A ÚLTIMA VIAGEM DE BORGES
Fernanda Aparecida RIBEIRO (PG – UNESP/Assis-SP)
ISBN: 978-85-99680-05-6
REFERÊNCIA:
RIBEIRO, Fernanda Aparecida. A última viagem de
Borges. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS
LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007,
Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 357-363.
Ignácio de Loyola Lopes Brandão nasceu em Araraquara - SP, no dia 31 de julho
de 1936. Na biblioteca de seu pai se encontrava mais de 500 títulos, o que incentivou o
menino à leitura. Brandão escreveu romances, contos, crônicas, biografias e, em 2005,
publicou uma peça teatral com o nome de A última viagem de Borges.
A partir do título dessa obra de Ignácio de Loyola Brandão já se tem um sentido,
um caminho para a compreensão do texto: A última viagem de Borges se refere a uma
jornada final – a morte, provavelmente – de um dos maiores escritores hispanoamericanos do século XX, Jorge Luis Borges, que influenciou a literatura universal com
seus textos “zombeteiros”. E, assim, o título anuncia o enredo da obra em termos gerais,
adiantando ao leitor o final da peça, sem que isso prejudique a sua atenção, pois estará
atento em como a personagem realizará essa viagem.
O autor escolheu como protagonista de sua peça uma importante figura histórica
da literatura argentina, que foi e é lido em muitíssimos países, reconhecido pela crítica,
pelos escritores e pelo público leitor. Jorge Luis Borges (1899-1986) nasceu em Buenos
Aires, Argentina, e desde os seus seis anos de idade já dizia que queria ser escritor.
Escreveu inúmeros poemas, contos e ensaios ao longo de seus 87 anos. Na idade adulta,
foi vitimado por uma cegueira, o que não lhe impediu de continuar escrevendo, já que
ditava seus textos a uma copista. Borges ingressou na literatura escrevendo poesia, mas
foi principalmente a narrativa que o levou ao reconhecimento universal. Em seus textos,
há alternâncias de formas convencionais do tempo e do espaço, a criação de mundos
simbólicos, com a presença de espelhos, labirintos e outros elementos simbólicos.
Vale ressaltar aqui que, na obra de Ignácio de Loyola Brandão, Borges já não é o
escritor “em carne e osso” e sim uma recriação, uma fantasia de Brandão a partir de um
modelo real, assim como as personagens Sir Richard Francis Burton (Explorador e
orientalista inglês, que traduziu para sua língua As Mil e Uma Noites e também Os
Lusíadas) e Alicia (recriação a partir de María Kodama).
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Mestre em Letras pela UEL. Doutoranda pela UNESP – Assis.
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Diferentemente de outras peças teatrais, A última viagem de Borges possui duas
versões, a segunda traz inclusive outros finais possíveis para o encerramento da peça –
além do fato de ela própria ser uma outra possibilidade. Ignácio de Loyola Brandão
escreve que a segunda versão, “um tanto diferente da primeira”, foi escrita para que se
tenha “uma encenação mais lenta, de atmosferas, trabalhada em cima das palavras,
símbolos” (BRANDÃO, 2005, p. 83). Mesmo assim, este trabalho que aqui se apresenta
se voltará à primeira versão apresentada no livro e se destacarão da segunda versão as
diferenças que se acredite serem relevantes.
Uma prática comum a muitos críticos que se voltam à análise de um texto teatral
é referir-se à representação da obra como um elemento integrante e esclarecedor. Se a
maioria dos textos teatrais tem como um dos objetivos a encenação, não é função
primordial de o crítico literário analisá-la. Há de ter consciência que o mais importante
para a crítica literária é o texto escrito em si (sem desmerecer aqui a representação em
palco). Por isso, este trabalho foca apenas o texto escrito.
Ao folhear o livro, um dos primeiros aspectos que chama a atenção (obviamente
depois das fotos da encenação em palco) é a estrutura da obra. Ao contrário da maioria
dos textos teatrais, a peça de Brandão não se organiza em partes, dividida em atos, cenas
ou quadros. Não há nenhuma divisão aparente; o texto se apresenta como uma
seqüência única formada pelas falas das personagens e das didascálias deixadas pelo
autor.
Seguindo a ordem da estrutura literária de um gênero dramático, encontra-se
primeiramente no texto a apresentação das personagens, ou melhor, uma lista com todas
as personagens que compõe o teatro1. Essa apresentação pode ser feita apenas pelos
nomes ou pode conter algumas características. Ignácio de Loyola Brandão optou por
descrever as suas oito personagens nessa apresentação.
O primeiro, Jorge Luis Borges, contém exatamente o nome e as características
do seu modelo real: poeta, contista, ensaísta e está com 87 anos, ou seja, com a idade
com que o escritor na vida real faleceu. Alicia, personagem criada a partir do modelo da
esposa de Borges, é secretária e copista, está entre os 30 e 40 anos.
Sherazade aparece apenas com a descrição “personagem de As Mil e Uma
Noites”, ela não tem idade porque se trata de uma personagem literária e não de
recriação de um modelo real. Assim como Funes, personagem criado por Borges no
conto “Funes, o Memorioso”, que não tem idade porque também é uma personagem de
ficção. Outras duas personagens que são citadas em textos borgianos e que aparecem em
A última viagem de Borges são o Bibliotecário Imperfeito e o Cartógrafo Perfeito.
Participam da história Sir Richard Francis Burton – o tradutor para o inglês de
As Mil e Uma Noites – que está entre os 40 e 50 anos e o Narrador do Filme, um homem
de 23 anos que tinha função de narrar as imagens dos filmes para Borges. Na segunda
versão aparece, além dessas oito personagens com as mesmas características, uma
“nona” personagem, Gulliver, que é apenas “uma voz” que conversa com Borges.
Assim, percebemos que a peça de Brandão é formada por personagens criadas a
partir de pessoas que realmente existiram, como Borges e Burton, e da literatura, por
exemplo, Sherazade e Funes. Acredita-se que Brandão oferece algumas informações
necessárias sobre as personagens para que se entenda o texto; apenas não deixa
esclarecido nessa apresentação que Borges foi acometido de uma cegueira quando
adulto e, por isso, necessitava de Alicia e do Narrador do Filme. A informação de que
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Lembrando-se de que este trabalho não está analisando a encenação, somente o texto escrito; por isso,
teatro aqui se refere tão somente à escritura da peça.
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Borges era cego ao final de sua vida tem que ser captada por meio das falas das
personagens.
Após essa apresentação inicial, aparece um texto de umas catorze linhas em que
se diz que Borges foi “um grande zombeteiro, um manipulador que desafiou os que
procuraram interpretá-lo eruditamente” e que havia uma alegria nessa viagem realizada
por ele, ao lado de autores e personagens que escolheu para ir com ele. O texto indica,
ainda, que no prédio do teatro em que a peça for representada, a partir do hall de
entrada, devem-se colocar cartazes com nomes de autores que Borges leu e comentou.
Assim, aparece uma lista enorme, de mais de duzentos nomes. Ao final, aparece uma
didascália dizendo que ao terceiro sinal o autor que interpreta Borges entra no palco e
inicia a peça.
Percebe-se nessa introdução a preocupação de Ignácio de Loyola Brandão com a
encenação da peça, dando detalhes de como devem ser decoradas as paredes da sala de
teatro. Mas como o propósito deste trabalho é o texto escrito, verifica-se que Brandão
fez uma pesquisa vasta e enriquecedora, lendo as obras escritas por Borges com atenção
para conseguir reunir uma grande quantidade de nomes de escritores lidos pelo autor.
Em seguida, aparece Borges comentando sobre a “fuga” de sua palavra – a que
seria mais perfeita do mundo –, da qual ele não se lembra. Essa fala inicial não se
encaixa no diálogo que a sucede: é como se o dramaturgo desse ao seu leitor algumas
informações para se compreender o enredo. Uma inovação que se tem nesse monólogo e
que aparecerá em outros momentos do texto é a de citações de trechos de obras de
Borges e de outros escritores: o dramaturgo, ao escrevê-las, coloca-as entre aspas e
indica entre parênteses a referência da obra citada. Essa técnica, que era utilizada em
textos teóricos, foi incorporada pelo escritor Jorge Luis Borges em seus textos literários
e é re-utilizada por Ignácio de Loyola Brandão, já que este último mergulhou no mundo
borgiano, apropriando-se de temas, símbolos, falas e técnicas do escritor argentino.
Se A última viagem de Borges estivesse sendo analisada segundo os princípios
da dramaturgia clássica, poderia se dizer que essa primeira fala do texto já traz consigo
a exposição do assunto a ser tratado no teatro: a perda da palavra perfeita de Borges.
É interessante notar que o texto não traz, pelo menos inicialmente, em que tempo
(dia, ano, horário) ou em qual espaço (país, cidade ou lugar específico como casa ou
praça) se desenvolve a peça teatral. Se alguém atentar para a biografia do escritor Jorge
Luis Borges, perceberá que ele faleceu aos 87 anos – idade que a personagem tem no
texto de Brandão; talvez possa se supor que se trata, então, do ano de 1986, ano do
falecimento do escritor, no entanto, não há nenhuma indicação – seja por meio das
didascálias ou das falas das personagens – que indique tal data, não há nenhuma
referência, explícita ou não, sobre o tempo em que se desenvolve a ação.
Quanto ao espaço, nada há de concreto no início da peça a não ser a poltrona na
qual Borges se senta. Na didascália que aparece após a primeira fala (monólogo) de
Borges, há referência de uma tela em que se projeta um filme, que sugere ao leitor do
texto escrito que se trata de um recinto fechado, uma sala ou um quarto, por exemplo.
Na segunda versão, após a apresentação das personagens e a indicação dos
cartazes com os nomes de autores lidos por Borges, há a narração de um conto sufi feita
por Sherazade que fala que as pessoas são cópia e reflexo de outros que estão no Vale
do Paraíso. É interessante perceber que o texto de Brandão, assim como as narrativas
borgianas, utiliza o duplo como um de seus temas, ou seja, questiona se a realidade
vivida não é reflexo de uma outra. Poderia dizer também que as personagens de A
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última viagem de Borges são colocadas como duplo de outros modelos, já que todas são
cópias ou de pessoas que existiram ou de personagens de outras obras literárias.
Retornando à primeira versão, Borges está aficionado pela palavra que perdeu e,
conversando com Alicia, diz que irá chamar Burton e Funes para ajudá-lo. É através
desse diálogo que se conhece um pouco mais de Burton, além de tradutor, foi um
aventureiro, poliglota e descobridor de rotas. Funes foi criado por Borges como sendo
uma personagem dotada de uma memória extraordinária, que guardava informações de
tudo e de todos, mas que não possuía uma memória própria.
Já foi dito que o escritor Borges tinha um jeito diferente de olhar o tempo e isso
fica explícito quando a personagem, na peça de Brandão, se utiliza de uma citação sobre
o tema: “o que é o tempo? O que é o espaço? Não passam de um caos de aparências”
(BRANDÃO, 2005, p. 23). É por pensar assim que a personagem resolve chamar os
seus amigos, pois não existe tempo e espaço – pelo menos no texto literário, no qual se
pode mesclar personagens de modelos reais e fictícios, de diferentes lugares e épocas;
na literatura, tudo pode acontecer, inclusive o ciúme de uma mulher por causa de uma
personagem fictícia.
Para ajudar a encontrar a palavra perdida, Burton propõe a Borges ir à Biblioteca
de Babel para procurá-la. Antes dessa proposta, se tinha apenas a exposição do assunto;
a partir desse momento, começa a surgir o nó da intriga, pois a viagem até o local é
longa e cheia de obstáculos.
É interessante notar que Burton afirma que Babel é “um outro universo”, cheio
de códigos e é categórico ao dizer a Borges que ele teria que fazer a viagem: “Você tem
que ir até lá!” (BRANDÃO, 2005, p. 26). Assim, Borges resolve fazer a viagem. A
referência da Biblioteca de Babel está em um dos contos do escritor Jorge Luis Borges,
do livro El jardín de senderos que se bifurcan de 1941. Nesse conto, a Biblioteca era o
universo indefinido e infinito, e o homem um bibliotecário imperfeito; a Biblioteca é
descrita como total porque se pode registrar “todas las posibles combinaciones de los
veititantos símbolos ortográficos (...) o sea todo lo que es dable expresar: en todos los
idiomas” (BORGES, 1994, p. 467). E, por isso, Burton acredita que a palavra esteja
nesse lugar que foi criado por Borges.
Ao partir para sua aventura final, Borges escolhe como companheiros o tradutor
inglês, Burton, e duas personagens da literatura, Sherazade e Funes. Alicia não o
acompanha porque percebe que aquela viagem deve ser somente feita por Borges. Os
amigos que ele leva consigo são personagens e escritores imortalizados pela literatura e,
por isso, podem acompanhá-lo à Biblioteca de Babel. Percebe-se que Borges caminhará
para uma morte terrena, mas será eterno dentro do universo da ficção.
O aviso de Burton a Borges, “lembre-se, quando você passar pela porta da
Galeria, a realidade vai mudar completamente. O cotidiano vai deixar de existir”
(BRANDÃO, 2005, p. 30), introduz o leitor e as personagens em um mundo diferente
daquele que conhecem, mas verossímil dentro da obra teatral e compatível com os
mundos fictícios criados por Jorge Luis Borges. E assim a viagem se inicia pelo
pensamento, pois este é o condutor a novos mundos e o que aceita qualquer realidade,
por mais “absurda” que ela possa parecer.
Foi comentado anteriormente que o texto de A última viagem de Borges não traz
inicialmente a marcação de tempo e de espaço. Ao desenrolar das ações, muitas vezes
essas marcas serão dadas pelas personagens:
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SHERAZADE – Chega, Burton, por favor! Assim acaba dando um nó em minha
cabeça. Quando vamos chegar ao fim do labirinto? É isso que interessa! Nós já estamos
viajando já 77 dias e o Borges desapareceu há mais de 14.
BURTON – Como é que você consegue contar o tempo?
SHERAZADE – Prática, meu amigo! Esqueceu como foi que aprendi a contar as
noites?
BURTON – Poderíamos contar juntos as noites aqui.
SHERAZADE (lisonjeada) – Você acha? (A luz muda.) O que foi isso agora?
BURTON – Penetramos na Planície das Recordações que Trazem Recordações das
Recordações.
SHERAZADE (olha para cima) – Mas o que é aquilo? Gente de cabeça para baixo
voando sobre nós. (BRANDÃO, 2005, p. 46)
Como se percebe neste trecho, a única indicação de tempo/espaço dado pelas
didascálias é a mudança de luz, mas não se sabe se é leste ou oeste, ou se é uma
mudança de intensificação ou não da luz, ou mesmo se é uma mudança de cor. A
contagem de dias e o deslocamento entre um lugar e outro são indicados pelo diálogo
das personagens. Como foi citado acima, Burton e Sherazade saíram do labirinto em
linha reta e entraram no Vale das Recordações e a viagem com Borges já perdurava por
quase oitenta dias.
E, assim, pode-se dizer que “a fala é ação: o próprio ato de falar constitui a ação
da peça” (RYNGAERT, 1995, p. 103), pois na fala está imbuída a ação em si – como
tem ocorrido com muitos teatros contemporâneos – como no exemplo a seguir:
FUNES – Pronto, encontrei! (A luz volta ao normal.) Agora sim!
BORGES – Me encontrou? Que alívio! Onde é que eu estava?
FUNES – Desfocado. Eu tinha perdido a sintonia do espelho. Já está tudo bem. Agora
só mais uns passos... Mais dois espelhos... Assim, vá em frente... Acabou...
BORGES – Acabou. E...? E...? Diga logo, fui aprovado?
FUNES (irritado) – Foi! Foi aprovado! Passou! Agora, se acalme!
BORGES – Que alívio! Passei. (BRANDÃO, 2005, p. 35)
O que as personagens fazem, por onde andam, o que ocorreu durante a viagem,
tudo é indicado pelas falas das personagens. O leitor tem a visão do tempo, do espaço e
da ação através dos diálogos das personagens, já que no texto teatral não há o narrador
para contar a história. Apenas encontram-se algumas didascálias indicando a mudança
de luz e, com isso, a passagem do tempo.
Todavia, algumas dessas indicações são ambíguas, ou contraditórias, como
acontece quando Borges está no Aleph: “A luz muda indicando que amanhece. Eles
caminham sob um luar ainda forte.” (BRANDÃO, 2005, p. 41). No mundo real, seria
impossível o dia amanhecer e a luz da lua continuar intensa. Mas como se trata de um
outro universo, o da literatura e o da ficção, isso fica perfeitamente cabível, ainda mais
em um texto que tem como protagonista o escritor Jorge Luis Borges, que desestruturou
a narrativa em suas categorias temporal e espacial.
Ao iniciar essa viagem, a idade de Borges foi cancelada, ou seja, ele não é mais
um idoso de quase noventa anos; pode-se dizer que ele entra na imortalidade e, como
quer chegar à Biblioteca de Babel, deverá ser imortalizado como escritor. Para isso,
deve vencer obstáculos que utilizava em suas obras: espelhos, labirintos, tigres... Cada
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elemento tinha uma grande carga de significação em suas narrativas e se podem utilizar
esses significados na peça de Brandão.
O primeiro desafio de Borges foi passar pela galeria dos espelhos. Nas obras
borgianas, o espelho esta muito ligado à presença do duplo, de um outro eu. Em A
última viagem de Borges os espelhos são símbolos de conhecimento, de sabedoria.
Passar pelos espelhos significa que não se tem o espírito obscurecido pela ignorância
(CF, CHEVALIER, 2002, p. 394). A idéia do duplo também aparece no texto de
Brandão, quando o Bibliotecário Imperfeito diz a Borges que ele é o duplo do escritor.
Tal afirmação é desmentida por Funes porque Borges, sendo cego, não se deixou levar
pelas aparências dos espelhos da Galeria. No entanto, havia um duplo, pois o
Bibliotecário disse que Borges foi enterrado num cemitério da Suíça. Então, a
personagem Borges já não pode ser considerada o escritor em “carne e osso” e sim
como alguém que pertence eternamente à literatura.
Um outro elemento que atormenta a Borges são os rugidos de tigres que o
rondam e que somente ele escuta. Conforme Chevalier (2005, p. 883), o tigre “evoca, de
forma geral, as idéias de poder e ferocidade; o que só comporta sinais negativos”. Na
obra de Brandão, representa os momentos de angústia, do medo de Borges em não
conseguir completar a sua jornada. Talvez esse medo possa ser expresso pelo sibilar das
serpentes que a personagem também escuta.
O labirinto também é um elemento constante na obra borgiana e é citado no
texto de Ignácio de Loyola Brandão, por exemplo, quando Borges, dialogando com
Burton no início do texto, diz que se cansou dos elementos que utilizou em suas
narrativas – espelhos, labirintos, tigres e duplos – e afirma que “a minha memória se
transformou em labirinto” (BRANDÃO, 2005, p. 27). O labirinto, tido como um
entrecruzamento de caminhos, dos quais alguns não têm saída, pode ser considerado
como símbolo da inteligência, da busca de conhecimento, ou como “a vontade de
representar o infinito”, como assevera Chevalier (2002, p. 532).
O último estágio a ser vencido por Borges para chegar a sua palavra perfeita é
achar a porta que conduz até ela:
A porta simboliza o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o
conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema. A porta se
abre sobre um mistério. Mas ela tem um valor dinâmico, psicológico; pois não somente
indica uma passagem, mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um
além. (CHEVALIER, 2002, p. 734-735)
A porta em A última viagem de Borges simboliza a passagem do escritor Jorge
Luis Borges para a Biblioteca de Babel, ou seja, para a sua perpetuação no reino da
literatura. Borges encontra a morte de seu corpo (o Bibliotecário Imperfeito diz que
Borges está enterrado em um cemitério de Genebra) e, ao mesmo tempo, a eternidade
através das palavras. Ele sai do mundo terrenal para se imortalizar no mundo da ficção.
Nesse novo universo, ele descobre que a palavra que procurava apenas existiu para
atraí-lo a Babel. Ao entrar na Biblioteca, encerrando a peça, Borges afirma: “Estou no
Aleph, o objeto secreto. Tenho acesso a tudo, eu sinto, eu sei. Aqui é o infinito e a
morte não existe. Agora eu sou o mundo” (BRANDÃO, 2005, p. 77).
O Aleph é um elemento criado pelo escritor Jorge Luis Borges, um ponto do
universo que conteria todos os pontos do mundo, onde se encontraria tudo dentro dele.
Ao entrar na Biblioteca de Babel, Borges se encontra dentro do Aleph e pode
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contemplar todo o universo; ele percebe que naquele local não há morte, que ele está no
infinito, ou seja, ele conseguiu se tornar imortal, ele faz parte do mundo de Funes,
Sherazade e Burton – já não é um ser humano e sim um ser imaginário, que povoa o
mundo da ficção, que foi imortalizado pela palavra, pela literatura.
A segunda versão apresenta algumas variações para o final, ou melhor, apresenta
quatro finais possíveis para o encerramento da obra. Todos esses finais apresentam
Borges entrando no Aleph – encontrando e se encontrando no infinito, na imortalidade,
na eternidade.
E esse é o desfecho da peça teatral, já antecipada pelo título do livro: a última
viagem representa, na literatura, a morte. No entanto, aqui não se trata do fim de uma
pessoa e sim de sua entrada para a imortalidade que a ficção oferece aos escritores e
suas obras. Borges, nessa viagem, encontra a passagem para a eternidade, para o
infinito: é o início de uma vida que perdurará para sempre, pois ele estará vivo em suas
obras, nas palavras que escreveu e também em obras que façam referência a ele e a sua
obra, como é o caso de A última viagem de Borges, de Ignácio de Loyola Brandão.
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis. Obra completa I (1923-1949). 20. ed. Buenos Aires: Emecé,
1994.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. A última viagem de Borges: duas possibilidades de
encenação. São Paulo: Global, 2005.
CHEVALIER, Jean, GREERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Colaboração de André Barbault et al.
Coordenação de Carlos Sussekind. Trad. Vera da Costa e Silva et al. 17. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2002.
IGNÁCIO de Loyola Brandão. Releituras – resumo biográfico e bibliográfico.
Disponível em: <http://www.releituras.com/ilbrandao_bio.asp>. Acesso em: 23
dezembro 2006.
JORGE Luis Borges. Literatura argentina contemporânea.
<http://www.literatura.org.br>. Acesso em: 20 dezembro 2006.
Disponível
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JORGE
Luis
Borges.
Wikipedia.
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<http://es.wikipedia.org/wiki/Jorge_Luis_Borges>. Acesso em: 20 dezembro 2006.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.
______. Ler o teatro contemporâneo. Trad. Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
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