AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE MENTAL E A
CONSTRUÇÃO DE UM REGIME DE CONTROLE SOBRE OS
USUÁRIOS DE CRACK
Autor: Mateus Freitas Cunda
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Email: [email protected]
País: Brasil
Eje: S. Pública y Colectiva
Área Teórico/prático: Salud Mental y ser histórico social: líneas de fuga y
micropolíticas
1. TEMÁTICA
O processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, desencadeado nos anos 80,
propôs o fim dos manicômios e a abertura de serviços de atenção descentralizados,
tomados por uma nova compreensão sobre saúde e doença psíquica, focados em
projetos de reinserção social. Desde então, luta-se por uma efetividade desse processo.
Porém, no correr da década de 2000, uma construção psicopatológica se
estabeleceu entre as instituições de saúde mental, a psiquiatria e uma determinada
corrente de saberes acadêmicos, a mídia e o senso comum. Trata-se da dependência
química do crack (cristal sub-composto da base de cocaína).
O passo viciado nas partículas de felicidade à venda no comércio dos modos de
viver chega torpe e satisfeito no Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre.
Tentando estar alheio à máquina que tenta lhe mortificar, o sujeito internado prefere
seguir sua festa do hoje, tendo como salão o grande palácio imperial.
Os meninos e meninas que chegam ao hospital possuem trajetos semelhantes, os
que justificam a internação: agressividade, má conduta, transgressão às instituições
escola, família, trabalho. Caminhos ditos descaminhos, erráticos. Conduta que se
nomeia como transtornada, pelo espelhamento em contra-imagem do ideal previsto,
desviante daquela que adormece a retina do receptor.
A manchete de uma epidemia virulenta composta de violência, marginalidade,
prostituição se solidifica como um cristal, queimado como a pedra do crack, em
efêmeros lampejos de verdade. A profusão química da droga é aclamada tanto pelos
usuários, quanto pelos tablóides e centros psiquiátricos: pintada com horror, é tida como
caminho inevitável para a delinqüência, de preferência juvenil.
Os jargões correm o estado e se difunde uma moral sobre o uso do composto, ao
mesmo tempo em que traz o problema ao centro das páginas com cores de cinema, tal a
juventude transviada de outros tempos. O espetáculo feito abre espaço para o
encantamento dos caminhos retos (imagem) para uma população (des)crente em justiça;
para instaurar o horror (contra-imagem) dos tortos, acusando perigo latente nas ruas.
Um cenário, assim, se forma. Uma trama alimentada por notícias de ordem, por
pedrículas de felicidade, por um arranjo normativo que busca anestesiar as tortuosidades
de uma metrópole como Porto Alegre. São imensamente comum os encaminhamentos
por via judicial, buscando, ao todo, uma espécie de correção psicogenética, anterior,
uma reorientação familiar, uma pedagogia do comportamento. Contribuem para esses
arranjos as instituições educacionais e tutelares.
Progredindo para o passado, é possível perceber nos prontuários do HPSP que os
motivos “agressividade”, “conduta inadequada”, “uso de tóxico” não é novidade nas
justificativas de internação de crianças e adolescentes. Conforme os dados oriundos da
pesquisa “A problematização do normal e do patológico nos modos de ser criança e
adolescente”, essas características estavam presentes na justificativa de internação
desses sujeitos nos anos 60, 70, 80 e 90 - e provavelmente desde a nascente do hospital.
Todavia, nessas décadas as patologias eram outras sob o ponto de vista psiquiátrico,
nomeadas conforme da vigência de um ou outro código internacional, tratadas com as
terapias validas para o período - na imensa maioria, medicamentosas.
O curso desse estudo, portanto, acompanha a composição das tramas da
psicopatologia atual. Parte dos dados das unidades de internação infanto-juvenil do
Hospital Psiquiátrico São Pedro (atualmente o Centro Integrado de Atenção
Psicossocial – CIAPS) e ruma para a análise de alguns componentes da superlotação
dos leitos: a psiquiatrização da violência; a política de contenção dos passos
transgressores; a economia de gozo – imediato! – vigente, com os regimes de felicidade
e juventude do contemporâneo; a legião de viciados nos portais de desrealização do
tempo, no instante fragmento de sonho.
2. DISCUSSÃO
A construção da figura do jovem delinqüente apresenta uma formação discursiva
que, na aparente homogeneidade, carrega grupos enunciativos distintos. Na definição de
formação discursiva por Foucault (2008), os grupos de enunciados não estão ligados
entre si, seja no nível das frases, das proposições, dos laços lógicos, tampouco no nível
das formulações por laços psicológicos. O que enoda essas diferenças é justamente a
raridade dos enunciados evocados pela formação discursiva, a força de uma enunciação
da qual podemos conhecer apenas sua exterioridade/superfície pela prática discursiva
em um determinado tempo e espaço.
Deleuze (2007), em sentido semelhante, acerca da proposição, diz que o
expresso em nada se parece com a expressão, embora não exista fora dela: ele insiste,
persiste, subsiste como sentido em um determinado estado de coisas. O sentido
acontece, portanto, na superfície dos corpos, habitados por uma dupla causalidade
(corporal e incorporal) onde já não se pode falar de um lado ou de outro, de superfície e
profundidade, apenas de fronteira, de paradoxo (GIL, 2008). Em tal limiar se forma a
trama. A construção do objeto jovem delinqüente/drogadito, habita a superfície
discursiva de nossos dias, mas remonta arranjos discursivos que se estabelecem em
jogos de poder e saber numa não linearidade de forças.
A construção do sujeito anormal e perigoso parte, segundo Foucault (2002), pela
construção monstruosa do disforme. O interesse jurídico pelas razões ocultas que
estariam envolvidos nos crimes irracionais abriu margem para o surgimento da
psiquiatria enquanto saber revelador das causas extremas. Funda-se assim um olhar
sobre o sujeito infantil e projeta-se um curso esperado para o seu desenvolvimento. O
curso, é bom que se diga, é o bom dizer, a boa conduta. Ou seja, no mesmo momento
em que se identifica a irracionalidade se arranja o sujeito da razão.
A psiquiatria desenvolve sobre essa construção uma teorização científica e um
tratamento moral, virtualizando sobre o sujeito em desenvolvimento os praguejamentos
de um comportamento violento futuro. As razões do sujeito perigoso ganham o interesse
dos aparatos jurídicos na medida em que se poderia, em vez de punir simplesmente o
crime cometido, entender a etiologia que leva o criminoso à violência (FOUCAULT,
2002). Nesse entretempo de obscuridade, a psiquiatria constrói suas respostas.
Um objeto enunciado pela psicopatologia médica como a “loucura”, segundo
Foucault (2008, p.36), “não é idêntico ao objeto que se delineia através das sentenças
judiciais ou das medidas policiais”; no entanto, a partir de um jogo de regras e forças
desses discursos, formam um conjunto enunciativo que definem as transformações dos
objetos através do tempo. Assim, a forma como o discurso psiquiátrico constrói seus
objetos não decorre somente da invenção de uma psicopatologia, mas de elementos
dispersos que se tramam e ganham sentido. No caso da delinqüência ou da conduta
transgressora, Foucault (2008, p. 49) desmembra o conjunto de relações e tramas
presentes na constituição do indivíduo perigoso:
Relações entre planos de especificação, com as categorias penais e os
graus de responsabilidade diminuída e planos psicológicos de
caracterização [...] Relação entre a instância de decisão médica e a
instância de decisão judiciária [...] Relação entre o filtro constituído
pela interrogação judiciária, as informações policiais [...] e o filtro
constituído pelo questionário médico [...] Relação entre as normas
familiares, sexuais, penais, do comportamento dos indivíduos, e o
quadro dos sintomas patológicos e doenças de que eles são os sinais.
Relação entre a restrição terapêutica no meio hospitalar [...] e a
restrição punitiva na prisão.
Ainda segundo Foucault, a psicologização do sujeito transgressor aparece, desde
os princípios da psicopatologia, associando os registros da delinqüência aos da
caracterização patológica: roubos, delitos sexuais, homicídios, vagabundagem,
agressividade, são exemplos que se inscrevem tanto no discurso da psiquiatria quanto
no sistema jurídico-policial.
Ora, a constituição desses arranjos se refere ao surgimento de uma sociedade
disciplinar que, para Fonseca (2003), não está identificada a uma instituição, mas a uma
conexão de várias técnicas de vigilância e punição aplicadas aos lugares institucionais.
Desse olhar cuidadoso, adiante, nasce o sujeito moderno, dócil e útil, habitado por um
poder capilarizado em micro-mecanismos de controle. Os indóceis, por sua vez,
precisam ser nomeados, identificados, reprimidos; ademais, os possíveis indóceis
carecem da mesma atenção.
No caso brasileiro, segundo Coimbra (2003), houve uma virtualização do medo
ao jovem periférico, associando pobreza à violência, uso de drogas à delinqüência,
desemprego à vagabundagem. Essa virtualização foi legitimada com os saberes da
medicina higienista do início do século XX (de posse da teoria das degenerescências de
Morel); com a constituição dos Serviços Assistenciais para substituir o lugar das
famílias disfuncionais; com o papel da psicologia na caracterização de uma essência dos
desvios, na tendência adaptacionista, no emprego de técnicas de modelização do
indivíduo (SILVA & NARDI, 2004).
3. CONCLUSÕES
Portanto, a novidade do jovem delinqüente e drogadito apresenta um enredo
discursivo próprio para esse momento, mas que, no entanto, remonta enunciados sobre
uma essência transgressora da juventude, sobre a necessidade de intervenção das
instituições de controle, sobre a falta de referências familiares, etc.
O intento dessa discussão, afinal, é desempedrar a cena epidêmica de Porto
Alegre, afrouxar os laços dessa trama e atentar ao suspiro dos transeuntes desses
circuitos. Um exercício que pretende suspender a violência dos regimes de controle
atuais e os arranjos institucionais que anestesiam com o mesmo poder dos cristais da
festa. Retomar, afinal, as políticas de Reforma Psiquiátrica e as diretrizes de um
atendimento integral e universal dos Sistemas Único da Saúde e da Assistência Social
brasileiros, buscando construir linhas estratégicas de luta e intervenção.
REFERÊNCIAS
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DELEUZE, Giles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FONSECA, Márcio A. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo: EDUC,
2003.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
______________. Os Anormais: Curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
GIL, José. O imperceptível Devir da Imanência – Sobre a filosofia de Deleuze. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2008.
KESSLER, Felix; PECHANSKY, Flávio. Uma visão psiquiátrica sobre o
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ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade – subjetividade em tempo de
globlalização. In: LINS, Daniel (org). Cultura e Subjetividade: saberes nômades.
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SCISLESKI, Andréa C.; SILVA, Rosane A. N.; MARASCHIN, Cleci. Manicômio em
Circuito: o percurso dos jovens e a internação psiquiátrica. Caderno de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, 24 (2): 342-352, fev, 2008.
SILVA, Rosane A. N. & NARDI, Henrique. C. A emergência de um saber psicológico
e as políticas de individuação. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 29, n1, p.
187-198, 2004.
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