PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Carolina Fernandes da Silva Mandaji
REGIMES DE SENTIDO E DE INTERAÇÃO NA ERA TELEVISUAL.
COCORICÓ: SINCRETISMO, ESTILO E FORMAÇÃO SOCIAL
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Carolina Fernandes da Silva Mandaji
REGIMES DE SENTIDO E DE INTERAÇÃO NA ERA TELEVISUAL.
COCORICÓ: SINCRETISMO, ESTILO E FORMAÇÃO SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção
do título de Doutora em Comunicação e
Semiótica (Área de concentração: Signo
e Significação nas Mídias; Linha de
Pesquisa: Análise das Mídias) pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Ana
Claudia Mei Alves de Oliveira.
SÃO PAULO
2011
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE SEJA CITADA A FONTE.
Mandaji, Carolina Fernandes da Silva
Regimes de sentido e de interação na era televisual. Cocoricó:
sincretismo, estilo e formação social / Carolina Fernandes da Silva Mandaji.
São Paulo, 2011.
257 p.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.
Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
1. Televisão 2. Programa Infantil Cocoricó 3. Regimes de sentido e de
interação 4. Sincretismo 5. Estilo 6. Valores sociais
CAROLINA FERNANDES DA SILVA MANDAJI
REGIMES DE SENTIDO E DE INTERAÇÃO NA ERA TELEVISUAL.
COCORICÓ: SINCRETISMO, ESTILO E FORMAÇÃO SOCIAL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, aprovada pela Banca
Examinadora constituída pelos seguintes professores:
_____________________________________________
Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira
Orientadora e presidente da Banca Examinadora
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
São Paulo, ____ de _____________ de 2011.
Dedico a tese aos meus pais pelo
apoio
em
concretizar
esta
realização e em especial à minha
mãe por cuidar das minhas
preciosas joias.
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai pela inspiração de ter me ensinado a importância do estudo;
À minha mãe pelo aprendizado de uma vida inteira, de coisas que só
aprenderia com ela;
Ao Higino, por não entender nada de Semiótica, mas por compartilhar
discussões sobre o assunto;
Às minhas preciosas joias, Enzo & Camila, que sem dúvida tornaram tudo mais
desafiador e que me ensinam diariamente sobre o amor incondicional;
Aos meus sogros, meus irmãos, minhas cunhadas por darem o apoio
necessário quando precisei e, em especial, ao meu cunhado, no apoio aos
problemas de ordem tecnológica;
Aos professores José Luiz Aidar Prado, Diana Barros Luz e Ricardo Monteiro,
por todas as observações dadas no meu exame de qualificação;
Aos professores do programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP;
Aos amigos do Centro de Pesquisa Sociossemiótica (CPS) pelas inúmeras e
incontáveis contribuições, palavras de tranquilidade e pelo compartilhar de
angústias;
Às minhas amigas Carol, Lorena, Milena e Nina pela ajuda com a revisão de
última hora;
Ao CNPQ pela bolsa concedida;
Em especial à minha orientadora, Ana Claudia Mei Alves de Oliveira, por
acreditar e me ajudar a desenvolver esse trabalho. Por me ensinar que
sempre há tempo para fazer, e principalmente, por me apoiar e mostrar os
caminhos a serem seguidos, nos momentos em que nem eu mesmo acreditei
que seria possível;
“A TV pode ser uma janela e uma
ponte para vários campos da vida,
não só transmitindo conteúdos de
qualidade e valores éticos, mas
também estimulando a criança a
buscar
novas
formas
de
conhecimento. Ela deve ser
instigante, despertar a curiosidade
da criança, evitar que ela se torne
uma espectadora passiva dos
acontecimentos. Não podemos
esquecer nunca que TV transmite
modelos para a criança. E temos,
portanto, que estar atentos aos
modelos transmitidos”.
Beth Carmona, 2004
RESUMO
Esta pesquisa tem como objeto estudar os efeitos de sentido gerado pelo
programa televisivo infantil Cocoricó, transmitido e produzido pela TV Cultura,
investigando para isso, a relação construída entre o programa e seus
telespectadores. Trata-se de compreender o objeto em sua natureza
sincrética - pela homologação das linguagens verbais, visuais, sonoras, nos
planos do conteúdo e expressão – e segundo os discursos de entretenimento
e educativo encontrados no universo televisivo infantil da
contemporaneidade. O programa soma cinco temporadas, entre episódios e
clipes musicais, e apresenta uma construção discursiva fundada no
sincretismo de linguagens pelos seus modos de apreensão: por um lado, o
inteligível pautado no fazer performático, no poder/ saber cognitivo, no
dever prescritivo e num querer volitivo; e por outro lado, o sensível, quer
dizer, esses procedimentos do discurso que exploram a competência estésica
da criança pelo fazer sentir. Identificou-se, pois, que o programa propõe ao
seu público determinados efeitos de sentido que perpassam as interações
entre eles, pelo: a) procedimento da manipulação baseado na
intencionalidade e na criação do hábito de assistir Cocoricó; b) procedimento
da programaç~o, na regulaç~o do “ser” criança fiel { marca e aos seus
diferentes produtos; c) procedimento do ajustamento, nas quais as
possibilidades de apreensão do sentido desse programa televisivo são dadas
em suas próprias qualidades estéticas, no fazer sentido para a criança por
meio da estesia, ou seja, do contágio reativo. Este estudo possibilitou-nos
apresentar a TV Cultura em seu estilo de fazer televisão, como destinadora
social: na construção dos valores: educativo, ecológico e ser paulista; de
comportamentos sociais que vão da estereotipia ao viver social e; na
formação do gosto para o consumo da marca da própria TV e de seus
programas. Tem-se, pois, na relação entre destinador-enunciador e
destinatário-enunciatário de Cocoricó uma formação identitária da criança,
tanto sociocultural, quanto uma formação para ser telespectador, no
apreender o sentido do que se vê na televisão. As investigações e propostas
de análises seguiram o arcabouço teórico-metodológico da Semiótica
desenvolvida por Algirdas Julien Greimas e os estudos de Eric Landowski com
a Sociossemiótica, em especial os procedimentos de interação.
Palavras-chave: televisão; programa infantil Cocoricó; regime de sentido e
regime de interação; sincretismo; estilo; valores sociais
ABSTRACT
The object of this research is to study the sense effects generated by the
infant televised show Cocoricó, produced and broadcast by the TV Cultura.
For that the relationship between the show and its viewers was investigated.
It is about understanding the object in its syncretic nature – by approving the
verbal, visual, and sound languages, both in content and expression plans and according to entertainment and educative discourses, found in
contemporary children's televised universe. The show consists of five
seasons, among narratives and music clips, and presents a discursive
construction based on linguistic syncretism for its apprehension modes: on
one hand, the intelligible guided on theatrical performance, on the cognitive
doing/knowing, on prescriptive duty and on volitional wanting; on the other
hand, the sensitive, meaning these discourse procedures which explore the
child’s aesthesia competence through making it feel. It was thus identified
that the program presents to its public sense effects ranging from the
manipulating procedure based on intentionality and creation of the habit of
watching Cocoricó, passing through programming, in regulating the being a
child, faithful to the trademark and its different products, and to adjusting, in
which the sense apprehension possibilities of this show are given in its own
aesthesia qualities, as it makes sense to the child by means of aesthesia, that
is, the reactive contagion. This study allowed us to introduce the TV Culture in
its style of doing TV, as a social determiner: 1) in the formation of values:
educative, ecological and “being a paulista”; 2) of social behaviors ranging
from the stereotype to social living and; 3) in the formation of the
consumption taste of the trademark of the TV itself as well as its shows. Thus,
what we have here in the relation between enunciator and enunciatee of
Cocoricó is the child’s identity formation, not only sociocultural but also
forming the child to become a viewer, as it apprehends the meaning of
whatever it sees on TV. The investigations and analysis proposals have
followed the theorical-methodological outline of the Semiotics developed by
Algirdas Julien Greimas, and the studies of Eric Landowski’s with the Social
Semiotics, especially the interaction methods.
Keywords: television; infant TV show Cocoricó; sense and interaction
methods; syncretism; style; social values
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS .................................................................................. 13
INTRODUÇÃO
O que quer a audiência com Cocoricó? .................................................. 16
Cocoricó em trajeto de pesquisa ............................................................ 20
Capítulo I
EDUCAÇÃO, TELEVISÃO E COCORICÓ ................................................... 28
1.1 Uma pitada da história da televisão ................................................. 30
1.2 Os primeiros programas infantis....................................................... 32
1.3 Alguns programas brasileiros infantis “de outrora” ....................... 41
1.4 TV Cultura como destinador: história e produção para crianças .... 48
1.5 “Puxa, puxa que puxa”... Cocoricó ................................................... 57
1.6 Cocoricó em outros meios ................................................................ 67
Capítulo II
A CONSTRUÇÃO DE MUNDO DE COCORICÓ ......................................... 73
2.1 As vinhetas de abertura ................................................................... 77
2.1.1 Cocoricó no campo .................................................................... 80
2.1.2 Cocoricó na Cidade ..................................................................... 92
2.2 As vinhetas de continuidade e de encerramento ......................... 100
2.3 Curtinhas: Esfarrapado e Roto nos apresentam ao Beco ............. 102
2.4. O episódio “Pôr do sol” e as questões do sincretismo ................. 111
2.4.1 Análise dos procedimentos sincréticos ............................ 126
2.4.2 Plano da expressão: o que engloba o quê? ...................... 127
2.4.3 As figuras ........................................................................... 139
2.4.4 Clipe musical, significação e o sincretismo .................... 140
2.5 Articulações na construção do sentido .......................................... 146
Capítulo III
MODOS DE PRESENÇA DISCURSIVA ................................................... 151
3.1 Manifestações do narrador televisual ............................................ 154
3.2 É tempo de Cocoricó ....................................................................... 169
3.3 Cocoricolândia e a Cidade Grande .................................................. 179
3.4 Figurativização e Tematização ....................................................... 189
3.5 Gênero, estilo e criança .................................................................. 214
3.5.1 Uma discussão sobre os gêneros na televisão .............. 216
3.5.2 O estilo Cocoricó de fazer programa infantil .................. 219
Capítulo IV
REGIMES DE SENTIDO E REGIMES DE INTERAÇÃO ........................... 228
4.1 Cocoricó, manipulação, hábito e consumo .................................... 229
4.2 A marca Cocoricó: uma programação ............................................ 238
4.3 O sentir Cocoricó ............................................................................. 245
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que quer Cocoricó com as crianças? ................................................. 258
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 266
ANEXO
Filmografia ............................................................................................ 278
13
LISTA DE FIGURAS
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
Figura 1 - As diferentes temporadas de Cocoricó ............................................ 60
Figura 2 - O garoto Júlio e seus amigos ............................................................ 62
Figura 3 - Programa narrativo de base e programas narrativos de uso .......... 76
Figura 4 - Tomadas iniciais da vinheta de abertura .......................................... 81
Figura 5 - A utilização do recurso de aproximação da câmera ........................ 82
Figura 6 - Sequência final da vinheta com o nome do programa ................... 83
Figura 7 – A vinheta de abertura de Cocoricó na cidade .................................. 93
Figura 8 - Sequência final da vinheta de Cocoricó na cidade ........................... 96
Figura 9 - Os actantes do Beco de Cocoricó .................................................... 104
Figura 10 - A TV e o sincretismo ....................................................................... 117
Figura 11 - Tomadas da sequência 1 no apartamento de João ....................... 128
Figura 12 - Os bonecos e a diversidade étnica, diferentes caracterizações ... 134
Figura 13 – A continuidade e as descontinuidades no sonoro ....................... 137
Figura 14 - Categoria da expressão HORIZONTAL .......................................... 138
Figura 15 - Categoria da expressão VERTICAL ................................................ 138
Figura 16 - Passagens do clipe musical “Pôr do Sol” ...................................... 142
Figura 17 – Relações sociais discursivizadas em Cocoricó .............................. 145
Figura 18 – Articulando o sentido ................................................................... 148
Figura 19 – As articulações sincréticas no episódio analisado....................... 149
14
CAPÍTULO 3
Figura 20 – Delegações de vozes .................................................................... 158
Figura 21 – Lilica conversa com o seu novo brinquedo .................................. 159
Figura 22 – Garotos são impedidos de brincar no beco ................................. 160
Figura 23 - Cenas do episódio “Desenho da Lilica” ........................................ 162
Figura 24 - Cenas do episódio “Pé-de-moleque” ........................................... 166
Figura 25 - Cenas do episódio “Pôr do sol”, com o dizer “a seguir” ............. 172
Figura 26 - Molduras e o efeito esfumaçado .................................................. 178
Figura 27 - As maquetes da fazenda ................................................................ 181
Figura 28 - Ambientes cenográficos internos da fazenda ............................. 184
Figura 29 - As maquetes da cidade .................................................................. 187
Figura 30 - Cocoricó conta a história pelo modo de vestir ............................. 193
Figura 31 – Cenas da gravação de Cocoricó no campo ................................... 200
Figura 32 - Galpão onde é gravado o Cocoricó na cidade ............................... 202
Figura 33 – Alípio entre as peruas ................................................................... 210
Figura 34 - Cocoricó e os torcedores de futebol ............................................ 212
Figura 35 – Gênero e formato configuram o estilo de Cocoricó .................... 220
CAPÍTULO 4
Figura 36 - Os detalhes da decoração dos ambientes cenográficos ............. 242
Figura 37 – Linguagem televisiva intertual: relação com outros gêneros .... 248
Figura 38 – Olhar direcionado e tela dividida ................................................. 249
Figura 39 - Os bonecos de Cocoricó em locações externas ........................... 250
Figura 40 – Perspectivas próximas dos bonecos ........................................... 252
Figura 41 – Relações interativas entre Cocoricó e enunciatário .................... 256
16
INTRODUÇÃO
Em termos do processamento da análise
quer os objetos sejam enunciados
acabados, enunciados em situação, ou
enunciados em ato de construção, essa
direcionalidade do mais abstrato ao mais
concreto do percurso gerativo da produção
é invertida, pois parte-se do já construído
nos enunciados para daí reconstruir o seu
curso gerativo. A produção do sentido é,
pois, uma função semiótica.
Ana Claudia de Oliveira, 2009
O que quer a audiência com Cocoricó?
“As crianças n~o s~o um pequeno grupo minorit|rio { parte” (FEILITZEN,
2002, p.17). Apesar delas se distribuírem num segmento não uniforme pelos
diversos continentes, a UNICEF estima que os menores de 5 anos constituam cerca
de 10% da população1. Essas crianças são aquelas que cada vez e mais cedo entram
em contato com as novas tecnologias da comunicação, computador, televisão,
rádio, livro e os demais. Os pais cada vez mais atarefados e ausentes acabam por
permitir às crianças uma exposição maior a essas tecnologias e, principalmente à
televisão, mais disseminada e acessível. Essa presença da televisão e demais meios
de comunicação é tema de estudos para autores do mundo inteiro, seja na
1
Em capítulo intitulado “As crianças no mundo”, Cecilia Von Feilitizen (2002, p. 17-18) discorre sobre
duas estatísticas: as crianças menores de 18 anos e, àquelas menores de 5 anos. Embora os dois
aspectos sejam interessantes, essa pesquisa irá se basear no número de crianças com idade igual ou
inferior a 5 anos, com dados da UNICEF.
17
sociologia, antropologia, psicologia ou nas ciências sociais e humanas. Não só por
que os meios de comunicação estão presentes cada vez mais nas nossas casas, mas
também, pela delegação da responsabilidade que se recai sobre eles e ainda, dessa
maior exposição das crianças. Segundo Orozco Gomez (1997, p. 57), a presença
crescente e expansiva dos meios de comunicação de massa (MCM) na vida
cotidiana nos coloca um desafio múltiplo, tanto para as instituições sociais quanto
para todos os membros da sociedade. “Fala-se com certa familiaridade que os
MCM, e em particular a televisão (TV), são uma escola paralela”, diz o autor.
Uma parte da responsabilidade em educar as crianças foi delegada à
televisão, que, como que assumindo essa responsabilidade passou a disponibilizar
uma programação direcionada a elas. No texto desenvolvido por Ana Lúcia Rezende
(1998, p.80) sobre televisão e criança, a autora explica que considerar a TV apenas
como a bab| eletrônica é ingenuidade. “Atacar, como transgressão aceitável, pais
ocupados que se desafogam dos filhos, enquanto os pequenos absorvem, como
uma esponja, as mensagens televisivas, é uma visão linear e empobrecida da relação
da tele audiência”, diz a autora. Para Rezende, a TV constrói visões de mundo para
as crianças. É essa construção que aumenta ainda mais a importância dos
programas de televisão dirigidos a elas, principalmente àquelas com idade préescolar (de 0 a 6 anos). O que nós, enquanto pais, gostaríamos que os nossos filhos
assistissem na TV? Quais programas podem ser considerados de qualidade? Quais
são os valores presentes nos programas que os nossos filhos diariamente assistem?
Talvez muitos pais se façam essas perguntas o tempo todo, mas com a vida tão
corrida e com tantas outras prioridades, acabam não parando para responder.
A associaç~o sem fins lucrativos “Midiativa” - que se propõe a identificar os
vários elementos que envolvem uma produção audiovisual para crianças e jovens em parceria com o instituto de pesquisas MultiFocus, realizou em 2004 uma
pesquisa que questionava justamente isso a pais das classes A, B e C. A pesquisa
denominou os 10 mandamentos (princípios) que um programa de TV de qualidade
na opinião dos pais entrevistados deveriam ter. São eles:
18
1) Ser atraente
2) Gerar curiosidade
3) Confirmar valores
4) Ter fantasia
5) Não ser apelativo
6) Gerar identificação
7) Mostrar a realidade
8) Despertar o senso crítico
9) Incentivar a autoestima
10) Preparar para a vida
De acordo com a diretora do instituto de pesquisas
MultiFocus em
entrevista à Folha de São Paulo (2006), essa pesquisa revelou que para os pais a
televisão é uma das grandes responsáveis pela formação de seus filhos.
(...) a pesquisa revela que os pais conferem grande
responsabilidade à televisão na formação de seus filhos. Apesar de
serem de diferentes níveis socioeconômicos e culturais, todos
anseiam por uma TV de alto nível, que informe e divirta, mas que
também os ajude a compreender o mundo em que vivem e gere
valores positivos (...) ou seja, eles querem uma TV que estimule a
curiosidade, a busca do conhecimento, o senso crítico da criança, e
assim prepará-la para o futuro.
Von Feilitzen (2002, p. 29) lembra que nos países latino-americanos, as
produções televisivas estrangeiras s~o a grande maioria, entretanto “h| indícios de
uma crescente conscientização sobre como podem ser desenvolvidos programas
produzidos localmente que respeitem as crianças, atendam às suas necessidades e,
mesmo assim, façam sentido em termos comerciais”. Na Holanda (VON FEILITIZEN,
2002, p. 67) foi realizado estudo similar ao da Midiativa, sobre a qualidade dos
programas infantis, aplicado a quatro grupos: crianças de 9 a 12 anos, mães de
crianças de 3 a 12 anos (consumidores) e, realizadores e críticos (profissionais de
produção e avaliação). Na pesquisa deste país, assim como no Brasil, foram
encontrados diversos padrões de qualidade, com diferenças significativas entre o
19
que os produtores e críticos esperavam e o que as crianças e mães almejavam. Se
mães e crianças desejavam que o programa fosse inteligível, os profissionais
priorizaram envolvimento e credibilidade. Feilitzen conclui que:
N~o h| fórmula pronta para o que seja um “bom” programa ou
conteúdo de mídia. As crianças são ativas e curiosas, e elas se
orientam no ambiente de maneira a construir significados. Elas
querem aprender, se divertir, construir relações sociais e criar sua
própria identidade – também por meio da mídia [...] O que as
crianças precisam, então, não é apenas prazer e identificações
imaginárias visando ao entretenimento. Elas também querem
aprender e construir seu sentido de pertencer a uma sociedade
[...]. (VON FEILITIZEN, 2002, p. 69).
Coincide essa conclusão da autora com o que os pais também esperam da
TV, ou seja, que divirta as crianças e que ao mesmo tempo permita-os compreender
o mundo com valores positivos. Como disse Dominique Wolton (2003, p. 61), “de
todas as maneiras a televisão fascina, pois ela ajuda milhões de indivíduos a viver, se
distrair e compreender o mundo”. Ciente da não ingenuidade do autor quando fala
de uma “ajuda” da TV enquanto meio de comunicação com finalidades lucrativas
compreendemos que: de um lado estão os pais que se preocupam com a ludicidade
dos programas de TV e com a qualidade, e do outro, estão às emissoras de televisão
que se preocupam com a qualidade, mas também com a lucratividade, com os
dividendos. Situadas no meio disso tudo, estão às crianças e o que elas entendem e
apreendem dos programas de televisão.
As crianças, cada vez mais cedo entram em contato com a TV e seu
conteúdo veiculado nos programas. Esse contato lhes permite criar uma forma de
apreensão do que está ao redor delas, do seu pertencimento no mundo, do que
têm a predisposição para gostar ou não, assim como os seus modos de apreciação
dos artefatos culturais parece desde então enformado por certa estética e
correspondente ética. Não tanto como pais, mas agora como pesquisadores,
voltamos a nos perguntar: é possível encontrar e descrever as características que
fazem um programa de televisão infantil ser tido como de qualidade e com grande
audiência? Essa qualidade debatida por críticos e pais é sinônima de uma formação
20
apenas sociocultural ou também tange a econômica, intervindo na formação dos
modos de consumo? Será que o efeito de sentido proposto a essas crianças
perpassa sua formação enquanto público desse meio de comunicação TV?
Cocoricó em trajeto de pesquisa
Essas são algumas das dúvidas que tentaremos elucidar ao longo dessa
pesquisa. Trabalhos anteriores sobre programas infantis de televisão apontam para
duas direções: de um lado, programas infantis e seu teor educativo, por outro lado,
análises comparativas de programas infantis e seu conteúdo. É claro que ao longo
desta tese, estaremos nos reportando ao teor educativo presente nos programas
infantis, como também ao conteúdo deles, por ambos fazerem parte da
metodologia e corpus proposto. Entretanto, o enfoque primordial que estaremos
desenvolvendo pretende dar conta do efeito de sentido proposto ao destinatário, o
que envolve tratar o objeto de investigação, tanto como objeto da comunicação
como objeto da significação.
Isso quer dizer que, nos concentraremos nos procedimentos enunciativos
projetados na relação enunciador-enunciatário com o intuito de, ainda
hipoteticamente falando, encontrarmos a projeção identitária desse destinatário,
como ele é construído - pela natureza sincrética do próprio meio – para ser um
telespectador (ao longo dos anos) por e para a televisão. Para isso, iremos
percorrer um caminho que vai dessa relação entre os meios de comunicação com as
crianças até os regimes de interação e de sentido propostos por Eric Landowski,
entendendo de um lado a televisão como destinadora, e as crianças e
telespectadores como destinatários. Como corpus de análise foi escolhido o
programa Cocoricó, transmitido e criado pela TV Cultura de São Paulo. Num recorte
metodológico, foram analisadas a quarta e a quinta temporadas 2 (essa última
intitulada Cocoricó na Cidade), veiculadas nos anos 2008, 2009 e 2010.
2
Embora o recorte da pesquisa seja a quarta e a quinta temporada do programa Cocoricó, durante
toda a pesquisa, utilizaremos as temporadas anteriores, com o intuito de compreendermos melhor
as histórias narradas e as temáticas reiteradas, etc. A partir da escolha do programa como objeto de
21
Esse objeto televisual nos permitiu pensar numa tríade. Numa ponta, a TV
Cultura como um meio de comunicação e destinadora do programa; na outra, os
telespectadores como destinatários e; na última ponta, os efeitos de sentido frutos
dessa primeira relação comunicativa e interacional estabelecida. Essa triangulação
nos levará a apreensão de um estilo de fazer televisão da emissora TV Cultura:
programas de entretenimento que seguem moldes educacionais e se utilizam de
uma linguagem sincrética com determinada apreciação estética e que se pautam
segundo uma exploração das competências estésicas do telespectador.
O que colocamos aqui é que o Cocoricó propõe efeitos de sentido que vão da
ordem do inteligível, neste caso, cunhado no entretenimento-educativo, à ordem do
sensível, mais ligado à formação de hábitos e estruturação do gosto; com
elementos ora da atualidade, de uma cidade grande, da contemporaneidade com
valores do presente, ora de um ambiente rural com valores tradicionais. Um dos
intuitos desta pesquisa será então, apresentar uma análise desse programa
considerando o público ao qual se destina, observando: 1) a confirmação de um
hábito; 2) a configuração de um aprendizado sociocultural; 3) a formação da
audiência da TV.
Entendemos, assim, que Cocoricó estabelece uma relação de comunicação
entre a emissora e os telespectadores, mas que vai além, configura uma relação
com esse espectador que é dada pela formação de um gosto, que tanto pode ser
um gosto do aprender as normas e regras sociais e, enquanto fator de crescimento
e desenvolvimento da criança, quanto outro gosto, para o desfrute do aprendizado
de uma estética que produz hábitos de consumo. Essa formação se intensifica mais
ainda, quando o programa sai de um cenário do ambiente rural e entra no ambiente
da cidade, neste segundo caso, com aparelhos eletrônicos, mobiliários de última
geração e/ou objetos ligados à arte e cultura. A posse de bens culturais começa pelo
consumo de lugares da cidade, de modos de se ocupar, em especial de brincar,
divertir-se, de levar a vida.
nossa análise, a escolha das temporadas que iriam ser analisadas foi feita por um critério de
diferenças e oposições entre essas temporadas, nesse caso, a ida de João da cidade para o campo
(na temporada 2008/2009) e a ida de Júlio e seus amigos do campo para a cidade grande (na
temporada 2009/2010), possibilitou-nos pensar nessas diferenças estabelecidas.
22
Para tal análise, foram utilizados os episódios da quarta temporada
(2008/2009) Cocoricó, disponibilizados em DVD com os nomes Cocoricó Diversão,
Cocoricó Tecnologia e Cocoricó Pé na Cozinha, e a quinta temporada (2009/2010)
Cocoricó na cidade e Clipes musicais Cocoricó na Cidade, também em DVD, bem como
episódios gravados a partir da transmissão diária na TV Cultura. O objetivo, assim, é
o de contribuir para uma discussão e análise crítica dos programas de televisão
dirigidos à faixa etária infantil em idade pré-escolar, de crianças de 0 a 6 anos. Foi
ainda interesse desta pesquisa, investigar: como se constrói a dimensão plástica de
um programa de televisão dirigido às crianças? Como essa plasticidade pode
promover uma interação entre os sujeitos envolvidos no processo de
comunicação/produção do texto televisivo direcionado ao público infantil?
Na busca por essas respostas, este trabalho se propõe a: (1) descrever o
contexto sócio-histórico-econômico em que o programa se consolidou na televisão
brasileira, colocando-o em relação aos outros programas infantis de outrora, assim
como, com a própria história da TV Cultura; (2) examinar como através das
modalizações do ser e do fazer, o Cocoricó, um programa de TV trabalha as
modalidades do poder, do querer, do fazer e do dever, e discutindo, portanto,
valores cognitivos, volitivos, performáticos e prescritivos em seus diferentes
programas narrativos e percursos enunciativos, numa relação destinadordestinatário; (3) identificar de que forma se estabelece a relação enunciadorenunciatário de um programa de TV infantil, observando-se, para isso: em primeiro
lugar as características plásticas das figuras da expressão e de figuras do conteúdo,
bem como as projeções de pessoa, tempo e espaço presentes no texto audiovisual;
(4) relacionar o percurso gerativo de sentido dos episódios com os regimes de
interação e de sentido propostos por Eric Landowski pelos procedimentos de
programação, manipulação, ajustamento e acidente.
A semiótica discursiva nos servirá de aporte metodológico nas análises da
produção de sentido deste texto escolhido. “A semiótica tem por objeto o texto,
ou melhor, procura escrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o
que diz” (BARROS, 2007, p. 7); compreende o texto como um todo de sentido, para
23
isso, propõe a análise do texto enquanto objeto de significação e comunicação. O
semioticista do audiovisual Bettetini (1986, p. 16) explica a relação entre o
destinatário e esse tipo de texto:
As fórmulas tradicionais da unidirecionalidade das mensagens
audiovisuais de massa e da conseguinte impossibilidade de um
diálogo entre destinador e destinatário estão, de fato, censuradas
pelas novas tipologias de consumo, mas sua crise não se limita à
contingência de uma nova prática de acesso ao significante e à
diegese. A busca por novos modelos semióticos, capazes de
interpretar os atuais intercâmbios da comunicação audiovisual,
supera os limites de uma situação ainda não completamente
interpretada, para surgir de maneira benéfica sobre toda a
produção semiótica interessada nas noções do texto 3. (BETTETINI,
1986, p. 16).
Tentaremos, portanto, ao longo desta pesquisa, enquanto semioticista, “dar
conta das condições de apreensão e da produção do sentido, quaisquer que sejam
os lugares e as formas de sua manifestaç~o” (LANDOWSKI, 1992, p. 58). Quer dizer
que o objeto deve ser analisado: internamente, pelo estudo dos procedimentos e
mecanismos que o estruturam e o estabelecem como uma unidade significante e;
externamente, quando em relação com o contexto sociocultural no qual está
inserido
(IDEM).
O
programa
Cocoricó
será
analisado
enquanto
sua
heterogeneidade e diferentes linguagens de manifestação, sejam elas: verbal,
espacial, proxêmica, gestual, ou visual, como nos explica Oliveira (2004, p. 12). As
linguagens serão estudadas desde a descrição do arranjo da expressão –
considerando, para isso, as escolhas de quem enuncia dado texto – à identificação
dos traços figurativos, o que nos possibilitará descrever os indicativos de formação
social para a criança e de sua formação identitária enquanto destinatário deste meio
de comunicação televisão.
3
Tradução nossa para: “Las fórmulas tradicionales de la unidireccionalidad de los mensajes
audiovisuales de masas y de la conseguiente imposibilidad de una “conversación” entre emissor y
destinatario están de hecho impugnadas por las nuevas tipologías de consumo, pero su crisis no se
limita a la contingencia de una nueva práctica de acceso al significante y a la diégesis. La búsqueda de
nuevos modelos semióticos, capaces de interpretar los actuales intercambios de la comunicácion
audiovisual, supera los límites de una situacións aún no completamente interpretada, para irrumpir
saludablemente sobre toda la producción semiótica interessada en las nociones del texto”.
24
A análise deste corpus, como acabamos de dizer, foi abordada também pela
relação com o contexto sociocultural em que está inserido o programa, sendo
assim, a significação deve ser compreendida pelas relações entre os atores sociais e
suas práticas. Esse ramo da semiótica, denominado de sociossemiótica, prevê a
investigação de três ordens de problemas:
[...] problemas de semântica, relativos ao estabelecimento e
organização dos valores e dos objetos significantes que o discurso
social manipula; problemas de sintaxe, relativos ao
estabelecimento e às transformações das relações entre os
sujeitos, condicionando ao mesmo tempo a circulação
intersubjetiva dos valores; problemas de pragmática, relativo às
condições de assunção dos elementos estruturais precedentes
pelos atores “reais” no plano de suas pr|ticas “vividas” (ou ainda,
“em contexto”). (LANDOWSKI, 1992, p. 11).
Trataremos, então, esse texto segundo a lógica sintáxica de junção entre o
sujeito e seu objeto de valor, uma vez que consideramos o programa de TV como
um discurso enunciado por um sujeito para outro sujeito, com este segundo,
buscando uma mudança de estado. É a busca pelos valores como entretenimento e
educação, que, determinam a constituição do sujeito criança por uma forma de ser e
gostar, portanto de sua formação identitária.
Pelo percurso gerativo de sentido, como perspectiva metodológica de
análise semiótica, iremos reconstruir o sentido do plano do conteúdo do Cocoricó.
Para isso, o primeiro nível de construção do sentido é o chamado nível fundamental
e compreende as categorias semânticas que ordenam os diferentes conteúdos do
texto. As categorias semânticas estabelecem-se por oposições, por relação de
contrários, exemplo: vida vs morte; identidade vs alteridade. O segundo nível do
percurso gerativo de sentido é denominado de nível narrativo e define-se pela
sequência de transformações de estado do sujeito, que é processado em:
manipulação, competência, performance e sanção. O terceiro nível do percurso
gerativo de sentido é o chamado de nível discursivo. É neste nível que as formas
abstratas do nível narrativo são concretizadas por meio de figuras e temas.
25
Ainda sob a lógica da junção, trataremos das questões que permeiam o
contrato fiduciário, ou seja, o fazer crer do enunciador ao enunciatário no discurso
por ele enunciado. Entretanto, se esse programa de televisão para as crianças é uma
prática social, assim que vai ao ar são estabelecidos novos tipos de interação social?
A resposta positiva a essa pergunta nos permite pensá-lo a partir, também, da
lógica do regime da união, que além do contrato, mantém uma relação de contato
entre enunciador e enunciatário, num sentido que pode se dar em ato, na relação da
criança com o que está assistindo. De acordo com Landowski:
[...] ao lado da lógica da junção entre sujeitos e objetos, que
fundamenta a abordagem dos fenômenos de interação pensados
em termos de estratégias de persuasão e de fazer fazer, devemos
prever uma problemática do fazer ser que ponha em jogo outro
tipo de relações entre actantes, da ordem do contato, do sentir, e
em geral daquilo que chamaremos de união. Esquematicamente,
enquanto é próprio do regime da junção fazer circular entre os
sujeitos, objetos que têm significação e um valor já definidos,
segundo o regime de união, no qual os actantes entram
estesicamente em contato dinâmico, é sua co-presença interativa
que será reconhecida como apta a fazer sentido, no ato, e criar
valores novos. (LANDOWSKI, 2005, p. 19).
No caminho para postular tais relações, iremos discorrer no primeiro capítulo
desta tese, intitulado “Educaç~o, Televisão e Cocoricó”, sobre o meio de
comunicação televisão, a história dos primeiros programas infantis no mundo e no
Brasil, além de fazermos uma contextualização da TV Cultura enquanto emissora
que transmite o Cocoricó. Falaremos como o programa surgiu e no que ele se
transformou ao longo de mais de uma década de existência. Este capítulo possibilita
justificar a escolha desse programa como objeto de pesquisa.
O segundo capítulo “A construção do mundo de Cocoricó” fala sobre as
vinhetas de abertura do programa, assim como as vinhetas de continuidade e
encerramento. Neste capítulo, trazemos a análise das cenas iniciais dos episódios da
temporada Cocoricó na Cidade, com os bonecos Esfarrapado e Roto, além da
estruturação de cada episódio do programa, com as análises das vinhetas, do
26
episódio e do clipe musical “Pôr do sol”, priorizando a descrição dos procedimentos
sincréticos utilizados.
No terceiro capítulo da tese “Modos de presença discursiva” ser~o
apresentados os modos de presença em Cocoricó da delegação de vozes, da
temporalidade e espacialidade. Ressaltando a partir desses modos, como esse texto
audiovisual é construído e como ele é figurativizado e tematizado para que monte
um tipo de interação com o destinatário que se correlaciona ao tipo de construção
do sentido que ele é levado a processar. Além da construção enunciativa, esse
capítulo possibilita-nos entender o programa enquanto um gênero, portanto um
estilo de se fazer televisão para criança.
O último capítulo “Regimes de sentido e regimes de interação” propõe uma
discussão de Cocoricó tendo como base os regimes e procedimentos propostos pelo
semioticista Eric Landowski, destacando para isso, os conceitos de hábito, marca,
consumo e interação. A proposta que se estabelece aqui é a de estudar o Cocoricó
entendendo-o como um objeto semiótico construído como um todo de significação
que repercute no brasileiro adulto hoje, criança do amanhã.
28
Capítulo I
EDUCAÇÃO, TELEVISÃO E COCORICÓ
O que é a televisão? Um meio de
informação? Uma droga (contra o tédio),
um remédio (contra a solidão)? Um
instrumento de socialização? Um aparelho
ideológico? Uma forma de arte? Um simples
suporte publicitário? Um pouco de tudo
isso, certamente – mas não somente isso.
Eric Landowski, 2008
A televisão - mais que o rádio e o jornal -conseguiu se tornar um dos meios
de comunicação de massa mais presente na vida das pessoas e, mesmo atualmente
quando se fala da grande ameaça da rede mundial de computadores – a internet – a
audiência das grandes emissoras de televisão consegue se manter estável. Mesmo
tendo escrito há mais de duas décadas sobre a TV, essa passagem de Pignatari ainda
é válida :
[...] no século passado, o livro, o jornal e a revista exerceram
funções semelhantes às da televisão em nossos dias, a ponto de
alguém haver dito que a leitura era um ‘vício impune’. A televisão é
um veículo de veículos, assim como o computador é máquina de
máquinas: todos os meios confluem para a televisão, assim como
todas as informações confluem para o computador. (PIGNATARI,
1984, p. 103).
De fato, a televisão vem se adaptando às mudanças e propostas de novos
meios comunicação e assim como ela, seu público permanece firme. O sociólogo
francês Dominique Wolton estuda há mais de três décadas o tema da televisão no
29
contexto europeu. Para o autor, pode-se comparar o espectador de TV ao cidadão,
{quele que pode ser “a fonte da legitimidade democr|tica” (1996, p. 15), a partir do
uso democrático e coletivo. Wolton se questiona sobre o caráter da televisão
enquanto uma possibilidade, e segundo ele, se por um lado, a TV reúne indivíduos e
políticos (que tudo tende a separar), por outro, se oferece a eles como uma
possiblidade de fazer parte de uma atividade coletiva. Trata-se de uma “aliança bem
particular entre o indivíduo e a comunidade que faz dessa técnica uma atividade
constitutiva da sociedade contemporânea” (Wolton, 1996, p.15).
Mas esse cenário não foi sempre assim. Esse mesmo veículo, que hoje pode
ser considerado como uma técnica constitutiva da sociedade, em meados da
década de 1960, foi tratado por uma corrente de pesquisa americana enquanto
parte de uma indústria cultural, com ideologia e crítica às imagens, numa
abordagem marxista, que ficou conhecida como Teoria Crítica4, do qual Theodor
Adorno foi um dos mais expressivos representantes. De um lado, o sucesso, e do
outro, o impacto desse sucesso contestado pelos estudiosos. Para Dominique
Wolton (1996, p. 23), “a televis~o permanece, meio século depois de seu
aparecimento, um objeto n~o pensado” e, segundo o autor pensado sob uma
“muralha de estereótipos, de ideias prévias e meias verdades”. O autor aponta três
ideias que suscitaram o aparecimento da TV pública na Europa. A primeira seria
justamente a configuração de uma resposta ao temor suscitado por esta nova mídia
que era a televisão (ainda mais inquietante que o rádio) e que por isso, deveriam ser
controladas pelo poder público, sendo esse controle apontado como segunda ideia.
E por fim, a televisão pública como uma possibilidade de ir contra o modelo de
4
Dominique Wolton (1996, p.48-50) discorre sobre a lógica do conhecimento que guia as pesquisas
sobre televisão em dois parâmetros distintos, os dos discursos apaixonados versus dos discursos
políticos. “Essa vis~o ‘naturalmente’ politizada da televis~o explica, talvez, o sucesso que tiveram,
desde a década de 1950, todas as teses produzidas por intelectuais condenando o seu papel nefasto.
Teses, que em sua esmagadora maioria, encontram eco favorável junto às elites, mesmo que elas,
supondo-se que tenham se questionado a si mesmas, pudessem constatar um divórcio entre o seu
comportamento como telespectador e o seu discurso [...] Os trabalhos empíricos de conclusões
prudentes e argumentadas jamais tiveram influência comparável à dos inúmeros livros e estudos que
denunciavam os perigos, os prejuízos e as maléficas estratégias da televis~o”. O autor diz ainda que
as análises decorrentes dessa terceira corrente de pesquisa americana, representada por Adorno e
Hebert Marcuse desempenharam papel essencial, pois basearam e influenciaram todo o pensamento
europeu.
30
organização privada da televisão americana, justificando assim o que o autor chama
de “nacionalizaç~o” da TV.
Dentro desse modelo de televisão pública existiram os países que optaram
por uma “lógica administrativa, política, centralizadora” (WOLTON, 1996, p. 26-33),
e outros que preferiram uma estrutura pública descentralizada. Desde os anos 50
até os dias atuais, a televisão pública passou de primeiro instrumento de diversão
popular, com sucessos de programas educativos e populares, para o abandono do
monopólio de produç~o. Esse abandono nas TV’s públicas aconteceu, de acordo
com o autor, devido à falta de renovação e, principalmente verba. Ainda mais
agravado pelo contexto atual, iniciado lá no final da década de 80, com a
“desordenada e tardia” lógica da concorrência com as televisões privadas. O autor
conclui que a televisão (em sua mostralidade de públicas e privadas) acabou vítima
de três limitações: a econômica, a de consumo e a tecnológica.
Será, então, que o desafio da televisão privada é apenas a audiência e o lucro
e, o da TV pública informar, entreter e educar? Neste capítulo, iremos: conhecer
mais sobre a história e o contexto sócio-cultural-político da implantação da TV
pública no Brasil até os dias atuais, principalmente da TV Cultura, destinador do
programa analisado; saber quais programas infantis fizeram história na TV brasileira
e qual a relação deles com o Cocoricó; mais ainda entender por qual momento a
televisão no Brasil passava quando o programa foi criado e quais suas
características.
1.1 Uma pitada da história da televisão
Em 1952, ocorre a primeira tentativa de implantar uma televisão educativa no
país, tentando seguir um rastro iniciado por outros países como o modelo de
veículo educativo no Reino Unido, a BBC5, e os vários canais de televisão dos
Estados Unidos, exclusivamente reservados à educação, criados ainda na década
5
O pesquisador brasileiro Laurindo Leal Filho publicou o livro A melhor TV Pública do Mundo, sobre a
história da emissora britânica BBC.
31
anterior. A TV Roquette-Pinto era um projeto coordenado por seu idealizador
Edgard Roquette-Pinto, cuja vida inteira foi dedicada à radiodifusão e televisão.
Entretanto, devido a fortes pressões políticas, mesmo já tendo conseguido a
concessão de uma estação de radiotelevisão, não foi nesse ano que o Brasil teve sua
emissora de TV pública. Já no ano de 1958, existiam programas educativos, como na
estação de TV Educativa de Santa Maria. Posteriormente, na década de 60,
começaram a se espalhar outras experiências pelo Brasil. “Fervilhava no Brasil e no
mundo a ideia de que a televisão seria a tábua de salvação, levando conteúdo de
qualidade mais r|pido e mais longe do que os métodos tradicionais” (LIMA, 2008, p.
32). Como São Paulo era o estado do país com maior desenvolvimento industrial
queria estar à frente do processo em 1961, a Secretaria de Educação criou o Curso de
Admissão pela TV, produzido pelo Estado e transmitido pela TV Cultura, ainda
comercial pertencente às Emissoras Associadas de Assis Chateaubriand. No ano
seguinte, em 1962, uma lei federal criava o Código Brasileiro de Telecomunicações e
era fundada a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), cujo
objetivo era representar os interesses da televisão comercial no Brasil. Em 1963, os
incentivos do governo paulista continuaram para a educação e formação pelo rádio
e televisão, com a TV Cultura ampliando a programação educativa veiculada, com
aulas de literatura, artes plásticas, educação musical, etc.
Em janeiro de 1967, foi promulgada a Lei 5.198, que autorizava a criação do
Centro Brasileiro de Televisão Educativa, cujo objetivo era o de produção, aquisição
e distribuição de material audiovisual para uso em televisão educativa, cujo estatuto
foi aprovado e passou a se chamar Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa.
Neste mesmo ano, o projeto pioneiro da TV Escolar, iniciado por Carvalho Pinto e
continuado por Adhemar de Barros, no estado de São Paulo, entra em crise. Lima
(2008, p. 38) conta que a revista Realidade produziu, na época, uma matéria
criticando o descaso do governo do Estado nesse projeto. Devido a esse relato, o
projeto teria sofrido sérios cortes em 66 e, passou a pregar uma televisão que, para
além de escolar, fosse também educativa e cultural. Ainda em 1967, o então
governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, apresenta um projeto de
32
televisão pública, denominada televisão educativa no Brasil, com a utilização de um
canal próprio com programação diversificada. Era criada, assim, a TV Cultura
pública. Embora essa emissora não tenha sido a primeira educativa a entrar
efetivamente em operação, projeto desenvolvido pela TV Universitária de
Pernambuco, em novembro de 1968.
Entre os anos de 1967 e 1971, foram autorizadas várias concessões de
Televisão Educativa. Apenas em 1973, a emissora TVE6 passou a funcionar em
caráter experimental e só depois de três anos, se assumiu como uma televisão, com
seis horas de programação diária. Esse resgate histórico das televisões educativas e
públicos no Brasil nos faz ir de encontro aos programas veiculados ao público
infantil, claro, como parte da história da televisão brasileira pública.
1.2
Os primeiros programas infantis
O Brasil - mais do que em outros países desenvolvidos, subdesenvolvidos ou
em desenvolvimentos - é um dos países em que a televisão se fortaleceu e se
consolidou. Disse Jorge da Cunha Lima sobre a inauguração da televisão no Brasil:
“ao fim dos anos 40, o Brasil aparecia como um abonado país emergente, possuidor
de um alentado saldo comercial proporcionado pelas exportações maciças de
matérias-primas estratégicas” (LIMA, 2008, p.23-25). As duas metrópoles brasileiras,
Rio de Janeiro e São Paulo, exibiam notável vitalidade econômica e cultural e a sede
por modernidade era grande. O interesse dos brasileiros pela televisão então se
confirmou nesse cenário com a inauguração em 18 de dezembro de 1950, da
primeira emissora de televisão brasileira, a pioneira TV Tupi de São Paulo,
propriedade de Assis Chateaubriand, assim como as rádios e jornais conhecidos
como Diários Associados. No ano seguinte, em 1951, Chateaubriand inaugurou a TV
Tupi do Rio de Janeiro.
6
A TVE foi responsável por programas como A turma do Lambe-Lambe, com Daniel Azulay, Canta
Conto com Bia Bedran e a série Patati-Patatá nos anos 1980, e outros mais recentes como A Turma do
Pererê (2001) e Um Menino Muito Maluquinho (2006), os Curta Criança e Curta Criança Animação
(2003).
33
Se na época da inauguração da TV, o Brasil se apresentou como um país de
interesse por esse meio de comunicação, nos anos que se passaram até a atual
configuração da TV no país, esse interesse inicial apenas foi confirmado. O Brasil é
um dos países com o maior número de aparelhos televisores do mundo, um dos
mais audiovisuais do planeta: aproximadamente 98% dos lares brasileiros dispõem
de pelo menos um aparelho de televisão (DUARTE, 2008, p. 17). É correto afirmar
que a televisão faz parte da cultura brasileira e como tal toda a sua grade de
programação, que vem a cada ano se especializando e buscando novos caminhos a
partir de novas ferramentas.
Quando se fala em crianças e audiência televisiva infantil, a preocupação
aumenta ainda mais. Segundo Rosália Duarte (2008, p.17), as crianças compõem o
segmento mais significativo de espectadores de televisão7; são elas, que, portanto,
se relacionam de modo mais intenso com a televisão, apreendendo sentido e
construindo valores a partir do que assistem. Sabendo disso, é neste tópico
estaremos discorrendo sobre o surgimento dos primeiros programas infantis nos
Estados Unidos, país que influenciou diretamente a criação e forma da televisão
brasileira.
Naquela época e ainda hoje, a televisão foi acusada até de não respeitar a
condição física e emocional das crianças e colocar no ar programas que não
condizem com a faixa etária8, como explicitado pelo autor norte-americano Cy
7
No livro A televisão pelo olhar das crianças, a autora diz que cerca de 48% das crianças que
participaram da pesquisa relatada afirmam ter em casa tevê por assinatura, a cabo ou por satélite. O
livro traz o resultado da análise de uma pesquisa com crianças (de 8 a 12 anos) que fizeram desenhos
ou textos a respeito da tevê: programação, programas prediletos, o que gostavam e o que não
gostavam de ver. A análise foi desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa em Educação e Mídia (GRUPEM),
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Rio.
8
O Diário Oficial da União trouxe a publicação da Portaria 264 em fevereiro de 2007. O documento
determina que os programas sejam classificados por faixas etárias e horárias e também exige que a
classificação seja informada pelas emissoras por meio de símbolos padronizados. A classificação
indicativa é um dever do Estado, determinado pela Constituição Federal de 1988. Cabe ao poder
público, por parte do Ministério da Justiça, indicar as faixas etárias para as quais não se recomendam
determinado programa. A nova classificação foi resultado de mais de três anos de debate entre o
Ministério da Justiça, emissoras de TV, produtores, exibidores e representantes da sociedade civil
organizada. A portaria traz ainda importantes avanços no sistema de classificação indicativa de
programas de televisão, como a não classificação de programas jornalísticos ou noticiosos e a
possibilidade de que, em regra, a idade recomendada para os programas de televisão seja indicada
34
Schneider, no livro Children´s Television. Apesar de ter sido publicado há mais de
vinte anos, naquela época, as críticas já apontavam para uma discussão sobre a
produção de programas de televisão direcionados para crianças, para a questão de
como esses programas poderiam afetar as crianças. O autor aproveita também para
escrever uma espécie de manual de como se comunicar com as crianças pela
televisão. Schneider (1989) fala sobre a grande quantidade de artigos sobre o tema
televisão e criança; segundo ele, na época já haviam sido escritos mais de três mil
publicações, principalmente críticas de cientistas sociais sobre os programas de
televisão para o público infantil. O autor afirma ainda que a literatura crítica sobre
esses programas é direcionada a problemas específicos pertencentes a uma falha
no sistema, como por exemplo, artigos que abordam reações de crianças ao
assistirem material violento, não direcionado especificamente para elas. O autor
enumera (1989, p. 161) os principais pontos que os críticos examinam na TV dirigida
às crianças, a saber: a violência gratuita; os estereótipos sexuais e raciais; o
conteúdo educativo e quantidade de programas para crianças e; comerciais
dirigidos às crianças (aspectos como quantidade excessiva, aqueles preocupados
com nutrição infantil, saúde bucal, e outros de brinquedos caros).
Schneider contrapõe tais pontos, afirmando que: em primeiro lugar, apesar
de alguns desenhos ou animações apresentarem histórias que chegam a conter
algum ato de violência, não existe comprovadamente relação entre esses atos de
violência presentes nos desenhos e o comportamento das crianças. O autor explica
que a animação é um meio que depende de velocidade, ação e certa dose de humor.
Nesses programas, os vilões são claramente punidos e a criança não encontra mais
violência na TV – no sentido de punição entre as forças do bem e do mal - do que
encontraria num livro, por exemplo. “Como terminaria a história dos
‘três
porquinhos’, se o Lobo Mal n~o entrasse na panela de |gua fervendo”9, questiona
Schneider (1989, p.165). Sobre os estereótipos presentes nos programas, o autor
confirma que a sociedade mostrada pela televisão é usualmente distorcida quando
pelas próprias emissoras (autoclassificação). Os critérios adotados seguem os padrões já aplicados
em democracias consideradas consolidadas como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e Suécia.
9
Tradução nossa para: “How else would you end the story og ‘The Three Little Pigs’ if the Big Bad
Wolf didn’t fall into the pot of boiling water?”.
35
tenta se aproximar da realidade, principalmente para as crianças de comunidades
homogeneamente brancas, sem familiaridade com negros, hispânicos ou
segmentos minoritários da sociedade. Mesmo afirmando que almeje isso, o que se
passa na TV não pode dar conta de ser uma cópia fiel da realidade. Até porque
muitos de seus programas podem ser pensados e escritos com o objetivo de
retratar os diferentes grupos de pessoas presentes na sociedade, com seus dramas,
sexos, etnias e idades, no entanto, um grupo sempre se sentirá insatisfeito em
relação ao outro. Concordamos com Schneider (1989, p.166-170), quando o autor diz
que minimizar essa relação se trata de uma difícil tarefa, quando temos dados
estatísticos que nos apontam a quantidade de horas que uma criança passa em
frente à televisão.
Para essas crianças, a TV se torna o seu mundo de referência, com os grupos
que ali são projetados. Além do conteúdo violento e dos estereótipos, restam ainda
duas questões da qualidade dos programas e, dos anúncios publicitários
direcionados para crianças. De acordo com Schneider, o programa “The Funny
Company”
veiculado em 1963 na TV norte-americana, com financiamento da
empresa de brinquedos Mattel e direção de Ken Snyder, introduziu o conceito do
que o autor intitulou “edutainment” ou edutrenimento em português. Esse
programa voltou-se para a questão da qualidade, com pretensões educacionais e
um formato próprio, não mais baseado nos modelos escolares, repleto de
instruções, mas que tivesse um quê de entretenimento para as crianças.
O autor faz referência também a dois outros programas da TV pública norteamericana, Mr. Rogers (1967) e Sesame Street (1969), direcionados ao público préescolar, com essa proposta educacional. Diz Schneider sobre o Sesame Street: “este
programa foi realmente o primeiro a combinar as transformações rápidas por quais
passam a televisão comercial com um plano educacional atual”10 (SCHNEIDER, 1989,
P. 171). Com uma larga experiência em televisão e também na produção de
programas infantis, Cy Schneider defende a mídia televisiva com uma visão positiva
de sua influência na formação das crianças. O autor diz que:
10
Tradução nossa para: “This show was really the first to combine the fast pace of commercial
television with an actual educacional plan”.
36
Os que dizem que a televisão não está no interesse público,
esquecem que a televisão é um meio de massa cuja intenção é
projetar a maior audiência possível, não é um negócio que costuma
planejar a programação em função de um grupo ou indivíduo. Já é
o suficiente planejar a programação para crianças baseada em
programas específicos para a faixa etária, ou raça, ou sexo, pelo
nível de inteligência ou afluxo11. (SCHNEIDER, 1989, p. 5).
Por outro lado, a televisão ainda é a principal mídia direcionada ao público
infantil. Enquanto pesquisadores e pais, sentimos que essa audiência infantil da TV
nos impõe alguns questionamentos: os programas de televisão realmente
apresentam caráter educativo? E, os pais precisam se preocupar com o quê seus
filhos assistem na TV, só pelo fato do material ser direcionado para a faixa etária
infantil? A criança é capaz de apreender o sentido dado por um programa de tevê?
O semioticista italiano Francesco Marsciani examina a relação a respeito da
televisão e da audiência infantil. Para o autor existem algumas razões para essa
relação de proximidade e fidelidade entre a mídia televisiva e as crianças:
A primeira delas e a mais evidente é que se trata do meio de
comunicação mais frequentado pelo público infantil em termos
absolutos; a segunda é que a TV, quem sabe mais do que as outras
mídias, inaugurou formas inéditas de construção da mensagem,
uma linguagem própria de grande impacto e fascinação, com
extensão no campo da informática; a terceira é que a TV já atingiu
uma difus~o t~o ampla, que pode ser considerada ‘mídia
obrigatória’, como a escola; uma quarta raz~o é que ela é
transmitida através de um aparelho, o televisor que conquistou seu
espaço específico e relevante dentro do ambiente cotidiano da
criança. (MARSCIANI, 1998, p.65).
Meio de comunicação absoluto, linguagem própria, mídia obrigatória, espaço
relevante, são as razões que transformam a TV em parceira ideal para o público
infantil. São programas e canais especificamente voltados para crianças (Cartoon
11 Tradução nossa para: “Those who say television is not in the public interest forget that television is
a mass medium that sets out to program to the largest possible audience, not a business which
custom designs programming to fit every group and individual. It is enough that they design
programming for children per se without specific shows for this age group or sex or race or level of
intelligence or affluence”.
37
Network, Fox Kids, Discovery Kids, Disney Chanel, Nick Jr., TV Rá-tim-bum, TV
Cultura, TV Futura, entre outros).
É válido ressaltar que, nos últimos anos, o mercado de mídia em geral se deu
conta da importância e do tamanho do público dos programas infantis e foi
justamente daí por diante que começaram a surgir inúmeros programas e produtos
direcionados especificamente para eles, incluindo canais exclusivos de TV por
assinatura. No livro
Os jovens e a mídia, com textos organizados por Sharon
Mozzarella, o artigo “Como se desenvolveu a indústria da mídia” de J. Alison Bryant
trata sobre o desenvolvimento da indústria da mídia direcionada ao público infantil,
desde o cinema, passando pelo rádio, até chegar aos dias atuais no ambiente
multimídia.
Bryant fala de alguns momentos importantes e distintos sobre a
programação infantil na televisão americana. No cinema, em 1937, foi lançado pela
Disney o primeiro filme para a família, Branca de Neve e os Sete Anões. Naquela
década, o rádio também se firmou como uma mídia para as crianças, até mesmo
mais que o cinema, por ser mais caseira e acessível para as crianças. O modelo de
patrocínio dos programas, adotado posteriormente pelas emissoras de televisão
surgiu no rádio, mas apenas depois de 1950 os programas infantis de rádio foram
superados pela mais recente mídia: a televisão (BRYANT, 2009, p.28-29). Bryant
explica que na década de 1940 e no início de 1950, o propósito dos programas
televisivos para crianças “era criar no imaginário a visão deste veículo como novo
local de encontro da família e assim vender os aparelhos de televis~o aos pais”
(IDEM). Durante toda a década de 50 e 60 as emissoras de televisão americanas
ofereciam para crianças programas patrocinados por grandes companhias como
parte de sua grade de programação. Foi nesse período também que as grandes
fabricantes de brinquedo começaram a anunciar, durante os intervalos comerciais,
nos programas infantis de televisão e o retorno lucrativo foi imediato para a Mattel,
dentre outras fabricantes (SCHNEIDER apud BRYANT, 2009, p. 33 ).
O autor nos conta que mesmo ainda durante a década de 1970 a
programação da televisão infantil continuou a consistir em sua maioria de desenhos
38
animados de baixo custo. Foi apenas na década de 1980 que as organizações que
criavam as animações infantis passaram por algumas mudanças. Segundo Bryant:
A atmosfera liberal da administração de Reagan, juntamente com
as transformações no ambiente tecnológico da televisão
(especificamente o acentuado crescimento dos canais a cabo),
proporcionou um contexto em que pudesse surgir um novo
modelo de programação e patrocínio para o conteúdo do
entretenimento. Na década de 1980, os program-lenght
commercials reapareceram e se transformaram em um padrão de
televisão infantil. (BRYANT, 2009, p.34).
Os program-lenght commercials eram desenvolvidos com a consulta, e, em
alguns casos, com amparo financeiro dos fabricantes de brinquedos e agentes de
licenciamento (PECORA apud BRYANT, 2009, p. 35). Smurfs, Meu Pequeno Pônei, HeMan, Thundercats e Transformers são exemplos de programas infantis cujo processo
de criação, financiamento, distribuição e licenciamento eram ações feitas em
parceria entre as emissoras de televisão e os fabricantes de brinquedos. Essas
animações também chegaram ao público brasileiro e também fizeram sucesso no
Brasil. A animação He-Man foi a que primeiro obteve um sucesso financeiro a partir
dessa parceria entre as emissoras e os fabricantes. Essa padronização na mídia
televisiva infantil minimiza a linha divisória estabelecida até então entre os
programas infantis da TV e seu o patrocínio:
[...] os produtores procurando diluir o risco dos custos de
produção do programa, voltaram-se para os fabricantes de
brinquedos e estes, querendo estabilizar-se em um mercado
sujeito aos caprichos e gostos passageiros das crianças, voltaramse para a mídia. Os programas eram desenvolvidos com a consulta,
e, em alguns casos, amparo financeiro dos fabricantes de
brinquedos e agentes de financiamento [...]. O custo do programa
podia, assim, ser diluído entre os produtores do programa e o
fabricante ou licenciado do produto, e o reconhecimento da
propaganda do produto ou o programa aumentava as vendas e os
lucros. (PECORA apud BRYANT, 2009, p. 34).
Acontece, dessa forma, uma inversão no modo de produção dos brinquedos.
Se antes os personagens eram criados para a televisão e depois licenciados para os
fabricantes de brinquedos até se tornarem "febre" entre as crianças, depois da
39
nova padronização imposta pelos program-length commercials, muitos desses
personagens populares da década de 1980 foram criados pelas companhias de
brinquedos e depois transformados em programas de televisão. Também na década
de 1980, conta o autor, as emissoras de televisão a cabo se firmaram no mercado
televisivo norte-americano especificamente para o público infantil. Em 1983, 70% das
horas da televisão a cabo eram supridas pela programação infantil (PECORA, 1998
apud BRYANT, 2009, p. 36). O surgimento de canais de TV a cabo unicamente
direcionados para o público infantil foi apenas uma das consequências dessa
especificidade da grade de programação. Nickelodeon e Disney Channel foram duas
importantes organizações de TV a cabo a surgir no final dos anos 80 e foram
responsáveis por marcantes mudanças no que diz respeito à programação televisiva
infantil, a saber: em primeiro lugar, pelo fato do Nickelodeon ter sido o primeiro
sistema de canal a cabo a ser inteiramente direcionado para o público infantil – faixa
etária de 6 a 12 anos e; em segundo lugar, pela Disney que lançou o Disney Channel
com base nas suas megamarcas (PECORA, apud BRYANT, p. 37).
Foi depois de 1990 que realmente ocorreu uma mudança significativa e tão
importante que vem de encontro aos dias atuais e a atual configuração dos
programas infantis produzidos nos Estados Unidos, mas também ao redor do
mundo, como no caso do programa brasileiro Cocoricó. As emissoras norteamericanas de televisão (incluindo a PBS e as de TV a cabo) começaram a investir
em programas para crianças em idade pré-escolar, causando impacto significativo
na grade de programação direcionada às crianças. Bryant lembra que, em 1991, a
PBS lançou programas de TV que respondiam a uma certa estagnação da grade de
programação, dentre eles, Barney e Seus Amigos12, Shining Time Station e Lamb
Chop´s Play Along. No ano seguinte, com o sucesso alcançado com os novos
programas, a PBS aprimorou sua meta de oferecer uma quantidade significativa de
programação educativa através do bloco de programas Ready-to-Learn (RTL).
Segundo Bryant:
12
Barney e Seus Amigos ainda hoje é transmitido no Brasil pela emissora de TV por assinatura
Discovery Kids. Esse programa teve uma boa aceitação entre as crianças brasileiras desde os anos 90.
40
O RTL da PBS combina 11 horas de programação educativa durante
todo o dia, ampliando os recursos destes com a participação da
comunidade e dos pais, dando atenção ao desenvolvimento social
e emocional, bem-estar físico e desenvolvimento motor,
abordagens de aprendizado, habilidades de linguagem, habilidades
cognitivas e conhecimentos gerais para crianças de 2 a 8 anos. Para
que um programa fizesse parte do RTL, este deveria ter metas
curriculares e um plano de pesquisas que fosse formativo e de
conteúdo, tanto interno quanto externo. (BRYANT, 2009, p. 38).
Segundo Bryant (2009, p. 39) em resposta ao RTL e ainda querendo
preencher uma brecha na grade de programação infantil direcionada às crianças em
idade pré-escolar, a Nickelodeon passou por uma mudança organizacional. Assim,
em 1994 a Nickelodeon lançou dentro do seu próprio canal, outro canal, o Nick Jr.
dedicado aos pré-escolares. Outras emissoras seguiram a tendência e em 1997 a TV
a cabo oferecia 40 % da programação ao público infantil.
A preocupação com a programação televisiva de qualidade voltada ao
público infantil também chegou às emissoras brasileiras e aos programas
produzidos no Brasil. As emissoras de TV a cabo retransmitem alguns dos
programas norte-americanos e de outros países direcionados ao público em idade
pré-escolar, como o Discovery Kids, Nick Jr., Cartoon, Disney Channel, e outros. Mas
existe ainda a TV Rá-tim-bum, canal pago disponibilizado pela TV Cultura com
programas nacionais como Cocoricó e Vila Sésamo, que continuam sendo
produzidos e gravados; e outros mais antigos, como Castelo Rá-tim-bum, Glub, Glub,
etc. As emissoras brasileiras percebendo o filão de mercado que se instaurava;
passou a lançar produtos decorrentes de seus programas:
DVD’s, CD-ROM
multimídia, jogos de videogame, site de jogos, etc. O autor King comenta os lucros
advindos dessas vendas:
[...] os lucros realmente significativos do setor da televisão para
crianças provêm do licenciamento e do merchandising, das vendas
internacionais e dos vídeos domésticos. Por exemplo, o Pokémon,
um programa independente de grande popularidade, cresceu até
se transformar numa indústria internacional, que inclui figurinhas
para troca, revistas infantis, bonequinhos de plástico, animais de
estimação virtuais, brinquedos de saco-de-feijão, lancheiras,
41
camisetas e CDs, tendo atingido em 1999, um total de vendas de
quase 5 bilhões em seus curtos três anos de existência (KING, 1999
apud VON FEILITZEN).
Esta cifra significou muito para as emissoras, tanto da TV aberta quanto das
TV’s por assinatura que, passaram a investir mais na produção, qualidade e
quantidade de programas direcionados a esse público. Buckingham cita o exemplo
da TV a cabo no Reino Unido, que segundo o autor:
trouxe um grande número de canais especializados que competem
para atrair a audiência infantil; e tanto nos canais transmitidos por
cabo como nos transmitidos por ondas houve um aumento
considerável na quantidade da programação oferecida às crianças,
embora não necessariamente em sua qualidade e sua diversidade.
(BUCKINGHAM, 2000, p. 127).
Cocoricó, neste sentido, nos possibilita pensar a relação estabelecida entre a
televisão e a criança, pressupondo ainda outras relações: emissora e telespectador,
programa e criança, e mais que isso, emissora e programa numa relação com os
pais, responsáveis pelo bem-estar físico, moral e intelectual das crianças. O intuito,
por ora, foi o de ponderar essas relações entre a televisão enquanto meio de
comunicação, as diferenças e semelhanças entre a televisão pública e a comercial,
assim como mostrar como os programas infantis brasileiros foram buscar, na época
do surgimento, um modo de fazer dos norte-americanos, na qual a televisão
brasileira se projetou. E no Brasil, como essa programação infantil se configurou ao
longo desses 60 anos de TV? É o que veremos nos itens seguintes.
1.3
Alguns programas brasileiros infantis “de outrora”
Desde a estreia da televisão no Brasil, os produtores e diretores oriundos do
rádio pensaram em programas dirigidos ao público infantil, para isso, num primeiro
momento aproveitaram os desenhos animados importados dos Estados Unidos e
países da Europa, embora ainda nesta época tenham pensado na produção de
programas locais. Em depoimento ao livro escrito pelo diretor J. B. de Oliveira
42
Sobrinho, o Boni, em homenagem aos 50 anos de TV no Brasil, Álvaro de Moya
então diretor artístico da TV Excelsior de São Paulo (Canal 9) comenta sobre os
primeiros programas infantis da emissora, os “did|ticos”, Nhô Totico palhaço e
Chicharrão. “Passavam também os desenhos animados de Norman McLaren e Lotte
Reiniger, além de Popeye e O gato Félix”, recorda.
No mesmo livro, outro depoimento chama atenção, o hoje famoso escritor
de novelas, Benedito Ruy Barbosa (apud BONI, 2000, p. 40-41) conta que foi
convidado pelo governador do estado de São Paulo, Laudo Natel a assumir o posto
de assessor especial do governo junto à presidência da TV Cultura. Aceitou, de
acordo com ele, o desafio o de escrever uma telenovela educativa. E assim, em 1971
estreou Meu pedacinho de chão. Exibida simultaneamente pela TV Cultura e pela
Rede Globo 13 , a novela se passava no ambiente rural e transmitia assuntos
importantes aos trabalhadores rurais, além de abordar assuntos como doenças,
desidratação, vacinação.
Benedito Ruy Barbosa escreveu ainda a primeira adaptação da Rede Globo
de O Sítio do Picapau Amarelo (1977-1986). O seriado já tinha tido outras adaptações
feitas por diferentes emissoras: a primeira adaptação foi feita pela TV Tupi de 1952
a1962, com direção de Júlio Gouveia e Tatiana Belinky; em 1964, Lúcia Lambertini
resgatou o seriado pela TV Cultura, mas ficou apenas seis meses no ar; de 1967-1969,
novamente com a direção de Júlio Gouveia e Tatiana Belinky, O Sítio foi transmitido
pela Rede Bandeirantes de Televisão; e, em março de 1977, a adaptação estreou na
Rede Globo, com reprise na TVE. Geraldo Casé (apud BONI, 2000, p.97) recorda que
a primeira coprodução da TV Globo com a TV Educativa, da qual participou, foi a
série Pluft, o fantasminha (1970), baseado na obra de Maria Clara Machado.
Segundo o diretor, a adaptação de O Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato,
“implicou a elaboraç~o de um projeto voltado para um entretenimento com
adequaç~o e estímulos educacionais sem nenhum didatismo”. Ele explica:
13
A novela Meu pedacinho de chão que inaugurou o horário das 18 horas na Rede Globo, pode ter um
remake em 2012 (disponível em http://www.teledramaturgia.com.br/meu.htm, acessado 21 de
setembro de 2009).
43
O objetivo só pôde ser alcançado pela integração de áreas ligadas
à pedagogia e à dramaturgia, num esforço mútuo entre setores
muitas vezes divergentes. A reunião de autores já consagrados,
que deveriam obedecer a determinadas premissas originadas de
currículos montados por um grupo de professores, psicólogos e
alentados trabalhos recebidos de universidades e outras
consultorias, foi tarefa árdua porém compensadora. O programa
voltado para uma delicada faixa etária, deveria ter conteúdos e
atrativos a ponto de ser um entretenimento que atingisse uma
audiência mais ampla. A partir de uma estrutura consensual, fomos
em busca dos elementos que pudessem sustentar tão arrojada
meta. O elenco de atores foi estudado levando-se em conta, como
é claro, o perfil dos personagens e o carisma dos protagonistas. Foi
grande a dificuldade de encontrar as figuras representativas –
Narizinho e Pedrinho – assim como as dos mágicos Emília e
Visconde de Sabugosa. Para sustentar uma narrativa televisiva e
compor o mundo lobatiano mantendo as características culturais
brasileiras, alvo do qual não podíamos fugir, agregamos alguns
personagens. A trilha musical, importantíssimo elemento, foi
entregue a um dos maiores artistas brasileiros, Dori Caymmi, que
cuidou de convidar os mais prestigiados compositores para
preparar os temas de cada componente das histórias. Do prefixo
ficou incumbido o nosso Gilberto Gil, que compôs uma obra-prima.
Caetano, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Ivan Lins, Sérgio Ricardo,
entre tantos famosos14. (CASÉ apud BONI, 2000, p.97-98).
Após 9 anos no ar, mais de 1.400 capítulos e prêmio de melhor programa
infantil de 1979 dado pela UNESCO, esta quarta adaptação de O Sítio do Picapau
Amarelo saiu do ar em 1986, também pelo fim do contrato entre a emissora e os
familiares de Monteiro Lobato. Em 2000, o contrato foi renovado por mais 10 anos
para divulgação da obra do autor em meios de comunicação atuais e no ano
seguinte a quinta adaptação da TV brasileira para esta obra de Monteiro Lobato
estreou, permanecendo no ar até 2007.
A primeira adaptação de O Sítio do Picapau Amarelo foi pensada baseada em
outro programa infantil de grande importância para a televisão do país. A versão
brasileira do Sesame Street, programa norte-americano criado há mais de 30 anos e
14
Geraldo Casé fala da importância de ter tido a colaboração da professora Maria Helena Silveira e da
contribuição de universidades, como a Unicamp, que elaborou um estudo alentado sobre linguística
para adequação dos textos (Apud BONI, p.98). A realização do programa contou ainda com equipes
de ciência, educação, psicologia, sociologia, cuja seleção de conteúdo de cada capítulo era feita sob a
supervisão dos autores e de uma equipe de apoio pedagógico (disponível em
http://www.teledramaturgia.com.br sitio.htm, acessado em 21 de setembro de 2009).
44
que teve forte impacto na programação televisiva infantil de países do mundo
inteiro. Atualmente, o programa continua sendo veiculado em TV’s de mais de 120
países.
De acordo com informações divulgadas pelo site da Rede Globo15, a primeira
fase da versão brasileira foi apresentada simultaneamente pela TV Cultura de São
Paulo e pela Rede Globo, de 1972 a 1974. Como inicialmente a Globo não tinha
estúdio para as gravações, estabeleceu-se uma coprodução entre as duas
emissoras. No entanto, só a Rede Globo continuou exibindo Vila Sésamo numa
segunda fase (de 1974 a 1975) e, posteriormente, numa terceira fase (de 1975
a 1977). A quarta fase do programa estreou novamente na TV Cultura no final de
2007, numa parceria com o canal de TV a cabo Discovery Kids e a empresa norteamericana detentora dos direitos autorais do programa, a Sesame Street.
Desde as primeiras fases, o Vila Sésamo se tornou sucesso porque as
emissoras envolvidas investiam em pesquisas e observações junto a crianças de três
a cinco anos. Com o objetivo de atrair a atenção do público, foram desenvolvidos
aspectos diferenciais no programa16. O Site da Rede Globo explica:
Para atrair a atenção do público infantil e transmitir com eficácia
mensagens educativas, a equipe do programa desenvolveu um
processo pedagógico baseado na repetição. O cenário de Vila
Sésamo representava uma vila, onde crianças conviviam com
adultos e bonecos. Ali, eram apresentados pequenos esquetes com
duração máxima de três minutos e a mesma informação era
repetida mais de uma vez. Com tom de brincadeira, o programa
ensinava, estimulando o raciocínio. Transmitia noções básicas do
alfabeto, números e cores (2009).
A partir da versão de 1973, o programa passou a ser inteiramente nacional.
Nesta época, foram criadas as versões brasileiras dos famosos bonecos Garibaldo e
Gugu por Naum Alves de Souza. A partir dessa data, as músicas do programa
15
Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-249656,00.html,
acessado em outubro de 2009.
16
Silvia Cavalli, uma das produtoras do infantil na época de sua implantação, conta que o programa
Vila Sésamo foi adaptado para a realidade brasileira, do cotidiano da criança que aqui vive. Segundo
ela, tinha um corpo de consultores, psicólogos, pedagogos, especialistas em educação e psicologia
infantil, que estudava cada frase dita, com os requisitos de crescimento, de desenvolvimento
cognitivo, motor e de percepção dessa criança (apud Lima, 2008, p.80).
45
original também foram substituídas por outras, compostas por Marcos e Paulo
Sérgio Valle, e os textos foram entregues a escritores brasileiros como Dinah Silveira
de Queiroz, Ivan Lessa, Marcos Rey, Ronaldo Ciabrone e Carlos Alberto Seidl. Na
versão brasileira, a rua foi transformada em uma vila operária, onde viviam
personagens tipicamente brasileiros. O programa contava ainda com participações
de crianças carentes entre 3 e 10 anos, estudantes de escolas públicas.
Em 1974, o programa passou a ser produzido exclusivamente pela Rede
Globo. Nessa nova fase, tinha como foco ensinar noções de higiene,
comportamento no trânsito, alfabetização, agricultura, conflitos entre adultos e
crianças. Os cenários foram ampliados e, apesar de ser exibido em preto-e-branco,
novas cores foram usadas pela equipe de cenografia com a intenção de dar um
visual mais rico à atração. Em abril de 1975, tem inicio a terceira fase da Vila Sésamo,
empregando métodos educacionais brasileiros para maior integração com a nossa
realidade, foram incluídos 20 novos personagens, todos criados pela equipe do
programa, chefiada por Wilson Aguiar, diretor da Divisão de Educação da Rede
Globo.
Após mais de duas décadas, o programa transmitido pela TV Cultura
atualmente, mantém a característica de tentar adaptar o Sesame Street norteamericano à realidade brasileira, embora os esquetes do programa brasileiro
tenham menos personagens e menor duração do que o americano. Existem dois
bonecos nacionais, Bel – uma criação especial para a versão atual - e o pássaro
Garibaldo - já conhecido do público e cujo nome é exclusivamente nacional - e
gravações com crianças em várias partes do Brasil, além de blocos dublados da
produção norte-americana. De acordo com o site da TV Cultura, “por meio da
convivência e das brincadeiras 17 na Vila Sésamo, essa dupla alia conteúdos
educativos ao entretenimento”.
17
São exibidas cenas de Garibaldo e Bel brincando e aprendendo. São quadros de pequena duração,
em torno de 3 minutos, em que a personagem Bel dialoga com um narrador em off e precisa achar
dentro de uma piscina de "dados coloridos", os objetos que o narrador lhe pede. Tem ainda o quadro
em que Garibaldo aprende o nome de três objetos com uma letra também escolhida pelo mesmo
narrador.
46
Outros programas também da TV Cultura foram sucesso na televisão
brasileira, e até no mercado internacional. Os primeiros programas voltados ao
público infantil baseados na tríade educação, cultura e entretenimento foram: o
programa Bambalão, sucesso de público e crítica, que teve desdobramentos (Circo
Bambalão, Bambalalão e Silva e outros) e que tinha um caráter de entretenimento,
A Turma do Lambe-Lambe, ambos de 1978 e o Curumim18 considerado um dos
precursores do Rá-Tim-Bum (com os desdobramentos de Castelo Rá-tim-bum e a Ilha
Rá-tim-bum19). Esses programas inauguram a produção de infantis na Fundação
Padre Anchieta.
O seriado Rá-Tim-Bum foi transmitido de 1989 até 1992 dirigido por Fernando
Meirelles e com os atores Marcelo Tas e Carlos Moreno. O enredo contava o dia a
dia de uma família que liga a TV e, de repente, tudo se transformava, como numa
grande brincadeira, os personagens apresentavam as cores, a matemática e o
alfabeto20. O Castelo Rá-Tim-Bum21 seguiu também uma abordagem pedagógica
voltada para o público infanto-juvenil. A criação do dramaturgo Flávio de Souza e do
diretor Cao Hamburger estreou em 1994 e foi produzido até 1997. A produção fez
parte da parceria entre Fiesp e TV Cultura, caracterizada assim, pelo caráter
18
O coordenador do programa Curumim, Pedro Paulo de Martini, lembra que esse era um projeto
entre a Secretaria Municipal de Educação do Estado de São Paulo e a TV Cultura, uma prática que
poderemos comprovar utilizada ainda hoje com o Cocorico. “[...] a gente tinha uma equipe
especializada em educação infantil, da Secretaria, que vinha aqui, uma ou duas vezes por semana,
fazer reuniões e organizar o curso. E depois, programa a programa, discutia-se linha por linha [...] E
essa série era utilizada nas Escolas Municipais de Educação Infantil [...] E também essa é uma
experiência que fica assim meio termo entre a educação mais de curso e a educação geral. Porque a
gente tentava fazer um programa que, se a criança, em casa, assistisse, ela aproveitaria alguma
coisa. Se ela assistisse junto com o professor poderia trabalhar em cima e explorar. E havia manuais
para o professora explorar uma metodologia (apud LIMA, 2008, p. 152).
19
O seriado Ilha-Rá-tim-bum teve apenas uma temporada e sua audiência não foi muito significativa.
20
O programa Rá-tim-bum ganhou a Medalha de Ouro no Festival de Nova York, no entanto, não
alcançou
audiência
significatica,
atingiu
4
pontos
de
audiência
no
IBOPE
(http://www.estadao.com.br/arquivo/ arteelazer/2002/not20020718p6229.htm, acessado em
dezembro de 2009). Segundo Almeida (p. 11), as estratégias utilizadas privilegiavam a aprendizagem
para o prazer, e n~o o prazer da aprendizagem num programa dito educativo. “O fazer continuar
querendo ver (assistir), logo, fazer querer ter prazer em viver, significa também fazer querer assistir
aos próximos episódios”, explica.
21
O Castelo Rá-Tim-Bum foi considerado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) o melhor
programa infantil de 1994. Em 1994 e 1995, recebeu a medalha de prata na categoria melhor
programa infantil do Festival de Nova York. Em 1995 ganhou o Prêmio Sharp de Música para o
melhor disco infantil (disponível em http://www.tvcultura.com.br/casteloratimbum, acessado em 3
de outubro de 2009).
47
educativo, tal como outros programas infanto-educativos da emissora. A audiência
da série foi considerada um sucesso para a TV Cultura, com uma média de 12 pontos,
índice jamais alcançado por uma série educativa ou por um programa da emissora.
O enredo contava a história do menino Nino, de 300 anos de idade, que mora no
Castelo com seu tio o mágico Dr. Vítor e a tia Morgana. Nino é um aprendiz de
magia que vive grandes aventuras com as crianças Pedro, Biba e Zequinha,
convidados e frequentadores do Castelo e ao lado de outros animais estranhos,
como a Cobra falante Celeste e o Gato Malhado, entre outros. A série apresentava
noções de Ciências, História, Matemática, música, artes plásticas, ecologia,
cidadania e incentivo à leitura nos 27 quadros temáticos. Explica o autor Carlos
Magalhães (2007, p. 86-87) que o programa segue a vertente de projetos infantojuvenis para televisão com quadros e esquetes com conceitos pedagógicos dentro
de uma trama ambientada em um pequeno universo com personagens
permanentes, convivem harmoniosamente pessoas de carne e osso e bonecos
falantes. O autor relaciona os três programas: Castelo Rá-tim-bum, Vila Sésamo e O
Sítio do Picapau Amarelo.
Nos três casos, os programas se assemelham muito em sua
estrutura dramática, com a presença de um adulto sábio e
catalisador (Juca/Gabriela na Vila Sésamo, Dona Benta no Sítio do
Picapau Amarelo, Dr. Vítor no Castelo Rá-tim-bum), um personagem
central atrapalhado, mas valente e destemido (Garibaldo, Emília,
Nino), uma figura caricatura o mal (Gugu, Saci, Mal), crianças
coadjuvantes, bonecos falantes. Outra característica importante é
a utilização de valores nacionais, além dos conceitos pedagógicos
universais. Todos os projetos também são acompanhados, desde a
produção dos roteiros, por pedagogos. (MAGALHÃES, 2007, p. 87)
E o autor permanece na comparação entre os programas, trazendo para o
grupo dos outros três, o Cocoricó.
Com exceção da presença de humanos, a estrutura se repete no
atual sucesso da rede educativa paulista, o programa com bonecos
manipuláveis Cocoricó. Júlio – a figura central e destemida da série
48
– é um garoto de seis anos22 que mora no sítio com seus avós.
Compartilha com seus amigos – entre eles, um cavalo, três
galinhas, uma vaca e um papagaio – dúvidas próprias das crianças e
defende a natureza. Episódios igualmente com tema centrais
“educativos”, ainda dividem o espaço com videoclipes de músicas
próprias e adaptadas de canções clássicas infantis e dicas de
brincadeiras. (MAGALHÃES, 2007, p.87).
Todos esses programas que vimos até agora e outros que foram criados e\ou
transmitidos pela TV brasileira contribuíram para a história dos programas infantis e
para a atual configuração dos programas e principalmente, deles em relação ao
Cocoricó. Como veremos ainda neste capítulo, e já antecipado por Magalhães, esses
programas têm uma estrutura básica similar, as relações estabelecidas entre os
bonecos e inseridas em dada sociedade. No entanto, o Cocoricó e em especial, a
temporada Cocoricó na cidade, diferentemente dos anteriores, apresenta uma
temática rural e posteriormente (com a nova temporada) passa a contextualizar a
vida urbana, àquela da “cidade grande”, apresentada, mostrada e construída pelo
programa.
Entretanto, antes ainda de falarmos sobre o Cocoricó, precisamos
conhecer a emissora responsável pela produção e veiculação, o destinador do
programa: a TV Cultura.
1.4 TV Cultura como destinador: história e produção para
crianças
A grade de programação das televisões vem a cada ano se especializando e
buscando novos caminhos a partir de novas ferramentas. Essa especialização, ou
melhor, segmentação de programação, dirigida a públicos específicos atingiu
também o telespectador mirim. Na televisão brasileira, podemos citar a TV Cultura
que vem ao longo dos últimos anos tentando atravessar uma fase financeira ruim,
mas que conseguiu manter uma programação televisiva dirigida a tal público e
22
Há uma certa controvérsia com relação à idade do boneco principal Júlio. Em determinadas fontes
consultadas, a idade de Júlio é 6 anos, embora nos DVD’s da série Personagens, há um vídeo em que
Júlio afirma ter 8 anos.
49
considerada pelos críticos, teóricos e seus telespectadores, como de qualidade. Em
uma pesquisa realizada por Monica Fort (2005, p. 132) sobre os interesses da
audiência, quando o assunto é televisão educativa, 53, 47% dos entrevistados
conhece e assiste a programação da TV Cultura, e destacam o tema da Educação
(29,40%) abordado pela emissora. Apesar dos programas infantis transmitidos pela
emissora serem classificados no gênero entretenimento, eles possuem um grande
apelo ao pedagógico, cujo formato do programa têm o objetivo explícito de
‘ensinar’ algo ao telespectador. Embora, esses formatos por um lado estão
agregando informação e algum conteúdo de caráter pedagógico, por outro lado,
abre caminhos aos interesses de entretenimento ligados à fomentação de hábitos
de consumo para a criança. Nesse sentido, a autora Maria Thereza Rocco admite um
papel da televisão para agregar informação a entretenimento, no entanto para ela,
não se pode deixar unicamente às crianças a interpretação do que elas assistem e,
explica:
[...] a TV vem se constituindo em um poderoso instrumento de
divulgação e integração de informações, conhecimentos,
revelando-se como fonte de diálogo e interação. É preciso, hoje,
"alfabetizar" crianças e aprofundar a competência dos jovens para
a leitura e análise, em vários níveis, do texto televisual, como já se
faz, de há muito, com o texto escrito que deve ser lido, analisado,
compreendido e criticado também a partir da própria experiência
de vida do estudante. (ROCCO, 1999, p.53).
Essa emissora é responsável pelo conteúdo que veicula e, portanto também
consciente das possibilidades que tal programa pode suscitar para ela mesma e,
cabe {s crianças seguir essas “pistas” deixadas. Esse sujeito emissora de TV, então,
será o sujeito destinador mantendo uma relação com o espectador, que por sua
vez, será o destinatário. Seria interessante, pois, relacionar a história dos programas
com a própria história da TV Cultura, entendendo-a como principal destinador do
programa em análise. Segundo o Dicionário de semiótica, organizado por A. J.
Greimas e J. Courtès (2008, p. 132-133), destinador-destinatário são termos que na
concepção do autor Roman Jakobson designam actantes da comunicação (emissorreceptor na teoria da informação); como diz Bertrand (2003, p. 306) “o destinador
50
definido pela relação com o destinatário, no eixo da comunicação: o primeiro
comunicando ao segundo os valores”. O destinador será o regulador, um papel
cristalizado fora do texto, definido em primeiro lugar, por seu papel factivo (fazfazer) em relação a outro sujeito, dotado de um saber, porque ele delega o poder de
agir e de um poder, porque ele sanciona, explica Bertrand (2003, p. 44); embora
esse seja apenas um dos estágios da realização dos seus percursos, esse destinador
se virtualiza e se atualiza por meio de outras configurações modais, como a do
fazer dever. O destinador será aquele também que faz crer, quando propõe valores
e suscita ao sujeito aceitar esses valores; depois, faz querer, faz saber, faz poder
esse sujeito (BERTRAND, p. 343-344).
Como será que a TV Cultura se atualiza enquanto destinadora? A emissora,
que atualmente, tem como slogan a frase: “Est| surgindo uma TV diferente” 23, foi
criada como uma televisão pertencente a Assis Chateaubriand, junto a outros canais
que formavam às Emissoras Associadas. No ano de 1967, o governador Roberto
Abreu Sodré viaja a Portugal e ao Canadá e conhece uma prática emergente da
televisão nesses dois países: a pedagogia de educação à distância e concebe um
projeto de televisão educativa pública com canal próprio e programação
diversificada, como também explicitado antes. Abreu Sodré age em duas frentes:
De um lado, criou a Fundação Padre Anchieta – FPA, entidade de
direito privado que devia gerir as futuras emissoras de rádio e TV.
De outro, adquiriu do grupo Assis Chateaubriand com alguma
facilidade, mas não sem polêmica, a TV Cultura, canal 2. A venda do
canal 2 para o Estado se explica tanto por determinação das novas
medidas legais – a reforma do Código de Telecomunicações
efetuada em fevereiro de 1967 -, que limitavam o tamanho das
redes nacionais a um máximo de dez emissoras, quanto pela séria
crise financeira pela qual passavam as Emissoras Associadas.
(LIMA, 2008, p. 42-43).
Assim, a TV Cultura comercial encerrou suas atividades e nasce a TV Cultura
pública. Dois pontos nessa história são relevantes. Primeiro: com a preocupação de
23
Esse novo slogan faz parte de uma série de novidades que a TV Cultura vem trazendo, como o
novo "Roda Viva" apresentado por Marília Gabriela, entre outras. O antigo slogan que dizia “A TV
Que faz bem” era de 2008 e fez parte da campanha de comemoraç~o dos 40 anos da emissora.
Disponível em http://www.portaladtv .com.br/?p=216938, acessado no dia 7 de setembro de 2010.
51
implantar uma televisão de qualidade, o Governo de São Paulo opta por
reestruturar e atualizar tecnicamente a emissora, para só depois iniciar as
atividades24. Segundo: o fato de um governador endossado pela ditadura – que
governava o país na época – conceber e criar uma TV educativa com estrutura
política, intelectual e administrativa independentes, embora financeiramente
compromissada com o governo e dependente, assim, desse dinheiro. Para Lima
(2008, p.47) a proibição das TV's públicas brasileiras de receberem patrocínios e
doações, bem como o desinteresse do governo em incrementar uma televisão
pública que tivesse um mínimo de presença diante do que as televisões comerciais
têm, até hoje, lamentáveis consequências no seu desenvolvimento. Seja do ponto
de vista tecnológico, seja do de suas grades de programações, “as televisões
públicas, abertas e gratuitas não têm condições de enfrentar concorrência das
televisões comerciais”, acredita Lima.
Segundo o autor, o modelo brasileiro de televisão nasceu comercial, como
nos Estados Unidos, ao contrário do que aconteceu em países da Europa e no
Japão. Nesses países as televisões nasceram públicas ou ligadas aos governos,
portanto detentoras de grande desenvolvimento, audiência e verbas, capazes de
manter uma quantidade de programação própria e de produtores independentes
por elas financiados. E mesmo nos Estados Unidos, com o objetivo de adotar um
sistema de diretrizes para manter uma boa programação e sobrevivência financeira
(oriundos de doações de pessoas físicas e de um fundo nacional para televisões
públicas) criou-se a PBS (Public Broadcasting Service), ou seja, a reunião das
televisões públicas estaduais.
Como emissora pública, a TV Cultura foi inaugurada em 15 de junho de 1969,
dois anos depois da aquisição pelo governo paulista. Existem algumas pesquisas
24
A Fundação optou por adquirir o que de mais moderno era oferecido no mercado: câmeras de
última geração com lente única e zoom, modernas mesas seletoras de imagens com equipamentos
para efeitos especiais, projetores de filmes de 16 mm, aparelhos de videoteipe com dispositivo de
edição eletrônica programada, etc., além da troca de local da torre retransmissora, do antigo Banco
do Estado (atual sede do Banespa-Santander) para o Pico do Jaraguá (LIMA, 2008, p. 55). No
governo de Laudo Natel , a Fundação Padre Anchieta consolidou sua organização física com a
construção de edifícios destinados a suas atividades administrativas, técnicas e de produção (LIMA,
2008, p. 96).
52
que se aprofundaram na história da TV Cultura como a pesquisa de mestrado de
Cassia Regina Goncalves dos Santos intitulada “Uma TV educativa para o Brasil:
dimensões da trajetória da TV Cultura de São Paulo – 1969/1997”25. Neste texto, a
pesquisadora encontra relação entre o incêndio nos estúdios da emissora em 1986
com a proposta de mudança iniciada ainda nessa década.
A autora explica que, no Relatório de Atividades de 1987, um dos princípios
da emissora era atender em primeiro lugar à criança desde a pré-escola até o início
da adolescência. Para isso, os programas eram livres de influências comerciais
diretas ou indiretas e das fórmulas estrangeiras, nem sempre sadias para as crianças
e utilizadas em boa parte das emissoras comercias, o que seria um princípio
formulador para a configuração da emissora nos anos subsequentes. Outro
princípio formulador foi buscar inspiração de conteúdo junto às televisões
educativas de outros países, principalmente a BBC de Londres, a TV educativa
francesa, a espanhola e a norte-americana. A esta altura, essas emissoras já
produziam programas educativos com diferentes abordagens
- da ecologia à
história das pirâmides, de aulas práticas para confecção de artesanato às dicas
psicologizantes sobre comportamento em todas as idades (SANTOS, 1998, p. 6668).
Nesse aspecto, uma nova visão de programa educativo começava a se
configurar, cujo novo papel procurava também além de entreter, auxiliar o Estado
complementando-o nas informações escolares. A TV, para isso, mantinha vínculos
com setores da Secretaria Estadual de Educação, e garantia os conteúdos de sua
programação organizados de acordo com o currículo proposto pela própria
Secretaria. A partir desses princípios formuladores, o estatuto da TV Cultura
buscava associar “os conceitos de cultura e educaç~o como complementares”
(SANTOS, 1998, p. 68). A autora continua discorrendo a respeito:
A síntese desse processo, e de toda a história vivida pela emissora
até esse período e dentro deste contexto, pode ser entendida
como tentativa de encontrar caminhos ou um projeto possível de
25
Título de Dissertação de Mestrado em História Social defendido pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo em 1998.
53
funcionamento. As mudanças que ocorreram ligadas ao incêndio26
(1986), a nova diretoria e as novas diretrizes apontam para um
momento na TV educativa de São Paulo em que o veículo será
privilegiado, ou seja, percebemos claramente a tentativa de se
investir numa nova forma de “fazer televis~o”, diferente do
modelo anterior que vinha predominando. (SANTOS, 1998, p. 70).
Foi, então, que as mudanças estruturais da emissora vão redimensionar o
papel da TV Cultura dentro do cenário cultural brasileiro. O público-alvo, daquele
momento em diante, passou a ser o infanto-juvenil resultado de uma audiência
satisfatória de programas infantis em anos anteriores. Segundo Santos, (1998, p. 7475) neste momento, a emissora se deu conta de que educação e cultura, seria algo
muito mais próximo do entretenimento, visando à informação aliada à diversão e
com alto padrão de qualidade técnica, seria uma tentativa de diferenciar a TV
pública das outras televisões. Explica-se a TV Cultura é pública porque a origem de
seus proventos vem da sociedade, do cofre público estadual, o que pode sugerir a
ligação com estatal ou oficial. Mas como vimos essa dúvida ronda a sociedade
desde quando o governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, envia à
Assembleia Legislativa em outubro de 1967 um projeto de lei para a criação de uma
fundação à promoção da educação e da cultura através do rádio e da televisão.
“Entre uma programaç~o ‘culta’ e outra que atingisse o grande público, construiuse o grande conflito da TV Cultura”, diz Luiz Carlos Rondini (1996, p. 4-5), em sua
dissertação de Mestrado27 “Limites de uma proposta de entretenimento: A TV
Cultura de S~o Paulo”. O pesquisador explica que:
As características próprias da TV Cultura, de ser ao mesmo tempo
meio privada, porque é efetivamente administrada por uma
fundação de direito privado e, meio estatal, porque foi constituída
e sobrevive de recursos estatais, faz confluir para a emissora tanto
as questões relativas às tevês privadas, quanto às relativas às tevês
estatais. (RONDINI, 1996, p. 5).
26
O incêndio de 1986 destruiu mais de 90% da capacidade de produção da emissora. Dois estúdios
que eram utilizados para gravação e apresentação dos programas ficaram completamente
destruídos. Três meses após o incêndio uma nova diretoria toma posse da Fundação Padre Anchieta,
com Roberto Muylaert assumindo como novo diretor-presidente. (ROCHA, 2008, p. 13).
27
Título de Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais defendido pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo em 1996.
54
Esses problemas com verbas e capitais, a disputa de audiência com as
emissoras comerciais e a possível preocupação com a qualidade da programação
colocam a TV Cultura como um destinador que busca na relação com o destinatário
um fazer crer em seus próprios valores. E quais seriam, então, esses valores? Por
ora, entendemos que
TV Cultura irá construir seus valores a partir: do
entretenimento (ligado ao próprio ser da emissora em poder e querer obter lucros e
dividendos com os seus programas, abdicando, pois de ficar à mercê do capital
advindo da Fundação Padre Anchieta) e de uma preocupação com a qualidade
(ligada ao fazer da emissora e identificável pela administração da grade de
programação).
A TV Cultura é o destinador do Cocoricó enquanto que na relação de
pressuposição, o público telespectador é o destinatário do programa. Nesse
sentido, acreditamos que esse destinatário não é o mero receptor como pregado
pela teoria da Informaç~o, no entanto, “ele é também e, sobretudo um ‘centro do
discurso’, que constrói, interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou rejeita as
significações” (BERTRAND, 2003, p. 24). A TV Cultura é um destinador ciente deste
destinatário e, também por isso, teve a preocupação em reformular suas bases e
firmar-se como um meio de comunicação que dissemina valores sociais e culturais,
isso possibilitou que sua identidade se fixasse em toda a sua grade de programação,
como
também no programa Cocoricó criado anos mais tarde. Priorizou-se a
presença de um forte apelo da “cultura geral brasileira”, com os programas da
emissora atuando como produtores e difusores dessa cultura. E para isso,
atualizando o que dizia o estatuto de 1986 (no item b do artigo segundo) que coloca
a TV Cultura como respons|vel pela “valorizaç~o dos bens constitutivos e da
nacionalidade brasileira, no contexto da compreens~o dos valores universais”.
Entendemos, pois, a valorização da cultura brasileira como uma das
finalidades desse destinador, presente em seu estatuto. Isso nos indica que os
produtos decorrentes a partir dessa finalidade permitirá uma apreensão de sentido
do público fundada por essa relação. Além "de informar, se arvora também a educar
55
o gosto e sensibilidade de seu público” (SANTOS, 1998, p. 75), complementando
formação, agregando novos conhecimentos e disseminando valores brasileiros. É
no que apoiamos nossa pesquisa, na formação de sociocultural dessa criança
pautado, dentre outros, nessa valorização dos aspectos culturais brasileiros.
Entretanto, anos mais tarde, o destinador TV Cultura une aos conceitos
preexistentes de educação e cultura dentre suas finalidades, ao de entretenimento.
De acordo com o Relatório de atividades de 1992 com o objetivo de “modernizar” o
conceito de educação, os conteúdos passam a ser tratados como informações.
Visando, com isso, a ampliação de conhecimentos e mantendo uma das
características básicas da tevê que é o entretenimento e ficou conhecido como a
nova filosofia do entretenimento que deveria apresentar um conteúdo diferenciado
envolvido por uma embalagem atraente, implantada e criada pelo então, diretorpresidente da emissora, Roberto Muylaert (SANTOS, 1998, p. 108). Essa proposta
de entretenimento não foi inventada pelo presidente da emissora, Muylaert,
encontrava-se sistematizada há muitos anos nas emissoras de televisão comercial.
"A novidade, neste caso, seria sua implementação dentro de uma televisão
educativa e sem fins comerciais”, conta Rondini (1996, p. 54). Assim a emissora
enxergou os programas infantis como uma alternativa para essa filosofia, com a
disponibilização desses programas em horário nobre, o que não tinha em outras
emissoras, mas principalmente, priorizando os aspectos técnicos da imagem.
Dentro de uma relação entre os conteúdos e a imagem, a prioridade era reequipar
as instalações da emissora.
Pensamos então nas características que já conhecemos da TV Cultura e de
seus fazeres, enquanto destinador:
 A TV Cultura não é estatal, nem oficial, embora receba verba dos
cofres estaduais, também não é comercial; trata-se assim, de um
dever-fazer da ordem da prescrição;
 A TV Cultura propõe programas com conteúdo que aliam os conceitos
de educação e cultura, valorizando a cultura nacional brasileira;
56
privilegia a formação de um sujeito destinatário competente; neste
caso, o fazer do destinador é atualizante ligado ao saber;
 A TV Cultura adiciona a esses conceitos o de entretenimento, dando
mais atenção aos aspectos técnicos e de qualidade da imagem28;
unindo, portanto, o dever-fazer, ao saber-fazer para modalizar o
sujeito à modalidade do ser.
Relacionando esses fazeres do destinador de Cocoricó¸ outras duas
características da TV Cultura são importantíssimas, e também surgiram na gestão de
Muylaert. O valor da ecologia e o valor de ser paulista. A primeira delas, o uso do
discurso ecológico como uma maneira de ressaltar a riqueza da fauna e da flora
brasileira mostra-se presente em quase todos os programas educativos. Rondini
afirma que a utilização do termo ecologia pela emissora foi uma oportunidade que o
departamento de marketing soube aproveitar e que junto com os programas
dirigidos às crianças apresentou determinada imácula na imagem da emissora. Para
o autor:
[...] a aliança do nome da emissora às crianças e ao tema da
ecologia foi uma jogada bem montada de marketing. Conferia a TV
Cultura certa pureza e um ar nobre, além de ser coerente com as
preocupações na faixa de público que a emissora alcança.
(RONDINI, 1996, p.98).
A utilização desse valor o atualiza enquanto destinador, assim com o uso de
outra característica, à referência ao “paulista”, com a cidade de S~o Paulo tendo
especial destaque na produção. Santos (1998, p. 118) explica que em primeiro plano,
ganharam distinções os problemas do cotidiano de uma cidade do porte de São
28
A introdução dos modernos equipamentos da Ampex, adoção do sistema Betacam e,
principalmente a instalação da nova antena no Sumaré (1992) possibilitaram que no ano seguinte a
TV Cultura se transformasse em Rede Cultura, com a obtenção da concessão de um canal de
transmissão no satélite Brasilsat. Com a transmissão via satélite, a programação da TV Cultura se
impôs às demais televisões públicas estaduais que não tinham recursos técnicos nem financeiros
para produzir uma programação completa nos horários disponíveis, passando assim, a adotar a
programação da Cultura, constituindo uma rede nacional de televisão educativa e cultura (LIMA,
2008, p. 212).
57
Paulo, que se transforma em palco e cenário para o desenvolvimento desses temas,
os quais se transformam em produções; como em Cocoricó na cidade29.
Eis que ao longo dos anos 90, a TV Cultura adquire audiência e credibilidade
de seus programas infantis e é nesse cenário que em 1996 é criado o infantil
Cocoricó.
1.5 “Puxa, puxa, que puxa”... Cocoricó
A palavra cocoricó no dicionário francês Le Petit Robert, no Dicionário Barsa e
no Houaiss de língua portuguesa tem o mesmo significado: onomatopeia criada por
imitação do canto do galo. Do verbo cocoricar que quer dizer soltar a voz, cantar;
possui algumas oscilações de grafia como cocoricô e cocorocó. O cocoricó é o canto
do galo em seu sentido figurado que avisa sobre o amanhecer do dia, ou da hora30
do dia (como diz a letra da música da vinheta de abertura “t| na hora do Cocoricó”).
O galo, ao cantar, está avisando que é aquele território. O canto do galo anuncia a
rotina do passar das horas, de um novo dia que está começando e junto dele: as
obrigações e deveres; bem como a diversão e o entretenimento. Cocoricó tanto é o
canto do galo que avisa dos deveres de cada um, como também aquele que traz o
entretenimento.
29
Embora nas outras temporadas do Cocoricó não existissem locações externas, como na temporada
Na cidade, os personagens moradores da zona rural têm um forte sotaque característico do interior
desse estado, com forte acentuaç~o dos “erres”.
30
Os galos, assim como outras espécies, possuem um controle sobre o seu território, que
normalmente inclui uma população (galinhas, pintinhos) e o espaço físico (o galinheiro). Em um
galinheiro normalmente, só existe um único galo, pois, a competição por domínio do território é
tanta que dois ou mais galináceos machos já seria motivo para uma disputa até a morte em busca da
liderança, até se restasse apenas um. Os galos impõem sua autoridade por meio de várias
características, como inchação, maior coloração da crista e, é claro, o canto, que serve como alerta
para assustar qualquer desafiante. Eles possuem hábitos diurnos, ou seja, estão acordados de dia e
dormem durante a noite. Os galos despertam assim que os primeiros raios solares surgem. Assim
que acorda, o galo precisa avisar para os concorrentes que ele continua vivo e que ele está no
comando. O canto dos galos tem função de assustar eventuais desafiantes (disponível em
http://diariodebiologia.com/2010/07/por-que-os-galos-cantam-ao-amanhecer/, acessado em outubro
de 2009).
58
Na poesia Tecendo a manhã, de João Cabral Melo Neto, “um galo sozinho
n~o tece a manh~”, precisa de outros galos cantando em outros galinheiros e os
gritos v~o se transformando num “entreter” para todos. O Cocoricó é o grito do
galo que vem entreter, mas também é a expressão cantar de galo que em nosso
idioma significa comandar e tem como antônimo obedecer. Se o canto do galo
servia como um relógio para o mundo antigo, temos em Cocoricó, um grito de
comando que anuncia e avisa que está na hora de assistir ao programa, o território
de Cocoricó. Tanto que na temporada 2009/2010 que se passa na cidade grande, o
nome do programa passou a ser Cocoricó na cidade, incorporando o território –
agora outro, o da cidade - ao próprio nome do programa. O nome já é o programa e
a história que será contada, pelo nome são dadas as relações do garoto Júlio e os
animais da fazenda.
Dentro do universo infantil, a palavra Cocoricó, significa:
- o nome do programa;
- marca de diferentes gêneros comunicacionais;
- marca de artigos de consumo;
- efeitos de sentido construídos na relação com o espectador, com a
possibilidade de criação de uma identidade sancionada positivamente .
Qualquer contato com o nome ou marca do programa produz no
enunciatário um sentimento de pertença àquele universo de Cocoricó, seja no
campo, na cidade, ou em qualquer outra cultura.
Essas observações sobre o nome Cocoricó nos permite entendê-lo nessa
contextualização histórica da televisão, dos programas infantis e da TV Cultura, para
então, conhecermos como foi criado. Cocoricó é uma produção brasileira criada em
1996 pelo canal de televisão – TV Cultura. A figura do boneco, o garoto Júlio foi
criado pelo artista Fernando Gomes, anos antes, em 1989, para um especial de Natal
chamado Um banho de aventura. Para integrar a turma do Cocoricó, Júlio passou
ainda por um quadro do Rá-Tim-Bum, Senta que lá vem história, para então no ano
de 1996, ganhar seu próprio programa, um menino vindo da cidade cujos melhores
amigos eram os animais da fazenda. O presidente da emissora, na época de criação
59
do programa, lembra que sempre pensou em fazer um programa que revelasse às
crianças da cidade o mundo rural, das fazendas, “n~o como um suporte para o
conhecimento do universo, como fez Monteiro Lobato, mas, com mais humildade,
levar às crianças a pequena revelação de uma cocheira ou de um galinheiro, um
mundo que a criança citadina desconhece”. Conta o presidente que pensou sobre
um programa assim quando o amigo José Mindlin lhe contou uma história.
Num fim de semana ele levou seu neto menor a uma fazenda de
um amigo. Num determinado momento, o neto viu uma galinha
parada, completamente parada. E ent~o pediu ao avô: ‘vovô, d|
corda na galinha que acabou a pilha’. Vejam só, para aquele
menino, cheio de oportunidades, filho de uma importante família,
galinha era apenas um objeto de loja de brinquedos. (LIMA,
2008, p. 222).
De acordo com o site InfanTV, especializado em programas de televisão para
crianças, com o fim do programa Glub Glub, em meados de 1996, a TV Cultura estava
à procura de outro personagem para preencher sua grade de programação infantil.
A melhor proposta, que se encaixou com os ideais da época, foi um programa de
bonecos cujo ambiente seria rural, de uma criança se relacionando com seus
melhores amigos: os animais de uma fazenda. Assim, Júlio foi lembrado para
interpretar esta criança do Cocoricó. A partir daí, aconteceu o desenvolvimento do
perfil psicológico dos outros personagens e a definição de quem criaria e
confeccionaria os bonecos31. Com o programa idealizado, Fernando Gomes criou os
outros bonecos da fazenda e foi encarregado de atuar como Júlio. Na primeira
temporada do programa, eram apresentados desenhos animados comprados de
emissoras estrangeiras. Foi apenas em 2002, que o próprio Fernando Gomes foi
convidado pela emissora a também dirigir o programa32. A mudança na direção
transformou Cocoricó num programa sem a inserção de desenhos e, trouxe novos
cenários, bonecos e os clipes musicais.
31
Disponível em http://www.infantv.com.br/cocorico.htm, acessado em agosto de 2007.
Cocoricó que já vinha chamando atenção positivamente dos críticos de TV, teve sua aceitação pelo
público, com aumento na audiência e sucesso com a venda de DVDs.
32
60
Cocoricó pode ser considerado um dos carros-chefes da TV Cultura, como um
programa bem-sucedido e ganhador de prêmios. É dado pela crítica como um
programa que conseguiu aliar o entretenimento a conceitos pedagógicos. No ano
de estreia, Cocoricó foi considerado o melhor programa infantil pela APCA
(Associação Paulista de Críticos de Arte). Em 2004, ganhou o prêmio de melhor
programa infantil para crianças de zero a seis anos no Festival Prix Jeunesse
Iberoamericano, no Chile. O programa é ambientado numa fazenda, onde Júlio foi
morar com os avós. Na fazenda, ele conhece os animais que lá vivem: as galinhas
Lilica, Zazá e Lola, o cavalo Alípio, a vaca Mimosa, os arquinimigos Dito & Feito, o
papagaio Kiko e ainda a índia Oriba que mora numa reserva perto de Cocoricolândia,
cidade onde está localizada a fazenda. “Os personagens apresentam o cotidiano do
campo e a cultura do interior do país às crianças. Júlio é o neto dos donos de uma
fazenda, que deixa a cidade para morar com os avós e fica amigo dos animais que ali
vivem”, explica IAKI (2000, p.91), pesquisadora que também escreveu sobre o
Cocoricó alguns anos atrás.
FIGURA 1 – As diferentes temporadas de Cocoricó: cenário e bonecos antigos; a turma do Cocoricó
na temporada 2008; Alípio, Júlio e Zazá chegando à Cidade grande na temporada Cocoricó na Cidade
Através das histórias vividas por esses personagens e outros, Cocoricó
aborda temáticas que incentivam a criança a lidar com valores e situações comuns
da vida social, como, por exemplo, as obrigações e deveres, as amizades, as
61
descobertas, etc. Esses valores são tematizados nas narrativas vividas pelos
personagens da fazenda. Nas primeiras temporadas – 2003 a 2007 - a temática
principal do programa era restrita ao dia-a-dia da fazenda. Mas nas duas últimas
temporadas, Júlio foi conhecendo cada vez mais os temas relacionados às cidades,
até finalmente na temporada de 201033, ser lançado o Cocoricó na cidade, quando
alguns dos bonecos saíram da fazenda e foram passar férias na Cidade Grande.
Além de ter recebido críticas positivas e uma audiência relevante, Cocoricó se
configurou como um dos principais produtos da Cultura Marcas, empresa
pertencente à TV Cultura. Atualmente, o programa conta com seis temporadas
somando mais de 90 episódios.
Outros temas como cidadania, cultura brasileira, ecologia, tecnologia são
utilizados nas narrativas. Essas temáticas perpassam os episódios e são
narrativizadas através das histórias vividas pelos personagens. No paiol, na fazenda
(no quarto do Júlio e na cozinha da vó), no riacho, arredores da fazenda – e outros
ambientes cenográficos – reúnem-se os personagens, animais antropomorfizados,
que possuem vida humana: galinhas, cavalo, vaca, porquinho, entre outros. Os
episódios apresentam ainda videoclipes com músicas próprias ou adaptadas de
canções clássicas infantis. O programa é composto por dois blocos, separados por
um intervalo comercial. Nos episódios há ainda um clipe musical com a temática
principal apresentada no dia34.
29
Antes de estrear na televisão, em agosto de 2009, foi lançado nos cinemas As aventuras na cidade.
Cinco episódios da nova temporada foram lançados como filme. “N~o é um longa do Cocoricó. Este é
um sonho que está cada vez mais próximo de ser realizado, mas pegamos cinco episódios da futura
temporada e vamos exibir em primeira m~o no cinema”, explica o diretor Fernando Gomes em
entrevista (disponível em http://www.bemparana.com.br/index.php?n=114628&t=cocorico-ate-aalma, acessado em dezembro de 2009).
34
Os primeiros clipes do Cocoricó foram o carro chefe da atual audiência do programa e foram os
primeiros a serem lançados em DVD. De acordo com ranking da Submarino, os DVD’s do Cocoricó
ocuparam, em 2005,
o quarto lugar entre os mais vendidos. (disponível em
http://www.observatoriodaimprensa.com.br /artigos.asp? cod=336ASP003, acessado em julho de
2007).
62
FIGURA 2 - O garoto Júlio e seus amigos: com as galinhas, Zazá, Lilica e Lola; o cavalo Alípio; o lado
da índia Oriba; com seu primo João que veio da cidade passar as férias em Cocoricolândia
É certo que Cocoricó passou ao longo desses anos por inúmeras
transformações como troca dos bonecos, inovação de cenário e aberturas, dentre
outras, se tornou um dos programas de grande repercussão produzido atualmente
na TV brasileira. Vamos conhecer, então, algumas características dos principais
bonecos do programa.
 JÚLIO: é um menino de 6 anos de idade, possui pele e olhos claros; toca um
instrumento musical: a gaita (a música) e se apresenta como aquele que
canta rock rural no ‘cocoral’. Vive falando: “Puxa, puxa, que puxa”.
 ALÍPIO: é um cavalo, de cor marrom, usa gravatas listradas; possui um
sotaque interiorano ressaltado; é um amigo fiel, mas às vezes preguiçoso e
comilão.
 LILICA: é uma galinha, de rosa escuro, usa colares e fitas coloridos, é uma
criança como Júlio e o papagaio Caco. É curiosa e estuda na mesma escola
de Júlio.
 LOLA: é uma galinha, de cor amarela, usa um lenço vermelho de bolinhas
brancas na cabeça. É adulta. Gosta de ler, conversar e viajou muito
trabalhando no circo como cantora e conta as histórias daqueles tempos.
 ZAZÁ: também é uma galinha, é vermelha e usa óculos e laço de tule. É a
galinha mais velha da turma e às vezes não tem a paciência necessária para
lidar com os personagens crianças. Sempre aparece dando ordens e ditando
regras e horários.
 ASTOLFO: é um filhote de porco, usa fraldas. Sabe falar algumas palavras e
está sempre tentando aprender alguma coisa ligada à infância na fase de 1 a
3 anos. Passa a maior parte do tempo no berço. De vez em quando chora
para conseguir o que quer.
63
 MIMOSA: é quem fornece o leite da fazenda. É adulta e sempre tem calma e
delicadeza pra explicar as coisas para os personagens-crianças.
 DITO E FEITO: são dois seres (espécie de camundongos) que vivem tentando
aprontar com a turma do paiol. Não se consideram amigos da turma, e por
isso, estão sempre cochichando e preparando, às escondidas, as maiores
confusões.
 CACO: é um papagaio, criança e é o que mais apronta. Fala muito e é o
melhor amigo da Lilica.
 TOQUINHO: é um morcego, também criança, esperto e cheio de energia.
Sempre acha que as coisas podem dar errado e vive falando “Isso n~o vai
dar certo”.
 AVÓS: são simpáticos, de idade, mas tomam conta dele como se fossem
seus pais. Estão presentes nas brincadeiras e assistem aos espetáculos da
turma. O Avô é gentil e prestativo e ajuda a Avó nas tarefas da fazenda. Ele
está sempre pronto a atender as crianças quando elas pedem ajuda para
alguma tarefa ou dúvida. A Avó é meiga e carinhosa, querida por todos os
moradores da fazenda. Está sempre às voltas com as atividades da cozinha,
onde prepara bolos, doces e lanches.
 ORIBA: é a indiazinha que mora na tribo Tupi, na mata ao lado da Fazenda
Cocoricó. Com suas visitas à fazenda, a turma sempre fica conhecendo um
pouco mais sobre as histórias e os costumes dos índios. Tem a idade de Júlio
e gosta de inventar situações e brincadeiras. Tem uma paixãozinha pelo
Júlio.
 PATO TORQUATO: O Pato Torquato não resiste a criar uma intriga. Ele tem o
mau hábito de mentir, falar mal das pessoas e criar conflitos entre a turma
do paiol.
 PATA VINA: é a esposa do Pato Torquato, adora fofocar e fala pelos
cotovelos. Juntos, tentam pregar peças nas crianças da Fazenda Cocoricó mas acabam se desentendendo quando o plano dá errado. O casal mora
próximo à fazenda, na beira de uma pequena lagoa.
 JOÃO: é o primo do Júlio que mora na cidade e foi passar férias na fazenda.
Carrega uma maleta cheia de equipamentos eletrônicos.
 SAPO MARTELO: mora em um lago e vive querendo a atenção dos outros
animais da fazenda. Está sempre perto de Pato Torquato e Pata Vina.
Esses actantes do enunciado de Cocoricó estão no programa desde o início
(com exceção de João, dos patos Torquato e Virna e do Sapo Martelo) e aparecem
em praticamente todas as histórias. Entretanto, com o lançamento da temporada
2009, e a ida de Júlio, Alípio, Zazá e Lilica para a cidade, houve a introdução de
outros actantes. Depois de um convite feito por João, Júlio e a turma vão visitá-lo na
cidade grande, assim se justifica a quinta temporada do programa intitulada
Cocoricó na cidade. Em geral, as temáticas dos episódios falam da diversidade da
população, valores e comportamento, opções de lazer e meios de transporte para
quem vive numa metrópole. João mora num edifício, localizado próximo de um
64
beco; os valores sobre amizade e respeito ao outro continuam. Os temas
relacionados ao meio ambiente também permanecem, mas são tratados dentro do
universo urbano, abordando assuntos como reciclagem, poluição das águas, e o
trânsito. Os novos actantes que aparecem nesta temporada 2009/2010 são:
 DORA: é a mãe do João. Ela é uma professora muito simpática e carinhosa
que ensina artes em uma escola pública.
 NOEL: é o pai do João. Ele é arquiteto, desenha casas e prédios, e trabalha
na sua mesa-prancheta. É jovem e cheio de ideias, adora aventuras e tem um
fusca conversível que só usa nos finais de semana.
 DORIVALDO: É um porteiro curioso, que gosta de ler notícias e opina em
tudo. Vive com seu radinho de pilha para escutar a previsão do tempo e as
notícias do trânsito.
 RODOLFO: é o irmão menor do João. Ainda é um bebê, mas vive fazendo
travessura: mexe no controle-remoto e escala o sofá.
 VITÓRIA: é colega de classe do João. Esperta, cheia de ideias e gosta de
jogar futebol. Adora passeios e está sempre propondo uma aventura
diferente. Além disso, o Júlio fica encantado por ela.
 ROTO: é um rato que mora no beco e não gosta muito de brincar com a
turma. Vive mexendo em uma latona de lixo onde descobre as bugigangas
mais esquisitas. Para ele, a calota velha de um carro serve de espelho pra se
pentear.
 ESFARRAPADO: é um cachorro vira-latas, amigo de Roto. Ao contrário do
seu amigo rato, ele é bem social e conquista a molecada. Um verdadeiro
GPS, ele sabe caminhos, conhece segredos da cidade e às vezes faz o papel
de herói nas aventuras urbanas.
Em Cocoricó, os actantes são dispostos em vários ambientes cenográficos,
sendo esse também um dos pontos importantes a serem destacados e descritos.
Essa cenografia é vista a partir: das dimensões do estúdio de gravação e da
movimentação dos bonecos pela materialidade deles. O estúdio onde são feitas as
gravações do programa - portanto, os ambientes cenográficos da fazenda e da
cidade – foi confeccionado de modo a ficar suspenso e facilitar a movimentação dos
atores-bonecos, e dar maior profundidade às cenas. Essa maior movimentação, bem
como a profundidade das cenas aliada aos movimentos da própria câmera que
grava (até a temporada de 2010 era gravado com uma câmera de cinema 16 mm,
sendo a última temporada totalmente disponibilizada em sistema digital de alta
definição) trazem um efeito de sentido de subjetividade, de proximidade da criança
com o que está sendo assistido.
65
Dessa configuração proxêmica faz parte à caracterização física dos bonecos:
dimensão corpórea, material com que são moldados, figurino, etc. Por se tratar da
linguagem televisiva, essa configuração é outro- ponto importante. Acreditamos
que essa especificidade plástica da aparência dos bonecos seja de extrema
importância, a qual iremos falar mais detalhadamente no decorrer das análises.
Em Cocoricó, os bonecos são filmados em posição próxima à câmera, dando
um efeito de sentido de que eles são grandes, ocupam praticamente a tela inteira
da TV, são sempre mostrados em plano americano ou close-up nos rostos ou nas
partes dos corpos explicitadas pelo verbal. A materialidade dos bonecos – que são
moldados em espuma – o que contribui para um “esparramar” deles na tela, que
parece ser ainda maior. Em bonecos que figurativizam humanos, como é caso de
Júlio, as mãos e pés são de uma pessoa adulta, como por exemplo, do próprio
diretor do programa, Fernando Gomes, que é quem dá vida a Júlio, e também ao
Garibaldo, do novo Vila Sésamo, dando um efeito de sentido de uma aparência
maximizada e de proximidade.
O manuseio e atuação35 dos bonecos ou fantoches requer técnica e domínio
em cena. A história dos bonecos inanimados, utilizados em cena, começa nas
cerimônias religiosas - assim como a utilização das máscaras; mais tarde os bonecos
passam a ser utilizados nas produções artísticas e nos palcos dos teatros. A relação
entre o ator e os bonecos é traçada por uma tênue linha divisória, mais ainda
quando a encenação é feita para ser assistida por crianças. A autora Ana Maria de
Abreu Amaral explica que:
A história dos bonecos é similar à das máscaras – de sua utilização
religiosa a seu uso como signo plástico inanimado em cena -,
podendo ser, nas mãos de um ator, a aparente e completa
substituição de um personagem. Ator e boneco passam a constituir
uma simbiose, uma unidade, enquanto compartilham a tarefa
cênica que lhes cabe. Os bonecos, oriundos das mais diversas
culturas, são muito diferentes entre si e essa diversidade os torna
atraentes. Cada tipo de boneco, de acordo com o material de que é
feito, com sua forma, os equipamentos técnicos adotados e a
35
O manuseio e atuação dos atores com os bonecos é chamada de manipulação, entretanto, como
este termo também tem origem semiótica faremos o esforço de utilizar outras palavras ao nos
remetermos a essa manipulação.
66
função cênica, demanda um tratamento e habilidade de
manipulação. (AMARAL, 2001, p. 12).
Amaral explica ainda que existem dois tipos de teatro de bonecos: um em
que os personagens são vistos apenas como objetos, sem vida; e outro em que eles
são vistos como dotados de vida. De acordo com a autora:
No primeiro caso predomina a percepção de sua materialidade e
assim não os levamos muito a sério, pois, ao tentarem imitar a
realidade, mais despertam o riso por serem grotescos; já no
segundo caso, quando a percepção de vida é mais importante do
que a percepção material, eles se tornam enigmáticos, são
mistério, estranheza, vão além da realidade, despertam o poético.
Enfim, quando se tenta copiar demais o real, o boneco tende ao
clichê, é caricatura; quanto mais tenta ser real mais se deixa trair,
fica falso. Mas quando renuncia à cópia e se afasta do real,
aproxima-se da ideia genérica de homem, cria-se o tipo, é
arquétipo, toca a essência. (AMARAL, 2001, p. 82).
Sabemos que os bonecos de Cocoricó têm suas peculiaridades, materiais com
os quais são elaborados, maneiras como são manuseados e como se comportam em
cena ou na tela da TV. Relacionando isso ao pensamento da autora, é como se os
bonecos fossem dotados de vida, como se eles tentassem despertar a imaginação
das crianças para aquele mundo ao qual pertencem. Para um adulto, a estranheza
pode ser o primeiro sentimento, mas as crianças são tocadas por um arquétipo, pela
ideia genérica do que vem a ser o homem, no que aqueles bonecos se assemelham
ou se diferenciam das pessoas que conhecem.
Como esses bonecos com forte apelo entre as crianças chegaram ao
universo televisivo e foram tão usualmente utilizados pelos programas de TV
infantis, como vemos atualmente nas emissoras brasileiras e de diversos países? Os
primeiros bonecos manipulados famosos da televisão foram os fantoches
americanos conhecidos como “Muppets”. Os fantoches foram criações do norteamericano Jim Henson, que era ator-bonequeiro de alguns deles, como o próprio
Caco, o sapo e o Ênio do Vila Sésamo, dentre outros. Antes um pouco de Caco ou
Ênio, os bonecos criados por Henson estrelaram um show, na emissora de televisão
americana ABC, “Sam and Friends”, que ficou seis anos no ar. Em 1968, Henson foi
67
convidado para outro projeto: integrar o elenco do infantil “Sesame Street”. Anos
mais tarde, em 1976, o personagem mais famoso dos “Muppets”, Caco, o sapo,
ganhou um programa próprio em que entrevistava pessoas públicas ao lado dos
seus outros amigos “Muppets”: o “The Muppet Show”. Além disso, os “Muppets”
estrelaram longas-metragens e foram assistidos no mundo inteiro. Na verdade, eles
além de ficarem famosos em diversos países, foram utilizados como exemplo a ser
seguido por equipes de produção de outros programas infantis de emissoras
diversas. Como por exemplo na utilização de bonecos e fantoches nesses
programas, como em Cocoricó, em Sítio do Picapau Amarelo, Vila Sésamo e na
maioria dos programas infantis brasileiros.
Entendemos, pois que os bonecos de Cocoricó produzem efeito de sentido
de identificação com as crianças, a partir de sua materialidade. Esse processo de
identificação será dado pelo uso da espuma ao moldá-los, pela cor com que são
pintadas essas espumas e que identificarão a raça (no caso de humanos) ou a
espécie (se é cavalo, galinha ou papagaio) de cada boneco. Além disso, esse efeito
de familiaridade com a criança é intensificado pelo uso da topologia televisual. O
movimento do boneco mais próximo ou não da câmera, instaura um efeito de
sentido de proximidade ou distanciamento, respectivamente, com a criança. Essa
identificação com o seu público destinatário fez de Cocoricó não apenas um
programa de TV, mas colocou-o na lista de brinquedos (bonecos, fantoches, mesas
infantis, jogos de mesa, etc.), de livros, DVD’s e até como personagens de apostilas
de material didático, como poderemos ver a seguir.
1.6 Cocoricó em outros meios
Desde sua criação até quase 15 anos depois, Cocoricó deixou de ser somente
um programa da TV Cultura e se transformou em diversos produtos
comunicacionais: de livros, álbuns, vídeos e DVD’s, que circulam no rádio, no teatro,
no cinema, na internet, até na escola. Tudo começou com o lançamento das
68
canções dos episódios em CD, mais tarde vieram os vídeos e DVD’s com os clipes
musicais, seguidos dos episódios.
As aventuras do menino Júlio e de seus companheiros do sítio ganharam, em
2006 – em comemoração aos 10 anos do programa - a primeira versão em livro,
Cocoricó, um Amigo Especial, lançado pela Melhoramentos. "Quando começamos o
programa, pensamos em uma série de desdobramentos como teatro, cinema e
livro", diz com orgulho o diretor Fernando Gomes. Neste volume, com roteiro
assinado por Cristiane Pederiva, os leitores encontram a adaptação de uma história
que foi exibida no programa. "Na edição, respeitamos os personagens, optamos
por fotos e os bonecos são apresentados com o mesmo enquadramento da
televisão. Mesmo cenário e luz do programa original." Como tema central, foi
apresentada a questão da diferença, tema também recorrente nas histórias do
programa de televisão. O livro conta o dia em que Júlio escreveu em seu diário o
jeito especial de seu amigo Mauro. Um garoto que escreve em braile e usa bengala,
mas tem os outros sentidos bem apurados. "Optamos por fotografias no lugar de
ilustrações para que as crianças encontrem no livro os personagens que elas
conhecem", diz o diretor36. Esse foi apenas o primeiro de uma série de outros livros
com as histórias da televisão que foram lançados pela mesma editora. No ano
seguinte, Cocoricó ganhou o universo das histórias em quadrinhos, as HQ’s como
são chamadas, reuniram algumas das histórias da fazenda lançadas pela Editora
Globo.
Outro meio em que o programa se instalou foi o teatro. O espetáculo
Cocoricó, uma aventura no teatro ficou em cartaz em São Paulo, no segundo
semestre de 2008, e manteve os bonecos e vozes originais do programa veiculado
pela televisão. A história do teatro contava a aventura vivida pela turma do Paiol
quando um objeto estranho é visto nos ares de Cocoricolândia. Na tentativa de
descobrir exatamente o que andava sobrevoando a fazenda, a turma se envolve
numa aventura onde o respeito às diferenças e a solidariedade são os temas
principais. A adaptação destes personagens à linguagem teatral ficou por conta de
36
Disponível em http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2006/not20060316p60729.htm,
acessado em fevereiro de 2009.
69
Fernando Gomes, confeccionador de os todos os bonecos e que assim como no
programa de TV, assina também a direção e concepção da peça37.
Gomes conta que o desejo de levar o Cocoricó aos palcos era um sonho
antigo, embora houvesse um grande desafio: o de transpor a atração para os palcos
respeitando os personagens o que eles s~o na televis~o. “Eu sempre me recusei em
utilizar o boneco-fantasia. Se colocássemos pessoas vestidas como os personagens,
muitas características se perderiam. Imagine, por exemplo, as galinhas – seria
impossível, para uma pessoa, ter o mesmo pescoço comprido de uma galinha”,
explica o diretor Fernando Gomes. A solução, então, foi se basear em técnicas que
permitissem a camuflagem dos atores, vestidos de preto e andando pelo palco,
movimentando os personagens. Outro cuidado de Gomes foi produzir um
espetáculo de teatro que não fosse uma reprodução do programa de TV no palco,
respeitando por assim dizer, o próprio meio e sua linguagem, neste caso: o teatro.
Essa utilização do próprio meio para dele desenvolver a linguagem a ser utilizada foi
recorrente nas adaptações de Cocoricó. Vimos primeiro no livro, agora no teatro e
também para o cinema. O cenário, então, não é exatamente o mesmo paiol do
Cocoricó. “H| uma alus~o ao paiol, mas nada t~o realístico quanto na TV. S~o
referências”, diz. O diretor também destaca que as músicas originais est~o
presentes, mas reforça que o espetáculo não podia ser caracterizado como um
musical38.
Em 2009, foi lançado o Cocoricó, uma aventura no cinema. A história conta
sobre a viagem de Júlio e os amigos da fazenda para visitar o primo João e passar as
férias na cidade grande. Gancho, explica o diretor, dado pela própria versão original
do programa. “Ser~o nossas primeiras gravações em HD, mas o mote é mesmo que
o programa mudou a cara e, por mais que a gente respeite o perfil dos personagens,
mudam os cenários, entram novas figuras e isso tudo dá outra cara para a produção.
O cinema vai pegar toda essa nova etapa”, comenta Gomes. N~o se trata de um
longa-metragem do Cocoricó, são apenas os primeiros cinco episódios da futura
37
Disponível em http://www.destaquesp.com/index.php/Cultura/Teatro/cocorico-em-uma-aventurano-teatro.html, acessado em fevereiro de 2009.
38
Disponível
em
http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI12406-10527,00TEATRO+COCORICO .html, acessado em julho de 2009.
70
temporada que foram exibidos em primeira mão no cinema. Cícero Feltrin, diretor
de captação e marketing da Cultura, considera a ida de Cocoricó para o cinema uma
demanda do mercado: “a evolução tecnológica, com a gravação da série em HDTV,
permitiu essa ida para a tela grande”39.
No site da emissora em que é veiculado, da TV Cultura, Cocoricó está
presente. O site segue a programação visual do programa, mas principalmente das
capas dos DVD’s. Nele, encontra-se a descrição de cada boneco do programa, jogos
e espaço para as crianças deixarem um recado, além de vídeos e músicas.
Os bonecos de Cocoricó se aventuraram, por fim, às campanhas do Governo
Federal e da Prefeitura Municipal, já antevendo que além do destinador TV Cultura,
o programa também tem ainda um outro destinador, aquele ligado às raízes da
criação da emissora, o poder público. Os bonecos gravaram pequenos comerciais
que foram colocados durante intervalos da programação da TV Cultura sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente e sobre as precauções para evitar o contágio
da Influenza H1N1. Depois de março de 2010, eles entraram nas salas de aula através
do material didático, da 1a a 3a séries da rede municipal de ensino de São Paulo, em
vídeos e cadernos de atividades. Foram criados exercícios complementares à
atividade didática, com algumas sendo acompanhadas de vídeos40. O objetivo seria
o de reforçar a qualidade do ensino de língua portuguesa e matemática. O projeto
era uma parceria entre a prefeitura e a Fundação Padre Anchieta, mantenedora da
TV Cultura.
39
Na época de lançamento Cocoricó: As Aventuras na Cidade estreou em 21 salas de nove cidades
brasileiras, como um pré-lançamento da nova temporada. O diretor Fernando Gomes conta que
apesar de estar no cinema, esse Cocoricó é televisivo porque foi produzido para TV, apesar de ter
uma linguagem "de cinema". Os cinco episódios foram colados um ao outro, sem enredo, sem
começo,
meio
e
fim
que
amarre
tudo.
(disponível
em
http://imagememagia.blogspot.com/2009/07/agora-chegou-mesmo-nos-cinemas.html, acessado em
20 de agosto de 2009).
40
O vice-presidente da Fundação Padre Anchieta e secretário de Educação no início da gestão Marta
Suplicy (PT) Fernando Almeida disse que todo o material foi pensado levando em conta as
dificuldades detectadas nas provas de avaliação das escolas. O projeto pode ser estendido para
outros cidades e Estados, mas o material feito para São Paulo deve continuar de uso exclusivo. "Tem
muitos exemplos de São Paulo: o Ibirapuera, o trânsito, as ruas. Não dá pra usar isso em outro lugar",
afirmou Almeida. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/videocasts/ult10038u6906
83.shtml, acessado em março de 2010.
71
Conhecemos a história do programa Cocoricó, bem como da TV Cultura e
todo o contexto em que o programa foi criado até hoje, quase 15 anos depois.
Cocoricó, atualmente, como vimos, não é apenas um programa de TV, é também
peça teatral, bonecos de variados tamanhos e tipos, decoração de festas de
aniversário, sessões de cinema, e também é um programa que veio buscando um
espaço próprio no cenário televisivo brasileiro e se afirmando como tal.
Entendemos até aqui, o quanto o Cocoricó significa na história da televisão brasileira
enquanto “fórmula” de um sucesso que deu certo, pelo menos para a emissora ao
qual está veiculado e para a equipe de criação. Além disso, o que queremos neste
trabalho, como especificado desde as primeiras páginas é conhecer os episódios,
suas narrativas, principalmente a enunciação que irá nos dizer e irá nos mostrar,
pelo conteúdo e pela expressão: os regimes de visibilidade do destinador e
destinatário e do social em que se inserem. A importância do ambiente midiático
que Cocoricó produz em sua expansão de programa televisual - para peças de
teatro, sessões de cinema, entre outros como apresentado – o coloca enquanto
destinador em um fazer sobre a audiência. É isso o que iremos examinar pelas
an|lises das vinhetas e do episódio “Pôr do sol” no capítulo a seguir, nos termos de
modalidades que desenvolvem as competências da criança espectadora para seu
atuar no social.
73
Capítulo II
ACONSTRUÇÃO DE MUNDO DE COCORICÓ
Cabe ao analista descrever e explicar os
mecanismos de construção do sentido,
observando as relações dadas no plano do
conteúdo e no plano da expressão dos
textos, bem como as relações entre um
plano e outro. Também compete ao
analista observar as relações entre
enunciado e enunciação, para recuperar
não apenas o que o texto diz, mas porquê
e o como do ato de dizer.
Norma Discini, 2005
Enquanto objeto semiótico televisual, Cocoricó tem um sentido, uma direção,
uma significação. Para Greimas (1976, p. 11-16) a significação define o mundo
humano, “só pode ser chamado ‘humano’ na medida em que significa alguma
coisa”, e, o que significa ser| situado por aquele que se interesse – o semioticista –
no nível da percepção, pela descrição das qualidades sensíveis de tal objeto dado
num determinado contexto. Temos, assim, um objeto semiótico entendido: pela sua
significação, dada num contexto, por um discurso ou por proposições organizadas
“cuja principal funç~o é ‘re-produzir’ e ‘re-criar’ (grifo do autor) a realidade”
(FONTANILLE, 2007, p. 16); e também por narrativa (s), cujo princípio é a
organização global desse discurso. Assim, o objeto semiótico enquanto discurso e
74
narrativa identificará quais os efeitos de sentido gerados a partir de sua análise. De
acordo com o Dicionário de Semiótica, efeito de sentido significa:
1) “impressão de ‘realidade’ produzida pelos nossos sentidos,
quando entram em contato com o sentido, isto é, com uma
semiótica subjacente”; 2) “o termo ‘sentido’ entendido como
‘efeito de sentido’, única realidade apreensível, mas que não pode
ser apreendida de maneira imediata”41; 3) o efeito de sentido
corresponde à semiose, ato situado no nível da enunciação, e à sua
manifestação que é o enunciado-discurso”. (GREIMAS & COURTÉS,
2008, p. 155-156).
Para, então, chegarmos aos efeitos de sentido de Cocoricó, nossa trajetória
de an|lise ser| construída a partir do percurso gerativo de sentido, “dispositivo
metodológico” segundo Bertrand (2003, p. 74) que guia os patamares de análise de
um texto na constituição de seu sentido e valores. Tais valores ao se formarem,
instalam uma visão de mundo, uma proposta de forma de vida, ou um estilo.
Greimas propõe com o percurso gerativo de sentido, três níveis de análise: o
fundamental, o narrativo e o discursivo, que se referem ao plano do conteúdo.
Entretanto, como diz Fiorin, quando se está falando em percurso de sentido:
A rigor se está falando de plano de conteúdo. No entanto, não há
conteúdo linguístico sem expressão, pois um plano de conteúdo
precisa ser veiculado por um plano da expressão, que pode ser de
diferentes naturezas: verbal, gestual, pictórico, etc. (FIORIN, 2000,
p. 31).
Ou no caso do nosso objeto audiovisual, um objeto sincrético que tem mais
de uma linguagem na constituição do seu plano da expressão. Para o estudo da sua
expressão sincrética, vamos utilizar os conceitos da semiótica plástica examinando
as manifestações, em suas dimensões cromática, eidética, matérica e topológica,
que nos permitirá chegar à construção plástica do Cocoricó, das escolhas do
enunciador para plasmar em determinado arranjo plástico para o enunciatário. O
modo específico do enunciador de construir cada cena é uma dessas escolhas.
41
O Dicionário de Semiótica (2008, p. 155) explica que a semântica não é a descrição do sentido, mas a
construção que, visando a produzir uma representação da significação, só será considerada validada
na medida em que for capaz de provocar um efeito de sentido comparável.
75
Observar cada angulação, postura dos bonecos, relações de proximidade e distância
dos interlocutores com a câmera, bem como o tratamento dado às temáticas nos
possibilitará perceber essas escolhas e o que elas irão gerar de efeito de sentido
para o enunciatário. As escolhas do enunciador dão-se pelo montar o enunciado que
só é veiculado pela organização do arranjo plástico. Oliveira define como
composição dessa manifestação as dimensões do arranjo plástico, definindo-os:
Como cor, constitui a dimensão cromática, enquanto forma a
dimensão eidética. Essas dimensões são ambas constituídas a partir
de matérias, materiais, técnicas e procedimentos que lhe dão uma
corporeidade que, quando é apreendida por sua fisicalidade
própria, constitui-se por si mesma uma dimensão distinta das
demais, a matérica. Como tudo o que existe, essas três dimensões
ocupam um espaço, tela, ou qualquer outro suporte, no qual são
distribuídas e têm uma posição: assim uma outra dimensão, a
topológica, concretiza-se pela combinatória das anteriores em um
dado espaço. (OLIVEIRA, 2004, p. 119).
Dizemos, pois, que o percurso gerativo de sentido aliado à análise da
construção plástica de Cocoricó nos possibilita pensá-lo enquanto objeto semiótico.
Isso quer dizer que o Cocoricó é enunciado, é pensado, estruturado e produzido por
profissionais de sua equipe de produção e direção. São eles: psicólogos, pedagogos,
roteiristas, diretores musicais, cinegrafistas, atores-bonequeiros, entre outros. Esses
profissionais, por sua vez, são contratados pela emissora de televisão responsável
pela transmissão do programa e juntos configurando-se enquanto destinadores.
Completando esta relação, temos como destinatário o público telespectador deste
produto audiovisual. O que temos a partir disso seria um programa narrativo de
base, ou seja, o sujeito do fazer S1 (destinador-equipe Cocoricó) atribui como objeto
de valor o programa Cocoricó ao sujeito de estado S2 (destinatário-telespectador).
Relacionando o Cocoricó ao texto escrito por Greimas (1983, p. 157-159), “A
sopa au pistou como a construç~o de um objeto de valor”, compreendemos que o
programa e seu público agem de acordo com o volitivo, quer dizer, do querer-fazer,
ao contrário daquele que se propõe a seguir a receita da sopa, cuja dimensão é
cognitiva, da modalidade do saber-fazer. Para que o destinatário aceite esse
76
contrato proposto de querer assistir ao programa, o destinador faz ele crer na
realização desse querer, convocando-o primeiramente, pelo uso do imperativo e o
enquadramento utilizado da câmera – em que o enunciatário é instaurado naquele
ponto fixo - na música da vinheta de abertura, por exemplo. O programa narrativo
de base – a construção do assistir Cocoricó como objeto de valor – dependerá,
assim, de outros programas narrativos dados numa articulação temporal,
do
programa em si, e na relação dele com o horário inserido na grade de programação
(PN7). Temos então a seguinte hierarquização: PN1) a inserção da vinheta de
abertura; PN3) o desenvolvimento da narrativa; PN5) o desfecho da narrativa; PN6)
a vinheta de encerramento, como programas narrativos principais. Temos ainda:
PN2) as curtinhas sobre o trânsito e PN4) a inclusão do clipe musical, como
programas narrativos secundários que podem ou não ser inserido no programa.
Cada programa narrativo tem sua função enquanto programa narrativo de base ou
de uso, na duratividade de Cocoricó na programação da TV Cultura. Cada vinheta
dura em média 30 segundos; a narrativa dura 5 minutos; o clipe musical pode variar
de 1 minuto a 2 minutos e meio; e os curtinhas 30 segundos. Sendo assim, cada
episódio pode ter entre 6 minutos e 10 minutos. A emissora veicula na maioria dos
episódios um intervalo comercial entre o PN3 e o PN4.
FIGURA 3- O programa narrativo de base e os programas narrativos de uso do Cocoricó
77
São esses programas narrativos que compõem cada episódio que irão
possibilitar ao destinatário apreender o efeito de sentido do Cocoricó enquanto um
produto televisual midiático. Consequentemente, o destinatário irá aderir ou não
ao contrato fiduciário, ou seja, na relação de comunicação estabelecida entre esses
dois sujeitos – destinador-destinatário a partir do objeto de valor considerado – o
próprio programa. Com o objetivo de nos aprofundarmos nesta relação, propomos
a descrição dos programas narrativos com o estabelecimento de relações entre: as
vinhetas diferentes das temporadas, Cocoricó e Cocoricó na cidade, bem como das
vinhetas de continuidade e de encerramento; a apresentação do novo lugar
instaurado pela temporada na cidade, que é o Beco, apresentados por Esfarrapado
e Roto no início de cada episódio; dos procedimentos sincréticos do episódio “Pôr
do sol” e do clipe musical; enfim, chegando às articulações e construções do
sentido. Começamos tentando estabelecer os programas narrativos como uma
maneira metodológica de construção do sentido de cada episódio do programa.
2.1 As vinhetas de abertura
A programação da TV, dos seus primórdios até o momento tecnológico que
vivemos atualmente, veio se transformando e se modificando. Se antes os
programas televisivos eram projetados a partir de sua mídia anterior - o rádio – hoje,
a Internet, as TV’s a cabo, dentre outros, continuam modificando a grade de
programação da TV, que se caracteriza pelo seu formato fragmentado, produzido
essencialmente pela edição e fragmentação de seus segmentos. A montagem
interna dos programas e a divisão estrutural deles - por meio das pausas e intervalos
comerciais ao longo de toda a programação (FREITAS, 2007, p. 78) – identificam-na
enquanto esse todo fragmentado. Por outro lado, as vinhetas e suas diferentes
funções ajudam o telespectador a entender essa estrutura fragmentada e a se situar
na programação, configurando-se assim, como um dos aspectos diferenciadores e
característicos da programação televisiva. De acordo com o Dicionário Houaiss,
vinheta significa: pequena música que se toca no início, encerramento ou reinício de
78
um programa de rádio ou televisão, para identificar o programa, a estação ou o
patrocinador. Nilton Hernandes, então, lembra que as vinhetas impõem
descontinuidades na programação, dentro da estratégia de impedir qualquer
possibilidade de monotonia discursiva, “têm, portanto, a miss~o de arrebatar ou
manter a atenç~o dos ouvintes”, (HERNANDES, 2009, p. 275). A vinheta de televisão
se manifesta nos diferentes programas veiculados, novelas, infantis, telejornais,
especiais, programa de auditório, sessões de filmes, etc. Ela possui algumas funções
(portanto fazeres), cada uma com determinação própria, entre as quais: a vinheta
de identidade da emissora, a de chamada, a de passagem e a de abertura dos
programas. A vinheta é transmitida entre um programa e outro e/ou nos intervalos
comerciais. Vinheta televisiva, de acordo com Dornelles (1997, p. 44), é uma peça de
curta metragem, composta de elementos imagéticos, sonoros e mensagem de
expressão verbal, usada com fim informativo, decorativo, ilustrativo, de remate, de
chamada, de passagem, de identificação institucional e de organização do espaço
televisivo. A vinheta possui uma função pragmática: serve para chamar e avisar o
telespectador de que o programa a seguir vai começar, é um localizador da ordem
da programação televisual. Segundo Aznar:
A vinheta tornou-se um apelo decorativo imagético e sonoro, que
além de identificar a emissora de forma característica, ainda tem a
função de auxiliá-la a vender os seus produtos As imagens das
vinhetas de abertura trazem consigo, sempre, um sistema de
imagens com narrativa específica para tal programa. (apud
DORNELES, 1997, p. 44).
A vinheta possui outra função, de ordem prática e em sintonia com o próprio
programa que está iniciando. Podemos chamar de função identificadora, um
recurso enunciativo que indica o que será veiculado no fluxo televisual. A vinheta na
TV promove assim, uma relação de continuidade vs descontinuidade de duas formas:
sob a grade de programação da própria emissora; e sob o formato do programa e a
história a ser contada. Se primeiro, a vinheta comunica ao telespectador que é hora
daquele programa específico começar, depois a vinheta se responsabiliza de
novamente informar ao telespectador de que aquele programa está sendo
79
interrompido seja por um intervalo comercial, seja para a marcação de uma
descontinuidade na história contada. A grande maioria dos programas infantis e
desenhos animados possuem vinheta de abertura. A vinheta está ali para emoldurar
o programa em questão, uma animação que apresenta ao telespectador o
programa (FREITAS, 2007, p. 77). Essa vinheta – como delegado do destinador apresenta os bonecos, o cenário, a música e ajuda a criar e fortificar um vínculo com
a criança espectadora, ou seja, ela reestrutura a descontinuidade na volta à
continuidade, tornando as passagens de um programa a outro bem identificáveis.
Por esse caráter indicador e, consequentemente, identificador, no momento em
que as primeiras batidas da música da vinheta de abertura começam, ao mesmo
tempo em que as primeiras tomadas aparecem, a criança já sabe o que virá. Elas
assimilam que a música e os bonecos ou desenhos são daquele programa X, bem
como o uso da marca que aparece ao final da vinheta é do desenho que vem a
seguir. Partindo dessa primeira relação entre o espectador e o programa, é que
entendemos que se trata da construção de um contrato fiduciário, ou seja, em que
“as duas partes sejam asseguradas do ‘valor’ do objeto a ser recebido” (GREIMAS &
COURTÉS, 2008, p.101). De um lado um fazer persuasivo do destinador e, do outro,
um fazer interpretativo do destinatário, manifestado no nível da enunciação como
um contrato de veridicção, uma relação de fidúcia entre enunciador e enunciatário.
Tal relação se baseia no dizer-verdadeiro, que instaura uma evidência, ou ainda, um
fazer-crer do enunciador (portanto um fazer persuasivo) que corresponderá ao crer
do enunciatário (um fazer interpretativo). O contrato de veridicção começa por
sensibilização do enunciatário para ver
Cocoricó , esse ver o programa se
transformará num hábito e gosto pelo seguir Cocoricó e todos os seus produtos
derivados.
Por essas primeiras observações sobre a vinheta de abertura, percebemos
que pela semiótica é possível construir os sentidos de um objeto, seguindo as
marcas deixadas no que foi enunciado, pelo próprio enunciador. Então, se
voltarmos às possibilidades de análise desse objeto, veremos que as estruturas
narrativas irão guiar a relação entre sujeito e objeto de valor, enquanto que as
80
estruturas discursivas irão permear a relação do sujeito enunciador e do sujeito
enunciatário. Está postulada, assim, mais uma relação semiótica pressuposta:
enunciação-enunciado. Landowski (1992, p. 222) diz que a enunciaç~o é o “ato pelo
qual o sujeito faz ser o sentido” e o enunciado, “o objeto cujo sentido faz ser o
sujeito”. São as marcas de pessoa, de tempo e de espaço, e as figuras
concretizadoras de temas que discursivizam o modo de dizer do enunciado. Assim,
o discurso n~o ser| nada mais que “a narrativa ‘enriquecida’ por todas essas opções
do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a
enunciaç~o se relaciona com o discurso que enuncia” (BARROS, 2002, p. 52). Por
isso, que voltamos a afirmar que refazendo essa “trilha” deixada pelo sujeito da
enunciação, é possível apreender o sentido do discurso.
Para adentrarmos nas estruturas discursivas desses textos audiovisuais
escolhidos, procuraremos analisar, inicialmente, as figuras do discurso utilizadas
pelo enunciador para levar o enunciatário a reconhecer “imagens do mundo”. Pela
vinheta de abertura de Cocoricó e de Cocoricó na cidade, o enunciador propõe ao
enunciatário: 1) fazer sentir que chegou a hora de Cocoricó; e, 2) fazê-lo entrar no
mundo de Cocoricó.
2.1.1 Cocoricó no campo
Comecemos pelas estruturas fundamentais, analisando primeiro a vinheta de
abertura de Cocoricó. São essas estruturas que abrigam as categorias semânticas
que estão na base da construção de um texto. Nesta vinheta de abertura, o texto se
constrói sobre a oposição semântica IDENTIDADE X ALTERIDADE, em que a
identidade do ser no campo é euforizada e a alteridade advinda com a cultura da
cidade é disforizada. A temática da vida no campo, dos animais, da natureza é
trazida pelo destinador por figuras emblemáticas do campo, das montanhas, do sol
que nasce. Enquanto que a temática do homem culturalizado, do conhecimento, é
dada pelo boneco humano Júlio, e pelos animais antropomórficos (com
características humanas), as galinhas, o cavalo Alípio e o porquinho Astolfo.
81
FIGURA 4- Tomadas iniciais da vinheta de abertura: Início da vinheta com o amanhecer do dia;
as galinhas no campo à distância; as galinhas em close
As sequências de tomadas da vinheta de abertura operam pela relação fundo
e figura, ora desfocando o fundo sobre o qual as três actantes (as galinhas) são
privilegiadas pelo enquadramento e dinâmica que se dá a cena (pelo visual e pelo
sonoro), portanto são focalizadas pela câmera, ora o contrário. Além disso, os
actantes aparecem na vinheta sempre de três em três: primeiro são as três galinhas,
depois o Júlio, o Alípio e o Astolfo, as três letras ‘C’, as três letras ‘O’, e os três
actantes que aparecem na logomarca do programa ao final da vinheta. A vinheta de
abertura começa com o amanhecer de um dia. Por uma panorâmica geral, o
espectador vê a sombra das galinhas em segundo plano e um campo ainda escuro e
avermelhado que vai se clareando na medida em que amanhece o dia. A câmera
focaliza num plano geral as três galinhas, cada uma de uma cor diferente (vermelha,
rosa e amarela). A câmera se aproxima ainda mais das galinhas, que se levantam e
levantam os rostos, olhando para frente – lugar fora do texto televisual - para o
lugar do enunciatário . Através de um movimento de câmera de aproximação - o
close-up – são mostradas as galinhas focalizadas no ato de pôr os ovos, uma por
uma.
Nessas primeiras tomadas, o enunciador gera um efeito de sentido ora de
distanciamento (quando ainda não é possível ver as galinhas, o que elas estão
fazendo), ora de aproximação com o enunciatário (pelos movimentos de câmera
82
que se aproxima das galinhas e elas passam a olhar diretamente de frente para a
câmera). A câmera faz ainda outro movimento, corre para a direita e logo depois se
aproxima. Esse movimento instaura a temporalidade da narrativa da própria vinheta
marcando o passar da noite para o dia e ato de pôr ovos das galinhas, ao
amanhecer. O galo que canta o Cocoricó não aparece na vinheta, no entanto, as
galinhas pondo ovos presentifica essa figura do galo.
FIGURA 5- A utilização do recurso de aproximação da câmera com os actantes: o close é utilizado
em uma das galinhas; Júlio se dirige à câmera e apresenta sua gaita; Astolfo e Alípio aparecem na
vinheta de abertura
Na medida em que a vinheta avança e a música também, Júlio surge de
costas do lado esquerdo, atrás das palhas, e, logo em seguida, juntam-se a ele:
Astolfo e Alípio, que chegam pela direita da tela. Júlio sai andando com a gaita,
enquanto a letra da música em tom mais acelerado diz: “o Júlio na gaita e a
bicharada no vocal... cantando um rock rural”. Abre-se um plano americano no
campo. A câmera se volta, então, para as três galinhas que estão no campo, e cada
uma vem carregando consigo a letra “C”, que tipograficamente é uma letra cheia e
na cor verde. As letras aparecem unidas atuando como marca do programa e, um
ovo sai do primeiro ‘O’ do nome do programa e no vazamento da letra, dá lugar à
cabeça do Alípio. As galinhas aparecem com outras letras, carregando o ‘R’ e o ‘I’,
ou seja as letras que faltam no nome do programa. O segundo ‘O’/ovo do nome d|
83
lugar ao personagem Júlio. E por fim, no último ‘O’ aparece a galinha Lola. A
narrativa do programa começa a ser dada para o destinatário-enunciatário pela
circularidade das letras, sem serifa, que saem da linha do horizonte entre o campo e
céu.
FIGURA 6- Sequência final da vinheta com o nome do programa:
identificação do nome do programa a partir dos ovos das galinhas; o foco é dado na marca
Durante toda a vinheta de abertura de Cocoricó, a tela do vídeo encontra-se
dividida ao meio (em segundo plano), na linha do horizonte, na parte de baixo o
verde do campo, da vegetação e na de cima o azul do céu (entre nuvens brancas). A
linha do horizonte perpassa toda a vinheta até o final dela, quando aparece a marca
do programa. Um movimento de câmera da esquerda para direita, instaura o sujeito
Cocoricó, o que indica ao enunciatário que vai começar o programa e qual programa.
Ao determinarmos os interlocutores das vinhetas de abertura - os mesmos
presentes nas histórias dos episódios dos programas - e o papel que eles
desempenham, pretendemos na verdade, identificar qual a organização narrativa
desse texto audiovisual. Barros define que:
A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que
simula o fazer do homem que transforma o mundo. Para entender
a organização narrativa de um texto, é preciso, portanto, descrever
84
o espetáculo, determinar seus participantes e o papel que
representam na historiazinha simulada. (BARROS, 2002, p. 16).
Pela organização narrativa, temos nos enunciados os papéis actanciais, ou
seja, os sujeitos em relação de conjunção ou disjunção com os objetos de valor e, os
sujeitos nas transformações de um estado a outro. A concepção de narrativa é,
assim, “uma sucessão de estados e de transformações nas relações entre sujeitos e
objetos” (BARROS, 2002, p. 20). Fiorin (2006, p. 27-29) fala em narrativa mínima:
“ocorre uma narrativa mínima quando se tem um estado inicial, uma transformaç~o
e um estado final”. H| dois enunciados elementares: os enunciados de estado e os
enunciados de fazer. Os enunciados de estado são os que estabelecem uma relação
de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto; enquanto que os
enunciados de fazer são os que mostram as transformações dos sujeitos de um
estado a outro. Entretanto, os textos não se caracterizam como narrativas mínimas,
ao contr|rio, s~o narrativas complexas, “em que uma série de enunciados de fazer e
de ser (de estado) estão organizados hierarquicamente”, explica o autor.
O sujeito do fazer na vinheta do Cocoricó é o Júlio, que através do ‘cocoral’
pode fazer um ‘rock rural’, como diz a canç~o, no plano verbal-sonoro, embora essa
relação também seja colocada pelo visual, quando Júlio vai acompanhando, como
que comandando as ações realizadas pelos outros personagens. É o Júlio quem
coloca os outros sujeitos a fazer: os animais antropomórficos. O Júlio é o neto dos
donos da fazenda, e sendo assim ele pode fazer, possui uma competência
pragmática em relação aos outros animais. O Júlio, apesar de morar no campo, é um
menino que já morou na cidade, então ele também possui uma competência ligada
ao conhecimento de um garoto urbano. As galinhas Lola, Zazá e os avôs de Júlio são
mais velhos que ele, e, portanto, são detentores de uma competência ligada à
experiência vivida, ao contrário de Oriba, Astolfo, Lilica que são crianças, assim
como Júlio.
Como um programa infantil, veiculado por um destinador maior a TV Cultura,
para crianças em idade pré-escolar, Cocoricó se apresenta como a busca de um
sujeito, o Júlio, pelo entretenimento, pela diversão e por um aprendizado cognitivo,
85
de valores da boa conduta e de novos saberes, ligados a uma vida cotidiana no
campo. A transformação dos sujeitos é dada por esse aprendizado social do viver no
campo. Sendo assim, o enunciado de estado é dado pelo sujeito Júlio em relação de
disjunção com objeto de valor aprendizado de viver em sociedade, mas também ao
dia-a-dia de quem mora numa fazenda. Enquanto o enunciado de fazer é a
transformação empreendida pelo sujeito Júlio dessa relação de disjunção com o
aprendizado de valores sociais dado na cotidianidade através das vivências na
fazenda. A transformação do sujeito Júlio se dá pela ação de outros sujeitos, como
duas galinhas e da vaca que são adultas, bem como dos avós. Outros sujeitos, como
o porquinho Astolfo, também se encontram em disjunção com o aprendizado, neste
caso, ligados à rotina de um bebê, em temas como: o apego e dependência da mãe,
aspectos da saúde como vacinação, aspectos psicológicos como egoísmo, entre
outros. Em alguns episódios do programa existem personagens que são antisujeitos, como o Dito e o Feito e também o Pato Torquato e a Pata Vina. Esses
sujeitos estão disfóricos com o objeto de valor de boa conduta e aprendizado.
Quando eles não participam do episódio, outro boneco faz o papel de anti-sujeito,
como por exemplo, no episódio em que a Lilica e o Caco passam o dia inteiro
brigando porque cada um quer brincar com um jogo diferente.
O actante Júlio está em busca de valores modais, de um poder e um quererfazer (aprender, respeitar); e vai ao encontro desses objetos de valor. Esse seria,
portanto, o programa de base para a aquisição de valores. Quando Júlio e os outros
sujeitos animais-crianças entram em contato com a vivência da fazenda no
ambiente rural, eles encontram a possibilidade de uma troca de experiência e
aquisição de saberes com outros sujeitos. Esse seria, portanto, o programa
narrativo de uso, resumido pela doação de valores modais do poder e querer fazer
dos sujeitos adultos para com Júlio e os outros e com a aquisição de competência
desses, sancionados positivamente quando conseguem cumprir a tarefa a ser
executada ou vencer alguma brincadeira.
Ao mesmo tempo em que os sujeitos estão em programas de busca de
competência, acreditamos que por meio desses programas narrativos se configura a
86
principal relação entre destinador-destinatário, em que há uma valoração do
destinatário. Ele é considerado um sujeito competente, como diz a música da
abertura do Cocoricó, por exemplo: “quem conhece a gaita, já sabe quem está
tocando” (ver letra da música abaixo) e também quem está chegando. O
destinatário é possuidor de uma competência cognitiva de saber, ele pode-saber
quem é o sujeito Júlio e quem é a turma do “Cocoral” que está chegando.
Essa relação, portanto, potencializa uma ação proposta ao destinatário como
uma comunicação participativa, um compartilhamento de saberes. Para que isso
seja possível, os sujeitos dessa interação precisam de uma competência cognitiva,
para que possam exercer algum tipo de influência recíproca sobre suas respectivas
ações. Esses sujeitos competentes deverão assim, possuir competência modal,
como o querer-fazer, o poder-fazer e o saber-fazer. Para interagir, o sujeito tem que
compartilhar saberes. É o que acontece quando uma criança assiste ao Cocoricó. A
criança quer assistir ao programa, ela tem disponibilidade, pois os pais deixam e até
incentivam esse fazer assistir e adquirir produtos Cocoricó, então pode fazer e
conhece como fazê-lo, sabe fazer, ligar a TV ou mudar de canal.
Além dessas pontuações feitas, devemos considerar a vinheta enquanto
objeto sincrético e pelo seu verbal sonoro, temos a letra da música de abertura que
diz:
Quem conhece a gaita, já sabe quem tá chegando,
Quem conhece a gaita, já sabe quem tá tocando,
Júúúúlio...
Patas de cavalo, dança de galinha,
É o Júlio chacoalhando e
Olha o cococó começando
Tá na hora do Cocoricó
Tá na hora da turma do Júlio
O Júlio na gaita e a bicharada no vocal
Cantando rock rural
Cocoricó
O Júlio na gaita e a bicharada no coral
Cocoricó
Cocoricóóóóóó....
87
A melodia da música é calma, branda, indicativa do dia que acaba de
amanhecer. Na medida em que os actantes vão aparecendo e as imagens vão sendo
exibidas até se aproximar do final da vinheta, a música vai send0 acelerada até
terminar com o nome do programa, repetido por mais uma vez e com a entonação
da última sílaba estendida. Os verbos da letra da música de abertura estão no
gerúndio, determinando o acontecer da ações (ver letra, os verbos estão marcados
em negrito). Apenas no refrão, com a frase “t| na hora do Cocoricó...”, o verbo est|
no presente, indicando um imperativo que convoca o enunciatário. A primeira
estrofe da música dizia com certo suspense (antes de aparecer): “quem conhece a
gaita, j| sabe quem t| chegando, quem t| tocando”, o verbo tá (abreviação oral do
verbo estar na terceira pessoa do singular do presente do indicativo: está)
acompanha um verbo auxiliar no gerúndio. No refrão, o verbo tá acompanha o
substantivo hora, e é a hora de Cocoricó, quer dizer, pela letra da música (o uso do
começannndddooo intensifica mais ainda a extensão do verbo. Se pensarmos na
gramática narrativa, a espera pelo objeto de valor estar com o programa é
sancionado positivamente, ou seja, o sujeito é contemplado com o objeto e pela
convocação dos actantes que olham para o lugar do espectador - frente da tela - há
um efeito de sentido de proximidade e de convocação, que leva o espectador a um
fazer: assistir ao programa. Para que haja esse sentido, o enunciador instala um
narrador, é o narrador quem canta a música, quem faz essa convocação.
Entendemos que no compartilhar saberes entre destinador e destinatário, a
vinheta de abertura propõe uma relação de manipulação por sedução (assista, viva,
sinta o programa e tudo o que ele oferece para você “criança”, aqui você “pai ou
m~e” pode ficar tranquilo e seguro, porque apresentaremos uma visão de mundo e
juízos de valor socialmente legitimados nas histórias que os bonecos vivem). O
destinador oferece ao destinatário o entretenimento pelos seus delegados - a turma
do “Cocoral” – que organizam a narrativa de aquisição de novos saberes. O
destinatário que foi valorado, é convidado a fazer parte da turma e cantar o rock
rural. Estamos falando, assim, de um contrato comunicativo entre quem faz o
programa e quem assiste.
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A relação destinador (enunciador) e destinatário (enunciatário) pode ser
identificada neste texto audiovisual pelos procedimentos de colocação em discurso.
O enunciador (aquele que enuncia o discurso) exerce o papel de destinadormanipulador, aquele responsável pelos valores e pela ideologia presente no texto.
Esses valores leva o enunciatário a se identificar e, portanto, a querer crer e querer
fazer, isto é, o percurso do destinador-manipulador é formado pela atribuição de
competência modal para que o destinatário creia nos valores comunicados pelo
destinador ao negociar o seu pôr em cena (MEDOLA, 2001, p.31). Esse contrato
prevê um efeito de sentido de compartilhamento desses saberes, isto é, o
destinador parece doar o objeto de valor, mas acaba por não se desfazer dele,
numa relação que se concretiza pela manipulação do destinador com um fazer
persuasivo e de um fazer interpretativo por parte do destinatário, que se estabelece
na relação comunicativa. Daí, que as ações promotoras dos tipos de interação
homologam essa estruturação dos tipos de sentido explorados para fazer ser o
destinatário criança.
Pensando ainda nesse contrato, podemos considerar que Júlio é sancionado
positivamente, pelo menos do ponto de vista dessa relação destinador-destinatário.
O Júlio é um “bom” menino e est| em busca do aprender, com uma carga valorada
positivamente. Existem actantes n~o t~o “bonzinhos”, no decorrer das narrativas,
sancionados negativamente por um destinador, e também pelo destinatário do
programa. Como dissemos anteriormente, o fazer dele está relacionado à aquisição
de competência em busca cognitiva sobre o campo, do aprender, e também do
entreter uma criança, distraindo-a e ensinando a ela valores de boa conduta. Júlio
quer, assim, ser uma pessoa correta, de acordo com as regras da boa conduta e
princípios sociais. Tudo isso possibilitado pelo estar do Júlio na fazenda, em contato
com a natureza, com os animais que são seus amigos, e na exemplaridade dos
valores cultivados na convivência com eles.
Vejamos quais são esses enunciados nas vinhetas. A vinheta de abertura do
programa Cocoricó apresenta seis actantes, são eles: Lola, Lilica e Zazá (as três
galinhas). As galinhas são as primeiras a aparecerem; elas possuem o fazer pôr ovos
89
e o fazer carregar as letras do nome e, a cabeça da Lola aparece figurativizando a
última letra ‘O’ da logomarca do programa, que encerra a vinheta. S~o ainda
actantes da vinheta: o Júlio, o Astolfo (o porco que figurativiza um bebê) e o Alípio
(o cavalo). O Júlio e o Alípio também s~o os outros dois ‘O’ da marca do programa.
Como actante principal do programa, as narrativas giram em torno de Júlio e
de seu dia a dia na fazenda. Também na vinheta, temos essa narrativa proposta, são
as galinhas que fazem sua apresentação. Elas s~o o ‘nós’, que fazem parte da turma
do Júlio. O programa propõe (desde a vinheta de abertura) uma relação com o
espectador de estar junto, de fazer parte também da turma do Júlio em todos os
aspectos. O dia começa com o amanhecer; as galinhas pondo seus ovos, o Júlio com
a gaita e os outros amigos fazendo parte do “cocoral”, como se todo esse
acompanhamento fosse um convite para que o espectador também faça parte
desse conjunto; programado, assim como o dia que amanhece e as galinhas que
põem os ovos.
Na vinheta não existe diálogo entre os actantes, o verbal-sonoro é dado pela
letra e pela sonoridade da música. O que o destinatário vai escutando pela letra da
música, vai sendo visto pela imagem, simultaneamente num jogo discursivo entre as
linguagens visual e sonora. Então, por exemplo, pelas figuras dança de galinha,
chacoalhando, dado pela letra, pelo visual o enunciatário vê as galinhas
chacoalhando e dançando; o Júlio na gaita e a bicharada do Cocoricó também
presente na letra da música, pelo visual aparece o Júlio, a câmera se aproxima e
mostra a gaita dele e outros animais da fazenda. Essa reiteração entre o verbal
sonoro e o visual vai marcar toda essa vinheta e também o programa, indicando
através do sincretismo42 um ensinar por meio da linguagem televisual, que mostra e
repete, mostra e repete, buscando uma apreensão do sentido pelo enunciatário.
42
Voltaremos a falar do sincretismo nas próximas páginas durante a análise do episódio Pôr do Sol e
do clipe musical. De acordo com o verbete sincrético do Dicionário de semiótica (Greimas & Courtès,
1986, p. 217-219), Jean Marie-Floch diz que os objetos semióticos sincréticos se caracterizam pelas
inúmeras linguagens de manifestação, como o filme publicitário, um jornal televisivo e outras
manifestações culturais são exemplos de objetos sincréticos. A aproximação com esses objetos se
mostrou como uma questão da tipologia das linguagens que implica no reconhecimento desta
pluralidade definidora, precisamente como substância do plano da expressão, e como uma
necessidade – e possibilidade – de abordagem desses objetos em um todo de significação.
90
A figura do ovo que sai da galinha é focalizada no centro da tela em primeiro
plano e instaura a temática da natureza presente em todas as temporadas do
programa. O ovo figurativiza o mundo enquanto ele próprio e enquanto natureza, o
nascimento, a vida, a produção. A vinheta apresenta uma luminosidade em dois
momentos: primeiro, quando as galinhas aparecem e o dia amanhece, e tudo fica
claro, com as cores saturadas. E, depois, quando o nome do programa é formado e
salta aos olhos do enunciatário em contraste não mais com o escuro, mas com um
fundo figurativizado pelo campo e pelo céu que perde intensidade e brilha para que
apareça o nome do programa Cocoricó.
Os actantes do enunciado encaram a câmera da TV. Essa é outra
característica que aponta para o modo de construir esse texto discursivo por um
enunciador consciente de suas escolhas e de seu enunciatário, o público
telespectador. Como se estivesse frente a frente com esse público, o boneco inicia
uma intimidade com ele, que se confirma no decorrer do programa, quando a todo
o momento o enunciatário é instaurado e convidado a compartilhar os momentos
com a turma do Júlio.
Temos nesta vinheta a oposição semântica no plano do conteúdo
IDENTIDADE (o ser da criança) vs ALTERIDADE (fazer social do campo) reiterado
pelo plano da expressão CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE, presentificada
pelo:
a) formante cromático: a linha do horizonte que divide o verde do campo, e
também das letras “C” em oposiç~o ao azul do céu e das letras “O”. A letra “I” na
marca do programa que aparece no final da vinheta figurativiza o próprio programa
enquanto entretenimento, o vermelho da letra e o amarelo do pingo são as cores
das galinhas. Entre os opostos campo e cultura, trazidos pelo trabalho, pelo ato de
produção compartilhada no fazer das galinhas de pôr ovos e depois de carregar as
letras. O formante cromático opera sob a oposição colorido das galinhas, de Alípio e
de Júlio vs a única cor do porquinho bebê Astolfo, do lugar de produção de ovos e
da palha vs os actantes, detentores de determinados valores culturais ou sociais,
como o Júlio que sabe tocar gaita. Além desses dois primeiros, o cromático organiza
91
o passar das horas, do escuro avermelhado da noite para o colorido iluminado do
amanhecer do dia. As oposições colorido vs neutro e claro vs escuro funda a
categoria CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE, reiterada também nos demais
formantes;
b) formante matérico: dado pela impressão de textura que se tem a partir das
imagens selecionadas para compor a vinheta, o mato dá uma textura rugosa, assim
como as nuvens que compõem o céu, ao contrário, o ovo e os bonecos,
confeccionados com espuma que aparentam uma textura mais lisa, mais
trabalhada;
c) formante eidético: as formas presentes na vinheta operam na circularidade
das montanhas, das letras, do ovo, e dos próprios actantes que são arredondados vs
a retidão da linha do horizonte que funciona de fundo para toda a vinheta. As
formas circulares traduzem a natureza e aquilo que provém dela, enquanto que a
linha do horizonte marca o cultural, provido pela ação do homem;
d) formante sonoro: tratando do audiovisual, nesta vinheta, o sonoro é
trazido pela canção (melodia e letra) da vinheta de abertura, que instaura uma
oposição entre a música cantada num tom e o prolongamento de algumas palavras,
como a entonação das palavras “começando”, “turma do Júlio” e da última palavra
da música, o nome do programa;
e) formante topológico: responsável por organizar os outros formantes na
tela da televisão a ser vista pelos espectadores. Nesta vinheta foram utilizados
recursos de movimentação da câmera que filma numa perspectiva centralizada para
gerar os efeitos de sentido desejados, a aproximação e o foco dos actantes
(galinhas, Júlio, ovo, letras, logomarca do programa) vs o distanciamento e
panorâmica da figura do campo (fundo).
Vimos que esses formantes promovem o sentido da vinheta de Cocoricó no
campo. Será que a oposição dada pelo plano da expressão e reiterada pelo plano do
conteúdo é novamente proposta pela vinheta de abertura de Cocoricó na cidade? O
enunciador manteve o efeito de sentido de compartilhamento de saberes? O Júlio
continua sendo o sujeito da transformação? Veremos no próximo tópico.
92
2.1.2 Cocoricó na Cidade
A vinheta de abertura de Cocoricó na cidade – em seus momentos iniciais - já
instaura no enunciatário uma diferença: uma mudança de isotopia, tematizada pela
figura do trem que sai de Cocoricolândia para a Cidade grande, transportando
alguns dos bonecos principais – Júlio, Zazá, Alípio e Lilica – mas deixando os outros
na fazenda – como Lola, Caco, Astolfo, Oriba, etc. Assim, a vinheta instala um novo
lugar para os actantes do programa que saem de férias da zona rural onde está
localizada Cocoricolândia para a zona urbana, a Cidade Grande onde mora o primo
de Júlio, o João. Essa mudança pode ser observada em figuras como o trem, a
estação, as malas de viagem, etc. Todas essas figuras apresentam uma outra
característica são como papéis colados um a um que vão se unindo e mostrando o
que são: primeiro, as montanhas sobrepondo-se a elas, o paiol e a casa da fazenda,
os bonecos, a estação, o trem, a chegada à estação da cidade, a cidade, Cocoricó.
A zona rural aparece figurativizada por montanhas, um verde que vai
ocupando toda a tela, árvores e folhas, o paiol, a casa da fazenda e os bonecos que
lá permanecem na fazenda. Já a cidade é apresentada apenas no fim da vinheta
quando prédios coloridos vão aparecendo. A vinheta com o trem que sai da fazenda
com Júlio, Alípio, Lilica e Zazá. A linha do trem atravessa montanhas, e vai seguindo
em direção ascendente, por ora, simula um looping de uma montanha russa e logo
em seguida volta a subir, subir, subir, figurativizando a verticalidade dos prédios das
cidades grandes, em detrimento da horizontalidade da vida rural, no campo.
Inclusive as bases dessa linha de trem vão se formando gradativa e
ascendentemente. Uma seta de cor vermelha aponta para a direção contrária que o
trem segue, portanto, se o trem está indo em direção à cidade grande, a seta
aponta para a direção da fazenda. Se na narrativa da vinheta de Cocoricó tínhamos o
sujeito Júlio em conjunção com a cotidianidade da fazenda, portanto, com a
natureza, nesta vinheta a natureza continua sendo objeto de valor, assim como a
oposição semântica de base temos SIMILARIDADE vs DIVERSIDADE. O similar está
na natureza do campo, figurativizada pelos morros que aparecem nas primeiras
93
imagens (seria o Pico do Jaraguá em São Paulo ou o Pão de Açúcar no Rio de
Janeiro?), nas palhas que voam, nos ambientes cenográficos da fazenda, já a
diversidade é dada pela cidade, seus prédios, carros, habitantes, ruídos, etc.
FIGURA 7 – A vinheta de abertura de Cocoricó na cidade: os que ficam na fazenda; a estação de trem
de Cocoricolândia; Júlio encara o telespectador; seta aponta na direção contrária a que o trem vai; o
trem que sobe marca a verticalidade que será encontrada na Cidade Grande; os personagens dentro
da cabine do trem novamente encaram o telespectador
As cores da cidade são tonalidades de cinza, até que o universo de Cocoricó
se presentifica pelos actantes que chegam; o verde do campo se torna o colorido da
cidade. Os vagões do trem possuem luzes que piscam conforme os movimentos do
meio de transporte. Essa luz também aparece brilhante no centro da tela, quando
Júlio, Zazá e Alípio são focalizados dentro de um vagão, num ambiente compacto,
fechado (ao contrário dos ambientes abertos figurativizados pela vinheta anterior),
exemplificando uma situação que eles irão viver na cidade grande: os espaços
fechados dos apartamentos. A linha percorrida pelo trem dada na descontinuidade
das curvas é finalizada pelas figuras dos bonecos que caem de paraquedas na
estação (aparece escrito numa placa) da cidade que instaura a verticalidade numa
vista distante e a horizontalidade numa vista próxima, quer dizer, o conhecer é pela
experiência da urbanidade. Eles chegam à estação e encontram com João. Uma
primeira árvore ao fundo da estação traz o verde para a Cidade Grande, os prédios
94
de cinza vão ficando coloridos, formando uma trilha cujo final é a marca do
programa que aparece no término da vinheta, em diagonal levemente ascendente,
por entre os telhados das casas.
O sujeito da transformação na sequência narrativa da vinheta é o trem, que
leva Júlio e alguns animais de Cocoricolândia para a Cidade Grande. O objeto de
valor passa a ser a possibilidade de estar na Cidade Grande, embora com o Cocoricó,
com a natureza. O sujeito Júlio continua em busca da aquisição de competência de
saberes da boa conduta social, mas esses saberes não são mais condizentes apenas
com a cotianidade da fazenda, mas com o cotidiano de uma grande cidade,
portanto, de um ambiente urbano. No episódio de Cocoricó na cidade, aqueles
animais da fazenda que não foram para a cidade, conversam com os que estão lá
pelo laptop; eles dialogam entre si, com as diferenças e semelhanças existentes e
marcadas pela narrativa. Nas narrativas de Cocoricó na cidade ganham espaço as
temáticas: do trânsito, da moradia, dos estádios de futebol, da imigração, da
poluição, entre outras que marcam esse ambiente.
O trem sai de Cocoricolândia ainda de dia com suas luzes já acesas. Indicando
o passar das horas, o dia se transforma em noite, marcada pelo escurecimento da
tela, com tons escuros de azuis contrastados às luzes amarelas do trem. Os actantes
que antes apareciam soltos nas janelas dos vagões, agora estão confinados nos
compartimentos internos do trem, embora a luz amarela continue dentro desse
compartimento na lâmpada que os ilumina. O trem vai subindo e aqueles que
saíram de Cocoricolândia finalmente chegam à Cidade Grande, eles caem na estação
de paraquedas. Esse ato de cair de paraquedas figurativiza a aventura e o
desconhecido que será sair do ambiente rural da fazenda para o ambiente urbano
da cidade grande. O movimento do campo para a cidade é, portanto, sancionado
positivamente.
A casa, o paiol, até mesmo o trem são feitos de madeira, enquanto que, nas
construções da Cidade Grande é destacado outro matérico, os tijolos, as telhas que
constroem os prédios. Os vagões dos trens são verde, azul e rosa, mas na sequência
final da vinheta, há um predomínio das cores azul e rosa, figurativizando os gêneros
95
masculino e feminino que aparecerão nas histórias das narrativas vividas por Júlio e
seus amigos na Cidade Grande.
Outras figuras vão marcar outras diferenças e/ou semelhanças entre as duas
vinhetas. O relógio, ao fundo da estação que também se movimenta sincretiza o
que a música no verbal-sonoro diz: “t| na hora do Cocoricó, t| na hora da turma do
Júlio”. O relógio figurativiza a rotina das crianças, o passar das horas, como o
amanhecer do dia figurativizado na outra vinheta. O relógio da estação que marca
as horas do dia caracteriza o passar do tempo, é como o amanhecer que avisa as
galinhas de que chegou a hora de pôr os ovos, de trabalhar (carregar as letras), e
relaciona-se com o próprio dia a dia dos telespectadores, do tá na hora de assistir
Cocoricó.
Enquanto na vinheta do Cocoricó o ritmo sonoro era mais lento, na do
Cocoricó na cidade o ritmo é dado pela aceleração da melodia e pelo som da
guitarra, instaurando uma temporalidade do presente, do atual. Os movimentos
ascendentes e descendentes do trem dados pelo movimento de câmera para a
direita, mas principalmente nos recursos de fusão das imagens de maneira intensa e
rápida, marca a velocidade acelerada desta vinheta. O ritmo, então, marca a relação
de continuidade entre as tomadas (são mais rápidas com várias fusões) bem como
dos movimentos de câmera de aproximação e afastamento unidos ao sonoro dos
ruídos colocados como fundo ambiente da música (vagões nos trilhos, batidas nas
sinaletas, caindo de paraquedas, buzinas, motores de carro, turbinas de avião)
propõem esteticamente mudanças ao espectador. A melodia da música é
caracterizada por um instrumento de corda – a guitarra - que
intensifica a
velocidade da música, finalizada com o nome do programa “Coocoooricóóó”’, ao
mesmo momento em que pelo visual é mostrado o nome do programa. Tais
disposições levam o enunciatário-criança para o “universo” do Cocoricó, para o
querer assistir o programa Cocoricó, objeto de valor, como realizado na vinheta
anterior. O enunciador narrador que canta a música, não com uma voz, mas em
coro vai colocando para o enunciatário um efeito de sentido de proximidade, dele
como co-presente, com o objetivo de fazê-lo cantar para acompanhar a música.
96
Entretanto, ao mesmo tempo em que o enunciador projeta a “voz” do enunciat|rio
no texto, ele também imperativamente diz “olha, o Cococó t| começando”, numa
convocação por intimidação a fazer uma parada e assistir ao programa.
No nome do programa da vinheta de Cocoricó, a letra “O” figurativiza o ovo,
que aparece em toda a vinheta, em Cocoricó na cidade, a letra “O” é azul, mais
parecida com o planeta Terra. Os actantes que estão dentro da letra também
mudam, enquanto que na primeira vinheta as letras “O” eram ocupadas,
respectivamente, por Alípio, Júlio (ao centro) e Lola. Na vinheta de Cocoricó na
cidade, sai Lola (a galinha que conta as histórias vividas em viagens pelo mundo,
portanto do valor do lúdico) do último “O” e entra Zazá, como sujeito com papel
actancial de adulto (a galinha que figurativiza a autoridade, a mãe de todas as
galinhas) que acompanha os outros sujeitos crianças até a Cidade Grande.
FIGURA 8 – Sequência final da vinheta de Cocoricó na cidade com o nome do programa:
Júlio e sua turma estão na estação da Cidade Grande; depois, a Cidade Grande colorida e o nome do
programa
Numa relação de complementaridade temos a configuração plástica da nova
vinheta com a seguinte oposição semântica do plano do conteúdo: SIMILARIDADE
(não-identidade; o ser humano em suas descobertas e vivências) vs DIVERSIDADE (a
vida numa Cidade Grande), reiterados no plano da expressão por CONTINUIDADE vs
DECONTINUIDADE. Comparando as duas vinhetas de Cocoricó, os actantes
apareciam nos mesmos ambientes cenográficos que seriam utilizados no decorrer
do programa, o campo, o paiol, a maquete da fazenda, já na vinheta de Cocoricó na
cidade, o enunciador opta por fazer uma colagem, como citado anteriormente. Ao
fazer isso, o enunciador já está dizendo ao enunciatário que essa temporada é
97
marcada pela viagem deles a um outro espaço que não o da fazenda, que deve ser
vista como uma descoberta, uma brincadeira, no sentido do brincar de fazer
colagens exercido por qualquer criança. Os actantes não são os bonecos da primeira
vinheta, são pequenos recortes de papéis de Júlio, Zazá, Lilica, Alípio e João que se
movimentam aleatoriamente como um pedaço de papel. Temos a seguir a descrição
dos formantes do plano da expressão desta vinheta:
a) formante cromático: o uso das cores é marcado na Cidade Grande pelo
monocromático e depois pelo cromático, já com a presença de Cocoricó. A linha –
antes, na vinheta anterior, do horizonte, é substituída pela linha do trem que leva os
actantes da fazenda para a cidade, do verde da vegetação para o cinza dos prédios,
que só se transforma em colorido depois que Cocoricó passa. A linha do horizonte
era percebida pela sobreposição das paisagens do campo e da vegetação, já a linha
do trem tem como cor uma tonalidade de marrom, e vai se construindo do campo à
cidade;
b) formante matérico: a mesma impressão de textura presente na vinheta
anterior aparece nesta, que coloca a oposição rugoso vs liso, só que desta vez, a
lisura é trazida pelo campo vs o rugoso dos tijolos, telhados e madeira das
construções;
c) formante eidético: quando ainda está na estação de Cocoricolândia, o trem
mantém-se na mesma linha do horizonte da primeira vinheta, retilínea que marca a
divisão do campo e da cidade. Entretanto, na medida em que o trem vai se
distanciando da fazenda, a linha que segue se transforma em sinuosa, com looping,
curvas e até mesmo vertical, como os prédios da cidade;
d) formante sonoro: apesar de ser a mesma letra da vinheta anterior, pelos
efeitos sonoros ambientes colocados como fundo à canção, aliado ao som
sobressaltado e estridente da guitarra – ao contrário da anterior que eram os
instrumentos de sopro, mais graves – trazem nova significação à música, agora com
ruídos de automóveis, avião, etc, característicos de uma grande cidade.
e) formante topológico: a mesma relação distanciamento/panorâmica vs
aproximação/foco, instaurada na vinheta anterior, é apresentada nesta, os actantes
98
nas janelas dentro das cabines vs os actantes que caem de paraquedas na estação
da cidade; assim como pelos compartimentos interno vs externo. Apesar de que a
dinamicidade – dada às fusões e sobreposições mais aceleradas entre uma cena e
outra – aliado ao ritmo da música - menos brando que a anterior – operam uma
significação mais abstrata, ou seja, não tão icônica como a anterior.
Da análise das duas vinhetas, apreendemos as seguintes relações:
CONTEÚDO
EXPRESSÃO
CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE
Cocoricó
Identidade
vs
Linha do horizonte
Alteridade
Figuras
Cocoricó
Formantes
Identidade
Impressão de
textura
Verde do campo/letras “C” vs azul
do céu/letras “O” (a letra I –
vermelha e amarela é Cocoricó)
Cromático
policromatismo das galinhas,
Júlio, Alípio vs monocromatismo
das cores de Astolfo, do ovo e da
palha
Rugosa do mato/ das nuvens vs
lisa do ovo/ da espuma que os
bonecos são feitos
Matérico
vs
Alteridade
CONTEÚDO
Formas
Circularidade (montanhas, letras,
ovo, actantes) vs retidão da linha
do horizonte (fundo)
Eidético
Canção (melodia e
letra)
Cantado música vs prolongado
das palavras
(começando/turma/Cocoricó)
Ritmo
Sonoro
Distribuição na tela
da TV
Aproximação foco dos actantes
/Distância panorâmica da figura
campo;
Edição contínua; desacelerada
Ritmo
Topológico
EXPRESSÃO
99
CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE
Cocoricó
Similaridade
na
vs
cidade
Diversidade
Linha do trem
Impressão de
textura
na
vs
cidade
Diversidade
A lisura do campo vs o rugoso das
telhas, tijolos, construções
Linha do horizonte (trem na
fazenda) vs Linha do trem com
looping, curvas e vertical
Horizontalidade das retas vs
verticalidade das oblíquas
Formas
Similaridade
Cromático
monocromatismo vs
policromatismo dos prédios (com
Cocoricó)
Figuras
Cocoricó
Verdade da fazenda vs cinza dos
prédios
Formantes
Matérico
Eidético
Canção (melodia e
letra)
Cantado música vs ruídos
ambiente;
som da guitarra
Ritmo
Sonoro
Distribuição na tela
da TV
Actantes nas janelas dentro das
cabines vs actantes caindo de
paraquedas na estação da cidade;
interno (cidade/trem) vs externo
(campo)
Distanciamento/panorâmica vs
aproximação/foco;
Edição descontínua, acelerada
Ritmo
Topológico
As vinhetas de Cocoricó presentificam o tema da identidade do ser do campo
e, ao mesmo tempo, por contrariedade o da alteridade, ou seja, o fazer social no
campo, o estar em descobertas, o viver as fases da vida (infância, adolescência,
adulto). Temos na relação identidade versus alteridade como oposição fundamental
semântica, portanto como contrários, teremos como contradição, alteridade e nãoalteridade;
por
subcontrários,
não-alteridade
e
não-identidade;
por
100
complementaridade, não-alteridade e identidade, assim como não-identidade e
alteridade; por fim, na relação de hierarquia temos como conjunção de nãoalteridade e identidade o campo e do outro lado, o não-identidade e alteridade,
temos a cidade. Percebe-se, pois, que todas essas relações se dão pelo tempo e
espaço escolhido da narrativa, do ser criança, estar na infância, poder brincar, querer
conhecer, e estar no campo e depois passar à cidade. Nessa passagem da natureza
do ser criança no campo para o ser criança na cidade, temos a figurativização dos
gostos e estilos próprios de uma cidade grande. O ser da cidade só é pelo fazer
social no campo. Temos essa relação pela figuratividade do campo presente na
vinheta e nos episódios da nova temporada que remete ao que é dado na relação
com a cultura do campo, ou seja, no fazer sociocultural do campo. Por fim, esse
fazer social leva às descobertas, possibilitadas nos fazeres da cidade, quer dizer, no
fazer sociocultural da cidade, e do próprio desenvolvimento etário dos actantes,
que assim volta ao ser.
2.2 As vinhetas de continuidade e de encerramento
Além das vinhetas de abertura de Cocoricó e Cocoricó na cidade, analisadas
neste capítulo, aparecem ainda nos episódios as vinhetas de passagem de uma cena
a outra, dentro da narrativa do episódio e as vinhetas de encerramento.
As vinhetas de passagem se caracterizam pela concretização de uma
dimensão plástica diferenciada na imagem audiovisual. A partir de uma imagem
estática – respeitando a dinamicidade dos planos e tomadas da linguagem
audiovisual – é colocada a imagem ou do campo ou da cidade, dependendo do
espaço que irá se instaurar a cena seguinte. No episódio “Pôr do sol”, por exemplo,
Oriba e João estão conversando sobre ver o pôr do sol do alto do prédio na cidade
grande e da possibilidade de Oriba poder assistir a esse momento pelo computador,
a imagem de Oriba que está no paiol falando no computador fica congelada, e por
cima dessa imagem vai surgindo a imagem da cidade da vinheta de abertura,
construída e colorida com o nome do programa na parte central posterior. Ao
101
mesmo tempo em que surge essa imagem ela vai se abrindo, como se fosse de
papel e estivesse rasgando e, novamente, vai surgindo outra coisa, desta vez a nova
cena, já na Cidade Grande, com Vitória e Júlio passeando no Beco.
Acreditamos, assim, que essa vinheta situa o telespectador no diferentes
ambientes cenográficos do programa, para que eles possam compreender pelo
audiovisual – assim, pelo que estão vendo e ouvindo. No momento em que a
vinheta é inserida, há uma quebra, ou seja, uma descontinuidade sonora que
instaura essa descontinuidade no tempo e no espaço, entretanto uma continuidade
da narrativa. Ao entender dessa forma, o efeito de sentido é de que os actantes
passaram para outro tempo e outro espaço. No exemplo citado, marca a passagem
de Oriba que está no campo, para Vitória e Júlio que estão na cidade, se dirigindo
para o alto de um prédio para verem o sol se pôr.
Observamos ainda a vinheta de encerramento e a vinheta de identidade da
emissora. Vamos falar sobre a vinheta de encerramento presente em todas as
temporadas que avisa o telespectador de que o programa acabou. A vinheta de
encerramento do Cocoricó e do Cocoricó na cidade são similares às vinhetas de
abertura. Pensando nas similaridades e diferenças entre elas, temos:
 Enquanto a vinheta de abertura é durativa, a vinheta de
encerramento é não-durativa, marcada pela velocidade e aceleração
da música, que se propaga nos cortes secos das tomadas visuais,
sendo de menor duração;
 A música da vinheta de abertura e de encerramento tem a mesma
melodia, no entanto, no fim do programa, as estrofes da letra foram
modificadas. A estrofe da abertura diz: “Patas de cavalo, dança de
galinha, o Júlio chacoalhando e olha Coococó começando/tá na hora
do Cocoricó/ t| na hora da turma do Júlio...” e no final “Cococo
Cocoricó” (repete), j| a letra da música da vinheta de encerramento
diz: “Patas de cavalo, dança de galinha, o Júlio chacoalhando e olha
só o Cocoricó acabando/tá acabando o Cocoricó/ tá na hora da turma
102
parar, parar, parar...” e no final “tchau, tchau, tchau Cocoricó”
(repete).
A categoria da aspectualidade marca a desaceleração (do que vai começar) vs
aceleração (do que já acabou) somada às figuras trazidas pelo conteúdo verbal
começando, tá na hora em oposição acabando, parar, tchau, nos mostra o efeito de
“convite” { criança para usufruir dos momentos com a “turma do Júlio”, de forma
mais calma e; depois um “retorno” à rotina mais acelerada, quando o programa
termina.
2.3 Curtinhas: Esfarrapado e Roto nos apresentam ao Beco
Os episódios da quinta temporada do Cocoricó veiculados em 2009 e em 2010
trouxeram novidades para o destinatário do programa, começando pelo nome, que
como vimos acrescentou o na cidade, dessa forma, já deixando explícito ao público
que o Cocoricó não estava mais no campo, em Cocoricolândia, mas na cidade
grande. Outra novidade, como também já vimos, foram o aparecimento de novos
personagens que moram nessa cidade grande, dentre eles, um rato e um cachorro.
Trata-se, portanto, de mais um fazer crer ao enunciatário dos valores colocados
pelo enunciador deste programa.
Os episódios, nesta temporada, começam por um curto diálogo 43 de
aproximadamente 30 segundos entre esses dois bonecos. Começamos, assim,
pensando nesses trechos inicias dos episódios do programa Cocoricó na cidade pela
figuratividade, ou melhor, como o sentido pode ser dado a partir da apreensão
dessa figuratividade. Como diz Greimas: a figuratividade “é a tela do parecer”, é a
porta de entrada para a significação. E será pela figuratividade proposta pelo
enunciador que estaremos chegando aos efeitos de sentido dados pelo programa.
As figuras são apreendidas pelo plano da expressão e homologadas por figuras do
conteúdo.
43
A análise plástica desse objeto significante se dará pela descrição
Esse diálogo é inserido antes da vinheta de abertura ir ao ar, portanto, trata-se de outro programa
narrativo do episódio do dia.
103
enquanto texto visual, portanto, de suas figuras significantes e verossímeis, no
estabelecimento de contratos de veridicção e de fidúcia entre os sujeitos da
comunicação (OLIVEIRA, 2004, p. 15). Mas também de seus formantes (cromático,
eidético, matérico, topológico, como na análise das vinhetas no item anterior),
enquanto possibilidade de chegarmos aos seus efeitos de sentido, como diz
Landowski àquelas constantes subjacentes articuladas em profundidade ( 2004, p.
103). Oliveira explica ainda que:
Entendemos que o adjetivo “pl|stica” pode abranger o estudo do
plano da expressão das manifestações visuais distintas, quer as
artísticas, quer as midiáticas, quer as do mundo natural.
Considerando que um texto visual, qualquer que esse seja:
arquitetura, escultura, paisagem natural ou pintada, desenhada,
gravada, fotografia, é construído por um arranjo específico de sua
plástica, organizada por mecanismos estruturais particulares de
seu sistema com as suas regras, resultando em uma dada
sintagmatização das unidades mínimas, optamos por denominar
plástica a semiótica que se ocupa da descrição do arranjo do plano
da expressão de todo e qualquer texto visual. (OLIVEIRA, 2004, p.
12).
Os formantes plásticos – matéricos, cromáticos, eidéticos e topológicos –
são unidades do plano da expressão que podem corresponder a uma ou mais
unidades do plano do conteúdo (OLIVEIRA, 2004, p. 120). Greimas (2004, p. 86-88)
diz que a articulação do dispositivo topológico garante a apreens~o das “unidades
mínimas do significante”, enquanto que as cores e as formas (cromático e eidético,
respectivamente) se dão numa apreensão relacional, quer dizer, na função em que
o enunciatário atribui a este ou aquele termo com relação ao demais. A partir dessas
colocações, faremos algumas observações sobre esse trecho do programa Cocoricó
na cidade.
Trata-se de uma conversa entre dois animais antropomórficos, não mais os
animais da fazenda como a galinha e o cavalo, mas animais da cidade, um cachorro
e um rato. Há, inicialmente, uma distinção de cores entre esses dois animais: o
branco do cachorro e o cinza do rato. Essas figuras se encontram dispostas no
104
centro da tela em plano americano - do tronco para cima - enquanto que fazem
fundo a eles, duas figuras grafitadas em um muro44.
Trata-se de uma figura masculina identificada figurativizando o “Calvin” das
histórias em quadrinhos e de uma figura feminina baseada nas chamadas animées45.
Os dois observam a cena protagonizada pelos bonecos através de um olhar dirigido
e atento. Nesta cena, podemos ressaltar a presença de animais e ausência dos seres
humanos, que na verdade aparecem figurativizados pelos carros que passam na rua
onde os animais conversam e nas casas que aparecem também ao fundo da cena,
numa cidade com horizonte, embora térrea. Num primeiro plano além dos
personagens e dos carros que atravessam a cena, vê-se um sinal de trânsito
indicativo para os pedestres que vai do vermelho ao verde, do início ao término da
cena.
Figura 9 – Os actantes do Beco do Cocoricó: as figuras pichadas no muro e
Esfarrapado à esquerda e, Roto à direita
Podemos citar como tema principal da cena o universo adulto e o universo
infantil e as relações entre um e outro. Esse tema perpassa os desenhos pichados
44
Os grafites do Beco do Cocoricó na cidade foram pintados pelos artistas-plásticos Nina Pandolfo e
Finok, a pedido da direção do programa, configura-se como um dos ambientes cenográficos desta
temporada. Nascida em São Paulo, Nina começou a grafitar em 1990 e é uma das pioneiras no Brasil.
“Suas figuras que geralmente representam animais, insetos ou outras formas da natureza, têm um
elemento infantil intencional, que ela usa para salientar a beleza e o valor dos objetos que pinta”
(GANZ, 2008, p. 83). “O enunciado do grafite manifesta através de sua figuratividade os percursos de
manipulação que seu enunciador propõe, e o fazer querer-ser-visto é o tipo de manipulação que
decorre desse texto” (ZUIN, 2003, p. 175). Relacionando ao nosso objeto, apreendemos que a TV
Cultura tem um fazer querer-ver, dotado de significado e valor. A pichação não é dada como
anárquica ou subversiva – pois “estabelece o elo de profunda identidade entre espaço e público”.
(ZUIN, 2003, p. 179-180).
45
Animée é um dos estilos de desenhos animados japoneses. As personagens são caracterizadas
pelos olhos grandes e pelas roupas.
105
no muro, como dito anteriormente; à esquerda, o actante Calvin, um garoto de seis
anos, hiperativo que vive aprontando ao lado do urso Harold. Esse Calvin, no
entanto, apenas figurativiza àquele criado por Bill Paterson; o Calvin do Cocoricó
possui uma pele azul, como dos personagens das Histórias em Quadrinhos que
tratam do mundo dos mutantes ou algo parecido. O cabelo e a fisionomia
transtornada e agitada se assemelham ao Calvin das histórias norte-americanas. A
figura dele está disposta na parte central do muro e as cores que dominam o
desenho é o azul e vermelho. Mesmo azul e vermelho do vestido do outro actante
que se encontra no lado oposto do muro: a figura de um desenho no estilo japonês
animée. Trata-se de uma garota, com cabelos longos e olhos exagerados,
expressivos, em posição inclinada para baixo, com as mãos sobre os joelhos,
ocupando o muro também da metade para baixo. Topologicamente as duas figuras
estão dispostas na mesma altura. Ao mesmo tempo, em que as temáticas do
feminino e do masculino são instaladas pelos actantes, o mundo infantil de Calvin,
da criança e o mundo adolescente, ou melhor, adulto da animée, reiteram o diálogo,
portanto, as figuras da expressão reiteram o conteúdo verbal, dado pelo diálogo do
cachorro e do rato.
O cachorro e o rato conversam nos diferentes curtinhas sobre: ser grande e
criança e/ou pequeno e adulto, lugares de passar férias ou de dormir, o clima
(objetos inanimados) e o medo. Acompanhe os diálogos entre o cachorro que se
chama Esfarrapado e Roto, o rato, é o seguinte:
DIÁLOGO CURTINHA 1
BECO DO COCORICÓ
ESFARRAPADO: O que é que você quer ser quando crescer?
ROTO: Eu já cresci, Esfarrapado.
ESFARRAPADO: Já... mas não parece
ROTO: Ah, eu sou um rato adulto enoorme!
ESFARRAPADO: E eu sou um cachorro criança. Cachorro criança. Pausa.
RATO: E pequenininho. Continua: O sinal abriu e rato atravessa a rua.
ESFARRAPADO: Quando eu crescer eu quero ficar pequenininho como você, tá? Dá risada,
numa posição de frente para a câmera.
DIÁLOGO CURTINHA 2
Opa, fechou! (Os dois falam ao mesmo tempo)
106
ESFARRAPADO: Roto, a gente vai passar as férias na praia ou na montanha?
ROTO: Nenhum dos dois.
ESFARRAPADO: Ah, é, então onde é que a gente vai passar as férias.
ROTO: do outro lado da rua. Opa, abriu.
ESFARRAPADO: ai, ai, ai,. Todo ano a mesma coisa. Au, au, au.
DIÁLOGO CURTINHA 3
Opa, fechou! (Os dois falam ao mesmo tempo).
ROTO: ai, que frio.
ESFARRAPADO: você acha é? Tá tão gostoso hoje.
ROTO: gostoso porque você tem esse cobertor de pelos.
ESFARRAPADO: uhh?
ROTO: tá quentinho aí, tá.
ESFARRAPADO: Aqui? Tá gostoso. (O rato se aninha no cachorro).
ROTO: gostoooso.
ESFARRAPADO: abriu.
ROTO: quem será que teve a ideia de colocar pernas no meu cobertor? Ou, ou volta aqui.
DIÁLOGO CURTINHA 4
Opa, fechou! (Os dois falam ao mesmo tempo).
ESFARRAPADO: Roto eu sou um vira-lata e você?
ROTO: um rato, ué.
ESFARRAPADO: um rato vira-lata?
ROTO: claro que não.
ESFARRAPADO: ué mas você dorme numa lata.
ROTO: mas a minha lata não vira.
ESFARRAPADO: uh, faz sentido. Já sei, você é um rato abre-latas. Você dorme numa lata e
tem que abri-la todos os dias.
ROTO: abriu.
ESFARRAPADO: a lata?
ROTO: não, o sinal.
DIÁLOGO CURTINHA 5
Opa, fechou! (Os dois falam ao mesmo tempo).
ESFARRAPADO: Roto você tem medo de alguma coisa?
ROTO: eu, de nada. Ãnh.(treme) Eu quero dizer uma coisa. Eu tenho medo sim eu tenho
medo de uma coisa que eu não abro pra ninguém.
ESFARRAPADO: eu já sei. Você tem medo de trovão.
ROTO: não, não. Eu tenho medo que as pessoas saibam que eu tenho medo de trovão.
ESFARRAPADO: abriu.
ROTO: eu me abri mesmo com você.
107
ESFARRAPADO: não. O sinal.
O que seria então ser criança ou ser adulto no diálogo 1? O parecer e o ser
podem ser citados como a dêixis desta cena. O cachorro parece adulto mas é
criança e, o rato parece criança, mas é adulto. Qual a diferença entre eles? Trata-se
do parecer fisicamente, do parecer grande da garota animée que ainda é criança, ou
do parecer criança Calvin que possui comportamentos e ações de um adulto?
Ao mesmo tempo, a temática do adulto vs criança está acompanhada da
temática secundária do trânsito, figurativizada pelos carros que passam pela rua e
pela sinaleira para pedestre. Uma figura do mundo natural ligada à modalidade de
ordem prescritiva (do dever), do dever respeitar os sinais de trânsito, regras que
existem para os motoristas (adultos) e para os pedestres (crianças e adultos) e que,
portanto, novamente, remete à temática principal da cena.
Tentando refazer o percurso de apreensão do sentido, partimos para o nível
narrativo. Se primeiro, começamos a entender nosso corpus, a partir do plano da
expressão e das figuras que nele encontramos. Cabe-nos, agora, perceber as
relações entre essas figuras identificadas no plano da expressão com os sujeitos
instalados por um enunciador para o fazer sentido deste corpus. Nossa primeira
preocupação foi identificar a relação entre os actantes: o sujeito e o objeto. Barros
(2002, p. 17) diz que a relação que define os actantes; é essa relação transitiva entre
sujeito e objeto que lhes dá existência, ou seja, o sujeito é o actante que se relaciona
transitivamente com o objeto, o objeto aquele que mantém laços com o sujeito.
Havendo duas relações possíveis: a junção e a transformação. Na organização
narrativa em que existe uma relação de junção entre o sujeito e o objeto de valor,
essa relação é chamada de enunciado de estado pode ser assim, de dois modos, a
conjunção quando o sujeito está conjunto com o objeto de valor, e de disjunção,
quando ele está disjunto. A outra relação possível é a transformação, chamada de
enunciado de fazer, quando há uma transformação da relação de junção. A
organizaç~o narrativa se d|, assim, a partir de uma “sucess~o de estados e
transformações”, como nos diz Barros (2002, p. 20), definindo-se como um
108
programa narrativo. A cena entre o cachorro e o rato nos mostra os programas
narrativos a seguir:
a) O rato é adulto (o sujeito do fazer é o tempo; a transformação é o de
ser grande; o sujeito de estado é o rato);
b) O rato é pequeno (o sujeito do fazer é a espécie animal; a
transformação é o de não crescer; o sujeito de estado é o rato);
c) O cachorro é grande (o sujeito do fazer é a espécie animal; a
transformação é o de crescer; o sujeito de estado é o cachorro);
d) O cachorro recebe do rato a experiência e atenção, adquiridos pela
vida adulta (o sujeito do fazer é o rato; a transformação é a atenção,
diálogo; o sujeito de estado é o cachorro);
e) O rato atravessa a rua (o sujeito do fazer é o semáforo; a
transformação é ficar na cor verde; o sujeito de estado é o rato).
A partir desses programas narrativos, podemos dizer que:
1) Enquanto o cachorro está em busca da aquisição de uma competência
que não tem que é a experiência da idade, o ser adulto; o rato já se
considera adulto e não quer crescer, por que segundo ele é já enorme;
2) Para poder ser adulto o cachorro tem que estar conjunto com o
objeto de valor idade e, não apenas com o objeto de valor tamanho, o
inverso para o rato também é válido;
3) A performance do sujeito rato é convencer o cachorro de que é
adulto e enorme;
4) O sujeito rato faz fazer o cachorro, manipulando-o a achar que é
criança e pequeno;
5) A sanção é negativa, já que o cachorro sabe que é grande e criança, e
que o rato é pequeno e adulto.
109
A cena possui um narrador implícito, o ator da enunciação, ou melhor, o
próprio enunciador que delega a voz aos interlocutários, os sujeitos Esfarrapado e
Roto. Considerando Esfarrapado, o sujeito 1 e Roto, o sujeito 2, o objeto de valor
seria o ser adulto. Esfarrapado pode ter o tamanho de um adulto, mas é criança.
Roto, por sua vez, pode ser adulto, mas tem o tamanho de criança. O rato,
ironicamente, não aceita o seu papel de adulto pequeno no tamanho e, faz fazer o
cachorro ser pequeno, através de sua fala e da gestualidade
das mãos.
“Pequenininho”, diz Roto para Esfarrapado. J| o cachorro pode ser adulto, a
competência dele virá com o tempo, com o passar dos anos. Entretanto, o tamanho
não é objeto de valor para o cachorro, o objeto é o ser adulto e não ser grande ou
pequeno. O rato manipula o cachorro para o saber ser criança e querer ser
pequeno, pela provocação irônica e ele responde que sabe que não é. A sanção é,
portanto, positiva. Entretanto, o cachorro diz que quer ser adulto e pequeno,
configurando aí o contrato entre o destinador - que sabe e pode fazer crer - e o
destinatário do valor de ser criança, mesmo sendo adulto.
Se no nível narrativo, o enunciador nos coloca através do diálogo dos
personagens no ser adulto ou ser criança, no nível discursivo, mesmo já tendo
apreendido as figuras plásticas, o conteúdo também nos apresenta pistas. Podemos
começar pelas pistas dadas pelos sujeitos, no tempo e no espaço da enunciação. Os
sujeitos da enunciação são aqueles que identificamos na plástica da cena, mas são
ainda, a própria linguagem da cena videográfica e os planos em que os bonecos
foram enquadrados. O enquadramento da cena é fixo, não há movimentações de
câmera, nem distanciamento ou aproximações, mesmo por que os personagens
encontram-se parados aguardando o sinal de trânsito ficar verde. Os outros
actantes compõem apenas o fundo para o desenvolvimento da cena principal entre
o cachorro e o rato. Essa opção do enunciador nos mostra que a própria figura dos
personagens e, do diálogo entre eles, foi privilegiada em detrimento das outras
categorias de espaço e tempo.
Como nos é apresentada a espacialidade da cena? Pelas figuras que
compõem aquele espaço onde a cena foi feita. Vemos, portanto, que a cena foi
110
realizada num beco com muros pintados, localizado num bairro arborizado, com
casas térreas46 onde há uma rua movimentada com trânsito intenso de carros, com
necessidade de um semáforo para os pedestres poderem atravessar a rua. Trata-se
de um beco reconhecido pelo enunciatário como um lugar da cidade, com ruas,
muros, casas, árvores, etc. E a temporalidade? O tempo da cena é o nosso tempo,
atual, das histórias em quadrinhos, dos desenhos japoneses, dos animais de
estimação, ou dos ratos vindos com os lixos que sujam as cidades. O enunciador nos
coloca próximo da cena, um eu-aqui-agora dos dias atuais, num discurso com efeito
de realidade, onde nas grandes cidades, sobraram apenas os becos e os
condomínios fechados para as crianças brincarem, poderem ser crianças, mas
também aprenderem a ser adultos, respeitando as regras e normas da sociedade.
Nesta relação podemos dizer que está configurado o contrato comunicativo, de um
lado o enunciador, que enuncia o dizer veridictório, enquanto que o enunciatário
precisa encontrar e interpretar essas marcas deixadas, crendo ou não nesse dizer.
O conteúdo fundamental da cena em questão encontra-se fundado na
valorização do ser criança, em detrimento do ser adulto. Primeiro, na cena de
fundo, o olhar do enunciatário é direcionado para Calvin ao invés da garota animée,
é ele quem se encontra na parte de cima da tela em posição ascendente ao
contrário dela que como dito encontra-se inclinada para baixo. Valoriza-se então
quem é a criança, portanto, Calvin. O cachorro que é criança também está no
mesmo lado da tela que Calvin, enquanto o rato adulto fica do mesmo lado que a
garota animéé. O contraste das cores também já diz: de um lado o branco do
cachorro, a cor que absorve que ainda pode conter as outras cores, assim como a
criança apta pelo aprendizado; do outro, o cinza do rato, quase um preto, a mistura
de todas as cores, um adulto experiente. Para representar as estruturas
elementares, poderíamos afirmar que a cena começa pela afirmação da experiência
(Já cresci, sou adulto, sou enorme) para em seguida negá-la, (sou criança, pequeno)
e afirmar o aprendizado (quando crescer quero ficar pequenininho):
46
Entretanto, essa espacialidade é dada pela cena entre os animais, por que na abertura do DVD –
foto tirada de uma cena do episódio Cidade Grande – mostra uma foto dos personagens vendo o
beco e ele é apresentado de forma diferente. A cidade não é térrea, horizontal, mas sim, vertical.
111
Experiência
não-aprendizado
aprendizado
A partir da análise dos cinco trechos iniciais dos episódios, temos a criança e
o adulto colocado em diferentes temáticas: crianças e adultos com sonhos
realizáveis ou não; diferenças entre as raças, reafirmando a não superioridade, mas
sim a possibilidade de ajuda entre elas; o não domínio do significado das palavras
pelas crianças em idade pré-escolar, que confundem o significado denotativo das
palavras com os diferentes significados conotados; e, a confidência de um segredo
contado pelo personagem Roto a Esfarrapado que como uma criança é indiferente
ao descontentamento do rato.
Assim, identificamos a isotopia temática do mundo infantil vs mundo adulto,
marcada pelas figuras do rato grande vs cachorro pequeno (como falado antes),
férias sonhadas (como descanso) vs férias possíveis, raças diferentes (ter ou não
pelos) vs possibilidade de ajuda, significado das palavras vs duplo significado,
confidência vs indiferença. Essas figuras foram tematizadas diferentemente como:
1) o rato que quer ser grande; 2) o rato que tira férias todo o ano no mesmo lugar,
do outro lado da rua; 3) a diferença entre as raças, tendo ou não pelos, mas que
podem se ajudar; 4) as palavras que tem um e outro significado; e por fim, 5) a
confidência do rato e a indiferença do cachorro.
Como categoria semântica fundamental desses trechos iniciais temos:
IDENTIDADE vs ALTERIDADE. A afirmação da identidade de uma criança, do ser
criança e o outro, seria o adulto e a vida diferente do ser adulto. Essa categoria
também ser| encontrada no episódio “Pôr do sol” e do clipe musical.
2.4. O episódio “Pôr do sol” e as questões do sincretismo
Na medida em que avançamos nas análises das vinhetas e dos trechos iniciais
dos episódios pelo percurso gerativo de sentido foi se intensificando a necessidade
de pensarmos em Cocoricó como um programa de televisão que é e como objeto
112
sincrético. Embora já tenhamos nos referido as questões do sincretismo de
linguagens nas primeiras análises da dimensão plástica do programa. Nas análises
das vinhetas e, principalmente na análise do plano da expressão dos curtas, o
sincretismo de linguagens nos foi sendo, cada vez mais, mostrado e presentificado
pelo enunciador destinador do programa. O enunciador de Cocoricó, nos faz ver
pela visualidade (movimentação, caracterização e figurino) dos bonecos e cenário,
como a história é contada por meio dos movimentos, planos e enquadramentos de
câmera; e pela sonoridade, por meio dos ruídos, falas e músicas. Todos esses
elementos articulados irão constituir a significação.
Seguindo Hjelmslev, a função semiótica é, em si mesma, uma solidariedade:
expressão e conteúdo são solidários e um pressupõe necessariamente o outro. Diz
o autor que “uma express~o só é express~o porque é a expressão de um conteúdo,
e um conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma express~o” (1975, p. 53).
Floch (2001, p. 9) define o sentido como resultante desses dois planos: o plano da
expressão e o plano do conteúdo. Ele explica que:
O plano da expressão (grifos do autor) é o plano onde as qualidades
sensíveis que possui uma linguagem para se manifestar são
selecionadas e articuladas entre elas por variações diferenciais. O
plano do conteúdo é o plano onde a significação nasce das
variações diferenciais graças as quais cada cultura, para pensar o
mundo, ordena e encadeia ideias e discurso. (FLOCH, 2001, p. 9).
No Dicionário de semiótica (Greimas & Courtès, 2008, p. 467) encontramos a
definição para semióticas sincréticas como àquelas que acionam várias linguagens
de manifestação; àquelas que associam o texto e a imagem, apontando a existência
de correspondências formais mais complexas que agem não só entre um plano e
outro de uma mesma linguagem, mas também entre os respectivos de duas
linguagens em aç~o “entre a organizaç~o do significante visual e organizaç~o dos
significados assumidos na dimens~o linguística” (IDEM), vinculados assim “{
problemática dos sistemas semi-simbólicos” (LANDOWSKI, 1992, p. 146). No
Dicionário de semiótica 2, Jean Marie-Floch define que:
113
[...] as semióticas sincréticas (no sentido de semióticas-objeto, isto
é, das grandezas das manifestações que são dadas ao sentido) são
caracterizadas pela organização do texto em várias linguagens de
manifestação [...] dizemos que as semióticas sincréticas
constituem seu plano de expressão – com os elementos relevantes
de muitas semióticas heterogêneas. Afirma-se, assim, a
necessidade – e a possibilidade – de abordar esses objetos como
um todo de significação e, de recorrer, num primeiro momento, à
análise de seu plano do conteúdo [...]. (p. 217-218).
Nos textos sincréticos, as diferentes substâncias da expressão, como já
falamos, vão constituir esse todo de significação, recorrendo para isso, a uma
pluralidade de linguagens de manifestação para se constituir enquanto semiose. Ou
seja, como operação que, ao instaurar uma relação de pressuposição recíproca
entre a forma da expressão e a do conteúdo, ou entre o significante e o significado
(Saussure) produz signos47, a reunião de um plano e outro que permite explicar a
existência do discurso provido de sentido. Oliveira afirma que:
Os formantes (grifos do autor), unidades aquém dos signos,
reúnem-se pela sua atuação sintagmática em um número de figuras
da expressão: unidades oriundas das combinações de formantes
que ainda são não-signos. Por sua vez, as figuras da expressão são
reunidas pelo modo articulatório de seu agir, que reúne as figuras
em categoria elementar do plano da expressão. Num plano do
conteúdo, cada uma das figuras que formam a categoria da
expressão corresponde isomorficamente a um conjunto igual de
figuras do conteúdo que se reunido na categoria do conteúdo. Uma
rede relacional rege, pois, a totalidade de sentido, mantida pela
relação de semiose entre o que é denominado por L. Hjelmslev de
plano da expressão e plano do conteúdo, no desenvolvimento que
o teórico empreendeu da relação entre significante e significado
postulada por Ferdinand Saussure. (OLIVEIRA, 2005, p. 112).
Para entender nosso objeto enquanto sincrético será necessário, então,
identificar nele “o ir e o vir entre express~o e conteúdo” (OLIVEIRA, 2009, p. 80)
como compreensão dos efeitos de sentido produzidos por ele por relações
convencionais ou arbitrárias. As relações convencionais que “seguem convenções
no interior do grupo social, sendo aprendidas e repertoriadas” s~o as simbólicas; as
relações arbitr|rias “processadas em cada uso específico do arranjo textual” s~o,
47
Verbetes semiose e conteúdo do Dicionário de Semiótica (2008, p. 448 e p. 95, respectivamente).
114
portanto, as semi-simbólicas (OLIVEIRA, 2005, p. 112). Para Floch (2001, p. 28), ainda
“na esteira de L. Hjelmslev”, devem ser distinguidos os sistemas simbólicos, dos
semióticos e de um terceiro, o semi-simbólico. O autor explica que os sistemas
simbólicos são as linguagens cujos dois planos – conteúdo e expressão - estão em
conformidade total (por exemplo, o semáforo). Já os sistemas semióticos são as
linguagens nos quais os planos do conteúdo e da expressão não estão em
conformidade e devem ser distinguidos e estudados separadamente (por exemplo,
as línguas naturais e os sistemas visuais). Como terceiro sistema, o autor define o
semi-simbólico como “a conformidade n~o entre os elementos isolados dos dois
planos, mas entre categorias da express~o e categorias do conteúdo”, como por
exemplo, na relação entre a categoria visual espacial direita e esquerda nos painéis
medievais que representam o Julgamento Final, uma categoria semântica
recompensa vs punição (FLOCH , 2001, p. 29).
Assim, os diferentes elementos de uma ou de mais de uma linguagem se
articulam nas figuras da expressão e reiteradas vão definir as categorias da
expressão, que por sua vez serão homologadas às categorias do conteúdo. Medola
explica que não basta simplesmente entender express~o como ‘matéria’ para
determinar se uma semiótica é ou n~o sincrética, “e sim a subst}ncia assumida pela
forma semiótica com vistas à significação, ou seja, enquanto matéria recortada pela
forma” (2003, p. 486). Se estamos tratando de um programa audiovisual, as
linguagens sonoras e visuais estão intrinsecamente condicionadas e articuladas ao
seu todo de significação, pela totalidade.
Considerando que a totalidade do sentido de um objeto sincrético
é processada pelo arranjo global de formantes de distintos
sistemas, assim como de suas regras de distribuição e ordenação,
assumimos que essa integração caracteriza-se por procedimentos
de sincretização. Somos levados a tratar esse tipo de constituição
sincrética do plano da expressão pelo agir relacional integrador de
suas partes em uma só totalidade, uma vez que também é assim
que a sua apreensão sensível é processada. (OLIVEIRA, 2009, p.
80).
115
Consideramos como pressuposto que o programa de televisão é um objeto
sincrético que diz respeito “a escolhas de um sujeito enunciador, direcionado a
mostrar ao enunciatário, por meio de efeitos de sentido, o plano do conteúdo”
(OLIVEIRA, 2005, p. 111). Trata-se de uma “totalidade complexa articulada e n~o
apenas somatória de partes por processos de fus~o” (OLIVEIRA, 2009, p. 84). O
sincretismo se dará na atuação particular de cada elemento nesta totalidade
partitiva, por meio da neutralização. Oliveira (2009, p. 81) define neutralizar como
suspender, graduar, “as distinções entre os traços para que atuem juntos quer na
composição dos formantes de mais de um sistema, quer no arranjo da reunião
destes pelos mecanismos e regras de ordenaç~o dos v|rios sistemas”. A
neutralização opera “espécies de suspensão das diferenças distintivas na atuação
dos mecanismos” que por essas diferenças graduam “as distinções entre os termos
em coeficientes de maior ou menor atenuação” (2009, p. 85), operando assim, os
diferentes tipos de procedimentos de sincretização:
1) Por união: dos traços intersistêmicos, em que estes operam em
reciprocidade por meio da atuação em sequência de
encadeamentos das ordens sensoriais; um após outro, os
sentidos se enlaçam em cadeias completando-se um pelo
outro;
2) Por separação: dos traços intersistêmicos, quando há uma
atuação dos sentidos nas ocorrências em paralelismo,
justaposições; os sentidos vão agir por rupturas marcadas
entre um e outro, em relação multilateral; no processamento
das apreensões, um sentido passa a agir com o outro em copresença
e
simultaneidade,
montando
relações
multissensoriais par a par, traço a traço, que balanceiam a
operação coordenativa articulada em que há um sentido mas
também outro;
3) Por contração: a atuação de uma ordem vai se sobrepor a uma
outra, formando um mecanismo de condensação das ordens
que são encaixadas gerando um adensamento sintético que
atua associativamente por sinestesias;
4) Por difusão: ocorre uma múltipla convocação das ordens
sensoriais que, em co-presença, operam a pluralidade de traços
significantes, uma ordem se estende em outra e se alarga em
ecos,
reverberações
de
traços
múltiplos
numa
polissesensorialidade. (Oliveira, 2009, p. 95).
116
Por meio desses procedimentos de sincretização é possível pensar o estudo
do efeito de sentido de Cocoricó, pois a significação define-se pela articulação entre
os sistemas áudio e visual, “seus processamentos expressivos” em articulações
intra e intersistêmicas, em que o resultado advém certamente desse processar,
“caracterizado por mecanismos de reunião das partes heterogêneas em um
totalidade significante” (OLIVEIRA, 2009, p. 81). Analisar o sincretismo no
programa, então, parte da consideração desses quatro mecanismos postulados por
Oliveira.
O episódio “Pôr do sol” nos possibilitou refletir sobre as relações entre as
linguagens e enquanto do sincretismo. Nesse episódio, da temporada 2009/2010,
Júlio e João estão à procura de uma atividade para fazer: querem brincar, tentam
mini game, dominó, leitura, jogo de futebol até conhecerem a amiga Vitória que lhes
convida para assistir o pôr do sol do alto de um prédio na Cidade Grande. Júlio conta
a índia Oriba (que está na fazenda) por meio do computador que vai ver o pôr de sol
com a nova amiga e também por meio dele, a índia assiste ao pôr do sol da cidade.
Os amigos de Cocoricolândia chegam à conclusão que o fato de estarem juntos, faz
o pôr do sol do campo ser melhor que o da cidade. Antes das sequências, pensemos
sobre a linguagem audiovisual. Medola (2000, p. 202) acredita que existem os
sistemas semióticos na visualidade da televisão (ou sistemas visuais que
englobariam a imagética, o verbal-escrito, o gestual, a proxêmica, a moda) e os
sistemas semióticos na sonoridade da televisão (ou sistemas sonoros em que são
postos em significação o verbal oral, o musical e os ruídos). Utilizando as definições
de Greimas, Medola classifica as linguagens da televisão, não mais enquanto
sistemas, sobretudo enquanto termos
linguístico, paralinguístico e não-
linguístico48. Sabemos, no entanto, que desde a categorização feita por Medola, a
teoria semiótica sincrética vem desenvolvendo cada vez mais novos estudos que
48
No Dicion|rio de Semiótica, Greimas traz as definições: “o termo paralinguístico representa um”
termo estritamente linguístico que, ao mesmo tempo em que reconhece a existência de outras
práticas semióticas, considera-as secundárias, ou acessórias (2008, p. 360); as estruturas não
linguísticas s~o, de acordo com o autor, “índices dispersos, n~o estrutur|veis, que remetem a outra
coisa que n~o a língua considerada: a uma linguagem de conotaç~o social” (2008, p.481).
117
englobariam além dessas categorias e linguagens, os procedimentos pelos quais
essas linguagens fazem aparecer o sentido (no audiovisual). Essas categorias, assim,
serão necessárias em nossa análise para pensarmos em como elas fazem aparecer o
sentido, nas homologações as quais se relacionam (ver Figura 10) .
Figura 10 – A TV e o sincretismo: os sistemas semióticos na televisão propostos por MEDOLA e os
procedimentos de sincretização propostos por OLIVEIRA
Essa classificação nos diz que a forma única do texto audiovisual é dada pela
linguagem audiovisual. Isso quer dizer que é a linguagem audiovisual que:
[...] abriga, que possibilita a formatação de todos os modos de
articulação das substâncias visual e sonora que virão a constituir as
diferentes linguagens. Vejamos: na substância visual é a
organização do sistema num eixo sintagmático onde podemos
identificar o recorte da edição que associa planos, movimentos,
ângulos de câmera com seus efeitos ópticos, eletrônicos,
mecânicos, digitais. Associação realizada a partir da seleção desses
mesmos elementos de linguagem, sempre associados à substância
sonora, invariavelmente “enformada” na linguagem verbal sonora,
nos sons ambientes, nos ruídos ou mesmo sob forma de silêncio.
(MEDOLA, 2003, p. 486-487).
Entretanto, a partir do objeto estudado entendemos que a forma do texto
audiovisual é dada para além dessas substâncias pelo sincretizar delas. Essa
linguagem audiovisual, então, possibilita a articulação entre essas duas substâncias.
118
Quando estamos falando em substância visual, significa falar da unidade básica
dessa linguagem que é a tomada. É a partir da tomada que as sequências de um
programa de televisão vão sendo construídas, uma após a outra, não pela somatória
de suas partes isoladas, mas pelo todo unificado. “O que é uma tomada? É o que
aparece na tela da TV num dado instante [...] é o que é visto no vídeo desde o
momento em que uma câmera seja posta no ar, até que seja substituída por outra”
(STASHEFF, 1978, p. 18).
O autor classifica as tomadas mais usadas por seis modos diferentes: (1)
campo de visão; (2) área do objeto visível; (3) número de sujeitos incluídos; (4)
ângulo de câmera; (5) movimento de câmera; (6) objetivo ou função da tomada.
Estaremos considerando na análise principalmente os modos 1, 2, 4 e 5. No
campo de visão, o principal objetivo do plano geral (PG) é familiarizar o espectador
com a aparência global do sujeito ou da cena e com as suas diversas partes; o closeup busca criar o intimismo e levar o telespectador a ver claramente o que é
relevante, por isso mesmo cria um efeito de sentido de subjetividade tanto pelo que
está sendo mostrado quanto pelo que não está. Já o termo grande close-up ou
superdetalhe é usado para descrever uma tomada que inclua uma área ainda mais
limitada do que a do close-up. Na televisão, é comum combinar o close-up e o plano
geral, quando uma pessoa está próxima à câmera, enquanto uma outra é vista mais
ao fundo, a uma certa distância. Esse tipo de enquadramento ou tomada permite
uma composição interessante, pois há profundidade na cena e as figuras das
pessoas estão em tamanhos e alturas diferentes (STASHEFF, 1978, p. 25-26).
Se estamos falando na área do que é visível significa que estamos
identificando uma tomada em termos da figura enquadrada: a tomada de corpo
inteiro é o plano geral; a tomada pelo joelho é o plano Americano; a tomada pelo
colo é o plano médio aberto; a tomada pela cintura é plano médio; a tomada pelo
peito é o plano médio fechado; a tomada pela cabeça é o médio close-up; e por fim,
a tomada só do rosto é o close up.
A tomada considerando o ângulo de câmera é dada quando a câmera
focaliza de cima para baixo, conhecida como plongée, ou o inverso quando a
119
imagem mostra um olhar de baixo para cima, chamada de contra-plongée. Já o
movimento de câmera, podemos classificá-lo em: panorâmica ou movimento
apenas da câmera em horizontal sobre seu pedestal, seja para a esquerda ou para a
direita; dolly que é o movimento total da câmera em direção ao sujeito focalizado
ou afastando-se dele; travelling cujo movimento da câmera é completo e em
qualquer direção que não seja de aproximação ou afastamento em relação ao
objeto de cena, significa que a tomada é feita com um “passeio” de c}mera; e zoom
se refere mais comumente ao efeito criado pela lente zoom, que permite a variação
da distância focal, quer dizer a distância entre o centro óptico da lente e a face
frontal de tubo de imagem, determinando o ângulo de visão (STASHEFF, 1978, p. 3436).
As tomadas são, por assim, dizer como unidades mínimas da televisão
fundadas no movimento. De acordo com Férres (1996, p. 16) “o movimento é,
então, um dos grandes atrativos da televisão como recurso para a captação da
atenção e como elemento gratificador para mantê-la”. O autor explica ainda que
esse movimento diz respeito tanto ao movimento dos elementos dentro da tela
como um movimento da câmara ou à aquele que provém da mudança constante de
cenas por meio da montagem. Isso quer dizer que o movimento e as tomadas que
são feitas a partir dele pressupõe o sentido que a cena terá e a relação que se dará
da cena com o telespectador. Agora, ciente disso, vejamos às sequências a serem
analisadas:
Sequência 1:
A primeira tomada mostra uma pirâmide de latas de alumínio caindo do alto
de uma prateleira. Outros brinquedos – como bolas, carrinhos, blocos de montar estão espalhados nos móveis da sala de estar do apartamento de João e é mostrado
por um travelling da câmera. João mostra-se entediado com as brincadeiras
disponíveis enquanto Júlio tenta não ficar também. O diálogo inicial ressalta a
temática da leitura enquanto uma brincadeira infantil, como ler clássicos da
literatura inglesa, como afirma Júlio: “Os três mosqueteiros, A ilha do tesouro, As
120
viagens de Gulliver49. A câmera procura quem está falando pela casa, ao mesmo
tempo em que apresenta ao enunciatário o espaço da narrativa: o apartamento de
João. No mesmo momento em que Júlio grita gol, a câmera o “acha” em segundo
plano e mostra a insatisfação e impaciência de João que jogava bola mas diz ter
enjoado da brincadeira. Quando Júlio olha para a c}mera e diz “só se....”, uma
música instrumental cria uma certa tensão ou suspensão no tempo da narrativa que
logo acaba em uma sobreposição de duas tomadas, onde a primeira desaparece
suave ou rapidamente à medida em que vai aparecendo a segunda, com uma ligeira
descontinuidade de tempo ou lugar. (STASHEFF, 1978, p. 51).
DIÁLOGO
SALA DO APARTAMENTO DO JOÃO
Júlio: Vamos, vamos, pela esquerda. Vai, chuta, chuta. Ai, caramba. Não, Agora, não.
Ah, ah, roubei a bola, muito bem indo pelo ataque. Preparando, atenção, atenção,
eu vou chutar. Chutou... gooooollll! [panorâmica na sala/Júlio fala, mas aparece
apenas no momento da comemoração]
João: quer saber enjoei dessa brincadeira. [plano geral+médio close up/insatisfação]
Júlio: ô, João, puxa, puxa, que puxa João. Você não quer mais brincar de caminhão,
você não quer mais brincar de dominó. Ah! Assim não dá, né, João. [plano médio
/reclama]
João: e sabe, porque eu não quero mais brincar de caminhão, nem dominó, por que
você só quer jogar mini game. [plano médio/gesticula]
Júlio: hã! Só se... [plano médio/suspense]
Júlio: ah! Ah! Puxa, puxa, que puxa, João. Olha só que legal, João: esse aqui eu já li
sete vezes, esse daqui eu já li cinco vezes, esse daqui eu só li três vezes, João. E
você? [médio close up/está em frente a uma pilha de revistas e segura as que está
contando]
João: ah! Não quero brincar de contar quantas vezes eu já li um livro, né, Júlio. É
chato! [plano geral/mão no queixo/tédio]
Júlio: ah! João. Chato não é a brincadeira. Chato é não ter o que fazer.
João: ah! Tá bom. Tá bom. Já li, já li, já li e já li. Acho que também já li isso muitas
vezes. [resolve contar e vai contando uma a uma as revistas da pilha]
Júlio: puxa, puxa, que puxa, João. Tem certeza que todos os seus livros estão aqui?
[plano geral]
João: você pegou aqueles que estavam no baú?
Júlio: aquele baú lá no quarto da sua mãe?
49
Os livros citados no diálogo entre os actantes são, na verdade, revistas em quadrinhos da Turma
da Mônica, de Maurício de Sousa, mostradas pela linguagem visual.
121
João: isso, isso. Está cheio de livros lá. [excitação]
Júlio: eu peguei sim. Estão todos aqui, ó: aqui tem deixe-me ver “Os três
mosqueteiros”, “A ilha do Tesouro”, “As viagens de Gulliver”. Eu j| li todos e você
João?
João: também.
(vinheta de passagem)
Júlio: ah! Puxa, puxa, que puxa. O paiol continua vazio. [plano médio/mão no queixo]
João: eles estão desconectados, Júlio. [respira fundo] E nós dois sem nada pra fazer.
Júlio: bem que alguém podia aparecer por essa porta e falar assim, né... [plano
geral/aponta na direção da porta]
Vitória: pessoal, pessoal, vamos bater uma bolinha. [abrindo a porta do apartamento
de João]
Júlio: demorou, demorou.
João: ô, demorou.
Sequência 2:
Enquanto Roto e Esfarrapado narram, Júlio, João e Vitória chutam a bola no
gol numa partida de futebol. João consegue marcar os dois gols em Vitória que é a
goleira, embora não tenha tanta atenção e chega até a lixar as unhas. Júlio, por
outro lado, não acerta a cobrança e elogia o fato de Vitória jogar bem futebol.
Vitória fala sobre a tarde e convida Júlio e João para assistirem ao pôr do sol do alto
de um prédio.
DIÁLOGO
“BECO DO COCORICÓ”
Esfarrapado: e começa a disputa de pênaltis e é João quem vai bater primeiro. A
goleira Vitória parece tranquila. Atenção, João corre, vai bater. E é goooollll! [plano
geral/mesma tomada de câmera, aparece à direita os pés que chutam a bola]
Júlio: puxa, Vitória. Que salto lindo. [plano médio]
João: [risos] lindo foi meu golaço, Júlio [eufórico]. A goleira aqui nem viu a cor da
bola. [risos]
Rato: olha só a cara de pau dessa goleira parece que nem dá bola pra bola.
Garotinha, ô garotinha você tem que agarrar a bola. [plano geral]
Vitória: Ah! [plano médio/olha na direção do rato e reclama]
Esfarrapado: [rosna] Roto, deixe-me narrar o jogo. Bola na marca, Júlio se prepara
pra cobrança e a Vitória está ligada no lance. Lá vai o Júlio, bateu. Defeeeende,
Vitória. [médio close up]
122
João: ah, Júlio, qual é? Você bateu muito fraquinho. [plano médio]
Júlio: ah, João! Que nada, a Vitória é que é uma goleira maravilhosa.
Vitória: é, foi sorte, eu só saltei pro lado certo. [close up/gira a bola com as mãos]
João: ah, é, Vitória, então vamos ver se você está com sorte mesmo, pega essa.
Vitória: nem vi.
João: aí, viu, Júlio. Cadê a goleira maravilhosa? [irônico]
Vitória: maravilhosa está a tarde. Olha que céu. [plano geral/olha para cima] Ei que
tal a gente ver um lindo pôr do sol, hein? Assim a gente se acalma um pouquinho.
João: eu prefiro pôr no gol e não pôr do sol. [discorda]
Júlio: ô Vitória, que ótima ideia. E você sabe onde que podemos ver um pôr do sol?
Vitória: ah, do alto de um prédio aqui pertinho. Vamos.
João: ei, Júlio.
Júlio: vamos, vamos. [que estava acompanhando o andar de Vitória]
Sequência 3:
João e Júlio precisam da autorização de um adulto para irem ao alto de um
prédio, por isso voltam para o apartamento de João e pedem para Zazá. Ela
questiona se todos os que vão são crianças. Alípio se oferece para ir também, no
entanto, Zazá o lembra que ele só tem tamanho, e se oferece para ir junto, antes
procura a máquina fotográfica.
DIÁLOGO
APARTAMENTO DE JOÃO
Zazá: nem pensar. Vocês dois sozinhos no alto de um prédio. Não, não, não. [plano
geral/vai de um lado para outro]
Júlio/João: não. A Vitória vai também.
Zazá: outra criança. Não, não. É, quem mais?
Alípio: eu posso ir com eles, Zazá.
Zazá: você só tem tamanho, Alípio. [olha de baixo pra cima, como que avaliando,
depois dá um olhar dirigido à câmera]
Alípio: é mesmo, ó. [risos]
Júlio/João: ãnnn. [abaixam a cabeça, em descontentamento]
Zazá: tá bom, tá bom. Mas, eu vou com vocês. Eu quero ver se tem diferença do pôr
do sol da cidade e do campo. Minha máquina fotográfica? Onde eu coloquei minha
máquina fotográfica? [sai apressada]
Júlio/João: máquina fotográfica? [olham para a câmera]
Sequência 4:
123
Depois que Zazá autoriza a ida ao alto de um prédio, Júlio pergunta para
João se a camisa que veste está legal. O devaneio de Júlio indica sua preocupação
em agradar, principalmente Vitória, mas é Oriba quem elogia. Oriba e João
conversam pelo computador sobre o pôr do sol na cidade. Para João o futebol seria
mais interessante do que ver o pôr do sol, mas mesmo assim se oferece para levar o
computador para que Oriba também possa assistir.
DIÁLOGO
FAZENDA COCORICÓ/QUARTO DE JOÃO
Oriba: ai, que saudade do Júlio. É, quer dizer, do Júlio, do João, da Lilica, do Alípio e
até da Zazá. [plano médio/de frente para o computador]
Júlio: e aí, João, será que essa camisa tá legal? [plano geral+close up/olha-se no
espelho]
João: ei, Júlio, a Oriba tá on line.
Júlio: oi, Oriba. [close-up/acena]
Oriba: puxa, Júlio, que camisa bonita bacana.
Júlio: você achou? Olha, é porque eu vou sair com a Vitória, quer dizer, com a Vitória
e com o João...
Zazá: e com a Zazá.[plano geral]
Oriba: quem é essa Vitória? [plano médio depois close-up/enciumada]
Júlio: a Vitória é uma garota muito legal, sabe, ela vai levar a gente pra ver o pôr do
sol.
Oriba: que bela novidade, o pôr do sol. Por acaso você nunca viu um aqui na
fazenda? [enruga e leva às mãos à boca enquanto ouve Júlio falar de Vitória]
Júlio: mas é que esse a gente vai ver do alto de um prédio.
Zazá: vamos ou não vamos?
Júlio: vamos Zazá. [Júlio e Zazá saem do quarto]
João: podem ir pessoal eu já alcanço vocês. Pôr do sol, grande coisa, prefiro futebol.
[ressalta suas preferências]
Oriba: deve ser bem legal ver o pôr do sol do alto de um prédio com o Júlio... e essa,
essa... como é mesmo o nome da menina? [aumenta o tom de voz]
João: é Vitória.
Oriba: com essa tal de Vitória. [enciumada]
João: você gostaria mesmo, Oriba?
Oriba: acho que sim. [baixinho]
João: eu vou dar um jeito nisso, continue conectada.
(vinheta de passagem)
Sequência 6:
124
Vitória apresenta a cidade para Júlio, mostra-lhe a parada de ônibus, aparece
a placa da padaria, as pessoas circulam na rua. Júlio continua a elogiar tudo o que
Vitória diz, primeiro foi o adjetivo maravilhosa na sequência 2, agora fala linda, linda,
quando ela lhe mostra a parada de Ônibus. Zazá e João pedem para que eles
esperem os dois. A cena termina com a chegada de Júlio e Vitória no elevador.
DIÁLOGO
RUA CIDADE GRANDE/ELEVADOR
Vitória: olha Júlio aqui é a parada de ônibus que me leva pra escola.
Júlio: puxa, linda, Vitória. Linda, linda, linda. [plano geral/anda atrás de Vitória]
João: ei pessoal, esperem por mim. Ei Zazá, cadê eles?
Zazá: eles já foram, vamos, João, vamos. [pressa]
João: ah, eu tenho uma coisa maneira pra mostrar.
Zazá: ah, então vamos.
(muda cena)
Vitória: e aqui é a porta para o nosso pôr do sol. [plano médio/eufórica]
João: ah, perdemos. Já subiu. [descontente]
Sequência 6:
A música do clipe musical é cantada por Vitória e Júlio, com a participação de
outros dois actantes, dois pássaros, um verde e outro amarelo.
LETRA MÚSICA
Sol, pôr do sol (repete) [plano médio + close up/passarinhos/vozes]
[plano geral/Vitória e Júlio no alto de um prédio]
[plano médio/ Vitória e Júlio de costas no alto de um prédio]
Daqui do alto a vista é tão bonita [plano médio/Vitória canta]
Bonita mesmo, linda [plano médio/Júlio canta/entonação no linda]
Que faz bater mais forte o meu coração [plano médio/Vitória canta]
O meu também, viu, Vitória [plano médio/Júlio canta/gestualidade/vergonha]
Parece até que a gente tá voando [plano médio/Vitória canta]
Puxa, puxa, que puxa, eu tô [plano médio/Júlio canta]
Sem precisar de asa ou avião [plano médio/Vitória canta]
O pôr do sol desta cidade me traz tanta felicidade
125
Que dá vontade de cantar até anoitecer
Pro Sol ficar feliz também e adormecer [juntos]
[plano médio + close up/passarinhos/vozes]
[plano geral/Vitória e Júlio no alto de um prédio]
[plano médio/ Vitória e Júlio de costas no alto de um prédio]
[médio close up/os dois juntos]
Sol, pôr do sol (repete) [plano médio/Júlio, Vitória e os passarinhos /vozes]
E lá embaixo todo mundo é formiguinha [/Júlio canta]
É parece uma cidade de brinquedo [Vitória canta]
E eu aqui feliz com minha amiguinha [Júlio canta]
Como você canta bonito, Júlio [Vitória canta]
[plano geral/Júlio e Vitória no alto de um prédio]
O Sol é uma estrela grande pra nos iluminar [médio close up acima dos
prédios/Vitória canta]
Uma bola de fogo gigante, uma super lâmpada [Júlio canta]
De dia acende e à noite ele tem que descansar [Vitória canta]
O pôr do sol desta cidade me traz tanta felicidade
Que dá vontade de cantar até anoitecer
Pro Sol ficar feliz também e adormecer [juntos]
Sol, pôr do sol (repete) [passarinhos /vozes]
[plano geral/Júlio abraça Vitória de costas/ passarinhos completam a cena]
Sequência 7:
João levou o computador para que Oriba também assistisse o pôr do sol. Ao
final do clipe musical, Júlio e Vitória se surpreendem com a voz de Oriba falando,
que demonstra toda a sua insatisfação no fato de Júlio e Vitória estarem juntos
assistindo o pôr do sol.
DIÁLOGO
ALTO DO PRÉDIO
Oriba: não achei tudo isso não. [descontentamento]
Júlio: Oriba!
Vitória: oi, Oriba, o Júlio fala muito de você, viu. [simpatia]
Oriba: é, eu fiquei sabendo de você só hoje. Muito prazer, tchau. [antipatia]
[conversam pela tela do computador]
126
(vinheta de passagem)
Sequência 8:
Na fazenda de Cocoricolândia, Oriba, Caco e Toquinho assistem ao pôr do sol
e falam sobre o fato de não precisar de computador para assistir o pôr do sol na
fazenda e também sobre ter a companhia um do outro. Caco e Toquinho percebem
que Oriba não gosta do fato deles usarem a palavra vitória, embora estejam usando
no sentido da palavra daquele que vence.
DIÁLOGO
FAZENDA COCORICÓ
Oriba: o pôr do sol aqui tá muito mais legal que o da cidade. [plano médio/ Oriba,
Caco e Toquinho estão de costas para ver o pôr do sol, abraçada a Toquinho]
Caco: ah é, e qual é a diferença, Oriba?
Oriba: é que aqui eu tenho a companhia de vocês e nem precisa de computador.
[respira fundo]
Toquinho: nossa, até pôr do sol na cidade é por computador. Estranho né.
Caco: um pôr do sol, ao vivo, como esse é uma Vitória. [filmados de frente]
Oriba: não me fale em Vitória. [descontentamento]
Caco/ Toquinho: ué, o que deu nela? [dúvida]
2.4.1 Análise dos procedimentos sincréticos
Foi possível verificar que os procedimentos de articulação entre linguagens
permite pensar no objeto programa de televisão segundo o sincretismo, quer dizer,
as escolhas enunciativas que põem em circulação os distintos sistemas de
linguagens no episódio. Estaremos considerando assim: o cenário (enquanto sua
composição e materialidade), a iluminação, a movimentação dos bonecos, a
caracterização (figurino e acessórios), a música (de faz fundo para a fala dos
bonecos), os sons e ruídos (da fazenda e da cidade), as falas (dos bonecos e suas
inúmeras interjeições), os movimentos, planos e enquadramentos de câmera, além
da edição de imagens. Estudaremos esses sistemas pelas correspondências entre a
plástica e o conteúdo, possibilitando-nos chegar ao todo de sentido: a forma de
127
articulação das linguagens na construção do sentido desse objeto sincrético a partir
desse episódio selecionado.
2.4.2 Plano da expressão: o que engloba o quê?
O enunciador de Cocoricó nos faz ver como a história é contada pelo sistema
visual no seu uso articulado: da proxêmica50, da gestualidade51, do figurino dos
bonecos, tomadas de câmera (planos e enquadramentos, cortes), iluminação e
cenário. Esse enunciador também nos faz ouvir pelo sistema sonoro, ou seja, uso
das falas entre os actantes, ruídos e músicas. Todos esses elementos se encadeiam
por uma operaç~o de “difusão”, na qual “pode haver uma manutenç~o de traços
reiterativos dos vários sistemas atuando numa “grandeza semiótica sincrética”52
que vai assim, constituir a significação.
Iniciemos nossas análises pelo formante cromático. Encontramos nas cenas
analisadas uma variação que leva o enunciatário a apreensão pela tela da TV de uma
única cor para outra de uma variação cromática, dependendo do sentido que se
quer dar. Nas sete sequências em que dividimos para a análise, em todas elas,
encontramos a oposição semântica /monocromatismo/versus/policromatismo. É
válido lembrarmos que ainda na análise dos curtas, chamávamos a atenção para o
monocromatismo de Roto e Esfarrapado, em oposição à diversidade das cores dos
actantes dos grafites no muro atrás deles. Na sequência 1 e 3, os tons nas cores
marrom, vermelho escuro e palha do apartamento fazem oposição ao colorido dos
50
No Dicionário de semiótica (2008, p. 395), o verbete proxêmica é um projeto de disciplina
semiótica que visa a analisar a disposição sujeitos e dos objetos no espaço e, mais particularmente, o
uso que os sujeitos fazem do espaço para fins de significação.
51
O verbete gestualidade diz que ela foi introduzida na reflexão semiótica progressivamente e
maneira incerta, analisável como um domínio de significação circunscrito e autônomo, ultrapassando
por todos os lados nas fronteiras ainda indecisivas das semióticas particulares em via de constituição
(2008, p. 236).
52
Os termos difusão e grandeza semiótica são utilizados por Oliveira (2009) na teorização dos
procedimentos de sincretização. A autora chama de grandeza semiótica sincrética a reunião de
traços e regras operados em articulação para montar uma totalidade partitiva pela reunião
estruturada. “As particularidades do arranjo da express~o sincrética est~o, pois, na diferenciaç~o dos
traços e regras para que os sistemas articulados coatuem em regimes de coexistência, co-presença”
(2009, p. 81).
128
brinquedos, de alguns móveis como a escrivaninha verde limão e o sofá vermelho e
do figurino de Júlio. Na sequência 2, os grafites coloridos do beco e as casas, fazem
oposição ao cinza das calçadas e às figuras dos animais. A sequência 4 apresenta o
quarto de João, bem decorado e colorido com quadros, bonecos, brinquedos, que
se opõe às cores em tons de marrom do paiol. Na sequência 5, um passeio pela
cidade nos apresenta à diversidade cromática presente em Cocoricó, enquanto que
o elevador nos instaura novamente uma tonalidade de cinza. Na sequência 6, o
colorido das roupas de Júlio e Vitória reitera o colorido de alguns prédios na
paisagem cinza da Cidade Grande. Na sequência 7, volta-se a uma conversa entre
cidade e campo pelo computador, então os tons de marrom do paiol se opõem ao
colorido da tela do computador. Enfim, na última sequência, a cromaticidade é dada
pelos próprios actantes da fazenda (um papagaio verde, um morcego cor de vinho e
o amarelo do sol que se põe) contrastando com as cores do anoitecer e das
sombras das árvores com seus galhos. Desse modo, o formante cromático é usado
para dar as qualidades das pessoas, lugares e especificar a passagem do tempo.
Pelo formante topológico, temos os ambientes cenográficos do episódio se
construindo na medida em que a narrativa vai sendo contada pela câmera. A história
começa no apartamento de João, por um movimento de câmera conhecido como
panorâmica. O telespectador começa a conhecer o lugar ali instaurado, que não é
mais no campo, mas na cidade. Os objetos dispostos são contemporâneos, novos,
são eles: utensílios de cozinha (acessórios, balcão, artigos decorativos); móveis
(sofá, estante, mesa elementos decorativos da estante, quadros, almofadas, etc.);
eletrodomésticos (geladeira, televisão, videogame, hometheater, computador,
etc.). Existe ainda a disposição de plantas ornamentais nos cômodos da casa, assim
como de livros e porta-retratos identificando o ambiente como pertencente à
família de João e demonstrando tanto o apreço pela natureza, quanto a
demarcação dos espaços de estar da criança e dos adultos. O final desta cena é
marcado pela abertura de uma porta e pela chegada de Vitória convidando os
meninos para jogar futebol no beco.
129
Figura 11 – Tomadas da sequência 1 no apartamento de João: a cozinha com fogão e mesa; a sala
com escrivaninha, estante de livros; e, os brinquedos (meios de transporte) dispostos em cima dos
móveis
No apartamento, temos na sequência 4, a apresentação do quarto de João,
onde ele, Júlio e Zazá conversam com Oriba pelo computador. O quarto é colorido,
embora predominantemente azul (a parede é pintada com listras de tonalidades
diferentes dessa cor), com gravuras e espelhos pendurados na parede, brinquedos,
lápis, peixinhos de pelúcia, janelas redondas por onde a luz do sol entra,
instaurando pela plasticidade do ambiente a figura de um grande submarino. A
porta tem um espelho na parte de atrás onde Júlio avalia se sua camisa está propícia
para a ocasião e companhia (assistir o pôr do sol com Vitória). É essa mesma porta
que se abre para que ele e Zazá saiam e, que logo após se fecha, enquanto João e
Oriba continuam conversando. Esses elementos que configuram o cenário da casa
de João formam a imagem de um lugar habitado e lúdico.
O paiol na fazenda de Cocoricolândia também é mostrado nessa mesma
sequência, em que ao contrário da cena anterior, há um predomínio das cores
orgânicas, da terra: como na pele e roupa de Oriba, nas madeiras da estrutura física,
nas latas de leite, na estante, nas telhas e na mesa onde se encontra o computador.
Esse cromatismo dominado pela tonalidade dessas cores da terra – bege, ocre,
laranja, vermelho, - é quebrado pelos brincos verde e amarelo da índia, por uma
planta que ultrapassa a parede de madeira, mas principalmente pelo brilho amarelo
da luz do sol que entra por essas frestas das paredes e do telhado que mais uma
vez, faz oposição à claridade do ambiente interno visto na cena anterior do quarto
de João.
130
A rua onde João mora é outro cenário mostrado, onde os bonecos transitam
para chegar ao prédio onde irão ver o pôr do sol na sequência 6. Vitória aponta a
parada sinalizada por uma placa onde pega o ônibus pra ir à escola. Diferente do
campo, há uma concentração e circulação de pessoas na rua, pode-se observar a
fachada do prédio de João cujo número é 91, por onde eles acabam de sair. Existem
placas sinalizando a rua, o comércio, como a da padaria em que se lê “P~o com
p~o”. Mais uma porta se abre e se fecha. Desta vez a do elevador, e Vitória diz: “a
porta para o nosso pôr do sol”. As portas são de diferentes materialidades, a do
apartamento é de madeira, a do quarto de João é pintada de branco, a do prédio é
aberta para a rua e a do elevador é de metal. O uso dessas portas instauram a
oposição englobante vs englobado, ou melhor, separação entre aquilo que está
dentro e o que está fora, bem como a necessidade de segurança que se deve ter
numa grande cidade. Ao contrário, nas cenas no campo, essa oposição é dada pelas
janelas que dão a ver os bonecos que estão fora. Quer dizer, há uma integração
entre o exterior e o interior.
A vista do alto de um prédio é o outro ambiente cenográfico que nos é
mostrado. São várias tomadas diferentes: dos passarinhos, de Júlio e Vitória de
costas, de Júlio e Vitória de frente passeando de um lado para o outro da câmera e
de Júlio e Vitória vistos de cima na varanda do prédio e, também na diagonal sem o
céu. Essa vista do alto nos leva à verticalidade dos prédios, em oposição à
horizontalidade das casas, do beco, da fazenda.
Júlio, João, Oriba e Vitória são humanos, por isso, apresentam figurinos e até
trocam de roupa durante o episódio, como é caso de Júlio que falamos
anteriormente, que veste uma outra camiseta para ver o pôr do sol com Vitória e
isso chama a atenção de Oriba. No entanto, o que mais nos interessa são as roupas
vestidas por eles e como elas se caracterizam. Eles se vestem como garotos e
garotas da idade deles, em média 8 anos. Apesar da roupa da índia Oriba marcar
uma diferença no modo de se vestir que estamos acostumados a ver nas mídias em
geral da cultura indígena brasileira, trata-se de um figurino que não sofre alterações
e é sempre o mesmo, uma espécie de bata na cor palha e uma calça comprida, em
131
tonalidade mais escura. Ela usa acessórios como o brinco de pena verde e amarelo e
colar de penas. Ao contrário de Oriba que possui um figurino permanente, Vitória
aparece com diferentes roupas nos episódios, neste especificamente, ele veste um
macacão amarelo e uma blusa azul clara com flores rosa que realçam uma
feminilidade e preocupação com a beleza, ao contrário das cores neutras usadas
pela índia. Essa oposição entre as roupas de Vitória e Oriba marca ainda uma
diferenciação, enquanto as roupas da índia caracteriza uma vestimenta com função
de cobrir o corpo, a menina da cidade, se veste de acordo com a moda. A roupa de
João é uma camiseta branca com o desenho de um elefante verde e outra camiseta
laranja por baixo de manga comprida, simples como a primeira roupa de Júlio, uma
camiseta azul listrada de preto com uma letra “H” em branco e negrito e boné
amarelo. Os dois vestem calça jeans e tênis que aparece apenas quando eles chutam
a bola. Júlio troca a camiseta por uma pólo, nas cores da roupa de Vitória (azul clara
de listras amarelas) e por um boné vermelho, figurino que vai marcar traços
reiterativos na sequência do clipe no alto do prédio.
Os bonecos também marcam topologicamente a posição que ocupam no
cenário pela proxêmica. Eles ora circulam em frente à câmera em tomadas
contínuas, ora estão em médio close, com apenas um deles diante da câmera e cujos
cortes de uma tomada caracterizam o diálogo. Vê-se que a continuidade das cenas
pode ser marcada por continuidades sonoras, como na sequência 1 na qual pelo
verbal Júlio dá a deixa para que Vitória entre em cena. Ou com a continuidade sendo
dada pelo musical, com uma trilha, como na sequência 5, em que Oriba e Júlio
conversam pelo computador e a música do clipe musical é tocada.
Podemos, então, pela dinâmica deste episódio, observar os sentidos dados
pelo ritmo audiovisual, segundo definiç~o de Fechine “participam da construç~o
geral de um ritmo audiovisual, ou seja, uma sensorialidade rítmica geral
proporcionada pela relaç~o entre um tempo musical e um movimento visual” (2009,
p. 348). Estas palavras, nos fazem muito oportunas, diante da relação que se
apresenta em Cocoricó, não apenas no visual e no verbal, nem somente no sonoro,
mas na relação que se dá entre eles. Fechine propõe uma categorização para a
132
determinação do ritmo audiovisual, de acordo com o modo como operam: com a
duração, com a frequência e com a combinação no tempo de elementos sintáticos
dos dois sistemas: musical e visual. A autora enumera:
São eles: 1) extensidade vs intensidade (categorias que participam
do ritmo operando com a duração de intervalos e sequências); 2)
continuidade vs descontinuidade (categorias que participam do
ritmo operando com a regularidade e irregularidade dos intervalos
e sequências; 3) segmentação vs acumulação (categorias que
participam do ritmo operando com a combinação dos elementos
sonoros e visuais no tempo, explorando-os com base na
simultaneidade ou sucessividade). (FECHINE, 2009, p. 349).
O episódio de Cocoricó apresenta um ritmo audiovisual marcado por uma
duração extensa, no áudio (ampliando para o musical, verbal e ou ruídos) mantidos
no aspectual, quer dizer, na duratividade, com batidas esparsas e, no vídeo com o
emprego de planos-sequências e tomadas panorâmicas com movimentação suave e
contínua na cena. Caracteriza-se, pois, por uma frequência contínua, no áudio dado
pela regularidade (do musical, verbal e ruídos) e, no vídeo por orientação de
decupagem cl|ssica, na “decomposiç~o linear e gradual das cenas dos planos mais
abertos aos mais fechados” (FECHINE, 2009, p. 352), com efeito de continuidade da
cena; e ainda com a utilização dos dois procedimentos descritos pela autora. São
eles: os enquadramentos (plano geral, plano médio, primeiro plano, detalhe, close),
e os movimentos de câmera (zoom in, aproximação e zoom out, distanciamento). Na
categoria da combinação dos elementos visuais e sonoros, temos a acumulação com
a superposição de sons distintos no áudio, e no vídeo, uma combinação de
elementos plásticos dentro dos planos, pela exploração da simultaneidade e pela
acumulação de informações e estímulos visuais. Chamemos a atenção para o efeito
de sentido deste ritmo televisual dado na ênfase ao raciocínio ininterrupto, com o
uso das figuras de sintaxe, como a aliteração, o apoio rítmico que consiste em
repetir fonemas em palavras (BECHARA,
2009, p. 643), caracterizando uma
continuidade, regular e durativa. Embora seja utilizado também o paralelismo, que
significa a repetição de ideias mediante expressões aproximadas (IDEM, p. 644) e
que é dado pelo uso de ruídos, vinhetas, diálogo e música, marcando também as
133
descontinuidades. O que acarreta a possibilidade da construção do sentido em uma
dada continuidade, mas marcada pelas descontinuidades, tanto no áudio como no
visual. Já que no visual, temos as repetições de enquadramentos de cena e também
prolongamentos de tomadas, com o intuito de permanecer no contínuo,
entretanto, a descontinuidade é trazida pelos efeitos de fusão das imagens, que
também operam no paralelismo.
Além de gesticularem o tempo todo, chamando a atenção para as suas
mãos, humanas e grandes, os bonecos também pela materialidade da espuma,
possuem expressão facial que permite mostrar seus afetos, paixões e estados de
ânimo. Como na sequência 5, em que Oriba enruga a boca, assinalando estar
enciumada pelo fato de Júlio ir ver o pôr do sol com Vitória na Cidade Grande.
Embora, logo, pelas suas feições, temos o sentido de que ela se tranquiliza, quando
João lhe propõe estar junto de Júlio por meio do computador. Na sequência 1, João
respira fundo e na sequência 8 Oriba também respira fundo, mas pela proxêmica,
quer dizer, como eles se dispõem em cena e pela gestualidade, os dois “respirar
fundo” têm conotações diferentes. Enquanto o primeiro apresenta a insatisfação, o
segundo mostra o quanto Oriba está sensibilizada em ver o pôr do sol no campo.
134
FIGURA 12 –Os bonecos e a diversidade étnica e diferentes caracterizações: Júlio de camisa azul
com listras pretas e boné amarelo; João de camiseta branca com o desenho de um elefante verde;
Júlio e Vitória no alto do prédio para ver o pôr do sol, roupas azul e amarelo e Júlio de boné
vermelho; Oriba veste bata cor de palha, brincos verde e amarelo e colar de pena
Identificamos três principais movimentos de câmera e enquadramentos no
episódio analisado, as tomadas contínuas vs cortes; os planos abertos vs fechados e
o primeiro plano (médio close up) vs outros planos. Já mencionamos as tomadas
contínuas vs cortes. Os planos abertos (médio/geral) foram identificados
principalmente quando havia mais de um boneco em cena e os planos fechados
foram utilizados para mostrar os detalhes das cenas ou dos bonecos, quando por
exemplo, no close de Vitória (sequência 2) girando a bola, como sujeito competente,
apesar de João pelo discurso verbal tentar convencer Júlio do contrário. Quanto à
utilização do primeiro plano, em oposição a dos outros planos, identificamos seu
uso principalmente no clipe musical, para dar o detalhe da cena aérea, filmada do
alto que cria um efeito de sentido de envolvimento com o enunciatário. Num jogo
enunciativo de figura e fundo, temos uma aproximação com o interlocutor, o
boneco, que está no alto, próximo, ao que ele vê, à paisagem da Cidade Grande, ao
fundo.
135
Estabelecendo essas conexões do
uso da
linguagem sonoro e visual,
afirmamos que esse sonoro que raramente se silencia e o visual nessa
sequencialidade dos cortes e fusões, ou seja, a composição do ritmo televisual do
programa são indicativos da relação que se quer estabelecer com o enunciatário na
ênfase, como já dissemos, no raciocínio sem interrupções, que busca manter em
processamento a interação com o enunciatário. Explica-se: como um procedimento
que torna o texto sincrético, essa relação do sonoro atuando com o visual
configura-se como parte do contrato com o enunciatário, com aquela criança que
está disposta a assistir, mas também a ouvir esse programa e, sobretudo, a sentir o
que está vendo e ouvindo; só possível pelo ritmo audiovisual projetado e pela
difusão entre um sistema e outro, nos e pelos procedimentos de sincretização, do
plano da expressão. Ao pensar, essas apreensões, Oliveira afirma:
Concretizados em uma expressão, esses procedimentos
enunciativos vão além da dimensão do enunciador fazer o
enunciatário construir a significação. Englobam o modo como esse
enunciador dispõe o enunciatário para sentir o sentido, abrindo-o a
percursos de experiência do sentido sentido, quer os mais
sistematizados e regulados por contratos, quer aqueles das
surpresas e dos acidentes em que não há estabelecimento de
nenhum tipo de contrato prévio. Correlacionamos que esse
envolvimento é sensível tanto nas semioses semissimbólicas entre
plano da expressão e plano do conteúdo, mas que também ocorrer
envolvimento por um uso de estereotipias nas semioses do tipo
simbólica. Os estados impressivos estão correlacionados aos tipos
de sincretismo das ordens sensoriais e aos tipos de semioses que
se articulam em percursos sensíveis do sentir o sentido. (OLIVEIRA,
2009, p. 136).
Como por exemplo, pelos sistemas sonoros, temos cenas com diálogos que
se sobrepõem a uma trilha musical, ou ruídos - como os da fazenda (sons de
animais) nas sequências 4 e 8 ou como os da cidade (sons de buzina) na sequência 5
versus o silêncio – mesmo que instantâneo - presente em praticamente todas as
sequências. Identificamos, também, as interjeições e entonações nas falas dos
actantes que assim como a gestualidade e proxêmica nos instauram como sujeitos
dotados de sentidos, trazendo assim, um efeito de proximidade na atividade de
reconhecimento dos actantes. O jeito de falar de Júlio “puxa, puxa, que puxa!” já
136
conhecido do público, a voz estridente do papagaio Caco, o sotaque paulistano com
gírias de João, além das interjeições ahs! Hums! hãs! eis! aís! permeiam os diálogos e
os ouvidos dos telespectadores, além de intensificar os sentimentos, os estados
d’alma (alegria, tristeza, medo, impaciência, etc.) mostrados pelos bonecos.
Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa interjeição significa:
Palavra invariável ou sintagma que formam, por si sós, frases que
exprimem uma emoção, uma sensação, uma ordem, um apelo ou
descrevem um ruído; há interjeições de vários tipos ou níveis
vocabulares: 1) aquelas que ocorrem de modo mais ou menos
espontâneo e que não derivam de outras palavras, podendo
subdividir-se em: a) as que praticamente não apresentam caráter
vocabular, assemelhando-se a elementos não-linguísticos ou supralinguísticos como os gestos, a entonação etc. (podendo ou não
receber representação gráfica mais ou menos padronizada: ó
(vocativo); oh (espanto); ha (desprezo, riso etc.); hã (interrogação,
surpresa); b) aquelas que representam sons articulados, com
fonemas que fazem parte do sistema da língua (ai, eba, ei, epa, oba,
opa, ui etc.) e cujo caráter vocabular é mais definido, tendo uso
bastante generalizado e convencionado, embora algumas guardem
espontaneidade e expressividade bastante marcadas, como ai e ui
(gritos de dor, de excitação); 2) aquelas que se originam de um uso
interjetivo (exclamativo, emocional, expressivo) de palavras ou
expressões previamente existentes; estas podem estar divididas
em: a) palavras (às vezes desenvolvidas em sintagmas)
empregadas sobretudo em exclamações expressivas e que têm um
significado mais ou menos definido, mas cuja relação semântica ou
morfológica com o étimo ou expressão originária fica
consideravelmente obscurecida (puxa/poxa: puxa vida/poxa vida;
bolas/ora bolas); tais unidades léxicas são classificadas neste
dicionário como interjeições, e os sintagmas deste tipo são
também registrados; b) palavras cujo uso interjetivo é um
desenvolvimento ou derivação do conteúdo semântico e da função
sintática da palavra ou expressão de origem (por exemplo, tomara
vem de tomar; que significa oxalá). (DICIONÁRIO HOUAISS, 2009,
p. 1097).
A partir desse uso das interjeições, temos novamente no programa a
demarcação da continuidade entre os diálogos, caracterizando, portanto, também a
duratividade do sonoro do ritmo televisual como destacamos. E também do visual,
já que o uso dessas interjeições propicia a continuidade do enquadramento no
boneco.
137
Identificamos, ainda, a utilização dos efeitos sonoros nas passagens entre
uma cena e outra, para trazer um efeito de suspense, como na sequência 1 quando
Júlio diz “Só se...” e entra um efeito sonoro, ou ainda para criar um efeito de ironia,
como na sequência 3, quando Zazá diz que Alípio só tem tamanho. No episódio,
temos na passagem entre as cenas, um sonoro – seja com diálogos ou ruídos – que
permite o encadeamento da passagem da descontinuidade à continuidade de uma
cena à outra, produzindo tanto um efeito de sentido de conexão quanto de
interação pelos sentidos da criança que assiste. A continuidade sonora dada pelos
diálogos (com fundo musical ou não) é a todo instante marcada por
descontinuidades, advindas dos ruídos, das vinhetas de passagem ou da música
cantada no clipe musical, conforme mostra o gráfico abaixo:
FIGURA 13 – A continuidade e descontinuidades do sonoro
Por meio da análise do plano da expressão, identificamos a reiteração dos
formantes da visualidade e da sonoridade nas sequências, pelas seguintes
oposições: policromático vs monocromático (colorido vs cinza; colorido vs
tonalidades marrons); englobante vs englobado (ambientes externos vs internos;
decorado vs natural; opacidade vs brilho; sentado vs em pé; verticalidade vs
horizontalidade); contínuo vs descontínuo (tomadas contínuas vs cortes; planos
abertos vs fechados; primeiros planos vs outros planos; intercalante vs intercalado
138
(diálogo vs música; ruídos vs silêncio). Essas oposições fundam no plano da
expressão a categoria /CONTINUIDADE/ versus/ DESCONTINUIDADE.
FIGURA 14 – Categoria da expressão HORIZONTAL em cena do clipe musical
FIGURA 15 – Categoria da expressão VERTICAL em cena do clipe musical
139
2.4.3 As figuras
Neste episódio enquanto Júlio e João não encontram uma brincadeira
dentro do apartamento são tomados pelo tédio de não ter nada para fazer. A amiga
Vitória lhes convida primeiro para jogar futebol no beco e depois para assistir o pôr
do sol do alto de um prédio, instaurando dois tipos de ação: a primeira como uma
ação participativa e a segunda, uma ação de observação. O programa narrativo de
base é a busca dos sujeitos pelo objeto de valor sociabilidade, de alguém para fazer
algo junto, seja brincar, seja, contar quantas vezes já leu uma revista, jogar mini
game, jogar futebol ou assistir o pôr do sol. Para que essa transformação aconteça e
os sujeitos do enunciado saiam da posição de disjunção com esse objeto de valor,
eles precisam ir em busca do doador de competência.
Existe o querer e o saber, Júlio sabe que “chato n~o é a brincadeira, é n~o ter
nada para fazer”, explica para Jo~o. O fazer algo vai sendo construído também
como objeto de valor. O dever seria a possibilidade de rotina da criança, em que um
tempo para brincar faz parte desse programar o seu dia. Mas o sujeito não pode, e
vai em busca dessa competência, ao trocar de camisa, pede autorização para Zazá e
segue as coordenadas de Vitória, que já é o sujeito competente, aquele que quer,
pode e sabe. Assistir o pôr do sol com Vitória, torna Júlio um sujeito atualizado,
dotado de competência, assim como Oriba ao lado dos amigos da fazenda que
assiste o pôr do sol lá. O ciúme de Oriba, por Júlio estar em companhia de Vitória e
não dela, explicita o “encantamento” de Júlio pela nova amiga da Cidade Grande.
As oposições identificadas foram: homogêneo vs heterogêneo; público vs
privado, artificial vs natural; conforto vs desconforto, grupo vs indivíduo,
objetividade vs subjetividade, que fundam a categoria /SOCIEDADE/versus/
INDIVIDUALIDADE.
140
2.4.4 Clipe musical, significação e o sincretismo
Pensando nas linguagens presentes em Cocoricó, especificamente no sistema
sonoro, chegamos ao clipe musical. Ricardo Monteiro Castro (2000, p.293-321) em
sua an|lise do videoclipe “A minha alma” do grupo O Rappa nos aproxima da análise
sincrética de um objeto televisual. Para o autor, o maior problema dos estudos do
sincretismo seria a busca pelo “efeito de sentido de uma enunciaç~o única em um
texto cuja substância apresenta instâncias de naturezas múltiplas – no caso,
cancional, visual, verbal” (p. 294). O autor ressalta a import}ncia em considerar a
enunciação sincrética como uma enunciação múltipla, ponto de vista que vai de
encontro às nossas análises iniciais e, aos pensamentos já expostos aqui de Medola
e Oliveira. Para definir essas instâncias de naturezas múltiplas, Monteiro busca em
Greimas & Courtès o conceito de instância da substância:
Entende-se por instâncias de substância os modos de presença,
para o sujeito cognoscente – e de apreensão por ele -, da
substância enquanto objeto de conhecimento. Assim, para a
substância fônica, se reconhecem três instâncias: a instância
articulatória, de ordem fisiológica, em que a substância é como
uma espécie de gestualidade muscular; a instância acústica, de
ordem física, em que ela é apreendida sob forma ondulatória.
Enfim, a instância auditiva, de ordem psicofisiológica [...] Não se
deve confundir instância e substância: é uma mesma substância
que se apresenta de modos diferentes, mesmo se a correlação
entre as diferentes instâncias – entre as análises articulatórias e
acústicas, por exemplo – for difícil de ser estabelecida.
(DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA, 2008, p. 266).
Pontuamos, aqui, que a instância da substância, é o que vínhamos até agora,
chamando de usos das linguagens. A nomenclatura tão pouco importa se o que
devemos chamar a atenção aqui é novamente para o todo de significação advindo
de uma mesma enunciação, que no entanto, relaciona unidades diferentes, sejam
elas chamadas de instâncias, sistemas ou processos de linguagens. Mas
relacionando, sim, o ponto de vista de aplicação de uma teoria sincrética baseada
nas concepções de Floch (1985) e Hjelmslev (1975), e, sobretudo, considerando os
procedimentos, como já apresentados aqui de neutralização entre as substâncias da
141
expressão, como o esboçou Oliveira (2009, p. 93), de que “a plástica sincrética é
significante justamente porque as suas qualidades sensíveis têm um atuar que as
mostra observ|veis e vivenci|veis { medida que s~o propostas como experiências”,
ou seja:
O ato de processamento do sentido sincrético pelos sentidos
promove espécies de vivências significantes, experiências
sensíveis, que têm marcado as explorações da mídia e o seu lançarse na criação de objeto midiáticos sincréticos como experiências de
ressignificação do cotidiano repetitivo, do eu anônimo, do eu
massivo. (OLIVEIRA, 2009, p. 98).
A partir dessas considerações é que começaremos a análise do clipe musical
“Pôr do sol”, que faz parte do episódio de mesmo nome. Como já vimos
anteriormente, na análise do episódio, a sequência 653 traz os bonecos Júlio e
Vitória que vão até o alto de um prédio da cidade grande assistir o pôr do sol.
No nível profundo, pode-se identificar a oposição fundamental realidade vs
sonho, cujas oposições temáticas se dão no nível discursivo por tristeza vs
felicidade, cantar vs adormecer, dia vs noite, brincar vs brinquedo. Esses elementos
explicitam o tema pôr do sol do alto do prédio na cidade, que juntamente com as
figuras do verbal retirada de frases das sequências anteriores, como “maravilhosa”,
“alto”, “lindo”, remetem a um efeito se sentido eufórico desse objeto de valor, que
é ter aquela vista da cidade do alto de um prédio, portanto possível apenas na
Cidade Grande. Essas oposições acabam por instaurar também essa espacialidade,
um aqui do alto do prédio, em oposiç~o ao l| embaixo, “onde todo mundo é
formiguinha”, “uma cidade de brinquedo”. Essa espacialidade - dada pela figura do
alto do prédio onde é possível ver o pôr do sol (“daqui do alto a vista é t~o bonita”)
– marca a intencionalidade dos sujeitos que ali estão, eles querem, poder ver aquele
momento, naquele lugar, portanto, trata-se do sujeito atualizado discursivizado.
No nível discursivo, esse sujeito virtualizado que é convertido em ator da
enunciação, se assume numa debreagem enunciativa de pessoa, tempo e espaço,
53
Quando nos remetemos ao clipe musical “Pôr do sol” vamos cham|-lo de sequência 6, que é a
sequência intitulada durante a análise do episódio.
142
um eu (Júlio e Vitória), num aqui (alto de um prédio) e num agora (fim do dia). Por
embreagem enunciativa de espaço, Júlio e Vitória instauram um não-aqui
enunciativo explicitado pelo “l| embaixo”.
FIGURA 16 –Passagens do clipe musical “Pôr do Sol”: os passarinhos cantam para a chegada do pôr
do sol; Júlio sozinho e a cidade no fundo; Vitória sozinha e a cidade no fundo; Júlio e Vitória numa
cena de cima para baixo; novamente os personagens filmados na diagonal de cima para baixo, e
perto um do outro; Júlio e Vitória assistem “juntos” ao pôr do sol
No nível narrativo, o sujeito Júlio quer estar em conjunção com seu objeto
de valor assistir o pôr do sol “com” Vitória, sendo esse o programa narrativo de
base. Para isso, antes, ele que já tem esse querer precisa adquirir competência e
cumprir a performance, então pelo programa narrativo de uso. É assim que nas
sequências anteriores a essa: 1o) Júlio pede autorização para Zazá (sujeito
competente, adulto, aquele sujeito que pode); 2o) troca a camisa que está vestido
por outra “bacana” e “legal”. Na sequência 6, Júlio torna-se um sujeito atualizado,
(sabe, quer, pode e deve fazer) estar junto com Vitória no alto do prédio para assistir
o pôr do sol. “E eu aqui feliz com minha amiguinha”, diz. Esse estar junto com
Vitória é dado no plano da expressão pela proxêmica e gestualidade dos bonecos
que estão dispostos bem próximos na varanda de um prédio, ora se entreolham, se
tocam e se abraçam ao final da sequência. E pela linguagem musical, ou seja, “o que
está dizendo (o texto) e a sua maneira de dizer (a melodia)” (TATIT, 1997, p. 89),
143
instaura essa proximidade entre os actantes da enunciação. Segundo a semiótica da
canção teorizada por Luiz Tatit (1999, p. 249) o componente melódico (melodia) e o
componente linguístico (letra) são responsáveis por um sentido homogêneo que,
“exibem, entretanto, sintaxes próprias, a primeira assegurando a presença física da
matéria sonora e a segunda encarregando-se, sobretudo, do conteúdo abstrato”. O
autor afirma que:
A ritualização da fala corresponde a um processo de ritualização de
uma sonoridade que, a princípio, teria função totalmente
passageira. Ao adquirir leis próprias de funcionamento, que se
manifestam sobretudo na ordenação melódica, a canção impõe
uma desaceleração às manifestações linguísticos-entoativas um
pouco de sua intervenção ligeira e descontínua. No mesmo ato,
deposita, ao lado das oposições intelectivas, as emoções contínuas
que só a melodia pode trazer [...] se a presença da fala é marca de
rapidez, imediatismo e eficácia do instante enunciativo e, por outro
lado, a presença da música significa estabilização da matéria
sonora, ritualização e conservação estética, podemos instituir a
categoria andamento como parâmetro temporal de análise e dela
depreender uma tensão entre aceleração e desaceleração
respondendo, respectivamente, pelos valores descontínuos e pelos
valores contínuos. (TATIT, 1997, p. 89-90).
O intuito desse trabalho não é o de semiotizar a melodia e a letra da canção
presentes na sequência 6, entretanto, baseando-nos na teoria deste autor, faremos
algumas pontuações a respeito:
I.
Identificamos na canção uma extensão passional, ou seja, a
desaceleração na melodia ou passionalização melódica; como nos
explica Tatit:
[...] tempo de espera ou de lembrança (cuja definição depende da
letra), essa duração que permite ao sujeito refletir sobre os seus
sentimentos de falta e viver a tensão da circunstância que o coloca
em disjunção imediata com o objeto e em conjunção à distância
com o valor do objeto. (TATIT,1999, p. 99).
II.
A canção tem início pelo refrão, que vai acompanhá-la nas outras
estrofes. Esse refrão caracteriza uma repetição, uma duração,
portanto, uma parada com uma aceleração gradativa. Temos
144
depois um segundo refrão, a parada da parada, em relação às
estrofes subsequentes que seriam a continuação dessa parada. É
como se o programa melódico de uma canção se caracterizasse
por uma “levada instrumental”, nos moldes de Tatit (1999, p. 195).
O autor diz que essa levada liga sujeito e objeto num fazer “que
tende a neutralizar as diferenças, devorando os sintomas da
parada (os pequenos contrastes) e, quando esta é inevitável,
interrompendo-a tão logo quanto possível” (IDEM, p. 200).
III.
Ao observarmos a canção, foi possível perceber variações na
melodia, que ora se pareciam mais com uma fala dos sujeitos, ora
como letra de música. Tatit nos explica que a presença da fala na
canção popular é uma fonte de ruído54 regida pelas instabilidades
entoativas e/ou imprecisões rítmicas. “[...] se por um lado repugna
aos cancionistas, por outro, os atrai [...] que como signo de
presentificação enunciativa, apresenta alto rendimento semântico
no momento da execuç~o do cantor” (1997, p. 92). Neste caso, dá
um ritmo reiterativo à canção: que ora um canta, e o outro
explica, depois um explica e o outro canta.
No momento em que o refrão é cantado, que Júlio e Vitória ficam mais
próximos, na desaceleração, na espera do que vai acontecer: a espera do sol que irá
se pôr e do final de mais um dia. Essa figurativização nos indica o tipo de
relacionamento entre essas crianças que estão prestes a entrar na puberdade,
selando o belo momento do assistir ao pôr do sol juntos com um contato corpóreo.
Um abraço entre os dois actantes encerra o pôr do sol na cidade, interrompido pela
índia Oriba, irritada e enciumada gritando no laptop, instaurando, pois, a oposição
discórdia vs amizade. Temos aqui, na expressão do plano musical, a oposição
54
Segundo o autor, os ruídos “s~o aqueles que provocam rupturas no programa do sujeito exigindo
condutas de salto repentinas que aceleram bruscamente o percurso”. Ele explica que nesse sentido,
o ruído equivale à descontinuidade, produzindo no plano do sujeito, uma sensação disfórica, de
interrupç~o do fluxo fórico. “O som, por sua vez, corresponde à retomada da continuidade e à
produç~o subjetiva da sensaç~o eufórica (reintegraç~o ao fluxo)” (TATIT, 1999, p. 91).
145
aceleração das estrofes da música (pelas quais os actantes cantam separados) vs
desaceleração do refrão (que eles cantam juntos), reiterado no conteúdo pelo
contato físico entre eles. Além disso, as falas cadenciadas e rimadas no refrão
(cidade/felicidade,
anoitecer/adormecer)
como
também
nas
estrofes
(coração/avião, formiguinha/amiguinha) e a não-presença dessas rimas em
determinadas partes no refrão (cantar/feliz) e nas estrofes (bonita/linda) implicam
nesse encontro - e participação compartilhada - vs desencontro e participação por
adesão, entre os actantes no plano do conteúdo.
Pela linguagem audiovisual apreendemos tomadas feitas em planos médios:
em que os sujeitos aparecem sozinhos (principalmente na primeira estrofe da
canção, quando primeiro Vitória aparece e depois Júlio, em tomadas diferentes) e
dos passarinhos sozinhos ou com Júlio e Vitória assistindo o pôr do sol ou
contemplando a cidade no aqui (alto do prédio) e agora (fim do dia). As cenas são
feitas também em plongée, quer dizer filmadas de cima para baixo, quando a cidade
é aquele lá enuncivo que falamos, quando a cidade est| “l| embaixo”, e mesmo
assim Júlio e Vitória continuem juntos. Novamente, é dada a categoria correlata do
conteúdo ser social vs fazer social.
Temos assim pela análise desta cena um quadrado semiótico que já
estabelece as primeiras relações sociais discursivizadas em Cocoricó:
FIGURA 17 – Relações sociais discursivizadas em Cocoricó
146
Retornando aos procedimentos de neutralização, identificamos nesta
sequência o sincretismo por concentração ou encaixe, com “a convocação dos
sentidos em uma reuni~o íntima entre si”, a partir de “alianças sinestésicas” as
quais operam sínteses perceptivas nas apreensões, habilitando assim, uma
aderência de ajuste e de sinergia “ao objeto sincrético enquanto totalidade
sensorial global que é experienciada pelo ir de um traço a outro por encaixes de
uma semiose existencial” (OLIVEIRA, 2009, p. 102). Os sentidos convocados são
distintos, a visão (da cena/o sol se pondo com toda sua luminosidade e abrangência
na cidade grande), o tato (no relacionamento entre os dois actantes, da
gestualidade à cumplicidade, conforme já descrito), a audição (o cantar dos
passarinhos é a música para o enunciatário), mas continuam mantendo entre si e o
todo de significação uma aliança momentânea, embora “existencial”.
2.5 Articulações e construção do sentido em Cocoricó
Vimos, neste capítulo, como o programa Cocoricó se apresenta ao público
telespectador, começando pelas vinhetas de abertura em suas duas versões, os
curtinhas que iniciam o programa na última temporada, os procedimentos
sincréticos utilizados para dar sentido a cada episódio, seja para a narrativa, seja
para o clipe musical. Notamos que cada episódio possui uma estrutura de vinheta
de abertura, narrativa, vinhetas de continuidade (que permite a ligação entre cenas
diferentes), clipe musical, continuação da narrativa e vinheta de encerramento.
A partir dessa estrutura, podemos já concluir segundo esse episódio
analisado que a temática principal é a descoberta da identidade social da criança. O
que a criança gosta mais de fazer? Brincar. O episódio vai - tomada a tomada construindo o sentido do brincar socializado de uma criança, desde bola, carrinho,
leitura, videogame, futebol na rua, até ver um pôr do sol do alto de um prédio.
Relaciona-se assim, esse objeto de valor de ver o pôr do sol na cidade como um
fazer junto. O pôr do sol ganha um horizonte imposto pela verticalidade dos
147
prédios, possíveis apenas na cidade grande. Esse pôr do sol possibilita também a
Júlio, a descoberta de sua identidade enquanto uma criança prestes a entrar na
puberdade, com a sua nova amiga Vitória.
O episódio de Cocoricó presentifica o tema da identidade do ser criança e, por
contrariedade o da alteridade, ou seja, o não-ser criança, ser um adulto. Nesse
episódio, que faz parte da mais recente temporada, Cocoricó introduz uma temática
mais infanto-juvenil a partir da relação de Júlio e Vitória55, mas também com a
introdução de temas sobre as profissões, por exemplo. Se temos, pois, identidade
versus alteridade como oposição fundamental do episódio, portanto como
contrários,
teremos
como
contradição,
alteridade
e
não-alteridade;
por
subcontrários, não-alteridade e não-identidade; por complementaridade, nãoalteridade e identidade, assim como não-identidade e alteridade; por fim, na relação
de hierarquia temos como conjunção de não-alteridade e identidade a vivência e
pelo outro lado, o não-identidade e alteridade, temos a aprendizagem. Percebe-se,
pois, que todas essas relações se dão pelo tempo escolhido da narrativa, do ser
criança, infantil e querer brincar, passando pelo brincar na companhia do(a) amiga,
com enfoque na relação de proximidade que marca o início de uma outra fase da
nossa vida, a adolescência, cheia de descobertas – da própria vivência - como
também do ser criança, querer aprender, conhecer, entender, com a possibilidade
de ir aprendendo com o outro; sendo cuidado ainda por alguém, por aquele que não
é criança, que é o adulto, que já passou pela infância, pela fase das descobertas,
pelo aprendizado cuidado e agora pode e é maduro.
55
Em entrevista ao site da UOL, o diretor do programa Fernando Gomes afirma que foi intuito nesta
temporada inserir uma tem|tica sobre a puberdade. “Tem um quê de dar uma crescidinha na faixa
etária do público, por que o Júlio começa a ficar encantada com uma menina que é amiga do João e
começa a surgir até um romance infantil no programa”, diz. (disponível em
http://criancas.uol.com.br/ultnot/
multi/2009/10/01/04023172D8914366.jhtm?nova-temporada-decocorico--makingof04023172D8914366, acessad04/05/2010).
148
FIGURA 18 – Articulando o sentido: identidade vs alteridade
A explicitação dessa oposição de base do episódio, possibilita-nos retomar a
análise dos procedimentos sincréticos e a partir daí, compreender as relações
propostas por um enunciador para fundamentar tal significação. Lembremo-nos
que pelo plano da expressão, temos as seguintes relações: monocromatismo vs
policromatismo, englobado vs englobante, intercalante vs intercalado que fundam a
categoria CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE. Temos, ainda, pelo plano do
conteúdo: ocupação vs tédio, cumplicidade vs individualidade, fundando a oposição
SOCIEDADE vs INDIVIDUALIDADE. Todas essas relações reafirmam a oposição
fundamental do episódio: IDENTIDADE vs ALTERIDADE; que será recolocada por
outras narratividades em diferentes episódios, colocando o Cocoricó como um
programa que tem como significação a formação da criança que o assiste, portanto
a formação de uma identidade, proposta pois, pelo destinador TV Cultura. Veremos,
assim, no próximo capítulo como são dados os modos de presença discursiva em
Cocoricó.
149
Figura 19 – As articulações sincréticas do episódio analisado: expressão e conteúdo,
baseado em articulações desenvolvidas por Luiggi Oliveira (2010)
151
Capítulo III
MODOS DE PRESENÇA DISCURSIVA
As sociedades pós-modernas reservam um
lugar cada vez mais importante à procura
de sentido, à construção de projetos de
vida que as ajudem a dar uma orientação e
um significado a sua experiência cotidiana,
em um contexto social cada vez mais
complexo e fragmentado.
Andrea Semprini, 2006
Nos capítulos anteriores apresentamos os programas de televisão infantis
como decorrentes de um ambiente midiático - que é a própria TV – e que propõem
uma relação entre um destinador (a própria emissora que veicula os programas) e
um destinatário (o público espectador do programa). Ao analisarmos as vinhetas,
demos início ao processo de análise das estruturas discursivas, àquelas pelas quais o
destinador coloca em jogo valores dispostos para a produção de um discurso, pela
delegação a outro sujeito: o sujeito da enunciação. Lembremos, novamente, do que
nos ensina Fiorin: “o primeiro sentido de enunciação é o de ato produtor do
enunciado” (2005, p. 31). Os teóricos Greimas & Courtès no Dicionário de Semiótica
(p.147-148) 56 explicam que a enunciação é o lugar da geração do discurso; é o lugar
56
Nos verbetes enunciação e enunciado do Dicionário de Semiótica (2008, p.166-170).
152
onde se d| a “colocaç~o em discurso”, onde h| uma retomada das estruturas
narrativas que se transformam em estruturas discursivas. Nas palavras de Fiorin:
A enunciação define-se como a instância de um eu-aqui-agora. Com
efeito, o sujeito da enunciação é sempre um eu, que opera, ao
realizar a produção discursiva, no espaço do aqui e no tempo do
agora. Por isso, a sintaxe do discurso, ao estudar as marcas da
enunciação no enunciado, analisa três procedimentos de
discursivização, a actorialização, a espacialização e a
temporalização, ou seja, a constituição das pessoas, do espaço e
do tempo do enunciado. (FIORIN, 2000, p. 40).
Considera-se, portanto, o discurso como sinônimo de um texto, instaurado
por duas instâncias: o enunciador e o enunciatário. O autor se utiliza ainda dos
verbetes de Greimas e Courtès para concluir que se a enunciação “é a instância
constitutiva do enunciado; o enunciado, por oposição à enunciação, deve ser
concebido como o estado que dela resulta” (FIORIN, 2005, p.36). Assim, afirmamos
a necessidade de analisar o Cocoricó pela instância discursiva do enunciado, pelo ato
por meio do qual o sujeito da enunciação faz ser o sentido:
Para que o uso de linguagens se torne discurso, a primeira instância a ser
observada na enunciação é a categoria de pessoa. A condição constitutiva dessa
categoria é construída pelo diálogo, na reversibilidade dos papéis eu/tu. “O eu é o
indivíduo que enuncia um discurso; o tu é o indivíduo a quem o eu se dirige; o aqui é
o lugar do eu” (FIORIN, 2005, p. 55). Soma-se à instância produtora do discurso, o
eu que enuncia, em dada espacialidade e correlata temporalidade. Fiorin explica:
Assim, espaço e tempo estão na dependência do eu, que neles se
enuncia. O aqui é o espaço do eu e o presente é o tempo em que
coincidem o momento do evento descrito e o ato de enunciação
que o descreve [...] Porque a enunciação é o lugar da instauração
do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaçotemporais, ela é lugar do ego, hic et nunc. (FIORIN, 2005, p. 42).
Ao sujeito da enunciação cabe uma orientação transitiva, continua Fiorin
(FIORIN, 2005, p. 42), “um ato de mirar o mundo”, ao que Greimas chama de
intencionalidade fundadora da enunciação. Trata-se de perceber a enunciação como
um enunciado-discurso, cuja função é a intencionalidade. Essa intenção configura-se
153
na relação entre os actantes da comunicação, o eu, de um lado o enunciador, e o tu,
instaurado por ele no discurso, o enunciatário. Do ponto de vista semiótico, é
possível reconstruir a enunciação a partir da reconstrução, ou seja, do ato gerador
do enunciado por operações de cat|lise. “A cat|lise é a explicitaç~o, efetuada
graças às relações de pressuposição que os elementos manifestos no discurso
mantêm com os que estão implícitos” (FIORIN, 2005, p. 32).
Esses elementos implícitos ao lado dos traços explícitos são as marcas
deixadas no discurso que nos permitem reconstituir o percurso traçado pelo
enunciador, para o fazer interpretativo do enunciatário ser processado. Considerase para isso: as competências necessárias para a produção do enunciado (sejam elas
linguísticas, discursivas e interdiscursivas, textuais e intertextuais, pragmáticas e
situacionais)57, a ética da informação (com leis discursivas que pregam a troca verbal
honesta58 entre os parceiros do ato comunicativo) e, o acordo fiduciário entre
enunciador e enunciatário. Fiorin esclarece que “o enunciador e o enunciatário são
o autor e o leitor, mas não o autor e o leitor reais, em carne e osso, mas sim o autor
e o leitor implícitos, ou seja, uma imagem do autor e do leitor construída pelo
texto” (FIORIN, 2008, p.138).
Antes de explorar as análises dos episódios de Cocoricó, pelas imagens do
enunciador e do enunciatário cravadas no enunciado, convém dizer que a
convocação do enunciatário para ler e interpretar o discurso-enunciado proposto
pelo enunciador (destinador) fica evidente somente quando são analisadas as
estruturas discursivas. Pelo conhecimento das instâncias de instauração do sujeito,
com as pessoas, espaços e tempos, é que estaremos conhecendo esse discurso57
A competência linguística é a competência básica do enunciado, o falante deve conhecer a
gramática. A competência discursiva diz respeito às transformações de estado presentes em todo o
texto, questões relacionadas à tematização, figurativização, aspectualização, modos de
argumentação, efeitos de sentido, dentre outros e; a competência interdiscursiva relaciona-se com a
heterogeneidade do discurso, em suas diferentes linguagens. Enquanto a competência textual leva
em consideração o discurso veiculado nos diferentes veículos e suas peculiaridades, a competência
intertextual refere-se às relações contratuais ou polêmicas de um texto. Por fim, temos a
competência pragmática que concerne aos valores ilocutários dos enunciados e a competência
situacional diz respeito ao conhecimento que cada parceiro tem do outro no ato comunicativo
(FIORIN, 2005, p.32-33).
58
Fiorin fala nas leis discursivas mais evidentes segundo KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. 1980.
L´enonciation. De La subjectivité dans le langage. Paris, Armand Colin. p. 210-214.
154
enunciado. O contexto de recepção está inserido na construção enunciativa e sua
depreensão é fundamental em termos de apreensão do sentido posto pelo
enunciador ao enunciatário. É sobre o processar do sentido e as imagens dos
sujeitos projetadas que iremos discorrer nesse capítulo.
3.1 Manifestações do narrador televisual
Será, assim, na relação enunciador-enunciatário dada pelo enunciado que
identificaremos “marcas” que nos levar~o { inst}ncia da enunciação. Essa relação
entre enunciador-enunciatário nos aproxima também dos mecanismos de fazer
(crer) o enunciatário telespectador-criança daquilo que está sendo dito. O
enunciador, assim, será o delegado do destinador - TV Cultura - que irá manipular o
enunciatário para fazer crer em seus valores. Mas como esse enunciador se faz ver?
Como em qualquer programa de televisão, a responsabilidade do que é
enunciado é da equipe responsável. Em Cocoricó, essa equipe, então, é composta:
desde a equipe de produção, reunindo aí, produtores, diretores, atores que
manuseiam os bonecos, roteiristas, até a equipe de pedagogos e psicólogos que
auxiliam na produção final do texto. Os nomes dessas pessoas aparecem
diariamente na vinheta de encerramento do programa, portanto, podem ser
conhecidos pelo enunciatário, pelo público. Soma-se a essa equipe, à própria
emissora que veicula o programa, onde ele é produzido, feito e transmitido, que já
citamos anteriormente como destinador e agora, enunciador pressuposto, que é a
TV Cultura.
Além da configuração desse destinador-enunciador descrito no primeiro
capítulo, que é a emissora na qual Cocoricó é transmitido, temos também outros
destinadores, os quais podemos citar: Fernando Gomes, o diretor do programa,
criador e bonequeiro responsável por Júlio, além de Hélio Ziskind e Fernando Salém.
O primeiro que é diretor musical de Cocoricó , e o segundo, roteirista e diretor
musical da temporada na cidade. O diretor Fernando Gomes é conhecido pela
criação e manuseio dos bonecos, seja em Cocoricó, ou em outros programas da
155
emissora (como em Vila Sésamo), ou ainda em comerciais de televisão. Assim como
Gomes, os diretores musicais são importantes referências de qualidade artística no
que diz respeito aos aspectos plásticos da linguagem televisual de Cocoricó, isto é,
tanto no visual quanto no sonoro.
No que diz respeito à qualidade musical, seguimos Felipe Trota,
considerando que existe um conjunto de critérios para classificá-la como de
qualidade, que vai: desde a conjugação de características estéticas específicas (alto
grau de elaboração harmônico-melódica), condições de experiência (audição
silenciosa), consumo elitizado (nobreza e classes abastadas), até a personalização
do criador (TROTTA, 2007, p.3). Ainda, segundo o autor, no universo da canção
popular, a legitimidade de categorias musicais tende a aumentar quando são
empregados alto teor de individualização do autor, grande complexidade
harmônico-melódica, sofisticação poética e sonoridade de arranjo rica em
contrapontos e variações de texturas instrumentais; ou seja, adotam critérios de
valoração musical emprestados dos critérios norteadores de qualidade derivados da
obra dos autores referenciais, “eruditos” (IDEM). São esses arranjos, como vimos
na canção “Pôr do Sol” que apontarão para determinada qualidade estética e, neste
caso, na atuação do autor enquanto destinador.
Entender essa relação entre a canção e os autores delas, nos é importante na
medida em que é por essa relação que são estabelecidas conexões entre a criação
autoral das músicas de Cocoricó, a linguagem televisiva utilizada e a apreensão que
se terá pelo uso de tais linguagens. A criança, baseado em Gonzalo Brenes (apud
SEKEFF, 2007, p. 105), tem o desenvolvimento musical processado em quatro
etapas. São elas: 1ª.) o ritmo, quando a criança percebe e reage ao ritmo musical
por meio da dança; 2ª.) a melodia, em que a criança já se mostra sensível à beleza da
linha melódica, podendo emitir uma série de sons em intervalos pequenos e
inventar músicas; 3ª.) a harmonia; a criança se interessa também pelos efeitos
gerados pela harmonia, pela combinação simultânea dos sons; e por fim a 4ª.) a
forma, quando a percepção se amplia, o que possibilita a recepção de estruturas e
formas musicais elementares. Portanto, a apreensão do sentido da música dos
156
clipes musicais será dada a partir da etapa em que se encontra cada criança. Isso
quer dizer que:
Compreender a linguagem que se lê e se escuta, vivenciar seus
múltiplos sentidos, integrar seus aspectos sensoriais, afetivos,
intelectuais, estéticos e contrapontá-los com outras matrizes de
conhecimento, esse é o objetivo básico do que entendemos da
música em termos de ferrramenta auxiliar da educação, pois sua
“vivência” é atributo essencial humano. (SEKEFF, 2007, p. 105).
Além da possibilidade de um desenvolvimento cognitivo perceptivo dado
pela musicalidade, as letras são tematizadas não apenas no lúdico, como também
no pedagógico, no sentido de trazer prescrições das ações cotidianas do dia a dia de
uma criança, dos valores sociais, em seus aspectos identitário e comunitário, da
consciência ecológica, do aprendizado através da experiência em grupo e pelas
diferenças, entre outros. Pela música “Acampar”, de Hélio Ziskind, que tem um clipe
musical e cujo refrão diz: “acampar, ficar pertinho da terra, tomar banho de
cachoeira e à noite tocar violão em volta da fogueira”, esses destinadores estão
dando valores eufóricos para o contato com a natureza59, como em outras músicas
da temporada na cidade. Em “Esse rio n~o tem peixe”, de Fernando Salém60,
também temos o desenvolvimento da temática ecológica dos rios poluídos das
cidades grandes ou na utilização de um discurso intertextual de músicas emblemas
da cidade de São Paulo, como no clipe musical “Cadê a mala do Júlio”, com
referência à música Trem das Onze, de Adoniram Barbosa que ficou conhecida pelo
grupo Demônios da Garoa.
São as qualificações, primeiro individual e depois coletivamente que farão
esses sujeitos também destinadores no seu fazer Cocoricó. Nesse primeiro nível da
59
A música do mesmo CD, “A História do Incêndio do Jequitib| de Carangola” conta a história de
um jequitib| que foi vítima de um incêndio, a letra da música diz: “Os amigos, inconformados,
perguntavam por quê? Por quê? Por causa de um gigante, um homem do mal, com arma de fogo
lutou com os homens do bem e suas espadas de |gua. O fogo morreu. Talvez o gigante também”,
que tematiza, portanto, a ação do homem sobre a natureza, nas figuratividades do homem mau e do
gigante da floresta.
60
Assim como Hélio Ziskind, Fernando Salem também possui uma biografia associada à criança,
tanto canções infantis, quanto roteiros para programas e animações infantis, além de ser um músico
referência na cidade de São Paulo, figurativizada nesta última temporada de Cocoricó. Disponível em
http://www.fernandosalem.com.br (acessado em julho de 2010).
157
enunciação, então, é que temos o enunciador como destinador implícito e o
enunciatário como destinatário implícito. Por uma hierarquia enunciativa, temos
neste primeiro nível, uma debreagem um não eu, um não-tu, um não-agora. Define o
semioticista, “a debreagem consiste, num primeiro momento, em disjungir do
sujeito, do espaço e do tempo da enunciação e em projetar no enunciado um nãoeu, um não aqui e um não-agora” (FIORIN, 2005, p. 43); por meio do qual o
enunciador delega à voz a outro sujeito: ao narrador. Na linguagem televisual, essa
delegação de voz é dada pelo ato de filmar os objetos mostrados pela imagem, que
constituem um conjunto de elementos significantes, mas que também indicam uma
ausência, a da instância da enunciação (BETTETINI, 1986, p. 31).
Pela análise dos episódios, identificamos que se trata de um narrador
implícito, ou seja, é como se o programa fosse narrado por si só, sem a intervenção
do papel de contar do narrador. Neste primeiro momento de contato com Cocoricó,
é como se n~o existissem “marcas de enunciação-enunciada em que o sujeito que
diz eu, denomina-se narrador, e o tu, por esse sujeito instalado, se configura
narrat|rio”, diz Medola (2001, p.77) ao analisar uma telenovela, gênero identific|vel
ao programa em análise.
Logo o narrador é dotado de um dever e poder fazer qualificado pelo
enunciador que por meio do narrador conduz o enunciado e realiza as delegações
de vozes aos actantes. No entanto, se temos em Cocoricó um narrador implícito que
não se mostra, não se apresenta, por outro lado, temos em outras sequências um
narrador explícito. Trata-se da câmera, que ora se esconde enquanto ferramenta de
mediação, entre o que está sendo narrado e para quem está se narrando, ora
“ganha vida” e passa a contar a história { sua própria maneira. E isso se dá pela
plástica da cena, isto é, pelos movimentos de câmera e pela edição. Como por
exemplo, no episódio “Pôr do sol”, no qual pela fus~o da imagem do boneco Júlio
com a vinheta de passagem é o que dá continuidade à cena, no privilegiar de um
actante em detrimento de outro, nessa fusão entre as cenas, ou por um close, como
outro exemplo. Nessas configurações, o sujeito da enunciação está delegando à
158
câmera o papel de narrador. Esse narrador se confunde com a própria câmera que
capta o narrado.
O que, então, estamos falando é que, a construção da delegação de vozes
nas sequências analisadas, ora é dada por um narrador (câmera) explícito numa
debreagem de 1º grau, ora por um narrador implícito numa debreagem de 2º grau
em que os interlocutores são postos em diálogo. Em Cocoricó, as cenas se dão nessa
passagem entre uma debreagem enunciva actorial de 1º grau com um narrador ora
explícito, ora implícito e uma debreagem de 2º grau caracterizada por uma
delegação de voz aos interlocutores, que estão explicitamente no enunciado
(aqueles que no nível narrativo chamamos de actantes). O esquema montado por
Diana
Barros
(1988,
p.
75)
para
indicar
esses
sujeitos
é
elucidativo:
FIGURA 20 – As delegações de vozes: debreagens de 1º e 2º graus
Embora esse narrador implícito não seja expresso no conteúdo verbal, não
diga eu, não tenha voz; ele se mostra, dando a ver o que pretende. O que pode ser
acompanhado no episódio “Os caçadores da galinha perdida”, numa referência
intertextual ao filme de Steven Spielberg “Os caçadores da arca perdida”. Neste
episódio, Lilica ganha um novo brinquedo, uma galinha chamada Loloca, enquanto
Júlio e Jo~o fazem um curso de consertos em geral pela internet e criam o “Cocó
conserta tudo”. Os caminhos de Lilica e Loloca se cruzam com os de João e Júlio e
os dois têm que provar que podem realmente consertar tudo. Na primeira
sequência Lilica brinca com seu novo brinquedo, a sua galinha Loloca que pela
posição em que é colocada põe ovo. A cena se desenrola numa debreagem
enunciva, em que Lilica interage com o brinquedo. No entanto, a mesma câmera
159
que filma em plano médio Lilica brincando, numa tomada posterior faz uma
panorâmica e logo depois dá um close na galinha de brinquedo com o intuito de
mostrar, dar visibilidade às funções práticas do brinquedo, que posteriormente será
quebrado. Ao fazer um movimento de câmera que por si só já mostra o que virá, a
câmera está narrando também a história e, sendo assim, passa a ser nesse instante
um narrador explícito numa debreagem de 1º grau.
FIGURA 21 – Lilica conversa com seu novo brinquedo: a galinha Loloca
Temos outro exemplo, no episódio da temporada na cidade “O Homem
Sapo”, o Beco onde as crianças costumam brincar está interditado para as
filmagens do filme “O Homem Sapo 4”. Eles s~o impedidos de assistirem às
filmagens, no entanto, ganham ingressos de cinema para a estreia mundial do filme.
Júlio, João, Lilica e Alípio descem do elevador do prédio e tentam brincar no Beco,
num plano médio a câmera mostra todos os actantes, no entanto, quando Júlio e
João se dirigem ao Beco, um dos produtores do filme os impede de entrar. Antes
dele (interlocutor) se dirigir aos interlocutários para avisá-los de que não poderão
passar, a câmera já mostrava num plano geral, toda a “parafern|lia” necess|ria para
gravar a cena de um filme e uma fita de sinalização (daquelas preta e amarela que
impedem a passagem) que o produtor segurava. No próprio ato de filmar, a câmera
narrava a cena, antes mesmo, de o conteúdo verbal manifestar o mesmo significado
do que estava sendo mostrado por ela.
160
FIGURA 22 – Garotos são impedidos de brincar no Beco devido
às gravações do filme “O Homem Sapo”
Foi possível observar, portanto, que o programa apresenta uma debreagem
enunciva, com os actantes da enunciação não projetados no enunciado, com uma
narração implícita em alguns momentos e explícita, em outros, quando é atribuído à
câmera que filma o papel de narradora da história, como se dá frequentemente em
filmes cinematográficos. O que chamamos atenção, neste momento, é que ao
contrário, de outros programas infantis, Cocoricó possui uma autonomia de
linguagem televisiva, que possibilita ao enunciatário também apreender e aprender
essa forma de discurso enunciado. Em Cocoricó, os movimentos de câmera
antecipam a cena, buscando o melhor ângulo, se distancia, se aproxima, permite ao
enunciatário uma visão mais ampla do ambiente cenográfico, que acaba, por fim,
criando um efeito de proximidade. Será, então, que temos um enunciatário próximo
cada vez mais do que se enuncia? Sendo educado para o audiovisual?
Por ora, podemos responder a primeira pergunta positivamente. A câmeranarrador delegado do enunciador pode assumir, segundo Arlindo Machado, o ponto
de vista de um “sujeito narrador onividente e tomar todas as imagens e sons
considerados importantes para a plena visualizaç~o e audiç~o da história”
(MACHADO, 2000, p. 101). Esse narrador apreende o que se passa - como um
observador com focalização total -, ele é onisciente e onipresente, sabe mais que os
161
actantes, conhece os sentimentos e os pensamentos de cada um deles e os
apresenta pelas suas escolhas. Essa posição de narrador explícito assumido pela
câmera carrega consigo um efeito de sentido de subjetividade, amplificado pela
categoria plástica da cena colocada pelo dizer dos interlocutores em face a face
com o interlocutário, telespectador, que trará então um discurso embreado. Vamos
explicar melhor.
O enunciador delega a voz do discurso a um segundo narrador: atores da
enunciação, que não dizem eu, mas se referem ao tu. Os atores dialogam com o
telespectador, narratário que está fora do texto. Por um efeito de subjetividade, o
telespectador é trazido para o enunciado e passa a fazer parte da cena enunciativa.
Trata-se de uma debreagem enunciativa de segundo grau. É aquela pela qual “se
instalam no enunciado actantes da enunciação (eu-tu), o espaço da enunciação
(aqui) e o tempo da enunciação (agora)”¸explica Fiorin (2005, p. 45). O enunciador
delega a voz ao narrador, que por sua vez, delega aos interlocutores e que, desta
vez, dizem “eu”, e se dirigem ao “tu”, criança, fora do texto. Não é como numa
entrevista jornalística em que o entrevistado se dirige para falar com aquele que
está atrás da câmera. Neste caso, é como se o atrás da câmera que enuncia fosse
ocupado pela criança, que apesar de estar fora do discurso, compõe a cena
enunciativa. Esse posicionamento é marcado pela corporeidade dos bonecos, que
se posicionam frontalmente à câmera na maioria das cenas, mas principalmente,
pelo assumir dessa corporeidade que vai de encontro à câmera numa proximidade
unida a um olhar face a face, como se realmente pudesse falar com aquele que
assiste ao programa.
No episódio “Desenho da Lilica”, da temporada 2008/2009, as crianças
fazem desenhos para participar de uma exposição em Cocoricolândia. Mas Pato
Torquato e Pata Vina aproveitam que Lilica não quer participar da exposição e se
inscrevem com um desenho seu, que é um dos premiados e faz Pata Vina ser a
celebridade que tanto queria. Selecionamos a sequência do diálogo inicial entre os
interlocutores.
162
FIGURA 23 –Cenas do episódio “Desenho da Lilica”: Pata Virna confidencia a Pato Torquato que
deseja ser uma celebridade; Caco se olha no espelho enquanto faz um desenho de si mesmo; João,
Caco, Lilica e Júlio observam a exposição; a indignação de Lilica (dada pelo manuseio da cabeça do
boneco) ao descobrir que Pata Vina se inscreveu na exposição com um de seus desenhos.
Sequência 1
DIÁLOGO
GRUTA
Pato Torquato: (hhuummm) o que é que você tem quuérida? [preocupado]
Pata Vina: (hhuummm) Torquato, eu queria, sabe, fazer alguma coisa diferente [os
dois se aproximam da câmera], ficar famosa, ah sei lá, virar celebridade? [suspira]
AH! Torquato, você me ajuda, querido?
Pato Torquato: Claro. Vou pensar em alguma coisa, meu bijuzinho. Quá! Vou pensar!
[Se aproxima e olha para a câmera]
Sequência 2
DIÁLOGO
PAIOL
Primeira tomada mostra Caco cantarolando e desenhando, enquanto outra tomada
mostra Lilica desenhando [plano médio]
Lilica: ah! Acabei, Caco.
Caco: Lilica não esqueça de assinar, viu?
163
Lilica: já assinei. Venha ver o retrato que eu fiz de você, Caquinho.
Caco: essa gerigonça aqui sou eu, é?
Lilica: gerigonça, Caco?
Caco: ainda bem que você avisou porque não dá pra entender nada [ênfase].
Lilica: ah, Caco, você não gosta dos desenhos que eu faço de você, né? [continua
cantarolando e pintando]
Lilica: [amassa os desenhos e joga na cabeça de Caco/surpresa] Astolfo, nossa, você
está fazendo uma coleção dos meus desenhos. Viu, Caco, o Astolfinho gosta dos
meus desenhos.
Astolfo: bonito [risadas]
Caco: ele não entende nada, né, Lilica.
Júlio: ei pessoal vocês já estão sabendo da exposição.
Caco e Lilica [juntos]: hhum, que exposição?
Júlio: a grande exposição de desenhos de Cocoricolândia, qualquer um pode
participar.
João: é parece que eles v~o dar um prêmio para o desenho mais “manero”. Eu e o
Júlio já fizemos os nossos.
Caco e Lilica : nossa que bacana.
Astolfo: dá, dá, dá.
Júlio: ah, não dá, Astolfo, esse aqui vai pra exposição.
Pato Torquato: uma exposição de desenhos, quá, quá, quá, e com prêmios, quá,
quá. É disso que a Vina precisa para ficar famosa, quá, quá, quá. [olhando para a
câmera]
Caco: a gente também tem alguns desenhos, né, Lilica.
Lilica: você, né, Caco. Eu só tenho gerigonça.
Caco: Júlio, vem cá ver. Olhe, Júlio, olhe todos.
Júlio: Ô, Lilica, não liga pro Caco, não.
João: faça outro desenho pra participar com a gente da exposição.
Lilica: eu não vou fazer nada. Minha exposição vai ser no bercinho do Astolfo. O
único que gosta dos meus desenhos.
João: ei, Lilica, espero um pouco.
Júlio: você não quer nem saber qual é o prêmio.
Caco: eu quero, qual é Júlio?
Neste episódio, temos os interlocutores Lilica, Caco, Pato Torquato, Júlio,
João e Astolfo que interagem entre si nestas duas sequências. Na primeira
sequência participam Pato Torquato e Pata Vina que conversam na gruta que
figurativiza a casa61 deles. Durante as cenas em que conversam, os olhares são
61
Não há um lugar onde os patos moram, e sim, a figurativização de uma casa de humanos, com sala
de estar, cozinha, acessórios, piano, móveis, etc. Nesta cena, Pata Vina está sentada e tocando seu
piano.
164
trocados entre um e outro interlocutor, numa debreagem enunciva de 2º. grau, com
o narrador implícito. Entretanto, conforme o desenrolar da sequência, os
interlocutores vão se dirigindo para mais próximo da câmera. Eles se aproximam e
os olhares passam a ser dirigidos não mais um ao outro, mas em direção à câmera.
Isso produz uma inclusão de quem assiste também como interlocutário, de fora do
texto e, portanto, numa debreagem enunciativa. Essa relação se torna ainda mais
próxima quando o Pato Torquato diz : “Ah, vou pensar, qu|”, bem próximo {
câmera e em tom de voz mais baixo, íntimo, que intensifica um efeito de sentido de
subjetividade e consequentemente, proximidade entre esses atores.
Na segunda sequência. Caco e Lilica estão desenhando. Caco pinta um
autorretrato, seu desenho está num cavalete, a câmera num plano aberto filma
Caco pintando e um espelho que também mostra a imagem dele no ato de pintar,
mas também se olhando. Já Lilica desenha e colore com lápis sob uma mesa, é
filmada num plano médio. Astolfo também participa da cena num jogo de olhares,
não fala, porém, olha para o desenho, olha para a câmera e observa quando Lilica
amassa um de seus desenhos e acerta Caco com ele, expressando sua irritação com
o comentário que ele fez. Júlio e João chegam no paiol contando sobre a exposição
de Cocoricolândia e, nesta cena, a câmera filma Pato Torquato que, de fora do paiol,
através da janela observa o diálogo entre os outros actantes. O narrador nesta cena
é delegado do enunciador e faz ver por Pato Torquato, o diálogo que transcorre
entre os interlocutores, numa debreagem enunciva actancial de 2º grau, com um
efeito de sentido de objetividade. Neste diálogo, o enunciatário não está como
interlocutário, como na cena enunciativa da primeira sequência, lhe caberá observar
o que se desenrola em frente à TV, como Pato Torquato faz. Quando Júlio e João
chegam no paiol, os olhares são dirigidos para Caco e Lilica e não para frente da
câmera como Pata Virna e Pato Torquato fizeram na sequência anterior .
Entretanto, após observá-los, novamente, o olhar é dirigido para a câmera, desta
vez por Pato Torquato, na continuidade da sequência, que numa imagem
centralizada e em close, diz em tom de confidência: “é disso que a Vina precisa para
ficar famosa, qu|, qu|, qu|...”. O efeito de sentido, novamente, é de subjetividade,
165
de proximidade com o telespectador, como se estivesse num diálogo com esse
interlocutário que assiste.
No episódio “Pé-de-moleque”, Júlio est| feliz, contente, porque é dia de péde-moleque; ele aprende sobre o amendoim, sobre as serventias desta leguminosa,
sobre o significado do nome. O episódio possui uma temática pedagógica. Fazemos
aqui uma distinção entre os termos educativo e pedagógico, acreditando que o
Cocoricó apresenta-se como um programa pedagógico. De acordo com o Dicionário
Houaiss, o primeiro significado da palavra é referente à educacional, ou seja,
relativo à educação. Educação quer dizer:
1.
Ato ou processo de educar(-se) 1.1 qualquer estágio desse
processo 2 aplicação dos métodos próprios para assegurar a
formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um
ser humano; pedagogia, didática, ensino 3 o conjunto desses
métodos 4 desenvolvimento metódico de uma faculdade, de
um sentido, de um órgão 5 conhecimento e observação dos
costumes da vida social; civilidade, polidez, cortesia.
(DICIONÁRIO HOUAISS , 2009, p. 722).
Já a palavra pedagógico é relativo à pedagogia:
1 ciência que trata da educação dos jovens, que estuda os
problemas relacionados com o seu desenvolvimento como um
todo 2 conjunto de métodos que asseguram a adaptação recíproca
do conteúdo informativo aos indivíduos que deseja formar 3
tratamento de crianças ou adolescentes com dificuldades escolares
4 ciência que trata da educação e da instrução das crianças e
adolescentes inadaptados 5 método pedagógico utilizado na
reeducação, educação especializada e na educação de adultos.
(DICIONÁRIO HOUAISS, p. 1455)
É proposto pelo enunciador de Cocoricó uma temática pedagógica, que quer
não necessariamente educar, mas ensinar algo, sobre o amendoim (como no
episódio que falaremos a seguir), sobre consciência ecológica ou respeito ao
próprio, assim como sobre o modo de viver em sociedade e de apreender o sentido
da linguagem televisual. No episódio citado, Júlio aprende que, apesar do
amendoim parecer pedra, serve para comer, para fazer doce. Pela utilização de Júlio
da palavra pé de moleque, configura-se uma figura de linguagem, ou seja, a
metonímia, o uso de uma palavra que usualmente significa outra coisa. Alípio pensa
166
que Júlio quer comer o pé de algum moleque, mas no final eles descobrem que tudo
“foi só um mal entendido”, como diz Lola. É ela quem explica que o amendoim vem
de uma planta que cresce embaixo da terra e que serve para fazer óleo para
máquinas e carros e para comer.
FIGURA 24 –Cenas do episódio “Pé-de-moleque”: a avó ensina a receita do pé de moleque para
Júlio; close na espuma indicando a resultante do fazer em um dos passos da receita; a câmera
focaliza a plantação de amendoins da fazenda
No episódio tem o clipe com o mesmo nome “Pé de moleque”. A letra da
música diz assim:
É hoje62, é hoje [Júlio]
É hoje o dia de comer pé de moleque [repete]
pé de moleque, pé de moleque
hhumm, mas por que se chama assim, hein?
O que que tem a ver doce com pé
Doce é na barriga
vou perguntar pra minha amiga
62
As palavras em negrito são aquelas tônicas, ou seja, cantadas/faladas em um tom mais forte,
presente, e que cria um efeito de sentido que ressalta e chama mais atenção para o que está sendo
cantado.
167
Oriba!
Que cê qué? [Oriba]
Pé de moleque, por que se chama assim?
Porque parece o pé de alguém
que andou com pé no chão [Oriba]
Pé sujo?
Parece na cor, mas não no sabor [Oriba]
Agora, tchau, que eu vou nadar que tá calor
Hum, amiga sabida [Júlio]
Sabida pra chuchu [Oriba]
É hoje, é hoje [Júlio]
Nem que chova canivete, eu vou comer pé de moleque
Nem que chova canivete, eu vou comer pé de moleque
Peraí, como se faz pé de moleque?
Vou perguntar pra minha vó
É hoje, é hoje [Júlio]
Nem que chova canivete, eu vou comer pé de moleque
É hoje, é hoje
O vó, como se faz um pé de moleque, hein?
Algo assim, vem ver, [Vó/prolonga a frase]
a sopa no fogo
Com água, mel e margarina
Deixa esquentar até o melado
ficar dourado e
fazer bolotinhas plop, plop
põe o amendoim e uma
colherinha assim de bicarbonato
mexe, mexe e mistura bem
mexe, mexe e mistura bem
tira da panela [Vó]
tira da panela [Oriba e Júlio]
despeja numa pedra [Vó]
despeja numa pedra [Oriba e Júlio]
deixa até esfriar [Vó]
corta um tijolinho e pode cantar
tem pé de moleque quem quer provar
duro como pedra, doce como mel [todos]
pede moleque já dizia a baiana
no tempo da princesa Isabel [repete]
croc, croc, huhm
168
O
narrador
explícito
delegado
do
enunciador
se
faz
presente,
principalmente, nos clipes musicais dos episódios, isso porque, os interlocutores
cantam e se dirigem exclusivamente nesta relação descrita anteriormente no olhar
para “fora do texto”. No clipe, pela letra da música, temos um narrador explícito
que é o próprio Júlio, ele n~o diz eu, mas diz “minha amiga” e “minha vó”, e é o
Júlio que vai explicar ao narratário que é hoje o dia de comer pé de moleque.
Enquanto Júlio vai andando pela fazenda, a câmera vai seguindo-o,
até que
finalmente ele questiona por que o doce se chama assim, quem vai responder é a
“amiga sabida”. Júlio pergunta sobre o significado do nome, desse doce
genuinamente brasileiro e quem responde é Oriba, depois de sua resposta, ele
ainda chama a atenção para o fato de a amiga ser sabida, o valor de o próprio saber
da amiga é euforizado.
Na continuação de se narrar sobre o “pé de moleque”, como chama o nome
da canção, Júlio novamente pergunta “peraí”, como se faz pé-de-moleque?”
Dirigindo-se à câmera, num close em seu rosto, chamando ainda mais a atenção para
o que será respondido e quem responde, ele diz: “vou perguntar pra minha vó”.
Júlio continua andando e vai para a casa da fazenda na cozinha, onde a avó vai
responder a pergunta do neto, ensinando-o como se faz o pé de moleque. A avó
prepara (enquanto canta) o doce, o passo a passo dos ingredientes, de como se
deve fazer. Por closes no passo a passo – como por exemplo, na panela para
acrescentar o amendoim e o bicarbonato ou na pedra para cortar o doce – o
interlocutário é levado a participar do fazer aquela receita. É a avó quem responde
como se faz pé-de-moleque, já que ela é quem tem o saber fazer, a competência
para. A avó vai ensinando como se faz e, seu olhar - em primeiro plano, assim como
o de Júlio, que está atrás dela num segundo plano, ambos de frente – se dirigem
para a câmera. A avó até dança (gesticula com as mãos de um lado para o outro)
quando diz: “pede moleque, j| dizia a baiana no tempo da princesa Isabel” e olha
para a câmera. Esse olhar que dialoga com esse sujeito interlocutário-telespectador
persiste por todo o enunciado do programa e, ao final a letra da música diz: “tem pé
169
de moleque, quem quer provar?”, incitando o espectador a depreender que ele
também pode provar o doce que, “é duro como pedra, mas doce como mel”, como
diz a letra, portanto, sancionado positivamente”.
Na verdade, comprovamos pelas análises que justamente esse movimento
de câmera com efeito de continuidade - como tratado na an|lise do episódio “Pôr
do sol” – mas, principalmente, por esse diálogo dado pelo olhar dirigido à câmera
dos actantes do enunciado criam um efeito de subjetividade. Por esse efeito com o
interlocutário que assiste, é como se ele mesmo pudesse estar ali conversando ou
participando do fazer daquela receita, do estar junto do Júlio no passeio e na
descoberta do que é e de como se faz o pé de moleque.
Essa característica convoca esse interlocutário a estar junto com a televisão,
respondendo, interagindo dialogalmente com ela, por se tratar de criar uma
interação de proximidade. Essa determinada interação com o interlocutário-criança
prevê determinada resposta aos estímulos visuais e sonoros dados pela enunciação.
Esse modo de organização escolhido por este enunciador faz crer esse enunciatário
de que o programa instala um diálogo com ele, mesmo sem a existência a priori
dessa possibilidade de interação, por se tratar de um meio de comunicação de
massa. Afinal, a TV permanece sendo um instrumento de mediação.
O enunciador de Cocoricó organiza e delega vozes no interior do discurso.
Sabemos que ele organiza, também, a temporalidade em que o discurso será
construído, ou seja, o tempo da enunciação. Qual seria esse tempo neste programa
de televisão? Para responder a essa pergunta, precisaremos fazer algumas
considerações.
3.2 É tempo de Cocoricó
Em primeiro lugar, o programa está inserido dentro da grade de
programação da televisão, um “agora” de transmiss~o do próprio programa.
Fechine fala em três etapas constitutivas de qualquer produto televisual, são elas:
170
1) a produção do programa, o registro ou a realização de um
evento pela televis~o, ou seja, a sua ‘colocaç~o’ em um formato
televisual; 2) a transmissão, através da qual o programa é inserido
na grade de programação e levado ao ar; 3) a recepção, o
momento em que se dá a fruição do programa transmitido pelo
público. (FECHINE, 2008, p. 28).
Sabemos que Cocoricó não é ao vivo, não é transmitido no mesmo instante
em que é gravado, não é uma transmissão direta. Neste mesmo trabalho, a autora
explica as transmissões diretas:
Toda transmissão direta é enquanto dura. O que significa dizer, em
outras palavras, que a existência da transmissão direta está
condicionada, tecnicamente, à extensão temporal do ato no qual
se dá a operação que lhe dá lugar, e, semioticamente, ao presente
mesmo da sua enunciação. Essa duração, que a própria operação
técnica de transmissão estabelece, corresponde, num outro nível
de análise, ao agora da enunciação de uma sequência direta
(duração da transmissão agora enunciativo). Se, numa
sequência direta, o que está sendo transmitido para o
telespectador está se fazendo no momento mesmo em que está se
dando sua transmissão, há então uma temporalidade comum
reunindo aqui enunciado e enunciação e determinando,
consequentemente, a instauração de um mesmo agora nas duas
instâncias enunciativas. (FECHINE, 2008, p. 121).
Nos programas gravados, como é o Cocoricó63 - seguindo ainda Fechine – a
produção e a transmissão não acontecem simultaneamente, entretanto, a
transmissão e a recepção, sim, são simultâneas e, portanto, concomitantes. Não
temos no programa essa temporalidade comum entre enunciado e enunciação.
Entretanto, nesta primeira consideração feita sobre a própria transmissão do
programa, inserido na grade de programação, temos a duração do programa
previamente gravado. E temos também a continuidade do programa dentro dessa
grade. Então, apesar de estarmos falando de dois tempos diferentes, o de
transmissão e o de aspectualização do programa, temos um e outro agindo na
63
Cocoricó é gravado durante o período de um mês, ininterruptamente e, só após todas as fases
(roteirização, ensaios, gravação e finalização) é que a temporada estreia, seguindo a lógica de
gravação dos seriados.
171
totalidade
do
discurso.
Temos
no
Dicionário de Semiótica,
o
verbete
aspectualização:
[...] o aspecto é introduzido na linguística como “ponto de vista
sobre a ação”, suscetível de se manifestar sob a forma de
morfemas gramaticais autônomos. Tentando explicitar a estrutura
actancial subjacente { manifestaç~o dos diferentes “aspectos”,
fomos levados a introduzir nessa configuração discursiva um
actante observador para quem a ação realizada por um sujeito
instalado no discurso aparece como um processo, ou seja, como
uma “marcha”, um “desenvolvimento”. Sob esse ponto de vista, a
aspectualização de um enunciado (frase, sequência ou discurso)
corresponde a uma dupla debreagem: o enunciador que se delega
no discurso, por um lado num actante sujeito do fazer e, por outro,
num sujeito cognitivo que observa e decompõe esse fazer,
transformando-o em processo [...]. (DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA,
2008, p.39).
Tentemos a partir da definição do conceito relacioná-lo com o programa.
Cocoricó é transmitido, diariamente, em dois ou três horários64 predefinidos na
grade de programação da TV Cultura. Essa transmissão - e incluímos também a
parada para o intervalo comercial – obedecerá sequencialmente essa grade
predefinida. No entanto, e não só o Cocoricó, nem a TV Cultura, mas a televisão em
geral, especialmente as emissoras com público segmentado como é o caso dos
canais de TV por assinatura dirigido às crianças, tentam fidelizar o telespectador,
quer dizer, no próprio enunciado televisual (na tela da TV) aparece (além da
logomarca da emissora) o programa que virá a seguir na grade de programação. O
enunciador, ao fazer isso, instaura um tempo aspectualizado, não só do enunciado
do Cocoricó, mas de um enunciado maior, que seria a própria grade da emissora e
sua programação, chamando a atenção para os outros programas da emissora. A
aspectualização do tempo aqui não é do programa que está se fazendo, mas da
programação que vai se constituindo enquanto um conjunto, uma totalidade, em
64
O horário que Cocoricó é transmitido depende da programação da TV Cultura. Por exemplo,
durante a programação de férias da emissora, no período de janeiro de 2011, o programa foi
veiculado em três horários. Mesmo com essa adequação à programação da emissora, durante o
período da pesquisa (2007-2011), o programa teve diferentes horários, mas permaneceu sendo
transmitido diariamente de segunda à sexta-feira, no período da manhã e da tarde.
172
que o enunciatário-telespectador possivelmente é convidado e manipulado a fazer
parte.
FIGURA 25 – Cena do episódio “Pôr do sol”, com o
dizer “a seguir” e a logomarca do programa Caillou
Outra consideração a ser feita é sobre o tempo nos episódios de Cocoricó. Se
temos na televisão, os programas de transmissão direta os quais falamos a pouco como as transmissões de futebol, os telejornais, os programas de auditório, entre
outros – temos também os programas previamente gravados, como as telenovelas,
minisséries, seriados e infantis etc. Como em qualquer outro discurso, Cocoricó se
instaura por um agora, momento da enunciação, gerado pelo ato de linguagem
ordenado pela categoria topológica da concomitância vs não-concomitância, que,
segundo Fiorin (2005, p. 142),
por sua vez se articula em anterioridade vs
posterioridade . O autor continua :
O momento que indica a concomitância entre a narração e o
narrado permanece ao longo do discurso e, por isso, é um olhar do
narrador sobre o transcurso. A partir dessa coincidência, criam-se
duas não-coincidências: a anterioridade do acontecimento em
relação ao discurso, quando aquele já não é mais e, por
conseguinte, deve ser evocado pela memória, e sua
posterioridade, ou seja, quando ainda não é e, portanto, surge
como expectativa. Assim, anterioridade e posterioridade são
pontos de vista para trás e para frente em relação ao momento do
fazer enunciativo. O eixo ordenador do tempo é, pois, sempre o
momento da enunciação. (FIORIN, 2005, p. 143).
173
Fiorin explica que o tempo irá obedecer à seguinte constituição: momento
da enunciação, momento da referência e momento do acontecimento (2005, p .
146). Como esses momentos aparecem nos episódios? O episódio “Apressadinhos”,
por exemplo, tem início com a sequência que mostra o amanhecer na fazenda.
Lembramos que aí, acontece uma reiteração da própria vinheta de abertura que
traz no verbal: (“T| na hora de Cocoricó”) e no visual (o amanhecer do dia e a
aparição de Júlio). Essa presentificação é do passar das horas, dos momentos em
sua duratividade, assim como do ato de assistir ao programa. Voltemos ao episódio:
a maquete da fazenda é mostrada visualmente por um travelling da câmera,
enquanto são ouvidos ruídos de pássaros e uma música suave, batidas leves, que
remetem ao assobio cantarolado de Júlio que passeia pela fazenda e encontra seu
avô, que diz: “hoje vai ter milho verde para todo mundo, eu acabei de colher,
sabe?”. Após receber essa informação, Júlio sai avisando todos os seus amigos que
terá milho verde. Temos então uma debreagem temporal enunciativa, “quando se
projetam no enunciado os tempos do sistema enunciativo” (FIORIN, 2005, p. 147).
Os tempos da fala, tanto do avô quanto de Júlio são os do “hoje” e estão
relacionados a um momento de referência presente, o mesmo da enunciação, que
indica concomitância em relação ao momento da enunciação. Mas observa-se
também o tempo de posterioridade ao momento do acontecimento, como por
exemplo, os usos de “vai ter”, “ter|”. Ainda nesse episódio, Júlio conta para Lilica,
Lola e Zazá que Dito e Feito queimaram a boca após pegarem as espigas de milho
que tinham acabado de cozinhar. Lola diz: “eu até me lembrei de uma coisa que o
diretor do meu circo sempre dizia sobre gente apressada. Apressadinho ou come
cru ou queima a boca”. Temos, ent~o uma debreagem enunciva, que está
relacionada a um momento de referência pretérito (“lembrei”), não-concomitante
com o momento da enunciação, numa anterioridade durativa e não-limitada
(“sempre”, “dizia”).
A temporalidade do enunciado em Cocoricó apresenta o dia a dia das crianças
como um tempo durativo das obrigações e deveres, sobretudo, das brincadeiras e
recreações. Nas primeiras temporadas, esse tempo aspectualizado era marcado
174
pelo Júlio que, no final de cada episódio, escrevia em seu diário o que tinha feito
durante o dia ou que tinha aprendido, quem tinha conhecido. Embora, nas últimas
temporadas, os episódios não tenham mais essa sequência narrativa que marcava o
“final do dia”, como se o tempo de um dia fosse o tempo da enunciação, o
enunciatário não fica sem essa referência. Os episódios trazem marcas verbais
(hoje, amanhã, depois, mais tarde, à noite, datas comemorativas) e visuais
(luminosidade do sol ou falta de luminosidade nos ambientes cenográficos, que
marcam o dia ou a noite e mesmo a caracterização dos bonecos com pijamas,
fantasias ou acessórios cenográficos que lembrem essas datas) que remetem à
própria rotina vivida pelo enunciatário, criando assim, um efeito de verossimilhança,
com o aquilo que ele vive no seu dia a dia. Esse efeito é demarcado ainda nas
vinhetas de abertura, com o nascer do sol (vinheta antiga) e no relógio da cidade
(vinheta atual). Por esses efeitos de sentido criados pela temporalidade no
programa “serem semelhantes {s experiências de temporalidade experimentadas
no mundo natural, promovem um maior envolvimento do enunciatário pelo
mecanismo de identificaç~o” (MÉDOLA, 2001, p. 84).
Essas marcas verbais e visuais de temporalidade existem no Cocoricó e mais
que isso, existem também os actantes do enunciado que se transformam em
interlocutores de outros enunciados, tornando possível, intervenções que vão além
do começo e do término do programa. Vimos que o Júlio, antes mesmo de ser do
Cocoricó, participou de outro programa da TV Cultura, chamado Um banho de
Aventura. As narrativas de Cocoricó giram em torno das experiências dele enquanto
um interlocutor deste enunciado. Júlio, porém, além de se divertir e conhecer a
rotina da fazenda de uma cidade do interior, como Cocoricolândia, nas últimas
temporadas, também se arriscou a ser interlocutor de outros enunciados e, não
apenas, do programa Cocoricó.
Ele participou de campanhas publicitárias
institucionais (ou seja, da TV Cultura) que eram veiculadas durante os intervalos
comerciais da emissora. São elas: os direitos da criança e do adolescente 65
(veiculada em 2008), precauções do vírus H1N1 (veiculada em 2009), promoção do
65
Essa campanha fez parte do DVD “Divers~o”, lançado em 2008 pela Cultura Marcas. Falaremos no
tópico das temáticas sobre essa campanha.
175
Dia das crianças e campanha de Natal da emissora (ambas veiculadas em 2010).
Essas campanhas apresentam tanto um enunciador que se faz ver engajado
socialmente – mas também extremamente interessado numa relação cada vez mais
próxima do enunciatário - como também instaura a temporalidade do Cocoricó que
mesmo essas campanhas sendo transmitidas durante os comerciais, o enunciatário
delas provavelmente é o mesmo do programa. Assim, a temporalidade na qual
Cocoricó é produzido e realizado, portanto, do enunciado, parece ser a mesma do
enunciatário, daquele que sabe dos seus direitos, vê todos os jornais, revistas,
televis~o, internet, falando sobre um “novo” vírus de gripe, sabe que o Dia das
crianças se aproxima e pode participar de uma promoção e ganhar um boneco do
programa.
Duarte (2004, p. 35) explica que enquanto atores sociais, os actantes do
percurso narrativo e no discurso representam e desempenham um papel temático
como ator discursivo, nesse caso, como ator discursivo delegado da voz do
destinador-enunciador TV Cultura. Ela explica ainda que nesta situação a própria
televisão monta uma estratégia: convoca atores sociais para papéis discursivos, nos
quais eles não podem nem devem perder sua identidade enquanto atores sociais,
pois “dela dependem os efeitos de sentido a serem produzidos” (IDEM). Fazendo
isso, é como se o enunciador estivesse transformando esses interlocutores em coenunciadores: em nosso objeto de estudo, é o Júlio quem avisa sobre as precauções
a serem tomadas contra o vírus da nova gripe ou sobre os direitos das crianças.
Voltemos em Cocoricó, o boneco Júlio ganha “seus cinco minutos de fama”, passa a
ator social e ator discursivo, num programa narrativo diferente, não aquele do
enunciado de Cocoricó, mas o de delegado da TV Cultura que exerce durante os
intervalos comerciais. O que mostra um reconhecimento do destinador que torna
Júlio um de seus porta-vozes. Nesse fazer depreende-se a relevância do público
infantil para a emissora.
A última consideração a ser feita sobre a temporalidade no programa diz
respeito às elipses temporais, enquanto “pulos” de tempo entre as sequências. A
elipse é uma figura de sintaxe que se configura como “ a omiss~o de um termo que
176
o contexto ou a situaç~o permitem facilmente suprir” (CUNHA, 2001, p. 619-623).
Gramaticalmente, a elipse de um termo deve ser invocada apenas quando manifesta
e mesmo assim com determinada prudência, como na omissão do sujeito, do verbo,
da preposição ou da conjunção nas orações. Mas a elipse pode também ser utilizada
como recurso condensador da expressão, caracterizando-se assim, como um efeito
estilístico que caracteriza concisão e rapidez. Em seu uso gramatical, esse tipo de
elipse pode ser de: descrição esquemática de ambientes, estados de alma, perfis;
em anotações rápidas; em na construção de frase que expressem pensamentos
condensados, provérbios; nas enumerações, onde a inexistência do artigo, costuma
sugerir as ideias de acumulação, de dispersão. Temos ainda, a figura de sintaxe
zeugma, uma das formas de elipse que consiste em fazer participar de dois ou mais
enunciados um termo expresso apenas em um deles (CUNHA, 2001, p. 621-623).
Tentamos construir a relação entre as elipses gramaticais e as elipses neste
produto televisual. O Cocoricó traz consigo uma propensa construção de efeito de
sentido que resgata outros programas infantis, como, por exemplo do Vila Sésamo
que inseriu o conceito de programas feitos para crianças a partir de quadros curtos
de no máximo 3 minutos para dificultar a perda de atenção, mas também de Rá-timbum, com a introdução de novas estéticas (vinhetas, molduras, musicalidade etc.)
para o programa infantil. Mas, que, sobretudo, cria uma maneira particular de dar
indicações ao enunciatário do tempo do programa, ou seja, para fazer entender de
que o tempo - mesmo que fragmentado na própria especificidade televisa
é
contínuo. Essas indicações seguem os mesmos parâmetros de linguagem das ficções
televisivas seriadas brasileiras, como novelas, minisséries e seriados.
São utilizadas: as vinhetas de passagem, conforme descrevemos no capítulo
anterior, como também molduras e fusões entre as cenas. Tais utilizações têm
como intuito explicitar ao enunciatário de que não se trata do tempo presente,
àquele vivido pela narrativa, mas que se trata de um tempo anterior ou de um
tempo futuro 66 (um tempo enuncivo, do então), o primeiro um flashback, o
66
O flashback é o deslocamento da narrativa para o tempo passado e o farword é o deslocamento da
narrativa para o tempo futuro. Esses são recursos clássicos de temporalidade do cinema, cujo
177
segundo um farwords (MEDOLA, 2001, p. 84) ou ainda de um clipe musical, como se
este remetesse a um desses dois tempos. Se temos, portanto, pela imagem visual
uma descontinuidade na cena com a inserção de vinheta e utilização de molduras,
temos ainda uma continuidade narrativa que permite ao enunciatário apreender o
sentido do passar das horas ou do espaço da narrativa, dando-lhe uma marcação da
duração e do espaço. O tempo passa, mas não na temporalidade em que é
expresso, mas em sua aspectualidade dada pelos procedimentos durativos
paradigmáticos do televisual. Embora também, sintagmático, na medida em que se
apresenta enquanto um zeugma televisual, ou seja, na fusão entre uma cena e outra
que permite ao enunciatário apreender os dois enunciados (dados por
temporalidades e espacialidades diferentes na narrativa) que são expressos por
essa fusão. Nessa apreensão, o enunciatário é levado a apreender tanto de forma
linear, quanto não-linear.
No episódio “Cocoricó no Jap~o”, os actantes estão em outro tempo que
não o da narrativa principal, sendo assim como vimos, a plasticidade da cena sofre
uma variação67. O episódio começa com um deslocamento para um tempo passado,
num flashback de Astolfinho para uma lembrança do clipe musical “Quem tem
amigo”. Nesta sequência, a imagem do programa ganha uma moldura, nas partes
superior e inferior da tela, que esfumaça (pela utilização do zoom que dá uma
imagem desfocada na linguagem televisual) as cores da imagem inicial, que estava
instaurada no tempo presente da narrativa do episódio. Na passagem para a
sequência seguinte, em que Astolfinho est| dormindo em seu “berço” no paiol,
esse esfumaçado toma conta da tela por completo e depois vai se desfazendo com
a imagem do paiol, o esfumaçado é dado novamente pelo desfocado a imagem e
reiterado na fusão entre as cenas. Por uma referência plástica é que se constrói o
objetivo é organizar a sequência dos planos “de modo a minimizar a percepç~o dos cortes, criando
no espectador a sensaç~o de harmonia em um fluir temporal” (MEDOLA, 2001, p.84).
67
A sonoridade também sofre alteração, efeitos são introduzidos no processo de pós-edição. O som
da música, as vozes dos actantes ou os efeitos sonoros (ruídos) podem ganhar elementos graves e
em tom mais baixo ou agudos e em tom mais alto. No primeiro caso, o efeito de sentido que se tem é
de quase como um cochicho; no segundo caso temos um grito, um aviso, são construções que
indicam a temporalidade outra em que se dá a cena.
178
sentido de um outro tempo de duração da ação68 – o tempo enuncivo - que não o
do enunciado presente - enunciativo. Essa moldura é dada em seus aspectos
plásticos como: formante cromático que esfumaça as cores, fazendo-as quase que
perder o volume preenchido por elas; formante eidético, que por outro lado,
destacam as cores da moldura da imagem e seu volume que não são tomadas por
esse efeito esfumaçado e; formante topológico, já que a moldura passa a organizar
a imagem. A maioria dos clipes musicais apresenta essa característica, já que eles
são incluídos como uma narrativa secundária e, que por si, acabam instaurando
outra temporalidade e, às vezes, outra espacialidade69 que não a da narrativa
principal.
FIGURA 26 – Molduras e efeito esfumaçado referencia outro tempo, que não é o do episódio
68
Para Fiorin (2005, p. 235), ocorre uma debreagem enunciva do enunciado quando os
“acontecimentos s~o narrados nos tempos enuncivos”, como acabamos de descrever que acontece
neste episódio de Cocoricó. “Como h| dois subsistemas enuncivos, temos narrativas de antecipação,
que se organizam ao redor de um marco temporal futuro, e de retrospectiva, que se articulam ao
redor de um marco temporal pretérito”, como nas narrativas escritas sob a forma de di|rio que
criam um efeito de simultaneidade.
69
Como em Cocoricó na cidade, que os clipes musicais apresentavam as cenas externas feitas em
espaços urbanos com os bonecos, ao contrário do espaço mostrado pela narrativa que era do beco, ou
do apartamento de João, portanto, em locações internas, do cenário.
179
Essas análises dos episódios nos possibilitou entender o modo de presença
discursiva da temporalidade em Cocoricó. O que vimos é que, a instauração do
tempo, assim como das delegações de vozes (conforme descrevemos no tópico
anterior), são dadas de modo singular pelo programa. Se a delegação de vozes é
marcada pelos movimentos e enquadramentos da câmera e do modo de olhar dos
actantes, a instauração do tempo é dada nos modos verbais temporais, e
principalmente, na utilização de linguagem televisual. Essa utilização pontua as
relações de continuidade e descontinuidade do modo de contar a narrativa
visualmente em seu tempo e, claro, em seu espaço como estaremos discorrendo a
seguir.
3.3 Cocoricolândia e a Cidade Grande
Em termos semióticos, de acordo com o Dicionário, espaço 70 pode ser
entendido pelo ponto de vista geométrico, psicofisiológico ou sociocultural,
definindo-se ainda, de acordo com suas propriedades visuais (2008, p. 176-178).
Tomamos então o conceito de espacialização e localização para analisar Cocoricó. Se
a espacializaç~o é “um dos componentes da discursivizaç~o que possibilita aplicar
no discurso-enunciado uma organizaç~o temporal” (IDEM, p. 176), a localizaç~o
seria um dos procedimentos dessa espacialização, definida com o auxílio de uma
debreagem, ou seja, “a debreagem instala, no discurso-enunciado, um espaço
alhures (ou espaço enuncivo) e um espaço aqui (espaço enunciativo), que podem
manter entre si relações estabelecidas pelos procedimentos de embreagem”
(IDEM, p. 295).
Assim, a espacialidade pode ser articulada em categorias como interioridade
vs exterioridade, fechamento vs abertura, fixidez vs mobilidade, entre outras. Se
tomarmos a literatura, segundo Coelho (2000, p. 77), os espaços podem ter função
estética como aqueles ambientes que servem de cenário à ação e que, embora
descritos com riqueza de pormenores, não atuam nela, ou função pragmática,
70
Os seguintes verbetes: espacialização, espaço, localização espaço-temporal e proxêmica foram
pesquisados no Dicionário de Semiótica (2008).
180
quando os elementos que servem de instrumento para o desenvolvimento da ação
narrativa, por exemplo, para provocar, acelerar, reatar ou alterar a ação dos
actantes; ajudam a caracterizá-los, descrevendo o ambiente em que eles vivem; ou
criando uma atmosfera propícia ao desenrolar da ação.
Dadas essas definições, voltemos ao Cocoricó.
Dissemos antes, que o
programa em seus primórdios tinha uma curta duração com pequenos diálogos
para que os interlocutores apresentassem os desenhos animados. Nesta época,
Júlio e seus amigos ocupavam um determinado lugar cenográfico que era o do
paiol. Com a renovação do programa, em 2002, Cocoricó não precisava mais dividir o
seu tempo de duração do programa com os desenhos animados, ampliando esses
lugares cenográficos, que do paiol, passou à casa e o campo da fazenda, além de
lugares como posto de saúde e escola na cidade fictícia de Cocoricolândia, onde a
fazenda se localiza.
A fazenda é apresentada ao enunciatário por painel fotográfico e por
maquete. O painel encontra-se na vinheta de abertura fazendo imagem de fundo
para a própria marca do programa e nos episódios também como cenário de fundo
para a fazenda. O painel é uma fotografia de um ambiente rural e se divide,
principalmente, em duas cores diferentes: o azul do céu e o verde do campo. O azul
é contínuo, enquanto que o verde é marcado pela descontinuidade das montanhas,
cobertas de vegetação, não uma floresta, mas um descampado. A temporada na
cidade também possui um painel fotográfico que figurativiza prédios da região
central da Cidade Grande, uma infinidade de “arranha-céus”. Os painéis - tanto o do
campo quanto o da cidade - funcionam como pano de fundo para os actantes que
estão sendo filmados em primeiro plano. Ao mesmo tempo em que a utilização de
painel fotográfico mostra a criança uma ambientação do lugar que está sendo
construído pelo programa, ao mesmo tempo, esse uso pode transformar esse lugar
construído enquanto uma figuratividade estereotipada do lugar original, o campo
ou a cidade.
A maquete da fazenda (com o paiol, a casa, o campo) aparece como vinheta
de continuidade entre uma cena e outra, figurativizando o passar de um tempo para
181
outro ou de um dado lugar para outro, nessa passagem da cena anterior para a
seguinte. Essa maquete 71 está presente em praticamente todos os episódios,
mesmo porque é responsabilidade dela situar o enunciatário no tempo e no espaço
em que está se dando a narrativa. Vamos a um exemplo, no episódio “Programa de
índia”, Oriba vai conhecer a Cidade Grande e aprende sobre as diferentes tribos. Ao
voltar para a fazenda, é a maquete que orienta o enunciatário de que o espaço da
cena seguinte é a fazenda, a câmera faz um movimento de zoom in (que se
aproxima) e depois vai para a direita. O aparecer da figura da fazenda somada ao
movimento instaurado pela câmera, constrói assim, um efeito de sentido explicado
plasticamente ao enunciatário, ao mesmo tempo, em que instaura o tempo e o
lugar da narrativa, que Oriba não está mais na cidade, que voltou à fazenda.
FIGURA 27 : As maquetes da fazenda: em três tomadas diferentes: o paiol,
a fazenda na montanha (painel ao fundo) e a lateral da casa.
O outro espaço instaurado em Cocoricó é o da cidade. Ainda nas primeiras
temporadas, esse espaço da cidade foi trazido por Júlio, um menino que até então
não fora criado na zona rural. Entretanto, foi apenas com a entrada do primo João,
que veio visitá-lo na fazenda que a cidade começou a
71
se apresentar para o
Na temporada de Cocoricó na cidade, a maquete do campo passou a ser ainda mais utilizada. O
motivo é a construção do sentido do que é o campo e do que é a cidade para a criança telespectadora.
Falaremos ainda da maquete da cidade nas próximas páginas.
182
enunciatário do programa. Pelas narrativas, é que o enunciatário o conhece: o que
ele gosta de fazer, como se veste, o jeito que fala, os esportes que pratica, etc.
Além disso, a cidade passa a ser trazida pelo discurso verbal de João: ele tem uma
forma própria de falar utilizando-se principalmente de gírias; ele é negro (a
diversidade étnica brasileira é tematizada pela distinção entre as raças, Júlio é
branco e Oriba é uma índia); em sua ida para a fazenda, João traz seu computador e
celular, aparatos midiáticos e tecnológicos, que nas narrativas do programa, ainda
não fazem parte da cotidianidade rural.
Na temporada 2008/2009, quando João chega na fazenda Cocoricó, traz
consigo o espaço da cidade, numa debreagem enunciva espacial. A cidade que está
alhures pode ser conhecida pelo aqui de Cocoricolândia. É assim que Júlio e os
amigos da fazenda tem acesso pela primeira vez ao laptop e celular, eles descobrem
que computador também pode ser contaminado por vírus, que para funcionar o
celular precisa de sinal, que pode-se fazer um curso ou treinamento através do
computador, entre outras coisas. Além disso, João que veio da cidade faz
descobertas do ambiente rural instalado como esse espaço do aqui: ele participa de
uma cavalgada (e aprende a andar de cavalo, quando antes só sabia andar de
bicicleta), acompanha Júlio na retirada de mel (ambos vestidos de apicultor), deixa
o mini game de lado para brincar com os amigos nos arredores da fazenda. O
enunciador vai mostrando as possibilidades de formas de vida com e sem o uso da
tecnologia, ao mesmo tempo em que dá ao enunciatário a competência para
identificar essas formas de vida, no diferenciar de um e outro.
O mostrar mais da cidade de Cocoricolândia significa que o enunciado
apresenta a fazenda e seus arredores – o como a vida é no interior – e, reafirma
ainda pelas diferenças, esse lá espacial, ou seja, a Cidade Grande. Citemos os
ambientes cenográficos da fazenda, cujo
número aumentou no decorrer das
temporadas, são eles: paiol, arredores, cozinha72, sala, quarto do Júlio, lago do Sapo
72
No Natal de 2006, uma parceria entre a TV Cultura e o Shopping Metrô Tatuapé, em São Paulo,
possibilitou A montagem da Fazenda Cocoricó na praça de eventos do shopping. Os ambientes
cenográficos da fazenda: o quarto do Júlio, o paiol, o chiqueirinho e a cozinha ficaram expostos à
visitação durante todo o mês de dezembro, com direito a show de apresentação dos bonecos do
programa.
183
Martelo e gruta dos patos. A forma de construção desses ambientes e o ato de
filmar utilizando tomadas longas promovem uma circulação dos atores-que
manuseiam os bonecos, que é apreendida pelo enunciatário como um efeito de
verossimilhança com o mundo natural. Esse espaço da fazenda remete a uma
decoração rústica, móveis de madeira maciça, muita palha, detalhes decorativos
que lembram as fazendas coloniais, as paredes de madeira são pintadas e decoradas
com border numa composição composta pelo uso de cores vibrantes do amarelo,
verde e azul. Os eletrodomésticos como liquidificador, batedeira, geladeira,
televisão, aparelho de rádio são todos antigos, embora bem conservados e também
compõem as distâncias e posições assumidas na proxêmica interativa. Esse uso da
madeira e da palha, nos remete ao natural, entretanto, a preocupação com os
elementos cenográficos do quarto, cozinha e sala nos levam, novamente, a um
espaço figurativizado como culturalizado, ambientado pelo homem. A cidade de
Cocoricolândia é referencializada em alguns episódios, como em “Desenho da
Lilica” e em “Homem sapo”. Ambos os episódios retomam uma temática cultural, o
primeiro com a exposição e o segundo, com a ida dos actantes ao cinema 73.
73
Nesse episódio, inclusive, os espaços foram construídos cenograficamente diferentes, o cinema de
cidade e o cinema de Cocoricolândia. No primeiro, as cadeiras de espuma grossa, designer mais
moderno e com uma tela bem grande, enquanto que no segundo, os interlocutores se acomodavam
nas cadeiras com encosto de madeira e assistiam numa tela menor. Na caracterização da entrada do
cinema da cidade, foi priorizado mostrar a bilheteria, primeiro com um close up para direita
mostrando o letreiro desse espaço, depois com a compra do ingresso do cinema pelo tio de Júlio.
Destaque para o quadro atrás do rapaz que vende o ingresso, com as regras do estabelecimento e
ainda, para as placas indicativas que podem ser vistas logo acima da cabeça dos actantes. Em
Cocoricol}ndia, primeiro é mostrado o letreiro onde se pode ver apenas as letras “Cinema de
Coco...” e logo abaixo "Homem Sapo”, indicando ser esse o cinema da cidade, e logo após, a atenç~o
é desviada para o sonoro: a voz do locutor que pede para que todos desliguem os celulares.
184
FIGURA 28 : Ambientes cenográficos internos da fazenda: o quarto do Júlio, a cozinha, a sala e o
paiol
Nos episódios analisados da temporada 2008/2009 foram observadas as
seguintes relações orgânico vs não-orgânico, interno vs externo. Os actantes
transitam pelos espaços cenográficos, como se estivessem no mundo natural, no
nosso mundo fora da televisão em que andamos, por exemplo, dentro de casa de
um cômodo para outro – é do quarto que vai para o corredor ou para o banheiro,
como no episódio “Caco na casa”; ou que o cavalo Alípio está na janela do lado de
fora e conversa com quem está dentro do quarto de Júlio ou pela janela da gruta. O
orgânico é trazido principalmente pelos espaços externos, seriam as figuras que
remetem à natureza, ao natural: os campos da fazenda, os arredores da casa, as
plantas, flores e frutas, madeira, palha, já o não orgânico são os construídos,
culturalizados, aparecem como os ambientes internos, figurativizados pelos:
cômodos da casa da fazenda (quarto de Júlio, sala, cozinha), sala de exposição,
gruta dos patos, chiqueirinho de Astolfo, paiol, em que esses ambientes
figurativizam construções por intervenção humana. Teríamos, então, em Cocoricó
versão campo, grande parte das cenas figurativizando um espaço externo, e
quando temos cenas que figurativizam um espaço interno, esse espaço conflui para
185
o espaço externo, como por exemplo, as luzes naturais que adentram às janelas,
aquelas que permitem o diálogo entre os actantes dentro e fora dos espaços
figurativizados.
Ainda na apresentação dos episódios da temporada 2009/2010 em salas
cinematográficas, o enunciatário foi apresentado ao novo espaço figurativizado do
programa: a cidade. Não era apenas a cidade como na temporada anterior, como
temos pelo diálogo entre Júlio e Toquinho, em que Toquinho diz: “João deve tá
correndo tanto perigo naquela cidade grande” e, Júlio responde: “a cidade grande
também é legal, Toquinho”. Nessa temporada, os interlocutores do enunciado,
como mostramos na análise da vinheta de abertura estão em outro espaço:
primeiro no trem, depois na estação e, finalmente na Cidade Grande.
Vaca Mimosa é quem dá a boa nova: “O Tio Noel convidou todas as crianças
pra passar um fim de semana na cidade. Só que tem uma coisa, eu vou levar um de
cada vez. Cada uma num fim de semana. É que lá no apartamento não cabe todo
mundo, sabe. Quem quer ir comigo?” Os actantes e o enunciatário são informados
sobre aquele outro lugar da ação narrativa e sobre suas características similares e
diferentes. Pela vinheta de abertura o enunciatário é convidado a fazer parte das
ambientações espaciais da cidade. Os cenários, sejam eles internos ou externos, vão
se caracterizando e se construindo ao longo dos episódios da temporada. O diretor
Fernando Gomes ressalta em entrevista ao site da UOL74 que o principal caráter
distintivo desta temporada sob as demais é o fato dos clipes musicais dos episódios
terem sido gravados não em estúdio, mas em externas75. Ele conta que:
Quando o Cocó nasceu, e nasceu situado na fazenda, a gente sentia
a necessidade de um programa que falasse do interior e era legal
mostrar essa situação. Mas a gente pegou uma proporção tão
grande, tão bacana, que começou a sentir necessidade do
contrário [...]. É engraçado, porque a gente já tinha um público
muito grande das crianças que moram na cidade e que assistem o
Cocó fazenda, e do pessoal do interior também. (GOMES, 2009).
74
Entrevista concedida ao site UOL, disponível em http://criancas.uol.com.br/ultnot/multi/2009/10/01
/04023172D8914366.jhtm?novatemporada-de-cocorico--making-of-04023172D8914366,
acessado
04/05/2010.
75
Na linguagem televisual, a gravação externa pressupõe que as cenas foram feitas em ambientes
externos ao estúdio de gravação.
186
Será mesmo, que as aventuras vividas por Júlio e os animais da fazenda são
completamente diferentes das que eles viviam no campo, ou essas aventuras
estariam mais ligadas aos valores sociais, culturais e de rotina das crianças tanto do
campo quanto da cidade? O que o diretor do programa nos adianta é que o Cocoricó
da cidade traz outro espaço enunciativo para o enunciatário, além disso, amplia o
leque de temáticas oferecidas. Ao levar os actantes da fazenda para a cidade, o
enunciador não só muda o espaço da narrativa, como também permite acrescentar
novos temas e figurativizações possibilitados justamente por essa mudança. A
cidade na qual João vive e Júlio e os animais da fazenda vão passar férias é chamada
de cidade grande. A chegada oficial deles na Cidade Grande se dá pela estação de
trem, quando eles descobrem que Lilica veio escondida dentro da mala. Essa
narrativa é apresentada no primeiro episódio da temporada e pelo efeito de sentido
de referencialidade, temos a estação da Luz, em São Paulo. Nesse episódio, é
apresentado: o Beco e o prédio onde João mora. Júlio e seus amigos animais vão
descobrindo que: o trem é o transporte que leva as pessoas da cidade grande para o
interior; que as moradias não são térreas como na fazenda; que são apartamentos
em prédios e que para chegar neles é necessário utilizar o elevador; que na Cidade
Grande existem pessoas vindas de outros países e pessoas de diferentes tribos, e
outras temáticas que vão sendo abordadas no decorrer dos episódios.
As relações identificadas nos episódios da temporada anterior: orgânico vs
não-orgânico, interno vs externo também são trabalhadas em Cocoricó na cidade. A
relação de oposição entre o campo e a cidade é marcada, sobretudo: pelos actantes
que vão pra cidade e os que ficam na fazenda, pela continuidade da narrativa
possibilitada pelos frequentes diálogos dos actantes por meio das redes sociais da
internet (uns estão na cidade, outros no campo, mas podem estar juntos mediado
pelo computador que demarcam características do que é viver num e noutro lugar.
O ambiente cenográfico do campo não sofreu alterações para esta
temporada. Apenas surgiu um outro ambiente, o da cidade, marcado, então: pelo
bairro onde João mora, chamado de Beco (bem como o que o compõe enquanto
187
cenário: padaria, ponto de ônibus, revistaria, etc.), pelo prédio (hall de entrada,
elevador) e o apartamento de João (cômodos, quarto de João, quarto dos pais,
cozinha, sala), e pelos ambientes externos que referencializam o mundo natural,
aquele no qual vivemos, com a gravação dos episódios feita em pontos turísticos da
cidade de São Paulo: Estação da Luz, vista aérea do centro, bairro da Liberdade,
Mercado Municipal, Museu do Ipiranga, Sala São Paulo, Kartódromo da Granja
Viana, Parque do Ibirapuera, Rio Pinheiros, parque de diversão, estádio de futebol,
cinema e livraria.
FIGURA 29 : As maquetes da cidade: em três tomadas diferentes: os prédios, casas e quadras; um
detalhe das casas térreas, como as do beco e; à noite na cidade grande, os prédios e suas luzes
acesas.
O Cocoricó na cidade, assim como nas temporadas anteriores, utiliza-se de
uma maquete para fazer a passagem de uma cena a outra, e dar sentido à narrativa,
como já dissemos. Se os actantes estão dialogando no campo, aparece a maquete
da fazenda, se eles estão na cidade, aparece a maquete da cidade grande. Os dois
lugares são, assim, figurativizados, tanto de Cocoricolândia como o da Cidade
Grande, em que os actantes dialogam e trocam as experiências vividas em cada
lugar. O técnico em efeitos especiais do programa, Flávio Fabiano, explica o objetivo
da maquete:
188
Ela está sendo elaborada para várias fases do Cocó. Tem tudo que
uma cidade precisa ter de infraestrutura de bairro de uma cidade.
Temos todas as sinalizações, inclusive as de trânsito. A gente
tentou seguir o mais próximo possível da questão de lógica e
estrutura de uma cidade. (FABIANO, 2009).
A configuração de ambientes cenográficos externos, como o Beco e interno,
como o prédio e apartamento onde João mora, demostram novamente como nas
observações feitas a partir da delegação de vozes e da temporalidade, que o
enunciador do programa quer construir um sentido de verossimilhança com o
mundo no qual a criança telespectadora vive. “O cen|rio foi construído numa escala
de 50% da escala normal”, ressalta o respons|vel pela cenografia de Cocoricó, Gert
Seewald, em entrevista ao site UOL. O Beco de Cocoricó na cidade possui uma rua
principal, sobrados, alguns tipos de comércio como a padaria e a revistaria e prédios
residenciais, além de um muro grafitado (o qual discorremos no capítulo 2). O
apartamento de João configura-se como um apartamento de classe média,
decorado com fotos, gravuras e quadros nas paredes, o que dá um sentido estético
mais contemporâneo para essa moradia da cidade grande. As janelas da cidade não
são tão exploradas como as janelas da fazenda. A janela aparece enquanto actante
em apenas um episódio, “A estrelinha do Alípio”, no qual Alípio deseja ver sua
estrela de estimação e não consegue fazê-lo pela janela do apartamento de João. As
janelas aparecem nos outros episódios da temporada na cidade apenas como uma
entrada de luminosidade nas cenas.
A construção de lugares que se faz em Cocoricó, nas diferentes temporadas,
é de um espaço de descobertas, de aventura para a criança, seja no campo, na
cidade, em outro país. O programa tenta construir uma narrativa cujo lugar
possibilita algum aprendizado novo para o enunciatário, de ordem social ou cultural,
possível numa grande cidade. Tanto que apesar de referenciar visualmente a cidade
de São Paulo, oralmente seu nome não é desvendado, o que não acarreta prejuízo
para o sentido que se quer dar, por que a cidade grande figurativizada por São
Paulo é tomada como uma parte que significa o todo, ou seja, todas as cidades
grandes são como essa que está lá .
189
Foi possível identificar nos modos de presença discursiva, dado pela
delegação de vozes, temporalidade e espacialidade que o enunciador de Cocoricó
instaura no enunciado oposições como orgânico vs não-orgânico e interno vs
externo, que serão homologadas na categoria da expressão CONTINUIDADE vs
DESCONTINUIDADE. Na categoria do conteúdo SOCIEDADE vs INDIVIDUALIDADE
foram observados os modos de organização dos sujeitos em suas relações de
tempo e espaço. A construção do sentido do programa Cocoricó é dada, pois, pela
oposição IDENTIDADE vs ALTERIDADE. A construção dos sujeitos no programa é
tomada a partir da relação em sociedade, do viver e conhecer do outro, como já
antecipada pela análise do episódio “Pôr do sol” e que teremos a seguir, dada pelas
figuras e temas narrativizados a partir do campo ou dessa cidade apresentada.
3.4 Figurativização e Tematização
Se a preocupação anterior foi analisar as marcas da enunciação deixadas no
enunciado, agora, nossa intenção é a de buscar em nosso objeto as figuras e temas
subjacentes, identificando-os pela plástica figurativa (eidético, topológico,
cromático e matérico) e pela própria linguagem televisiva (ritmo e sonoridade)
enquanto objeto sincrético. Para isso nos apoiaremos e tentaremos seguir as
proposições de Greimas e, de outro autores, a partir da publicação do livro “Da
Imperfeição” (GREIMAS, 2002). Segundo Landowski, depois deste livro, a postura
de um semioticista, é o de ser: “mais ‘completo’, ou simplesmente mais humano, ao
mesmo tempo ‘inteligente’ e ‘sensível’, tanto implicado na experiência vivida do
mundo sensorialmente perceptível, quanto engajado na busca reflexiva do sentido
daquilo que est| vivendo” (LANDOWSKI, 2005, p. 101), enquanto em relação com o
seu próprio objeto de pesquisa.
Mediante tais palavras, iremos priorizar uma an|lise que permita “a
mediação do sensível e, portanto, do estético ou, mais fundamentalmente, da
estesia” (LANDOWSKI,2005, p.94). Como explica o autor, o último livro escrito por
Greimas abriu uma via de investigações complementares que:
190
[...] abordam uma outra forma de encontro entre o homem e o
mundo, o encontro estético. Nesse plano, não é mais uma distância
objetivante, mas uma proximidade imediata ou, até mesmo,
alguma forma de intimidade efusiva que se estabelece entre os
dois pólos da relação, entre um sujeito para quem o conhecer não
se separa do sentir, e um objeto, ou um outro sujeito, também
cognoscíveis mediante o sentir. (LANDOWSKI,2005, p. 94).
Um dos caminhos propostos, portanto, desde “Da Imperfeiç~o” pelos
principais semioticistas76, se baseia “no acesso { significaç~o do visível”, como
também no “tratamento do percurso perceptivo do sujeito, da sua trajetória pelas
figuras elementares da percepç~o” (OLIVEIRA, 2004, p. 13). Por esse caminho, são
apontados, portanto, uma relação entre o semioticista e o objeto de pesquisa pela
semiótica plástica, como nos explica Oliveira, segundo articulações intrínsecas:
Entre as pesquisas da semiótica geral sobre os problemas da
figuratividade nos níveis de descrição dos objetos visuais.
Destacam-se nela a problemática do iconismo e a dos efeitos de
sentido desse tipo de estruturação da linguagem que objetiva uma
proximidade mimética com as unidades da semiótica do mundo
natural. Resultante desse procedimento, a verossimilhança leva ao
estabelecimento de contratos de veridicção e de fidúcia entre os
sujeitos da comunicação. (OLIVEIRA, 2004, p. 15).
Será pela articulação dos elementos figurativizados, ou seja, pelo modo de
expressão do objeto, que poderemos delimitar seus sistemas de valores e ideias,
implicando assim, operações cognitivas, bem como utilização das competências
sensíveis do sujeito. Se “o ver pressupõe um saber ver que só se operacionaliza na
medida em que adentra na teia de significados” (IDEM), o que o enunciatário de
Cocoricó é chamado a apreender sensivelmente pela organização figurativa? É a
tentativa de encontrar tais respostas que nos possibilitará ir de encontro às formas
de apreensões do sujeito enunciatário e de sua relação com o programa em análise.
76
Ver OLIVEIRA, Ana Cláudia (Semiótica Plástica, São Paulo: Hacker Editores, 2004); FLOCH, JeanMarie (Une lecture de Tintin au Tibet, Paris: Presses Universitaires de France, 1997; Semiotique,
marketing et communication: sous les signes, les strategies, Paris: Presses Universitaires de France,
1995); LANDOWSKI, Eric (Presenças do Outro, S~o Paulo: Perspectiva, 2002; “De L’Imperfection, o
livro do qual se fala”, in: Da Imperfeição, São Paulo: Hacker Editores, 2002).
191
Para isso, voltaremos às vinhetas e aos episódios. Na vinheta de Cocoricó, o
verde e o azul foram cores predominantes na tela dividida entre o céu e o campo,
que contrastava com as cores das galinhas, do cavalo e de Júlio. Na vinheta de
Cocoricó na cidade, bem como vimos, houve uma recorrência monocromática vs
policromática dos bonecos e suas roupas. Nos episódios das primeiras temporadas,
a cor verde é mais utilizada que na versão Cocoricó na cidade, essa cor está presente:
seja nas plantas, na mata, no paiol ou no quarto de Júlio, nas próprias roupas ou
acessórios dos bonecos. Essa cor figurativiza o campo e tudo o que se tem a partir
dele. Mesmo quando os bonecos estão em ambientes internos, seja dentro da casa
da fazenda ou na gruta dos patos, no paiol, o verde está presente. É a partir do
verde que se tem o céu marcando a linha do horizonte na primeira vinheta de
abertura, com o amarelo e a vermelho do sol que se põe, indicando o passar das
horas, dia após dia. Agora na cidade, o verde é apenas mais uma cor, as cenas
apresentam uma exploração cromática maior, o apartamento de João é
predominantemente vermelho, enquanto que o quarto é azul, a cidade colorida
com suas cenas ao ar livre e seus habitantes transitando e, assim por diante. Na
vinheta de abertura desta temporada, embora o verde esteja presente, a linha do
horizonte dá lugar às curvas que o trem realiza, ainda no campo, para então entrar
na escuridão e depois na cidade, com seus telhados e prédios coloridos. As cores
marcam tanto as linhas do horizonte em oposição à circularidade das letras da
marca do programa existentes na primeira vinheta, quanto às linhas retas dos
prédios em oposição às curvas do trem trazidos na segunda vinheta.
Além disso, as cores criam efeitos de sentido também nos bonecos e em
suas roupas. Os bonecos que figurativizam os seres humanos não são construídos
com pela mesma cor: Júlio é ruivo, seus avós têm a pele bem clara, como sua tia e
Vitória; o seu primo João é negro, como o pai dele, o tio Noel; Oriba é morena e tem
os cabelos lisos. As galinhas, cada uma tem uma cor: Zazá é vermelha, Lola é
amarela e Lilica é rosa. O cavalo Alípio é laranja. O papagaio Caco e o Sapo Martelo
são verdes. Os patos são marrons, como os camundongos. Toquinho, o morcego, é
vermelho. Identificamos uma paleta de cores que praticamente se completa, vai dos
192
tons mais claros para os mais escuros. Do branco do cachorro Esfarrapado que vive
na cidade ao marrom dos camundongos, a variação cromática define os papéis dos
sujeitos das narrativas. O branco é usado no cachorro que é criança, que está
aprendendo, enquanto que o marrom é a cor dos camundongos, e o cinza escuro é
a cor dos patos, ambos são os anti-heróis nas narrativas, que tentam atrapalhar as
crianças em suas brincadeiras. O preto é uma cor que praticamente só aparece nos
episódios para indicar a noite. E na cidade, esse escuro da noite aparece
acompanhado das luzes brilhantes dos prédios.
As cores dos bonecos humanos vão marcar a distinção das raças. Oriba é
índia. João e o irmão bebê são negros como o pai; a mãe de João, Júlio, os avós, são
ruivos/brancos, o porteiro tem a pele morena. Os aspectos plásticos da distinção de
raças são mostrados, então, pelas cores: do marrom da pele ao preto do rastafári
do cabelo de João, dos cabelos lisos, olhos puxados e pele clara de Oriba à pele
rosada, cabelos ruivos e sardas de Júlio. Além dos cabelos grisalhos dos avós que
são idosos, do porteiro Antenor que possui pele marrom em tons mais claros e
cabelos escuros (e tem uma fala nordestina). Os bonecos humanos vestem roupas e
uniformes, sempre cobrindo os braços e vestindo luvas, com o intuito de camuflar o
ator bonequeiro. Os bonecos estarão se vestindo dependendo da história a ser
contada.
Vamos aos exemplos. No episódio “Os caçadores da galinha perdida”, Lilica
ganha um novo brinquedo - a galinha Loloca – e Júlio e João fazem um curso de
consertos em geral pela internet e criam o “Cocó conserta tudo”, no decorrer da
história eles precisam provar que realmente podem consertar tudo. Júlio e João
figurativizam os trabalhadores autônomos que fazem consertos a domicílio através:
o mostrar da cena pela utilização de um plano aproximado dos dois bonecos que
apresentam as ferramentas que eles seguram e os uniformes que eles vestem (pelo
visual, o boné azul e a camisa cinza com o mesmo dizer: “Cocó Conserta tudo”),
além do verbal sonoro, os bonecos cantam o seguinte verso: “se o bagulho tá
quebrado/ chega de preocupação/ a solução tá do seu lado/ chame o Júlio e o
Jo~o”, ao se apresentarem para os outros actantes no paiol. Nesse mesmo
193
episódio, Caco procura o brinquedo de Lilica que sumiu e se veste como um
detetive, um investigador, novamente apresentado pela proximidade do boneco
com a câmera, suas roupas são marrons, ele usa chapéu e lupa e, vai pista a pista,
desvendando a charada. Essa mesma “fantasia” de investigador é utilizada por Júlio
no episódio “Lola na TV”, indicando que, independe se os actantes são humanos ou
animais, eles figurativizam situações sociais humanas.
Em outro episódio “Desenho da Lilica”, Pata Vina quer se transformar em
uma celebridade instantânea e usa os desenhos de Lilica para se inscrever numa
exposição e acaba ganhando o prêmio. A pata Vina aparece com vestido de festa,
bordado com paetês, e entre luzes de flashes, como Júlio e Jo~o, no episódio “Os
abelhudos”, que vestem roupas de apicultores – àquelas brancas, com proteção da
cabeça aos pés e luvas - para retirarem mel e se protegerem das abelhas.
FIGURA 30 –Cocoricó conta a história pelo modo de vestir dos bonecos: Júlio e João caracterizados
como consertadores; João, Vitória e Júlio são os “Três Porquinhos”; Júlio e João estão retirando
mel como apicultores; Júlio e Caco como detetives investigadores; Pata Vina como uma celebridade
No clipe musical da temporada na cidade, “Uma aventura sem fim”, eles
estão em busca de um fim para a história e para isso precisam encontrar outro
exemplar do livro. Na livraria, João, Vitória e Júlio e Lilica descobrem sobre os
clássicos da literatura infantil, Lilica aparece vestida de Emília e Cinderela, Júlio é
Peter Pan, Vitória Rapunzel e João, Júlio e Vitória vestem máscaras dos Três
194
Porquinhos, cantando a letra da música: “tem personagem pra dedéu/ Emília, Peter
Pan, Lobo Mau e Rapunzel/ tem a Cinderela, tem a Narizinho/ tem a Bela e a Fera e
os Três Porquinhos”.
Como vimos, tanto os bonecos humanos quanto os animais vestem roupas e
acessórios figurativizando determinada temática. Os animais vestem acessórios que
figurativizam sua própria situação – antropomórficos - quer dizer, animais com
características humanas como o laço e colares de Lilica, a gravata de Alípio, os
óculos de Zazá e pata Vina, a roupa de Caco (que remete a um uniforme de
marinheiro 77 ) e o lenço de Lola, entre outros. Vale ressaltar que os bonecos
utilizados em Cocoricó são confeccionados com espuma, podendo-se utilizar ainda
pelúcia (cachorro e camundongo) ou material aveludado (patos). Essa característica
confere aos bonecos determinada unicidade própria, leveza e dinamicidade ao ator
que os interpreta, permitindo ainda movimentação facial dependendo do que se
quer transmitir de humor (triste, alegre, choro) promovendo uma maior interação
entre os interlocutores e aqueles que estão assistindo.
Os olhos dos bonecos não se mexem, são estáticos, entretanto, são grandes
e expressivos, e pelo fato dos bonecos quase sempre estarem dispostos
fisicamente de frente e próximos à câmera possibilita ao enunciatário apreender a
movimentação, deixando de ser relevante essa estaticidade. Assim como os olhos,
as outras partes do rosto são bem demarcadas e grandes: as orelhas, o nariz, a
boca, o bico (no caso das galinhas e do papagaio). O movimento das partes da
cabeça unido à leveza da espuma dá um efeito de realidade e verossimilhança às
pessoas e animais; apesar dos animais serem antropomórficos, marcando o uso da
imaginação infantil. O corpo dos bonecos se caracteriza ainda pela dinamicidade da
cabeça e mãos (partes do corpo que aparecem no vídeo) em oposição à
estaticidade do tronco e membros inferiores ocupados pelos atores (partes que não
aparecem no vídeo). As fisionomias dos bonecos é dada, assim pelo preenchimento
de material (espuma) ao redor dos olhos, no formato das orelhas, nariz e boca,
77
Pela roupa e animal que figurativiza, o boneco Caco cria uma figuratividade com outra figura
importante da cultura brasileiro, que é o Zé Carioca. Ele também é um papagaio e suas roupas são
parecidas.
195
dando um efeito de tridimensionalidade aos próprios bonecos. As cores dos olhos
também muda de acordo com as características físicas dos bonecos humanos ou
animais.
Se os animais antropomorfizados é uma técnica constante nos produtos
televisuais dirigidos principalmente ao público infantil, isso já é corrente na
literatura, na utilização da narrativa simbólica “como instrumento de transmissão
de valores, para transmitir padrões de pensamento ou de conduta às diferentes
comunidades” (COELHO, 2000, p.43). A autora explica que:
Uma vez que tais valores ou padrões (de natureza social, ética,
política, artística, econômica, religiosa, etc.) são essencialmente
abstratos, dificilmente poderiam ser compreendidos ou
assimilados por mentes que vivem muito próximas da natureza
sensorial, do concreto e, como tal, propensas a conhecerem as
coisas através das emoções e da experiência concreta. (COELHO,
2000, p. 43).
Também sobre as narrativas, a autora Vânia Carneiro diz:
[...] as narrativas constituem a tradição educativa mais milenar da
espécie humana. Transmitem conhecimentos e ensinamentos.
Ensinamentos que se referem a saber sobre si, sua ação, seu ser;
sobre sua comunidade: origem, desenvolvimento e organização;
sobre o mundo. Visam à integração do indivíduo na sociedade
adulta ou numa comunidade, cujos valores e costumes devem ser
assimilados. (CARNEIRO, 1999, p. 69).
Somente a utilização da figuratividade terá o poder de concretizar o
abstrato, mediando para isso o encontro das “mentes imaturas com sua prec|ria
capacidade de percepção intelectiva e o amadurecimento da inteligência reflexiva
(a que preside ao desenvolvimento do pensamento lógico-abstrato, característico
da mente culta)” (COELHO, 2000, p.43). Essa mediação é que permite a transmissão
de valores do saber, conhecer, aprender, como também os processos de apreensão
sobre o mundo. Segundo Landowski, a narrativa de um texto se manifestará de
maneira explícita no sentido próprio de contar “histórias” e também no papel de
“componente organizador subjacente que estrutura os processos de produç~o e
196
leitura” (1992, p. 105). Estamos, pois, na compreens~o desses processos de
produção e leitura.
Coelho (2000, p.83) explica que a narrativa simbólica se expressa por
diferentes processos: a) pelas fábulas: utilização de animais que representam ideias,
intenções, conceitos e vivem situações exemplares; b) pelos apólogos: utilização de
seres inanimados (elementos dos reinos vegetal ou mineral, fenômenos
atmosféricos ou objetos fabricados pelo homem) que adquirem vida e falam ou
agem como humanos; c) pelas parábolas: alusão ou analogia que permite que uma
situação comum, cotidiana, seja compreendida de imediato, amplia um “cotidiano”
particular
para um sentido amplo. A autora
explica ainda que “a fábula
(lat.fari=falar e gr.=dizer, contar algo) é a narrativa (de natureza simbólica) de uma
situação vivida por animais que alude a uma situação humana e tem por objetivo
transmitir certa moralidade” (2000, p. 165). Nesse sentido, podemos transpor as
fábulas na literatura e pensarmos em como essa certa moralidade pode ser
transmitida pela linguagem televisual? Os programas infantis, como Cocoricó,
acabaram por assumir para si essa necessidade de fabular as narrativas
simbolicamente com o mesmo objetivo, de transmitir valores, ideias, etc. Essa
opção é justificável:
[...] nessa ordem de ideias, compreende-se a atração que a
linguagem poético-musical de natureza popular exerce sobre a
criança. É o caso das cantigas de roda, parlendas, provérbios, etc.,
cuja estrutura formal (versos breves, ritmos repetitivos em
sucessão ágil, aliterações onomatopeicas, etc.) e natureza coletiva
são idênticas às primeiras manifestações dos povos primitivos:
poesia identificada com os cantos, com as fórmulas proféticas e de
encantação mágica, que eram proferidas pelos celebrantes dos
rituais sagrados ou mágicos. (COELHO, 2000, p. 232).
A predileção das crianças pelas fábulas foi identificada pelos teóricos da
literatura. Tal conhecimento possibilitou que a grande maioria dos programas de
televisão direcionados ao público infantil criassem suas narrativas, suas histórias,
seu discurso, baseando-se nesse conhecimento e para isso, explorando os recursos
197
visuais (cores, ambientação, materialidade, tridimensionalidade, ritmo) oferecidos
pela própria linguagem televisual.
Em Cocoricó, por exemplo, temos um enunciador que explora a alternância
das cores – amarelo, avermelhado e preto - em diferentes episódios para
figurativizar o dia e a noite, como vimos. Também é o enunciador que, prioriza o uso
das imagens das maquetes e os movimentos de câmera, de aproximação e
distanciamento. Como
antecipamos na análise da vinheta de abertura, o
movimento de câmera para a direita sinaliza o passar das horas. Os movimentos de
câmera são utilizados por esse enunciador para intensificar os efeitos de sentido na
apreensão do enunciatário. O movimento de “correr” para um lado e para o outro e
progredir para um close-up nos bonecos dado pela câmera, somado aos recursos de
edição como a fusão ou sobreposição de imagens, instaura mais próximo ou mais
distante dos actantes, a figura do próprio enunciatário, promovendo assim uma
interação, uma troca de olhares com os bonecos.
Quando os bonecos olham diretamente para a câmera, é como se o
enunciador trouxesse para o programa o simulacro do enunciatário. Landowski
(2002, p. 147) nos ensina que “o mundo das imagens é mais ou menos como o
mundo propriamente dito”, no qual somos expostos a “presenças plenas” ou
“figuras instigadoras”. As primeiras, segundo o autor, bastam a si mesmas e nos
deixam livres para ignorá-las ou nos aproximarmos; as segundas não nos deixam
passar sem parar diante delas. Para o autor:
As imagens pertencentes à primeira categoria são, propriamente
falando, formas estéticas cujo valor coincide exatamente com
aquilo que elas significam em sua identidade presente, hic et nunc,
ao passo que as da segunda, quer dizer, as imagens do tipo que
nos ocupa aqui, longe de atualizar o que quer que seja, virtualizam
a conjunção com o valor (ou a fusão com o objeto), remetendo-nos
indefinidamente a uma outra coisa, a um gozo diferido, e, afinal, a
algum Outro cujo simulacro promissor elas constroem e com o qual
fingem nos pôr em comunicação. (LANDOWSKI, 2002, p. 147-148).
Esses actantes que olham para a câmera e, portanto, para aquela criança que
sentada na sala de sua casa assiste ao programa, simula uma situação de encontro
198
entre eles e essa criança. A partir da análise de fotografias publicitárias (que
também utilizam a instauração desse olhar), Landowski diferencia os dois tipos de
relaç~o entre os actantes, “debreada”, tentando relacionar ao Cocoricó, quando os
actantes dialogam entre eles; e “embreada”, quando ocorre o que o autor chama
de simulacro de embreagem, em que os actantes se dirigem visualmente e
verbalmente ao espectador. Sobre a fotografia publicitária, diz o autor:
Toda a habilidade do fotógrafo reside na maneira como ele articula
entre si essas duas reversões que, porém, a priori remeteriam a
dois planos distintos e autônomos. De fato, enquanto a primeira
transformação afeta apenas as disposições do sujeito inscrito no
enunciado – de início apreendido num estado “sonhador”, vemo-lo
em seguida “acordar”-, a segunda produz seus efeitos no plano da
enunciação, ao nos obrigar, a nós, espectadores, a modificar o olhar
que lançamos àquilo que nos é dado a ver, porque não podemos
olhar da mesma maneira uma silhueta agradável que se apresenta
de perfil e um par de olhos que se fixam em nós. A chave do
dispositivo está em que – como na física contemporânea,
guardadas as proporções – a própria presença do sujeito da
enunciação (a do observador, a nossa) tem o efeito de modificar os
estados do sujeito do enunciado, do “objeto”: basta que o
olhemos para que ele se transforme e, no caso, para que ele no
mesmo instante se torne um “sujeito” que, por sua vez, nos olha e
nos interpela. (LANDOWSKI, 1998, p.19)
Em muitas cenas dos episódios, os bonecos são filmados em primeiro plano,
cada boneco por tomada, numa relação proporcionalmente superior ao
fundo/cenário em que se encontram. Quando eles dialogam entre si, quando existe
mais de um boneco em cena (em debreagem de segundo grau) a disposição frontal
deles permanece simulando essa embreagem.
Além dessa disposição topológica dos bonecos em cena ser marcada pelo
movimento e aproximação da câmera, configura-se de outra forma,
pela
quantidade dos bonecos em cada cena. Por um lado, existe somente um boneco
que dirige seu olhar para a câmera ou em determinados casos, em oblíqua,
caracterizando o lugar de conversa do interlocutário (seja outro actante do discurso
ou o próprio enunciatário). Por outro lado, temos cenas em que são dois, três ou
até quatro bonecos que são filmados frontalmente ou de costas para a câmera (em
199
plano aberto) embora de frente para algo a ser destacado – como no episódio “Pôr
do sol” em que Júlio e Vitória contemplam o sol se pôr ou no episódio “Cocoricó no
Jap~o” no qual eles olham para a tela da TV. Ambas situações podem gerar um
efeito de sentido de inclusão do enunciatário no discurso, um olhar “dirigido
insistentemente para o contra campo no qual se encontra o telespectador”
(FECHINE, 2008, p. 139). Yvana Fechine descreve a instauração do espaço de
interlocução
como
correspondente
às
próprias
estratégias
enunciativas
responsáveis pela interlocução proposta pela programação televisual da emissora.
Isso nos permite identificar seu ponto de vista em relação ao nosso objeto
analisado: o olhar do boneco em Cocoricó para a criança espectadora. A autora
afirma que “tentam, com esse mecanismo enunciativo, colocar a si mesmo, ao
entrevistado e ao telespectador numa mesma situação ou num mesmo lugar, social
e psicologicamente, demarcado pela própria transmiss~o” (IDEM). Ainda segundo a
autora:
Toda essa alternância de olhares dos sujeitos enunciadores entre si
e destes com o enunciatário configura o que se poderia chamar de
um “campo de inclus~o” visual, ou seja, um espaço de outra
natureza definido por posições abstratas postas em relação. Esse
“campo de inclus~o” pode, no entanto, assumir outras formas de
expressão, manifestando-se através de qualquer sistema semiótico
por meio do qual seja figurativizado o “estar aqui e agora junto
com” (FECHINE, 2008, p. 140).
Discini comenta a utilização desse recurso retórico no discurso verbal:
[...] constitui um modo indireto de dizer; por meio dele, perguntase, não para obter resposta, mas para conduzir o leitor a fazer
determinadas asserções; contém em si, implicitamente, a resposta,
misturando vozes: a que pergunta e a que responde. Advém do
narrador, que é quem faz a pergunta e quem manipula o
narratário-leitor, para determinada conclusão. Institui um sujeito
como presença mais próxima: em relação ao narratário-leitor e em
relação ao próprio enunciado. Traz em si a voz respondente,
viabilizando nos textos: a heterogeneidade mostrada; o efeito de
polifonia. Faz com que o narrador se aproxime do narratário, para
que este se veja obrigado a seguir a orientação dada. (DISCINI,
2005, p. 175).
200
O “estar aqui e agora junto com” é figurativizado pelo olhar dirigido e pelo
falar em tom de intimidade, e também na composição cenográfica e movimentação
da câmera, cujo efeito de sentido que se tem é a tridimensionalidade desse espaço.
Os diálogos entre os interlocutores no ambiente cenográfico do campo são
materializados pela madeira que se configura como o material figurativo da
fazenda, do paiol e da casa. Já o cenário da cidade é marcado por construções, na
aparência de tijolos de cor cinza. Essa diferença dos materiais está figurativizada na
capa dos DVD’s das temporadas e é ressaltada nas paredes do apartamento e da
casa da Fazenda.
FIGURA 31 – Cenas da gravação de Cocoricó no campo, cena externa na fazenda, quarto de Júlio e
paiol
O cenário de Cocoricó - como explicitado antes - é suspenso o que possibilita
a movimentação dos atores bonequeiros em cena. A captação da imagem pela
câmera é feita tanto utilizando-se de uma grua quanto de um pedestal, ambos
201
devem permitir ao bonequeiro estar em uma altura necessária, que de fato os
esconda. Essa característica do cenário ajuda a criar o efeito de sentido de
profundidade (volume) da cena em que os bonecos dialogam entre eles e também
na relação frente/fundo com um painel (de um céu azul com nuvens brancas em
Cocoricó no campo e dos prédios em Cocoricó na cidade) em primeiro plano e
segundo plano. A possível estaticidade dos bonecos acaba sendo anulada pela
profundidade do cenário que permite o deslocamento deles. O perto e longe, o
frente e fundo da câmera, bem como os primeiros planos são possibilitados a partir
da construção do cenário: tanto no campo - paiol, casa da fazenda (cômodos sala,
cozinha e quarto de Júlio) - como na cidade - beco, apartamento de João e cenários
externos da cidade. Os bonecos possuem, assim, mobilidade e dinamicidade nas
cenas que eles figurativizam com efeitos veridictórios para o enunciatário que
assume esse dizer verdadeiro.
Pelo plano da expressão podemos reconstituir a construção dos espaços do
campo e da cidade pelo programa Cocoricó. Para exemplificar o que estamos
falando, quando a câmera mostra a maquete que figurativiza a fazenda, o
enunciatário é chamado a apreender que vê uma montanha delineando um espaço
rural. Essa apreensão gera um efeito de sentido de realidade, de estar diante de
uma fazenda e suas construções, como o paiol, a casa, as plantações. Em cenas no
campo, as ambientações externas são marcadas pelo passeio (panorâmica) da
câmera pela maquete e pelo movimento de aproximação do espaço onde a próxima
cena acontecerá. Na temporada na cidade, esse recurso de utilização da maquete é
recorrente, embora nesta temporada exista um efeito de sentido de
referencialidade à cidade de São Paulo, pelas locações externas em locais da cidade,
do qual falamos antes. Em Cocoricó na cidade, a cenografia reconstitui um bairro da
cidade, intitulado Beco, com avenidas, postes, sinalizações de trânsito, casarões
geminados, prédios, grafites em muros, etc., além dos ambientes internos, como o
apartamento de João (cômodos sala, quarto, cozinha), portaria/hall de entrada do
prédio, elevador.
202
FIGURA 32 – Galpão onde é gravado o Cocoricó na cidade, cenário do programa da temporada
2009/201078
Uma vez que os bonecos e o cenário são construídos pelo enunciador
ressaltando o arranjo plástico, isso faz com que essas figuras do discurso se
transformem em temas a serem desenvolvidos pela estrutura narrativa. Assistindo
aos episódios de Cocoricó percebemos a reiteração de temas pertencentes ao
cotidiano das crianças que são figurativizados de diferentes formas. Esses temas e
figuras revelam qual criança é figurativizado pelo enunciador e depreende-se como
ela deve ser, do que deve brincar, do que deve gostar, o que deve comer etc.
As práticas cotidianas da vida dos adultos como também das crianças
perpassa como temática os episódios analisados de Cocoricó. No episódio “O mini
game”, a avó e o avô est~o brincando com o mini game de João quando são
surpreendidos e a avó lembra que precisa preparar o jantar de todos. Em outro
episódio “Isso pega” traz a tem|tica da Campanha de Vacinaç~o como uma pr|tica
cotidiana das crianças, assim como o tempo para fazer a lição de casa no episódio
“A cavalgada”. Lilica quer brincar, mas Caco explica que precisa fazer a lição de
casa, figurativizando pela utilização de um acessório, uma mochila nas costas, que
está voltando do colégio, da aula.
A discussão sobre as raças e as diferenças culturais entre as crianças aparece
como outro tema do programa, como já explorado anteriormente, dado pela
caracterização cênica e figurativa de Júlio, Oriba e João e os outros. Júlio ora se
veste como uma criança que mora numa fazenda, como por exemplo, quando está
78
Imagens disponíveis em http://blogdolele.blog.uol.com.br, acessado em dezembro de 2010.
203
vestido de macacão jeans, remetendo a todo um estereótipo do homem rural, ora
se veste como qualquer garoto da sua idade, que adora bonés diferentes e
coloridos. Seu primo João, vem da cidade passar as férias na fazenda, é negro,
possui cabelo rastafári, e se veste como um garoto da cidade, calças jeans, camisas,
gorros, roupas folgadas. A índia Oriba tem pele morena, cabelos escuros, olhos
puxados e suas vestimentas caracterizam a cultura indígena brasileira da qual faz
parte, seus brincos possuem as cores da bandeira do Brasil. É válido ressaltar que
essas vestimentas figurativizam estereótipos do homem do campo, do garoto
negro da cidade e de uma índia. Férres explica que os estereótipos:
São representações sociais, institucionalizadas, reiteradas e
reducionistas. São representações sociais porque pressupõem uma
visão compartilhada que um coletivo social possui sobre outro
coletivo social. São reiteradas porque são citadas com base na
repetiç~o”. (FÉRRES, 1998, p. 135).
Os estereótipos, então, são representações sociais que nessa visão
compartilhada passam a ser reiterados e cuja função de representação acaba se
perdendo frente ao desgaste da repetição e a possível perda de seu sentido. São
por esses estereótipos citados que são dadas muitas das relações no programa,
como a temática de como se vive com o outro, em sociedade, como pela figura da
família unida e feliz, que se configura como uma estereotipia das interações e
relações familiares. Júlio é o menino que foi morar com os avós na fazenda não
possui pais, embora o programa não faça em nenhum episódio referência. Apesar
disso, as bases da família continuam as mesmas, ele tem um pai e uma mãe, que são
figurativizados pelo avô e pela avó. O avô cuida dos fazeres da fazenda, enquanto a
avó toma conta dos fazeres das crianças e da rotina da casa, aparecendo em muitos
dos episódios cozinhando diferentes receitas. Entre os animais, também existem as
relações de parentesco figurativizadas: Lilica é a galinha criança, Lola e Zazá são
adultas, embora uma seja caracterizada por suas histórias e aventuras e a outra por
sua autoridade perante as crianças; Caco, Toquinho e até Alípio (assim como Júlio e
João) obedecem Zazá e a vaca Mimosa, também figurativizada como uma pessoa
madura, adulta, que pode ajudar as crianças em seu processo de aprendizagem. O
204
leitão Astolfo é o bebê do paiol, dorme num berço, usa chupeta, toma mamadeira,
usa banheira para tomar banho, toma vacinas e choraminga em vários episódios,
mas é sempre tratado com carinho e atenção por todos. Apesar de em nenhum dos
episódios ter aparecido o boneco porca figurativizando a mãe do porquinho
(somente os braços apareciam), na temporada Na cidade, no clipe musical do
episódio “Astolfo e Rodolfo”, a m~e de Astolfo, uma porca, vestida como uma
mulher, os leva para passear no parque, em carrinho de bebê.
Por esses papéis temáticos da criança e do adulto, nas figuras seja do animal
ou do humano, é depreendido pelo enunciatário o fazer social rural e urbano. É por
essas relações e interações que o programa coloca um saber prescritivo, da forma
do viver da hierarquia familiar, a quem se deve o comando e a quem se deve o
respeito. A problematização do valor hierárquico com apelo pedagógico coloca ao
enunciatário um fazer interpretativo de fidúcia, ou seja, de crer nesse dizer como
verdadeiro.
Outra figura dessa temática a ser ressaltada seria, então, as similaridades e
diferenças entre o modo de ser e viver no campo e na cidade, o que existe no
campo e o que existe na cidade, o que as palavras significam no campo e o
significado delas na cidade. No episódio “Isso Pega”, como citado anteriormente,
acontece uma campanha de vacinação em Cocoricolândia e, Lilica acha que o laptop
de João está com algum vírus e tenta vaciná-lo, a história se desenrola nesse jogo
enunciativo entre o tipo de vírus que atinge o laptop e o vírus que “pega” o humano
ou um animal. Os clipes musicais também ressaltam essa temática, como por
exemplo no clipe “Esse Rio n~o tem peixe”, da temporada Cocoricó na cidade. Zazá
e Lilica chegam ao rio da Cidade Grande para pescar, achando que lá vão encontrar
“peix~o”, embora logo percebam que o rio é diferente. Para elas, no rio da Cidade
Grande “tudo boia/nada afunda/a água não é transparente/ele é feio/a paisagem é
um horror/ o rio fede/não tem bicho/só tem lixo”. Descobrem, portanto, que o rio
da cidade é poluído, sancionado negativamente pelo enunciador, que sobre o rio da
fazenda diz o contrário.
205
O clipe “Parc~o” aborda essa oposição entre o campo e a cidade, ora
euforizando o campo e disforizando a cidade, ora o contrário. Os bonecos
conhecem um parque de diversões que não é um parque, é um “parc~o”, e todas as
experiências que eles têm lá são euforizadas partindo dessa mesma relação do
aumentativo. O parque da cidade grande é “grand~o”, tem o “trenz~o”, o “frioz~o”
na barriga, o “med~o” da emoç~o. Eles cantam que o parque de diversões não é
“um parquinho, é um parcão, na cidade grande para o pequeno cidad~o”, fazendo
ver o enunciatário que o brincar e se divertir também é um direito à cidadania. Os
contrapontos entre a Cidade Grande e o campo aparecem nas descrições dos
actantes ao cantar a música do clipe, pelas figuras: da montanha russa, que não é a
mesma montanha do campo aquela que não tem carrinho na subida; do carrossel
que não é a carroça do campo; e, do cavalo que não se cansa porque não carrega
carga, apenas criança. Uma característica eufórica é a vista dita “mais interessante e
bonita” de cima da roda gigante, recorrendo a tem|tica da vista de cima da cidade,
abordada pelo episódio do “Pôr-do-sol”.
A figura das brincadeiras também nos remete à temática do modo de viver
em sociedade como uma forma de fazer ações e atividade conjuntas ou separadas.
No episódio “O mini game”, Júlio, Oriba, Caco e Lilica chamam Jo~o para brincar, no
entanto, o amigo está mais interessado em brincar com o seu mini game. Eles
brincam de esconde-esconde, futebol de campo e futebol de mesa. Neste episódio,
é ressaltada a importância de ter companhia para brincar, do brincar coletivo, a
relação entre brincar sozinho e brincar com os amigos, se cansar ou não se cansar
brincando, além do brincar mesmo quando se é adulto, quando o avô pára o que
está fazendo para assistir a partida de futebol entre as crianças e os animais da
fazenda. A partir desta temporada 2009, os personagens passaram a descobrir
brincadeiras possibilitadas pelos aparatos tecnológicos, como o celular, o
computador, as web cam’s. Como no episódio “T| ligado” em que Jo~o precisa
“achar” o sinal para o seu celular, e a turma do paiol se disponibiliza a ajud|-lo e a
brincadeira é justamente “procurar” o sinal. Ou ainda no episódio “Web ovo” que
João já de volta à cidade grande manda pelo correio uma web cam em formato de
206
ovo que vai parar no ninho de Zazá, Júlio e os outros precisam convencê-la de que
se trata de uma câmera e não de seu pintinho que está prestes a nascer.
No episódio “Férias na cidade grande”, eles brincam de procurar a mala de
Júlio que eles descobrem que foi esquecida na estaç~o. No episódio “Cocoricó no
Jap~o”, volta-se à figura da brincadeira. Os actantes brincam de cantar no videokê.
O aparelho eletrônico inventado no Japão, o videokê, aproxima os actantes da
cultura deste país pelo interesse em conhecê-la melhor, para isso, eles visitam o
bairro japonês da cidade grande. Encontra-se, assim, também o tema das diferenças
entre as culturas e da imigração.
No episódio “Pôr do sol”, os brinquedos e brincadeiras s~o mostrados pela
composição plástica da cenografia da cena e também pelo diálogo deles. Os
brinquedos encontram-se espalhados pelos cômodos do apartamento, e o diálogo
entre João e Júlio mostram a tentativa de ambos de fugir da monotonia de estar
dentro de casa. Chama atenção, uma oposição entre o verbal dito pelos
personagens sobre os livros que já leram e o visual mostrando ao invés de livros,
revistas em quadrinhos da Turma Mônica. Além disso, este diálogo ressalta a leitura
enquanto uma brincadeira infantil inclusive de clássicos da literatura inglesa, como
afirma Júlio: “Os três mosqueteiros, A ilha do tesouro, As viagens de Gulliver. Eu já li
todos e você, João?”. Assim como a própria importância da leitura, a falta de
possibilidades para brincar dentro de um apartamento aparece como temática na
fadiga de João e na espera de Júlio por alguém, seja pelo computador ou por
alguém que o chame para brincar, como indica o diálogo final em que Júlio diz:
“bem que alguém podia aparecer por essa porta e falar assim, né...”, quando Vitória
aparece para convidá-los para jogar futebol no beco, que além de esporte também
é uma brincadeira para as crianças. Neste episódio, a brincadeira também é assistir
o pôr-do-sol da Cidade Grande e poder compartilhar deste contato diferenciado
com a cidade.
Em outro episódio “TV Paiol”, a brincadeira é gravar programas com uma
câmera para o que eles chamaram de TV Paiol. Os actantes fazem desenhos que
viram vinhetas de abertura para os programas; o computador de João é o
207
responsável por editar para que eles possam assistir à programação da emissora.
Ressalta-se como tema a utilização e a maneira de utilizar esses aparatos
tecnológicos, bem como a importância dos meios de comunicação, como no
episódio “A cavalgada” em que Alípio iria participar da cavalgada de Cocoricol}ndia
com Júlio que às vésperas da competição quebra o pé. João em seu lugar compete
com Alípio e ganha, mas os animais e moradores da Fazenda Cocoricó que não vão
pessoalmente à cavalgada só ficam sabendo do campeão através do rádio. Lilica,
Lola e Zazá escutam o rádio no paiol, a avó e Caco escutam a narração da cavalgada
através de um rádio na cozinha da fazenda, Pato Torquato e Pata Vina escutam na
gruta. Características do rádio, como o tom da narração é ressaltada por Lilica
quando ela diz “esse homem est| me deixando nervosa”.
Desde as primeiras temporadas, a relação das crianças com os meios de
comunicação eram figurativizadas. Nessas temporadas, o Júlio e as outras crianças
da fazenda assistiam a programas de culinária e atividades infantis numa televisão
no quarto do garoto. Quando João veio passar férias na fazenda, essa relação pôde
ser explorada por outros aparatos, câmeras, máquinas fotográficas, computadores
para edição e, as crianças brincando com esses aparatos, inventando programas
(como no episódio citado da “TV Paiol”) e, utilizando a própria linguagem do meio
televisivo ou cinematográfico para mostrar a possível relação da criança com o
meio, mais uma vez como brincadeira, como o brincar de fazer TV ou de estar na TV.
No episódio, “Lola na TV”, da temporada na cidade, os reality shows musicais são
figurativizados: o apresentador apresenta em um palco, vai a casa dos candidatos
para conhecer os cantores, onde moram, do que gostam, etc. Nesses episódios, é
utilizada para figurativizar a gravação por uma câmera de vídeo: uma moldura, além
da marcação do tempo de gravação que aparece na tela. Pela figuratividade do
brincar a partir das mídias, o programa constrói um sentido eufórico do uso das
mídias, pelo discurso, mas também pelo uso de sua própria linguagem, quando dá a
ver pela tela os marcadores de material bruto, sem ser editado. Ao fazer isso, está
postulando como o enunciatário também pode fazê-lo, dando-lhes competência
208
para um fazer. Além disso, está naturalizando esses equipamentos, como se eles
perdessem a função enquanto mediadores.
As profissões também são dadas como um fazer, uma ocupação, um modo
pelo qual se vive e se aprende, portanto, como uma temática do aprendizado. A
figura do fazer culinário é colocada por meio da rotina da avó de Júlio que faz os
quitutes da fazenda. É tão forte a presença desse fazer culinário da fazenda nos
episódios de Cocoricó que, em 2009, foi lançado um DVD com o título “Pé na
cozinha”, express~o utilizada quando queremos fazer ou aprender alguma receita.
Foi lançado um livro com as receitas da fazenda79. A culinária da fazenda aparece
nas figuras do pão de mel, da goiabinha da vovó, das pamonhas, da torta de maçã,
do pé de moleque. Essas figuras colocam em evidência o fazer do trabalhador rural
que colhe as frutas, verduras, hortaliças, entre outros, e os utilizam no preparo dos
produtos, além de também comercializarem. No episódio “Goiabinha da vovó”, a
goiabinha da vovó é objeto de valor de todos os que estão na cidade e saem em
busca do produto, disponível apenas no mercado municipal da cidade grande. Esses
objetos da fazenda também são valorados pela sua utilidade, como já falamos sobre
o episódio “Pé de moleque”, em que s~o apresentadas as diversas utilidades do
amendoim. As figuras do profissional vão aparecer pelas vendas de Pata Vina, na
figura da cantora de reality show como Lola, por um atuar numa obra e ser arquiteto
como o pai de João, do fazer jornalístico, quando eles aprendem como as notícias
chegam aos jornais, do fazer do porteiro do prédio de João, etc.
Também como temática do aprendizado, o episódio “O desenho da Lilica”
figurativiza a alfabetização, pelos actantes em seu aprender a ler, quando Lilica pára
em frente a placa e soletra a palavra que está escrita em uma placa amarela com as
letras maiúsculas “NOVOS TALENTOS”. No episódio “Os caçadores da galinha
perdida”, Caco e Lilica acham pistas escritas com letras maiúsculas, mostradas em
close-up através da lupa de Caco, para deixar ver o que está escrito possibilitando a
criança que assiste ler a charada que é dita pelo verbal por Caco.
79
A Editora Melhoramentos lançou em 2008 o livro Cocoricó: receitas da fazenda, com as receitas
preparadas na fazenda Cocoricó.
209
Essa temática aparece ainda como o aprendizado dos modos de falar, a
utilização de gírias, principalmente, gírias da cidade grande como as que João fala:
“mano, não vai rolar, parece uma geleca, ô galera, que animal”, entre outras. Muitas
vezes o significado da gíria é explicado, como no episódio “A Perua”. João explica
que quando diz na cidade grande que alguma coisa “é animal!”, é porque é muito
legal. Outras vezes, o programa se utiliza de metáforas, como nesse mesmo
episódio, quando a palavra perua é utilizada para designar o animal, mas também
como aquela que gosta de se arrumar exageradamente. Nesse episódio, usam-se
metáforas sobre os vendedores a domicílio, a Pata Vina diz: “deixe-me fechar a mala
e a conta”, fechar a conta significa somar os valores da mercadoria adquirida. Para
falar de Zazá que está usando vários acessórios (colares, brincos, chapéus), os
actantes dizem: “galinha com cara de perua”, isto é, uma galinha que se veste como
uma perua. No episódio, a perua “da Fazenda das Duduas”, é dada como a “mulher
do Sr. Peru, o melhor cliente” de Pata Vina, embora exista um boato de que há
outra perua na Fazenda Cocoricó. A perua “bonita, elegante e chiquérrima, que usa
colares e brincos de palha dourada80” que mora na fazenda Cocoricó, é a galinha
Zazá que fez compras de Pata Vina, assim como a perua da outra fazenda, com o
pagamento todo feito em milhos, ou “milhões” como diz Pata Vina, quer dizer,
milhos grandes, metaforicamente remetendo à moeda.
Nesse episódio também é feita referência ao uso de apelidos. João explica
que os apelidos não são dados por maldade. Mano cebola é o apelido do João, por
causa da cabeça e do cabelo. “E aí, batata?” O apelido do amigo de João, quando
falava ao telefone. O uso de metáforas aparece em outros episódios, em “A
cavalgada” João diz: “me amarro numa cavalgada”, a expressão é utilizada com o
significado de que ele gosta muito de cavalgada, entretanto ele está amarrado a
80
Referência ao capim dourado, existente apenas no Brasil, nos estados de Tocantins, Bahia, Goiás,
Maranhão e Piauí, que foi descoberto pelos Índios no norte de Goiás, onde hoje é o estado do
Tocantins. Eles trançavam e costuravam o capim usando espinhos como agulha. Faziam seus
utensílios domésticos, como gamelas, cestos, bacias, tigelas, potes, etc. Esses índios transmitiram a
técnica para os Quilombolas remanescentes dos escravos, que também faziam suas peças e vários
outros utensílios domésticos usando o Capim Dourado. Assim, a técnica foi passada de geração em
geração desde a época dos índios até hoje, sempre em família. Disponível em
http://www.capimdourado.net , acessado em janeiro de 2010.
210
Alípio. Nesse mesmo episódio, Lilica acha que João sabe montar pois ele conta que
ganhou v|rios prêmios montando a “égua magrela”, referindo-se à sua bicicleta.
Expressões do campo são utilizadas por Alípio, como “foi pras cucuias”, “êta sô”,
“aiaiai diacho”, a figura do peão da zona rural, com forte sotaque, entonação do
“r”, bem como a voz estridente que marca a fala do papagaio Caco.
FIGURA 33 - Alípio entre as peruas: uma da Fazenda das
Dudas e outra “perua” da Fazenda Cocoricó
Essa temática é dada também pelo aprendizado cultural, ou seja, como
prática de leitura, visita às exposições e museus. No clipe musical “Aventura sem
fim”, os actantes conhecem o livro Aventura sem fim81, mas o final do livro é
roubado pela Pata Vina e para lerem o final da estória eles precisam achar outro
exemplar. Assim, eles conhecem uma livraria e os diferentes tipos de livros que
podem encontrar - livro grosso, livro fino, diferentes tipos de histórias, clássicos da
literatura infantil como “Peter Pan”, “Lobo Mal” e “Rapunzel”, “Cinderela”,
“Narizinho”, “Bela e a Fera” e os “Os três porquinhos”-, a quantidade de prateleiras
com livros de literatura brasileira e literatura estrangeira; os diferentes gêneros,
conto de fadas, romance, poesia, história em quadrinhos, fotografia; mas também
81
Obra de literatura infanto-juvenil, da autora Lucilia Junqueira de Almeida Prado.
211
conhecem o sebo, os livros antigos e os livros usados. E é no sebo que eles
encontram o livro que estavam procurando.
A prática de visita às exposições é usada como figura do aprendizado
cultural no episódio “O desenho da Lilica”. Lilica gosta de desenhar, mas Caco est|
sempre falando que seus desenhos são como uma “gerigonça”. Pelas críticas, Lilica
decide não participar da exposição, mas Pato Torquato e Pata Vina pegam o
desenho de Lilica e apresentam à exposição como sendo de Pata Vina que quer
fazer “alguma coisa diferente, como ficar famosa, virar celebridade”, como diz. Os
desenhos s~o enviados para a “Grande exposiç~o de desenhos de Cocoricol}ndia” e
os que ganham o prêmio são os desenhos de Caco e o de Lilica, enviado por Pata
Vina, que toma todas as glórias da vitória. Até que os amigos de Lilica conseguem
provar através da assinatura do desenho, trazendo assim, a temática da autoria,
quem é a verdadeira campeã. No final, Caco prepara uma surpresa para Lilica, uma
exposição apenas com seus desenhos lá no paiol e Caco diz que está apresentando
o estilo da artista Lilica: “de ser gerigonça”. Na Cidade Grande, os bonecos
conhecem ainda um planetário, um museu e uma sala de óperas. Nesses episódios,
foram realizadas gravações em externa com os bonecos, em locais da cidade de São
Paulo: Parque do Ibirapuera, Museu do Ipiranga e Sala São Paulo, respectivamente.
A visita a esses locais: exposições, parques, museus, é dada como objetos de valor.
O enunciador constrói essas figurativizações buscando gerar um efeito de sentido
convocatório, sancionando positivamente esses locais.
Os esportes aparecem tanto como uma brincadeira, quanto como um
aprender, pelas regras de um para outro e o aprendizado que se tem a partir desse
fazer coletivo. Em especial, o futebol aparece em três dos cinco episódios que
compõem o DVD Cocoricó na cidade, já mostrando a importância desse esporte para
uma grande cidade, e para o Brasil, como país oficial da próxima competição
mundial, em 2014. No episódio “Cocoricó Futebol Clube”, essa é o tema principal.
Neste episódio, Júlio e João têm a oportunidade de conhecer um estádio de futebol
e assistem à partida entre os dois clubes rivais, “Avenida Esporte Clube” e o
“Cocoricó Futebol Clube”. Os jogadores e os torcedores s~o bonecos mostrados em
212
corpo inteiro, em câmera aberta (como numa transmissão pela TV de uma partida
de futebol) fazendo uma contraposição com os bonecos de Cocoricó que quase
sempre aparecem da cintura para cima. Ainda neste episódio, aparece como tema
as regras do futebol e do esporte enquanto disseminador do respeito e amizade,
como na pescaria que aparece no clipe musical “Esse rio n~o tem peixe”, como um
fazer esportivo que possibilita a prática da paciência e do saber esperar.
FIGURA 34 – Cocoricó e os torcedores de futebol: João e seu pai torcem para o time Avenida e Júlio
e o avô torcem para o Cocoricó, que estão em campo jogando
Bater uma bola é um lazer, lembrado ainda, no episódio “Direito das
crianças” que fala sobre o Estatuto da criança e do adolescente. Segundo Cocoricó,
as crianças possuem seis principais direitos que, por esta pesquisa, foram
relacionados aos juízos de valor e figurativizações recebidas:
- Direito 1: “de dizer o que pensa, toda criança tem direito a dar sua opinião,
de dizer o que gosta e o que não gosta”. Esse direito é figurativizado pela temática
dos modos de viver nas figuras das relações familiares.
- Direito 2: “ao lazer, quer dizer brincar, ir a parques, museus, se divertir e de
passear”. Esse direito também é figurativizado pela temática dos modos de viver,
mas pela figura das brincadeiras compartilhadas ou individuais.
- Direito 3: “de perguntar o que quiser, qualquer coisa, porque perguntar é o
melhor jeito de saber as coisas que a gente ainda não sabe”. Esse direito é
figurativizado pela temática do aprendizado, na busca pelas informações, pelos
passeios e perguntando.
- Direito 4: “à saúde. Quando a criança fica doente ou se machuca tem de ter
um bom atendimento e ser cuidada por médicos atenciosos”. Esse direito também é
tematizado pelos modos de ser e viver.
213
- Direito 5: “de sonhar com o futuro legal e pensar o que vai fazer da vida
depois de adulto”, tematizado pelas figuras das profissões.
- Direito 6: “a se enturmar, formar a turma que bem entender e brincar com
quem quiser”. Esse direito reúne as figurativizações e tematizações, dos modos de
ser e de viver e do aprendizado que se dará em sociedade, na relação e interação
com o outro.
Relacionando esses direitos às figuras e temas discursivizados em Cocoricó,
possibilitou-nos perceber os julgamentos sobre o mundo desse destinadorenunciador de Cocoricó, e consequentemente, quais as crianças figurativizadas e
tematizadas por esse destinador. As análises nos possibilitou, identificar que essas
crianças:
a) gosta de brincar e praticar esportes e possuem maneiras de;
b) não fazem distinção entre as raças (mesmo que se utilize, para isso, os
estereótipos);
c) desfrutam as diferenças entre a vida no campo e a vida na cidade, dos
bairros imigrantes às exposições, livrarias e cinemas, e;
d) Estudam, gostam de ler, estão sendo alfabetizadas e, aprendendo o
significado das palavras e gírias;
Por essas figuratividades de crianças que Cocoricó apresenta, temos a
relação que a emissora destinadora do programa pretende estabelecer com seu
telespectador. Para isso, antes ainda dos episódios de Cocoricó serem feitos –
planejados, escritos, gravados, editados – eles obedecem à uma dinâmica da própria
emissora que o transmite. Nessa relação, o programa contextualiza os propósitos
da emissora enquanto destinadora desse objeto. Falamos isso, porque, falta um
aspecto a ressaltar os modos de presença discursiva em Cocoricó. Trata-se do
formato audiovisual do programa.
214
3.5 Gênero, estilo e criança
Os conteúdos dos programas transmitidos pela televisão, sejam eles em
canal aberto, TV por assinatura, ou pelo cabo, obedecem a uma lógica interna da
própria mídia em que são veiculados: cada programa será disponibilizado para que
possa chegar até a televisão do espectador. É o que chamamos de grade de
programação82, quer dizer, o horário em que cada programa será transmitido
dentro de uma grade para quem vai assistir. Dominique Wolton (1996, p. 69)
entende programação segundo três fenômenos diferentes. O primeiro deles seria a
funç~o de calend|rio, de estruturaç~o, “funç~o importante porque, vimos a
televis~o como uma espécie de relógio da vida cotidiana”, diz o autor. O segundo
seria a distinção entre a informaç~o e o conteúdo dos outros programas, pois “a
informação é aquilo que obriga o espectador a ver o mundo e a se interessar, pela
marcha da história da qual ele est|”, continua o autor. O terceiro fenômeno seria o
de respeitar os grandes gêneros da programação, como portas de entrada ou prégrade de interpretaç~o para os programas, “em outras palavras, imagem e
organização – quer dizer, programação – ligam-se para não deixar o espectador
sozinho diante da descontinuidade de imagens”, conclui Wolton. A grade de
programação, então, organiza aquilo que o espectador irá assistir na televisão, ou
seja, desempenha função similar à clepsidra de Robinson83, de ordenação, indicativo
das etapas a serem seguidas.
É dentro da rotina familiar, espaço das relações estreitas e da proximidade,
que a televisão se instala na ordem familiar de modo a poder representá-la como
um dos espaços fundamentais de leitura e codificação dela própria (MARTÍNBARBERO, 2003, p. 305). Segundo Martín-Barbero, a televisão se assume e se
molda, a partir da família por meio de dois dispositivos: a simulação do contato e a
82
Segundo José Carlos Aronchi, “programação (grifo do autor) é o conjunto de programas
transmitidos por uma rede de televisão. O principal elemento da programação é o horário de
transmiss~o de cada programa” (2004, p. 54). Para o autor, com a criaç~o da horizontalidade da
programação, baseada em índices de audiência, as emissoras conseguiram estipular um horário fixo
para cada gênero todos os dias da semana, criando no telespectador o hábito de assistir ao mesmo
programa no horário estipulado.
83
Referência à primeira fratura trabalhada por A.J. Greimas, no livro “Da Imperfeição”.
215
retórica do direito. Enquanto a simulaç~o do contato fala sobre “os mecanismos
mediante os quais a televisão especifica seu modo de comunicação organizando-a
sobre o eixo da função fática, isto é, sobre a manutenção do contato (IDEM), a
retórica do direito “organiza o espaço da televis~o sobre o eixo da proximidade e da
magia de ver” (IDEM, p. 306). Esses dispositivos ao mesmo tempo em que instalam
à televisão nessa ordem familiar, pautando sua grade de programação e seus
programas, faz isso, com o consentimento do destinatário enunciatário que está na
busca dessa proximidade e magia do ver, na continuidade de manter esse contato.
Por um lado, temos a simulação do contato, em que a TV se utiliza de um
tom coloquial que simula um diálogo com o espectador, fundado por um discurso
que se baseia numa lógica verbal e visual, dada em nosso objeto pela enunciação
enunciada com o olhar e conversar dos actantes dirigido ao enunciatário. Por outro
lado, pela retórica do direito, o espaço da televisão está fundamentado numa
proximidade que se constrói com o telespectador. A montagem na TV não precisa
ser expressiva como no cinema, mas sim, funcional, que se sustenta “na base da
‘gravação ao vivo’, real ou simulada”, explica Barbero (2003, p.307). O autor explica
ainda que o discurso televisivo se baseia na proximidade das histórias contadas por
um discurso que familiariza tudo. Essa relação entre a TV e a família funda também
uma relação entre o tempo do capital, portanto, produtivo, e o tempo cotidiano,
repetitivo; que se organiza na grade de programação através do cruzamento de
gêneros. Para Barbero, o gênero “pertence a uma família de textos que se replicam
e se reenviam uns aos outros nos diferentes hor|rios do dia e da semana” (IDEM).
Diante de tais colocações, entendemos que tanto a programação televisiva
quanto os gêneros que a televisão disponibiliza servem para ordenar e organizar o
que os telespectadores irão assistir, como também o que os sujeitos irão ser e fazer
no mundo.
216
3.5.1 Uma discussão sobre os gêneros na televisão
Qual a necessidade de falarmos em gêneros, se a priori, a programação
infantil se caracteriza como programa de entretenimento e o que isso tem a ver
com a enunciação em Cocoricó? Ou seriam narrativas educativas ou ainda narrativas
seriadas? Por perguntas como essas, podemos perceber que falar em gêneros,
principalmente após a instituição do pensamento pós-moderno, é um assunto
controverso. Arlindo Machado afirma que “a ideia de gênero tem sofrido um
questionamento esmagador” (2001, p. 67) e diversos autores, de acordo com o
autor, ajudam a pensar a definição de gênero. O autor diz que para Barthes (1988),
o gênero deve ser pensado enquanto um texto em si capaz de dissolver qualquer
classificação e para Derrida (1980) a identificação de uma obra com um gênero,
acaba modificando o segundo. Para complicar ainda mais a noção de gênero,
Machado diz que:
[...] as obras realmente fundantes produzidas em nosso século não
se encaixam nas rubricas velhas e canônicas e quanto mais
avançamos na direção do futuro, mas o hibridismo84 se mostra
como a própria condição estrutural dos produtos culturais
(MACHADO, 2001, p. 67).
Concordamos com o autor quando diz que as primeiras definições para
gênero foram dadas pela literatura e não se encaixam em outros meios de
comunicação, como o cinema, a televisão, etc. ; a não ser que utilizemos a definição
de Bakhtin.
Para o pensador russo, gênero uma força aglutinadora e
estabilizadora dentro de um determinada linguagem, um certo
modo de organizar as ideias, meios e recursos expressivos,
suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a
comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto
às comunidades. Num certo sentido, é o gênero que orienta todo o
uso da linguagem no âmbito de um determinado meio, pois é nele
84
Autores como Peter Burke (Hibridismo Cultural, 2003), Omar Calabrese (A idade neobarroca, 1998),
Stuart Hall (A identidade cultura na pós-modernidade, 2003), Frederic Jameson (Pós-Modernismo: a
lógica cultural do capitalismo tardio, 1996), dentre outros abordam o tema do hibridismo.
217
que se manifestam as tendências expressivas e mais organizadas
da evolução de um meio, acumuladas ao longo de várias gerações.
(MACHADO, 2001, p. 68).
Novamente a continuidade perpassa a ideia de gênero, como afirmara antes
Wolton e também Barbero, mesmo que o segundo tenha enfatizado a ordenação da
TV como um prolongamento da rotina familiar. Entendemos que o termo gênero
não é tratado de forma unânime pelos teóricos do campo da Comunicação85. Por
isso, traremos mais algumas definições propostas para o termo gênero no universo
televisivo. Sílvia Borelli afirma que o gênero é um princípio de coerência textual e
uma forma de classificação, construído como uma categoria abrangente (1996, p.
180). O gênero então seria capaz de classificar uma série bastante significativa de
elementos. Como Machado, a autora também explica que, a base de sustentação
dos gêneros na TV, encontra-se no campo literário.
Os gêneros – dos clássicos aos reeditados na atualidade – parecem
ser eternos na historia da literatura e da cultura. Ainda que se deva
assumir com cautela eventuais transposições e adaptações de
matrizes literárias tão antigas e tradicionais como a lírica, a epopeia
e o drama, é possível afirmar que os gêneros ficcionais estão
presentes desde os gregos, reencontram-se – reciclados e
transmutados – no campo literário e transformam-se,
fundamentalmente, em base de sustentação para a produção da
ficcionalidade nos meios audiovisuais. (BORELLI, 1996, p.177).
Enquanto Borelli e Machado nos colocam que os gêneros encontrados na
literatura, foram transpostos para a produção encontrada no meio televisivo, as
pesquisadoras Vera França e Yvana Fechine lembram da relação entre os gêneros e
o público espectador, discussão citada anteriormente por Barbero (2003). França
fala dos gêneros por duas perspectivas: “tanto do ponto de vista da construç~o de
sentido (regras semânticas), quanto do estabelecimento de um contrato de
interlocuç~o com o outro (regras pragm|ticas)” (2006, p. 29). Fechine também fala
85
Maria Immacolata V. Lopes (Revista Famecos, nº30, 2006) traz uma discussão interessante sobre o
campo estudos da Comunicação, problematizando conceitos de campo acadêmico, disciplinarização
das Ciências Sociais e dos estudos da Comunicação; e, sociedade da comunicação como
consequência da globalização.
218
nessa perspectiva dos gêneros televisuais considerando as expectativas do público
telespectador:
Unidades da programação definidas por particularidades
organizativas que surgem do modo como se coloca em relação o
apelo a determinadas matrizes culturais (o que inclui toda a
“tradiç~o dos gêneros” das mídias anteriores), a exploraç~o dos
recursos técnico expressivos do meio (dos códigos próprios à
imagem videográfica) e a sua própria inserção na grade de
programação em função de um conjunto de expectativas do e
sobre o público. (FECHINE, 2001, p. 18).
Pensando mais especificamente na definição de Fechine (2001, p.14),
entendemos que os gêneros como categorias norteiam a própria relação da
indústria do audiovisual com o seu público, a partir dos quais se decide o que se
quer ver na TV e até o controle institucional da grade de programação sob os
sujeitos telespectadores e a ordenação de suas atividades diárias.
Essa reflexão sobre os gêneros na televisão nos coloca em posição de
pensarmos a partir de agora sobre o objeto desta pesquisa: o Cocoricó enquanto um
programa de TV infantil. Como pensá-lo de acordo com uma forma organizativa da
própria programação da televisão e com relação ao público telespectador? Nesta
perspectiva, constantes características presentes nos enunciados (elementos
narrativos, sintáticos ou semânticos, bem como elementos de linguagem
audiovisual) dos programas de televisão – e, aqui, não entendendo apenas os
programas infantis – nos dizem que determinado programa pode pertencer a um
formato ou outro, dentro da narrativa organizadora do programa, ou seja, o gênero.
Os formatos, assim, indicam variações dos gêneros. Por exemplo, telenovela
e minissérie são formatos diferentes do gênero narrativa seriada. Se os gêneros são
uma tentativa de organizar as unidades de programação das grades das emissoras
televisivas decorrentes de matrizes culturais, segundo Fechine (2001, p. 19), o
formato é a matriz organizativa das mensagens televisuais, que sendo assim,
incorpora toda a dinâmica de produção e recepção da televisão .
A autora identifica 12 tipos de formatos televisuais, fundados: no diálogo; no
folhetim;
no filme; na performance; no jogo; na propaganda/publicidade; na
219
paródia; no jornalismo; na transmissão direta; nas histórias em quadrinhos; no
voyerismo e, por fim, o que mais interessa a este trabalho, no apelo pedagógico.
Esse formato seria aquele que tem o objetivo explícito de ‘ensinar’ algo ao
telespectador.
Conforme tais definições de gênero e formato, afirmamos que o programa
infantil analisado pertence ao gênero narrativa seriada, em que cada episódio é uma
história completa e autônoma, com começo, meio e fim, e o que se repete são
apenas os mesmos personagens principais e uma mesma situação narrativa
(MACHADO, 2001, p.84). Tal configuraç~o “supõe regras comunicacionais, que não
se restringem ao que é dito, mas que remetem a um modo próprio de dizer”
(DISCINI, 2005, p. 15), fundado por um “apelo pedagógico”, próprio da emissora
que o transmite – sendo ela educativa - pelo qual será proposto o entretenimento,
mas também a transmissão de valores pedagógicos sociais e culturais. Além disso, o
clipe musical faz parte dos programas narrativos do episódio, possibilitando ao
telespectador criança, também, essa articulação sincrética entre música e imagem.
A proposta do Cocoricó, como bem identificamos no primeiro capítulo, vem
sendo desenvolvida ao longo de tantos anos de televisão no Brasil, por outros
programas infantis. Entretanto, seu foco não está no aprendizado escolar, mas em
transmitir valores, ideais, gostos, para um sujeito com identidade ainda em
formação, que conduza num saber viver (ideologicamente falando) em sociedade,
nos moldes previstos pelo enunciador. Utilizando, para isso, um estilo de fazer
televisão para o público infantil.
3.5.2 O estilo Cocoricó de fazer programa infantil
Como dito ainda no primeiro capítulo da tese, a TV Cultura veio ao longo dos
anos, se propondo e se especializando em criar, produzir e veicular programas
dirigidos ao público infantil. Da parceria com outras emissoras – Vila Sésamo com a
Rede Globo – à inspiração em outros programas como Sítio do Picapau Amarelo e
todos os Rá-tim-bum, a TV Cultura enquanto emissora de televisão pública criou o
Cocoricó e consolidou seu estilo de fazer programa infantil. Podemos ressaltar até
220
aqui o quão importante é considerar nosso objeto enquanto situação de
comunicação, o que supõe enunciado em relação à enunciação. “A enunciação,
sempre pressuposta ao enunciado, compreende o sujeito do dizer, que se biparte
entre enunciador, projeção do autor, e enunciatário, projeção do leitor”, diz DISCINI
(2005, p.29).
A autora relaciona o termo gênero: às crenças fincadas na sociedade e
representativas de diferentes segmentos sociais e às coerções de gênero:
Os gêneros são formas relativamente estáveis de enunciados,
estáveis tanto em relação ao conteúdo temático-figurativo, quanto
em relação à estrutura textual. Os gêneros, supondo famílias de
textos que partilham características comuns, embora
heterogêneas, estão disponíveis nas culturas. A noção de gênero,
constitutiva do texto, confirma o fato de que não pode haver texto
absolutamente original. O sujeito, então, não-soberano, firma-se
entretanto como um modo próprio de ser no mundo pela maneira
como responde às coerções; sejam coerções dadas como regras
genéricas (do gênero), sejam coerções dadas como valorização dos
valores. (DISCINI, 2005, p. 34).
FIGURA 35 – Gênero e formato configuram o estilo de ser Cocoricó
Baseado nas análises dos episódios de Cocoricó, observamos o programa
tanto enquanto modo de ser– gênero - quanto pela colocação de seus valores –
formato -, sendo assim, identificamos as seguintes características:
221
1) apresenta-se como fábula televisiva;
2) configura-se plasticamente pela relação entre a visualidade/sonoridade e a
continuidade narrativa, utilizando-se, para isso, de: a) ausência de voz em off, ou
seja, narração delegada à própria câmera e aos movimentos; b) delegação de voz e
posição marcados na colocação em discurso na relação enunciador-enunciatário,
observados pelo olhar dirigido e tridimensionalidade do cenário; c) verbal/sonoro
intensificado pelas músicas (aspectualidade durativa do ritmo e rimas) e interjeições
na fala dos actantes; d) além dos efeitos de saturação de cor, uso de molduras, de
vinhetas de passagens na edição final da imagem.
3) como os outros programas infantis criados pela emissora, possui
características de um programa de entretenimento - mas apoiando-se no próprio
lema da emissora – permanece aliado ao educativo, que para isso, privilegia em suas
narrativas às temáticas socioculturais;
Como produto da televisão brasileira, Cocoricó traz consigo características do
próprio meio no qual surgiu. Mattelart fala sobre essas características, embora das
novelas brasileiras ou narrativas seriadas como vínhamos chamando até agora:
As novelas brasileiras apresentam um misto de memória narrativa
popular tradicional e de modernidade. Poderia parecer que esta
associação define corretamente as necessidades da parte de
nossos sistemas simbólicos gerenciada pelas grandes indústrias
culturais. Elas podem surgir como o tempo da paixão, o tempo dos
sentimentos, o tempo da libido familiar, contrastando com o
tempo elíptico, fragmentado e ao mesmo tempo instintivo e
abstrato, que explode por exemplo no videoclipe, na era da pósmodernidade. Com efeito, a originalidade da novela é combinar
uma maneira de narrar fragmentada no plano da forma televisiva
com uma estrutura narrativa de longa duração. A rítmica do
fragmento corresponde à nossa imersão visual no mundo
tecnológico moderno e satisfaz às modalidades contemporâneas
da percepção estética. (MATTELART, 1998, p. 81).
Afirmamos, portanto, que o programa se alimenta de outros formatos, como
a maneira de narrar fragmentada de outras ficções televisivas brasileiras – como as
novelas, citadas por Mattelart, quanto outros infantis - para configurar a partir daí,
uma expressão e conteúdo próprios de ser Cocoricó. Diz Carneiro sobre o programa
222
infantil Vila Sésamo: “contra as perspectivas de recusa do divertimento
desenvolveu-se, a partir do Vila Sésamo, o uso educativo do aprendizado da criança
com a televisão-entretenimento (1999, p. 212). Assim como em Castelo, um dos
modos de ser Cocoricó é dado no apelo pedagógico. Além disso, a utilização do clipe
musical como um dos programas narrativos permitiu ao Cocoricó uma relação com
seu público, dada pelo estar junto do programa pelos modos de articular plástico e
sincrético.
Esses modos de ser Cocoricó encontram-se em suas convenções do quê dizer
e do como dizer, que configuram coerções genéricas e em certo sentido, genéticas,
pois estão no cerne do programa. O discurso de Cocoricó se utiliza dessas
convenções enquanto formação ideológica num fazer saber, fazer crer, fazer fazer
(fazer consumir) a partir da exploração do sistema sincrético enquanto produto
televisual. Discini explica que as formações ideológicas dominantes se apoiam em
instituições como escola, família, religião, e meios de comunicação de massa,
procurando não só explicar a realidade como regular o comportamento. E a autora
continua:
A propósito, ao ser designada a formação ideológica, fala-se em
formação porque é considerado um conjunto sistemático de ideias
e valores; porque é pensado um corpo lógico e coerente de
representações; porque é reconhecido um sistema estável de
interpretações; porque são lembradas regularidades de
procedimentos; porque é concebido um conjunto organizados de
prescrições e normas, conjunto que dita deveres, quereres,
poderes e saberes a indivíduos.(DISCINI, 2005, p. 60).
O ponto de vista de Discini nos permite compreender que essas formações
passam a refletir visões de mundo de classes sociais dominantes, reunidas por
estilos de vida, reprodutores de gostos e hábitos que dizem respeito ao poder
econômico e que perpetuam o aparato simbólico, e acabam por se configurarem
como a única forma de pensar dominante. Em Cocoricó na cidade temos
figurativizado - conforme citado no decorrer deste capítulo - como é dada essa
reprodução de gostos e hábitos, do que a criança deve fazer, brincar, ler, conhecer,
etc.
223
Fiorin fala de algumas definições para essas representações, as quais ele
aponta, também, como ideologia:
“esse conjunto de ideias, a essas representações que servem para
justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem
e as relações que ele mantém com os outros homens é o que
comumente se chama de ideologia”.
“ a ideologia é uma ‘vis~o de mundo’, ou seja, o ponto de vista de
uma classe social a respeito da realidade, a maneira como uma
classe ordena, justifica e explica a ordem social.
“a ideologia é constituída pela realidade e constituinte da
realidade”. (FIORIN, 1998, p. 28-30)
E o autor vai além, segundo ele, o “discurso transmitido contém em si, como
parte da visão de mundo que veicula, um sistema de valores, isto é, estereótipos
dos comportamentos humanos que são valorizados positiva ou negativamente” e j|
condensados como prática social (FIORIN,1998, p. 55), como bem explica Chauí:
A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de
representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de
conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o
que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e
como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o
que devem fazer e como devem fazer. Ela é portanto, um corpo
explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos)
de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos
membros de uma sociedade dividida em classes a partir das
divisões na esfera de produção. (CHAUÍ, 2008, p.113).
Chauí diz que existe uma ideologia, chamada por ela de competência, capaz
de realizar dominação pelo próprio prestígio e poder das ideias, consideradas como
científicas e tecnológicas. A autora explica que o discurso competente é aquele
proferido por especialistas; de um lado a Organização, que manipula, do outro lado,
sujeitos despojados de sua condição social, política e histórica; e por último uma
Organização que tenta revalidar esses sujeitos tornando-os privados.
O discurso da competência privatizada é aquele que ensina a cada
um de nós, enquanto indivíduos privados (e não enquanto sujeitos
sociais), como nos relacionarmos com o mundo e com os outros.
224
Esse ensino é feito por especialistas que nos ensinam a viver.
Assim, cada um de nós aprende a relacionar-se com o desejo da
mediação do discurso da sexologia, a relacionar-se com a
alimentação pela mediação do discurso da dietética ou
nutricionista, a relacionar-se com a criança por meio do discurso da
pediatria, da psicologia e da pedagogia. (CHAUÍ, 2008, p. 112).
Identificamos, portanto, que essa mídia televisiva para crianças pauta-se,
sobretudo, na modalidade cognitiva, do saber, do conhecer, como também, na
prescritiva. Observado isso, fazemos as seguintes pontuações, baseadas em Discini
(2005, p. 192-193):
 reunião de orientações que transmitem um saber fazer ao espectador,
também manipulado para querer e dever agir segundo estabelecido;
 discurso que doa deveres e saberes, investidos pela crença em uma
imagem ideal;
 discurso que legitima aspirações vinculadas a épocas e classes sociais;
 discurso que, enquanto construção de significado pelo espectador,
supõe um manipulador, o enunciador, que manipula o enunciatáriotelespectador, para que este entre em conjunção com um
determinado valor, como, por exemplo, a aceitação social;
 discurso do qual se depreende a cena enunciativa de aconselhamento
e, portanto, voltada primordialmente para o sujeito deôntico (do
dever ser e fazer); a modalidade deôntica se organiza segundo o
dever fazer (prescrição) e o dever não fazer (interdição) e suas
variações; assim pelo: comprometimento (crer dever fazer) e
indiferença (não crer dever fazer), certeza (crer dever ser) e incerteza
(não crer dever ser), competência (crer poder fazer) e incompetência
(não crer poder fazer), verossímil (crer poder ser) e inverossímil (não
crer poder ser).
Por meio das modalidades, o estilo de Cocoricó é afirmado como um modelo
confirmador de hábitos e gostos de determinado grupo social, como um estilo para
categorizar o mundo. “A formação de tipos é um outro nome para categorização.
225
Identificação de traços comuns, rede de semelhanças do que é apreendido”
(FONTANILLE, 2007, p. 50). Por outro lado, o estilo de Cocoricó também se
configura- como um modelo de aprendizado televisual, pela exploração das
presenças discursivas de delegação de vozes, temporalidade e espacialidade dadas
pelo uso do sistema televisual. Nessa utilização da linguagem televisiva, Bettetini
afirma que a presença do sujeito enunciador, delegado do destinador, deve ser:
Entendido como aparato simbólico que é o princípio ordenador de
todos os processos semióticos e um texto e que regula também as
modalidades de aproximação ao texto pelo espectador: um
aparato ausente, produtor e produto do texto, que deixa marcas
de sua passagem ordenadora sobre seus materiais significantes 86.
(BETTETINI,1986, p. 13).
Ou seja, mesmo que o enunciador tente apagar marcas, para que o suporte
se torne ausente, tudo faz parte do que será apreendido como significado.
[...] sugerindo a hipótese de que justamente a investigação sobre o
que está acontecendo neste simulacro escondido no texto, neste
fantasma carregado de intenção comunicativa, pode ajudar a
compreender o novo panorama tecnológico, antropológico e
cultural do cinema e da televisão. Dedicar-se ao sujeito enunciador
significa, no fundo, dedicar-se a compreender quem
verdadeiramente “fala” através da tela audiovisual, quem é o fio
condutor da mudança discursiva que se fecha no circuito entre a
imagem e o espectador87. (BETTETINI, 1986, p. 13-14).
O que tentamos neste capítulo foi perceber os modos de se colocar desse
sujeito enunciador de Cocoricó e suas proposições, dentre elas os usos estilísticos do
discurso e da linguagem televisiva. Esse uso estilístico, como Coelho pontua na
86
Tradução nossa para: “entendido como el aparato simbólico que es el principio ordenador de
todos los processos semioticos e un texto y que regula también las modalidades de aproximación al
texto por parte del espectador: un aparato ausente, productor y producto del texto, que deja huellas
de su paso ordenador sobre sus materiales significantes”
87
Tradução nossa para: “[...] sugeriendo la hipótesis de que justamente la investigación de cuanto
está sucediendo en este simulacro escondido en el texto, en este fantasma cargado de
intencionalidad comunicativa, puede ayudar a comprender el nuevo panorama tecnológico,
antropológico y cultural del cine e de la televisión. Ocuparse del sujeto enunciador significa, en el
fondo, ocuparse de quien verdaderamente “habla” a través de la pantalla audiovisual, de quien rige
los hilos del cambio discursivo que se cierra en el circuito entre la imagen y el espectador.”
226
literatura (pelas rimas e alternâncias de um poema) têm um papel diferencial na
apreensão da significação para um programa de televisão. Para a autora:
Claro que o pequeno leitor ou ouvinte não perceberá esses
pequenos/grandes detalhes estilísticos (e nem lhe interessará!),
mas a nós, adultos, cabe saber que é devido a tais detalhes que a
sua leitura, recitação ou cantarolar seduzem os leitores e propõem
uma experiência vital diferente. (COELHO, 2000,p. 245).
Compreender essas marcas estilísticas como uma “experiência diferente”
significa que a apreensão delas será dada pela ordem da experiência sentida pelo
enunciatário, sensorial e cognitivamente. Merleau-Ponty diz que (1999, p. 126-128)
que nosso corpo é ao mesmo tempo liberto e servo de nossa existência, liberto por
que esse corpo e seu circuito sensorimotor dá sentido aos nossos reflexos e servo
por que apenas renunciando a “uma parte de sua espontaneidade, engajando-se no
mundo por órgãos estáveis e circuitos preestabelecidos que o homem pode adquirir
o espaço mental e pr|tico que em princípio o libertar| de seu meio”. O autor nos
chama atenção para a discussão entre o que apreendemos sensivelmente ou
cognitivamente, e nos permite pensar nesse sujeito enunciador-destinador de
Cocoricó que pelo uso da linguagem televisual e de suas marcas estilísticas convoca
o enunciatário-destinatário na apreensão sensível e cognitiva para os efeitos de
sentido e de interação desejados.
228
Capítulo IV
REGIMES DE SENTIDO E REGIMES DE INTERAÇÃO
“Presença”, “situação”, “interação”: estas são,
com efeito, algumas das principais noções que
é preciso reter se se deseja abordar a
especificidade do “fazer” semiótico, pelo
menos naquilo que ele oferece hoje de mais
vivo. Tendo como objetivo a captação do
sentido enquanto dimensão provada de nosso
ser no mundo e desejando manter um contato
direto com o cotidiano, o social e o “vivido”, a
pesquisa semiótica atual se orienta cada vez
mais explicitamente para a constituição de uma
semiótica da experiência, em particular sob a
forma de uma sociossemiótica.
Eric Landowski, 2002
Cada análise dos episódios e clipes musicais de Cocoricó foi nos mostrando
como é construída a relação interativa entre esse programa e audiência. Essa
abordagem deu-se pelo estudo do sujeito complexo da enunciação, explorando
nesse processo, o relacionar do enunciador e enunciatário no como enunciar a
produção do sentido. Entender essa relação, nos possibilitou compreender que a
apreensão do sentido posto por esse produto televisual é responsável pela
construção de verdades, saberes e visões de mundo em seu plano de conteúdo que
são encadeados pelo uso da articulação dos formantes plásticos na linguagem
sincrética do televisual. Por essa construção do sentido torna-se necessário refazê-
229
la, pontuando para isso, os procedimentos de interação baseados nos pressupostos
teóricos de Eric Landowski: manipulação, programação88, ajustamento e acidente.
Discorrer sobre esses regimes de sentido e de interação, nos leva de volta ao
modo como os sujeitos enunciador e enunciatário são instaurados pelo discurso de
Cocoricó. Os procedimentos enunciativos dos discursos midiáticos são definidos
pela instauração dos sujeitos envolvidos no ato enunciativo - quer dizer, o eu que
fala e o tu para quem se fala - na medida em que esse ato é o de processamento do
discurso que lhe foi enunciado. Esses procedimentos formam um sistema de
possibilidades no processar do sentido. Ao alargar os procedimentos sintáxicos do
regime de junção com os do regime de união, Landowski nos propõe regimes de
sentido que se estruturam pelos mecanismos interacionais instaurados nos
discursos para fazer o seu sentido. Explicita-se a semiótica como uma teoria da ação
humana de construção da significação. Como é colocada, então, essa dinâmica de
interação dos sujeitos em Cocoricó?
4.1 Cocoricó, manipulação, hábito e consumo
No capítulo anterior, já falávamos sobre um fazer estilístico do enunciador e
sobre a competência modal dos sujeitos, configurando assim, a intencionalidade
mediadora dos sujeitos enunciativos deste programa infantil. Afirma Landowski que
um sujeito de “vontade”, ou seja, com uma intencionalidade, tem por finalidade agir
sobre o outro, um procedimento que a semiótica largamente define como
manipulação. Esse fazer fazer o outro que se instaura por um sujeito fazer um outro
sujeito querer fazer. Para que esse segundo sujeito queira fazer, “[...] é preciso pelo
menos, antes de qualquer coisa, fazê-lo crer, ou fazê-lo saber que há vantagem no
querer, de um ponto de vista ou de outro”89, diz o autor (LANDOWSKI, 2005, p.21).
88
Pontuamos que, até momento, ao nos referirmos à programação, significava grade de
programação das emissoras de televisão. Entretanto, neste capítulo estaremos tratando a
programação enquanto um procedimento de interação na emergência do sentido.
89
Traduç~o nossa para: “Mais pour faire qu’un sujet ‘veuille’ faire quelque chose, il n’en faut pas
moins, d’abord, lui faire croire, ou lui faire savoir qu’il a avantage { le vouloir, d’un point de vue ou
d’un autre”.
230
O que mostra as negociações discursivas que animam esse tipo de interação social.
De um lado, temos a TV Cultura e seu programa Cocoricó como um sujeito de
intencionalidade constituído por um querer fazer crer a criança telespectadora de
valores sociais e visões de mundo na presentificação de lugares, descoberta de
novas brincadeiras e atividades a fazer e aprendizado das formas de viver em
sociedade. É instaurado, então, um contrato de fidúcia entre esses dois sujeitos,
conforme desenvolvido pelas análises das vinhetas, dos episódios e dos clipes
musicais. O
fazer crer do sujeito emissora e programa remete ao fazer
interpretativo do telespectador, em crer nesse dizer como verdade.
Por esse
contrato mediado nas formas de apreensões desse enunciatário pela linguagem
televisual, o sujeito (emissora e programa) vai se constituindo pelo seu fazer crer em
sua disseminação enquanto marca Cocoricó.
O enunciador de Cocoricó propõe a audiência relações pautadas: por um lado
na fidelidade à marca, e por outro, na instauração do sujeito enunciatário na
construção do sentido do discurso por um fazer sentir. Esses sujeitos que se
constroem marcam a passagem de uma semiótica das situações a uma semiótica da
experiência sensível. É priorizada, assim, a noção de um fazer do outro, por meio
dos seus sentidos, de sua competência estésica para apreender o sentido que nas
palavras de Landowski:
trata-se, afinal, de abordar as condições básicas do fazer sentido
inerente ao nosso estar-no-mundo – um mundo feito de qualidades
sensíveis cujos modos de significar pouco a pouco começamos a
entender, ou seja, a descrever um pouco melhor. (LANDOWSKI,
2002, p. 150).
A emissora anima o sujeito a querer por si mesmo e na busca dessa
competência se tornar um auto destinador de sua trajetória, na constante de
diversificar suas condições para leitura do seu sentir o mundo com os seres, as
coisas e a si próprio. Nesta perspectiva do fazer sentido, Landowski introduz no
231
procedimento de manipulação a noção de hábito90. Para ele, o hábito é a repetição
de um fazer, de um modo de agir. Uma prática que produz um tipo de contato entre
o sujeito e aquilo o que ele faz, pela repetição a cada vez de um sentido singular,
como por exemplo, no ato de dançar ou no ato de montar a cavalo. No texto
escolhido para esta tese, esse tipo de construção do sentido se processa na
experiência da prática de um estar junto, um estar mediado, mas que atua na
fisicalidade corpórea do sujeito que assiste o programa e é afetado somaticamente
durante esse ato.
Nos dias atuais, a rotina diária de uma criança – desde quando nasce até
entrar na escola - é composta principalmente pelas horas que passam em frente à
tela da televisão. Já falamos em dupla jornada das mulheres, quantidade e
qualidade da programação, entre outros motivos, fazem com que as crianças se
relacionem de modo cada vez mais intenso com esse conteúdo televisivo. Esse
sentir no momento de lazer e entretenimento da criança ao assistir TV pode ser
comparado ao sujeito que lê um jornal, num fazer significante da própria leitura do
jornal, como abordou Ana Claudia de Oliveira no artigo “Jornal e h|bito de leitura na
construç~o da identidade”. De acordo com a autora, “acostumando-se ao sentir
desencadeado pelo mesmo tipo de arranjo, o sujeito se familiariza com ele e o seu
querer senti-lo, de novo, é a única volição que o faz praticá-lo uma outra vez e de
modo igual” (Oliveira, 2002). Quer dizer, na leitura diária de um jornal está prevista a
relação intersubjetal: de um lado o leitor, do outro o jornal e toda a equipe de sua
elaboração. O segundo proporciona ao primeiro, o que Oliveira chamou de
“mesmidade estrutural” que se processa pela identidade visual criada pelos
arranjos estéticos dos recursos tipográficos e design gráfico e propicia ao leitor no
seu encontro com o jornal, reconhecê-lo como um sujeito credível estabilizado que
propicia, sobretudo, um sentir-se sujeito no ato de leitura. Daí o instaurar na
continuidade uma vivência enquanto hábito no ato de ler o jornal.
90
O autor trata a conceituação de h|bito em diferentes artigos: “Pour l´habitude”, in Caderno do
Centro de Pesquisas Sociossemióticas, Nº 4, 1998, São Paulo, CPS, pp. 155-164; “Aquém ou além das
estratégias, a presença contagiosa”, in Documentos de Estudo do Centro de Pesquisas
Sociossemióticas, S~o Paulo, Edições CPS, 2005; “Da Imperfeiç~o, o livro do qual se fala”, in Da
Imperfeição, trad. para o português A.C. de Oliveira, São Paulo, Hacker, 2002, pp. 125-150.
232
Em Cocoricó, identificamos essas mesmas práticas entre sujeitos que se
relacionam para a configuração de um hábito. Ao assistir o programa, a criança sabe
quais bonecos encontrará, o espaço tópico onde se dará as histórias, o horário de
transmissão, além dos aspectos televisuais ressaltados neste trabalho como a
sonoridade, ritmicidade, exploração cromática, modo de filmar, etc. Esse produto
televisual garante ao telespectador essa manutenção da identidade do programa
que é percebida e diferenciada pelos sentidos da criança. A enunciação enunciada
em primeira pessoa, que convoca esse espectador a todo instante, a solicitação dos
sentidos dos telespectadores e, com isso, novamente a instauraç~o do “di|logo”, o
uso da intertextualidade com outros produtos audiovisuais ou da literatura e a
ritmicidade na musicalidade das canções são aspectos que propiciam esse estar
presente de Cocoricó na interação. Tais aspectos configuram a noção de hábito de
assistir Cocoricó pela experiência vivida da criança.
As escolhas e práticas são, assim, como rituais no plano coletivo por um
determinado uso. São costumes e regras instaurados no dia a dia das pessoas. Em
nosso objeto de estudo, temos as crianças que assistem os programas de TV
dirigidos a elas que seus pais ou responsáveis aprovam e propiciam essa ocasião.
Trata-se de uma prática comum que se torna ritualizada, pelo seguir uma rotina que
a torna previsível. Assistir televisão para as crianças deve ser entendido, assim,
como um uso, um costume, cuja frequência configura-se num hábito programado.
O hábito de assistir um ou outro programa se relaciona ainda com a própria
motivação que propõe estrategicamente as emissoras de TV durante a grade de
programação. Enquanto procedimento de interação, a estratégia dessa emissora no
exercício de seu papel actancial de destinador é um fazer para ganhar audiência e
conseguir assumir um comando da relação com a criança. Esse telespectador é , a
todo instante, informado durante os intervalos comerciais do programa que está
passando, do que virá a seguir e, assim sucessivamente. Além da informação dessa
grade de programação via intervalos comerciais, durante a exibição de determinado
programa, a emissora coloca, no canto superior ou inferior da tela, a logomarca de
outro programa, com o dizer: “a seguir”, como destacamos anteriormente. Por
233
essas duas maneiras, a criança sabe o que virá a seguir – quais os programas
disponibilizadas pela emissora – e motivada por essa grade de programação acha
que pode decidir assistir ao programa e usufruir das histórias, participando do
sentido proposto. Entretanto, na verdade, a criança está inserida dentro dessa
estratégia de manipulação, baseada na intencionalidade de um destinador maior –
que é a emissora de TV - para fazer crer em seus valores , visões de mundo e formas
de apreensão.
Essa criança motivada por seu próprio fazer diário – do hábito de assistir - e
estrategicamente manipulada pela emissora, assiste aos episódios de Cocoricó. Por
isso, que a cada temporada, o programa irá acrescentar novos cenários, actantes,
figurativizações diferentes (embora com a mesma temática), para que para o
destinatário-enunciatário estar com Cocoricó não seja uma rotina dessemantizada,
mas recoberta de semantismo que são descobertos e fazem com que permaneça
como um hábito, ou seja, como algo que faça sentido para quem o faz no modo do
próprio de fazer. Segundo nos explica Landowski:
[...] trata-se de uma necessidade de ordem simbólica. Regulando as
condutas individuais ou coletivas enquanto como significantes, ou
seja programando-as de um modo propriamente sociossemiótico,
esse gênero de concretudes socioculturais – ritos, usos, hábitos ,
etc. – introduz um coeficiente de previsibilidade nos
comportamentos e fornece por isso, também a eles, uma base que
permite definir a respeito dos atores sociais os procedimentos
interativos eficazes, seus próprios percursos entre manobras
fundadas sobre o conhecimento de determinações restritas, de
ordem causal, e manipulações estratégicas fazendo apelo direto à
competência modal das pessoas-sujeitos.91 (LANDOWSKI, 2005, p.
15).
91
Traduç~o nossa para: “[...] c’est d’une nécessité d’ordre symbolique qu’il s’agit. En régulante les
conduites individuelles ou collectives en tant que conduites signifiantes, c’est-à-dire en les
programmant sur un mode proprement sócio-semiotique, ce genre de concrétions socio-culturelles –
rites, usages, habitudes, etc. – introduit un coefficient de prévisibilité dans les comportements et
fournit par l{, lui aussi, une base permettant de définir { l’égard des acteurs sociaux des procédures
interactives efficaces, à mi-chemin entre manoueuvres fondées sur la connaissance de
déterminantions strictes, d’ordre causal, et manipulations stratégiques faisant directement appel { la
compétence modale des personnes-sujets.”
234
Mediante tais palavras, afirmamos que não se trata, neste objeto, de um
hábito estabelecido em assistir ao programa regido apenas pelo procedimento de
programação, no qual os sujeitos envolvidos desenvolvem uma relação baseada na
regularidade do fazer do outro. Landowski (2005, p. 15) nos questiona: “[...] por que
não admitir que esses comportamentos, a despeito de seu aparente automatismo,
s~o motivados, e n~o, ou n~o somente, programados?” e, ele mesmo responde:
[...] é porque nós já os justificamos por tal ou tal razão, nós
podemos os ressemantizar e, se são tão triviais, transformá-los em
práticas organizadas: lavar as mãos, fazer a cama, arrumar seus
pertences como todo mundo, é certo, mas, sobretudo, fazê-lo da
mesma maneira: à sua maneira de ser, redefinindo-as, remotivando
cada detalhe de suas operações, um pouco como um músico que
além de somente seguir ao pé da letra o enunciado de uma
partitura dará à sua execução o valor de um novo ato de
enunciação. 92 (LANDOWSKI, 2005, p. 16).
Seguindo o autor (2005, p. 9), os atos da rotina se transformam em um
hábito pelo jeito particular de fazê-los pelo modo como cada criança realiza as suas
ações durante a infância. Para isso, é necessário que o sujeito da produção
discursiva tenha uma imagem daquele o qual irá interagir. Isso se passa de modo
similar a mãe que conhece o filho e o que precisa fazer para levá-lo a fazer algo que
ela deseje, na maioria das vezes, valorando positivamente (por sedução) esse objeto
de valor. Nesse sentido, pensemos novamente no cotidiano da criança. O bebê
quando ainda está na barriga da mãe, se alimenta dela e sente tudo aquilo o que a
mãe sente. Quando o bebê nasce, esse forte vínculo com a mãe permanece até pelo
menos durante o período da amamentação. Entretanto, mesmo após esse período,
na fase da infância, a criança permanece com uma rotina fixada: hora de acordar,
hora de brincar, hora do lanche, hora do almoço, hora do jantar e, assim,
sucessivamente. Apenas, quando começa a vida escolar é que essa rotina sofre
92
Traduç~o nossa para: “[...] c’est parce qu’on les trouve justifiés pour telle ou telle raison, on peut
resémantiser et, si triviaux soient-ils, les transformer en pratiques concertées: se laver les mains, faire
son lit, ranger ses affaires comme tout le monde, certes, mais pas tout à fait de la même manière: à
sa manière à soi, en redéfinissant, en remotivant chaque détail de ces opérations, un peu comme un
musicien qui plutÔt que de seulement suivre au pied de la lettre d’enoncé d’une partition donnerait {
son exécution la valeur d’un nouvel acte d’énonciation”.
235
mudanças que precisam ser incorporadas. O que é impossível imaginar, é essa
rotina da criança ser tomada como dessemantizada e sem qualquer aprendizado.
Todos os dias as crianças “reinventam” esse cotidiano, como explica Landowski
(2005, p. 17), “o sujeito preocupado em questionar a cada instante e eventualmente
redefinir o sentido que ele dá aos objetos que o envolvem [...] reconstrói cada dia
seu próprio mundo como universo significante”. Se estamos falando em crianças,
como poderíamos defini-las? David Buckingham afirma que:
As crianças são definidas como um categoria particular, com
características e limitações particulares, tanto por si mesmas como
pelos outros – pais, professores, pesquisadores, políticos,
planejadores, agência de bem-estar social e (claro) meios de
comunicação. Essas definições são codificadas em leis e políticas, e
se materializam em formas particulares de práticas sociais e
institucionais, que por sua vez ajudam a produzir as formas de
comportamento vistas como tipicamente “infantis” – ao mesmo
tempo em que geram formas de resistência a elas. (BUCKINGHAM,
2000, p. 19-20).
Ao mesmo tempo em que Buckingham destaca essa categorização do
momento da vida conhecido como infância como uma codificação e materialização
de formas sociais, por outro lado, principalmente os meios de comunicação se
esforçam em promover e produzir textos que expressem essas formas de
comportamentos sociais com motivações pedagógicas. Esses textos “se
caracterizam muitas vezes pela tentativa de educar, de dar lições de moral ou
‘imagens positivas’, e assim fornecer modelos de comportamentos vistos como
socialmente desejáveis” (BUCKINGHAM, 2000, p. 27).
Desde seu nascimento, portanto, a criança tem seus primeiros contatos com
os meios de comunicação e com esses modelos de comportamentos sociais, o que
se configura como uma descoberta. Sendo um programa televisivo, Cocoricó
promove essa descoberta e interação por suas visões de mundo, dadas pelas
formas de sua articulação do discurso no conteúdo e na expressão. A ida dos
actantes para a cidade modifica a exploração do hábito em assisti-lo, no sentido de
que propõe a criança outras figuratividades de viver socialmente. Determinados
236
elementos figurativos (destacados no capítulo anterior) criarão outras temáticas,
mas que não apagarão as anteriores. Ou seja, a criança ainda terá os elementos
necessários para fazer daquele assistir Cocoricó um hábito. A apreensão do sentido
por essa criança será tomada por essas mudanças dadas pelo estar na cidade, como
por exemplo: no relacionamento de Júlio com Vitória, nas descobertas culturais
dessa cidade, das profissões e, principalmente dos modos de viver e conhecer a
cidade apresentados pelos clipes musicais. Assim, a rotina euforizada será a de
assistir Cocoricó, seja no campo ou na cidade, já que o que será essencial para a
apreensão do sentido é dada por essa interação no encontro com o programa e
seus actantes, que permanecem com uma mesmidade identitária que os torna
reconhecível no estar junto com Cocoricó, seus discursos e motivações desejadas.
Tanto a relação entre sujeito mãe e sujeito filho, por exemplo, ou mais ainda
entre sujeito programa Cocoricó e sujeito criança, terá uma motivação subjetiva, que
dependerá das qualidades e competências de um e de outro e o que um faz do
outro.
Sob essa segunda forma, a interação estratégica não se desenvolve
mais sobre um plano “horizontal”, em que os parceiros podem
trocar entre eles os valores objetivos, mas sobre um eixo
“vertical”, em outras palavras, hier|rquico, no qual sua
confrontação tem por implicação o reconhecimento de um dos
agentes pelo outro. E se, no primeiro caso, as razões para se
submeter à vontade do manipulador são de ordem econômica, no
segundo as motivações que o conduzem a se curvar são, em
contrapartida, essencialmente de ordem identitária. 93
(LANDOWSKI, 2005, p.9).
Essa relação dependerá, portanto, também do que tornará esse sujeito
manipulador, um sujeito competente, que faz uso de sua racionalidade, com seus
próprios julgamentos e seus sistemas de valores. Desse modo, o autor apresenta a
interação desses sujeitos como a lógica da manipulação:
93
Tradução nossa para: “Sous cette seconde forme, l’interaction stratégique ne se déroule donc plus
sur un plan ‘horizontal’ où des partinaires peuvent échanger entre eux des valeurs objectives mais
sur un axe ‘vertical’, c’est-à-dire hiérarchique, où leur confrontation a pour enjeu la reconnaissance
de l’un des agents par l’autre. Et si dans le premier cas les raisons de déférer { la volonté du
manipulateur sont fondamentalement d’ordre économique, dans le second, les motivations qui
conduisent { s’y plier sont en revanche essentiellement d’ordre identitaire”.
237
A manipulação – e mais amplamente a estratégia, que estende em
uma maior escala a mesma lógica do fazer fazer – constitui, ela, em
seu princípio, a instância das sociedades civis fundada sobre a
interdependência entre os sujeitos. A atividade de base aí toma a
forma do trabalho político entendido essencialmente como
trabalho de persuasão visando o acordo entre as vontades, que
esse acordo seja explicitamente consagrado, ou não, sob a forma
de contrato. Interagir desse modo é em primeiro lugar atribuir ou
reconhecer no outro uma vontade e, a partir daí, procurar pesar
suas motivações e suas razões de agir: é tentar fazê-lo querer isso
mais que aquilo, de forma que – de sua plena vontade ou ao
contr|rio, como dizemos, “a morte do espírito” – ele não pudesse
não querer executar o que nós projetamos para ele. Quer dizer que
aqui o reconhecimento do outro como fonte de vontade não
equivale a propriamente falar em reconhecer o outro como um
outro enquanto tal, por ele mesmo, como finalidade. Pois se a
estratégia se propõe a reconhecer o querer do outro e mesmo,
melhor que isso, se ocupa em conhecê-lo profundamente, a tornálo tão transparente quando possível, a notar suas determinações
(estando entendido que o querer funda o sujeito, ele não
pressupõe necessariamente sua autonomia), é unicamente em
vista de melhor poder manipulá-lo, de tomar posse mais
seguramente sobre seu agir, sobre suas motivações e suas razões,
eventualmente as mais secretas.94 (LANDOWSKI, 2005, p.12).
Podemos dizer que, o destinador “emissora” age de duas formas: pela
interdependência entre os sujeitos e pelo uso da estratégia. Na primeira delas, o
destinador é delegado dos pais na funções de entreter e, muitas vezes, de educar as
crianças e, com isso, tem sua audiência garantida com a ressemantização do hábito
de assistir TV. Já, a estratégia, irá possibilitar a esse sujeito destinador manipular
94
Traduç~o nossa para: “La manipulation – et plus largement la stratégie, qui déploie sur une plus
grande échelle la même logique du faire faire – constitue, elle, dans son principe, le ressort des
sociétés civiles fondées sur l’interdépendance entre sujets. L’activité de base y prend la forme du
travail politique entendu essentiellement comme travail de persuasion visant l’accord entre les
volontés, que cet accord soit explicitement consacré, ou non, sous la forme du contrat. Interagir sur
ce mode, c’est donc en premier lieu attribuer, ou reconnaître { l’autre une ‘volonté’ et, { partir de l{,
chercher { peser sur ses motivations et ses raisons d’agir: c’est essayer de le faire vouloir ceci, plutôt
que cela, de façon à ce que – de son plein gré ou au contraire, comme on dit, ‘la mort dans l’}me’ – il
ne puisse pas ne pas vouloir exécuter ce qu’on projette pour son compte. C’est dire qu’ici la
reconnaissance d’autrui en tant que source de volonté n’équivaut pas { propement parler à
reconnaître l’autre comme autre en tant que tel, pour lui même, en tant que finalité. Car si le stratégie
s’astreint { reconnaître le voulouir d’autrui et même, mieux que cela, s’emploie { le connaître en
profondeur, à se le rendre aussi transparent que possible, à en repérer les déterminations (étant
entendu que si le vouloir fonde le sujet, il ne présuppose pas nécessairement son autonomie), c’est
uniquement en vue de mieux pouvoir le manipuler, de prendre plus sûrement prise sur lui en agissant
sur ses motivations et ses raisons, éventuellement les plus secrètes.”
238
pelo modo de articular o seu fazer o outro sujeito. Toda a relação proveniente dessa
estratégia será para um fim manipulatório, mesmo que para isso, a estratégia seja a
de regressar ao procedimento da programação, como a TV Cultura faz com
Cocoricó, ao torná-lo um de seus selos, sua própria marca. Se o procedimento de
manipulação coloca em relação os sujeitos em seus percursos de possibilidades, por
outro lado, o procedimento de programação trará os actantes em papéis temáticos
estáveis, que podem ser alterados apenas pelo procedimento do ajustamento e
uma nova busca pelo sentido. Segundo nos diz Landowski:
Por isso Greimas inventa, ou reinventa a estesia, a sensibilidade, o
corpo, enfim as condições mesmas do que chamamos por nosso
lado o ajustamento: em favor de algum acidente que permitirá a
negação ou a ultrapassagem dos programas fixados com
antecedência, isso será a passagem de uma cotidianidade marcada
pelo máximo de segurança possível, e correlativamente pela
insignific}ncia e o tédio, para uma vida “outra” em que as relações
entre actantes não terão nada mais de seguro, mas em que, em
contrapartida, elas farão sentido.95 (LANDOWSKI,2005, p. 33).
Antes disso, porém, os actantes como dissemos estarão sujeitos aos papéis
temáticos estáveis e inalteráveis, como mostraremos a seguir.
4.2 A marca Cocoricó: uma programação
Durante todo o decorrer desta tese, viemos pontuando a relação
estabelecida entre Cocoricó e o público telespectador deste programa: a criança.
Afirmamos ainda no primeiro capítulo que o principal destinador de Cocoricó era a
TV Cultura, emissora responsável pela criação e transmissão do infantil. Quando
criou o programa, a TV Cultura utilizou um actante já conhecido do público da
emissora – o Júlio - e foi em busca de profissionais com experiência para dirigir e
95
Traduç~o nossa para: “Ce pourquoi Greimas invente, ou réinvente l’esthésie, la sentibilité, le corps,
bref les conditions mêmes de ce que nous appelons pour notre part l’ajustement: à la faveur de
quelque accident qui permettra la négation ou le dépassement des programmes fixés { l’avance, ce
sera le passage d’une quotidienneté marquée par le maximum de sécurité possible, et
corrélativement par l’insignifiance et l’ennui, { une vie ‘autre’ où les relations entre actants n’auront
plus rien de très sûr mais où, en contrepartir, elles feront sens.”
239
coordenar o projeto. Foi, então, que em 2002, Cocoricó passou a ser um programa
de boa audiência, público garantido e ganhador de prêmios de crítica. O programa
virou uma das marcas da emissora segundo a acepção de marca dada por Andrea
Semprini (2006, p. 143), segundo três aspectos: 1) a dimensão semiótica como modo
fundamental de existência da marca; 2) a distinção entre os planos de conteúdo e
expressão, e, finalmente; 3) a necessidade de integrar as noções de dinâmica e de
evolução. Ao mesmo tempo em que a marca estabelece uma relação comunicativa
com o público, ela dissemina sua identidade e seus valores, a partir da dinâmica
própria de sua história. O autor explica que:
[...] a marca é uma entidade que instala e propõe um projeto de
sentido a seus consumidores. O produto ou os serviços são
manifestações que permitem exprimir e introduzir este projeto de
forma concreta na vida dos indivíduos. O produto não é nem
oposto, nem complementar, nem suplementar à marca, ele é sua
manifestação. (SEMPRINI, 2006, p. 153).
De acordo com Semprini (2006, p. 164-169) as manifestações da marca, seu
significado e sua apreensão, ou seja, como ela se tornará perceptível aos
destinat|rios, depende do contexto geral no qual ela é manifestada, “o contexto
sociocultural, os debates de opinião, o contexto histórico e também político, o
contexto de consumo, as ações da concorrência, os conhecimentos e as
informações”, diz o autor. A marca enquanto sujeito propõe, assim, um contrato
aos outros sujeitos destinatários, contrato esse, pautado nas construções de
manifestações significantes plásticas ou paradigma estético, que se reverte na
disseminação social da própria marca. Embora a finalidade das marcas sejam ligadas
ao consumo, elas passam a ser vistas também pelo forte vínculo ligado ao social que
tem a força de transformar essa marca e parte da vida do destinatário que a ela está
ligado em relação de dependência. Semprini conta sobre a saga do filme Star Wars:
[...] a ideia de fundo de Star Wars foi tratada não com um cenário
de filme, mas como um projeto de marca, cuja manifestação
principal, e com certeza a mais importante, aquela sem a qual o
sistema de marca não poderia constituir-se, era o próprio filme. Os
produtos derivados não foram concebidos como simples gadgets
240
promocionais, mas como verdadeiras manifestações de marca, que
permitiam exprimir este projeto, concretizá-lo, e torná-lo presente
na vida cotidiana dos fãs da saga [...] esta estratégia foi,
particularmente, explorada em filmes infantis (O Rei Leão, a
Pequena Sereia, Pocahontas), pois o setor permite lançar um
grande número de produtos derivados. (SEMPRINI, 2006, p. 263).
Pelas análises do programa, entendemos que os produtos tornam-se apenas
um: o da marca Cocoricó. Ao resgatar a história dos programas infantis lançados
pela TV Cultura, além disso, ao apresentar a diversidade de produtos Cocoricó,
tentamos ressaltar essa relação que desde a criação do programa procurou
estabelecer com o seu público. Cocoricó DVD’s, CD’s, livros, quadrinhos, sites,
bonecos (de diferentes tamanhos, cores e materialidades) compõem o projeto da
marca Cocoricó, seu significado, identidade e valores.
Essa marca, como descrito anteriormente, tematiza a vida social de uma
criança, seja no campo ou na cidade, quer dizer, pela figurativização de situações
cotidianas da vida das crianças, o destinador “emissora” postula para seu
destinatário telespectador a sua ação de fazer ser aquelas crianças de Cocoricó, que
gostam de brincar, cantar, dançar, conhecer pessoas e lugares novos, que
respeitam as diferenças e a natureza. As crianças de Cocoricó estão aprendendo
sobre seus direitos e deveres durante a duração do programa; assim como o que é
certo e o que é errado, as diferenças entre ser criança e ser adulto; sobre as
profissões e, principalmente, seu modo de se relacionar com os meios de
comunicação. O simulacro de criança construído em Cocoricó é o estereótipo da
criança feliz, em busca do aprendizado que se faz por suas descobertas. Landowski
postula duas acepções para o verbete simulacro no Diccionario Razonado de La
Teoría del Lenguaje:
[...] se emprega o termo simulacro em semiótica narrativa e
discursiva para designar o tipo de figuras de componente modal e
temático, com ajuda dos quais os actantes da enunciação se
deixam apreender mutuamente, uma vez projetados no marco do
discurso enunciado. Do ponto de vista de seu conteúdo, essas
figuras podem ser consideradas como representativas das
competências respectivas que se atribuem, reciprocamente, os
241
actantes da comunicação. Por isso, intervém, necessariamente de
antemão, em todo programa de manipulação intersubjetiva, a
construção de tais simulacros na dimensão cognitiva. [...] quase
como sinônimo de modelo, o que permite, então, destacar
explicitamente o caráter não-referencial das construções com
ajuda das quais a semiótica se esforça por dar conta dos
fenômenos de produção e apreensão do sentido. (1991, p. 232).
Esse modelo construído pelo destinador-enunciador para “dar conta” da
produção e apreensão do sentido pelo destinatário-enunciatário, portanto, na
relação entre os actantes da comunicação, nos remete novamente à marca Cocoricó
e nessa apreensão que é dada no contexto de sua própria criação e história.
Cocoricó constrói o simulacro de criança que a TV Cultura quer disseminar, enquanto
marca que se preocupa e cuida da relação com o destinatário para realizar a
transmissão de sua identidade, a de uma emissora pública, mas que recebe verba de
instituição privada, cujos valores defendidos são da ordem de ser pedagógico,
ecológico, do ser paulista e de formar estética e eticamente a audiência em um
fazer significante de sentir estar no mundo.
Para isso, Cocoricó sustenta uma regularidade capaz de se fazer reconhecível
pelas crianças, que se baseia:
- nas ambientações da fazenda e características dos bonecos (fisicalidade,
materialidade, vozes, modo de falar) e;
- na articulação dos recursos televisuais (pelos modos de filmar,
enquadramentos e movimentos de câmera, ritmicidade, efeitos de edição e pósedição).
Essa regularidade é dada a partir de e com Cocoricó pelo programar das
ações cotidianas das crianças, enquadradas em seu uso, costume e regras do viver,
como: do que brincar, se alimentar, conversar, conhecer, do que gostar, como se
vestir, do que é importante, etc. O programa assume sua intencionalidade nesse
programar quando cria os simulacros sociais das crianças, como elas devem ser
socialmente. Ao fazer isso, propicia a construção da subjetividade desses sujeitos
simulacrados, de acordo com as bases da semiótica do gosto postulada por
Landowski (1997, p. 129) de duas formas: a) por sua interioridade, em função do que
242
o sujeito sente, como é “estimulado pelas qualidades sensíveis do mundo exterior”;
e b) por exterioridade, como a partir de referências exteriores, o sujeito se constrói
pelos gostos, normas e usos do outro. Na proposição desse arranjo, o destinadorenunciador de Cocoricó promove um estilo de ser e de viver, pelo sentir “o gosto
que o outro sente”96 a partir do discurso televisual.
A relação que se estabelece entre as formas de vida e os gostos é
descrita da seguinte maneira: a reiteração de um gosto produz
uma forma de vida e a reiteração de formas de vida criam um
estereótipo [...]. É por meio do cultivo de uma dada presença que
(re) atualiza que temos o gosto e, então, o estereótipo é o regime
ou a forma de vida, como o criador de um estilo. O gosto exerce
um papel fundamental que é o de preservar esse estilo criado.
(RODRIGUES, 2008, p. 102).
FIGURA 36 - Os detalhes da decoração do quarto de Júlio e da cozinha da vovó possibilitam a
apreensão do gosto pelo decorar, ou pelas tecnologias, como Oriba utilizando um laptop no paiol
da fazenda.
A formação identitária dessa criança telespectadora de Cocoricó será
pautada por esse estilo de ser do programa, no assumir um fazer pelo consumo dos
96
A dissertaç~o “Os gostos de Superbonita e Contemporâneo do GNT na formação de identidades no
feminino e masculino brasileiros”, de Carlos Augusto Alfeld Rodrigues, defendida em 2008, no Curso
de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, fala sobre o consumo televisionado a partir dos gostos e
estilos de vida de programas de televisão.
243
produtos da marca. A criança – com o apoio e incentivo dos pais - passa de
telespectadora do programa a consumidora de DVD’s e livros e demais produtos
(brinquedos, produtos de higiene pessoal, festas temáticas, etc.). A autora Patricia
Greenfield que escreveu um trabalho sobre o desenvolvimento cognitivo da criança
na relação com os aparelhos eletrônicos diz que a criança irá desenvolver um papel
social também enquanto consumidor e que a televisão tem importante destaque
nesse desenvolvimento. Afirma a autora “as imagens transmitidas pela televisão
para descrever a identidade de uma pessoa e seu estilo de vida destacam bens
materiais relacionadas ao consumo” (GREENFIELD, 1988, p. 52). Esses bens
materiais são descritos por Landowski como produtos manufaturados para fazer
efeito, com objetivo de um maior controle possível sobre as transformações de
estado que se quer provocar no consumidor. O autor explica:
Trata-se de produtos manufaturados concebidos para fazer
sentido. Que a natureza de seus princípios ativos seja, de modo
geral pouco conhecida, não impede que seus fabricantes
dosifiquem com muito cuidado sua composição, dado que
também, neste caso, o objetivo consiste em ter o maior controle
possível das transformações de estado que se quer provocar no
consumidor. Porque um texto bem construído se põe para o
estado de ânimo do mesmo modo que um remédio tem de eficácia
para os estados do corpo - sem considerar que tudo ocorre como
se os respectivos princípios de ação se entrecruzassem 97 .
(LANDOWSKI, 1999, p. 269).
A criança é tomada pelo estar junto de Cocoricó, ou seja, pelos estados de
ânimo que esse estar lhe provoca. São esses efeitos de estado que podem ser
comparados à eficácia para o estado da ciência. Ao aderir à marca e aos seus
produtos, nesse descobrir contínuo, a criança estará tomada por esses efeitos de
estado. E dessa forma torna-se uma criança fiel à qualquer que seja o produto da
marca Cocoricó. Estar junto dos bonecos e de toda a significância que isso lhe
97
Traduç~o nossa para: “[...] se trata de productos manufacturados concebidos para hacer efecto.
Que la naturaleza de sus principios activos sea en general mal conocida no impide a sus fabricantes
dosificar con gran cuidado su composición, puesto que también en este caso el objetivo consiste en
tener el mayor control posible sobre las transformaciones de estado que se quieren provocar en el
consumidor. Porque un texto bien construido es a los estado del ánimo lo que un medicamento
eficaz es a los estados del cuerpo, - sin considerar que todo ocurre como si los respectivos principios
de acción se entrecruzaran”.
244
permite independe do produto os quais a marca se apresente, o que importa é o
tipo de interação e de comunicação estabelecido e baseado nessa competência
estésica do destinatário-enunciatário.
Como afirma Landowski (1999, p. 271) se de um lado temos o discurso
manifesto, atualizado, reconhecido, com intenção comunicativa de um enunciador
conhecido ou não, por outro lado, temos determinados textos como resultado dos
próprios efeitos produzidos no sujeito enunciatário, pela captação do sentido
sentido. O autor complementa que esse sentido sentido “se constrói, se define e se
apreende apenas “em situaç~o” – em ato -, isto é, na singularidade das
circunstâncias próprias a cada encontro específico entre o mundo e um sujeito
dado, ou entre determinados sujeitos” (LANDOWSKI, 1996, p. 26). O que estamos
postulando é que, para a criança (destinatária-enunciatária), esse encontro com a
marca Cocoricó é a cada vez e pela linguagem em que se apresenta um encontro
único que se dá com uma singularidade da circunstância desse encontro e do
sentido que se apreende dele.
Nesse aspecto, a dimensão plástica dos episódios e clipes musicais de
Cocoricó descritos ao longo do trabalho é fundamental para entendermos as
din}micas de articulaç~o do que Landowski chama de “co-presença”. O autor
explica que pela análise da obra de Corot, Souvenir de Mortefontaine (1864, Museu
do Louvre) fica exposto que o modo de se articular dinamicamente a co-presença
“corporalmente vivida, entre um certo sujeito e o ambiente que o circunda,
consegue fazer-nos sentir o sentir do outro, in situ, quase como se nós também
estivéssemos aí” (LANDOWSKI, 1996, p. 35). Compreender e descrever a dimensão
plástica de nosso objeto nos possibilitou, portanto, a compreensão e conhecimento
das competências estésicas convocadas do enunciatário: da criança destinatária de
Cocoricó e, consequentemente como essas competências são convocadas em prol
do destinador-enunciador do programa para fazer crer em seu discurso.
245
4.3 O sentir Cocoricó
Seguindo,
assim,
essa
metodologia
desenvolvida
por
Landowski,
entendemos que a compreensão e apreensão dos efeitos de sentido de nosso
objeto passa por um outro processo interativo, não apenas pelos procedimentos de
manipulação e de programação, mas por outro, cujas relações com o mundo natural
nos dão cotidianamente a experiência. Estamos nos referindo ao procedimento de
ajustamento, cuja interação entre os sujeitos envolvidos não é dada somente pela
comunicação – seja persuasiva por mensagens, valores modais ou objetos de valor –
mas, sobretudo pelo contato. Landowski (2005, p. 21-22) explica que nesta
interação, a competência modal não é mais o que guia os interactantes, trata-se de
uma interação entre iguais, na qual as partes co-ordenam suas dinâmicas
respectivas sobre o modo de um fazer junto, e completa que se trata de uma
interação de se sentir reciprocamente, diferente da competência dita modal, e
batizada pelo autor de competência estésica. A interação que, antes estava fundada
num fazer crer – baseada na persuasão, entre as inteligências - se fundará agora, no
fazer sentir baseada no contágio, entre sensibilidades. O autor pontua como essas
sensibilidades podem ser:
Primeiramente uma sensibilidade no sentido mais usual do termo:
a sensibilidade perceptiva, que nos permite não somente
experimentar pelos sentidos as variações perceptíveis do mundo
exterior (ligadas à presença de outros corpos-sujeitos ou aos
elementos do mundo-objeto) e de tornar a sentir as modulações
internas afetando os estados do corpo especificamente, mas
também interpretar o conjunto dessas soluções de continuidade
em termos de sensações diferenciadas fazendo elas mesmas
sentido. Em seguida, uma sensibilidade que nós chamamos de
sensibilidade reativa: é aquela que nós atribuímos, por exemplo,
aos toques de um teclado de computador ou a um pedal de
acelerador quando dizemos que eles são muito, algumas vezes por
demais, “sensíveis”98. (LANDOWSKI, 2005, p. 22).
98
Traduç~o nossa para: “D’abord un sensibilité au sens le plus usuel du terme: la sensibilité
perceptive qui nous permet non seulement d’éprouver par les sens les variations perceptibles du
monde extérieur (liées { la presence d’autres corps-sujets on aux élements du monde-objet) et de
ressentir les modulations internes affectant les états du corps propre, mais aussi d’interpréter
l’essemble de ces solutions de continuité en termes de sensations différenciées faisant elles-mêmes
246
Sabemos que a relação entre a criança e a televisão prevê um caráter
volitivo, principalmente no que tange à criança decidir se assistirá ou não
determinado programa, ainda mais em tempos de zapping televisivo. É a criança
quem vai parar em frente a tela da TV para prestar atenção e participar na relação
interativa proposta no programa, baseada numa convocação dessa criança no ato
contado, e sendo assim, também vivido. Antes da relação com o programa em si, a
criança primeiro se relaciona com a própria televisão, disposta ali na sala ou no
quarto, como parte do ambiente doméstico conhecido por ela. Essa relação,
portanto, é dada entre a criança (ser humano) e a TV (objeto inanimado).
É possível pensarmos essa relação nos princípios em que propomos aqui, de
um efeito de sentido baseado em uma relação de ajustamento entre o ser humano
e um objeto inanimado? Para Landowski, existem objetos que nos fazem conhecêlos a partir da prática deles, como um piano ou um automóvel de qualidade. Assim
também pode ocorrer com a televisão. Interagimos com esses objetos com
frequência pelo prazer de uma realização mútua, uma sensibilidade reativa que
possibilita dentro dessa relação a geração de sentido e de valor.
Hoje, muitos aparelhos eletrônicos utilizados como parceiros de
jogos ou com fins de simulação destinados à aprendizagem (por
exemplo, para os pilotos de avião) são tão sofisticados, tão
determinados em suas mais discretas e sutis reações aos
movimentos do utilizador, que dão a impressão de que a máquina
“sente” o seu parceiro. N~o é evidentemente mais que uma ilus~o,
mas que mostra que entre a programação, quando ela é colocada
em um estado de refinamento muito avançado, e o ajustamento
“sensível”, a passagem n~o é absolutamente intransponível. 99
(LANDOWSKI, 2005, p. 23).
sens. Ensuite, un sensibilité que nous appellerons la sensibilité réactive: c’est celle que nous
attribuons par exemple aux touches d’un clavier d’ordinateur ou { une pédale d’accélérateur lorsque
nous disons qu’elles sont très, quelquefois trop, ‘sensibles’.”
99
Traduç~o nossa para: “Aujourd’hui, beaucoup d’appareils électroniques utilisés comme
partenaires de jeux ou { desf ins de simulation destinée { l’apprentissage (par exemple pour les
pilotes d’avions) sont si sophistiques, si fins dans leurs réactions aux motions les plus discrètes et
subtiles de l’utilisateur qu’ils donnet l’impression que la machine ‘sent’ son partenaire. Ce n’est
évidemment qu’une illusion, mais qui montre qu’entre la programmation, lorsqu’elle est portée { un
stade de raffinement très poussé, et l’ajustement ‘sensible’, le pas n’est pas absolument
infranchissable.”
247
Concordamos com o autor, portanto, nessa geração de efeitos de sentido e
de valor entre nós seres humanos e objetos inanimados, entretanto conhecidos por
nós pelas suas práticas, como é o caso da TV. Se nosso objeto é mediado pela
televisão, então, afirmamos que a geração de sentido e valor possibilitado pela
interação por ajustamento será esse da sensibilidade reativa. Pensemos em nosso
corpus. Citamos no capítulo anterior, o episódio Apressadinhos, no qual Júlio e sua
turma aprendem sobre o milho. Este episódio possui o clipe musical “Isso me
lembra”. Como primeira característica a ser ressaltada dos clipes musicais de
Cocoricó e, já dita quando vínhamos discorrendo sobre a discursividade do
programa, é a enunciação enunciada. Já sabemos que a construção dos sujeitos no
ato enunciativo se dá por um eu que fala e o tu para quem se fala . A instância de
produção do discurso nos programas de TV, ou seja, o eu, é a equipe de produção
do programa, assim como a emissora na qual o programa é transmitido, enquanto
que a instância de recepção do discurso, o tu, é representada pelos
telespectadores, as crianças. Já vimos também que pelo texto audiovisual, Cocoricó
instaura a figura do enunciador no próprio texto, ao colocar a criança-enunciatária
no discurso.
Essa instauração que prevê a interação se dá no espaço da tela da TV. A tela
e o programa que ali está sendo transmitido se transformam num sujeito que
interage com a criança, num diálogo interativo dado pela plasticidade e pelo
conteúdo do programa. Esse diálogo é construído pelas posições corpóreas dos
bonecos, olhares e palavras dirigidos à tela ou ritmicidade da música, por exemplo,
dentre outros já comentados. Parte-se do pressuposto de uma atuação do
espectador com o ambiente imagético (sua atuação) correspondente ao próprio
projeto de significação instaurado (atualizado) pela situação proposta entre o
actante e quem assiste. Fechine explica que
o sujeito é o responsável pela
transformaç~o de seu estado, “ao ligar a televisão para colocar-se em contato com
o fluxo televisual, operaç~o na qual se produz um prazer ou uma forma de ‘gosto’
248
identificados aqui à própria experiência de fruir a mesma programaç~o” (FECHINE,
2003, p. 105).
FIGURA 37 – Linguagem televisiva que propõe uma intertextualidade
com outros gêneros: com os desenhos animados e as transmissões esportivas
É a possibilidade de ganho dessa familiaridade com esse outro sujeito, que é
passada no olhar de Júlio para o espaço instaurado fora de Cocoricó. Trata-se da
enunciação enunciada, configurada no visual pelo olhar de Júlio, de Alípio, de Oriba,
das galinhas e assim por diante, de todos os bonecos que cantam a música do clipe
citado e olham diretamente para o espaço que está fora do ato enunciativo. Na
medida em que cada boneco diz o que para ele o milho lembra, o olhar se dirige
para este espaço fora, o da sala ou do quarto da criança que está assistindo ao
programa. É com essa criança que o texto dialoga e que, portanto, está interagindo.
Primeiro, por um procedimento de manipulação por sedução (entre o sujeito
programa e o sujeito criança), numa espécie de “participe também você que est|
assistindo, o que o milho o faz lembrar?”. Entretanto, para que a manipulação se
concretize é necessário fazer crer essa criança dessa interação com o programa,
possibilitada por um sentir pelo programa, na convocação de sua competência
estésica, principalmente pela visão e audição, como objeto televisual.
Neste clipe musical, temos pelo verbal sonoro a competência estésica da
criança sendo convocada pela audição, nas palavras: vamos brincar e você. O vamos
brincar é convidativo, é um “nós vamos”, quer dizer como se a criança também
estivesse incluída nesse “nós”, que pode brincar. E o você, apesar de se dirigir aos
outros actantes que cantam a música e intercalam a vez de falar sobre o que o milho
249
o fazem lembrar, no visual, o apontar dos bonecos ao dizer você é para fora da tela.
O você é o telespectador, a criança que assiste o programa.
FIGURA 38 – Olhar direcionado para a câmera e tela dividida com as diferentes cenas
Compreendemos, assim, que o jogo interativo entre o actante e quem
assiste, colocado pela figura do enunciador, faz crer um enunciatário de que ele
participa da própria construção do sentido do texto. Um sentido, então, que se faz
no ato e em situação. Mesmo que os sujeitos estejam em espaço e tempo
diferentes, o efeito de sentido que se tem é que eles partilham de um mesmo
espaço e tempo: o da história. Para a criança, trata-se de um fazer compartilhado.
De acordo com Merleau-Ponty, a criança é capaz de ver o mundo em termos de
ponto de vista:
[...] o espaço e o tempo objetivos são aqueles em que eu estou
inserido. Sou livre com respeito a eles. Se a criança ainda não tem
esse pensamento objetivo, o de um espaço-limite vazio, também
não estará na sua experiência. (MERLEAU-PONTY, 1990, 260-261).
O autor explica que é como se a criança não se encontrasse num “mundo
m|gico”, intransponível e impermeável ao adulto: ela precisa, como diz o autor:
“compreender e positivar seus modos de ser e estar, seu modo de operar e de
experienciar o mundo” (1990, 261). Ela precisa, então, aprender a apreender o seu
modo de estar no mundo.
Encontramos a necessidade de ressaltar ainda mais, que, o compartilhar
entre o sujeito enunciador e o sujeito enunciatário é dado na interação por um
sentir por meio da instauração dos sentidos do enunciatário. Esse é processado
250
nessa interação que é dada pelo “di|logo” com o telespectador obtido a partir da
exploração da linguagem televisual sincrética do próprio meio televisivo. Seja no
clipe musical do milho, por exemplo, ou nos clipes musicais que referencializam a
cidade de São Paulo, a competência estésica da criança é solicitada pela plasticidade
da cena: divisão da tela em quatro cenas diferentes, uso de vinhetas, saturação
cromática, disposição topológica dos bonecos no centro e de frente para a câmera,
dimensão do cenário e movimento da câmera de aproximação e distanciamento.
FIGURA 39 – Os bonecos de Cocoricó são filmados em locações externas: no bairro da Liberdade; no
Planetário do Parque Ibirapuera; nas margens do Rio Pinheiros; no beco da Vila Madalena
A temática do milho, no primeiro exemplo, já convoca e ensina a criança
sobre o sentido do paladar. Explica-se: o milho é um produto alimentício, logo, a
criança já começa a partilhar do sabor dessa comida e, se ainda não o conhece, irá
querer conhecê-lo. Quando esse clipe musical começa e os actantes passam a falar
sobre o que o milho lembra pra eles, quem primeiro fala é a índia Oriba. Ela canta:
“Milho me lembra pipoca, pipoca em tupi quer dizer, pele que estoura. Pipoca é o
milho que explodiu. Pa100”. A panela com o milho é mostrada na imagem visual. Já
100
Oriba imita o barulho da pipoca estourando na panela.
251
na canção, pelo verbal sonoro, os actantes continuam falando a palavra “pipoca”,
enquanto num som de fundo pode-se escutar o barulhinho da pipoca estourando.
Essa cena configura o aguçar dos sentidos da criança, que produzirá uma
determinada reação ao que está assistindo. A visão (pela imagem) e a audição (pela
canção) instauram os outros sentidos o olfato, o tato e o paladar que são
convocados a partir dos primeiros. A brincadeira do me lembra convida a criança
que por sua vez quer continuar assistindo e compartilhando daquele sentir.
O outro exemplo citado são os clipes musicais da última temporada do
programa, gravados em diferentes pontos da cidade de São Paulo. As locações ditas
externas criam um efeito de referencialidade pelas imagens mostradas. Nas cenas
gravadas em ambientes abertos, como no bairro japonês da Liberdade, no campo
de futebol do Pacaembu, nas margens do rio Pinheiros ou da vista aérea do centro,
a perspectiva utilizada prioriza uma visão macro dessa parte da cidade. Por outro
lado, as cenas em ambientes internos, como no Museu do Ipiranga, Mercadão
Municipal ou Sala São Paulo, foi utilizada uma perspectiva próxima, quer dizer, que
prioriza e mostra os detalhes de cada lugar. Para ambas perspectivas, é convocada a
competência da criança para sentir esses lugares por sua apreensão (pela visão e
audição, primeiramente, que poderão instaurar os outros sentidos) na relação com
a linguagem televisual que é aspectualizada em sua duratividade, do movimento de
câmera de aproximar-se mais ou menos do lugar da cidade, bem como, pelos
efeitos sonoros da canção do clipe, dado no verbal pela letra da música que
descreve cada modo de ser e estar na cidade e no sonoro pelos ruídos e ritmicidade.
252
FIGURA 40 – Perspectiva próxima dos bonecos nos ambientes internos: Júlio e Lilica no Museu
do Ipiranga; Alípio na Sala São Paulo; João, Alípio e Júlio na Mercadão Municipal
É, ent~o, pela enunciaç~o enunciada e o “di|logo” pelos sentidos, que
Cocoricó apresenta a possibilidade de uma apreensão da criança pelo procedimento
de ajustamento. Afirmamos que a construção da significação do programa passa
por esse jogo discursivo dado a partir dos procedimentos de interação: uma
programação, que faz ser a criança, uma manipulação que faz crer a criança, e um
ajustamento que faz sentir essa criança. Nessa interação, existe um programar o
enunciatário para querer estar fiel e participar sempre desse jogo discursivo na
constituição de um fazer, que seria o hábito de assistir o Cocoricó. Trata-se de um
fazer ser, estrategicamente pensado por meio de um fazer crer, concretizado pelo
fazer sentir.
Sobre essas interações discursivas que são processadas nos enunciados da
mídia em geral, Oliveira nos ensina que eles:
[...] podem ser pensados no processamento da estruturação
enunciativa que os significa no e pelo ato de instaurar os sujeitos
na experiência de produtores do sentido. Assumindo que o sentido
não lhes é jamais inteiramente dado, cabendo-lhes sempre um tipo
de participação na sua construção, repousaria nas diferenças
participativas a sua definição. Explorando esses tipos de
253
participação no ato interacional de fazer ser o sentido, buscamos
arrolar na definição dessas interações discursivas os tipos de
construção cognitiva que se desenrolam entre enunciador e
enunciatário. (OLIVEIRA, 2010, p.4).
Levando em consideração essa construção, procuramos identificar em nosso
objeto, como sua plástica é dada e a partir dela como seria a sua apreensão pelo
enunciatário. Quer dizer, a figuratividade dada pela expressão de Cocoricó nos
permitiu identificar os modos de apreensão plasmados entre enunciador e
enunciatário. Oliveira explica que (2010, p. 8), é o “apreender e plasmar em uma
dada organização expressiva num todo de sentido” que o torna sensível e
possibilita ao enunciatário a apreensão da constituição plástica no seu ato interativo
de articular o sentido das formações do arranjo que fazem ser o conteúdo.
No discursivo, o enunciador e enunciatário, enquanto instâncias
produtoras do discurso, são perceptíveis pelas imagens que os
mostram em seus atos, com uma postura e uma maneira de ser
concretizada pela sua maneira de fazer que montam os modos
como ele processa sensível e inteligivelmente os fatos e as coisas
do mundo. No nível semio-narrativo, esse sujeito é apreendido
ainda pela série de escolhas de seus delegados, que alargam a
visibilidade de sua formação discursiva a partir de outros de seus
simulacros, os de seus delegados no enunciado: o narradornarratário, locutor-locutário, interlocutor-interlocutário, que ele
projeta e que vão deixar os seus traços justamente marcando os
seus percursos que assinalam e deixam apreensíveis as suas ações
enquanto instâncias postas em ação pelo enunciador que se põe
assim em exposição, deixando de estar escondido, camuflado. Esse
sujeito da enunciação tem então um corpo que se manifesta para
além e aquém de suas ações discursivas (e não narrativas), que não
são marcadas só pelo verbal no enunciado, mas também por todo
conjunto de marcas paralinguísticas atualizadas pelo seu corpo
com os seus sentidos espalhados; pelo seu gesticular dêitico,
avaliativo; pelo seu modo de movimentar-se que é aspectualizado
nos seus enquadramentos e tomadas de posição e de distância,
para assumir uma postura na interação. (OLIVEIRA, 2010, p.11).
O arranjo dessas estruturas discursivas e os modos de presença do narrador,
da temporalidade e espacialidade que configuram o estilo de ser Cocoricó, nos
possibilitou conhecer a identidade desse sujeito, bem como do sujeito enunciatário
na apreensão dessas estruturas. Isso significa que a identificação das formas
254
estabilizadas e mutantes da construção identitária dos sujeitos envolvidos no jogo
discursivo é dada pela prática interacional instalada nos discursos, como coloca
Oliveira, que podem ser do tipo: unilateral, bilateral e multilateral. Compreendemos
que o sentido e a construção de valor e saber em Cocoricó estão pautados em
determinadas semantizações dos atos de rotina e criação de hábito, embora
também na fantasia e exploração da competência em sentir da criança
telespectadora.
Essas opções são disponibilizadas pelo destinador de Cocoricó como uma das
maneiras para manipular pelo (fazer fazer), mesmo que seja necessária a exploração
sensível das qualidades do sujeito e do objeto. Não podemos deixar de afirmar que
a experiência estésica esteja lá, presente, mas delegada a um segundo plano, já que
estamos tratando de um produto midiático como um programa de televisão.
Enquanto tal, o intuito de Cocoricó perpassa a ordenação do programar a rotina da
criança na configuração de um hábito de ressemantizar essa rotina a partir da
vivência apreendida em assistir o programa. Essa vivência é possibilitada pelas
articulações sincréticas nas continuidades e descontinuidades da linguagem
televisiva. No entanto, essas descontinuidades não permitem uma quebra dessa
rotina de assistir, permanecendo aquém de um acidente estético.
Relacionando os regimes de sentido e de interação de Landowski (2004,
2005) com as interações discursivas descritas por Oliveira (2010), temos os
seguintes procedimentos:
1) a manipulação: Cocoricó (S1) e a criança (S2) estão no regime do
fazer fazer, em que S1 pelo fazer persuasivo transforma a
competência modal de S2, numa relação transitiva bilateral. Criase a configuração de um hábito, S1 faz assistir S2 pela
ressemantização da rotina de S2.
2) a programação: S1 e S2 estão em relação de unilateralidade, e,
desta vez, intransitiva, na qual será possível uma interação entre
os sujeitos dada apenas pela distância e separação total entre
255
eles. S1 é uma marca construída pelo destinador TV Cultura para a
transmissão de seus valores de mundo e disseminação de seus
produtos.
3) o ajustamento: na qual a interação discursiva se dá numa
transitividade bilateral entre S1 e S2 com a possibilidade de troca
de posições, na construção do saber, em co-presença pela
apreensão, ou melhor, pelo fazer interpretativo de S2. Cocoricó faz
uso desse procedimento em prol de um fazer crer a criança para
fidelizá-la a continuar nesse jogo discursivo.
4) o acidente: os sujeitos de Cocoricó, na construção do sentido não
perpassam esse procedimento de interação, em que S1 e S2 são
co-enunciadores,
numa
interação
multilateral
e
numa
transitividade reflexiva e reversível, isto é, numa construção
interativa de experiência interpretativa dada no fazer de S2.
Diz Landowski que no procedimento do acidente, o sujeito pode retomar a
iniciativa:
Em vez de continuar a fazer como ele faz somente porque um dia,
um outro, ou ele mesmo, há muito tempo estipulou que seria assim
que se faria daí em diante, ele pode de repente – em favor sem
dúvida de algum acidente – ser levado a parar um instante de
cumprir maquinalmente e em toda confiança o mesmo sintagma,
levantar o olhar, ver-se realizando-o, se questionar por uma vez
sobre as razões de sua “necessidade”, e de súbito, perceber que
ele poderia proceder diferentemente. E mesmo, finalmente decidir,
sim, fazer doravante de outra forma – com bons motivos também,
mas evidentemente diferentes, ao mesmo tempo em substância e
por seu estatuto, daquela que motivavam até então sua fidelidade
ao uso instituído.101 (LANDOWSKI, 2005, p. 18).
101
Traduç~o nossa para: “Au lieu de continuer de faire comme il fait seulement parce qu’un jour, un
autrem ou lui-même il y a très longtemps, a stipulé que ce serait ainsi qu’on ferait désormais, il peut
tout à coup – à la faveur sans doute de quelque accident – être amené à cesser un instant
d’accomplir machinalement et en toute confiance le même syntagme, élever le regard, se voir
l’accomplissant, s’interroger pour une fois sur les raisons de sa ‘necessité’, et du coup, peut-être,
s’apercevoir qu’il pourrait procéder différemment. Et même, en fin de compte décider, oui, de faire
dorénavant autrement – avec de bons motifs aussi, mais évidemment différents, à la fois en
substance et par leus statut, de ceux qui motivaient jusque l{ sa fidélité { l’usage institué.”
256
Por esta última consideração, entendemos que na medida em que Cocoricó
se realiza pela ordem da rotina, do hábito e da experiência vivida presentifica uma
possibilidade de experiência estética no simples ato de desligar a TV e voltar ao
sentido sentido no mundo, como por exemplo num simples pedido ao pai: “Vamos
conhecer o Museu do Ipiranga”? Nesse caso, a criança perderia sua motivação
instituída em conhecer um museu da Cidade grande pela figuratividade de Cocoricó,
para construir o sentido por meio da figuratividade do museu em sua própria
apreensão, sem a utilização do objeto inanimado TV. E mais, com a possibilidade de
que um acidente possa romper com a normalidade desta apreensão e fazer surgir
um novo sentido para ela, “o instant}neo estabelecimento de um novo ‘estado de
coisas’”, como afirma Greimas (2002, p.73).
Propor tais relações entre o sujeito Cocoricó e o sujeito criança, nos permitiu
criar o seguinte esquema da construção do sentido, na constituição do saber e
formação identitária social do enunciatário:
FIGURA 41 – Relações interativas entre Cocoricó e enunciatário
258
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seja como for, mais que pretender “dizer o
sentido” (tarefa impossível), tratar-se-á agora de
observar as condições de sua presença numa
série de contextos intersubjetivos, e, portanto,
interativos, precisos. Não mais que em outra
parte, o sentido não é dado aí. Como se sabe, ele
está sempre a se construir. Ou melhor, a se
conquistar: a que figuras, a que dispositivos, a
que linguagens recorremos para que pela
mediação do Outro, um pouco de sentido, de vez
em quando, nos faça subitamente presentes a
nós mesmos?
Eric Landowski, 2002
O que quer Cocoricó com as crianças?
Os simulacros de crianças figurativizados pelos bonecos da fazenda e animais
de Cocoricolândia ou da Cidade Grande estão aprendendo sobre essas comunidades
diferentes e similares e a partir deles a criança é instalada no discurso do programa.
A criança telespectadora de Cocoricó apreende como sentido deste programa
infantil o que é e como se vive em um meio social, seja ele o campo ou a cidade.
Nosso trabalho preocupou-se com as estruturas plásticas, figurativas, temáticas
e enunciativas de Cocoricó o que nos possibilitou compreender que a mídia
televisiva atual se redescobre na busca por possibilidades de sua grade de
programação e demanda de mercado. A partir disso, configura-se uma opção à
disponibilização de faixas de horários e até canais específicos produzidos para o
público infantil. A TV Cultura, que em meados dos anos 2000, atravessou uma forte
crise financeira, percebeu que a transformação do programa Cocoricó em uma
marca, poderia ajudá-la a superar seus problemas. Temos, assim, emissora conjunta
259
ao programa Cocoricó, e temos também o público, aquele que consome a marca,
absorvendo e produzindo sentidos vários a partir de tudo o que lhe propõem. Sobre
esse estado conjuntivo, salienta o semioticista italiano Francesco Marsciani:
O público não absorve passivamente conteúdos e valores
propostos pela TV, mas com esses conteúdos e valores ele faz algo,
ele constrói cognições e “visões do mundo”, quase nunca
totalmente correspondentes aos conteúdos e valores que lhes
foram veiculados, mas dentro de uma dinâmica geral evolutiva e
transformativa em que as mensagens estão envolvidas.
(MARSCIANI, 1998, p. 70).
Diante dessa dinâmica ressaltada pelo autor, Cocoricó se destaca dentre os
programas televisivos infantis disponíveis ao público brasileiro pelos modos
discursivos que nele fazem presentes seu destinador e sua intencionalidade que
examinamos, principalmente, no que tange à significação relacionada ao contexto
histórico em que foi criado e que é veiculado. Identificarmos a estrutura narrativa
do programa, suas vinhetas, episódios e clipes musicais, nos possibilitou descrever
os procedimentos sincréticos explorados para entendê-los enquanto modos de
presença discursiva que organizam pelas escolhas figurativas plásticas e temáticas
as escolhas enunciativas que fazem Cocoricó agir e ser.
Concluímos que as categorias de pessoa, tempo e espaço figurativizadas e
tematizadas na construção de sentido para o enunciatário é dada por um estilo de
ser Cocoricó, consequentemente num estilo de fazer televisão para criança. Esse
estilo se caracteriza, em primeiro lugar por um modo de ser e colocar seus valores,
por meio da fábula televisual, privilegiando nessas narrativas as temáticas
socioculturais. Contudo, esse estilo se caracteriza também plasticamente, pela:
orientação estética no intercâmbio entre o sincretismo de linguagens dado entre a
visualidade e a sonoridade; na particular continuidade narrativa, dada pelo verbal
sonoro das músicas e sua aspectualidade durativa de ritmo e rimas e interjeições
nas falas dos actantes; além dos efeitos de saturação de cor, uso de molduras e de
vinhetas de passagens na edição final da imagem. Abre-se assim, pelo exercício da
experiência que se vê, que se escuta, que se sente, “a possibilidade de entrada em
260
outros mundos, resultantes desta interpretação”, como nos ensina Oliveira (2005,
p. 117).
Essas caracterizações nos permitem afirmar que a criança telespectadora de
Cocoricó está, por um lado, adquirindo uma competência dita televisiva, numa
formação que lhe tornará audiência, e, por outro lado, está construindo visões de
mundo. Sobre o primeiro ponto, Marsciani (1998, p. 73) nos diz que “não deve ser
ocultado o fato de que isto significa aceitar que a contribuição da TV para a
formação da criança consiste essencialmente em prepará-la para vir a ser um bom
telespectador”. Quer dizer, que essa criança telespectadora de Cocoricó está
apreendendo o sentido pelas impressões que processam na apreensão do arranjo
televisual e pelo saber e poder que a habilita a homologar os planos de conteúdo e
expressão. No segundo ponto, afirmamos que esse destinatário criança está se
formando enquanto sujeito sociocultural no mundo, cuja intencionalidade
pedagógica que se faz presente é importante na transmissão dos valores (COELHO,
2000, p. 47). Semprini também nos ajuda a entender essa intencionalidade, de
acordo com ele:
O discurso pedagógico constrói uma relação disssimétrica, onde os
parceiros da comunicação, o enunciador e o enunciatário, não se
situam em um mesmo plano de igualdade. Ressaltamos que na
estratégia pedagógica, o receptor é definido como um ser
necessitado, em busca do saber, mas que não é necessariamente
consciente de sua “ignorância” de sua necessidade explícita dessas
102
informações. (1996, p. 183).
É esse destinatário, ainda em desenvolvimento cognitivo no âmbito
perceptivo e racional de seu meio sociocultural, que Cocoricó terá possibilidade de
atingir como público. Enquanto um programa de televisão criado por uma emissora
pública educativa, Cocoricó constrói um discurso pedagógico cujo conteúdo é
figurativo, temático e sincrético. Essa opção realizada pelo destinador acarreta
102
Traduç~o nossa para: “le discours pédagogique construit une relation dissymétrique, où les
partenaires de la communication, l’énonciateur et l’énonciataire, ne se situent pas sur un plan
d’égalité. On remarquera que dans la stratégie pédagogique, le récepteur est défini comme un être
besigneux, en quê\te de savoir, mais pas nécessairement comme quelqu’un qui est conscient de son
“ignorance”ou qui demande explicitement ces informations”.
261
determinadas consequências. Temos como exemplo a iniciativa da emissora e da
produção e direção do programa em não abdicar de uma possível qualidade estética
– e consequentemente ética - no que diz respeito à variação de produtos da marca
Cocoricó. O desenvolvimento de outros produtos em outros meios de comunicação,
além do programa de televisão e as parcerias feitas para a utilização da marca,
foram ações tratadas com determinada cautela. Tanto as adaptações do programa
no cinema, no teatro, em livros, como os diversos produtos são, sobretudo, outras
manifestações da marca, com o poder de concretizar e tornar essa marca presente
na vida dos telespectadores, conforme disse Semprini (2006, p.63). Essa forma de
se manifestar por esses produtos é determinada como uma preocupação com o
que deve ser Cocoricó, primeiro a partir do programa de televisão que deu certo,
que tem audiência, que vende milhões de DVD's, etc.
Identificamos ainda no programa, a iniciativa de pensar práticas de produção
televisual com propósitos educativos que pressuponham a capacidade do
telespectador de selecionar e interagir, como afirmou Carneiro (1999, p. 211). Longe
de serem tomadas como vítimas passivas das mídias, as crianças passam a ser vistas
como dotadas de uma aptidão para a alfabetização dos meios audiovisuais,
incentivada por Cocoricó, na medida em que possibilita à criança a apreensão da
fábula televisiva pelas continuidades e descontinuidades do plano da expressão que
serão homologadas no contínuo vs descontínuo da vida social, do passar das horas,
do passar da vida, isto é, do aprender da criança no período da infância. Cocoricó
propõe uma apreensão do sujeito pela familiaridade que ele adquire na
decodificação da linguagem proposta e, consequente desenvolvimento de sua
habilidade audiovisual. Essa decodificação da linguagem é dada pela formação
dessa habilidade no se pôr em relação, e, na medida em que esse sujeito consegue
apreender a significação por esse contato com os modos enunciativos do programa
televisivo. Oliveira (2005, p. 119) diz que o sujeito é um eterno construtor de sentido
e sua experiência de apreensão se transforma “em objeto de valor para o próprio
viver dele” e seu estar no mundo social.
262
O programa procura a disseminação do uso das novas mídias como capazes
de oferecer às crianças novas oportunidades para a criatividade, comunidade
midiática e auto realização, e procura também, a disseminação das atividades
lúdicas e práticas sociais coerentes com tal idade, como uma das poucas
possibilidades para a criança da dita da Cidade Grande. Ao utilizar o tema das
brincadeiras por figurativizações diferentes, que vão desde jogar futebol de botão
ou pular amarelinha ao uso do computador e das câmeras de vídeo, Cocoricó está
incentivando o uso dessas novas tecnologias midiáticas por meio do uso de sua
própria linguagem. Para Greenfield, o domínio da linguagem televisiva será
alcançado pela criança por meio da:
[...] exposição à televisão, e em parte pelo desenvolvimento da
criança, que torna possível o uso da televisão para lhe transmitir
conhecimentos e habilidades cognitivas [...] existe uma diferença,
contudo: as crianças precisam ser ensinadas a ler e escrever, mas
aprendem a linguagem televisiva sozinhas, simplesmente
assistindo à televisão. (GREENFIELD,1998, p. 28).
Acreditamos no uso da televisão para a transmissão de conhecimento e
habilidades cognitivas, entretanto, ao contrário do que a autora diz, as crianças irão
aprender a linguagem televisiva não apenas assistindo televisão, mas, sobretudo,
no aprender a apreender o que ela assiste, dado pelo uso estético da própria
linguagem. Ao mesmo tempo em que se opera esse aprendizado, diante de tal
experiência de contato com o programa televisivo, a criança está tomando essa
forma de expressão midiática como um sentido para ela própria, conforme afirma
Férres:
[...] o espectador vive o que vê como expressão simbólica de suas
próprias necessidades e desejos. Verte seus desejos sobre as
imagens, conferindo-lhes um sentido, e ao mesmo tempo,
recebendo um sentido delas. (FÉRRES, 1998, p. 94).
Segundo o autor, é pelas narrativas que, as crianças primeiro, e os adultos
depois, aprendem sobre si mesmos, sobre homens e mulheres, sobre a história e a
vida. É no contato com esses produtos midiáticos que o sujeito irá formar sua
263
identidade, reforçando comportamentos, mediado por esses produtos: “a pessoa
aprende quem é, como são os demais, que valores têm importância, o que deve
desejar e o que deve temer, quais s~o os recursos eficazes para triunfar”, afirma
Férres (1998, p. 105). Ao lado das narrativas, a configuração estética do programa
também irá fornecer subsídios para essa formação social na transformação da
criança em audiência televisual.
Esta tese buscou fornecer uma base de compreensão sobre a experiência
das crianças que crescem na era das mídias eletrônicas, principalmente no que diz
respeito à televisão e seus programas infantis. Seguindo Buckingham (2007, p. 34),
afirmamos que precisaremos dessa compreensão se quisermos ajudar as crianças
com os desafios do presente e os do futuro.
Entendemos assim, que, ao refazer o percurso da significação em sua
projeção dialógica enunciador-enunciatário, Cocoricó foi tomado enquanto um
texto, e também enquanto um objeto de valor do destinador TV Cultura para o
destinatário telespectador. Esse destinador cria significações que irão perpassar as
formas de emergência do sentido na busca da criança desse objeto de valor.
Segundo Landowski (2005, p.102), o sentido pode emergir segundo um modelo
construtivista configurado pelo “h|bito”, caracterizado como o não-descontínuo,
regido pelo não-aleatório e pela ordem, cujo efeito de sentido é o harmonioso. Ou
na “fantasia”, sucess~o n~o-monótona, regida pela não-necessidade e pelas
escolhas, cujo efeito de sentido é o melódico. Ou ainda, segundo o autor, existem
duas formas para a existência do não-sentido: o insignificante, “a rotina”, do
contínuo, uma sucessão monótona, cujo efeito de sentido seria o excesso de
coesão; e o insensato, “os acidentes”, do descontínuo, uma sucessão caótica, regida
pelo acaso, cujo efeito de sentido é o excesso de dispersão.
Esses modelos de emergência do sentido ou do não-sentido nos colocam a
pensar sobre os sujeitos TV Cultura e Cocoricó como destinadores e, pelo
pressuposto na relação, destinatário telespectador. Nessa construção, precisamos
nos remeter à vida da criança que assiste o programa. A criança desde seu
nascimento e durante toda a infância é naturalmente regida por uma não-
264
ordenação, dada em seu total ou parcial desconhecimento das condições de viver.
Sabendo disso, esse destinador ressemantiza a rotina dessa criança através da
configuração do hábito de assisti-lo, pelo sentir o sentido da apreensão, não pela
repetição, mas na emergência de um sentido novo. Entretanto, inevitavelmente,
essa ordenação fará emergir outro sentido, o da fidelização de sua marca,
independente do produto o qual se manifesta. Essas opções do destinador de
Cocoricó propõem diferentes interações para fazer sentido, possibilitadas somente
pela exploração sensível, ou seja, pela competência estésica do sujeito destinatário.
O trabalho de investigar o programa televisivo infantil Cocoricó na
construção de sua significação pode contribuir para uma discussão sobre as
apreensões midiáticas vividas na cotidianidade da infância que irão configurar a
formação social do adulto. A autora Patricia Greenfield explica que:
Todos os meios de comunicação, sem exceção, podem fornecer
oportunidades para a aprendizagem e o desenvolvimento
humanos. Deve-se determinar, agora, de que forma, cada meio
pode ser melhor utilizado, para que possa contribuir para um
sistema criativo da multimídia educacional. (GREENFIELD, 1988, p.
19)
Por tudo o que conhecemos de Cocoricó, talvez uma característica que salte
aos nossos olhos, seja a de instaurar a noção de descontinuidade pela linguagem
televisual, que poderá ser apreendida pelo destinatário que ainda está no pleno
aprendizado da ordenação e regularidade de suas vidas. Essa apreensão cognitiva
que é dada como competência estésica permite ao destinatário entender que o
sentido pode ser dado tanto pelas formas plásticas da descontinuidade e retomada
da continuidade, quanto pelas figuratividades e temáticas desenvolvidas pela
modalização de um saber viver em sociedade, ambos contribuindo na formação de
suas individualidades. Entretanto, sobre a interação e a construção do sentido pelos
sujeitos apontados no decorrer desta tese – programa infantil Cocoricó e criança -,
nos inquieta a retomada da individualidade pela criança em desenvolvimento social,
como nos questiona Landowski:
265
Será preciso conceder ao sujeito individuado a consistência e a
autonomia de uma instância primeira –de um primitivo, no sentido
lógico do termo – cuja socialização teria como efeito desnaturar,
ou será preciso ver nele apenas uma instância segunda, derivada,
refletindo na superfície estruturas sociais que tornam possível sua
emergência e determinam também, conjunturalmente, sua forma?
(LANDOWSKI, 2002, p. 42).
266
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278
ANEXO
Filmografia
A seguir a lista dos episódios e clipes musicais utilizados nas análises:
TÍTULO DVD
COCORICÓ DIVERSÃO
COCORICÓ TECNOLOGIA
COCORICÓ PÉ NA COZINHA
COCORICÓ PÉ NA COZINHA – clipe musical
COCORICÓ PÉ NA COZINHA - extras
COCORICÓ JÚLIO NA CIDADE 1
EPISÓDIOS
Caco na Casa
O Desenho da Lilica
A Cavalgada
Os Caçadores da Galinha Perdida
A Perua
O mini game
Isso pega!
Tá ligado?
TV Paiol
Web Ovo
Pé-de-moleque
Os Abelhudos
Apressadinhos
Pamonhas, pamonhas, pamonhas
Turma na cozinha
Pé-de-moleque
Isso me lembra
Canção dos morcegos
Cocoricó – Direitos das crianças
Férias na cidade grande
Pôr do sol
Cocoricó no Japão
Goiabinha da Vovó
Cocoricó Futebol Clube
279
COCORICÓ JÚLIO NA CIDADE 2
COCORICÓ A ESTRELINHA DO ALÍPIO
COCORICÓ CLIPES MUSICAIS NA CIDADE
COCORICÓ CLIPES MUSICAIS NA CIDADE
Toda Coisa tem um nome
Astolfo e Rodolfo
Programa de Índia
Bagunça no Apê
O Sumiço do Roto
O Homem-Sapo
O Primeiro
Os Antepassados
A Estrelinha do Alípio
A Caveira do Caco
Cadê a mala do Júlio?
Pôr do sol
Cocoricó no Japão
Goiabinha da Vovó
Embolada Bolada pro Futebol
Aventura sem fim
Esse rio não tem peixe
Tô dentro
O Museu
Qué passiá, qué dá rolê!
Toda coisa tem um nome
Lixo no capricho
Lilica logo ali
A Estrelinha do Alípio
Tchec tchec! Piuí! Fom fom! Bi bi!
Homem Sapo
Sala de Concertos
A Obra
O Gato
O Jornal
Eu canto porque gosto de cantar
O medo é nosso amigão
O Primeiro
Noite na cidade
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP