H0SPITAL-DIA, SUBJETIVIDADE E RELAÇÕES DE PODER: UM ESTUDO DE CASO Cristina Bastos Alves Lins Ernani Chaves Resumo: Este trabalho tem como objeto de estudo o Hospital Dia da Fundação Hospital de Clínicas Gaspar Vianna, referência psiquiátrica no Estado do Pará. Pretende descrever a estrutura e o funcionamento deste dispositivo de saúde mental, analisando os aspectos do poder disciplinar, que porventura ainda existam, caracterizados por uma vigilância constante que se expressa nos registros contínuos e na obediência às regras e às normas de conduta, pré-estabelecidas que, por sua vez, vão produzindo a subjetividade das práticas ali exercidas. Este estudo se norteará na teoria de Foucault para pensar o paradigma da disciplina. Palavras chaves: hospital dia, reforma psiquiátrica, poder disciplinar. O Hospital-Dia (HD) é um dos serviços da Clínica Psiquiátrica da Fundação Hospital de Clínicas Gaspar Vianna (FHCGV). Podemos dizer que tem suas práticas institucionais e terapêuticas influenciadas por duas tendências: uma a psiquiatria biológica que considera os pacientes como portadores de transtornos atribuídos ao funcionamento cerebral, bioquímico, tratáveis prioritariamente pela intervenção química dos fármacos e a outra, a atenção psicossocial, que hoje faz parte da assistência em saúde mental institucionalizada pelo Ministério da Saúde. Esta última se propõe a disponibilizar cuidados intensivos, por uma equipe multiprofisssional, aos clientes ou usuários em sofrimento psíquico grave a partir da ampliação dos modos de intervenção, no sentido de tratar dessas pessoas no seu próprio meio social e promover as condições para uma existência mais favorável, objetivando a preservação ou o resgate de seus laços de pertencimento social. Cada uma dessas tendências tem importância e lugar no tratamento do paciente em sofrimento psíquico grave, mas nos limitaremos a interrogar o campo da atenção psicossocial, uma vez que esse campo legitima a prática multidisciplinar. Para nós é necessário questionar se as práticas dos profissionais do HD da FHCGV podem estar ainda fundamentadas no paradigma da disciplina, ou seja, orientadas pela representação do hospital como um espaço corretivo, de vigilância e punição, de reorganização moral das condutas e dos hábitos dos pacientes (FOUCAULT, 2004). Poderíamos dizer que o HD é um dispositivo cuja função seria desenvolver um tratamento que levaria o cliente a um funcionamento mais favorável ao seu pertencimento à convivência social, na família, com os vizinhos, no trabalho, nas relações sociais possíveis, uma maior autonomia pessoal etc., enfim, o que podemos chamar, grosso modo, um “bom funcionamento”, o que não deixa de ser, em alguma medida, um funcionamento o mais próximo do “normal”. Quando falamos do poder disciplinar ainda presente no campo da atenção psicossocial, queremos dizer que por definição ele se caracteriza por ser uma rede que atravessa a instituição sem se limitar a suas fronteiras. É uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder, são métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que assegura a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade... (FOUCAULT, 2004, p.106-07). Nessa perspectiva, a disciplina organiza o espaço a partir de uma técnica de distribuição dos indivíduos isolando-os em espaços fechados, esquadrinhados, hierarquizados fazendo com que estes desempenhem funções diferentes segundo o objetivo específico que dele se exige. A disciplina também é um controle do tempo quando estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. Neste sentido, não é o resultado de uma ação que lhe interessa, mas o seu desenvolvimento. Com isso ela busca o controle do que se faz e como se faz dentro de um determinado tempo, ou seja, como se usa o tempo. E por último, sua terceira característica, a vigilância, que se constitui em um dos seus principais instrumentos de controle. Trata-se de uma ação que precisa ser vista pelos indivíduos que a ela estão expostos como contínua, perpétua, permanente; que não tem limites, penetra nos lugares mais recônditos, está presente em toda a extensão do espaço, que funciona como um olhar invisível que permite ver tudo permanentemente sem ser visto, que deve impregnar quem é vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem o olha. Finalmente a disciplina implica um registro de conhecimento. Considerando que o olhar que observa para controlar é o mesmo que extrai, anota e transfere as informações para os pontos mais altos da hierarquia de poder, a disciplina, consequentemente, ao mesmo tempo em que exerce um poder, produz um saber. E este é seu grande mérito, tirando os juízos de valor moral ou político, toda a tecnologia por ela empregada faz surgir um novo saber, um novo olhar sobre o objeto. Assim foi com o nascimento da psiquiatria no século XIX, que tanto inicia um novo tipo de controle sobre o louco, quanto cria o hospital psiquiátrico, como um espaço próprio para dar conta de sua especificidade, institui a utilização ordenada e controlada do tempo, que deve ser empregado, sobretudo no trabalho, considerado o meio terapêutico fundamental; monta um esquema de vigilância total que se não está inscrito na organização espacial na “pirâmide de olhares” formada por médicos, enfermeiros, serventes, extrai da própria prática os ensinamentos capazes de aprimorar seu exercício terapêutico. Seus objetivos tanto do ponto de vista econômico quanto político é tornar o homem “útil e dócil”. O que se discute nesta prática é sua constituição de um sistema de poder que tem como alvo os indivíduos em sua singularidade e que vai produzir sua subjetividade, uma vez que a subjetividade não é algo natural que faz parte da “essência” do indivíduo e sim algo que se constrói nas relações deste indivíduo com o contexto em que vive. Então, as práticas e os discursos realizados a partir de um dado conhecimento, são produtores de subjetividades e são exercícios de poder no cotidiano de uma escola, de um hospital, de um local de trabalho (AMARANTE; TORRE, 2001). Entretanto, o poder disciplinar não só reprime, mas também, como dizem Amarante e Torre (2001, p.17), “possui uma produtividade... quando passa a gerar indivíduos normalizados”. Os indivíduos, submetidos a este poder, passam a ter seus comportamentos e ações modeladas pelas regras, leis, modelos e idéias de conduta que consequentemente vão produzir formas de pensar, sentir ou agir que se constituirão em subjetividades deste grupo, afastando-se cada vez mais das singularidades de cada um destes indivíduos que fazem parte deste grupo. A questão não é o exercício do poder e o conhecimento produzido a partir dele, mas sim, o que fazer com esse conhecimento. A psiquiatria clássica criou os hospitais psiquiátricos e para aquela época, era considerado o melhor que se poderia estar fazendo para aquelas pessoas que apresentavam um transtorno mental grave e para a sociedade em que se inseriam. Hoje com a Reforma Psiquiátrica se fala em promover a integração destes pacientes na comunidade e inseri-los socialmente. Estes saberes-poderes em vigor são estabelecidos como a verdade, uma verdade pronta. Entretanto, para Foucault, outros filósofos e muitos psicanalistas, a verdade é sempre criação, jogo e poder. Portanto, possibilidade de produção e transformação das existências (KATZ, 2001). O poder está em todos os lugares (família, casal, etc.) onde existam singularidades, uma vez que estas se constituem como relação de forças. As relações de poder são inevitáveis. O fundamental é que o exercício do poder seja dotado de procedimentos passiveis de discussão e de transformação... (COUTINHO, 2001, p.72). Pensando que não existiria uma sociedade ou um grupo sem o exercício do poder disciplinar e que a Reforma Psiquiátrica objetiva levar o paciente a uma maior autonomia pessoal, o que seria autonomia? Segundo Luiz Carlos Figueiredo, o que caracteriza o indivíduo autônomo é a “capacidade de gerar leis e viver sob o império das leis por si mesmo consagradas, sejam estas leis as leis positivas que regulam a sua vida pública e a de todos os demais indivíduos, sejam as leis auto-imposta à sua existência livre e privada” (FIGUEIREDO, 1995, p.30). Para o mesmo autor, o indivíduo ao ascender à condição de indivíduo autônomo adquire a possibilidade de realizar sua liberdade positiva, fazendo escolhas pessoais sem desprezar as regras sociais e neste ponto conquista o status de sujeito. Sujeito pensado como “indivíduo, no sentido próprio de que não se divide, coincidindo ou vindo sempre a coincidir consigo mesmo, ou seja, identificando-se” (p.34). Entretanto, os corpos do sujeito disciplinar, se configuram como corpos dóceis e descerebrados uma vez que os sujeitos representantes do sistema racional e tecnocrata monopolizam todas as funções de exame, cálculo, planejamento e supervisão das ações e das decisões. As relações estabelecidas no HD são normatizadoras e burocráticas. Ao chegar diariamente no HD, o cliente e seu acompanhante devem colocar o seu nome na lista de almoço até às 9 horas, quem chega após este horário não almoça no hospital e é punido com uma chamada de atenção verbal. É comum no HD haver discussão entre profissional e acompanhante por causa desta forma de agir, quando não se considera se o cliente chegou atrasado porque o ônibus quebrou, porque naquele dia o despertador não tocou ou porque o remédio lhe fez ficar muito sonolento e não conseguiu acordar no horário. Nas reuniões técnicas, os monitores negociam com os auxiliares, responsáveis pela lista de almoço, que incluam com antecedência aqueles clientes que por questões intransponíveis chegarão sempre após as 9 horas, mas mesmo com esta negociação onde se coloca a necessidade de se considerar as singularidades de cada um, fica exposta a dificuldade da equipe em aceitar aquilo que para ela foge das regras; algumas vezes podem até aceitar, mas na primeira oportunidade voltam a chamar atenção do cliente atrasado, procurando demonstrar que seu comportamento é inadequado e desviante das normas do serviço. Os vínculos no HD são informais e é possível se experimentar gostar e não gostar de clientes e familiares, os profissionais expressam esses afetos de forma muito aberta; encontramos na relação diária formas de se relacionar como se fosse fora de um contexto de tratamento, a não ser quando se trata de cobrar as regras, aí é possível perceber quem é o profissional e quem é o paciente na hierarquia daquele espaço. Nos grupos, sejam terapêuticos ou de atividades, os clientes são incentivados a falar de si, de sua história, de seu sofrimento, mas para alguns profissionais esta escuta é uma escuta passiva ou orientada para anormatização, para que este cliente ‘aprenda’ a se comportar de acordo com os princípios estabelecidos pela comunidade a que pertence. Chaves (1988), retomando Foucault, se refere à “confissão” como um dispositivo de poder característico de uma sociedade normalizadora ou disciplinar. Todos os profissionais escutam o paciente e levam para a reunião técnica o que escutam, formando uma espécie de mosaico de informações, mas interagem com essas informações de forma intuitiva, não há uma teoria que justifique ou direcione para uma intervenção a não ser o saber psiquiátrico com o uso da medicação, quando há mudança no modo de agir do cliente, se está triste, se está alegre, se passou muito baton, se a roupa está mais curta, se está isolado, se está desconfiado, se está comendo pouco ou se está se tornando perigoso e precisa ser contido. No HD se fala em planejamento, em singularidade, entretanto o que se oferece ao cliente é um planejamento único, ao qual todos devem se adequar. Se o cliente não se interessa pelas atividades oferecidas, não se busca alternativas, passa-se a exigir que ele participe, que ele se submeta. Neste momento também é possível ver a disciplina com o dispositivo do saber científico se opondo ao “cuidado de si”, os profissionais certos do saber sobre o cliente, sufocam toda e qualquer singularidade e com este modo de agir passam a exercer uma mera re-produção àquilo que teoricamente estariam se opondo (BIRMAN, 2000). A recusa em participar gera um mal estar na equipe que interpreta a ação do cliente como uma resistência às normas e um indício de que ele está adoecendo, o que pode levar à sugestão de medicalização ou à alta administrativa, como punição. A relação que os profissionais procuram estabelecer com o cliente é, na maior parte do tempo, no sentido de buscar a ordem ou a normatização a partir de uma pedagogia moral e dificilmente respeita as singularidades. Este trabalho é sempre pautado por um comportamento burocrático, havendo muito pouco espaço para experimentação que não seja determinado pelas ordens de funcionamento institucional. Buscam com suas práticas, que os pacientes passem a apresentar um comportamento diferente daquele com o qual chegaram ao HD, sem muito se importar com a justificativa da existência dos mesmos, ou seja, os clientes devem deixar de ter delírios, devem voltar para o mundo que eles, profissionais, percebem, devem gostar das coisas que eles valorizam como belas ou boas, devem se cuidar mais, pintar as unhas, pentear os cabelos, dançar, brincar. Mas não é permitido beijar, namorar, brigar, falar alto, discordar, chegar atrasado, deixar de freqüentar os grupos, ou seja, aquilo que for de encontro aos padrões morais do grupo de profissionais é proibido e punido rigidamente. Não escutar o sujeito na sua singularidade, o que muitas vezes o impede de responder às expectativas de adaptação social, seria repetir o movimento do asilo onde todos eram tratados como iguais independentemente de suas necessidades e possibilidades. Diante deste cenário se busca ações de intervenção menos autoritárias, que tenham a pretensão de construir um saber que difira do modelo de assistência onde só há lugar para os controles uniformizantes e poder pensar no projeto terapêutico como algo em movimento que não pode e nem deve ser tomado como uma intervenção aprioristicamente já formulada e esquadrinhada. Há a necessidade de se construir um olhar plural sobre o sofrimento e as formas de lidar com ele. Esse olhar é o que nos permite saber que por mais semelhantes que sejam dois quadros sintomáticos, apresentarão sempre diferenças que dizem respeito à irredutibilidade da idiossincrasia individual, à maneira sempre única pela qual cada um vive, pensa, sente e interpreta sua história. Parece que os questionamentos, das propostas na direção de um planejamento singular ou as solicitações vindas daquelas pessoas para as quais buscamos oferecer ajuda para sua autonomia são muitas vezes vistas como algo que vem desorganizar a ordem estabelecida, passam a ser consideradas uma espécie de “desvirtuamento” da sua tarefa terapêutica. A ausência da interlocução dos diferentes saberes, a necessidade da manutenção da disciplina e da ordem tende a atrofiar o trabalho de atenção ao sofrimento e o resgate dos laços sociais daqueles que nos procuram, trazendo como resultado o mesmo tratamento para todos. Sai de cena a singularidade para surgirem as regras, as normas estabelecidas tendo como pano a “segurança”, enfatizando e fortalecendo o aparecimento do conceito de “periculosidade” do esquizofrênico e dos bipolares. Não se procura mais saber sobre o que pensa ou o que sente aquele que se recusa a participar da oficina, ou aqueles que preferem ir para a biblioteca a ficar no espaço físico do HD ou ainda aquele que para vir ao HD impõe a presença da neta de 08 anos. O tratamento acaba consistindo sempre em tentar corrigir o erro, o desvio, em tentar restituir a normalidade perdida. Corbisier (2000) nos chama a atenção para um olhar simplista que não enxerga que um copo vazio está cheio de ar, que o silêncio às vezes está repleto de palavras. Este “olhar simplista”, nos faz considerar aquelas formas de agir como um simples gesto de indisciplina, assim como o nosso aceite e a nossa ousadia em permitir e, por isso, precisamos também ser corrigidos, controlados antes que percamos o controle, não nos permitindo com isso a emergência de novos saberes a partir dessas novas experiências de ações transgressoras. Referências AMARANTE, Paulo; TORRE, Eduardo. História da Loucura: quarenta anos transformando a história da psiquiatria. In: PSICOLOGIA CLÍNICA. Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Centro de Teologia e Ciências Humanas. Departamento de Psicologia. V 13, nº1, 2001. p. 11-26. BIRMAN, Joel. Entre cuidado e saber de si: sobre Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. CHAVES, Ernani. Foucault e a Psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. CORBISIER, Claudia. A Reforma Psiquiátrica: avanços e limites de uma experiência. In: AMARANTE, Paulo (org). Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. p.279-298. COUTINHO, Ângela M. M. O que nós, psicanalistas, podemos aprender com Foucault. In: PSICOLOGIA CLÍNICA. Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Centro de Teologia e Ciências Humanas. Departamento de Psicologia. V 13, nº1, 2001. p.65-88. FIGUEIREDO, Luis Cláudio. 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