CO 03: Uma interpretação dos trechos duvidosos
Sobre os números negativos no dicionário de Peter Barlow
Andréa Maria Ferreira MouraUFERSA
[email protected]
John A. Fossa UFRN/UEPB
[email protected]
Resumo
Apesar do fato de que Peter Barlow é conhecido como um dos últimos matemáticos ingleses
importantes a rejeitar a existência dos números negativos, há, no seu New Mathematical and
Philosophical Dictionary (1814), certos trechos que parecem desmentir a referida posição de
Barlow. A presente análise dos mencionados trechos, porém, confirma a posição de Barlow como a
de negar a existência dos números negativos.
Palavras-chave:Números negativos. Quantidades negativas. Peter Barlow.
O surgimento de novas entidades matemáticas tem ocasionado, várias vezes na
história, controvérsias sobre a existência, ou não, das novas entidades propostas.
Observamos, em especial, que a existência dos números negativos e, a fortiori, suas raízes
foi muito questionada durante um longo período da História da Matemática1.De fato, a
Inglaterra, no fim do século XVIII e início do século XIX serviu como palco para acirrados
debates sobre essa questão, sendo Francis Maseres (1731-1824) e William Frend (17571841) os dois principais oponentes aos números negativos. Associado a eles, o matemático
inglês e engenheiro civil Peter Barlow (1776-1862) também argumentou contra a
existência dos referidos números.
A maior parte da obra de Barlow se concentra na matemática aplicada, tendo seus
estudos sobre magnetismo e bússolas navais lhe rendido a prestigiosa medalha de Copley.
Mais relevante para nossos propósitos, são dois livros dele que contêm considerações
importantes em relação ao debate sobre a questão da existência de números negativos. O
primeiro é Na Elementary Investigationo fthe Theory of Numbers, a primeira obra inglesa
dedicada à moderna Teoria dos Números, publicado em 1811. Visto que os detalhes se
1
Por mais detalhes sobre essa história, ver Anjos (2012) e Fossa (2007).
encontram em Moura (2014), não abordaremos o conteúdo desse livro aqui. O segundo é
New Mathematical and Philosophical Dictionary, publicado em 1814. O tratamento que
Barlow dá aos números negativos nessa obra parece confuso, pois há partes que claramente
os condenam, mas há outras que parecem os aceitar. No que segue, tentaremos explicitar o
posicionamento de Barlowcomo rejeitador dos referidos números e explicar o papel, dentro
da sua obra, dos trechos que aparentemente os aceitam.
A Rejeição aos Números Negativos
Embora um pouco longo, o seguinte trecho, retirado do verbete referente ao
“Negativo (Sinal)”2, mostra claramente a posição de Barlow contra a existência dos
números negativos:
NEGATIVESign, in Algebra, is that character, or symbol, which denotes
subtraction, being a short line preceding the quantity to be subtracted, and is read
minus; thus – denotes that the quantity b is to be taken from the quantity a,
and is read, a minus b.
The introduction of this character into algebra has given rise to various
controversies, with regard to the legality or illegality of certain conclusions
depending upon it; some maintaining, that as a negative quantity is in itself
totally imaginary, it ought not to be introduced into a science, the excellency of
which depends upon the rigour and certainty of its conclusions; while others,
running into the opposite extreme, have endeavoured to illustrate what will not
admit of illustration; and thus, like other zealots, have been the greatest enemies
of the cause they were so anxious to defend.
It is in vain to attempt to define what can have no possible existence; a quantity
less than nothing is totally incomprehensible; and to illustrate it, by reference to
a debtor and creditor account, to say the least of it, is highly derogatory to this
most extensive and comprehensive science.
The apparent anomalies resulting from the introduction of this character have
arisen from giving to this symbol the same generality as belongs to the sign +or
addition. When two quantities are to be added together, as and , it is perfectly
indifferent which of them is placed first, for + is in every respect the same
as + ; but if the difference of them is to be expressed, this is not the case;
– and − being totally different; if is greater than , then − is a
real quantity equal to the difference of
and ; but − is an imaginary
quantity arising from a supposititious operation, viz. of taking a greater quantity
from a less; yet this expression, considered merely as an algebraical symbol, may
still enter as such into the steps of and process, and will ultimately produce a
legitimate result; but in order to this we must first have certain rules laid down
for operating on such quantities, accommodated to their particular nature, and
which must be such as necessarily arise from principles previously
established.(BARLOW, 1814, NEGATIVESign)
2
As páginas de Barlow (1814) não são numeradas. Em consequência, identificaremos as citações através dos
verbetes de que fazem parte.
2
O argumento de Barlow procede nos seguintes quatro passos:
1. uma definição sintática do símbolo “–”;
2. a constatação que não há quantidades menores que nada;
3. a sugestão de que o problema surgiu com a suposição de que
a subtração é simétrica;
4. a ressalva de que entidades imaginárias podem ser úteis
quando usadas em certos passos intermediários de cálculos.
Comentamos brevemente sobre cada passo.
(1) Para Barlow, o sinal “–” é um sinal de uma operação, especificamente a
operação de subtração. Assim, estritamente falando, só pode ser usado em contextos do
tipo – , ou em contextos que são justificáveis a partir deste (ver item 4). Mas, – é a
quantidade que resulta de retirar b de a e, portanto, b não pode ser maior que a. Em
especial uma expressão como −5 não é legítima, pois não obedece as regras sintáticas
relacionadas ao referido sinal.
(2) Como talvez a maioria dos opositores aos números negativos, Barlow não
mantem a distinção entre esses números e quantidades. Mas, quantidades são concebidas
como aspectos de processos reais, não como entidades matemáticas abstratas3. Assim,
parece claro que não haja quantidades menores que nada. Por exemplo, se quisermos tirar
cinco objetos de um grupo de dois objetos, ao retiramos os dois objetos o processo
alcançará seu limite e não poderá continuar adiante. Isto indica que o projeto original (tirar
cinco de dois) é impossível.
(3) A operação de adição é simétrica porque
+
=
+ . O mesmo, porém, não
acontece com a operação de subtração. Parece que Barlow pensava que se nos
limitássemos a contextos aritméticos (e.g., 5 − 2 ≠ 2 − 5), nenhum problema iria surgir.
No entanto, ao abstrair para o contexto algébrico, onde a ordem de a e b não é evidente,
estamos induzido a tratar
−
e −
como equivalentes, o que acarreta, para ele,
inevitáveis erros.
3
Para mais detalhes sobre esta conceituação de “quantidade” na Idade Moderna, ver a apresentação
“Algumas observações sobre a origem do conceito de função”, de Disnah Barroso Rodrigues e John A.
Fossa, no presente evento.
3
(4) Há, no entanto, casos em que podemos usar as quantidades imaginárias, junto
com as regras de sinais, de forma legítima para simplificar os cálculos. Dada, por exemplo,
a expressão 7 + (2 − 5), fazemos a operação dentro das parênteses, de maneira puramente
formal, obtendo −3. Isto, contudo, não implica que, de fato, exista uma quantidade −3,
mas apenas indica que a expressão original se reduz à expressão mais simples 7 − 3, o que
é completamente de acordo com as regras sintáticas relacionas à operação de subtração.
Nesse exemplo, fica bastante claro como o contexto maior justifica o uso da entidade
imaginária sem imputar a ela qualquer existência real. No contexto algébrico, porém, é
mais difícil certificar a legitimidade dos processos utilizados.
Análise de Alguns Trechos Duvidosos
Há alguns trechos do Dicionário de Barlow que poderiam nos levar a pensar que
sua posição contra a existência de números negativos não é completamente radical, ou,
alternativamente, que seu pensamento seja contraditório. Analisaremos agora, a título de
exemplo, alguns desses trechos duvidosos.
Observamos, em primeiro lugar que Barlow (1814, NEGATIVEQuantities) afirma
que
NEGATIVEQuantities, are those quantities which are preceded or affected with
the negative sign.
Uma leitura avulsa desse verbete poderia nos levar a pensar que Barlow sanciona a
existência de quantidades menores que nada. Há, no entanto, pelo menos três maneiras em
que quantidades negativas podem aparecer na matemática. Primeiro, em contextos
algébricos,–
não é necessariamente um termo negativo. Segundo, – poderá ser inserido
em um contexto maior (como passo intermediário) que justifica seu uso conforme
explicado em item (4) referente ao verbete NEGATIVESign. Observamos ainda que, no
verbete ora sob consideração, Barlow nos remete ao referido verbete. Terceiro, –
poderáacontecer dentro de uma legítima ocorrência da operação de subtração, isto é, em
– com
> . Com efeito, Barlow (1814, QUANTITY) afirma
4
Hence it is that any quantity may be supposed to enter into algebraic
computations two different ways, which have contrary effects, viz. either as an
increment or decrement.
A Quantity which is to be added is called a positive quantity, and a quantity to
be subtracted is said to be negative.
Nesse caso, o que Barlow chama de “quantidade negativa” seria mais ou menos
equivalente ao que chamamos de “subtraendo”. Em todos esses casos, “quantidade
negativa” é usada com probidade, isto é, sem implicar a existência de quantidades menores
que nada.
Há, contudo, afirmações ainda mais problemáticas. Um caso paradigmático é o de
raízes de equações. Com efeito, Barlow (1814, ROOT) afirma que
ROOTS of an Equation, are those numbers or quantities which substituted for
the unknown quantity, render the whole equation equal to zero.
And of these there are always as many real or imaginary, as there are units in
highest power of the unknown quantity. So an equation of the 2d degree has two
roots; one of the third degree, three; of the 4th degree, four, &c. See EQUATIONS.
The roots of an equation are either, positive, negative, or imaginary.
Ao sustentar o Teorema Fundamental da Álgebra, é necessário admitir raízes negativas e
imaginárias. Isto, por sua vez, parece implicar a existência de quantidades negativas e suas
raízes. De fato, a frase “there are” (“existe”) é muito sugestiva e parece indicar existência
no sentido real em que ele compreende a palavra.
Devemos, no entanto, ter muito cuidado ao interpretar o texto de Barlow. Em
primeiro lugar, a frase “there are” é frequentemente usada em situações que não implicam
em existência real. Assim, a frase
There are many types of monsters in folklore.
(Há muitos tipos de monstros no folclore.)
não seria interpretada, emgeral, como implicando na existência real de monstros. Logo, é
inteiramente possível que Barlow concebeu a grande classe de raízes de equações como
sendo composta de duas subclasses, uma consistindo de quantidades existentes e a outra
consistindo de quantidades que não são existentes; sob essa suposição, os elementos de
cada subclasse teriam usos distintos.
A referida suposição é, de fato, comprovado explicitamente por Barlow (1814,
IMAGINARY) que afirma que
5
Imaginary quantities naturally arise out of the generalization of algebraical
symbols, such as by extracting the even roots of negative quantities; whereas,
according to the definitions on which we proceed, it is obvious that such
quantities can have no real root. (…)
Imaginary quantities indicate impossibility; that is, in any equation which has for
its result an imaginary quantity, some condition has been introduced which is
impossible. If, for example, it were proposed to divide the number 10 into two
such parts that their product should be 30, it is obvious that this latter condition
is impossible, for the greatest product that can be formed of two numbers whose
sum is ten, is5 × 5 = 25, that is when the two parts are equal: and, accordingly,
in the solution of such an equation we must expect an imaginary result, which is
what really happens; for put x and 10 − for the numbers then 10 −
= 30,
or − 10 = −30, or = 5 ± √−5, which is an imaginary answer but still
being substituted in the given equation, and submitted to the same rules as other
algebraical quantities, it will be found to answer the impossible conditions of the
problem.
Isto é, quando uma raiz imaginária aparece como solução, isto indica que há uma condição
na elaboração do problema que torna a sua solução impossível. Uma análise semelhante
pode ser feita para as raízes negativas.
Para Barlow, então, o procedimento de resolver uma equação (de uma só variável),
de grau n, gera n raízes. As raízes positivas correspondam a soluções reais da situação
representada pela equação, enquanto as raízes negativas e imaginárias indicam que o
problema original ou não tem solução, ou não tem solução completa, devido à imposição
de uma condição impossível. Mas, como a impossibilidade não é geralmente reconhecida
na elaboração original do problema, tornando-se percebível somente com o aparecimento
das raízes negativas ou imaginárias, Barlow deveria ter considerado essas raízes como
sendo muito úteis.
Finalmente, há mais uma consideração que precisa ser exposta para esclarecer a
nossa interpretação da posição de Barlow. O seu texto (Barlow 1814) é um dicionário e,
como tal, pretende dar uma visão geral das várias palavras utilizadas por diversos
matemáticos importantes. Portanto, fica difícil para o autor se contrapor aos
posicionamentos dos outros quando esses discordam das suas próprias opiniões. Faremos
uma analogia com um dicionário comum, tomando como exemplo a definição de “esfinge”
dada por Ferreira (1975, p. 562):
Monstro fabuloso, leão alado com cabeça e busto humanos, que matava os
viajantes quando não decifravam o enigma que ele lhes propunha.
6
Há aqui apenas um leve questionamento sobre a existência desses monstros, indicada pela
palavra “fabuloso”. Barlow, no verbete “Quantidade negativa” está muito mais enérgico a
negar a existência das mesmas. No entanto, não poderá estender a crítica a todas as
ocasiões em que a referida expressão aparece no Dicionário. Assim, Barlow (1814,
BIQUADRATIC Root) afirma que
Given − 25 + 60 − 36 = 0, to find the four values of . (...) Hence, as
the value is negative, the four roots are the following :
1st. roots = + − = 1
2d. …… = − + = 2
3d. ……. = + + = 3
4d. ……. = − − = −6
De novo, em Barlow (1814, CURVE), achamos
According to Newton, there are 72 species of lines of the third order; but Sterling
discovered four more species of redundant hyperbolas; and Stone two other
species of redundant hyperbolas, expressed by the equation
=
+ +
; viz. in the case when
+ + = 0; has two unequal negative roots, and
in that where the equation has two equal negative roots. So that there are at least
78 different species of lines of the third order.
Não devemos interpretar trechos como estes como evidência de que Barlow poderia aceitar
a existência de quantidades negativas, mesmo quando essa aceitação poderá ser imputada
aos autores sob discussão. Devem ser interpretados como relatos sobre os posicionamentos
de outros matemáticos, que seriam oportunamente corrigidos, para Barlow, através da
consulta aos verbetes apropriados do seu Dicionário.
Conclusão
Concluímos que, apesar da existência de certos trechos duvidosos no seu
Dicionário, Barlow é completamente consistente na sua rejeição à existência de números
negativos. Sua posição envolve uma definição sintática do sinal de subtração, a
identificação implícita de “número negativo” com “quantidade (real) negativa”, a
explicação da origem do suposto erro pelo não reconhecimento da assimetria da operação
de subtração em contextos algébricos e a legitimação do uso de números negativos em
7
passos intermediários de certos cálculos quando o contexto maior salvaguarda a eventual
justificação desse uso em termos da referida definição sintática. Os mencionados trechos
só parecem duvidosos quando lidos como verbetes independentes. Contudo, quando são
interpretados à luz dos verbetes em que Barlow explicita seu pensamento sobre a
existência dos números negativos, reconhece-se que sua posição é inteiramente consistente
ao rejeitar a existência desse tipo de número.
Finalmente, frisamos que o nosso propósito aqui tem sido o de esclarecer a posição
de Barlow (1814), não o de avaliar os seus argumentos. Esperamos fazer isto noutra
oportunidade.
Referências
ANJOS, Marta Figueiredo dos. Um estudo histórico-epistemológico do conceito de
número negativo. Natal, RN: EDUFRN, 2012.
BARLOW, Peter. A New Mathematical and Philosophical Dictionary. London: G. and
S. Robinson, 1814.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
FOSSA, John A. Uma pequena história dos números negativos. In: FOSSA, J. A. Cabelos
negros, olhos azuis e outras feições das matemáticas puras e aplicadas. Natal:
EDUFRN, 2007.
MOURA, Andréa Maria F. A Rejeição Inglesa aos Números Negativos: Uma Análise
das Obras dos Principais Opositores de 1750-1830. Tese (2014) - UFRN- Natal.
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