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INTERVALOS LÚCIDOS
Guido Arturo Palomba
Psiquiatra Forense dos
Tribunais Judiciários do
Estado de São Paulo
Os termos lúcidos intervalos e lunático tiveram a
mesma origem, a de se supor o distúrbio mental
dependente da mudança da lua, e resultaram da
interpretação que se dava nos recuados tempos de
ser a doença mental possessão demoníaca. Se a posse
cessava, se a alma já não era outra, o energúmeno
entrava em intervalo lúcido. O mais antigo livro de
medicina legal português (Instituições de medicina
forense, de José Ferreira Borges, 1840), diz: “O homem
que às vezes goza, e às vezes não goza de senso, ou são
juízo, chama-se lunático ou aluado – O termo que medeia
entre acesso e acesso de loucura chama-se lúcido
inter valo” (Ferreira Borges, 1840, p. 315).
Com o passar dos anos, vindo os estudos
fisiopatológicos e anatomopatológicos, afastou-se por
completo a noção de que a alienação mental dependia
das fases da lua. Já com Esquirol concebia-se que “não
há tal influência ou regularidade de paroxismo: o que é
certo é que a luz amedronta alguns doidos, agrada a outros
e excita a todos” (Ferreira Borges, 1840, p. 315).
É necessário frisar que intervalo lúcido não é uma
alternância de razão e de loucura, mas um estado de
retorno à sanidade plena, não por um só momento,
mas por período de tempo que possa permitir falar
em verdadeira trégua do mal, e isso só é possível se
o período de remissão da sintomatologia for longo.
Em verdade, para que se possa utilizar o termo intervalo
lúcido é preciso observar dois pontos fundamentais.
Primeiro, a remissão completa da psicopatologia; depois,
que essa remissão seja por um período longo.A existência
de um sem o outro não é intervalo lúcido.
A melhor definição de lúcido intervalo foi proposta por
D’Aguesseau, tido como o doutrinador do assunto, que
em célebre sentença, usando metáforas, definiu assim:
“Não deve ser uma tranquilidade superficial, uma sombra
de repouso; mas pelo contrário, uma tranquilidade profunda,
um repouso real: deve ser não um mero raio de razão,
que só torna mais viva a sua ausência, quando desaparece;
não um relâmpago que rompe a escuridão só para a
deixar mais opaca e hórrida; não um crepúsculo que une
a noite ao dia; mas uma luz perfeita, um brilho vívido e
contínuo, um dia pleno e inteiro, entreposto em meio de
duas separadas noites. E, para usar outra imagem, não é
aquela calma enganadora e infiel que segue ou precede
a tempestade, mas uma tranquilidade segura e firme por
algum tempo, uma calma real, uma serenidade perfeita;
enfim, abstraindo de metáforas, não deve ser uma mera
diminuição, uma remissão da queixa, mas uma espécie de
cura temporária, uma intermissão tão claramente marcada
que a todo o respeito pareça restabelecimento de saúde:
isso quanto a natureza. E como é impossível julgar num
momento da qualidade de um intervalo, cumpre que haja
extensão sobeja de tempo, para dar segurança perfeita
do restabelecimento temporário da razão, que depende
das diferentes espécies de furor; mas é certo que deve
haver um tempo, e um tempo considerável, - isso quanto
duração” (Ferreira Borges, 1840, p. 316).
Muito se tem discutido entre os peritos quais as
patologias que são susceptíveis de apresentar intervalos
lúcidos. Não há consenso, mesmo porque o próprio
entendimento sobre o que vem a caracterizar
determinadas doenças mentais pode variar grandemente
de Escola para Escola. Assim é que a esquizofrenia, na
concepção kraepelineana, é incurável, e na bleuleriana,
curável; a paranóia para muitos é incurável, e para
outros, curável – o que nos faz crer que inferir a
existência de lúcidos intervalos apenas pela diagnose
firmada é conduta imprópria que devemos evitar,
e s p a n c a n d o - a c o m fo r m a i s d e s m e n t i d o s .
Independentemente do diagnóstico formulado e da
linha doutrinária seguida pelo profissional, somente será
correto afirmar a existência de lúcidos intervalos
quando houver provas cabais da remissão completa da
insânia. Toda acção, todo gesto do paciente, deve ser
cuidadosamente observado, de preferência em épocas
diversas, a fim de habilitar a formação do juízo correto.
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Quem alega intervalo lúcido deve mostrar sanidade e competência
no período questionado. Um só acto de juízo ou de tranquilidade
momentânea não serve para caracterizar o intervalo de que se fala.
Conhecem-se doenças mentais que evoluem por surtos, por
episódios, com períodos de flórida psicopatologia, e depois remitem.
Conhecem-se crises de agitação, de melancolia, de irritabilidade,
que acometem o indivíduo de quando em quando. Porém, o que
se vê é que, nos espaços entre os estados patológicos agudos, há
sempre um defeito psíquico ou uma inferioridade, não permitindo
caracterizar os lúcidos intervalos, a ponto de ter permitido a Afrânio
Peixoto asseverar que intervalo lúcido é um erro de pelo menos
vinte e quatro séculos, que compreende o período desde o
nascimento do Direito, em Roma, até os nossos dias, “graças à
psiquiatria atrasada de outrora e tradicionalista, hoje em dia” (Peixoto,
1923, p. 146). No que concerne à doença mental, parece-nos
irrefutável a opinião do mestre citado, embora possa haver algumas
raríssimas excepções. Entretanto, essas excepções não existem
quando a psicopatologia é proveniente de mal inato ou adquirido
precocemente, cujas provas de organicidade são irretorquíveis.
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Lúcidos intervalos podem ocorrer em certas síndromes de perturbação
da saúde mental, nos neuróticos e nos toxicodependentes e alcoólicos
moderados, mas sempre se deve considerar que a variação
psicopatológica é individual, não estando, portanto, somente na natureza
da síndrome a possibilidade da existência de tais períodos intervalares.
Por conseguinte, não há fórmula geral para aplicação nas verificações
de responsabilidade penal e de capacidade civil; assim, é justo e
necessário que se examine e adapte à Justiça cada caso em separado.
Se por ventura o período entre uma intercorrência patológica e
outra for curto, deve-se, com toda a segurança, opinar pela inexistência
de lúcido intervalo, mesmo que o acto em questão possa parecer de
bom siso, uma vez que a desordem mental necessita de um certo
tempo para ser digerida e assimilada até à final e completa recomposição
das funções psíquicas. Desordens mentais seguidas levam o sofredor
a apresentar, entre crise e crise, estado patológico basal permanente.
existência desses períodos intervalares de plena lucidez, desde
que essas crises não ocorram amiúde, que se considerem
comprometidos os períodos precedentes e sucessivos próximos
às crises e, é claro, que o tono psíquico basal do epiléptico
neurológico não lhe confira, como amiúde ocorre, labilidade de
humor, afetividade impulsiva, distúrbios da memória, da inteligência,
da conação, da volição ou quaisquer outras manifestações
psicopatológicas que possam levar o sofredor a estado mental duvidoso.
Quanto à epilepsia psicótica, é necessário que entre um episódio
psicótico e outro, além da remissão total do mal haja, e isso é
importante, longo período de tempo. O mesmo se pode dizer
para a forma condutopática, embora ambas essas formas sejam de
difícil remissão ad integram, por período sobejo de tempo.
Vale a pena lembrar que na epilepsia que se manifesta por distúrbios
de comportamento é comum encontrar-se indivíduos ajuizados
nas palavras, mas insensatos nas ações. Tais sofredores produzem,
às vezes, combinações justas, mas ao mais leve excitamento, na
presença de um fator qualquer, o juízo escurece-se, a luz que
parecia animá-lo extingue-se, e aquela sisudeza no discurso queda
por incongruente diante do extravagante comportamento. O que
parecia ouro e diamante, em verdade era cobre e vidro.
Merece ainda ser mencionada a psicose maníaco-depressiva, cuja
patologia evolui por episódios de mania intercalados de depressão
(bipolar) ou episódios só de mania ou só de depressão
(monopolar). Entre episódio e episódio pode haver remissão
total do quadro mas, quase sempre, as recidivas são constantes,
o que não permite caracterizar a existência de lúcido intervalo.
Caso clínico
M.B.A., diagnóstico: psicose maníaco-depressiva, laudo de exame de sanidade
mental para instruir acção de interdição. Não é caso de intervalo lúcido.
Introdução
Dentre as patologias mais frequentemente interrogadas está a epilepsia,
cujo mal comporta formas clínicas, tais como: neurológica, psicótica
e comportamental ou condutopática. A mesma regra que se utiliza
para verificação de intervalos lúcidos em outras patologias vale
também para a epilepsia: remissão completa do mal e período longo
de tempo entre um episódio patológico e outro episódio patológico.
Vale lembrar sobre a epilepsia que, normalmente, na sua forma
neurológica, entre uma crise e outra, costuma haver remissão
completa dos sinais e sintomas clínicos, sendo de todo possível a
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Nós, Guido Arturo Palomba, especialista em psiquiatria forense,
com título concedido pela Associação Brasileira de Psiquiatria e
Sociedade Brasileira de Medicina Legal, ex-médico chefe do Manicômio
Judiciário de São Paulo, Membro Titular da Academia de Medicina
de São Paulo e da Academia Paulista de História, vice-presidente
da Associação Paulista de Medicina—, fomos honrosamente nomeados
pela Meritíssima Senhora Doutora Juíza de Direito da 4ª Vara da
Família para realizar perícia psiquiátrica em M.B.A., que sofre
processo de interdição, proposto por sua filha V.A.B.
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Tal acção judicial é contestada por H.G.S., que alega conviver
maritalmente com a interditanda.
Após acuradas observações, redigimos este documento.
Identificação da examinanda
M.B.A., senhora de 61 anos, filha de G.P.A. e de A.B.C., nascida em
18/12/1934, em São Paulo, SP.
Antecedentes pessoais
De interesse para o caso assinala-se: Não há registo de complicações
neuropsiquiátricas na infância.
Casou-se com 19 anos de idade, teve quatro filhos e oito gestações,
três abortos espontâneos e um provocado (feto morto in útero).
Permaneceu casada por vinte e cinco anos incompletos (separouse em 1981), por “incompatibilidade de gênios” (sic). O ex-marido
morreu há cerca de três anos.
Em abril de 1994 perdeu um dos filhos, que padecia de SIDA.
Estudou, depois de casada, formando-se professora, mas nunca
exerceu a profissão. No passado dedicava-se às artes, artesanato
em geral. Chegou a ter uma fábrica no género.
Quando tinha vinte e sete anos de idade submeteu-se à psicanálise,
por dois anos (sic). Submeteu-se, também, a outras terapias, algumas
alternativas, como, por exemplo, as ministradas por parapsicólogos.
Após separar-se do marido sofreu o primeiro internamento psiquiátrico,
não sabendo definir os motivos determinantes de tal. Foi na Clínica
Granja Julieta. Cerca de dois anos depois foi novamente internada
(Clínica Tobias), desconhecendo, também aqui, os motivos desses
internamentos. Depois foi novamente internada, várias vezes. Esteve no
Hospital Espírita Américo Bairral, em Itapira.A primeira vez, por cinquenta
dias, a última por quase um ano. Recentemente recebeu, deste hospital,
alta médica, mas ainda lá se encontra em regime de hospital dia.
Usava bebidas alcoólicas socialmente,não havendo história pregressa de crises
convulsivas,toxicomania,desmaios,traumatismo craniano.Tem hábitos tabágicos.
Entrevista com as Filhas
As filhas da examinanda M.A.B.P. e V.B., entrevistadas, disseram,
quando perguntamos especificamente, que a interditanda, antes das
internações, começa a perder a noção dos factos, dos limites, não
tem horários, não dorme, começa a fazer as coisas e não termina.
Afirmaram que só a internam quando o quadro fica incontrolável.Antes do
último internamento a pericianda, que morava sozinha, sofreu protestos de
títulos,ações trabalhistas,não mais assinava cheques correctamente,“chegando
a decorá-los com flores”, tinha aluguéis para receber e não o fazia (sic).
Dizem que o primeiro internamento ocorreu há cerca de treze anos,
mas que a interditanda sempre foi muito excêntrica. Para justificar
exemplificam dizendo que certa vez comprou um apartamento em
Curitiba para morar. Porém, antes disso, mandou derrubar quase todas
as paredes para reformá-lo. Enquanto isso, alugou um imóvel próximo.
Não chegou a morar, nem a terminar a reforma e voltou para São
Paulo. Outra vez, comprou uma casa nos Estados Unidos e passou
para o nome de um companheiro. Mudou sete vezes de residência.
Dizem as filhas que a mãe, fora desses períodos críticos, costuma ser
ordeira, asseada e quando ocorre a crise tudo desaparece. A casa
onde morava ficava suja, descuidava-se da higiene corporal, chegava
a manter, por um bom tempo, comida na geladeira, a qual se estragava
e, mesmo assim, permanecia guardada, exalando mau cheiro.
Dizem também que as crises costumam, em média, se repetir uma
vez por ano. Até agora sofreu cerca de dez internamentos.
Entrevista com o Companheiro
Entrevistamos o Senhor H.G.S., que afirma ser companheiro da
examinanda há treze anos.
Para o entrevistado a pericianda é pessoa normal, “um excelente
ser humano”. Durante esse período em que está internada foi
visitá-la todos os fins-de-semana.
Diz o seguinte:“Não vejo nada de anormal nela, ela é uma artista. No meu
conceito tudo isso não passa de uma grande farsa, por interesses materiais”.
Antecedentes Hereditários
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De interesse para o caso são os dados que se seguem:
O avô materno suicidou-se com tiro de revólver.
Um tio, irmão da mãe, é alcoólico crónico. Uma tia, irmã da mãe,
tentou o suicídio.
Um filho da examinanda (faleceu após contrair SIDA) foi internado
oito vezes em hospital psiquiátrico. Segundo as informações das filhas
da examinanda as épocas dos internamentos eram muito desgastantes,
“eram situações trágicas, ele não dormia, era muito agitado, confuso,
e foi diagnosticado como portador de psicose maníaco-depressiva”
Inspeção Física
Quando criança teve “umas duas, três” (sic) crises de sonambulismo.
Durante o período de internamentos perdeu 14 quilos.
Sua compleição física é do tipo pícnico-atlético na tipologia de Kretschmer.
Não há distúrbios neurológicos evidentes, não há alterações dignas de
nota para o lado dos principais órgãos e aparelhos essenciais à vida.
Exame Psíquico
Comparece aos exames trajando-se bem,adequada.Discretamente maquiada.
Está calma, atenta, colaborante e orientada globalmente.
Curso e conteúdo do pensamento normais. Isto é, não apresenta
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desagregação, não tem prolixidade, fugas de idéias, tematismo,
e no conteúdo não apresenta idéias delirantes, deliróides etc.
Inteligência boa, tanto a inteligência prática quanto a abstrativa.
Afectividade, no momento, conservada, mas com pequenas manifestações
de indiferença. Nessas horas predomina o egoísmo sobre o altruísmo.
Sem distúrbios senso-perceptivos, isto é, não há alucinações (visuais,
auditivas, tácteis, gustativas e olfativas), ilusões etc.
Memórias com algumas falhas. Sobre os períodos próximos que
antecederam os internamentos não sabe descrever o que se passou
na sua vida. Lembra-se de fatos isolados e pouco precisos. Ainda
sobre a memória, apresentou episódios de “já visto”.
O humor, no momento, está fluindo bem, mas é certo que apresentou
várias manifestações de disforia. Nessas horas perde o sono, faz
várias coisas ao mesmo tempo, abandonando-as sem levá-las a cabo,
mostra-se agitada, mas sem depressão.Aliás, não notamos, e também
não há história pregressa, de crises depressivas, motivadas e imotivadas.
Instada a falar dos negócios em geral e dos seus em particular, está
parcialmente orientada quanto aos bens que possui e quanto ao que
ocorre no momento actual com os preços dos géneros alimentícios,
dos vestuários, do câmbio do dólar em relação ao real, do valor dos
aluguéis e do valor médio de uma propriedade urbana e rural. Justifica
a parcial orientação pelo tempo em que está internada e portanto
afastada desses assuntos, e às mudanças ocorridas no País.
Sobre o processo a que se submete, o de interdição, tem noção
parcial do que é uma interdição judicial, e quando se lhe perguntam
“que acha de ser internada?”, diz: “para mim a internação vem
como uma mensagem benéfica”. Justifica tal afirmativa dizendo que
nesse período de internamento os seus negócios triplicaram. Em
suma, sobre a parte dos negócios e o processo a que se submete,
no momento, podemos dizer que está parcialmente orientada.
Faz bons planos para o futuro, desejando que o relacionamento
com as filhas seja menos desgastante, e que possa estabelecer
melhores condições de relacionamento com a sua própria pessoa.
crises de depressão, intercaladas por “períodos de normalidade”. Essa
é a forma bipolar. Há formas monopolares, com episódios só de mania
ou só de depressão, sempre intercalados por “períodos de normalidade”.
Nos períodos de depressão, a tristeza reflete-se até na postura física, nos
gestos,na inibição psicomotora,acompanhados de sentimento de insuficiência,
tentativas de suicídio, distúrbios do sono, da memória, da alimentação etc.
Nos períodos de mania, o paciente não se sente doente, mas está
excitada, com excesso de actividade, intranquilidade, dorme pouco,
faz coisas desnecessárias, é alegre, contagiante, cheia de planos, os
quais encara com optimismo exagerado, assumindo riscos
consideráveis e injustificáveis. A auto confiança fica exacerbada,
convence-se dos seus poderes e eficiência e, embora seja alegre,
normalmente incomoda e torna-se insuportável para a convivência
familiar. A corrente do pensamento é rápida, costuma apresentar fugas
de idéias; a atenção, embora intensa, é fugaz: ocupa-se com um objeto ou
idéia, entretanto, não se retém no facto por muito tempo, daí a pouco
já estará absorvida por alguma outra coisa. Na mania não é raro a confusão
mental e os delírios e alucinações; a capacidade de crítica comprometese totalmente, por basear-se em impressão superficial e ilusória da vida.
Depois dessa apertada síntese do quadro clínico da PMD, podemos dizer,
com segurança, que a pericianda é portadora de psicose maníaco-depressiva,
monopolar, pois nela se manifestam apenas episódios de mania, intercalados
por “períodos de normalidade”, dos quais se falará mais adiante.
Pelo que nos foi dado apurar, os episódios maníacos ocorrem uns
com maior, outros com menor, gravidade, isto é, com mais ou com
menos manifestações psicopatológicas, no espaço de 8 a 12 meses,
ou, em outras palavras, cerca de uma vez ao ano a pericianda entra
em quadro agudo, o qual costuma durar, às vezes, alguns meses.
Em data atual podemos asseverar que a pericianda está em período
fora dos picos agudos, gozando de tranqüilidade mental, sem alterações
psicopatológicas dignas de nota. Possivelmente isso se deve à natureza
de sua moléstia e ao bom tratamento psiquiátrico que vem recebendo,
além das favoráveis circunstâncias existenciais que a cercam.
Síntese e Conclusões Clínicas
Conclusões Psiquiátrico-Forenses
A examinanda, no momento, não apresenta psicopatologia digna de
nota; por outro lado, foi internada algumas vezes e submeteu-se a
tratamento psiquiátrico ambulatório durante vários anos. Está
atualmente de alta hospitalar, em cujo hospital, Hospital Psiquiátrico
Espírita Américo Bairral, ficou internada por cerca de um ano seguido.
A primeira pergunta que se levanta é se a pericianda de facto é
ou não doente mental. Resposta: é. A doença de que padece chamase psicose maníaco-depressiva (PMD).
Preliminarmente vamos dizer, rapidamente, o que é e como são as
suas formas clínicas. Com efeito, é uma psicose, isto é, o psiquismo
rompe com a realidade, e manifesta-se por crises de mania e por
Estamos face a um caso de psicose maníaco-depressiva, monopolar,
em período de óptima acalmia.
A questão fundamental é esta: é caso de interdição ou não? A resposta, para
a psiquiatria forense, está subordinada a outra questão: que é intervalo lúcido?
Vamos aqui reproduzir o cerne da doutrina que entendemos ser a
melhor, sem deixar de tocar em alguns pontos assessórios, para ajudar
a explicar a tão polémica e difícil questão dos intervalos lúcidos.
Interessante notar que intervalos lúcidos e lunáticos tiveram a mesma
origem, a de se supor depender o distúrbio mental da mudança da lua.
Para ilustrar, no mais antigo livro de Medicina Legal português (Instituição
de Medicina Forense, de José Ferreira Borges, 1840, pág. 315) lê-se:
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O homem que às vezes goza, e às vezes não goza de senso, ou são
juízo, chama-se lunático ou aluado – O termo que medeia entre acesso
e acesso de loucura chama-se lúcido intervalo.
O nome lunático passou para a história de antigamente, mas intervalo
lúcido continua actualíssimo. Para caracterizá-lo, nos parece que não
podemos alcançar melhor o objetivo do que copiando D’ Aguesseau,
o sábio doutrinador do assunto, que conceitua intervalo lúcido assim:
Não deve ser uma tranqüilidade superficial, uma sombra de repouso:
mas, pelo contrário, uma tranqüilidade profunda, um repouso real: deve
ser não um mero raio de razão, que só torna mais viva a sua ausência,
quando desaparece; - não um relâmpago que rompe a escuridão só
para a deixar mais opaca e hórrida – não um crepúsculo que une a
noite ao dia, mas uma luz perfeita, um brilho vívido e contínuo, um dia
pleno e inteiro entreposto em meio de duas separadas noites. E, para
usar outra imagem, não é aquela calma enganadora e infiel que precede
ou segue a tempestade, mas uma mera diminuição, uma remissão de
queixa, mas uma espécie de cura temporária, uma intermissão tão
claramente marcada que a todo o respeito pareça restabelecimento de
saúde: isto é quando à sua natureza. E como é impossível julgar num
momento da qualidade de um intervalo, cumpre que haja uma extensão
sobeja de tempo, para dar uma segurança perfeita do restabelecimento
temporário da razão, que depende das diferentes espécies de furor. É
certo que deve haver um tempo e um tempo considerável – isso quanto
à sua duração (apud Ferreira Borges , Ibidem, p. 316).
Em suma, intervalo lúcido requer normalidade psíquica bem
estabelecida, num período de tempo sobejo.
Posto isso, voltamos à questão fundamental:A examinanda – que sofre de
psicose maníaco-depressiva, e apresenta o psiquismo, no momento, sem
atualmente as circunstâncias existenciais da examinanda são especiais;
mudadas, certamente mudará o seu fluir mental, predispondo-a à
descompensação, se essas circunstâncias também não forem especiais.
Quanto ao terceiro (prognóstico desfavorável), preliminarmente é
necessário esclarecer que todas as psicoses (entre elas a psicose
maníaco-depressiva) têm, em maior ou em menor parte, alguma
organicidade, isto é, os distúrbios psicopatológicos nas doenças mentais
têm base orgânica, sempre, seja essa conhecida ou estimada. No caso
da examinanda é estimada, em cuja estimativa se considera a tara
heredo-familiar de que é portadora. A saber: há, na sua família, vários
membros que padecem de doença mental: o avô paterno suicidou-se,
há uma tia materna que tentou o suicídio, há outro tio materno alcoolista,
o próprio filho foi internado cerca de oito vezes num hospital psiquiátrico.
Em suma, considerando que a examinanda está em intervalo de
acalmia quanto à natureza, mas, quanto ao tempo, não; considerando
o longo período de internamento; considerando a necessidade de
estar sempre assistida por especialistas psiquiatras; considerando que
a periodicidade dos episódios patológicos costumam ser em média
anuais; considerando a parcial desorientação em relação aos bens
que possui e aos negócios em geral; considerando a organicidade de
sua moléstia – somos de parecer que há necessidade de nomeação
de curador para assegurar à examinanda assistência médica permanente,
na busca constante de aumentar o tempo entre um episódio maníaco
e outro e para assegurar, nos períodos intervalares, bom padrão de
vida, sem que nada lhe falte, além de administrar os seus bens.
É o que nos parece.
BIBLIOGRAFIA
patologias dignas de nota – está ou não num intervalo lúcido? Resposta:
não há dúvida que está em intervalo de acalmia, quanto à natureza; mas
Ferreira Borges, J. (1840): Instituições de Medicina Forense. Tipografia Sociedade
Propagadora dos Conhecimentos Úteis: Lisboa, p. 315.
também não pomos a menor dúvida em afirmar que não está quanto ao
tempo, pelos três motivos que se seguem: 1) tipo de manifestação da
Peixoto, A. (1923): Psicopatologia Forense. Francisco Alves.
moléstia, 2) mudança de ambiente e 3) prognóstico desfavorável.
Quanto ao primeiro (tipo de manifestação da moléstia), vale lembrar
que, como aliás é próprio do mal de que padece, os episódios
psicopatológicos ocorrem de quando em quando, que na examinanda
são de cerca de oito a doze meses, e isso vem acontecendo há
muitos anos. Infere-se que poderão ocorrer novamente.
Quanto ao segundo (mudança de ambiente), vale lembrar que a
examinanda, embora com alta médica, está internada há cerca de um
ano no hospital, onde recebe terapia, não há que se preocupar com
dinheiro, casa, comida, empregada etc. Mudando essa situação, isto é,
voltando à vida fora do hospital, todas as suas circunstâncias mudarão
significativamente. “Yo soy yo y mi circunstancia”, (Ortega Y Gasset)
ou seja: “eu sou eu e as minhas circunstâncias”, lembrando que
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