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1ª Conferência Nacional de Educação, Cultura e Desporto
Câmara dos Deputados – Comissão de Educação, Cultura e Desporto
Brasília, 22 a 24 de novembro de 2000
Tema Geral: “Desafios para o Século XXI”
EDUCAÇÃO, CULTURA E DESPORTO
Concepção e desafios para o século XXI
Moacir Gadotti
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“Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte
é um tempo de possibilidades e não determinismo.
Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade”.
Paulo Freire.
Depois das palavras de apresentação desta Conferência, extraídas do discurso de
Anísio Teixiera, na Assembléia Legislativa da Bahia em 1947, o uso da palavra torna-se
problemático. Dizia Anísio: “Há cem anos os educadores se repetem entre nós. Esvaemse em palavras, esvaímo-nos em palavras e nada fazemos. Atacou-nos, por isto mesmo,
um estranho pudor pela palavra e um desespero mudo pela ação”.
O que nos consola é que também Anísio teve que usar a palavra para mostrar o
seu constrangimento.
Estamos vivendo a mística da passagem do milênio. Se a história fosse feita pelo
calendário, já estaríamos vivendo dias melhores com a tão festejada chegada do “Ano
2000” e as celebrações dos “Quinhentos anos do Brasil”, que poucos gostam de lembrar
depois do simbólico fracasso da nau “Capitânea”.
Agora estamos diante do ícone do “Século XXI”. Nada contra o poder diabólico
do simbólico. Ele é conhecido. O tema dos “Desafios para o Século XXI” é por si
mesmo um desafio. O primeiro desafio é o de compreender de forma crítica, não
mistificada, o momento em que vivemos, a passagem para o Século XXI.
Na verdade os desafios do Século XXI não são misteriosos, nem muito difíceis
de encontrar. Eles também não são muito diferentes dos desafios do Século que está
terminando. Os desafios, os sonhos, as utopias continuam os mesmos enquanto não
forem realizados. Neste sentido, o sonho de um país justo, não-violento, o sonho de uma
melhor distribuição de renda, do fim da miséria, da corrupção e do analfabetismo, uma
educação de qualidade para todos... todos esses sonhos/desafios continuarão válidos dia
1 de janeiro de 2001. Por isso as palavras de Anísio são extremamente atuais: “Sobre
assunto algum se falou tanto no Brasil e, em nenhum outro, tão pouco se realizou. Não
há, como fugir a impressão penosa de que nos estamos a repetir”.
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Moacir Gadotti, Professor titular da Universidade de São Paulo, Diretor do Instituto Paulo Freire e
autor, entre outras obras, de: A educação contra a educação (Paz e Terra, 1979: Francês e Português),
Convite à leitura de Paulo Freire (Scipione, 1988: Português, Espanhol, Inglês, Japonês e Italiano),
História das idéias pedagógicas (Ática, 1993: Português e Espanhol), Pedagogia da práxis (Cortez,
1994: Português, Espanhol e Inglês), Perspectivas atuais da educação (Artes Médicas, 2000) e
Pedagogia da Terra (Peirópollis, 2000).
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Mesmo diante da advertência de Anísio Teixeira, como educadores, temos que
continuar insistindo, principalmente quanto aos resultados concretos da legislação e das
políticas educacionais. Creio que essa vai ser a tônica dessa Conferência.
Creio que nos encontramos frente a novos desafios que, na verdade, são velhos
problemas. Mesmo reconhecendo que houve avanços significativos, consignados
principalmente na Lei de Diretrizes de Bases de 1996, mesmo reconhecendo esforços
feitos em nível federal, estadual, como a atuação do CONSED (Conselho Nacional de
Secretários de Educação), e municipal, com a firme atuação da UNDIME (União dos
Dirigentes Municipais de Educação), velhos problemas persistem:
1o. A educação pública continua ameaçada, principalmente a superior. As
instituições de ensino superior públicas são obrigadas a buscar fontes alternativas de
financiamento.
2o. A formação da professora foi entregue à iniciativa privada e, mesmo assim,
continuam atribuindo a ela o mau desempenho escolar. Não se culpam os baixos
salários e as péssimas condições de ensino.
3o. Na década observou-se um descompromisso crescente com a educação
infantil, a educação de jovens e adultos e a educação no campo, decorrente da
prioridade dada ao ensino fundamental.
4o. Reformas educacionais com baixa participação. Quem hoje ouve os fóruns,
as entidades representativas e as instâncias de deliberação colegiada, previstos na
constituição, através de mecanismos como as “audiências públicas”? O Brasil participou
da Conferência de Dakar (abril de 2000) onde foi assumido o compromisso de criar um
“Fórum Nacional de Educação para Todos”, transparente e democrático. Não tenho
conhecimento de que ele esteja funcionando.
A lição que tiro dos anos 90 é que as reformas educativas feitas verticalmente,
tecnocraticamente, por melhores que sejam as intenções, por melhor que tenha sido o
diagnóstico e a solução apresentada, elas fracassaram porque lhes faltou legitimação
pública, na medida em que os atores principais não foram envolvidos, principalmente os
professores. Se faltar essa aliança, esse acordo, se faltar a busca de consensos mínimos,
o risco é muito grande, inclusive de retrocesso. É o caso da implantação dos ciclos sem
consulta às escolas. Só a escola, pelo debate do seu projeto político-pedagógico pode
implantar com sucesso a progressão continuada.
Mudar a educação requer participação ativa e direta de seus agentes (pais,
mestres, alunos, comunidade...). Um plano de ação nesse sentido é tão importante
quanto o aumento de recursos públicos. Para mudar, a escola precisa apoiar-se na
sociedade, através da criação de uma esfera pública de decisão não-estatal, como o
emblemático “orçamento participativo” e a “constituinte escolar”. Para mudar, não basta
que a análise dos governantes e as soluções apontadas estejam corretas. É preciso que
elas sejam legitimadas pela discussão coletiva. Quem opera a mudança é o coletivo.
E a escola precisa mudar radicalmente na era da informação. Precisa passar de
uma concepção de educação como produção em série – seriação – e de repetição de
saberes da sociedade industrial, da parcelarização do conhecimento, para uma
concepção transdisciplinar da educação, da era da informação pós-industrial e da nova
economia, onde predominam a autonomia e a aprendizagem colaborativa, onde todos
podem “dizer a sua palavra” (Freire). Na era da informação, a escola precisa deixar de
ser lecionadora, para ser gestora do conhecimento. Só o conhecimento compartilhado é
conhecimento válido. A educação é mais um ato de produção e de reconstrução do que
um ato de transmissão e de assimilação de conhecimentos.
O desafio da mudança da escola pública é, ao mesmo tempo, cultural e
estrutural. Sem mexer nas estruturas não se muda a escola. Mas também é preciso
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mexer nas relações sociais e humanas e numa cultura escolar que valoriza um certo
saber e despreza outro. A escola é um espaço de relações sócio-culturais. A
reestruturação física da escola deve associar-se a uma reestruturação espiritual e
cultural.
Os desafios são conhecidos e gostaria de não me “repetir”, como disse Mestre
Anísio. Não vou falar de legislação e nem de política educacional para não causar mais
constrangimento ao mestre. Gostaria de colocar apenas algumas idéias para o debate em
relação à “concepção de educação e cultura”, tomando por referência a categoria
sustentabilidade.
Três décadas de debates sobre “nosso futuro comum” deixaram algumas pegadas
ecológicas, tanto no campo da economia, quanto no campo da ética, da política e da
educação, que podem nos indicar um caminho diante dos “desafios do Século XXI”. A
sustentabilidade tornou-se um tema gerador preponderante neste início de milênio para
pensar não só o planeta, portador de um projeto social global e capaz de reeducar nosso
olhar e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a esperança num futuro possível,
com dignidade, para todos.
O cenário não é otimista: podemos destruir toda a vida no planeta neste milênio
que se inicia. Uma ação conjunta global é necessária, um movimento como grande obra
civilizatória de todos é indispensável para realizarmos essa outra globalização, essa
planetarização, fundamentada em outros princípios éticos que não os baseados na
exploração econômica, na dominação política e na exclusão social. O modo pelo qual
vamos produzir nossa existência neste pequeno planeta, decidirá sobre a sua vida ou a
sua morte e a de todos os seus filhos e filhas. A Terra deixou de ser um fenômeno
puramente geográfico para se tornar um fenômeno histórico.
Os paradigmas clássicos, fundados numa visão industrialista predatória,
antropocêntrica e desenvolvimentista, estão se esgotando, não dando conta de explicar
o momento presente e de responder às necessidades futuras. Necessitamos de um outro
paradigma, fundado numa visão sustentável do planeta Terra. O globalismo é
essencialmente insustentável. Ele atende primeiro às necessidades do capital e depois às
necessidades humanas. E muitas das necessidades humanas a que ele atende, tornaramse “humanas” apenas porque foram produzidas como tais para servirem ao capital.
Precisamos de uma “pedagogia da Terra”, uma pedagogia apropriada para esse
momento de reconstrução paradigmática, apropriada à cultura da sustentabilidade e
da paz. Ela vem se constituindo gradativamente, beneficiando-se de muitas reflexões
que ocorreram nas últimas décadas, principalmente no interior do movimento ecológico.
Ela se fundamenta num paradigma emergente na educação que propõe um conjunto de
saberes/valores interdependentes. Entre eles podemos destacar:
1º) Educar para pensar globalmente. Na era da informação, diante da
velocidade com que o conhecimento é produzido e envelhece, não adianta acumular
conhecimentos. É preciso saber pensar. E pensar a realidade. Não pensar pensamentos
já pensados. Daí a necessidade de recolocarmos o tema do conhecimento, do saber
aprender, do saber conhecer, das metodologias, da organização do trabalho na escola.
2º) Educar os sentimentos. O ser humano é o único ser vivente que se pergunta
sobre o sentido de sua vida. Educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se,
para viver com sentido em cada instante da nossa vida. Somos humanos porque
sentimos e não apenas porque pensamos. Somos parte de um todo em construção.
3º) Ensinar a identidade terrena como condição humana essencial. Nosso
destino comum no planeta, compartilhar com todos sua vida no planeta. Nossa
identidade é ao mesmo tempo individual e cósmica. Educar para conquistar um vínculo
amoroso com a Terra, não para explorá-la, mas para amá-la.
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4º) Formar para a consciência planetária. Compreender que somos
interdependentes. A Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, os seus cidadãos. Não
precisaríamos de passaportes. Em nenhum lugar na Terra deveríamos nos considerar
estrangeiros. Separar primeiro de terceiro mundos significa dividir o mundo para
governá-lo a partir dos mais poderosos. Essa é divisão globalista entre globalizadores e
globalizados, o contrário do processo de planetarização.
5º) Formar para a compreensão. Formar para a ética do gênero humano, não
para a ética instrumental e utilitária do mercado. Educar para comunicar-se. Não
comunicar para explorar, para tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo melhor.
Inteligente não é aquele que sabe resolver problemas (inteligência instrumental), mas
aquele que tem um projeto de vida solidário. Porque a solidariedade não é hoje apenas
um valor. É condição de sobrevivência de todos.
6º) Educar para a simplicidade e para a quietude. Nossas vidas precisam ser
guiadas por novos valores: simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, saber
viver juntos, compartir, descobrir e fazer juntos. Precisamos escolher entre um mundo
mais responsável frente à cultura dominante que é uma cultura de guerra, de
competitividade sem solidariedade e passar de uma responsabilidade diluída à uma ação
concreta, praticando a sustentabilidade na vida diária, na família, no trabalho, na escola,
na rua. A simplicidade não se confunde com a simploriedade e a quietude não se
confunde com a cultura do silêncio. A simplicidade tem que ser voluntária como a
mudança de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A quietude é uma
virtude, conquistada com a paz interior e não pelo silêncio imposto.
É claro, tudo isso supõe justiça e justiça supõe que todas e todos tenham acesso
à qualidade de vida. Seria cínico falar de redução de demandas de consumo, atacar o
consumismo, aos que ainda não tiveram acesso ao consumo básico. Não existe paz sem
justiça.
Diante do possível extermínio do planeta surgem alternativas numa cultura da
paz e uma cultura da sustentabilidade. Sustentabilidade não tem a ver apenas com a
biologia, a economia e a ecologia. Sustentabilidade tem a ver com a relação que
mantemos conosco mesmos, com os outros e com a natureza. A pedagogia deveria
começar por ensinar sobretudo a ler o mundo, como nos diz Paulo Freire, o mundo que
é o próprio universo, por que é ele nosso primeiro educador. Essa primeira educação é
uma educação emocional que nos coloca diante do mistério do universo, na intimidade
com ele, produzindo a emoção de nos sentirmos parte desse sagrado ser vivo e em
evolução permanente.
Não entendemos o universo como partes separadas, entidades separadas, mas
como um todo sagrado, misterioso, que nos desafia a cada momento de nossas vidas, em
evolução, em expansão, em interação. Razão, emoção e intuição são partes desse
processo, onde o próprio observador está implicado. O Paradigma-Terra é um
paradigma civilizatório. E como a cultura da sustentabilidade oferece uma nova
percepção da Terra, considerando-a como uma única comunidade de humanos, ela se
torna básica para uma cultura de paz.
O universo não está lá fora. Está dentro de nós. Está muito próximo de nós. Um
pequeno jardim, uma horta, um pedaço de terra, é um mocrocosmos de todo o mundo
natural. Nele encontramos formas de vida, recursos de vida, processos de vida. A partir
dele podemos reconceitualizar nosso currículo escolar. Ao construí-lo e ao cultivá-lo
podemos aprender muitas coisas. As crianças o encaram como fonte de tantos mistérios.
Ele nos ensina os valores da emocionalidade com a Terra: a vida, a morte, a
sobrevivência, os valores da paciência, da perseverança, da criatividade, da adaptação,
da transformação, da renovação... Todas as nossas escolas podem transformar-se em
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jardins e professores-alunos, educadores-educandos, em jardineiros. O jardim nos
ensina ideais democráticos: conexão, escolha, responsabilidade, decisão, iniciativa,
igualdade, biodiversidade, cores, classes, etnicidade, gênero.
Estamos diante do crescimento incessante e paralelo entre a miséria e a
tecnologia: somos uma espécie de sucesso no campo tecnológico, mas muito mal
sucedida no governo do humano. Vivemos na era da informação, mas não do
conhecimento e da comunicação. As tecnologias da comunicação não significam
comunicação humana. Temos necessidade, por isso, de uma “esfera pública cidadã”
(Jürgen Habermas), uma esfera pública de decisão não-estatal, e, como diz Adela
Cortina, de uma “ética pública cívica”, fundada numa sociedade pluralista (por
exemplo, respeitar respostas distintas a perguntas sobre a vida, isto é, pluralismo ético);
na convivência autêntica (viver juntos e não apenas justapor-se); na construção coletiva
(tarefa a realizar permanentemente pois os pontos de convergência não são automáticos)
e no descobrimento mútuo e no diálogo (buscar o que temos em comum).
É um ideal de educação?
Sim. Porque, para educar é preciso um sonho, uma utopia. Só o educador
utópico é realista, é competente. Porque educar é sonhar com um mundo de certos
valores e educar em função deles. Primeiro o educador volta-se para o futuro, depois
para o presente. O compromisso com esse futuro, a ética, não é algo que se acrescenta,
por opção pessoal, à competência do professor, da professora. É inerente à sua função
educadora.
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