Artigos INTERVALOS LÚCIDOS Guido Arturo Palomba Psiquiatra Forense dos Tribunais Judiciários do Estado de São Paulo Os termos lúcidos intervalos e lunático tiveram a mesma origem, a de se supor o distúrbio mental dependente da mudança da lua, e resultaram da interpretação que se dava nos recuados tempos de ser a doença mental possessão demoníaca. Se a posse cessava, se a alma já não era outra, o energúmeno entrava em intervalo lúcido. O mais antigo livro de medicina legal português (Instituições de medicina forense, de José Ferreira Borges, 1840), diz: “O homem que às vezes goza, e às vezes não goza de senso, ou são juízo, chama-se lunático ou aluado – O termo que medeia entre acesso e acesso de loucura chama-se lúcido inter valo” (Ferreira Borges, 1840, p. 315). Com o passar dos anos, vindo os estudos fisiopatológicos e anatomopatológicos, afastou-se por completo a noção de que a alienação mental dependia das fases da lua. Já com Esquirol concebia-se que “não há tal influência ou regularidade de paroxismo: o que é certo é que a luz amedronta alguns doidos, agrada a outros e excita a todos” (Ferreira Borges, 1840, p. 315). É necessário frisar que intervalo lúcido não é uma alternância de razão e de loucura, mas um estado de retorno à sanidade plena, não por um só momento, mas por período de tempo que possa permitir falar em verdadeira trégua do mal, e isso só é possível se o período de remissão da sintomatologia for longo. Em verdade, para que se possa utilizar o termo intervalo lúcido é preciso observar dois pontos fundamentais. Primeiro, a remissão completa da psicopatologia; depois, que essa remissão seja por um período longo.A existência de um sem o outro não é intervalo lúcido. A melhor definição de lúcido intervalo foi proposta por D’Aguesseau, tido como o doutrinador do assunto, que em célebre sentença, usando metáforas, definiu assim: “Não deve ser uma tranquilidade superficial, uma sombra de repouso; mas pelo contrário, uma tranquilidade profunda, um repouso real: deve ser não um mero raio de razão, que só torna mais viva a sua ausência, quando desaparece; não um relâmpago que rompe a escuridão só para a deixar mais opaca e hórrida; não um crepúsculo que une a noite ao dia; mas uma luz perfeita, um brilho vívido e contínuo, um dia pleno e inteiro, entreposto em meio de duas separadas noites. E, para usar outra imagem, não é aquela calma enganadora e infiel que segue ou precede a tempestade, mas uma tranquilidade segura e firme por algum tempo, uma calma real, uma serenidade perfeita; enfim, abstraindo de metáforas, não deve ser uma mera diminuição, uma remissão da queixa, mas uma espécie de cura temporária, uma intermissão tão claramente marcada que a todo o respeito pareça restabelecimento de saúde: isso quanto a natureza. E como é impossível julgar num momento da qualidade de um intervalo, cumpre que haja extensão sobeja de tempo, para dar segurança perfeita do restabelecimento temporário da razão, que depende das diferentes espécies de furor; mas é certo que deve haver um tempo, e um tempo considerável, - isso quanto duração” (Ferreira Borges, 1840, p. 316). Muito se tem discutido entre os peritos quais as patologias que são susceptíveis de apresentar intervalos lúcidos. Não há consenso, mesmo porque o próprio entendimento sobre o que vem a caracterizar determinadas doenças mentais pode variar grandemente de Escola para Escola. Assim é que a esquizofrenia, na concepção kraepelineana, é incurável, e na bleuleriana, curável; a paranóia para muitos é incurável, e para outros, curável – o que nos faz crer que inferir a existência de lúcidos intervalos apenas pela diagnose firmada é conduta imprópria que devemos evitar, e s p a n c a n d o - a c o m fo r m a i s d e s m e n t i d o s . Independentemente do diagnóstico formulado e da linha doutrinária seguida pelo profissional, somente será correto afirmar a existência de lúcidos intervalos quando houver provas cabais da remissão completa da insânia. Toda acção, todo gesto do paciente, deve ser cuidadosamente observado, de preferência em épocas diversas, a fim de habilitar a formação do juízo correto. VOLUME II, Nº2. MARÇO/ABRIL 2000 37 Artigos Quem alega intervalo lúcido deve mostrar sanidade e competência no período questionado. Um só acto de juízo ou de tranquilidade momentânea não serve para caracterizar o intervalo de que se fala. Conhecem-se doenças mentais que evoluem por surtos, por episódios, com períodos de flórida psicopatologia, e depois remitem. Conhecem-se crises de agitação, de melancolia, de irritabilidade, que acometem o indivíduo de quando em quando. Porém, o que se vê é que, nos espaços entre os estados patológicos agudos, há sempre um defeito psíquico ou uma inferioridade, não permitindo caracterizar os lúcidos intervalos, a ponto de ter permitido a Afrânio Peixoto asseverar que intervalo lúcido é um erro de pelo menos vinte e quatro séculos, que compreende o período desde o nascimento do Direito, em Roma, até os nossos dias, “graças à psiquiatria atrasada de outrora e tradicionalista, hoje em dia” (Peixoto, 1923, p. 146). No que concerne à doença mental, parece-nos irrefutável a opinião do mestre citado, embora possa haver algumas raríssimas excepções. Entretanto, essas excepções não existem quando a psicopatologia é proveniente de mal inato ou adquirido precocemente, cujas provas de organicidade são irretorquíveis. 38 Lúcidos intervalos podem ocorrer em certas síndromes de perturbação da saúde mental, nos neuróticos e nos toxicodependentes e alcoólicos moderados, mas sempre se deve considerar que a variação psicopatológica é individual, não estando, portanto, somente na natureza da síndrome a possibilidade da existência de tais períodos intervalares. Por conseguinte, não há fórmula geral para aplicação nas verificações de responsabilidade penal e de capacidade civil; assim, é justo e necessário que se examine e adapte à Justiça cada caso em separado. Se por ventura o período entre uma intercorrência patológica e outra for curto, deve-se, com toda a segurança, opinar pela inexistência de lúcido intervalo, mesmo que o acto em questão possa parecer de bom siso, uma vez que a desordem mental necessita de um certo tempo para ser digerida e assimilada até à final e completa recomposição das funções psíquicas. Desordens mentais seguidas levam o sofredor a apresentar, entre crise e crise, estado patológico basal permanente. existência desses períodos intervalares de plena lucidez, desde que essas crises não ocorram amiúde, que se considerem comprometidos os períodos precedentes e sucessivos próximos às crises e, é claro, que o tono psíquico basal do epiléptico neurológico não lhe confira, como amiúde ocorre, labilidade de humor, afetividade impulsiva, distúrbios da memória, da inteligência, da conação, da volição ou quaisquer outras manifestações psicopatológicas que possam levar o sofredor a estado mental duvidoso. Quanto à epilepsia psicótica, é necessário que entre um episódio psicótico e outro, além da remissão total do mal haja, e isso é importante, longo período de tempo. O mesmo se pode dizer para a forma condutopática, embora ambas essas formas sejam de difícil remissão ad integram, por período sobejo de tempo. Vale a pena lembrar que na epilepsia que se manifesta por distúrbios de comportamento é comum encontrar-se indivíduos ajuizados nas palavras, mas insensatos nas ações. Tais sofredores produzem, às vezes, combinações justas, mas ao mais leve excitamento, na presença de um fator qualquer, o juízo escurece-se, a luz que parecia animá-lo extingue-se, e aquela sisudeza no discurso queda por incongruente diante do extravagante comportamento. O que parecia ouro e diamante, em verdade era cobre e vidro. Merece ainda ser mencionada a psicose maníaco-depressiva, cuja patologia evolui por episódios de mania intercalados de depressão (bipolar) ou episódios só de mania ou só de depressão (monopolar). Entre episódio e episódio pode haver remissão total do quadro mas, quase sempre, as recidivas são constantes, o que não permite caracterizar a existência de lúcido intervalo. Caso clínico M.B.A., diagnóstico: psicose maníaco-depressiva, laudo de exame de sanidade mental para instruir acção de interdição. Não é caso de intervalo lúcido. Introdução Dentre as patologias mais frequentemente interrogadas está a epilepsia, cujo mal comporta formas clínicas, tais como: neurológica, psicótica e comportamental ou condutopática. A mesma regra que se utiliza para verificação de intervalos lúcidos em outras patologias vale também para a epilepsia: remissão completa do mal e período longo de tempo entre um episódio patológico e outro episódio patológico. Vale lembrar sobre a epilepsia que, normalmente, na sua forma neurológica, entre uma crise e outra, costuma haver remissão completa dos sinais e sintomas clínicos, sendo de todo possível a VOLUME II, Nº2. MARÇO/ABRIL 2000 Nós, Guido Arturo Palomba, especialista em psiquiatria forense, com título concedido pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Sociedade Brasileira de Medicina Legal, ex-médico chefe do Manicômio Judiciário de São Paulo, Membro Titular da Academia de Medicina de São Paulo e da Academia Paulista de História, vice-presidente da Associação Paulista de Medicina—, fomos honrosamente nomeados pela Meritíssima Senhora Doutora Juíza de Direito da 4ª Vara da Família para realizar perícia psiquiátrica em M.B.A., que sofre processo de interdição, proposto por sua filha V.A.B. Artigos Tal acção judicial é contestada por H.G.S., que alega conviver maritalmente com a interditanda. Após acuradas observações, redigimos este documento. Identificação da examinanda M.B.A., senhora de 61 anos, filha de G.P.A. e de A.B.C., nascida em 18/12/1934, em São Paulo, SP. Antecedentes pessoais De interesse para o caso assinala-se: Não há registo de complicações neuropsiquiátricas na infância. Casou-se com 19 anos de idade, teve quatro filhos e oito gestações, três abortos espontâneos e um provocado (feto morto in útero). Permaneceu casada por vinte e cinco anos incompletos (separouse em 1981), por “incompatibilidade de gênios” (sic). O ex-marido morreu há cerca de três anos. Em abril de 1994 perdeu um dos filhos, que padecia de SIDA. Estudou, depois de casada, formando-se professora, mas nunca exerceu a profissão. No passado dedicava-se às artes, artesanato em geral. Chegou a ter uma fábrica no género. Quando tinha vinte e sete anos de idade submeteu-se à psicanálise, por dois anos (sic). Submeteu-se, também, a outras terapias, algumas alternativas, como, por exemplo, as ministradas por parapsicólogos. Após separar-se do marido sofreu o primeiro internamento psiquiátrico, não sabendo definir os motivos determinantes de tal. Foi na Clínica Granja Julieta. Cerca de dois anos depois foi novamente internada (Clínica Tobias), desconhecendo, também aqui, os motivos desses internamentos. Depois foi novamente internada, várias vezes. Esteve no Hospital Espírita Américo Bairral, em Itapira.A primeira vez, por cinquenta dias, a última por quase um ano. Recentemente recebeu, deste hospital, alta médica, mas ainda lá se encontra em regime de hospital dia. Usava bebidas alcoólicas socialmente,não havendo história pregressa de crises convulsivas,toxicomania,desmaios,traumatismo craniano.Tem hábitos tabágicos. Entrevista com as Filhas As filhas da examinanda M.A.B.P. e V.B., entrevistadas, disseram, quando perguntamos especificamente, que a interditanda, antes das internações, começa a perder a noção dos factos, dos limites, não tem horários, não dorme, começa a fazer as coisas e não termina. Afirmaram que só a internam quando o quadro fica incontrolável.Antes do último internamento a pericianda, que morava sozinha, sofreu protestos de títulos,ações trabalhistas,não mais assinava cheques correctamente,“chegando a decorá-los com flores”, tinha aluguéis para receber e não o fazia (sic). Dizem que o primeiro internamento ocorreu há cerca de treze anos, mas que a interditanda sempre foi muito excêntrica. Para justificar exemplificam dizendo que certa vez comprou um apartamento em Curitiba para morar. Porém, antes disso, mandou derrubar quase todas as paredes para reformá-lo. Enquanto isso, alugou um imóvel próximo. Não chegou a morar, nem a terminar a reforma e voltou para São Paulo. Outra vez, comprou uma casa nos Estados Unidos e passou para o nome de um companheiro. Mudou sete vezes de residência. Dizem as filhas que a mãe, fora desses períodos críticos, costuma ser ordeira, asseada e quando ocorre a crise tudo desaparece. A casa onde morava ficava suja, descuidava-se da higiene corporal, chegava a manter, por um bom tempo, comida na geladeira, a qual se estragava e, mesmo assim, permanecia guardada, exalando mau cheiro. Dizem também que as crises costumam, em média, se repetir uma vez por ano. Até agora sofreu cerca de dez internamentos. Entrevista com o Companheiro Entrevistamos o Senhor H.G.S., que afirma ser companheiro da examinanda há treze anos. Para o entrevistado a pericianda é pessoa normal, “um excelente ser humano”. Durante esse período em que está internada foi visitá-la todos os fins-de-semana. Diz o seguinte:“Não vejo nada de anormal nela, ela é uma artista. No meu conceito tudo isso não passa de uma grande farsa, por interesses materiais”. Antecedentes Hereditários 39 De interesse para o caso são os dados que se seguem: O avô materno suicidou-se com tiro de revólver. Um tio, irmão da mãe, é alcoólico crónico. Uma tia, irmã da mãe, tentou o suicídio. Um filho da examinanda (faleceu após contrair SIDA) foi internado oito vezes em hospital psiquiátrico. Segundo as informações das filhas da examinanda as épocas dos internamentos eram muito desgastantes, “eram situações trágicas, ele não dormia, era muito agitado, confuso, e foi diagnosticado como portador de psicose maníaco-depressiva” Inspeção Física Quando criança teve “umas duas, três” (sic) crises de sonambulismo. Durante o período de internamentos perdeu 14 quilos. Sua compleição física é do tipo pícnico-atlético na tipologia de Kretschmer. Não há distúrbios neurológicos evidentes, não há alterações dignas de nota para o lado dos principais órgãos e aparelhos essenciais à vida. Exame Psíquico Comparece aos exames trajando-se bem,adequada.Discretamente maquiada. Está calma, atenta, colaborante e orientada globalmente. Curso e conteúdo do pensamento normais. Isto é, não apresenta VOLUME II, Nº2. MARÇO/ABRIL 2000 Artigos 40 desagregação, não tem prolixidade, fugas de idéias, tematismo, e no conteúdo não apresenta idéias delirantes, deliróides etc. Inteligência boa, tanto a inteligência prática quanto a abstrativa. Afectividade, no momento, conservada, mas com pequenas manifestações de indiferença. Nessas horas predomina o egoísmo sobre o altruísmo. Sem distúrbios senso-perceptivos, isto é, não há alucinações (visuais, auditivas, tácteis, gustativas e olfativas), ilusões etc. Memórias com algumas falhas. Sobre os períodos próximos que antecederam os internamentos não sabe descrever o que se passou na sua vida. Lembra-se de fatos isolados e pouco precisos. Ainda sobre a memória, apresentou episódios de “já visto”. O humor, no momento, está fluindo bem, mas é certo que apresentou várias manifestações de disforia. Nessas horas perde o sono, faz várias coisas ao mesmo tempo, abandonando-as sem levá-las a cabo, mostra-se agitada, mas sem depressão.Aliás, não notamos, e também não há história pregressa, de crises depressivas, motivadas e imotivadas. Instada a falar dos negócios em geral e dos seus em particular, está parcialmente orientada quanto aos bens que possui e quanto ao que ocorre no momento actual com os preços dos géneros alimentícios, dos vestuários, do câmbio do dólar em relação ao real, do valor dos aluguéis e do valor médio de uma propriedade urbana e rural. Justifica a parcial orientação pelo tempo em que está internada e portanto afastada desses assuntos, e às mudanças ocorridas no País. Sobre o processo a que se submete, o de interdição, tem noção parcial do que é uma interdição judicial, e quando se lhe perguntam “que acha de ser internada?”, diz: “para mim a internação vem como uma mensagem benéfica”. Justifica tal afirmativa dizendo que nesse período de internamento os seus negócios triplicaram. Em suma, sobre a parte dos negócios e o processo a que se submete, no momento, podemos dizer que está parcialmente orientada. Faz bons planos para o futuro, desejando que o relacionamento com as filhas seja menos desgastante, e que possa estabelecer melhores condições de relacionamento com a sua própria pessoa. crises de depressão, intercaladas por “períodos de normalidade”. Essa é a forma bipolar. Há formas monopolares, com episódios só de mania ou só de depressão, sempre intercalados por “períodos de normalidade”. Nos períodos de depressão, a tristeza reflete-se até na postura física, nos gestos,na inibição psicomotora,acompanhados de sentimento de insuficiência, tentativas de suicídio, distúrbios do sono, da memória, da alimentação etc. Nos períodos de mania, o paciente não se sente doente, mas está excitada, com excesso de actividade, intranquilidade, dorme pouco, faz coisas desnecessárias, é alegre, contagiante, cheia de planos, os quais encara com optimismo exagerado, assumindo riscos consideráveis e injustificáveis. A auto confiança fica exacerbada, convence-se dos seus poderes e eficiência e, embora seja alegre, normalmente incomoda e torna-se insuportável para a convivência familiar. A corrente do pensamento é rápida, costuma apresentar fugas de idéias; a atenção, embora intensa, é fugaz: ocupa-se com um objeto ou idéia, entretanto, não se retém no facto por muito tempo, daí a pouco já estará absorvida por alguma outra coisa. Na mania não é raro a confusão mental e os delírios e alucinações; a capacidade de crítica comprometese totalmente, por basear-se em impressão superficial e ilusória da vida. Depois dessa apertada síntese do quadro clínico da PMD, podemos dizer, com segurança, que a pericianda é portadora de psicose maníaco-depressiva, monopolar, pois nela se manifestam apenas episódios de mania, intercalados por “períodos de normalidade”, dos quais se falará mais adiante. Pelo que nos foi dado apurar, os episódios maníacos ocorrem uns com maior, outros com menor, gravidade, isto é, com mais ou com menos manifestações psicopatológicas, no espaço de 8 a 12 meses, ou, em outras palavras, cerca de uma vez ao ano a pericianda entra em quadro agudo, o qual costuma durar, às vezes, alguns meses. Em data atual podemos asseverar que a pericianda está em período fora dos picos agudos, gozando de tranqüilidade mental, sem alterações psicopatológicas dignas de nota. Possivelmente isso se deve à natureza de sua moléstia e ao bom tratamento psiquiátrico que vem recebendo, além das favoráveis circunstâncias existenciais que a cercam. Síntese e Conclusões Clínicas Conclusões Psiquiátrico-Forenses A examinanda, no momento, não apresenta psicopatologia digna de nota; por outro lado, foi internada algumas vezes e submeteu-se a tratamento psiquiátrico ambulatório durante vários anos. Está atualmente de alta hospitalar, em cujo hospital, Hospital Psiquiátrico Espírita Américo Bairral, ficou internada por cerca de um ano seguido. A primeira pergunta que se levanta é se a pericianda de facto é ou não doente mental. Resposta: é. A doença de que padece chamase psicose maníaco-depressiva (PMD). Preliminarmente vamos dizer, rapidamente, o que é e como são as suas formas clínicas. Com efeito, é uma psicose, isto é, o psiquismo rompe com a realidade, e manifesta-se por crises de mania e por Estamos face a um caso de psicose maníaco-depressiva, monopolar, em período de óptima acalmia. A questão fundamental é esta: é caso de interdição ou não? A resposta, para a psiquiatria forense, está subordinada a outra questão: que é intervalo lúcido? Vamos aqui reproduzir o cerne da doutrina que entendemos ser a melhor, sem deixar de tocar em alguns pontos assessórios, para ajudar a explicar a tão polémica e difícil questão dos intervalos lúcidos. Interessante notar que intervalos lúcidos e lunáticos tiveram a mesma origem, a de se supor depender o distúrbio mental da mudança da lua. Para ilustrar, no mais antigo livro de Medicina Legal português (Instituição de Medicina Forense, de José Ferreira Borges, 1840, pág. 315) lê-se: VOLUME II, Nº2. MARÇO/ABRIL 2000 Artigos O homem que às vezes goza, e às vezes não goza de senso, ou são juízo, chama-se lunático ou aluado – O termo que medeia entre acesso e acesso de loucura chama-se lúcido intervalo. O nome lunático passou para a história de antigamente, mas intervalo lúcido continua actualíssimo. Para caracterizá-lo, nos parece que não podemos alcançar melhor o objetivo do que copiando D’ Aguesseau, o sábio doutrinador do assunto, que conceitua intervalo lúcido assim: Não deve ser uma tranqüilidade superficial, uma sombra de repouso: mas, pelo contrário, uma tranqüilidade profunda, um repouso real: deve ser não um mero raio de razão, que só torna mais viva a sua ausência, quando desaparece; - não um relâmpago que rompe a escuridão só para a deixar mais opaca e hórrida – não um crepúsculo que une a noite ao dia, mas uma luz perfeita, um brilho vívido e contínuo, um dia pleno e inteiro entreposto em meio de duas separadas noites. E, para usar outra imagem, não é aquela calma enganadora e infiel que precede ou segue a tempestade, mas uma mera diminuição, uma remissão de queixa, mas uma espécie de cura temporária, uma intermissão tão claramente marcada que a todo o respeito pareça restabelecimento de saúde: isto é quando à sua natureza. E como é impossível julgar num momento da qualidade de um intervalo, cumpre que haja uma extensão sobeja de tempo, para dar uma segurança perfeita do restabelecimento temporário da razão, que depende das diferentes espécies de furor. É certo que deve haver um tempo e um tempo considerável – isso quanto à sua duração (apud Ferreira Borges , Ibidem, p. 316). Em suma, intervalo lúcido requer normalidade psíquica bem estabelecida, num período de tempo sobejo. Posto isso, voltamos à questão fundamental:A examinanda – que sofre de psicose maníaco-depressiva, e apresenta o psiquismo, no momento, sem atualmente as circunstâncias existenciais da examinanda são especiais; mudadas, certamente mudará o seu fluir mental, predispondo-a à descompensação, se essas circunstâncias também não forem especiais. Quanto ao terceiro (prognóstico desfavorável), preliminarmente é necessário esclarecer que todas as psicoses (entre elas a psicose maníaco-depressiva) têm, em maior ou em menor parte, alguma organicidade, isto é, os distúrbios psicopatológicos nas doenças mentais têm base orgânica, sempre, seja essa conhecida ou estimada. No caso da examinanda é estimada, em cuja estimativa se considera a tara heredo-familiar de que é portadora. A saber: há, na sua família, vários membros que padecem de doença mental: o avô paterno suicidou-se, há uma tia materna que tentou o suicídio, há outro tio materno alcoolista, o próprio filho foi internado cerca de oito vezes num hospital psiquiátrico. Em suma, considerando que a examinanda está em intervalo de acalmia quanto à natureza, mas, quanto ao tempo, não; considerando o longo período de internamento; considerando a necessidade de estar sempre assistida por especialistas psiquiatras; considerando que a periodicidade dos episódios patológicos costumam ser em média anuais; considerando a parcial desorientação em relação aos bens que possui e aos negócios em geral; considerando a organicidade de sua moléstia – somos de parecer que há necessidade de nomeação de curador para assegurar à examinanda assistência médica permanente, na busca constante de aumentar o tempo entre um episódio maníaco e outro e para assegurar, nos períodos intervalares, bom padrão de vida, sem que nada lhe falte, além de administrar os seus bens. É o que nos parece. BIBLIOGRAFIA patologias dignas de nota – está ou não num intervalo lúcido? Resposta: não há dúvida que está em intervalo de acalmia, quanto à natureza; mas Ferreira Borges, J. (1840): Instituições de Medicina Forense. Tipografia Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis: Lisboa, p. 315. também não pomos a menor dúvida em afirmar que não está quanto ao tempo, pelos três motivos que se seguem: 1) tipo de manifestação da Peixoto, A. (1923): Psicopatologia Forense. Francisco Alves. moléstia, 2) mudança de ambiente e 3) prognóstico desfavorável. Quanto ao primeiro (tipo de manifestação da moléstia), vale lembrar que, como aliás é próprio do mal de que padece, os episódios psicopatológicos ocorrem de quando em quando, que na examinanda são de cerca de oito a doze meses, e isso vem acontecendo há muitos anos. Infere-se que poderão ocorrer novamente. Quanto ao segundo (mudança de ambiente), vale lembrar que a examinanda, embora com alta médica, está internada há cerca de um ano no hospital, onde recebe terapia, não há que se preocupar com dinheiro, casa, comida, empregada etc. Mudando essa situação, isto é, voltando à vida fora do hospital, todas as suas circunstâncias mudarão significativamente. “Yo soy yo y mi circunstancia”, (Ortega Y Gasset) ou seja: “eu sou eu e as minhas circunstâncias”, lembrando que VOLUME II, Nº2. MARÇO/ABRIL 2000 41