a responsabilidade específica de atuar na área de educação básica para jovens e adultos e teve, como uma de suas principais competências, a de apoiar instituições fi governamentais e não-governamentais (federações, associações de moradores, clubes de mães, igrejas, sindicatos etc), que desenvolvessem propostas de educação básica para jovens e adultos, através de cooperação técnica, financeira e material fi , proposta considerada bastante avançada para o momento. Nesta conjuntura, podemos dizer que, especialmente na área da educação de jovens e adultos, onde tradicionalmente existe uma preocupação com a redemocratização da sociedade, pode-se sentir uma certa "euforia" em termos das amplas possibilidades que se abriam para transformações efetivas no âmbito das políticas públicas para este setor, proporcionadas pela abertura política e pelo revigoramento das forças democráticas que estávamos vivendo então. Esta atitude tinha vinculação direta com as idéias semeadas por educadores como o Professor Paulo Freire, porta-voz principal da visão de que a educação exerce um papel transformador, mesmo em instituições governamentais reconhecidamente autoritárias como o MOBRAL e, posteriormente, sua sucessora, a Fundação Educar. 6 As idéias do Professor Paulo Freire exerciam enorme fascínio entre os profissionais engajados na luta política por meio da educação, fazendo-se permanentemente presentes nas discussões que antecediam a formulação de propostas pedagógicas para a área de alfabetização. Enfim, o Professor Paulo Freire era considerado, por alguns, como um mito nacional, e, por outros, como uma ameaça a segurança nacional. Esta contradição inerente gerava, por um lado, momentos ricos de discussão no interior dessas instituições; por outro, radicalizava o desejo de alguns grupos de educadores de desenvolver trabalhos que tivessem como referencial "a educação como prática da liberdade". As principais discussões geradas nestes órgãos, no início da chamada "Nova República", giravam em torno de questões do tipo: existem "espaços", "brechas" nas instituições governamentais que possibilitem o desenvolvimento de um trabalho democrático com as camadas populares? Como ocupar estes espaços? Pode-se desenvolver um trabalho de educação popular entre poder público e movimentos sociais? Quais os limites e possibilidades deste trabalho? Tendo, ao longo do tempo, enquanto educadores "engajados" denunciado as instituições governamentais que, durante os 20 anos de ditadura militar, se apropriaram do poder público utilizando toda sua estrutura política e econômica de forma alienante e repressora, encontrávamo-nos agora frente à possibilidade de reverter este quadro. Conscientes de nosso papel político no contexto do trabalho educativo, acreditávamos que chegara a hora de uma interferência efetiva nos rumos da democratização da educação. Respostas para todas as questões surgidas, obviamente, não existia. Entretanto, aquela situação era a constatação de que a contradição sempre existe, por mais 7 autoritárias e ideologicamente repressoras que estas instituições sejam. Mas as contradições ocorriam também em outros níveis, sendo vividas pelos próprios educadores através do dilema de estarem a serviço de um órgão governamental reconhecidamente fracassado e estigmatizado. Contudo, conscientes de que o cotidiano do trabalho técnico extrapola a doutrina da instituição e foge ao controle do poder, os educadores vinculados à Fundação Educar, comprometidos com o processo de democratização, continuavam lutando por seus ideais políticos, apesar das limitações impostas pelo próprio sistema. Embora a mudança do MOBRAL para Fundação Educar, ocorrida em 1985, não tenha propriamente gerado progressistas uma credibilidade efetiva dos educadores mais em relação a esta instituição, o clima de transição democrática ocasionou, efetivamente, uma maior abertura e flexibilidade no discurso institucional. Segundo Sérgio Haddad, citado por Nunes (1990), o dado mais significativo da transformação "teria sido a abertura da possibilidade de financiamento, por parte da Fundação Educar, de Projetos de Educação junto à Sociedade Civil". Essa possibilidade fez com que houvesse, na sua visão, "uma democratização e um rompimento do verticalismo do MOBRAL, no sentido de que era ele quem definia as diretrizes, o pacote pedagógico, a orientação técnica e o pagamento, impondo aos estados e municípios o pacotão produzido dentro dos órgãos centrais". Neste clima de franca ascendência das instituições democráticas em nosso contexto político e social, surge um grupo de trabalho no interior da Fundação Educar que começa a discutir e encaminhar um projeto de educação básica direcionado à jovens e adultos analfabetos da Baixada Fluminense. Por educação básica entendia-se, naquele momento, aquela que, abrangendo as quatro primeiras séries do 1Q grau, possibilitasse "o exercício da leitura e da escrita da língua portuguesa e o domínio de 8 símbolos e de operações matemáticas, bem como de conhecimentos essenciais das ciências sociais e naturais, e de outras informações indispensáveis ao posicionamento crítico do indivíduo enquanto ser social face à realidade em que vive"- Projeto de Educação Básica para a Baixada Fluminense - Fundação Educar/UNICEF. Rio de Janeiro, 1987 . De acordo com as diretrizes pedagógicas deste Projeto, priorizou-se o atendimento à periferia urbana da Baixada Fluminense, onde constata-se a existência de grandes concentrações de jovens e adultos analfabetos. A opção do Projeto pela Baixada Fluminense foi influenciada por alguns questionamentos que circulavam nas discussões da equipe, como, por exemplo, a impossibilidade de um órgão governamental desenvolver projetos de alfabetização de jovens e adultos na periferia dos grandes centros urbanos. Esta crença se fundamentava no fato de que as populações mais politizadas e conscientes das periferias urbanas, apresentavam uma grande desconfiança em relação a estes tipos de trabalho, além de informações contraditórias que faziam crer que o índice de analfabetismo nestas áreas era muito baixo. Na verdade, as zonas rurais sempre foram alvo de investimentos sistemáticos do antigo MOBRAL, pois apresentavam condições sócio-culturais que facilitavam a manipulação politica e ideológica da clientela potencial de seus programas educativos. Ora, foi exatamente com o intuito de buscar responder a estas questões de modo crítico, que a equipe responsável pelo Projeto de Educação Básica para a Baixada Fluminense resolveu enfrentar este desafio e encaminhar uma proposta de trabalho pedagógico que estivesse em sintonia com os ideais de democratização dos movimentos populares já existente na região. O nascimento do Projeto ocorreu, portanto, num momento em que se assistia no país à intensificação do processo de abertura política. Restabelecia-se as eleições diretas 9 em todos os níveis, exceto para Presidente da República; discutia-se a eleição de deputados constituintes; movimentos urbanos e rurais rearticulavam-se mais intensamente; legitimavam-se as associações de moradores; a imprensa conquistava maior liberdade etc. Todo este clima, evidentemente, foi propício para que segmentos da população, até então bastante marginalizados, em termos de política e ação governamental, viessem a merecer atenção por parte do governo. Não somos ingênuos e - é óbvio concluíamos que, por parte do governo, era necessário mudar o discurso, a fim de se adaptar à nova conjuntura. Porém, acreditávamos que o funcionário público deveria ter o compromisso de desenvolver o seu trabalho a serviço do público, numa tentativa de IIdesprivatizar ll o poder público. Assim, entendíamos que a educação, enquanto processo de compreensão crítica da realidade, tinha que estar necessariamente articulada ao projeto político de transformação social, mediante o estabelecimento de práticas educacionais democráticas que envolvessem descentralização das decisões e participação efetiva dos grupos organizados da sociedade civil. Deste modo, dez educadores, com formações distintas e com os referenciais conceituais e políticos acima expostos, foram para os municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti, na periferia da cidade do Rio de Janeiro, elaborar o IIProjeto de Educação Básica para a Baixada Fluminense ll • o Projeto Baixada durou cerca de três anos e meio, de 1986 a 1990, desenvolvido entre grupos organizados representativos dos movimentos sociais (Federações e Associações de Moradores, Comunidades Eclesiais de Base - CEBs da Igreja Católica, Clube de Mães etc.) e a Fundação Educar, orgão governamental representado pelos educadores acima referidos, que, por sua vez, enquanto cidadãos, participavam de diversas atividades vinculadas aos movimentos sociais. 10 ° trabalho objetivava alfabetizar jovens e adultos, apresentando conteúdos de forma crítica e questionadora, reforçando a luta pela construção de uma cidadania plena e democrática e levando o educando a se reconhecer como sujeito de sua própria história, entre outros aspectos. Assim, no decorrer da experiência, foram montadas 287 classes de alfabetização em escolas, associações de moradores, igrejas e centros comunitários, formando um total de 500 educadores da própria Baixada Fluminense e alfabetizando cerca de 20.000 pessoas, em sua grande maioria jovens de 13 a 25 anos de idade. ° sucesso pedagógico do trabalho rendeu ao Projeto, em 1988, a Menção Honrosa "Prêmio Nadejda Kroupskaia" da UNESCO, considerado que foi, entre as 156 experiências concorrentes, como a melhor na área da educação de jovens e adultos com participação comunitária. As entidades da Baixada Fluminense que construíram e desenvolveram o Projeto foram: Movimento União de Bairros, Associação de Moradores do Bar dos Cavaleiros e Clube de Mães da Taquara, no município de Duque de Caxias; Movimento dos Amigos de Bairros e Cáritas Diocesana, no município de Nova Iguaçu; Associação de Moradores do Canal Meriti no município de São João de Meriti. Seu envolvimento possibilitou que se implementasse o projeto por meio de um planejamento de caráter participativo ou, mais especificamente, através de um processo de gestão coletiva, onde todas as decisões eram discutidas pelos representantes dos diversos segmentos ou seja: professores, supervisores, líderes comunitários, educadores da Fundação Educar, etc. Por um lado, o Projeto caracterizou-se por ser um processo de aprendizado pela execução. Fomos, todos os envolvidos, aprendendo e avançando na busca de novas metodologias de trabalho. Por outro, o Projeto constituiu-se na resultante de um jogo 11 político, na medida em que as definições elaboradas gradualmente, através da discussão, do confronto, da negociação, da remoção de obstáculos de várias naturezas. A opção pelo desenvolvimento da proposta educativa a partir da participação dos grupos organizados (moradores, lideranças e agentes educativos) baseava-se no princípio da decisão coletiva, onde o que deve ser feito surge da discussão nos diferentes grupos e distintos espaços, e adquire sua maior dimensão no exercício do controle político da ação. Dessa forma, a descentralização das ações procurava atender às necessidades e particularidades de cada entidade envolvida. A garantia do controle político foi decorrente, também, da opção por se trabalhar com grupos organizados da sociedade civil, representativos do movimento comunitário da Baixada Fluminense, como as federações e dioceses, entidades mais fortes do ponto de vista organizacional e menos vulneráveis a determinadas ações governamentais, como o clientelismo, o assistencialismo, a tutela etc. Outro fator importante a ser destacado no Projeto, é o que diz respeito à formação dos educadores populares. Os objetivos e conteúdos do programa de formação apresentavam uma dimensão ampla e diferenciada, uma vez que buscavam atender à heterogeneidade dos agentes educativos envolvidos. A opção pela formação permanente em todos os níveis (equipe técnica, professores, supervisores, assistentes administrativos e coordenadores de área) correspondia também a uma intenção de se possibilitar um encaminhamento profissional aos envolvidos no Projeto. 12 Assim, do ponto de vista político-pedagógico, a formação dos educadores foi voltada, a priori, para uma tomada de consciência de seu papel no trabalho, no bairro, na política etc. Esta tomada de consciência foi inspirada no conceito de conscientização descrito por Paulo Freire: "Sendo os homens seres em 'situação', se encontram enraizados em condições tempo-espaciais que os marcam e a que eles igualmente marcam. Sua tendência é refletir sobre sua própria situacionalidade, na medida em que, desafiados por ela, agem sobre ela. Esta reflexão implica, por isto mesmo, em algo mais que esta em situacionalidade, que é a sua posição fundamental. Os homens "são" porque "estão" em situação. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente sobre sua forma de "estar", mas criticamente atuem sobre a situação em que estão. Esta reflexão sobre a situacionalidade é um pensar a própria condição de existir. Um pensar crítico através do qual os homens se descobrem em situação. Só na medida em que esta deixa de parecer-lhes uma realidade espessa que os envolve, algo mais ou menos nublado em que e sob que se acham, um beco sem saída que os angustia e a captam como a situação objetivo-problemática em que estão, é que existe o engajamento. Da imersão em que se achavam; emergem capacitando-se para inserir-se na realidade que se vai desvelando. Desta maneira, a inserção é um estado maior que a emersão e resulta da conscientização da situação. É a própria consciência histórica. Daí que seja a conscientização o aprofundamento da tomada de consciência, característica, por sua vez, de toda emersão". (Paulo Freire) Esta experiência, rica para todos aqueles que participaram do cotidiano do Projeto Baixada, foi interrompida arbitrária e autoritariamente em março de 1990, com a posse do Presidente Fernando Collor de Melo, eleito pelo voto direto e portador da promessa de um "Brasil Novo". Em nenhum momento a equipe de educadores da Fundação Educar responsável pelo Projeto, e os representantes do movimento popular da Baixada Fluminense, que desenvolviam o trabalho com toda a responsabilidade que a ação exigia, foram 13 comunicados da necessidade de se paralisar o Projeto. Esta paralização foi concretizada com o cessar do repasse de verbas, materiais etc. A partir deste traumático "fim", é que esta dissertação passou a ser pensada. E as questões que surgiram de forma mais recorrente foram as seguintes: • . Que visões ingênuas perpassam o desenvolvimento de um trabalho de educação com entidades do movimento popular através dos poderes públicos? • . O que pensa o movimento popular sobre esta questão? • . Quais os ganhos efetivos deste tipo de ação? Assim, a prática no Projeto levou-nos a uma reflexão sobre os possíveis caminhos que experiências como a que foi vivida ao longo deste trabalho político-pedagógico podem trilhar numa sociedade como a nossa, com um modelo econômico que exclui e marginaliza qualquer atividade que não seja de interesse direto desse próprio sistema. Neste sentido, consideramos significativa uma sistematização analítica da experiência comum vivida neste Projeto, de forma a registrar o que foi desenvolvido pelos grupos do movimento popular em parceria com técnicos da extinta Fundação Educar, na área de educação de jovens e adultos. Isto, porque é fundamental que não se recomece sempre do "zero" e que a complexa e contraditória relação Estado e Movimento Popular possa ser sempre reconstruída a partir deste mútuo aprendizado que nos propomos a relatar. Porém, ao refletirmos sobre a sistematização do Projeto, nos indagávamos: . Que tipo de análise fazer? Qual abordagem sustentar? 14 Ocorria que acabávamos sempre nos detendo em abordagens que davam conta do sucesso ou do fracasso, sob o ponto de vista das análise macro-sociais. Ou seja, a grosso modo, a culpa acabava sempre sendo creditada ao sistema. Nessa esfera, consideramos que inúmeras análises na área da educação popular, extremamente sérias, já foram feitas. Contudo, procurávamos algo que estivesse além das explicações que se localizam na estrutura da sociedade e sentíamos que precisávamos encontrar uma abordagem que desse conta do dia-a-dia, ou seja, recuperasse o cotidiano daquelas pessoas que se dedicavam ao Projeto. Em Cunha (1991), encontra-se a única avaliação, embora bastante superficial e descritiva, do Projeto Baixada. Nesta análise, o autor descreve o Projeto através de alguns dados quantitativos e termina afirmando que a relevância do projeto esteve na geração de centenas de empregos na Baixada e que o grande problema enfrentado foi o fato de a dimensão pedagógica ter sido sobreposta pela dimensão política, o que teria acarretado, nas classes de alfabetização, uma orientação mais voltada para a formação política, o que não motivaria os alunos já que seu interesse primeiro eram de cunho pedagógico. Relativizando a interpretação de Cunha, resolvemos avaliar essa experiência político-pedagógica com outro olhar, chegando a conclusões que se contrapõem à interpretação citada. Em nossa concepção, a educação é, essencialmente, um ato político, isto é, educação é política no sentido mais amplo. Em Castoriadis podemos encontrar uma diferenciação entre os conceitos política e político, que serve à elucidção do sentido que orientou tal experiência e está presente no tratamento que daremos ao material coletado para esta dissertação. Servimo-nos do texto de José Carlos Brum Torres, "A política e a história no pensamento de Cornelius Castoriadis"" (1992), para clarificar os referidos conceitos: "C .. ) a política para Castoriadis, é esta maneira singular de fazer com que a 15 resolução da questão do político seja feita politicamente, isto é, no confronto de posições baseadas em argumentos e que supões, natural e evidentemente, que haja instituições que facultem esta produção de argumentos e este confronto articulado de posições e de proposições de futuros alternativos para a vida da sociedade. C.. ) ele diz é que nós precisamos justamente ter na política o modo corrente, universalizado, de resolver as questões do político. Esta seria, segundo castoriadis, a linha de evolução que precisamos perseguir porque, quando nós introduzimos a noção de política, nós introduzimos imediatamente a questão da autonomiaC .. ) as maneiras de resolver as contradições que emergem no seio da sociedade ou as opções a respeito dos futuros que nos são abertos, apelando um político que não é definido, travejado politicamente, mas que é teologizado, autocratizado, todas estas maneiras nos colocam no regime de heteronomia. Isto é, elas fazem com que as leis e os padrões de comportamento dentro dos quais nós vivemos nos sejam alheios, nos venham de fora" Torres, 1992, p.61). Desta forma, um dos objetivos deste trabalho seria investigar qual os significados que essa experiência político-pedagógica tem para os participantes, tendo em vista todo o envolvimento, seriedade e compromisso com que foi conduzida. Para isto, é necessário encontrar pistas no sentido de entender que forças moveram os grupos, vinculados aos movimentos sociais, a se envolverem com o Projeto, principalmente tendo em vista que a evasão destes grupos foi praticamente nula. Todas estas questões surgiram porque a nossa intenção é a de tentar aproximar a produção acadêmica das tensões inerentes a prática cotidiana, buscando, deste modo, encontrar alguns caminhos mais promissores no que se refere à questão do analfabetismo e da educação neste país. De acordo com tudo o que foi exposto anteriormente, poderíamos sintetizar que a dissertação aqui apresentada tenta reconstruir a trajetória do Projeto Baixada educação de jovens e adultos na Baixada Fluminense - através de uma 16 sistematização crítica que possibilite a análise do trabalho político-pedagógico que foi desenvolvido entre o poder público e entidades representativas dos movimentos sociais, priorizando uma abordagem que valorize a interpretação dos atores-autores deste processo. Concluindo, esta dissertação tem como um de seus compromissos fundamentais a não aceitação passiva do "fim" do Projeto Baixada. É também, portanto, um ato de resistência contra todo o autoritarismo que interfere, de forma sempre negativa, nas experiências que unem parcerias como a dos movimentos sociais e instituições públicas, experiências estas que contribuem para o fortalecimento do processo democrático, e para a "desprivatização" do poder público. Deste modo, recuperando os depoimentos dos diversos atores desta caminhada, pretendemos construir a narrativa da experiência, resgatando e registrando uma história que precisa ser recontada e interpretada nas suas diferentes dimensões, no bojo das tensões de nossa cultura e sociedade. 17 2 OUTROS OLHARES "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. " Raul Seixas Neste capítulo serão apresentados os principais conceitos e categorias que se mostraram mais adequados à caracterização da postura pedagógica que orientou a ação educativa. Como poderá ser observado, as concepções aqui apresentadas têm como referência autores que, em meu entender, contribuem de forma decisiva para uma justificativa das posições assumidas na experiência. Quando iniciamos a experiência educativa na Baixada já vislumbrávamos, mesmo que intuitivamente, a dificuldade de interpretar aquela realidade através simplesmente de concepções rígidas e dogmáticas, fruto de uma razão única e verdadeira, que durante muito tempo dominou, e relativamente ainda domina, o pensamento de diversas correntes, entre elas as político-partidárias e religiosas, que exercem forte influência nos trabalhos de educação popular. Entretanto, como também tínhamos - tanto nós da equipe inicial do Projeto, como as lideranças da Baixada - origem em grupos de esquerda (que seguiam linhas ditas "marxistas", mas que na verdade reduziam o social a estruturas de poder dicotômicas), muitas vezes, contraditoriamente, assumíamos posturas identificadas com os "grandes discursos da razão", como por exemplo, a compreensão "mecânica" do processo de conscientização. Mas ao dar início aos trabalhos, observamos que seria necessária uma forma de olhar a realidade, cujas conseqüências se refletissem na prática. Conforme dizem os adeptos da razão plural, e, de acordo com a expressão de Pessanha "( ... ) as ciências 18 fundamentadas nas opiniões precisam do assentimento dos outros e só se constituem dentro dessa trama. Elas não podem ser monológicas, mas dialógicas e plurilógicas (. .. )"(1992, p. 16). Assim, nos deparamos hoje com a crise dos grandes sistemas interpretativos, isto é, sistemas que: "(. .. ) vêm gradualmente perdendo a sua capacidade de explicar uma realidade cada vez mais complexa, heterogênea e plural. Assiste-se hoje a uma saturação desses grandes sistemas, que têm falhado na sua pretensão racionalista de organizar em macromodelos e macrossistemas os vários aspectos do real. É o que alguns autores têm chamado de crise do paradigma dominante. (. .. ) Não se trata aqui de invalidar o paradigma clássico, mas de reconduzi-Io aos seus limites" (Teixeira e Porto, 1993, p. 4-7). N a verdade, gostaríamos de ir além das análises que dominam o campo da educação popular e que se pautam apenas por perspectivas macroestruturais, considerando a educação como simples reflexo do político e do econômico. Para nós, o importante era situar o homem em uma dada sociedade, tendo como referenciais básicos a pluralidade e a complexidade da vida cotidiana, já que, segundo Maffesoli (Teixeira e Porto, 1193, p.lS) "(. .. ) estamos realmente alienados pelo trabalho, pela ideologia, pela moralidade, mas, de alguma maneira, encontramos no cotidiano meios de lidar astutamente com ela, por meio da duplicidade." Conforme sugere Berman, "A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades" (. .. ) "para Nietzche, tal como para Marx, tudo está impregnado do seu contrário". (Berman, 1986, p.21). Desta forma, a nossa postura político-pedagógica buscou construir uma relação baseada no diálogo livre e plural, conforme sugere o pensamento político-filosófico de Paulo Freire. Considerando que a experiência no trabalho realizado na Baixada Fluminense foi, parafraseando Gramsci, um encontro com ideologias superficiais e fragmentárias da vida cotidiana com a crítica ideológica - batalha cultural - na luta para superar uma 19 velha relação de hegemonia e criar uma nova, é fundamental refletirmos sobre este conceito, já que é nesse domínio que as concepções de mundo articulam-se diretamente com a chamada realidade prática. Para Gramsci, a análise teórica do conceito de ideologia não deve implicar em apreciações restritivas, ou seja, ela não deve ser tomada no sentido pejorativo que tem sido a ela associado (a concepção marxista, por exemplo, segundo a qual a ideologia oculta mais do que revela a realidade). Assim, indica que as ideologias devem ser analisadas a partir do questionamento de serem elas "historicamente necessárias" ou não a uma determinada estrutura. "Um elemento de erro na consideração sobre o valor das ideologias, ao que me parece, é devido ao fato (fato que, ademais não é casual) de que se dê o nome de ideologia tanto à superestrutura necessária de uma determinada estrutura, como às elucubrações arbitrárias de determinados indivíduos. O sentido pejorativo da palavra tomou-se exclusivo, o que modificou e desnaturou a análise teórica do conceito de ideologia. O processo deste erro pode ser facilmente reconstruído: 1) identifica-se a ideologia como sendo distinta da estrutura e afirma-se que não são as ideologias que modificam a estrutura, mas sim vice-versa; 2) afirma-se que uma determinada solução política é 'ideológica', isto é, insuficiente para modificar a estrutura, mesmo que acredite poder modificá-la; afirma-se que é inútil, estúpida, etc.; 3) passa-se a afirmar que toda ideologia é 'pura' aparência, inútil, estúpida, etc. É necessário, por conseguinte, distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalistas, 'desejadas'. Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é validade 'psicológica': elas 'organizam' as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam etc."(Gramsci, 1981, p. 62-63) Para tratar desta concepção, Gramsci parte do reconhecimento de que o modo como os indivíduos e os grupos interpretam a realidade está intimamente ligado à sua experiência e à sua prática no mundo. Assim, somos todos produtores e portadores de uma "filosofia espontânea", ou seja, uma cultura e uma ideologia que, mesmo 20 inconsciente e assistemática, transparece na linguagem, no "senso comum" e no "bom senso". Enfim, nos vários sistemas de crenças, opiniões, modos de interpretar e de agir. Conclui, portanto, que todos os homens são filósofos, já que subjacente às linhas que dirigem sua conduta prática está contida implicitamente uma concepção de mundo. (Maranhão, 1990, p. 29). "A filosofia de uma época não é a filosofia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de intelectuais, desta ou daquela grande parcela das massas populares: é uma combinação de todos esses elementos, caminhando em uma determinada direção, na qual sua culminação tornase soma de ação coletiva, isto é, toma-se 'história' concreta e completa." (Gramsci, ibidem, p. 32). Considerando a relação entre os sistemas clássicos da filosofia e o pensamento popular, Gramsci observa que tais filosofias: "C .. ) não são desprovidas inteiramente de eficácia histórica: mas esta eficácia é de outra natureza. Estes sistemas influem sobre as massas populares como força política externa, como elemento de força coesiva das classes dirigentes, como elemento de subordinação a uma hegemonia exterior, que limita o pensamento original das massas populares de uma maneira negativa, sem influir positivamente sobre elas, como fermento vital de transformação íntima do que as massas pensam, embrionária e caoticamente, com relação ao mundo e à vida. (Assim,) C.. ) metodologicamente, o ponto de partida deve ser sempre o senso comum, que é espontaneamente a filosofia das multidões." (Ibidem, p. 144-145). Gramsci destaca que toda visão de mundo está relacionada à ação, valorizando, portanto, a dimensão política nas relações sociais. "Toda ação é uma ação política, não se pode dizer que a verdadeira filosofia de cada um se acha inteiramente contida na sua política? C.. ) Isto significa que um grupo social, que tem uma concepção própria de mundo, ainda que embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, descontínua e ocasionalmente - isto é, quando tal grupo se movimenta como um conjunto orgânico - toma emprestada a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que lhe é estranha; e aquele (o primeiro) grupo afirma por palavras tal concepção, e também acredita segui-la, já que a segue em épocas 'normais', ou seja, quando a 21 conduta não é independente e autônoma, mas sim submissa e subordinada. É por isso, portanto, que não se pode destacar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, também elas, fatos políticos." (Ibidem, p. 1415). Analisando tais questões, recoloca-se o problema de como interferir, em situações históricas específicas nas sociedades modernas e complexas, na formação de sistemas de idéias e valores que possam contribuir para o surgimento de cidadãos conscientes politicamente. Respostas mais adequadas para tais questões apontam para uma valorização da dimensão simbólica em mediações que possam viabilizar avanços possíveis, dentro das condições de uma dada formação social. Como observa Gramsci: "O homem ativo de massa tem um conhecimento do mundo na medida em que o transforma. Pode ocorrer, inclusive, que a sua consciência teórica esteja historicamente em contradição com o seu agir. É quase possível dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória): uma implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação política da sociedade; e outra, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem crítica. Todavia, esta concepção 'verbal' não é inconseqüente: ela liga a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode, inclusive, atingir um ponto no qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política. A compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de 'hegemonias' políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real. A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam." (Ibidem, p. 20-21). Ainda sobre a importante questão da articulação entre a teoria e a prática, Gramsci complementa: "Também a unidade da teoria e prática não é um fato mecânico, mas um 22 devenir histórico, que tem sua fase elementar e primitiva no senso comum de 'distinção' e 'separação', de independência apenas instintiva, e progride até a possessão real e completa de uma concepção do mundo coerente e unitária. É por isso que se deve chamar a atenção para o fato de que o conceito de hegemonia representa - além do progresso políticoprático - um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos. Todavia, nos mais recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis, o aprofundamento do conceito de unidade entre a teoria e a prática permanece ainda em uma fase inicial: subsistem ainda mecanismos, já que se fala da teoria como 'complemento' e 'acessório' da prática, da teoria como serva da prática." (Ibidem, p. 21). Tentando aproximar Gramsci de Maffesoli, é importante esclarecer que eles constróem diferentes referenciais teóricos. Gramsci, por exemplo, em essência é um marxista, com proposições que tendem ao cientificismo. No entanto, isto não implica que não possa haver uma possibilidade de identificação entre os dois, já que o pensamento de ambos é apresentado de forma não sistemática, tendo, como conseqüência, posicionamentos que não pretendem construir sistemas teóricos rígidos. Tal identidade se dá principalmente pela valorização do senso comum na interpretação de uma época e numa dada sociedade. No entanto, deve ser ressaltado que se Gramsci chama atenção para o senso comum na realização do trabalho político, mais especificamente na organização do partido, Maffesoli ousa mais. Valoriza o "pensamento flutuante" numa perspectiva sociológica, tendo em vista seu poder na própria estruturação da sociedade (o que, em nossa opinião, não deixa de ser também uma questão política). Ele frisa, por exemplo: "O conhecimento empírico ultrapassa as construções racionalizadoras C.. )", já que "C .. ) a própria vida social é inacabada, superando qualquer condicionamento estrutural". Por essa ótica, conclui, então, que "( ... ) toda experiência tem poder cognitivo, tudo é método, tudo é caminho, tudo serve à sociologia." (1988, p. 10). O autor argumenta ainda que: "No que tange à vida 23 social, é evidente que a anomalia, ou o que é assim chamado, constitui boa parte do cotidiano". Assim, "( ... ) existe, efetivamente, um 'conhecimento' empírico cotidiano que não pode ser dispensado, cuja apresentação imediata é fragmentada e polissêmica" (ibidem, p. 194-203). Maffesoli amplia ainda mais sua discussão sobre a necessidade de relativizar o papel das abordagens racionalistas nas diversas interpretações da vida social ao dizer: "Com efeito, mais do que racionalizações, que em larga medida são estratificações, o senso comum, a intuição popular, o discurso da vida de todos os dias, às vezes mesmo o arrebatamento político (refiro-me aqui às discussões políticas em bares e botequins) dão suficientemente conta do 'não-lógico' operante em nossas sociedades." (Ibidem, p. 101) Porém, é importante frisar que o autor, com suas colocações, não descarta a importância da abordagem "racional" na interpretação dos fatos que compõem a vida social. Portanto, faz um alerta: "Que nos compreendam bem: não se faz aqui a apologia do irracionalismo, até porque é o próprio dogmatismo que, invariavelmente, a ele conduz; trata-se simplesmente de esboçar uma teoria do conhecimento apta a admitir que a falta de acabamento estrutural da sociedade fica a exigir uma falta de acabamento intelectual" (Ibidem, p. 208). Desta maneira, é importante ter em mente que quando se está na esfera das relações sociais, extrapolam-se os limites ditados pela "razão", já que esta, apesar de sua indiscutível relevância em quaisquer interpretações da realidade, é obrigatoriamente dialética. Portanto, incompleta e em permanente elaboração, do ponto de vista da construção dos conhecimentos sócio-historicamente produzidos: "Estaríamos errados se acreditássemos que as construções intelectuais, sejam tão 'geniais' quanto forem, brotam espontaneamente no cérebro de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Fato é que, com distinções mais ou menos importantes, com distâncias mais ou menos notáveis, traduzem elas preocupações, desejos, ilusões ou práticas sociais 24 específicas. Mesmo as mais aberrantes, as que parecem menos ligadas a uma existência dita normal, têm sempre algo a ver com a trama social." (ibidem, p. 81) Com base nas idéias aqui explicitadas, torna-se agora necessário relacionar um pouco mais algumas delas ao universo específico de análise deste estudo, bem como apresentar algumas outras que estão mais estreitamente a ele ligadas. No decorrer do trabalho educacional que realizávamos na Baixada Fluminense, fomos percebendo que, de fato, tanto para uma orientação teórica, como para uma orientação prática dos grupos naquela experiência, seria necessário domínios teóricos, digamos, menos ortodoxos. Isso porque tendo optado por desenvolver nossas atividades pedagógicas, assim como já foi dito, partindo daquela realidade, essas idéias que valorizam o pensamento popular pareciam as mais condizentes com os nossos propósitos. Assim, nossa prática educativa, bem como a sua interpretação quiseram se construir à luz do que a própria experiência nos colocou, ou seja, o "senso-comum", como chamou Gramsci, ou o pensamento popular, que como disse Maffesoli estaria calcado na complexidade cotidiana, na "cultura primeira", cuja consideração, de fato se revelou, para nós, fundamental. De Maffesoli (1988) um reforço para esta postura é principalmente a sua idéia de que existe um conhecimento empírico cotidiano que não pode ser dispensado, mas que a ciência, de um modo geral, e especificamente a Filosofia e a Sociologia, dominadas por um discurso positivista aprisionador, desprezam. Assim, como para Gramsci, para quem todos os homens são filósofos por natureza, já que "( ... ) é impossível pensar em um homem que nào seja também filósofo, que nào pense, já que o pensar é próprio do homem como tal". (1981, p. 35). Assim, como se deu durante o trabalho e na sua interpretação, os depoimentos dos participantes do Projeto Baixada são valorizados como reflexões fundamentais para a avaliação da experiência. De acordo com a sugestão de Maffesoli (1989), as 25 reflexões integram, portanto, a participação, a descrição, as histórias de vida e as diversas manifestações dos imaginários coletivos. Com base em Gramsci, a presente investigação recorre à categoria do 11 sensoll comum nos seguintes termos: 110 que se costuma chamar 'senso-comum', está não apenas no fato de que, ainda que implicitamente, o 'senso-comum' empregue o princípio de causalidade, mas no fato muito mais limitado de que, em uma série de juízos, o 'senso-comum' identifique a causa exata, simples e imediata, não se deixando identificar por fantasmagorias e obscuridades metafísicas pseudo-profundas, pseudo-científicas, etc. 11 (1981, p. 35) Outra noção útil à análise do Projeto Baixada é a de IIcentralidade subterrânea 11 , conceito elaborado por Maffesoli, que nos permite: "(. .. ) valorizar o que costuma ocorrer com momentos em que o que parece revestir-se de pouca importância, o que passa despercebido, o que se vai considerar como marginal traduz, por um lado, o vínculo de um real investimento para seus protagonistas e, por outro, tem graves conseqüências para o devir social. lI (1988, p. 251-252). Desta forma, ao longo de todas as reflexões e posicionamentos aqui explicitados, partiremos sempre do pressuposto de que: 11(. •• ) há uma ordem específica da socialidade subterrânea. Uma ordem interior que, pontualmente, aflora nos momentos de fratura, de comoção ou de efervescência - ficando entendido que estes movimentos podem ser perfeitamente silenciosos ou, pelo menos, discretos, a ponto de escapar às finuras de análise dos que a este mister se dedicam. Lembremo-nos do provérbio 'saber ouvir o mato crescer' (isto é, estar atento a COIsas simples, silenciosas e pequenas) 11. (Maffesoli, 1988, p. 251). Finalizando, consideramos que a análise da experiência político-pedagógica do Projeto Baixada à luz das sugestões dos pensadores acima citados, vai ao encontro das premissas desses autores na medida em que envolveu, com uma forte paixão, a maioria dos atores que dela participaram. O principal na experiência foi a 26 valorização do senso comum, da vida cotidiana e suas experiências, expressas numa espontaneidade não submetida aos crivos das racionalizações teóricas. É justamente aí que julgamos justificar-se também o tema da presente dissertação, já que sua pretensão é apenas a de realizar uma nova abordagem na sistematização e análise de uma experiência social vivida no âmbito da educação envolvendo parceiros, cujas relações revelam-se, como já foi dito, complexas, tensas e mesmo contraditórias, condições inevitáveis de um confronto entre o poder público e o movimento popular. 27 3 BAIXADA FLUMINENSE: QUE LUGAR É ESSE? "Do povo oprimido nas vilas, nas filas, favelas. Da força da grana que ergue e destrói coisas belas" . (Caetano Veloso) 3.1 Características físicas e sociais da Baixada Foi na Baixada Fluminense, extensa planície flúvio-marinha situada ao norte da cidade do Rio de Janeiro, que o processo de crescimento da região metropolitana do Rio de Janeiro se deu com mais intensidade nas últimas décadas. Os municípios de Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti - que constituem a Baixada - ocupam uma área de 1260 km, correspondendo a 2,84% da área total da região metropolitana, e abrigam cerca de 2.533.837 habitantes, respondendo por aproximadamente 26,39% da população total dessa região. A urbanização da área é recente e decorre, fundamentalmente, do crescimento da cidade do Rio de Janeiro e do conseqüente processo de incorporação de contingentes migratórios de outras regiões do país e do interior do Estado - sem acesso à terra em seus locais de origem - , bem como da realocação de populações de baixa renda expulsas da própria cidade pela constante valorização do solo urbano. No período anterior à década de 20, a Baixada foi sucessivamente ocupada por atividades primárias - mono cultura canavieira, alguma cafeicultura, exploração de madeira dos manguezais para obtenção de carvão - , sempre refletindo os impulsos provenientes da cidade do Rio de Janeiro. Foi por ela também que se traçaram os 28 caminhos de ligação entre a região das minas, no interior, e o porto do Rio, dando à Baixada características de típica área de "passagem" e secundarizando as atividades agrícolas nela desenvolvidas. A população da área era, então, insignificante em relação à da capital. O recenseamento geral do Brasil de 1920 acusava para o município de "Iguassu", correspondente aos quatro municípios que hoje compõem a Baixada, 33.396 habitantes, o equivalente a apenas 2,88% da população da cidade do Rio de Janeiro, que era de 1.157.873 habitantes. Na década de 20 é que se iniciou o significativo processo de fragmentação da terra, que se tornaria ainda mais intenso nas duas décadas posteriores. Esse processo foi conseqüência, por um lado, da decadência das atividades agrícolas - não mais uma força econômica na área - e do crescente fluxo migratório de outras áreas em direção ao Rio, e por outro, da expansão da rede de transportes irradiada do Rio - ferrovias e rodovias - e do saneamento da região, visando à retomada das atividades agrícolas. Nesse período, constituiu exceção apenas o atual município de Nova Iguaçu, que experimentou, dos anos 20 até a segunda guerra mundial, um surto de prosperidade econômica, derivado da produção de laranja para exportação. Após a segunda guerra, a crise financeira que se instalou na região e no país em geral, contribuiu para uma verdadeira "febre de loteamentos" na Baixada, que viria beneficiar o especulador imobiliário às custas de uma ocupação desordenada e sem um mínimo de infra-estrutura, à qual ficaram subjugados os trabalhadores que constituem a grande maioria da população. O crescimento da população da Baixada Fluminense torna-se explosivo, como se constata a partir do censo de 1940. Registravam-se nessa época uma população de 141.160 habitantes na área correspondente à Baixada, enquanto a capital abrigava 1.764.161 habitantes. A população eqüivalia, portanto, a 8% da população da cidade do Rio de Janeiro. Num espaço de 20 anos, esse quadro tornou-se diferente. Por 29 ocasião do censo de 1960, os municípios da Baixada totalizaram 891.270 habitantes, número este correspondente a 27,15% da população da capital. Hoje, com um número de habitantes equivalente a 47,48% da população do município do Rio de Janeiro, a Baixada é um dos retratos mais significativos das precárias condições em que vive o povo brasileiro. Sua população, sempre crescente, sofre todo tipo de violência, a começar pelo não acesso a seus direitos de cidadania. A não observância desses direitos traduz-se no progressivo processo de "favelização" a que ela se submete. A região conta com uma rede de saneamento que atende a apenas 30% da população. Essa situação tem piorado a cada ano, contribuindo para a permanência de elevadas taxas de mortalidade infantil e a proliferação de todas as doenças típicas de regiões pobres. Em relação ao sistema de transportes, é fato que não houve uma ampliação na mesma razão do crescimento da população. A grande massa de trabalhadores que se desloca diariamente da Baixada para a cidade do Rio de Janeiro dispõe, ainda, dos mesmos serviços de 20 anos atrás, quando precariamente atendiam a um número de usuários 50% menor que o atual. No âmbito da saúde, o quadro não é diferente. Apenas três hospitais públicos gerais, sempre em condições precárias, estão em funcionamento, e é nas mãos dos hospitais privados que se concentra o atendimento da maior parte da população (financiados com recursos provenientes da Previdência Social). Essa realidade é ainda mais gritante quando se observam os elevados índices de concentração demográfica da Baixada, alguns comparáveis aos maiores do mundo, como é o caso no registrado no município de São João de Meriti, superior a 13.500 habitantes por quilômetro quadrado. 30 o depoimento de Dom Mauro Morelli, arcebispo da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, conduz a uma reflexão sobre o que é a Baixada Fluminense, por trás das estatísticas e do noticiário dos jornais: "A Baixada Fluminense é um retrato em branco e preto do Brasil. Situase próxima à cidade do Rio de Janeiro e faz parte da área metropolitana. Começando pelo povo da Baixada: 60 a 70% da população são de raça negra. Esse povo descende da situação criminosa e vergonhosa que foi a escravatura no Brasil. A maioria ainda vive hoje não numa escravidão jurídica, mas numa escravidão de fato, que é a marginalização, a impossibilidade de participar de verdade da vida social, econômica e política do país ... A Baixada é também o espaço dos migrantes, expulsos da terra. São os irmãos brasileiros que foram escorraçados do Nordeste e de outras regiões do país, que vêm buscar um novo espaço de vida, e aqui sofrem novamente. Sem esse povo, a cidade maravilhosa não se explica, não se mantém de pé, não vive. E é nesse contexto de Brasil injusto que devemos compreender a Baixada Fluminense e sua população: um lugar conhecido pela violência. Mas é preciso entender, antes de tudo, que é um lugar que sofre, padece violência." (UniceflEducar, 1988, p. 23) Nesse contexto assustador, poucos são, evidentemente, os serviços voltados à educação. A Baixada apresenta índices de evasão escolar, repetência e analfabetismo bastante elevados. Há poucos estabelecimentos de ensino, principalmente da rede pública. Os da rede privada vivem principalmente por meio de recursos oriundos de bolsas do Ministério da Educação, ou seja, recursos públicos. É bem verdade que essa situação não chega a ser mais grave que a encontrada em outras regiões do país. No Nordeste, por exemplo, os índices de analfabetismo na população adulta ultrapassam, muitas vezes, a casa dos 60%. No entanto, o contexto sócio-econômico nordestino situa-se entre os maIS carentes do Brasil, diferentemente do Sudeste, região urbano-industrial por excelência, tida como a mais desenvolvida e moderna do espaço brasileiro, onde se localiza a Baixada. 31 3.2 A esperança vem dos movimentos o conjunto de carências que caracteriza a Baixada tem sido um dos fatores mais importantes para as organizações populares, que se alicerçam nas associações de moradores, nas comunidades eclesiais de base, nas bases dos partidos políticos e nas organizações sindicais. A Baixada, na década de 80 - período em que se desenvolveu o Projeto -, apresentava um dos mais fortes processos de organização da população brasileira. Esses tipos de organização, conhecidos como movimento popular (*) Movimento Popular: dá-se esse nome ao conjunto das organizações criadas e dirigidas por pessoas das classes populares vinculadas ao processo produtivo tanto na cidade quanto no campo. Essas organizações tomam a forma de sindicatos, associações de bairro, comunidades de base, movimentos e grupos culturais etc. Neste conjunto, o movimento sindical destaca-se por possuir um caráter de classe, mas mantém estreita relação com as demais formas de organização. Na dissertação optamos por utilizar o termo sempre no plural, ou seja, movimentos populares, já que o estudo a seguir não pretende absolutizar a categoria, ao contrário a considera extremamente plural e complexa. reunia diversas entidades, com destaque para a organização da igreja católica, de cunho progressista (igreja da libertação), conhecida como Comunidade Eclesial de Base - CEB. A proposta política realizada pelas Comunidades Eclesiais de Base tem como princípio a associação da fé religiosa aos problemas reais vividos no dia a dia da população, com o objetivo de esclarecer o papel de cada cidadão na tarefa de transformação da sociedade. Na década de 80, o número de CEBs foi bastante expressivo. Como exemplo, pode-se citar a arquidiocese de Nova Iguaçu, que, em 1988, congregava 330 dessas comunidades. 32 Foi igualmente relevante, na década de 80, a organização da população em associações de moradores, surgidas principalmente, a partir da igreja católica, como os grupos de jovens, clube de mães, círculos bíblicos etc., com o objetivo de reivindicar dos poderes públicos os direitos primários: luz, água, saneamento básico, saúde, habitação, educação, transporte etc. o movimento tem na Baixada, nos anos 80, um dos maiores níveis de organização verificados no Brasil, contando com três grandes federações de bairros: Federação das Associações de Bairro de Nova Iguaçu (MAB) , Federação Municipal de Associações de Bairros de Duque de Caxias (MUB) e a Federação das Associações de Moradores de São João de Meriti (ABM). Em 1988 foram registradas 223 associações filiadas ao MAB, 101 filiadas ao MUB e 58 filiadas à ABM. o avanço do movimento organizado naquela década na Baixada Fluminense era sempre ressaltado por Dom Mauro Morelli, arcebispo de Duque de Caxias e São João de Meriti: "Existe na Baixada muita força de renovação e de transformação. Das 800 Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro, 500 estão na Baixada Fluminense." (UniceflEducar, 1988, p.29). No que se refere às questões relacionadas ao fenômeno de organização dos diversos grupos sociais nas grandes cidades, encontramos em Manuel Castels (1980) colocações importantes que ampliam nossa compreensão dos movimentos populares como fenômeno que vem se expandindo em nível mundial, especialmente nos países capitalistas, como resposta às crescentes tensões sociais e econômicas geradas pela crise do capitalismo avançado. "Um novo espectro ronda o mundo em crise do capitalismo avançado. Associações de vizinhos, comitês de bairro, de alunos, sindicatos de consumidores, organismos de participação, expressões citadinas que lutam, organizam-se, e tomam consciência na tentativa de transformar a base material e a forma social da vida cotidiana. Na última década, os 33 movimentos socias urbanos desenvolveram-se quantitativamente e qualitativamente na maioria dos países da Europa Ocidental e América do Norte. Não só abrangem um crescente número de cidadãos, mas sua visibilidade social é cada vez maior, tanto no que se refere à atenção que lhes é dedicada pelos meios de comunicação de massas, como pelo papel que vão desempenhando nos programas e iniciativas das diferentes tendências políticas. Esse crescente desenvolvimento e essa significação social cada vez mais acentuada não são um conhecimento histórico fortuito. Decorrem do enraizamento dos movimentos urbanos na evolução contraditória dos elementos que configuram nossas sociedades em sua relação dialética: o capital monopolista e suas tendências à crise, expressadas numa crise urbana cada vez mais profunda; as classes socias e sua luta em defesa dos seus interesses, que se prolonga em luta política de classes; enfim, o Estado e as formas mutantes representação, de repressão e de negociação dos interesses sociais que o constituem." (p. 19). Enfim, na luta ideológica travada nas sociedades capitalistas, nas quais a perspectiva individualista predomina, o movimento comunitário pode se constituir em espaço importante para reforçar laços de solidariedade e trabalhar, pedagogicamente, noções de interesse coletivo. 34 4 PROJETO BAIXADA: CONCEPÇÕES, PRÁTICA E HISTÓRIA "Do que adiantam? Placas, bulas, instruções... Do que adiantam? Letras impressas das canções ... Do que adiantam? Gestos educados, convenções... Do que adiantam? Emendas, constituições Se o teto da escola caiu Se a parede da escola sumiu Sem dente o professor sorriu Calado, recebeu dez mil ... " (Herbert Vianna) 4.1 História inicial Em fevereiro de 1986, foram realizados os primeiros entendimentos formais com algumas entidades da Baixada Fluminense. Concomitantemente, procuramos as Secretarias Municipais de Educação de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti e Nilópolis, através dos seus respectivos Secretários de Educação. É importante ressaltar que o município de Nilópolis não permaneceu no Projeto como o anteriormente previsto, devido ao envolvimento de grande parte das entidades comunitárias com práticas de caráter paternalista que nada contribuiam para a emancipação política e social da população local. Logo de início, constatamos a impossibilidade de fazer um trabalho que também 35 contasse com a participação dos poderes municipais, não apenas pela intrânsigência das secretarias, como pela própria rigidez desses sistemas educacionais. As Secretarias, de um modo geral, eXIgiam que os professores, supervisores e coordenadores do Projeto fossem por elas indicados e que pertencessem ao seu quadro. Além disso, queriam ainda uma complementação salarial para estes profissionais como condição básica para firmar o convênio com a Fundação Educar. Por outro lado, a possibilidade de se construir um projeto de educação em parceria com os movimentos sociais da Baixada também não agradava às Secretarias; estas estavam acostumadas a ter participação nos movimentos de educação de adultos apenas no recrutamento de alunos para formar classes de alfabetização, conforme era a prática comum no Mobral. Enfim, concluímos que naquele momento, caso o Projeto se submetesse às exigências das Secretarias Municipais, a parceria com os movimentos sociais seria bastante prejudicada, deformando um dos objetivos principais, qual seja, o de "desprivatizar" os órgãos públicos, possibilitando aos movimentos organizados interferir diretamente no cotidiano das instituições governamentais, no caso a Fundação Educar. Assim, optamos, num primeiro momento, restringir o trabalho à Fundação Educar e aos movimentos sociais. As primeiras entidades com as quais entramos em contato foram a Cáritas Diocesana de Nova Iguaçu, através do seu arcebispo, Dom Adriano Hipólito, a Federação das Associações de Moradores e Amigos de Nova Iguaçu - MAB e o Clube de Mães da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, que tinha Dom Mauro Morelli como arcebispo. No começo, essas entidades colocaram em dúvida a possibilidade de 36 estabelecimento de acordo, pois existia um profundo desgaste do antigo Mobral junto aos grupos organizados da sociedade civil. Entre os fatores que mais contribuiram para esse desgaste, podemos citar o fato de essa instituição ter sido criada pela ditadura militar, sendo identificada pelas organizações populares como órgão de controle político e social, como também a constatação de ela não ter cumprido sua função principal, que seria a de reduzir o analfabetismo. A partir da organização da eqUIpe técnica, ampliaram-se os contatos, que se estenderam a outras entidades da Baixada Fluminense: A Federação das Associações de Bairro de Duque de Caxias (MUB) , as associações que já recebiam apoio da Fundação Educar em Duque de Caxias e a Federação Municipal das Associações de Bairro de São João de Meriti (ABM). Mas tanto o MUB quanto a ABM não quiseram se integrar ao Projeto em 1986 por questões de ordem política. Zumba, presidente do MUB na época, sintetiza a desconfiança das entidades da Baixada Fluminense com o seguinte depoimento: "Não basta mudar de nome para um órgão se tomar confiável. A gente nunca confiou no MOBRAL porque sabíamos que tinha interesse eleitoreiro". Como veremos posteriormente, a partir das repercussões positivas do projeto, este quadro começaria a mudar. Em 1987, o MUB, a partir da pressão de suas bases, decidiu integrar-se ao Projeto. É importante ressaltar que a aproximação dos técnicos da Educar com as lideranças do movimento popular se deu com base em relações extra-institucionais estabelecidas anteriormente, através do desenvolvimento de outras ações profissionais, políticas ou partidárias. Isto, certamente, facilitou o diálogo com os grupos populares, que rejeitavam explicitamente a instituição à qual estávamos vinculados. o Projeto, desde os seus momentos iniciais, valorizava um planejamento de caráter 37 participativo, ou seja, desde seu começo buscou-se a discussão e decisão com todos os envolvidos no trabalho. Para dar início às negociações, foi elaborado um documento preliminar de apenas duas páginas, a partir do qual foram propostos alguns critérios básicos e metodologias compatíveis, bem como as competências e atribuições da Fundação Educar. Alguns profissionais ligados à educação popular afirmam ser uma atitude autoritária e dominadora o fato de se levar algum tipo de proposta já previamente elaborada. Antes de irmos para campo, discutimos a questão, a fim de decidir que postura deveríamos tomar. No entanto, concluímos, baseados em experiências anteriores, que esse tipo de discurso, hegêmonico na educação popular, pode ser ingênuo, por vezes enganoso, e ainda subestimar o interlocutor. Isto porque, na verdade, quando há a aproximação entre grupos com o propósito de desenvolver projetos na área social, é natural que cada um já tenha propostas idealizadas, que devem ser colocadas de forma clara e transparente, para que se possa abrir o diálogo. Desta forma, atuamos de forma flexível, a partir da própria identidade existente entre os objetivos básicos do Projeto e aqueles das entidades dos movimentos populares. Viveu-se, desde então, um processo de idas e vindas, onde as orientações postuladas inicialmente foram sendo revistas, reformuladas e redefinidas face à interação entre os grupos organizados e o órgão público. O Projeto caracterizou-se, por um real processo de "aprendizado pela execução. Fomos, todos os envolvidos, aprendendo no cotidiano. Definido o Projeto como de "estudo-ação", a equipe técnica estabeleceu como meta inicial a implantação de 60 classes nos três municípios: 30 em Nova Iguaçu, 20 em Duque de Caxias e 10 em São João de Meriti. Considerou-se que a abrangência do 38 trabalho não poderia ser tão reduzida, como freqüentemente ocorre em "projetos experimentais", comprometendo sua reaplicabilidade, nem tão ampla a ponto de inviabilizar o seu acompanhamento e avaliação de forma sistemática. No entanto, à medida que as negociações avançaram, diversas reivindicações foram sendo feitas pelas entidades participantes, principalmente no sentido de expandir o número de classes. o período de negociações durou cerca de seis meses. Em julho de 1986, foram finalmente assinados convênios estabelecendo a implantação de 197 classes, das quais 181 foram efetivamente criadas. Os bons resultados obtidos no primeiro ano de realização do Projeto, no que diz respeito aos ganhos educacionais e políticos para as entidades, bem como a carência da rede educacional da Baixada, levaram as entidades a pressionar a Fundação Educar a ampliar o número de classes, o que de fato ocorreu. Assim, o Projeto foi redimensionado, passando a comportar 285 classes em 1987, a despeito da não concordância da equipe técnica, que via na expansão excessiva um risco de comprometimento das atividades de acompanhamento e avaliação. Essa expansão se deu não apenas em relação às entidades já conveniadas, mas contou, também, com a adesão da Federação Municipal das Associações de Bairros de Duque de Caxias (MUB), que solicitou cooperação técnica para 30 classes. Cabe lembrar que, no ano anterior, o MUB não havia concordado em assinar o convênio com a Fundação Educar. A mudança de atitude se deu, segundo a entidade, em função dos bons resultados obtidos nos municípios de Nova Iguaçu e São João de Meriti. Os convênios assinados entre a Fundação Educar e as entidades garantiam a remuneração dos agentes educativos (professores, supervisores pedagógicos e assistentes administrativos), incluindo os encargos sociais previstos na legislação trabalhista brasileira, e 10% do orçamento para despesas administrativas. Os 39 professores recebiam 2 salários mínimos/mês; os supervisores e agentes administrativos, 4,5 salários/mês; os coordenadores de área, 5 salários/mês. Os recursos eram repassados pela Fundação Educar às entidades e eram por elas administrados. A Fundação se responsabilizava, ainda, pelas despesas relativas a material de consumo (escolar e didático), bem como, obviamente, pelos salários da equipe técnica. Tentando ser coerente com a proposta educativa, o Projeto foi objeto constante de discussões a respeito de sua própria organização. Esta, como um todo, não deveria ser vista independentemente da questão pedagógica. Contando com a participação dos diferentes grupos, a descentralização dos aspectos organizacionais e administrativos mereceu estudo especial. Com essa descentralização, pretendeu-se buscar melhores condições para o controle das ações e, ao mesmo tempo, permitir maior autonomia e agilidade às entidades participantes. Em 1989, último ano de sua realização, o Projeto contou com aproximadamente 7100 alunos em 287 classes, distribuídas em seis pólos, a saber: Bar dos Cavaleiros (Duque de Caxias) ........ 36 classes. Canal Meriti (São João de Meriti) ........... 36 classes. Cáritas Diocesana (Nova Iguaçu) ............. 50 classes. Taquara (Duque de Caxias) ................... 10 classes. MUB (Duque de Caxias) ....................... 30 classes. MAB (Nova Iguaçu) ........................... 125 classes. TOTAL ...... 287 classes. Em termos de recursos humanos, o Projeto, em 1989, apresentava a seguinte estrutura: • .1 professor para cada 25 alunos, no máximo; 40 • .1 supervisor para 8 a 10 classes; • .1 assistente administrativo para cada 30 classes; • .1 coordenador de área para cada uma das seis entidades que compunham o Projeto e um coordenador representando a Fundação Educar; • .1 ou 2 técnicos da Fundação Educar para assessorar cada uma das seis entidades; • .2 técnicos da Fundação Educar encarregados dos aspectos técnicoadministrativos. 4.2 Critérios para participação no Projeto Para participar do Projeto, estabeleceram-se, para ambas as partes, critérios básicos, que foram cumpridos integralmente até o final do Projeto. Os professores, supervisores pedagógicos, assistentes administrativos e coordenadores de área, eram indicados pelas diferentes entidades de acordo com critérios definidos com a equipe técnica da Fundação Educar. Após o recrutamento, feito pelas entidades envolvidas, os professores e supervisores foram selecionados através de instrumentos formais, tais como provas, entrevistas e dinâmica de grupo. No primeiro ano do Projeto, essas atividades foram integralmente elaboradas pela equipe técnica; a partir do segundo ano, as equipes de educadores da Baixada começaram a participar de sua elaboração. No terceiro ano do Projeto, entretanto, houve solicitação das entidades do movimento popular no sentido de que a equipe da Fundação Educar se responsabilizasse integralmente pela seleção dos participantes. Este fato se deu devido à dificuldade das lideranças em decidir sobre a contratação ou não dos educadores, já que muitos dos que se candidatavam eram parentes, vizinhos, amigos, concorrentes políticos etc., o que, muitas vezes, gerava sérios problemas de ordem tanto pessoal como política para os componentes daqueles grupos. Assim, para o exercício da função de professor, supervisor e assistente administrativo, foram definidos os seguintes requisitos: 41 a) Professor - ter conhecimento dos conteúdos básicos da área da alfabetização, aferido mediante teste de língua portuguesa e redação; - indicação feita pela entidade do movimento popular; - ser morador das proximidades do local de implantação da classe; - ter o segundo grau completo, preferencialmente com o curso de formação de professores. b) Supervisor - ter curso superior em áreas compatíveis ou estar cursando o 3Q grau. A prioridade seria para aqueles que estivessem cursando uma faculdade na área de educação. - preferência para os candidatos residentes no próprio município; - participar dos movimentos comunitários. c) Assistente administrativo - possuir segundo grau completo, preferencialmente com o curso de contabilidade; - ser de estrita confiança das entidades do movimento popular; - participação no movimento comunitário. 42 4.3 Características dos participantes do Projeto De acordo com o que havia sido negociado entre o poder público e as entidades populares, todos os envolvidos no Projeto deveriam ter atribuições e tarefas específicas, para um melhor desenvolvimento da ação. Este critério deveria servir tanto para a equipe técnica da Fundação Educar, como para os participantes das entidades, ou seja, os coordenadores de área, os supervisores pedagógicos, os assistentes administrativos, os professores e os alunos. a} Equipe Técnica da Fundação Educar o Projeto era composto por uma equipe técnica formada por 10 técnicos, incluindo o coordenador, e ainda um estagiário da área administrativa. A equipe era estruturada por três grupos integrados, porém com papéis distintos. Eram eles: educadores encarregados pelas questões político-pedagógicas, que acompanhavam e assessoravam o trabalho de campo; técnicos responsáveis pelos aspectos técnicoadministrativos, que assessoravam os assistentes administrativos representantes das organizações populares e articulavam o trabalho entre as entidades e a Educar; e, por último, os técnicos responsáveis pela elaboração, montagem e acompanhamento do processo de avaliação do trabalho. Os três grupos eram coordenados por uma técnica da Fundação. A equipe da Educar teve participação em todos os níveis do Projeto, desde as negociações com o Ministério da Educação até o acompanhamento do trabalho dos professores em sala de aula. De uma forma geral, podemos definir o perfil da equipe técnica da Fundação Educar 43 através das seguintes características: participação política em movimentos sociais; experiência em trabalhos comunitários; participação em partidos políticos diferentes; formação de nível superior em áreas diferentes (pedagogos, sociólogos, psicológos, professores de língua portuguesa e geografia); experiência em sala de aula. Os componentes eram majoritariamente do sexo feminino, com idade variando entre 25 e 50 anos. Apesar da heterogeneidade em relação à filiação aos partidos políticos, a unidade ideológica da equipe foi garantida com base em alguns princípios que foram anteriormente negociados, como por exemplo, o respeito à autonomia dos grupos organizados do movimento popular, a identificação da importância da educação, e em especial da alfabetização como instrumento fundamental para a sobrevivência nas sociedades modernas e complexas, e o envolvimento afetivo com o trabalho no qual todos nós acreditavamos. b) Professores O recrutamento para o cargo de professor foi feito pelas entidades do movimento popular que faziam parte do Projeto. De maneira geral, eram convocados ou militantes do movimento comunitário, ou seus vizinhos e parentes, com o objetivo de integrá-los a esse movimento. Os professores selecionados, isto é, que participaram efetivamente do Projeto, eram 91 % do sexo feminino, com idade entre 18 e 66 anos. A faixa etária predominante, porém, situava-se entre 18 e 25 anos. Quanto à formação, 75% possuíam o segundo grau completo, 20% cursavam o terceiro grau e 5% tinham apenas o primeiro grau completo. No que se refere à experiência profissional anterior, 69% já haviam trabalhado na 44 área de educação, 12% no comércio, indústrias ou serviços e 9% nunca haviam trabalhado. Daqueles que já haviam trabalhado com educação, apenas 15% tinham tido experiência com educação de adultos, em projetos ou programas ligados ou aos movimentos de Igreja e à campanha ABC na década de 60 (projetos estes bastante influenciados pelas idéias do Prof. Paulo Freire), ou ao MOBRAL na década de 70. Finalmente, 75% dos professores indicaram o envolvimento em atividades comunitárias (pastoral da terra, grupo de jovens, círculos bíblicos, associações de moradores, clube de mães, movimentos ecológicos, partidos políticos etc.). c) Supervisor pedagógico Para participar do Projeto, os supervisores foram convocados para a seleção pelas entidades participantes. De um modo geral, eram pessoas bastante integradas aos movimentos. Os 30 supervisores selecionados e contratados pelo Projeto tinham entre 20 e 35 anos (66,7%), sendo que, quase exclusivamente - 90,5% - eram do sexo feminino. A maior parte dos supervisores (52,4%) eram casados e 81% nasceram no Estado do Rio de Janeiro. Quanto à formação, 47,6% estavam cursando o terceiro grau no decorrer do Projeto. O restante já tinha o curso superior completo. Outro dado interessante é que 52,4% dos supervisores trabalhavam na área educacional, a maioria como professor em escolas municipais e estaduais e poucos em escolas particulares; 9,5% estavam sem emprego e 38,1 % desenvolviam atividades no comércio, indústria e serviços; 95,2% dos supervisores já haviam desenvolvido algum tipo de atuação em atividades ligadas à educação; por fim, 96% desses profissionais já haviam participado ou ainda participavam, na época do Projeto, de movimentos reivindicatórios, principalmente através da Igreja, como também das Associações de Moradores, Clubes de Mães, sindicato de professores, grupos ecológicos etc. 45 d) Assistente administrativo o Projeto contou com dez assistentes administrativos indicados pelas entidades comunitárias, que não precisaram passar pelo processo de seleção, uma vez que o cargo era de extrema confiança de cada entidade. Este profissional deveria assumir toda a parte administrativa do Projeto, ou seja: administrar os recursos financeiros, sempre através de discussões com as direções das entidades, pagar aos professores, supervisores e coordenadores de área e, finalmente, comprar material permanente e de uso diário. A tramitação das verbas se dava da seguinte forma: a Fundação Educar depositava os recursos na conta aberta pela entidade especificamente para o projeto. Esta verba já ía com rubricas determinadas, ou seja, pagamento de pessoal, compra de material para o aluno e professor (cadernos, lápis, borrachas, papel-ofício, giz etc.); material de infraestrutura (luz para as salas de aula, papel higiênico e outros); despesas com consultoria externa etc. Por fim, toda a tramitação era acompanhada e efetuada pelo assistente administrativo, que também era responsável pela assinatura de todos os cheques, juntamente com o presidente da entidade conveniada. Ao final de cada semestre, o assistente administrativo preparava a prestação de contas para ser discutida com as entidades e entregue à Fundação Educar. É importante registrar que, nos quatro anos de existência do Projeto, a Fundação Educar e o Tribunal de Contas da União sempre aprovaram integralmente as prestações de contas apresentadas pelas entidades populares. Este aspecto torna-se mais relevante quando se leva em conta que essas entidades nunca haviam participado de uma parceria desta natureza com o poder público, envolvendo somas tão vultosas. Além disso, a sistemática da prestação de contas era, do ponto de vista burocrático, extremamente complexa. 46 De um modo geral, pode-se afirmar que não houve uma rotatividade significativa no cargo de assistente administrativo. A maioria das entidades mantiveram as mesmas pessoas no cargo durante todo o período de duração do Projeto. No que se refere à caracterização desses agentes, encontramos todos com o segundo grau completo e dois possuíam curso superior completo. Em relação ao sexo, os assistentes eram formados por cinco mulheres e cinco homens, todos militantes ativos do movimento popular. e) Coordenador de área No segundo ano do Projeto, as avaliações realizadas pelas entidades indicaram a necessidade imediata de criação de uma figura mediadora entre a Educar e as entidades. Por outro lado, os diversos grupos de professores, supervisores e assistentes administrativos necessitavam de uma espécie de facilitador, que não só fizesse o elo interinstitucional, mas também procurasse organizar e manter a unidade do Projeto. Outro aspecto que contribuiu para a criação do cargo de coordenador de área, foi a constatação, por parte das entidades, que diversos profissionais envolvidos no trabalho estavam bastante próximos da Fundação Educar. Esta observação gerou uma relativa preocupação, por parte das lideranças da Baixada, sobre uma possível cooptação dos grupos por parte do poder público, o que na avaliação das entidades seria um forte motivo de desintegração do trabalho construído pelos movimentos populares. Um terceiro problema identificado, referia-se ao fato de componentes das entidades (diretores, presidentes, tesoureiros) estarem extremamente envolvidos no trabalho, dedicando-lhe tempo significativo, não podendo, porém, receber qualquer tipo de 47 pagamento, já que nas negociações ficara decidido a proibição de representantes legais terem cargos gratificados. No entanto, o cotidiano do trabalho exigia que as lideranças decidissem inúmeros problemas relativos ao Projeto, como, por exemplo, professor faltoso, violência nas classes de alfabetização, lideranças locais que tentavam interferir "politiqueiramente" nas classes, negociação com escolas municipais e estaduais para a permissão do funcionamento das classes de adultos etc. Assim, em 1988, após a concordância entre as partes, a Cáritas Diocesana solicitou a designação de um membro que representasse aquela entidade junto ao Projeto, respondendo, entre outros, por aspectos políticos, pedagógicos e administrativos de forma atuante e contínua. o coordenador de área não passava por processos de seleção. Devia apenas ser de confiança da entidade que representasse, à qual deveria estar também engajado, e ter o curso superior completo em área compatível com a educação. Nesse sentido, o Projeto contratou seis coordenadores, cujas características gerais eram: idades variando entre 22 e 35 anos; 4 com curso superior completo e dois em fase de conclusão; quatro mulheres e dois homens; todos extremamente comprometidos com as entidades que representavam e cinco militantes ativos de partidos políticos. Apenas a título de informação, já que a questão da militância partidária não era um critério objetivo do nosso trabalho, o grupo de coordenadores era formado por 3 militantes do Partido dos Trabalhadores, 1 militante do Partido Comunista do Brasil e 1 militante do PMDB. Cabe ressaltar que, apesar das claras diferenças de posições partidárias, este grupo tentava sempre resolver positivamente as tensões inerentes aquele convívio. É óbvio que o início foi bastante complicado, porém o grupo foi 48 aprendendo na convivência e percebendo a necessiade de caminhar junto, principalmente frente ao parceiro forte e relativamente poderoso, representado pelo poder público. f) Alunos Para traçar o perfil do aluno que freqüentava as classes de alfabetização do Projeto, entrevistamos 2.871 deles, o que representava 74,6% do total de alunos que terminaram o curso no ano de 1988. Este levantamento foi feito através de questionários previamente elaborados e aplicados pela equipe técnica, supervisores e professores(em anexo). Após análise dos dados, pode-se dizer que a grande maioria (41,3%) dos alunos estava na faixa etária entre 15 e 20 anos, 22,6% entre 21 e 25 anos e 11,7% entre 26 e 30 anos. O restante variava até 63 anos. Em relação ao sexo, predominava o sexo feminino, ou seja, 65,9%. No item local de nascimento, surpreendemo-nos ao constatar que 58,3% dos alunos haviam nascido no chamado grande Rio (Cidade do Rio de Janeiro, Baixada Fluminense, Niterói e São Gonçalo), já que, segundo informações recolhidas em diversos estudos anteriores, provavelmente desatualizados, aparecia com freqüência a afirmação que a maioria da população de Baixada teria vindo do Nordeste ou Minas Gerais. Porém, ainda assim pudemos constatar que os pais desses alunos tinham suas origens principalmente no Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo, o que demonstra que os alunos do Projeto já faziam parte de uma geração nascida na Baixada e filha de imigrantes. Outro dado importante demonstra que 73,3% dos alunos exerciam algum tipo de ocupação remunerada {não foi possível, porém, detectar o tipo de atividade - formal ou não formal - por falha na formulação da questão no questionário. Desses 73,3%, 54% declararam ganhar menos de um salário-mínimo mensal; 41,4% dos alunos 49 entrevistados declararam receber entre 1 e 2 salários. Do ponto de vista da experiência escolar, constatamos o óbvio, ou seja, 71,3% dos alunos pesquisados já haviam frequentado a escola pública em algum momento de suas vidas. Segundo o relato da maioria desses alunos, estiveram na escola principalmente entre os 7 e 14 anos de idade, e alguns deles j á haviam passado mais de uma vez pela escola pública regular. Quando perguntávamos o motivo pelo qual eles (os alunos) IIdeixaram ll a escola, encontramos respostas evasivas ou, ainda, subjetivas, o que aponta uma consciência fragmentada, no que se refere à compreensão dos verdadeiros motivos que levaram tanto a eles, como de resto a milhares de crianças, a abandonarem a escola, tornando o problema muito mais que particular, uma séria questão social. Entre as respostas encontramos colocações como: lIeu não tinha quem me levasse para a escola, era muito longe ll ; lIeu tinha que ir para o trabalho da minha mãe ll ; lIeu era muito burro, não aprendia nada ll ; IInão tinha escola perto ll ; IItive que trabalhar ll ; IImeu pai achava que pobre não precisava estudar, porque não adiantava nada ll ; lia minha professora faltava muito e ninguém aprendia nada 11; etc. Os principais motivos que levaram os alunos a inscreverem-se no Projeto foram: aprender a ler, escrever e contar: 43,5%; conseguir melhor emprego: 23,3%; relembrar o que já tinham estudado: 18,9. O restante das respostas foi variado, como, por exemplo, IIfazer alguma coisa diferente da vida doméstica ll • Selecionamos alguns depoimentos significativos dos alunos, onde pode-se perceber o estigma do analfabeto: 1I IIPorque não podemos depender dos outros. (José Maria, classe do Bar dos Cavaleiros) IIPorque eu quero estudar. Quero aprender muito mais do que eu sei. Porque dá vergonha ser analfabeta. 11 (Dulcinéia, classe do MUB) 50 "Porque analfabeto é igual cego: não vê nada." (Vil ma, classe da Taquara) "Porque quem não sabe ler não entende nada das coisas, não consegue nada."(Jeferson, classe do MAB) Por fim, no que concerne as experiências relacionadas à participação em movimentos organizados, constatou-se que 71,7% dos alunos entrevistados nunca haviam se engajado em atividades dessa natureza até o momento de entrada no Projeto. 4.4 Projeto Baixada: prática e perspectiva pedagógica A idéia inicial do Projeto estruturou-se no sentido de buscar uma nova forma de atuação do poder público junto aos movimentos organizados no campo educacional. Assim, durante o ano de 1986, o Projeto caracterizou-se como uma etapa exploratória, na qual se considerou fundamental a necessidade de mostrar, através da prática, a viabilidade de uma ação político-pedagógica tanto quanto possível democráticas, descentralizadoras e libertárias, tendo como contraponto a história anterior do Mobral. Na verdade, nos pautamos, entre outras, nas próprias diretrizes estabelecidas para a criação da Fundação Educar, considerada na época (1986) como bastante arrojada, já que abria a possibilidade de financiamento a projetos de educação de organismos não governamentais e entidades representativas dos movimentos organizados. Ainda podemos ressaltar que essas diretrizes foram elaboradas por um grupo de educadores com reconhecida competência na área de educação de adultos e não pertencentes ao Ministério da Educação, como Sérgio Haddad, Celso Beisegel, juntamente com educadores da instituição. Esse grupo de trabalho foi formado a partir de convite feito pelo Presidente da Fundação Educar, Prof. Vicente Barreto, recém empossado pelo Ministro da Educação, Senador 51 Marcos Maciel, de Pernambuco. Para melhor situar aquela conjuntura, cabe lembrar que o Presidente da República, na época, era José Sarney. Nesse sentido, além da questão anterior, julgávamos que outros aspectos deveriam estar presentes no desenvolvimento do Projeto, a fim de garantir o seu sucesso. São eles: supervisão sistemática, avaliação contínua e pagamento de salários mais decentes aos agentes educativos. a) Supervisor pedagógico o sistema de supervisão foi estruturado, principalmente, em relação com a nossa visão sobre a formação pedagógica. Esta apoiava-se em dois eixos principais: o primeiro, que entendia a supervisão e a capacitação como faces da mesma moeda, ou seja, na medida em que fossem formados supervisores capacitadores, estes estariam se profissionalizando em serviço, através de uma formação continuada. E o segundo, que buscava construir a função do supervisor como elemento que cumpre um papel essencialmente educativo, tentando romper com visões que atribuíam aos supervisores funções de fiscalização, controle e repressão. b) Avali ação continuada A avaliação foi pensada como um processo investigativo, com a finalidade de sistematizar e fornecer, constantemente, elementos inovadores à ação desenvolvida. Assim, eram consideradas atividades de avaliação as assembéias comunitárias, os conselhos pedagógicos, os encontros semanais de supervisores e professores e os encontros dos coordenadores de área com a equipe técnica. Na verdade, esses fóruns se tornaram instrumentos de grande relevância para a avaliação do desenvolvimento 52 do Projeto. o processo de avaliação contou ainda com eventos construídos no decorrer do desenvolvimento dos trabalhos, eventos estes considerados por todos como privilegiados: as grandes Assembléias de Avaliação, que aconteciam ao término dos convênios. Tinham o objetivo de discutir o Projeto nos seus aspectos políticos, pedagógicos e administrativos, juntamente com alunos, professores, supervisores, assistentes administrativos, lideranças comunitárias, representantes das entidades que compunham o Projeto e os técnicos da Fundação Educar. Numa dessas assembléias, em 1988, estiveram presentes cerca de duas mil pessoas, reunidas durante todo um dia. A reunião era dividida, num primeiro momento, em grupos separados por categoria - professores, alunos, supervisores etc.; a seguir, realizava-se uma plenária com os diversos grupos anteriormente reunidos. Nessas assembléias, não só se avaliava o trabalho do ano anterior, como também se elaboravam propostas para o ano seguinte. c) Remuneração dos agentes educativos Na maIOna dos projetos sociais desenvolvidos pelo poder público ou com ele, percebia-se que as "comunidades" eram chamadas a participar com a sua força de trabalho de forma não remunerada, ou, no máximo, com pequenas "gratificações", isto é, através dos chamados "trabalhos voluntários", atualmente bastante criticados pelos próprios militantes dos movimentos. A equipe técnica se posicionava contra o trabalho voluntário, sobretudo por dois motivos: primeiramente, porque considerávamos inadmissível que o Estado, principal responsável pela situação de miséria que gerou milhões de analfabetos, convocasse a própria população que mais sofre com a pobreza para pagar esta 53 imensa dívida; em segundo lugar porque entendíamos que o trabalho dos educadores deve ser profissionalizado e não, como é muito comum, considerado como "missão" ou "doação". Nesse sentido, acreditávamos que das condições necessárias para uma ação educativa de sucesso deveria constar não só um salário justo, como também a responsabilidade do poder público com os encargos sociais vigentes na legislação trabalhista brasileira (CLT). Assim, todos os agentes do Projeto puderam optar por prestar serviços, com recebimento de salários e a garantia dos encargos sociais, através de recibos, ou pela chamada "carteira assinada". A entidade convenente assinava a carteira profissional do agente, com todos os direitos garantidos, como FGTS, INPS etc. Vale ressaltar que todos os recursos eram repassados pela Fundação Educar. Dos profissionais do Projeto, 80% optaram por ter suas carteiras assinadas. Sem dúvida, esta garantia gerou uma menor rotatividade dos profissionais e uma maior segurança dos mesmos, o que proporcionou um maior engajamento nos trabalhos, como também a profissionalização desses agentes Guntamente com outros fatores, como é o caso da capacitação em serviço). Optamos, ainda, por pagar pisos salariais maiores do que os pagos pelas secretarias municipais de educação dos municípios onde o trabalho foi desenvolvido. Isto porque gostaríamos de observar, na medida do possível, se o sério problema dos baixos salários estaria realmente relacionado ao fracasso das ações educativas. É óbvio que sabíamos que as questões salariais interferem profundamente no desempenho dos profissionais de educação; porém, gostaríamos de ir um pouco mais além, e tentar perceber os entraves na prática cotidiana, isto é, dentro de uma sala de aula de alfabetização de jovens e adultos. 54 Além dessas questões técnico-pedagógicas, a equipe técnica havia considerado falta de ética chegar à Baixada convocando voluntários, ou, ainda, oferecendo pequenas gratificações como benesse do poder público para aquelas populações, o que seria uma mera repetição da prática do extinto Mobral. Até porque vivia-se um outro momento político, no qual este tipo de prática seria, certamente, rechaçado de imediato pelas entidades envolvidas. Seguramente, a questão salarial gerou sensíveis problemas tanto para nós, da equipe técnica, dentro da própria Fundação Educar, como para as secretarias municipais de educação da Baixada. Primeiramente, porque a Fundação Educar pagava a todos os demais projetos conveniados pelo Brasil afora, um salário-mínimo para os professores neles participantes. No Projeto Baixada, o piso salarial do professor era de dois salários. Por outro lado, as secretarias de educação daquela região reclamaram, junto ao governo federal, que o Projeto aguçava o descontentamento dos professores da rede, gerando sérios problemas para seus dirigentes, que afirmavam não ter condições de elevar o nível salarial de seus profissionais. As informações entre os professores circulavam com relativa agilidade, já que diversos supervisores do Projeto eram também professores da rede pública. Assim, todos eram informados no que diz respeito aos salários e à formação em serviço dos educadores envolvidos no trabalho que desenvolvíamos. As conquistas relativas à questão salarial dos profissionais do Projeto geraram pressões de grupos da própria Fundação Educar, que exigiam ao seu fim. Porém, devido à mobilização das entidades da Baixada, essa pressão não foi suficiente para interromper nosso trabalho. Vale ressaltar que o Projeto sobreviveu a duas gestões dentro da Fundação Educar. A primeira, que tinha como Presidente o Professor Vicente Barretto, um liberal progressista colocado pela chamada "Nova República", 55 que apoiou a criação e todo o desenvolvimento do Projeto. A segunda gestão, profundamente diferente da primeira, cuja Presidente foi a Professora Leda Tajra, vinda diretamente do Maranhão para assumir o cargo, sem conhecimento da área de educação de jovens e adultos e sem a menor experiência na relacão com o movimento popular organizado. Sem dúvida, esta gestão trouxe grandes dificuldades para o Projeto, principalmente no que se referia à área financeira. Assim, pode-se sentir uma volta ao conservadorismo dentro da chamada Nova República. Outro problema interessante que o trabalho enfrentou foi a própria pressão de grupos do movimento popular da Baixada não participantes do Projeto, que encaravam esta prática como deformação do movimento e a chamavam de "Boca Rica". Através de uma análise mais aprofundada, pode-se perceber duas faces desta questão: por um lado, alguns grupos que faziam tais acusações estavam ligados a práticas clintelistas, além de se mostrarem descontentes por não participarem do Projeto, demonstrando, ainda, interesses no mínimo suspeitos em relação aos recursos financeiros. Por outro lado, havia ainda grupos ligados a facções mais extremadas dos partidos políticos de esquerda, que consideravam inadmissível que militantes de tais partidos desenvolvessem projetos juntamente com o poder público, pois esta prática estaria ferindo a ética partidária, entre outros princípios. Esta dualidade perdurou por todo o período de realização do Projeto, sendo motivo de várias discussões para todos aqueles que dele participavam. 4.4.1 Princípios básicos Os objetivos e conteúdos do Projeto de Educação Básica para a Baixada Fluminense previam o cumprimento de três etapas. A primeira corresponderia à fase da 56 alfabetização. A segunda representaria a consolidação do trabalho de alfabetização e a iniciação às noções sistematizadas de Estudos Sociais e Ciências Naturais. A terceira etapa, finalmente, visaria à conclusão das quatro primeiras séries do primeiro grau, quando o aluno receberia um certificado de conclusão, permitindo a continuidade de seus estudos no segundo segmento do primeiro grau (quinta a oitava séries). Todas as fases do Projeto realizavam-se com uma carga horária mínima de 1.200 horas, com aproximadamente 400 horas para cada etapa. Ao aluno seria permitida a interrupção ou o retorno ao curso, caso assim fosse desejado, mediante avaliação de seus conhecimentos, sendo levados em consideração os objetivos de cada etapa. A proposta pedagógica fundamentou-se em alguns princípios que nortearam toda a metodologia do trabalho. o primeiro princípio foi a necessidade de se considerar o trabalho pedagógico como PROCESSO. Daí decorre uma ação que tenta sempre integrar teoria e prática, entendendo que o cotidiano em sala de aula deve se converter em temas de reflexão da equipe pedagógica. Assim, a partir da observação das classes, questões quanto ao conteúdo, métodos e técnicas eram detectadas, sistematizadas e devolvidas à sala de aula, já com outra qualidade, resultado de um trabalho coletivo de produção de um novo conhecimento. A principal característica dessa espécie de trabalho pedagógico é a seguinte: no decorrer da ação, problemas surgem, são enfrentados e suas soluções ou tentativas de soluções são incorporadas à prática pedagógica. Assim, na continuidade, novos desafios são lançados e de novo outros problemas vão surgindo, formando um ciclo dinâmico que pode possibilitar um enriquecimento do processo educativo. Vale ressaltar que não apresentamos uma proposta pronta e acabada, imutável, 57 porque a experiência anterior nos havia apontado que este tipo de prática não seria coerente com uma educação democrática, ao contrário, a proposta foi sendo construída no decorrer da ação. o segundo princípio foi a decisão de considerar a íntima ligação entre conteúdo e método. Apesar disso parecer óbvio, na maior parte das vezes essas questões costumam ser trabalhadas de forma fragmentada. Para o Projeto, trabalhar conteúdo e método signicava o reconhecimento de que se aprende mais e melhor conforme a metodologia utilizada, isto é, a qualidade da aprendizagem está relacionada com a forma de se ensinar. Por coerência com esses princípios, priorizamos uma metodologia que enfatizava a compreensão, o raciocínio lógico, a criação e a criatividade, nas quais o mote seria a realidade de vida do aluno (a vala aberta, a dengue, a violência, o namoro, o funk, o samba, enfim, as alegrias e lutas daquela população) e os temas contemporâneos (a constituinte, eleições diretas, a mídia, a questão ecológica etc.). O trabalho deveria ser feito no sentido de promover um aprendizado que facilitasse ao aluno um acesso progressivamente mais autonomo ao conhecimento socialmente acumulado. Para tanto, vimos como elementos fundamentais o domínio da leitura, escrita e cálculos, condições consideradas essenciais para o pleno exercício da cidadania, postura que cada vez mais confirmamos face a valorização dessas questões por parte dos coordenadores, supervisores, professores e alunos participantes do Projeto. O terceiro princípio foi o da participação e descentralização. Optou-se, então, pela construção do Projeto com todos os que participavam do processo, tentando obviamente não cair em clichês ingênuos e ultrapassados, tais como: "todos sabem tudo ", 11 todos fazem tudo ", 11 somos todos iguais 11 e 11 aqui não existe diferença ". Na verdade, estes clichês tentam ocultar as diferenças existentes neste tipo de relação e que, conscientemente ou não, anestesiam as tensões. Porém, mais cedo ou mais 58 tarde, a população percebe que as diferenças existem e que os que vêm de fora são "estrangeiros", com outra formação cultural, de outras classes sociais, diferenças estas que se explicitam através do modo de falar, das roupas etc. Na verdade, o essencialmente educativo nesse processo de interação é admitir e assumir as diferenças e tentar transformar as relações a partir dessas diferenças, num esforço de contribuir para a construção de relações que se expressem com maior autenticidade (Essas constatações foram possíveis devido a críticas a experiências anteriores, que nos fez rever certas práticas recorrentes na educação popular, que ao nosso ver em nada contribuíam para a realização de um trabalho baseado na busca do conhecimento, como por exemplo o agente externo mudar sua forma de ser para ficar "parecido" com os alunos pobres). Assim, nós da equipe técnica tentamos apresentar alguns referenciais para discussão com a nossa e com outras visões sobre determinados aspectos e propostas, com o objetivo de facilitar um espaço de criação, onde as entidades e agentes educativos elaborassem suas propostas de acordo com sua realidade. Por este motivo, em essência, o Projeto Baixada transformou-se em vários projetos, tomando formas e perfis conforme o grupo que o recriava. No desenrolar dos trabalhos, ficava explícito que possuíamos mais conhecimento acumulado na área pedagógica do que nossos parceiros dos movimentos populares. Observamos, também, que eles tinham consciência disto e esperavam uma atitude pertinente com esse fato. Assim, assumimos essa diferença tanto discutindo como também através de práticas concretas, como por exemplo, a decisão de levarmos para os grupos uma proposta básica com prínclplos e referenciais, os quais explicitavam nossa concepção de educação. Desta forma, apresentamos aos grupos, entre outros que não foram registrados formalmente, os seguintes referenciais básicos: a) objetivos e conteúdos mínimos para cada etapa, ou seja, proposta curricular a ser retrabalhada e adaptada conforme as necessidades e avanços de cada grupo, no que 59 se refere às suas concepções de educação; b) uma metodologia que estimulasse a criatividade, a reflexão, a criação e o raciocínio lógico, isto é, um método de alfabetização analítico. Considerávamos que este tipo de método facilitava a proposta do Projeto, pois priorizava a aprendizagem com significado, aproximando o processo de alfabetização da vida de cada um, e não apenas valendo-se de memorizações mecânicas (vale ressaltar que a experiência em sala de aula nos mostrou a impossibilidade de descartar alguns processos de repetição, e por conseguinte de memorização. Isto significa dizer que este aspecto, embora secundário, está presente em qualquer processo de alfabetização. Também percebemos que a repetição ou memorização é parte do trabalho pedagógico quando este processo está repleto de significado, ou seja, quando se constitui uma história de sentidos para o aluno). c) por último, a valorização da relação educando/educador, cognoscente/cognoscível. Segundo a concepção construída pelo educador Paulo Freire, esta relação se explicita da seguinte maneira: "Para mim, a educação, qualquer que seja ela, é sempre uma certa teoria do conhecimento posta em prática, o que coloca o problema de perguntar o que é conhecer, como conhecer, em favor de quem, contra quem conhecer; favor do que, contra que conhecer. Nesta série de perguntas se revela a impossibilidade da neutralidade do ato de conhecer, portanto, da educação. Enquanto ato de conhecimento, a prática educativa tem necessariamente que implicar na existência de sujeitos que conhecem (cognoscentes) e de um objeto cognoscível (que pode ser conhecido). Esses sujeitos que podem conhecer e que querem conhecer são exatamente o educador de um lado, e o educando do outro. Ora, isso elimina a possibilidade de anulação completa do educador. E evita também que se caia na exageração, por exemplo, de uma auto-educação exclusiva. Reduzir toda a educação a uma auto-educação significa demitir totalmente do processo educativo, do processo de conhecimento, a figura do educador. Para mim, não; para mim o educador, enquanto um dos sujeitos que conhecem, é indispensável à prática pedagógica, que só se completa, contudo, na medida em que tem, do outro lado, o outro sujeito do conhecimento, que é o educando." 60 4.4.2 A alfabetização No início, a opção foi pelo método da palavração tanto por parecer compatível com a proposta pedagógica do Projeto, como também porque parte dos professores e supervisores identificavam a concepção de alfabetização do Professor Paulo Freire com este método. Assim, foi possível verificar que o trabalho a partir das palavras geradoras, realmente facilitava um ensino mais "engajado", uma sala de aula mais dinâmica e um processo de reconstrução do conhecimento com significado para os alunos. Dessa forma, pode-se afirmar que o sucesso da ação deveu-se em parte, à própria pré-disposição dos agentes educativos com o que consideravam "lições de Paulo Freire". A seleção das palavras obedecia basicamente aos critérios de dificuldade e de motivação, ou seja, uma certa organização que considerava as dificuldades morfológicas das palavras e o fato de serem significativas para os alunos. A priori, decidiu-se que as palavras seriam escolhidas por cada classe, sempre pelos alunos e professores, porque esta norma parecia ser, em princípio, mais democrático. Assim, no início do Projeto, um dos grupos trabalhou com as seguintes palavras, entre outras: vida, povo, vala, namoro, festa, violência, batucada, constituinte. Já outro grupo elegeu as palavras: vida, povo, luta, favela, saúde, passado, pagode. As palavras geradoras serviam ainda, de fio condutor {eixo temático}, para os outros campos do conhecimento, como a matemática, estudos sociais e ciências naturais. No segundo ano do Projeto, pode-se perceber uma recorrência nas palavras. Desta forma, após o acompanhamento e a discussão com os diversos grupos, constatou-se que a participação dos alunos na escolha das palavras era puramente formal e indutiva. Na verdade, os professores elegiam as palavras com o seu grupo de professores e o supervisor,através de discussões que variavam entre a dificuladade 61 linguística de cada palavra e o seu significado na vida daqueles alunos. Essa prática, deliberada e autonoma dos professores nos fez refletir sobre a suposta escolha "democrática" das palavras feita pelos alunos. Nesse sentido, percebeu-se que o professorado se sentia bem mais seguro no trabalho, quando compartilhava o processo de construção com seus parceiros. Isto não quer dizer que a participação dos alunos não fosse fundamental; ao contrário, ela é muito importante. Mas o que sentimos com a experiência, foi a necessidade de um processo de envolvimento, confiança e conhecimento entre a classe e o professor, além de muita sensibilidade e formação apropriadas do professor, para que a relação democrática fosse estabelecida em bases sólidas, e não um exercício formal de escolha de palavras geradoras. A prática foi mostrando que, a partir da terceira ou quarta palavra geradora, alunos que entraram na classe, e haviam iniciado apenas com noções primárias (reconhecer o número do ônibus do seu bairrro; reconhecer letras do seu nome ou do nome dos filhos; reconhecer palavras de rótulos com produtos habitualmente utilizados no seu cotidiano, como Coca-Cola, Bom-Bril etc.; reconhecer palavras que são expostas com freqüência através da mídia, como TV GLOBO, SBT, FANTÁSTICO etc.), já conseguiam, através da ajuda do professor, escrever e ler textos curtos, como o que veremos a segUIr: "O povo sempre luta Luta contra a vala E festa o povo tem? Tem luta e tem festa Na Vila Vintém." (Texto produzido por professor e alunos do Bar dos Cavaleiros). 62 Aliás, uma das atividades bastante exploradas pelos professores era a escrita espontânea, individual ou coletiva, como, por exemplo, a elaboraçâo de cartas, poemas, notícias de jornal (do bairro, da igreja) etc. (se tivéssemos optado por fazer um estudo analítico das representações, sem dúvida, o material escrito elaborado por alunos e professores seria extremamente relevante para se tentar compreender melhor o universo cultural daquela população). "É bom ser gostado Ter um amor que goste da gente E faça a gente ficar muito feliz." (Texto produzido pelos alunos da Associação de Moradores do Jardim Tropical em Nova Iguaçu - filiada ao MAB) "Paulo leva sua vida Ele é deputado Seu medo é pelo voto Paulo vai ser eleito?"(Texto produzido pelos alunos do Centro de Integração da Taquara - Duque de Caxias) Dentre as atividades que mais motivaram os professores, pode-se ressaltar a elaboração de apostilas com textos criados por alunos e professores, que eram utilizadas como material complementar para os próprios alunos. "Hoje é o primeiro dia de trabalho de Pedro. Ele acordou alegre, disposto e foi pegar o trem. Ele viajou em pé num trem lotado durante uma hora. Pedro estava cansado antes de começar a trabalhar." (Extraído do "Livro de Textos", elaborado por alunos, professores e supervisores da Cáritas Diocesana de Nova Iguaçu) "Felipe viu Fátima no baile Funk. A galera disse que Felipe estava querendo ficar com ela. Eles dançaram juntos o meIa cueca. No final, Fátima pulou fora e foi ficar com uma rapaziada de outra galera. Felipe se deu mal e ficou três sábados sem ir ao baile." (Texto produzido pelos alunos da Associação de Moradores do Jardim Primavera - MUB) Os textos eram sempre revisados e corrigidos por professores e supervisores. 63 o fato de todos os parceiros que compunham o Projeto optarem por trabalhar sem cartilhas, estimulou a equipe pedagógica e os supervisores a buscar materiais alternativos, tais como jogos, jornais, revistas, convocatórias de associações de moradores, propagandas das festas comunitárias, textos da Bíblia Uá que uma parcela dos alunos pertencia à Assembléia de Deus e a outras religiões pentecostais), músicas de interesse dos jovens (como o RAP e o Funk) etc. No decorrer do trabalho observamos que para muitos alunos esta foi a primeira possibilidade de contato com um jornal, no sentido da leitura: "A revista eu folheio de vez em quando no meu vizinho que sempre compra. Jornal lá em casa nunca teve, também meu pai e minha mãe não sabem ler, e meus irmãos, só o Deco sabe um pouco." (Jorge Oliveira, aluno da Classe da Associação de Moradores do Parque Alian, 22 anos, biscateiro) "Na roça não tinha jornal, só conheci jornal aqui no Rio. Meu dinheiro não dá pra comprar e também eu não me interressava muito. Na casa que eu trabalho sempre tem. Agora aqui na escola é que eu estou gostando de saber ler jornal. A gente se sente mais importante." (Maria Bernardete, aluna da Classe da Associação de Moradores do Canal Meriti em São João de Meriti, 31 anos, empregada doméstica) Esta realidade é fruto da situação de exclusão social que vivem os alunos jovens e adultos que não possuem o domínio da leitura e da escrita. Suas histórias de vida caracterizam-se, na grande maioria, por terem pais que também são analfabetos e por trabalharem por salários miseráveis. Certamente que, em condições como estas, o jornal, além de não ser parte do seu contexto cultural, passa a ser considerado supérfluo. Porém, na sala de aula, também usávamos o jornal em outras situações, como o recorte para a formação de palavras, frases, textos e construção de colagens, no sentido de estimular o contato com as artes plásticas (é interessante registrar que os alunos e professores se surprendiam e se mobilizavam com as reproduções, fotos, 64 livros, etc que apresentávamos ao grupo, mostrando obras de artes como, por exemplo, trabalhos construídos com material de sucata, material reciclado, árvores queimadas e outros, na tentativa de estimular reflexões sobre como o que é produzido pelo homem, ou o que faz parte da natureza pode ser retrabalhado, reinventado e assumir novos valores sociais a partir da própria intervenção do homem. Por outro lado, era uma forma de levar informações relativas à arte, recuperando também o que era produzido naquela região em termos de arte popular). Outro ponto privilegiado no trabalho pedagógico referia-se ao debate em sala de aula, que, em nosso entender, seria um instrumento facilitador no incentivo à linguagem oral, à reflexão e à argumentação. Sem dúvida, nas sociedades contemporâneas, o peso da palavra dita é um forte elemento de poder e dominação; assim, este espaço deveria ser supervalorizado no trabalho cotidiano do professor. Este debate deveria transcorrer normalmente, seja na apresentação da palavra geradora, na contextualização de novas palavras formadas, ou ainda na discussão de notícias de jornais, revistas, rádio, TV, entre outros. Na verdade, percebemos que parte significativa dos professores, por falta de informações em determinados assuntos, pela própria formação cultural, por limitações de linguagem, por falta de prática na discussão, ou ainda pela dificuldade de utilização livre da palavra dita, transformava a discussão em momentos formais, mecânicos, isto é, reproduções das formas conservadoras da relação professor/aluno. Por outro lado, apesar de os professores terem consciência de que a discussão em sala de aula não estava fluindo normalmente, sentiam-se constrangidos em assumir estas dificuldades, pois percebiam que a maioria dos participantes do Projeto (as lideranças comunitárias, representantes das federações de moradores, militantes do 65 movimento - entre estes, vários supervisores do Projeto - e a equipe técnica) utilizavam com relativo domínio a palavra dita, argumentando, polemizando. O que deveria ser um estímulo a expressão, em alguma medida, estava calando o professor. No terceiro ano de Projeto, já tínhamos bastante clara esta questão. A partir daí, passamos a promover várias discussões com todos os participantes, com o propósito de refletir sobre esse problema. Não somos ingênuos ao ponto de afirmar que através das discussões tenhamos conseguido grandes avanços; esta questão sobreviveu ao longo de toda a trajetória do Projeto. O que constatamos é que alguns professores começaram a manejar com categorias presentes no discurso considerado politizado, porém sem compreender o significado deste discurso. Isto, conseqüentemente, gerava discursos vazios e sem sentido, o que acarretava relativa confusão, principalmente para os alunos (alguns professores e/ou supervisores substituíam palavras consideradas pelo discurso dito "engajado" como equivocadas, por aquelas consideradas como "politicamente corretas"). Na prática, os supervisores pedagógicos procuraram apoiar os professores através de acompanhamentos mais regulares, com farto material de apoio, promovendo discussões sobre diversos temas, e ainda levando esses professores a outras atividades, tais como cinema, debates, vídeos, apresentações de outras experiências, universidades, contato com educadores de várias entidades etc. Por outro lado, encontramos alguns professores que, por sérias deficiências quanto aos conteúdos pedagógicos, incentivavam tanto e tão somente os debates, o que causava muitas reclamações dos alunos e até falta de motivação para a aula, já que, afinal, subestimava-se assim a necessidade dos alunos de desenvolverem atividades relacionadas com a alfabetização propriamente dita. Observamos, ainda, que a maioria dos professores com essa prática coincidia com os considerados mais "engajados" ou "militantes". 66 "Tudo bem, nós queremos saber das coisas que estão acontecendo aqui no bairro e até no mundo, mas precisamos aprender a ler, se não sempre alguém vai ler pela gente." (Creusa Maria, aluna da classe do MAB, 23 anos, desempregada). Outra constatação que a prática nos permitiu, foi o interesse dos alunos pela aprendizagem através de jogos. Em nossas visitas às salas de aula, verificamos como o lúdico, mesmo com adultos, pode ser um elemento facilitador no processo de aprendizagem. Nesse sentido, observando a receptividade em classe, incentivamos a utilização de vários jogos em todas as etapas e, inclusive, em todos os campos de conhecimento. Os preferidos dos alunos eram jogos onde toda a turma participava, como víspora, jogo de caminho, dominó e outros inventados pelo próprio grupo. 4.4.3 Material didático O material didático produzido pelos diversos grupos foi considerado, por nós, uma fonte importante para a reflexão sobre os desejos e anseios de educadores e educandos da Baixada Fluminense. Foram cartilhas, textos, boletins e outros instrumentais elaborados sempre coletivamente. A avaliação feita sobre este processo foi a de que os professores que maIS avançaram, e que também conseguiram melhores performances dos alunos, foram aqueles que elaboraram seus próprios materiais, deixando os livros didáticos mais como apoio e não como o único elemento "salvador" do processo de alfabetização. 67 Consideramos que este fato deve-se à necessidade que o professor produtor tem em conhecer mais profundamente as metodologias, conteúdos, concepções, organização etc. Isto leva a um processo de qualificação, tornando o ato de construção dos materiais pelos agentes educativos num ato, principalmente, de formação. O objetivo não deve ser a construção de materiais apenas porque isto é considerado "moderno", mas sim pela perspectiva de formação dos agentes e, em alguns casos, até dos alunos. As cartilhas de apoio para o professorado eram as da Fundação Educar e aquelas produzidas pelo CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação - SP) para a utilização no Projeto Seringueiro (cadernos do CEDI, vide bibliografia). 4.4.4 Formação e acompanhamento A concepção metodológica do Projeto levou à criação de mecamsmos de acompanhamento e avaliação onde todos participavam, facilitando o estabelecimento de um processo democrático. Além disso, a definição de competências e atribuições, tanto da instituição governamental, através da equipe técnica, quanto das entidades não-governamentais, garantiu que os papéis de cada interveniente fossem tão transparentes quanto possível. Numa divisão mais formal, poderíamos dizer que coube às entidades da Baixada o controle político da ação educativa e aos técnicos o assessoramento pedagógico e administrativo dessa ação. Entre os mecanismos e instrumentos criados, destacaram-se: a) Encontros semanais por entidade. O acompanhamento foi organizado por pólos. Em Nova Iguaçu foram montados dois, o da Cáritas Diocesana e o do MAB; em Duque de Caxias, três pólos: MUB, Bar dos Cavaleiros e Taquara; em São João de Meriti, o pólo do Canal do Meriti. Cada pólo realizava seu encontro semanal dedicado a discussões políticas, administrativas e pedagógicas. Participavam desses 68 encontros o técnico da Educar encarregado pelo pólo, os supervisores pedagógicos, os assistentes administrativos e o coordenador de área. b) Encontros quinzenais na Baixada, quando se reuniam todos os superVIsores pedagógicos com especialistas de diversas áreas da educação. Nessas oportunidades, eram aprofundadas questões de natureza tanto didático-pedagógica, como outras de caráter mais abrangente, tais como o papel da supervisão na educação de adultos, a função social da alfabetização etc. c) Encontros quinzenais na Fundação Educar. Nessas ocasiões, eram desenvolvidos dois tipos de atividades: algumas de caráter administrativo, da qual participavam todos os assistentes administrativos juntamente com os técnicos da Fundação responsáveis pela área, e outras de cunho político-pedagógico, quando se reuniam todos os coordenadores de área com o grupo técnico da instituição. d) Assembléias comunitárias esporádicas, onde eram privilegiadas a análise, reflexão, avaliação e construção de novas propostas sobre os aspectos políticopedagógicos e gerências do Projeto. Delas participavam todos os integrantes. e) Conselhos pedagógicos trimestrais, criados para acompanhar o desenvolvimento dos alunos, o desempenho dos professores e supervisores, a mediação do coordenador de área e a assessoria técnica dos educadores da Fundação Educar. Participavam dessas reuniões o técnico da instituição responsável por aquele pólo, o supervisor com seu grupo de professores e, ainda, o coordenador de área. f) Conselhos deliberativos esporádicos. Até o primeiro e o segundo anos do Projeto, não ficava claro a quem cabia a responsabilidade por problemas de difícil resolução; a partir do terceiro ano, foram criados esses conselhos que, reunindo representantes da Educar, da entidade onde era detectado o problema, um representante dos 69 professores, um dos supervisores e um dos alunos, tentavam solucionar essas questões. Esses conselhos deliberativos foram criados porque, muitas vezes, problemas comportamentais tanto dos alunos -uso de drogas, agressão aos professores etc-, quanto dos professores e supervisores- ausências prolongadas e sistemáticas, faltas significativas nos encontros de capacitação, divergências acirradas com a proposta educativa do Projeto- arrastavam-se por muito tempo, já que as entidades participantes ou sentiam-se sem competência para decidir essas questões isoladamente, ou exacerbavam seu poder, demitindo e admitindo professores e supervisores sumariamente. Assim, a criação de tais conselhos veio responder à necessidade da existência de mecanismos muitas vezes punitivos, mas que, integrados a concepções democráticas que recomendam a coletivização das decisões, impediam a adoção de medidas parciais, traduzidas pelo exercício arbitrário de "poderes locais" e/ou intervenções demasiado autoritárias da instituição financiadora. Particularmente, acreditamos que tal medida teve grande peso no sentido de impedir que as diversas gestões da Fundação Educar interviessem diretamente nas questões de campo do Projeto. g) Visitas semanais dos supervisores e coordenadores às salas de aula. Os primeiros visitavam todas as classes sob sua responsabilidade, escolhendo ainda um dia para se reunirem com os professores, fora do horário de aula, para o planejamento das atividades semanais e construção do material didático e de apoio. Os coordenadores de área selecionavam dois dias da semana para a visita a várias classes, de forma a garantir que cada classe de seu pólo fosse por eles visitada pelo menos uma vez por mês. h) Visitas da equipe técnica da Fundação Educar às salas de aula. Devido ao grande número de classes existentes, era inviável a visita mensal dos 10 técnicos da instituição a todas as classes. Desta forma, a partir dos relatórios dos supervisores, optava-se pela visita àquelas apontadas por eles como mais problemáticas na área 70 pedagógica. Cabe ressaltar que essas visitas, apesar de muito esperadas por professores e alunos, que se sentiam prestigiados, despertavam uma certa inquietação nos professores, por temerem algum tipo de fiscalização, já que associavam esta atividade aos métodos tradicionais de acompanhamento. Com o tempo, esta situação foi sendo minimizada, devido ao estabelecimento de laços de maior confiança, através de uma relação mais direta e regular. 4.4.5 Avaliação Além desses mecamsmos gerais e específicos de acompanhamento, o Projeto contava com alguns instrumentos de avaliação que permitiam a sistematização de dados considerados essenciais para o planejamento da ação educativa. Entre eles, destacam-se os seguintes: • fichas de caracterização do aluno, que forneciam dados sobre a idade, o sexo, origem, motivo de inserção no Projeto e bagagem escolar anterior; • fichas de observação das atividades desenvolvidas pelo professor, que continham detalhes sobre sua prática em sala de aula, como, por exemplo, os conteúdos ensinados, formas de ensinar, participação dos alunos etc. o desenvolvimento do aluno era avaliado através de aspectos tais como aquisição de conteúdos (rendimento), participação nos trabalhos em grupo e em debates etc. Vários instrumentos eram utilizados nessas avaliações, sendo mais recorrentes os testes e as fichas de observação. No início de cada etapa, os professores aplicavam testes para diagnosticar o nível de conhecimento de cada aluno, com o propósito de organizar uma ou várias classes, conforme a possibilidade de cada local. Tentava-se, ainda, agrupar os alunos segundo o grau de conhecimento escolar de cada um. 71 Em algumas localidades, devido a problemas de espaço, horário, número de alunos, dificuldade no recrutamento do professor, entre outros, a heterogeneidade dos alunos conduzia à formação de classes multisseriadas. É importante destacar que a realidade das classes era de alunos heterogêneos, quanto ao nível de aprendizagem. Assim foi necessário criar alternativas para o trabalho em sala de aula, como por exemplo, divisão do quadro negro, atendimento individual, trabalhos diferenciados etc. Ao final do primeiro ano do Projeto, os professores e supervisores formularam sérias críticas às provas finais, que eram elaboradas por eles em conjunto com os técnicos da Educar. Os professores, em especial, defendiam autonomia em sua elaboração, argumentando ser aquela uma prática autoritária, já que eram eles os principais conhecedores da realidade de suas classes. "As provas que deveriam identificar o estágio dos alunos e reformular a capacitação, cumpriram outro objetivo de avaliação. Foi um instrumento formal. Na verdade, houve um corte metodológico no encaminhamento do Projeto." (Conceição, professora do MAB, 2º Encontro Final de Avaliação, fev/87). "A prova não é um instrumento coerente com a metodologia do projeto. Temos que sentar e criar outros instrumentos mais adequados. Acho que deveríamos fazer prova apenas para os alunos que vão para a rede formal após a terceira etapa." (Artur, supervisor pedagógico da Caritas Diocesana, idem). Desta forma, a partir do segundo ano, ficou sob a responsabilidade exclusiva de cada professor a produção de suas respectivas provas, com assessoria dos supervisores e da equipe técnica da Fundação, se solicitada. As provas tornaram-se ainda, do ponto de vista pedagógico, uma das questões mais polêmicas do Projeto, sendo que, até o seu término, não se conseguiu chegar a um 72 consenso a esse respeito. Acreditamos que essa polêmica tenha se criado devido à preocupação dos participantes de não colocarem os alunos em esquemas tradicionais e, muitas vezes, considerados limitadores do desenvolvimento intelectual. Na prática, o que foi constatado é que na medida que os professores conheciam mais profundamente seus alunos, diminuía sensivelmente a necessidade de provas e testes. Entretanto, existia uma reivindicação dos alunos no sentido de serem submetidos a provas e testes, já que estes são instrumentos reconhecidos e legitimados pelo espaço escolar. Assim, chegou-se ao fim do Projeto com práticas diferenciadas, ou seja, em algumas classes foram abolidas as provas e em outras, não. 4.4.6 Troca de experiências No que diz respeito à formação dos agentes educativos fora da sistemática do Projeto (encontros, capacitações e outras modalidades de formação em serviço), a estratégia utilizada, coerente com a metodologia proposta, priorizou a relação com outros grupos de educadores e experiências na área da educação de jovens e adultos fora do Projeto Baixada. Foi também incentivado o intercâmbio com projetos desenvolvidos em outras regiões do Brasil e, em alguns casos, com experiências estrangeiras. A partir dessas trocas de experiências, foram estabelecidos estreitos relacionamentos com outros educadores, que renderam excelentes consultorias ao Projeto, realizadas na forma de vários Encontros de Formação na Baixada. Entre elas, podemos destacar as realizadas pelo Grupo Veredas e pela equipe de educação de adultos do CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), ambos de São Paulo. Estas consultorias, ao abordarem questões específicas da alfabetização, priorizaram a desmitificação do chamado método Paulo Freire, através da discussão da própria concepção filosófica que permeia o pensamento deste educador. 73 Porém, o evento de maior repercussão do trabalho foi, sem dúvida, a presença do próprio professor Paulo Freire, que esteve nas salas de aula junto com professores e alunos, discutindo suas idéias e estimulando a participação de todos. A visita do educador, financiada pela UNICEF, resultou em um grande encontro em outubro de 1988, na Igreja Sagrado Coração de Jesus, no Parque Araruama, em São João de Meriti. Nesta oportunidade, foi discutido, por mais de 1000 educadores da Baixada Fluminense, o tema "A questão da educação popular". As relações estabelecidas fora da rotina do Projeto possibilitaram aos professores viajar no que chamamos, na ocasião, de "caravanas de trocas de experiências". Assim, puderam conhecer projetos desenvolvidos na periferia de São Paulo, Espírito Santo, Brasília, Minas Gerais etc. Através de convites de órgãos internacionais, alguns professores, selecionados pelo grupo, tiveram também a oportunidade de visitar experiências desenvolvidas no Chile e em Honduras. Em contraponto, recebemos também educadores populares e delegações da Nicarágua, Moçambique, Chile, Honduras, Angola, Suécia, México, OREALC, UNESCO, UNICEF e CEALC. Sem dúvida, esse intercâmbio contribuiu significativamente para uma maIOr qualificação dos agentes participantes do Projeto. A cada vivência desta natureza, podia-se observar uma mudança qualitativa na prática educativa que desenvolviam, traduzida tanto por um maior comprometimento com o trabalho, como também por um maior interesse em sua própria qualificação profissional, cuja finalidade era a de poderem participar mais efetivamente dos novos espaços que se abriam. 74 5 LIMITES E POSSIBILIDADES DE UM TRABALHO POLÍTICOPEDAGÓGICO "Nós mesmos lhes apresentaremos nossas descobertas, nossas ousadias, as possibilidades que pressentimos, nossas dúvidas e temores, mas também e sobretudo um vasto terreno de experiência. Pois, em última análise, nào será a teoria o nosso triunfo, e sim sua verificaçào prática." (Célestin Freinet) Como já vimos anteriormente, o Projeto Baixada teve como uma de suas principais características a relação do poder público (Fundação Educar/MEC) com os grupos organizados representativos do movimento popular da Baixada Fluminense. Essa complexa relação possibilitou práticas e reflexões completamente novas, tanto para os grupos populares como para os educadores da Educar. Com o objetivo de sistematizar essa discussão, apresentaremos, a seguir, as questões mais polêmicas surgidas no decorrer do Projeto, através do relato das falas de alguns de seus participantes - lideranças comunitárias, supervisores pedagógicos, assistentes administrativos, professores e alunos - nos diversos níveis do trabalho. Com tais depoimentos, registrados ao longo do desenvolvimento do Projeto, temos por meta trazer ao conhecimento um pouco maIS o que pensam educandos/educadores que se engajam nesse tipo de experiência. Cabe frisar que algumas dessas falas não foram relacionadas ao nome de quem as disse, por tratarem-se de questões delicadas que poderiam gerar sérios problemas para lideranças da Baixada, principalmente de ordem política. Vale ainda ressaltar que os discursos dos participantes devem ser interpretados como 75 falas plurais, mediados por uma infinidade de discursos que, por sua vez, também nos remetem a tantos outros discursos. Enfim, consideramos que as falas dos participantes devem ser socializadas, "C .. ) porque não basta que haja espaços públicos onde todos possam falar. É preciso também que a fala lúcida, consciente, seja um bem público" (Oliveira, p. 122). 5.1 Papel do Estado Entre as lideranças comunitárias, existe quase que unanimidade em considerar a educação um dever do Estado. Porém, como este não dá solução para a questão, os movimentos populares se sentem obrigados a dar algum tipo de resposta, conforme podemos observar através dos seguintes depoimentos: "Sem dúvida, a educação é um dever do Estado e estamos aqui emergencialmente." (Artur, coordenador de área da Cáritas Diocesana). "A educação de adultos é de responsabilidade do poder público, porque se hoje o aluno é analfabeto é porque ele não teve escola quando era pequeno." (Dilcéia, coordenadora de área do MAB). Outros participantes consideram que seu papel deve terminar quando o Estado responder de forma a atender os interesses das classes populares. "O Projeto deve ter início, meio e fim, se não a gente fica fazendo o trabalho do poder público e abandona as lutas do movimento."(Josinaldo, supervisor do MUB). No que diz respeito à experiência do movimento popular em administrar projetos na área social financiados pelos órgãos governamentais, encontramos o seguinte depoimento: 76 "É um desafio para nós. A gente podia selecionar as professoras chegadas a nós por questões partidárias, mas isso é clientelismo! Por afinidade, é clientelismo! Mas na medida que foi aberta a inscrição, que as pessoas vieram com os nomes, eu acredito que essa questão do clientelismo ficou à parte. Então eu acho que nós estamos começando a sair bem. No nosso caso, nós queremos que o movimento seja fortalecido com as pessoas que de fato trabalhem" (Simão, coordenador de área do Canal Meriti). A experiência nos leva a afirmar que os projetos geridos pelo poder público, por maior qualidade que tenham, esbarram sempre nos limites inerentes a qualquer trabalho de educação popular. Entre esses limites, podemos citar, por exemplo, o sério impasse que enfrentamos na relação com os sindicatos de professores, pois se por um lado estes são contrários a profissionalização de professores leigos, por outro são esses próprios professores que desejam e necessitam se constituir em categoria reconhecida e legalizada. Apesar de tudo, pode-se dizer que projetos como o que desenvolvemos contribuem para mexer, na prática, com o marasmo, conformismo e passividade característicos da maioria dos órgãos públicos, pois criam paradigmas que podem vir a gerar reflexões sobre a situação educacional e, conseqüentemente, ensejar até mesmo mudanças de posturas. Dessa maneira, consideramos que o ideal seria que tais práticas, depois de avalidas e consideradas pertinentes, fossem absorvidas por outras instâncias públicas, como as secretarias estaduais e municipais de educação, por exemplo. No entanto, sabemos que este procedimento está infelizmente longe de efetivar-se, já que as estruturas das secretarias de educação, de um modo geral, resistem muito em pelo menos atentar para experiências organizadas no âmbito dos movimentos sociais. 77 5.2 Trabalho voluntário Nota-se que as lideranças mais avançadas da sociedade civil organizada criticam a utilização do trabalho voluntário, principalmente quando proposto por órgãos governamentais; no MAB, encontramos os seguintes depoimentos: "Até três, quatro anos passados eu achava que esse voluntariado era uma coisa válida, mas na medida que eu tõ chegando à conclusão de que hoje a comunidade dá tudo de si, por que não valorizar o trabalho desse voluntariado? Por que não pagar também esse voluntariado? Inclusive porque ele vai se sentir como gente e vai dizer "estou sendo respeitado". Então, . esse trabalho, que hoje tá pagando ainda que dois saláriosmínimos (na verdade, muito pouco, aquém das condições) mas já está valorizando alguém que tá trabalhando, que antes não era valorizado. Então, essa pessoa que tá recebendo pode questionar e ser questionada. Esse negócio de voluntariado pode existir, mas numa emergência, não por muito tempo, se não tá se explorando um ser humano." ("Seu" Bráulio, liderança do MAB). De nossa parte, acreditamos que a participação desses grupos em trabalhos voluntários pode passar tanto pela esperança de contratação pelo serviço público em um futuro próximo, j á que esse tipo de emprego é valorizado pelas camadas médias e populares da população, que lhe atribuem a possibilidade de estabilidade e ascensão, como também pela necessidade de contribuir na melhoria dos serviços que atingem sua comunidade, seus parentes e amigos. Cabe ressaltar que de início tínhamos uma visão extremamente rígida em relação ao trabalho voluntário, entendendo-o apenas como uma forma perversa do poder público explorar a população pobre. No entanto, embora tal exploração seja realmente característica do poder público, devendo ser rechaçada pelos movimentos populares, a experiência nos remeteu a outras leituras. Assim, percebemos que não podíamos simplesmente "proibir" ou "criticar" a prática de trabalhos considerados 78 voluntários, pOIS esta, muitas vezes, traduz uma necessidade das pessoas constituírem grupos, estando juntas, participando e contribuindo de alguma forma para a coletividade. Como exemplo dessa necessidade, podemos citar o empenho que observamos em alguns participantes em convocar vizinhos, familiares e amigos para construir carteiras, quadros negros etc., como ainda para organizar festas, confraternizações, entre outras atividades. Dessa forma, observamos que o problema está na introjeção acrítica de discursos absolutizantes e cheios de 11 verdades 11, que, muitas vezes, servem apenas para coibir o outro e suas formas de convivência, impondo procedimentos que silenciam e intimidam, afastando a possibilidade de outras leituras das práticas sociais. 5.3 Projetos alternativos Entre os depoimentos registrados, encontrou-se parcela significativa que considerava de extrema importância os projetos alternativos, já que estes trazem o novo e questionam os sistemas formais. 1I0S projetos alternativos rompem, inovam, são a consciência crítica dos modelos estabelecidos. 11 (Josinaldo, supervisor do MUB). 1I0S projetos alternativos eram considerados como casa da mãe Joana: cada um fazia o que queria. Como não eram avaliados, só se tinha preocupação com a militância. Essa experiência mostra justamente o contrário: os alunos entram na norma dos letrados, na norma culta pra ter mais força no seu nível de argumentação perante o status quo. Isso é conscientização. 11 (Aurelina, coordenadora de área). Além da análise feita anteriormente no item 11 Papel do Estado ll (5.1), pode-se acrescentar ainda, que muitos dos participantes iniciaram os trabalhos com práticas bastante influenciadas por visões que caracterizam os projetos alternativos como atividades de IImilitância ll político-partidária. No decorrer dos trabalhos, esta 79 concepção foi transformando-se e os participantes refletiram sobre a importância de não se aparelhar os projetos alternativos, mas de se realizar trabalhos sérios com competência, que sem dúvida trarão mais frutos para o movimento na medida que a população reconhece e legitima. 5.4 Educação de jovens e adultos Em relação à questão da educação de adultos, percebíamos que despertava enorme interesse entre os participantes dos movimentos sociais, em grande parte por acreditarem ser esse um espaço importante para a formação de uma consciência política. Sem dúvida, essas posturas eram influenciadas pelas idéias de educadores como o professor Paulo Freire, extremamente admirado por aqueles grupos, já que também a maioria das lideranças, coordenadores e supervisores eram originários da igreja católica e suas posturas eram bastante influenciadas por tal pensamento. "A alfabetização de adultos é muito importante, porque existem muitas pessoas que não tiveram oportunidade na vida por culpa do próprio sistema que exclui todos aqueles que são pobres." (Maria da Penha, professora da Taquara). "Na alfabetização de adultos, eu acho que é importante o processo de trabalhar em sala de aula em círculo e o processo de valorizar a palavra cultura, das pessoas terem acesso a todas as informações, de discutir, de dar opinião, ter direito de fazer o depoimento da sua vida. Então eu acho que esse é o caminho certo. Sem badalações, sem balizar o poder. Assim é que deve ser." (Sônia, professora do MUB). "Educação de adultos é mais um pouquinho. Um adulto educado é falar bem todos os problemas, discutir sobre Constituição e falar criticamente sobre todos os assuntos." (Lúcia, supervisora do Bar dos Cavaleiros). "Nós queremos que a alfabetização de adultos seja um importante instrumento para a compreensão da realidade e o engajamento cada vez maior do povo no movimento popular." (Zumba, presidente do MUB). "Eu vejo a educação de adultos assim como sendo uma troca de experiência, e o professor transmitindo para o aluno os seus 80 conhecimentos em termos de cultura." (Dilcéia, coordenadora do MUB). "O objetivo da educação de adultos é permitir ao adulto condições de leitura e escrita, e aí ele conhecer o mundo por si só." (Paulo, supervisor doMAB). "A questão da educação de adultos como educação popular é muito importante para o amadurecimento do povo sobre os seus problemas. Há dois anos atrás, nós nunca convocaríamos uma reunião sábado de manhã para discutir sobre isso, e cada vez mais o número de pessoas tem aumentado." (Artur, coordenador de área da Cáritas Diocesana). No que se refere à educação de jovens e adultos, se de um modo geral encontramos as secretarias municipais e estadual de educação, de um lado, secundarizando essa modalidade educativa pelos mais variados motivos (falta de recursos, dificuldades de organização das escolas noturnas - supletivos - pela inexistência de professores, falta de interesse político, difícil acesso etc.), por outro, pudemos sentir uma valorização da mesma pelos movimentos populares, que a consideravam instrumento fundamental para a tomada de consciência e conseqüente engajamento político. N a verdade, o que encontramos na Baixada Fluminense foi um retrato fiel da sociedade brasileira, composto por uma imensa população de jovens entre 15 e 25 anos que, já tendo passado pela escola quando crianças, desejavam a ela retornar por não possuírem o domínio básico da leitura e da escrita. Tal realidade, além de contradizer alguns educadores que afirmam ser a educação de adultos desprezível por atingir apenas a população de mais de 40 anos, com a qual não valeria a pena o governo desperdiçar recursos por já encontrar-se no auge de sua produtividade, nos leva a pensar na importância que tem o resgate de princípios humanitários na própria área da educação e o conseqüente expurgo de análises "economicamente corretas" que excluem, marginalizam e humilham de fato milhares de seres humanos. A vivência direta com os jovens analfabetos nos permitiu entender melhor o estigma 81 que carregam e enxergar que por trás de frias estatísticas que apontam mais de 30 milhões de analfabetos, existem Solanges, Luizes, Inás, Fernandas e Miguéis que namoram, dançam, têm famílias, relações e sentimentos. Isto é, que existem e devem ser respeitados como seres humanos que são. 5.5 Importância da alfabetização Em relação à alfabetização, percebe-se, através dos depoimentos, não existir, por parte das lideranças do movimento organizado, a expectativa de que ela contribua como meio de promoção econômica na vida da população. Porém, é vista como um elemento ligado à cidadania e ao direito do cidadão de saber ler e escrever, para que possa obter maior autonomia de circulação numa sociedade moderna. "Alfabetizar é uma coisa muito importante, porque se a gente quer realmente uma sociedade mais justa, tem que ser com homens que pensam, analisam. É claro, que a experiência do cara. Às vezes o cara é analfabeto e a experiência dele dá de mil em muitos doutores que estão por aí, isso é verdade. Mas eu acho que, se ele é analfabeto pode ser muito bom, mas a sociedade não reconhece, despreza ... ele não vai muito longe. Por isso que a alfabetização é importante, porque dá acesso a um mundo, mundo muito maior. O acesso à leitura ajuda muito." (Zumba, presidente do MUB). "O analfabeto pode vir somar, porque ele vai aprender mais, vai começar a raciocinar melhor, a discernir melhor as questões. É bom que ele aprenda a ler por isso. Nào que ele vá influir em grandes coisas, mas é uma vantagem pra ele, pessoal principalmente. Ele vai se tornar gente igual a mim, a você ... mercado de trabalho acho que não interfere, não, porque tem muita gente com curso, desempregado." (Gélson, supervisor do MUB). "O sujeito que sabe ler e escrever é importante porque ele pode ler ele próprio, vai tirar o raciocínio dele. Pode ler um programa de um partido político, um jornal." (Maria de Fátima, professora do Bar dos Cavaleiros). 82 "Acho que nós estamos dando os primeiros passos para uma educação que contribua para o movimento popular." (Cássia, supervisora da Cáritas Diocesana) . Já na visão dos alunos à motivação para a alfabetização, percebe-se que a grande maioria procurou o Projeto numa perspectiva de melhorar em sua condição concreta de vida, ou seja: arrumar um emprego melhor, ascender dentro de sua atividade profissional, melhorar seu salário e sentir-se mais valorizado socialmente. As colocações feitas pelos alunos causaram-nos relativa surpresa, já que para nós, de uma maneira geral, existiria um total descrédito na possibilidade de ascensão econômica, social e cultural através da educação. É fato que, na atual conjuntura, a população pobre tem suas esperanças cada vez mais reduzidas, o que contribui para a visão de que a escola "não serve pra nada" de que só vence na vida quem faz o jogo "dos grandes", indicadores reconhecidos e valorizados para um modelo de ascensão que ganha força em nossa sociedade. Este movimento, por um lado, gera um aumento alarmante da violência, da bandidagem, principalmente na população mais jovem, que não encontra outras opções de melhoria em suas condições de vida. Por outro lado, a escola não consegue dar ouvidos à linguagem trazida por esses grupos, o que contribui para torná-la cada vez mais distante. Porém, percebe-se ainda o desejo de que a educação seja um instrumento de promoção e dignificação do homem, abrindo mais uma possibilidade de esperança para minimizar o sofrimento dessas populações. É interessante observar que muitos professores e supervisores já absorvidos por um discurso mais politizado e engajado afirmam que os alunos estão no Projeto sem interesse de uma ascensão profissional, pois têm consciência de que de nada vai adiantar a alfabetização dentro de uma sociedade capitalista selvagem, cujas elites 83 têm interesse em manter populações como "exército de reserva". Este tipo de visão, que poderíamos classificar de maniqueísta, nem sempre é compartilhada pelos alunos, ou seja, aqueles que estão se beneficiando da alfabetização, como podemos observar nos depoimentos a seguir: "( ... ) aí eu falei 'vou em frente'. Morrer sem saber ler e escrever era minha grande preocupação. Agora tô satisfeita, já aprendi. Não sou uma doutora, mas já sei ler as coisas. Na rua não preciso tá perguntando e também para os meus filhos. Tenho mais coragem de ir receber a pensão do meu marido, eu mesmo assino. Era horrível, eu voltava triste quando tinha que botar o dedo naquela tinta e ainda voltava toda suja, marcada. Parecia bicho." (Maria Inês, 43 anos, empregada doméstica, aluna do MUB). "Eu tô aqui porque eu gosto de escrever um samba, mas eu não sei escrever. Eu faço ele a poesia e tudo na cabeça, fica guardado e depois se perde, porque não sei escrever." (Jonilson, 22 anos, biscateiro, aluno do Canal Meriti). "( ... ) a pessoa tem mais sabedoria pra sair em qualquer lugar, sabe qual a condução que vai apanhar, né? A gente já sabe. Eu ainda tenho medo de trabalhar no Rio, porque acho que vou errar tudo. Quando eu aprender bem, eu vou querer trabalhar lá, porque ganha mais." (Suely, 19 anos, manicure, aluna da Taquara). "Eu resolvi estudar porque a gente, às vezes passa numa rua, quer saber o nome da rua e não sabe. E a gente pega um papel de um médico, quer ver o que tem ali, não sabe nada, tem que perguntar aos outros. Dão um endereço à gente, a gente olha aquele papel... e tem que chegar perto de uma pessoa pra saber o que é aquilo que tá escrito." (Sônia, 29 anos, costureira, aI una do MAB). "Pra mim é muito difícil, né? Sem marido, eu que tenho que fazer tudo sozinha, compras, pagar coisas e os caras querem logo enrolar mulher sozinha. Por isso eu quero estudar." (Vanderléia, 26 anos, desempregada, aluna do MUB). "As vezes eu quero sair pra fazer uma inscrição numa firma, aí eu não sei. Eu vou escrever, falta letra. Então, fico com a maior vergonha, pago o maior mico na hora de preencher a ficha." (Vander, 18 anos, desempregado, aluno do Bar dos Cavaleiros). 84 "Acho que todo mundo devia botar a vergonha de lado e procurar estudar, ainda mais quem tem filho. Meus filhos me procuram pra ajudar com os deveres da escola e eu não sei, tem que pagar pra alguém lá da rua e eu não tenho dinheiro. Se eu soubesse podia ajudar muito meus filhos e o meu marido também, porque eu podia trabalhar, pegar alguma coisinha pra fazer." (Dolores, 34 anos, aluna da Taquara). "Eu sou cozinheira e quero passar pro escritório porque ganha mais e trabalha menos. Na cozinha tenho que chegar lá 6 horas da manhã, lá no Meier. É duro. O meu patrão falou que se eu aprender legal, ele me bota no escritório. Tô me esforçando. Ou então fazer prova pra ser merendeira de escola pública, também é um bom emprego." (Zuilde, 22 anos, cozinheira, aluna do MUB). "Está me adiantando muito, eu aprendo a ler e escrever muito bem, posso arrumar outro emprego, servir num balcão. Pode ser padaria o num supermercadinho por aí. Quero parar de pegar no pesado, cansa muito." (Sérgio Raimundo, 21 anos, carregador, aluno do MAB). "Quero aprender a ler e escrever de qualquer forma, para que meu patrão nunca mais tente me enganar. Quero aprender a fazer as contas pra nunca mais ser enganado." (Jair, 20 anos, faxineiro, aluno do Canal Meriti). "Se este trabalho conseguir alfabetizar a maioria dos analfabetos da Baixada como eu estou alfabetizada, vai contribuir para uma Baixada melhor, e para um povo mais consciente de seus problemas, pois povo alfabetizado é povo livre." (Lourdes, 22 anos, desempregada, aluna do Bar dos Cavaleiros). 5.6 Visão da educação Quanto à educação, encontramos no desenrolar do Projeto Baixada representações variadas, quais sejam: "Educação seria a gente tentar perceber o que de concreto existe. Na cultura, na forma de vida, na forma de ser do povo e a partir daí valorizar 85 isso. E, é claro, fazer com que aumente e cresça a consciência que essas pessoas tiveram do mundo. Num sentido até de um entendimento do mundo, não apenas espontaneísta." (Marina, supervisora da Cáritas Diocesana) . "Eu hoje só vejo educação de uma forma popular. O povo produz uma ideologia deformada, mas a gente acredita que pode mudar concebendo uma educação popular." (Cássia, supervisora da Cáritas Diocesana). "É importante na educação trabalhar com palavras engajadas como trabalho, luta etc. Tudo palavras fortes, que a gente ouvindo isso é importante. Mas sabe? Ninguém falou em alegria, ninguém falou em amor, e a sala de aula não é lugar só da gente ficar falando da nossa luta, do nosso dia-a-dia, quer dizer, o dia-a-dia também é uma questão de interior." (Maurício, supervisor do MUB). "Acho que a gente teria mais condições de se identificar com o nosso povo mesmo, na medida que a gente construa uma pedagogia mais real. Mais dentro da realidade do povo mesmo. E o povo de forma nenhuma ele é triste, de forma nenhuma ele é... digamos assim, não sabedor, ignorante. Muito pelo contrário, ele entende o mundo, ele tem uma concepção." (Beto, supervisor do MUB). "Educação? Acho que é uma conscientização. Pessoa tomar consciência da vida, dos problemas. Eu acho que a pessoa só está educada quando ela está consciente da vida, dos problemas. Educação vejo de uma ótica mais global. Eu acho que educação não é aprender a ler e escrever só. Todos devem participar. Educação é capacitar as pessoas pra viverem em comunidade, pra ter o espírito crítico primeiro. Pra ter opinião própria, pra praticar a democracia." (Conceição, supervisora do MAB). "Educação é uma coisa muito ampla e importante para o crescimento da pessoa humana; é a participação, o envolvimento das pessoas nas lutas por um mundo melhor. Eu acho que não é só a escola que educa. E aí a gente faz uma crítica muito grande aos meios de comunicação. Porque a escola hoje, no momento, na maioria das escolas que a gente conhece, a escola não é um órgão educador, é muito mais um órgão repressor. Os meios de comunicação são racistas, quase sempre são crianças brancas, louras e bonitas, brinquedos sofisticados que a criança da Baixada só vê e deseja, e até deseja programas que exaltam a violência, o crime é humorizado. E o sistema permite tudo isso, é o grande cúmplice, grande culpado." (Aurelina, coordenadora do MUB). 86 5.7 Conceito de analfabeto Analisando a maioria dos depoimentos recolhidos sobre o conceito de analfabeto, podemos observar que este é constantemente relacionado à condição de pobreza. Ou seja: o analfabeto é visto como uma pessoa em desvantagem com as demais, isto é, marginalizado em nossa sociedade. Em nosso entender, tais depoimentos são bastante reveladores e amplos, traduzindo, antes de tudo, uma visão de classe, na medida em que a maior parte das pessoas entrevistadas pertencem ao mesmo grupo social dos alunos do Projeto, convivendo mesmo com a questão em sua própria vida familiar (inúmeros participantes tinham pai e mãe analfabetos). Um dado curioso é que alguns professores levaram familiares para as salas de aula do Projeto, a fim de que estes se alfabetizassem. "Você só sabe o que é na medida em que você passa a conviver com essas pessoas, sabe? Eu sinto assim uma carência muito grande nelas, sabe? As pessoas, elas têm potenciais. Tem um senhor que está comigo, ele faz música, inclusive até trabalhamos as músicas dele na sala com os alunos. Eles são muito carentes, muito humildes, como pessoa, como ser humano eles se anulam muito devido a ser analfabeto." (Maria Lúcia, professora do MAB). "É claro que o analfabeto é igual a todo mundo, mas não saber ler e escrever cria uma forte dependência de outras leituras, ou seja, a pessoa lê não com os seus olhos, com a sua cabeça, ela lê com a cabeça dos outros e isso é muito perigoso, porque aí é um prato cheio para a dominação, e, por causa disso, utiliza-se as pessoas de má fé. Essa experiência de ser professor de jovens e adultos analfabetos, me mostra que esta pessoa é mais fácil de ser enganada, porque ela é muito temerosa e sempre acha que está em desvantagem. Analfabeta, pobre e tudo o mais já é fácil ficar por baixo. Eu digo isso porque também sou pobre, nasci aqui na Baixada e minha mãe é analfabeta, sei o quanto pesa. Pra mim é muito importante que meus alunos saiam daqui escrevendo e lendo muito bem ... até a minha mãe tá tentando se alfabetizar na turma da Conceição 87 aqui do lado." (Maria, professora do Bar dos Cavaleiros). 5.8 Projeto Baixada No que se refere especificamente à visão dos participantes sobre o Projeto Baixada, através das entrevistas pode-se constatar um discurso de confiança nos trabalhos e a possibilidade de construção de uma educação fora dos modelos reprodutores: "Pode ser que o Projeto não dê certo, mas até agora eu achei que foi essencial, foi muito bom. Passa por um processo de discussão bastante pedagógico, com idas e vindas, não só com a diretoria do MAB, mas com todos os segmentos, as associações de moradores vinculadas ao MAB." (Dilcéia, presidente do MAB). "A gente sente que a coisa é diferente. Hoje no Projeto nós discutimos desde o início, pelo menos naquela parte da nossa interferência enquanto comunidade, né? Claro que a parte pedagógica nós não tivemos influência, até porque a gente não tem esse preparo assim, embora na prática eu não sei como seria, como funcionaria nós apresentar um plano de alfabetização, essas coisas assim. Nós, enquanto comunidade organizada e movimento reivindicatório, não temos essa coisa que seria discutir no plano pedagógico. Isso a gente ainda não entende bem, não pode saber se funcionaria bem. Mas na parte de abertura, de como implantar, de todo o processo, até agora a gente tem uma participação bastante importante, um espaço grande, um respeito às associações de moradores, um respeito ao trabalho que a gente desenvolve, né? A gente sempre deixou claro que esse não é o nosso papel, esse é um papel do poder público... Mas que a gente tá aqui e pronto, a fim de acertar e mostrar que quando se tem vontade política, as coisas acontecem. " (Zumba, presidente do MUB). "Quando eu entrei para o Projeto, quer dizer, a minha questão da entrada era devido à participação política. Eu via que ele tinha um potencial muito grande, de a gente no bairro engrossar as fileiras das pessoas preocupadas pela transformação e isto me atraía e atraía um grupo de pessoas que via nisto uma proposta de educação, mas com um conteúdo 88 político, com uma militância. Ter uma participação efetiva na transformação da realidade, e como se daria isto na sala de aula, na experiência através do ler, escrever. Seria fundamental o ler e o escrever, mas por aí não ficaria toda uma posição política." ("Seu" Braúlio, diretor do MAB). "Para o movimento, o Projeto representa uma coisa muito grande. A gente está acostumado a fazer o trabalho de base nas ruas, mas nunca tem um contato direto como o que se tem dentro da sala de aula. A discussão dentro da sala de aula é fundamental, o método favorece isso. O Projeto vem favorecendo isso no dia-a-dia. Tinha dia que eu não agüentava ficar na sala de aula. Ver tanta força e ao mesmo tempo tão impotente, por não poder dar tudo aquilo que as pessoas precisam." (José Márcio, professor do Canal Meriti). 5.9 Os conflitos Nos quatro anos de trabalho, a relação entre a Fundação Educar e os grupos organizados da Baixada Fluminense foi bastante conturbada, principalmente no que se refere ao repasse de verbas. Uma das principais causas do não engajamento dos grupos no Projeto era o temor da prática constante dos órgãos governamentais de não cumprirem os compromissos firmados, tais como o pagamento irregular, o desrespeito aos prazos acordados, o término súbito dos projetos sem qualquer discussão com a outra parte envolvida, etc. Em outras palavras, para os grupos organizados o Estado age sempre de forma arbitrária, autoritária, desrespeitosa e prepotente. No Projeto Baixada, a força do movimento popular organizado conseguiu fazer-se valer em muitos momentos, sempre através da luta. No que diz respeito aos salários, o Estado repassou as verbas, embora, nos últimos anos do trabalho com atraso. Porém, ao assumir o presidente Collor, em março de 1990, o Projeto foi interrompido abruptamente, sem que nunca tenham sido convocados os grupos do movimento popular para as devidas explicações, reproduzindo-se assim as práticas 89 há tempos conhecidas e condenadas pela população. Por outro lado, sempre estiveram presentes, mesmo que subliminarmente, questões como: desconfiança dos verdadeiros interesses do Estado em projetos desta natureza, realizados pelo movimento organizado e característicos da Educação Popular (manipulação? controle político dos movimentos? aparelhamento? repasse de um dever do Estado - a educação - para o movimento, com o conseqüente esvaziamento de suas tarefas e das lutas políticas?). Surgiam ainda problemas com facções dos próprios movimentos, que acusavam as entidades envolvidas de submissão aos interesses do Estado. Uma reflexão, entretanto, foi consenso: o Projeto estabeleceu uma negociação horizontal entre o Estado e o Movimento Popular. A convivência íntima entre os diversos grupos do movimento, numa prática quase cotidiana, fez-nos compreender que a questão democrática é uma construção lenta, que se dá através de uma luta a cada minuto. Antes, pensávamos que desenvolver um projeto com os movimentos populares já estava garantida a democracia; hoje, percebemos que não é tão simples assim. Porém, pode-se constatar que alguns grupos avançaram mais do que outros no que diz respeito à democracia interna, e isto esteve diretamente relacionado à transparência nas ações e decisões tanto pedagógicas, como políticas e administrativas. "O Estado não é apenas uma instituição, mas são pessoas que estão negociando. Antes, eu tinha uma posição de que o Estado era manipulador e instrumento da burguesia, mas, com o Projeto, pude constatar que o Estado é contraditório. Hoje, tem que me dizer que Estado é, quais as pessoas que estão à frente da negociação. E, na verdade, do lado do movimento é a mesma coisa." (Supervisor). "Acho esta questão muito conflituosa, pois, se o Estado não é monolítico, o movimento muito menos. No movimento tinha gente que só queria esse Projeto com interesses assistencialistas e gente que só queria formar quadros partidários. Tinha os governos que fechavam as portas para o 90 movimento, depois começaram a abrir, com a transição democrática, e o pessoal da militância, nós, não sabíamos negociar. A gente estava acostumado a bater de frente com o Estado. De repente, o Estado quer negociar. Em alguns momentos era tão difícil e trazia tantos problemas para o movimento, que eu achava que era melhor não existir." (Coordenador) . "O movimento não estava preparado para sentar na mesma mesa que o Estado. E a recíproca também é verdadeira." (Coordenador). "O movimento, na verdade, reflete a sociedade em que vivemos. Ele reproduz mil deformações que a gente diz que é do Estado, como c1ientelismo, 'pistolão' etc., e também tem muita gente boa." (Coordenador) . "Você é contra o poder, mas quando você está no poder, começam as mesmas práticas." (Professor). 5.10 As Tensões O Projeto nos colocou frente a questões extremamente complexas e contraditórias. Trabalhávamos com alguns jargões, algumas verdades, e cheios de boas intenções. Mas a prática foi-nos despindo, mostrando o que cada grupo e até cada pessoa queria dizer, bem como as limitações de cada uma. "Era difícil arrumar a nossa cabeça, porque estava tudo muito bem no Projeto. O movimento tinha autonomia para desenvolver o Projeto, total controle, estava fazendo um emocionante trabalho de Educação Popular, levando gente para as associações de moradores, para as comunidades e até para os partidos. E, como parceiro, o mesmo Estado que dava porrada 91 na gente, bate em trabalhador, mata os sem-terra. O Projeto parecia, sei lá, um quisto." (Supervisor). "Do ponto de vista do Estado, a única explicação que podemos ter para que esse Projeto pudesse acontecer daquela forma é porque vivíamos um processo de transição. Era a transição do governo militar para um governo eleito democraticamente... O pior é que agora piorou. É inacreditável! A zona era tão grande dentro dos órgãos governamentais, que pouca interferência tinha no Projeto o Estado-patrão, c1ientelista etc. N aquele momento, os dirigentes dos órgãos governamentais (na Educar viveu-se isso) tinham medo do movimento porque não sabiam exatamente o que era isto e preferiam a distância. " (Assistente Administrativo) . "O Estado tinha tanto medo da gente quanto a gente dele." (Coordenador) . "Passar conhecimento ... a grande contradição é se a educação é dever do Estado. Mas o Estado está na burguesia. Então, gostaríamos que a transmissão do saber fosse dada pelo movimento popular. Quando a Fundação Educar veio, desconfiamos: conflito de poder, professor x aluno, todo o trabalho administrativo. No final, o que aconteceu? O pessoal todo, principalmente o professor, esperou os subsídios trazidos pelo pessoal da Fundação e já caminhava sozinho. Nos apropriamos de um saber e produzimos dali outros conhecimentos, adaptando à nossa realidade." (Agente Administrativo). "O problema, quando nós dizíamos que estávamos assumindo o papel do Estado, é que isso era errado. Isso era uma confusão pra gente. Hoje, eu vejo que o problema é que quem faz é quem tem vontade política de fazer. E acho que o movimento tem mais do que o Estado. E, por isso, muitas vezes temos que fazer." (Supervisor). "A gente afirmava que o Estado devia assumir integralmente, mas, no início do Projeto, se procurou as Secretarias Municipais de Educação da Baixada e, sinceramente, não dá. A primeira questão, que era básica no Projeto, eles não aceitaram que os professores fossem indicados pelo movimento. Ainda mais que os salários do Projeto eram maiores do que os pagos por aquelas Secretarias. E aí a gente quer que o Estado assuma, mas, por outro lado, sabe que nada acontece." (liderança representativa do movimento popular). "O Projeto introduziu, dentro do movimento, todas as relações de patrão, 92 de categoria. Estimulávamos a participação nos sindicatos, de se processar a entidade quando não cumprisse com os deveres trabalhistas, mas se algum professor colocasse o Projeto no pau, virava inimigo do movimento. O professor que estava chegando, iniciando o seu processo de participação política, não entendia nada desse discurso contraditório que a gente tinha." (Leu, Coordenadora). Antes o movimento era um paraíso; achava-se que todos comungavam das mesmas idéias. Com o tempo, pode-se perceber uma infinidade de situações distintas, até do ponto de vista pessoal: "O movimento foi se dividindo e percebemos que as pessoas estavam na militância até por questões de sobrevivência. Alguns, por neurose, não podiam ficar em casa. Aí, se enchiam de reunião. Outros, porque não iam pra cama com alguém... Hoje, descobrimos que não somos os reis da cocada preta. Acho que, hoje, a gente tem uma visão histórica, mas não tá conseguindo sistematizar nada prático. A gente tem visão histórica, mas não tem projeto nenhum, a gente vive do passado. E se a gente não encontrar caminhos agora, a coisa vai ficar pior. Porque você só vê gente desanimada, seja no campo religioso, político. Todo mundo tá entrando na era do apocalipse." (Assistente Administrativo). Outra situação enfrentada com a prática do Projeto refere-se especificamente à descoberta de que numa proposta de trabalho voltada para a educação popular, onde se propõe trabalhar a leitura, a escrita, as contas, bem como aumentar o nível de consciência política da população envolvida, só a militância não dá conta. Ou seja, descobriu-se que, além de "militante", era necessário ter o conteúdo didáticopedagógico da alfabetização, a competência técnica. O Projeto também mostrou, através da prática, que o compromISSO político é fundamental, mas que não está necessariamente ligado à competência técnica. Em muitos momentos, vivemos situações em que separar o "militante" do profissional, como se fossem coisas diversas, significava uma fragmentação na concepção de educador que o Projeto propunha. Seria o mesmo que separar conteúdo de método. Essa dicotomia, muitas vezes, era usada como justificativa para que não se 93 assumisse o papel de novo educador. "Quando se exigia militância, o sUjeIto defendia que o seu papel no Projeto era o de um profissional, um educador; e quando se exigia horário de trabalho, capacitações, o sujeito dizia que estava no Projeto apenas para ser liberado para o movimento, que o seu papel era o de militante. 11 (Coordenador) . Com o passar do tempo, observou-se que alunos, e mesmo professores não participantes do movimento ou em processo inicial de participação, desprezavam aqueles que "tinham discurso 11 e que, na prática, não os apoiavam nas suas dificuldades cotidianas de sala de aula. Esta discussão, foi considerada pelos participantes como um avanço, na medida que propiciou a descoberta de que o 11 militante 11 e o dirigente devem ser competentes naquilo que se pretendem, ouvindo, respeitando e tentando sempre trabalhar de forma cooperativa. Caso contrário, ou ele cai no descrédito, passa a ser o 11 chato 11 , o que só cria confusão, ou vira um mero manipulador. "0 movimento, com o Projeto, tinha um poder grande em cima dos menores. Principalmente das associações de moradores pequenas e despolitizadas." (Professor). "0 presidente da minha entidade era analfabeto, e o companheiro que dirigia o Projeto lá, um militante do movimento, bastante politizado, legal e cheio de boas intenções pela causa. Porém, consciente ou não, manipulava totalmente o presidente da associação. Isto a gente não quer mais repetir. 11 (Professor). 5.11 A cobrança é de todos os lados Analisando com maior atenção, para muitos grupos do movimento, as mais sérias exigências não vieram do Estado (concretamente, a Fundação Educar pouco interferiu no trabalho de campo, a não ser através de sua equipe de educadores, que 94 tinha extrema identidade e compromisso com o movimento) mas SIm, de outros grupos ou entidades representativas das categorias. IINós, da direção do MUB, sentimos que o principal problema era com o sindicato dos professores. Muitas vezes, com ciúmes porque o salário do Projeto era bem maior e nem todos os agentes eram professores formados, ameaçavam processar a Federação. O meu partido político quis me levar, junto com outros companheiros, para a Comissão de Ética, porque estávamos desenvolvendo um Projeto em parceria com o Governo Federal. Não levavam em consideração nada, nem ao menos que alguns companheiros estavam desempregados e ali era um bom emprego. Que o Projeto alfabetizava e politizava. Porque, realmente, se a gente entregasse para as Secretarias Municipais ou Estaduais, vão politizar quem? Com que pessoas? Vão é dar emprego pra gente incompetente ou apadrinhados. Até que, quem estava na base, os professores e alunos, ainda bem não percebiam as porradas que levavam os que estavam à frente do Projeto politicamente, a direção das entidades. (liderança representativa do movimento popular). 11 Outra saída que o movimento encontrou foi a criação de vários fóruns para que se garantisse o modelo pretendido de gestão democrática. Na verdade, analisando-se agora com um maior distanciamento, percebe-se que os fóruns podem se tomar simples instrumentos formais, de efeito apenas retórico. Desta vivência podemos apreender que a democracia não é só cnar conselhos, congressos, assembléias; ela depende muito mais de um trabalho pequeno, que se constrói na relação diária. 95 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS "Temos que começar do bê-á-bá. Temos que recuperar o nível mínimo de solidariedade que pode barrar a expansão da cultura da crueldade" (Jurandir Freire Costa). o trabalho que apresentamos leva-nos a inúmeras reflexões sobre a viabilidade de práticas com as características anteriormente abordadas e suas implicações na realidade. Problematizar tais questões é responsabilidade de todos nós, pesquisadores/educadores, na tentativa de construir caminhos mais promissores para a educação de jovens e adultos no país. Em primeiro lugar, gostaríamos de destacar que este trabalho é em defesa da alfabetização, ou seja, em defesa do acesso de todos à leitura e à escrita, já que , sem dúvida são instrumentais básicos para transitar com relativa autonomia nas sociedades modernas e complexas. Certamente, sem estes instrumentais é difícil se pensar em cidadania, no final do século xx. Nesse sentido, gostaríamos de ressaltar a importância de que o poder público assuma o determinado na Constituição de 1988, que coloca como direito de todos os brasileiros o acesso ao ensino fundamental, não estipulando limites de idade. Atualmente, pode-se afirmar que o Ministério da Educação não possui nenhuma proposta para a área de jovens e adultos e também não existem repasses para municípios com este fim. O governo Collor anunciou em seu início de governo, o PNAC- Plano Nacional de Alfabetização e Cidadania, que ficou limitado a material de propaganda. O que se verifica é um verdadeiro descaso em relação a essa questão, com a negação de uma realidade que atinge a mais de 30 milhões de pessoas neste país. 96 Outro ponto fundamental é a necessidade de o poder público avaliar experiências, principalmente as por ele financiadas, numa perspectiva de, por um lado, economizar recursos e, por outro, possibilitar a utilização de experiências realizadas, considerando os avanços e os fracassos das experiências educacionais, para que não se reinicie sempre do zero, como se nada houvesse existido anteriormente (prática bastante comum no que tange aos programas de governo). Se o processo educativo se dá de forma lenta e gradual (e estamos nos referindo ao processo educativo enquanto fenômeno amplo, que envolve inúmeras variáveis de um projeto como o que foi aqui abordado, que ultrapassa a realidade de sala de aula), como entender o desleixo e o desrespeito que as administrações públicas demonstram ao ignorar a produção de trabalhos construídos ao longo de anos, dentro das pr'prias administrações públicas, e com o emprego de recursos públicos? E como aceitar o fato de que, provavelmente, outras ações serão iniciadas com o mesmo dinheiro público, sem que haja qualquer preocupação em se conhecer ações que as antecederam? Temos consciência de que as possíveis respostas às indagações acima colocadas passam por interesses perversos de um Estado, que concentra os meios de produção na mão de uma elite, e que mantém um enorme contingente da população sem acesso aos bens culturais que esta mesma população produz .. Porém, quando participamos de um trabalho como o que foi relatado nesta dissertação, renasce a crença na possibilidade de transformação, com os governos ou apesar deles, evitando assim compartilhar de teorias e práticas que antevêem, para este fim de milênio, o caos e a barbárie. Ao contrário, recorremos ao depoimento de Dom Mauro Morelli, arcebispo de Duque de Caxias e Nova Iguaçu: "É preciso cada vez mais valorizar a educação como caminho da paz, como caminho de promoção, de participação. Que o Projeto Baixada sirva de referência para uma nova política de educação. 97 Podemos afirmar que o Projeto Baixada, serviu como grande laboratório, tanto para o movimento, como para os educadores da Fundação Educar, no sentido de que possibilitou explicitações de visões ingênuas, maniqueístas e oportunistas, numa superação do dualismo "bem x mal" , pelo que todos éramos surpreendidos cotidianamente, num processo pedagógico dialógico. Isso em grande parte, devido à postura adotada, de uma certa relativização do valor e importância da rigidez teórico-metodológica. Considerando os resultados explícitos (20.000 alunos alfabetizados) e implícitos (formação de dezenas de educadores, tanto do ponto de vista pedagógico, como cultural e intelectual, o forte elo de solidariedade que se estabeleceu ao longo do processo, etc.), pode-se afirmar que a experiência tem a sua validade exatamente por ter ousado fugir aos controles rígidos de teorias ou de orientações, "desacreditando todo triunfalismo progressista e positivista" (Maffesoli, 1988), valorizando a força subterrânea que emerge do pensamento popular. Esta força "subterrânea" que emergIU no Projeto vem-se refletindo em sua resistência à desarticulação. Desde que a ação foi arbitrariamente interrompida em março de 1990, diversas atividades e iniciativas construídas a partir desse trabalho se multiplicaram e continuam a acontecer, reconstruindo-se a cada dia. Destaca-se, entretanto, que o fato do Projeto ter possibilitado salários razoáveis aos professores, ter investido na formação dos educadores, ter procurado estabelecer (através de muita luta e na medida do possível) uma relação horizontal entre poder público e movimento popular, ter utilizado metodologias compatíveis com os interesses da população, ter buscado aprofundar a questão da gestão democrática etc., não garante, no entanto, o mesmo modelo em outras situações. Devemos ter a consciência de que a repetição desta prática, como "receita", pode ter um resultado 98 bastante perverso, em outras circunstâncias. Assim, estamos sempre a procura de pistas que tentem explicar o que possibilitou um relativo sucesso nesse trabalho, que permitiu diversos desdobramentos, como por exemplo, a criaçâo de grupos de educaçâo de jovens e adultos na Baixada por um número significativo de professores e supervisores remanescentes do Projeto. E também, a entrada, no mercado de trabalho, através de concurso público, da maioria de seus educadores, para ocupar cargos de professor nas secretarias municipais e estadual de educação. Vale a pena mencionar que uma das supervisoras do Projeto é, atualmente, Secretária de Educação do Município de Duque de Caxias, tendo uma gestão bastante elogiada, inclusive pela representação sindical do professorado. Outra constatação é que parte dos professores, após o fim do trabalho, ingressou em cursos universitários, sendo que alguns já estão em fase de pós-graduação lato-sensu na VERJ, em Duque de Caxias. Na verdade, existiu um encanto na constatação de ampliação do universo cultural dos educadores da Baixada participantes do trabalho, ou seja, a formação de tais profissionais, o que promoveu uma ascensão intelectual, profissional e a possibilidade de outras inserções, o que, sem dúvida, estimula e induz a produção criativa do conhecimento. Nesse sentido, podemos supor que seja válido pensar os projetos educacionais, a própria pedagogia, levando principalmente em consideração a existência cotidiana, aquilo que não é mensurável e tudo aquilo que análises racionalistas não tendem a considerar. Pensar a formação enquanto lugar de encontros e confrontos da diversidade e da heterogeneidade é fundamental para a educação. Enfim, podemos concluir que um processo educativo que realmente contribua para formar educadores e educandos que "pensem", no sentido filosófico, ou seja, problematizem, questionem, não aceitem as informações simplesmente como 99 definitivas, que recoloquem a questão ética em dimensão pessoal, privada e política (Pessanha, 1192, p.32) deve estar preocupado com a ampliação do universo de cada cidadão e valorizar as relações, o simbólico, a cultura, o cotidiano e sentimentos presentes nesse processo. Podemos concluir então, que o Projeto Baixada aponta, prioritariamente, interessantes caminhos para se pensar a formação de professores. Para finalizar, gostaríamos de resgatar o depoimento de alguém que VIveu intensamente esta caminhada, um educador do Projeto Baixada: "O Projeto que existiu não foi o ideal, mas foi o possível naquele momento histórico. E se avançou muito. No Projeto a gente tinha que aprender e levar o pedagógico, as questões políticas e administrativas, com toda uma estrutura de 'grande ação'. Eram quase 300 classes, mais do que a rede municipal de muitos municípios, e nós sem a experiência mínima, só com vontade política e sei lá o quê, levando muitas vezes, de forma artesanal, quase quatro anos para conseguir alguns acertos. Constatamos que só a vontade política não dava conta e tivemos que estudar, nos preparar muito. Foi um grande avanço perceber que as contradições são inerentes, fazem parte das relações sociais C.. ). A história do Projeto é a história do possível: o que era possível ser feito, nós fizemos. Aprendemos a entender o movimento popular com suas contradições, descobrimos que ele não é monolítico (e que bom que não seja!). Aprendemos a incorporar as contradições como um elemento do cotidiano, e não como uma deformação. O Projeto operou numa sociedade com clientelismo, assistencialismo etc., e também pessoas sérias, justas e democráticas. (... ) Se a gente trabalhasse só nós cinco, poderíamos ter um relativo controle. Mas a coisa seria pequenininha. Numa ação de massa correm-se riscos, aumentam-se as tensões, as contradições ... mas, por outro lado, pode-se enriquecer a vivência. C.. ) Este Projeto trabalhou com a elite do movimento popular, apesar de todas as divergências. Gente como Zumba, pelo MUB; Artur, pela Cáritas; Dilcéia, pelo MAB, e muitos outros. São 'elites'. Tinha pedagogos, filósofos, historiadores, sociólogos, elites em todos os aspectos, desde o fato de ter uma formação cultural aqui na Baixada (porque só por se ter curso superior, como eu, já se é elite na Baixada), até de ter toda uma formação política, vinculada a toda uma história de caminhada de vida e de luta." (Edson, 24 anos, supervisor do Canal Meriti). 100 BIBLIOGRAFIA ANDRADE, E. R. -Gestão democrática: praticando é que se aprende. Rio de Janeiro : Fundação Educar, 1990. AVELAR, R. F. & CAMPELLO, A. M. M. B. - Alfabetização de adultos: um estudo de caso sobre o processo ensino-aprendizagem. Rio de Janeiro : Fundação Educar, 1986 {mimeo}. BARREIRO, J. -Educação popular e conscientização. Petrópolis: Vozes, 1980. BELOCH, I. - Capa preta e Lurdinha: Tenório Cavalcante e o povo da Baixada. Rio de Janeiro: Record, 1986. BOBBIO, N. - ° conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro: Graal, 1982. BOSCHI, R. R. - A arte da associação: política de base e democracia no Brasil. 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