Capı́tulo 1 O Sistema de Energia Elétrica 1.1 Conceito Geral O Sistema de Energia Elétrica (SEE) é um sistema bastante complexo, concebido com a função principal de entregar energia elétrica aos consumidores. A energia elétrica é produzida1 em centrais elétricas, as quais, normalmente, se situam em locais afastados dos pontos de consumo. Por isso, é necessário transportar a energia, desde os locais onde ela é produzida, até aos locais onde ela é consumida. O transporte de energia elétrica necessita de uma infraestrutura fı́sica2 , constituı́da por linhas aéreas ou cabos subterrâneos. Esta infraestrutura fı́sica compreende ainda a existência de equipamentos destinados a criar as condições para que a transmissão se faça com perdas reduzidas – os transformadores. Finalmente, a energia elétrica é entregue aos clientes, com a qualidade adequada. 1.1.1 Grandezas fundamentais Para observar, estudar e compreender o funcionamento do SEE, usam-se duas grandezas fundamentais: a corrente3 e a tensão. A corrente elétrica é um fluxo organizado de eletrões num material, em geral, um metal. Nos metais, há eletrões que podem libertar-se da estrutura da nuvem eletrónica e mover-se livremente através do material, originando, assim, uma corrente elétrica. Para manter a corrente de eletrões, é preciso fornecer energia, uma vez que os eletrões a vão perdendo, nas colisões com a estrutura do material. É por 1 Na verdade, a energia elétrica não é produzida, mas sim transformada a partir de energia já existente noutras formas. Por facilidade de linguagem, usaremos a palavra “produção” (e “consumo”), tendo presente que nos estamos a referir à palavra “transformação”. 2 Existem formas de transmitir energia elétrica sem fios, usando tecnologias avançadas, tais como a indução direta ou a indução magnética ressonante. No entanto, não existem ainda aplicações comerciais destas tecnologias para potências elevadas, principalmente devido ao seu baixo rendimento – apenas uma pequena parte da energia transmitida é recebida pelo recetor. 3 O nome correto é “intensidade de corrente”, mas por facilidade de linguagem usaremos apenas a palavra “corrente”. 1 Conceito Geral esta razão que os fios condutores aquecem quando são percorridos por correntes elétricas. A tensão pode ser entendida como uma medida da energia que é necessário fornecer para manter a corrente. Existe ainda uma terceira grandeza, chamada potência, que envolve o produto da tensão pela corrente. Para representar a tensão usam-se, normalmente, as letras V ou U , sendo o Volt (V) a unidade do Sistema Internacional (SI) em que se mede a tensão. Quanto à corrente, ela representa-se pela letra I e mede-se em Ampère (A). A potência mede-se em Volt-Ampère (VA)4 e representa-se pela letra S. 1.1.2 Requisitos O funcionamento do SEE é bastante complexo, por diversas razões, a principal das quais é a necessidade de obedecer a uma condição essencial: a produção de energia elétrica tem de igualar, em cada instante, exatamente o consumo verificado nesse instante, adicionado das perdas observadas na transmissão da energia elétrica. A satisfação desta condição é essencial, uma vez que as caracterı́sticas da energia elétrica não a tornam adequada a ser armazenada. Na verdade, a energia elétrica pode ser armazenada, utilizando, para o efeito, as conhecidas baterias. No entanto, a quantidade de energia elétrica que é possı́vel armazenar em baterias é mı́nima, quando comparada com os movimentos de energia associados à satisfação do consumo de um paı́s. Não sendo possı́vel armazenar energia na sua forma elétrica, a condição referida tem de ser assegurada em cada instante. Apesar de se usarem técnicas avançadas de previsão dos consumos, é evidente que a sua eficácia não pode ser total, pelo que a utilização de sofisticados sistemas de controlo é essencial, não só para regular a energia fornecida pelas centrais elétricas com essa capacidade, como também para gerir o trânsito de energia nas interligações elétricas que unem Portugal e Espanha. Além deste requisito fundamental, que envolve a operação de todo o SEE, existem ainda outros requisitos de segunda ordem, mas também importantes: • A energia elétrica deve ser fornecida em qualquer local onde seja solicitada. • A energia elétrica deve obedecer a critérios de qualidade: frequência constante, tensão controlada, forma de onda sinusoidal, fiabilidade elevada5 . • Os custos de produção devem ser minimizados. • O impacte ambiental deve ser contido. 1.1.3 Estrutura e componentes Na Figura 1.1 mostra-se um esquema ilustrativo da estrutura de um SEE. 4 Os múltiplos das unidades são: kilo (k) = 103 ; Mega (M) = 106 ; Giga (G) = 109 ; Tera (T) = 1012 , e os submúltiplos são: mili (m) = 10−3 ; micro (µ) = 10−6 ; nano (n) = 10−9 ; pico (p) = 10−12 . 5 Veremos, mais tarde, o significado destes conceitos. 2 O Sistema de Energia Elétrica Figura 1.1: Estrutura do Sistema de Energia Elétrica (SEE); Fonte: J.P. Sucena Paiva, Redes de Energia Elétrica: Uma Análise Sistémica, IST Press, 2007. A energia elétrica é produzida em três tipos de infraestruturas, ordenadas por nı́vel de potência: • Centrais de grande potência, da ordem das centenas ou um milhar de MVA. Estas centrais podem ser: térmicas (ou termoelétricas), quando se processa a transformação da energia térmica associada a um combustı́vel fóssil, como o carvão, ou o gás natural, em energia elétrica; ou hı́dricas (ou hidroelétricas), quando se aproveita a energia potencial e cinética associada ao curso de um rio. A localização das unidades de produção térmica e hı́drica está concentrada em sı́tios especificamente selecionados para responder a condicionamentos de natureza infraestrutural (abastecimento de combustı́vel, existência de cursos de água de refrigeração), no caso das térmicas, e de natureza geográfica (disponibilidade do recurso energético primário, em condições de poder ser aproveitado), no caso das hı́dricas. • Centrais de média ou pequena potência, da ordem das dezenas de MVA. Estas centrais podem ser: pequenas centrais hidroelétricas; eólicas, que aproveitam a energia do vento; fotovoltaicas, associadas à transformação de energia da radiação solar. Todas estas unidades de produção se designam por produção descentralizada, ou dispersa6 , pois não se encontram concentradas em locais especı́ficos, antes se encontram distribuı́das em locais muito diversificados, escolhidos devido à abundância do recurso energético primário. • Centrais de muito pequena potência, instaladas nos locais de consumo de energia elétrica, no âmbito das chamadas microgeração e minigeração, normalmente de origem fotovoltaica. A microgeração compreende unidades de produção instaladas nos locais de consumo doméstico, com potências da ordem das unidades de kVA; a minigeração está associada a unidades de produção instalada nos locais de consumo industrial, com potências da ordem das dezenas ou centenas de kVA. 6O nome técnico é Produção em Regime Especial (PRE). 3 Opções Básicas A energia produzida nas grandes centrais térmicas e hı́dricas é entregue à rede de transporte, composta por linhas aéreas de Muito Alta Tensão (MAT). Esta tensão extremamente elevada é adequada para transportar a energia elétrica a grandes distâncias, uma vez que as perdas no transporte diminuem quando se aumenta a tensão. São os transformadores que permitem mudar o nı́vel de tensão a que se efetua o transporte de energia, de modo a obter o nı́vel ótimo de perdas, do duplo ponto de vista técnico e económico. Tensões muito elevadas não são adequadas para transportar a energia elétrica a um nı́vel regional ou local, onde as distâncias envolvidas são menores. Para distâncias relativamente pequenas não é economicamente vantajoso usar MAT, porque os investimentos neste nı́vel de tensão são muito avultados. Assim, a energia elétrica é transferida para a rede de distribuição que funciona nos nı́veis de tensão: Alta Tensão (AT), Média Tensão (MT) e Baixa Tensão (BT). As unidades de produção descentralizada encontram-se normalmente ligadas à rede de distribuição em AT ou em MT. A microgeração e a minigeração estão ligadas na rede de distribuição em BT. 1.2 Opções Básicas O SEE foi desenvolvido a partir de três opções básicas que foram tomadas no passado longı́nquo: o SEE funciona em corrente alternada, à frequência de 50 Hz7 e é trifásico. Vamos ver o que significam estes conceitos e as opções básicas que foram tomadas para convergir nesta solução: 1.2.1 Corrente alternada / corrente contı́nua Num sistema em corrente alternada8 , as grandezas fundamentais variam no tempo seguindo uma forma de onda sinusoidal; num sistema em corrente contı́nua9 , estas grandezas são constantes no tempo. Os SEE funcionam, na sua esmagadora maioria, em corrente alternada, o que quer dizer que as grandezas fundamentais podem ser representadas matematicamente por um seno ou por um cosseno. A Figura 1.2 ilustra um exemplo da variação no tempo da tensão e da corrente, num circuito em corrente alternada do SEE. O perı́odo da onda é 20 ms, o que significa que a forma de onda se repete ao fim de 20 ms (mili segundo). O perı́odo representa-se pela letra T e mede-se em segundo (s). Ao inverso do perı́odo dá-se o nome de frequência, que se representa pela letra f e cuja unidade SI é o Hertz (Hz). No caso do SEE, tem-se: T = 20 × 10−3 s → f = 1 = 50 Hz T (1.1) A frequência ser 50 Hz significa que a forma de onda se repete 50 vezes num segundo. 7 Em algumas partes do mundo, como no continente americano e em parte da Ásia, usa-se 60 Hz, como se verá mais à frente. 8 AC – Alternating current. 9 DC – Direct current. 4 O Sistema de Energia Elétrica 40 300 30 200 20 100 10 0 0 0 5 10 15 20 25 30 35 40 -100 -10 -200 -20 -300 -30 -400 Tempo (ms) Corrente (A) Tensão (V) Tensão e corrente 400 V I -40 Figura 1.2: Exemplo da tensão e da corrente num circuito de corrente alternada. Uma outra grandeza importante é a frequência angular, que se representa pela letra grega “omega” (ω) e se mede em rad/s. A relação entre a frequência e a frequência angular é a seguinte: ω = 2πf = 314 rad/s (1.2) Como se pode observar na Figura 1.2, as grandezas fundamentais, tensão e corrente, têm um valor máximo. No entanto, os aparelhos que medem as grandezas fundamentais, que são os voltı́metros e os amperı́metros, normalmente, não medem o valor máximo (max) das grandezas, mas sim um outro valor, designado valor eficaz (ef). O valor eficaz das grandezas é o que contribui, efetivamente, para a transferência de potência útil entre dois sistemas. Para grandezas de variação sinusoidal, a relação entre o valor máximo da tensão e da corrente e o respetivo valor eficaz é: √ Vmax = √ 2Vef Imax = 2Ief (1.3) Na Figura 1.2 deu-se um exemplo de variação no tempo da tensão e da corrente em que estas duas grandezas se apresentavam em fase, isto é, as grandezas atingem os valores máximos ou anulam-se no mesmo instante de tempo. Em regra, isto não se passa assim: a tensão e a corrente estão desfasadas, isto é, não atingem o valor máximo ou anulam-se 5 Opções Básicas ao mesmo tempo. A corrente pode estar atrasada em relação à tensão, isto é, atinge o valor máximo depois de a tensão o ter atingido, ou pode dar-se a situação contrária. Na Figura 1.3 representa-se o caso em que a corrente está atrasada em relação à tensão. 40 300 30 200 20 100 10 0 0 0 5 10 15 20 25 30 35 40 -100 -10 -200 -20 -300 -30 -400 Tempo (ms) Corrente (A) Tensão (V) Tensão e corrente 400 V I -40 Figura 1.3: Exemplo da corrente atrasada em relação à tensão num circuito de corrente alternada. Em face do exposto, pode concluir-se que a tensão e a corrente podem expressar-se matematicamente através de: √ v(t) = √ 2Vef sin (314t) V i(t) = 2Ief sin (314t − φ) A (1.4) O ângulo que se representa pela letra grega “fi” (φ) é o ângulo de desfasagem entre a tensão e a corrente. O cosseno deste ângulo tem um papel importante nos SEE: ao cosseno do ângulo φ dá-se o nome de fator de potência. Para obter a potência, o ponto de partida é o produto da tensão pela corrente. A potência é, na realidade, representada através de um número complexo, daı́ tomar o nome de potência complexa. A parte real deste número complexo chama-se potência ativa, medese em Watt (W) e representa-se pela letra P ; a parte imaginária é a potência reativa, que se mede em volt-ampère-reativo (var) e se representa pela letra Q. Podemos então escrever que: S = P + jQ 6 (1.5) O Sistema de Energia Elétrica É possı́vel demonstrar que: P = Vef Ief cos φ Q = Vef Ief sin φ (1.6) Apenas em aplicações muito especı́ficas, como por exemplo, a transmissão de energia elétrica a longuı́ssimas distâncias, se justifica o uso da corrente contı́nua. No caso geral, são três as vantagens da corrente alternada sobre a corrente contı́nua e que justificam a sua utilização generalizada: • Maior simplicidade na construção dos geradores e dos motores e maior segurança na sua exploração. • Maior facilidade na interrupção da corrente. • Facilidade em variar a tensão recorrendo ao uso de transformadores. Em caso de perturbações no SEE, é muitas vezes necessário interromper a corrente, por exemplo, no caso de curto-circuitos: interromper uma corrente contı́nua é uma tarefa muito complicada; interromper uma corrente alternada é mais simples, já que o processo de interrupção beneficia da passagem periódica por zero da corrente. No entanto, o fator determinante para a generalização do uso da corrente alternada nos SEE é a que se mencionou em terceiro lugar. Já vimos que para que a transmissão de energia elétrica se faça com perdas reduzidas é necessário elevar a tensão, a qual terá de ser reduzida à medida que nos aproximamos das instalações dos clientes. Esta função é realizada pelos transformadores. Acontece que estes equipamentos, de extrema utilidade para o bom funcionamento do SEE, só funcionam em corrente alternada10 . 1.2.2 50 Hz / 60 Hz Nos paı́ses em que o SEE evoluiu de acordo com as tendências que prevaleceram na Europa usa-se a frequência de 50 Hz. Nos Estados Unidos da América e nos paı́ses tecnologicamente influenciados por este paı́s usa-se a frequência de 60 Hz. Esta divisão das frequências de operação do SEE é uma circunstância infeliz, mas que hoje é irremediável. Pode, todavia, perguntar-se porque razão não se usam frequências inferiores a 50 Hz ou superiores a 60 Hz. Não se usam frequências inferiores a 50 Hz porque produzem uma incómoda cintilação na luz emitida pelas lâmpadas. Não é conveniente usar frequências superiores a 60 Hz porque as perdas nos circuitos magnéticos crescem com a frequência. 10 Hoje em dia já existem transformadores de corrente contı́nua que são construı́dos recorrendo a dispositivos eletrónicos de potência. No entanto, ainda não se fabricam para potências elevadas. 7 Organização 1.2.3 Número de fases O SEE é trifásico, isto é, quando se pretende transmitir energia elétrica de um emissor para um recetor usam-se três condutores. As vantagens do sistema trifásico relativamente ao monofásico, em que se usa apenas um condutor (e respetivo retorno para fechar o circuito), podem ser encontradas ao nı́vel da geração, da transmissão e da utilização da energia elétrica. Contudo, é ao nı́vel da transmissão da energia elétrica que as vantagens são mais evidentes, pelo que será sobre a vantagem associada à transmissão de energia que nos iremos debruçar. Suponhamos que pretendemos transmitir a potência P , entre um emissor e um recetor, localizados a uma distância d. Para transmitir esta potência precisamos de um condutor com comprimento 2d, uma vez que é necessário assegurar um retorno, de modo a fechar o circuito elétrico. Se, em vez de um condutor, usarmos três condutores e o retorno se fizer por um condutor único (chamado neutro), precisamos de um condutor com comprimento 4d, mas conseguimos transmitir uma potência 3P . Isto significa que duplicamos o comprimento do condutor, mas triplicamos a potência transmitida, o que é uma vantagem significativa. Acresce que, em muitas circunstâncias, é possı́vel suprimir o condutor de retorno, uma vez que, se o sistema for convenientemente equilibrado, ele é percorrido por corrente nula. Nestas circunstâncias, a economia é ainda maior: aumentamos o comprimento dos condutores em 50 % e triplicamos a potência transmitida. Devido a esta economia assinalável, os SEE são, com poucas exceções, trifásicos. Sendo os sistemas trifásicos, podem definir-se duas tensões: uma tensão simples, medida entre uma fase e o neutro, e uma tensão composta, medida entre duas fases. A relação entre tensão simples (s) e tensão composta (c) é: Vc = 1.3 √ 3Vs (1.7) Organização Habitualmente, o SEE divide-se nos seguintes cinco blocos: 1) Produção; 2) Transporte; 3) Distribuição; 4) Comercialização; 5) Consumo. 1.3.1 Produção A atividade de produção de energia elétrica é aberta à iniciativa privada, exercida em regime de livre concorrência, mediante a atribuição de licença. O papel do Estado é criar condições de desenvolvimento do mercado e monitorizar o sistema, para garantir abastecimento. Centrais térmicas As centrais térmicas podem ser de dois tipos: as convencionais e as de ciclo combinado. 8 O Sistema de Energia Elétrica Nas centrais térmicas convencionais queima-se um combustı́vel fóssil, o carvão, para obter energia térmica. O calor, assim libertado na combustão do carvão, aquece água que percorre as tubagens, localizadas dentro da caldeira, fazendo com que a água passe do estado lı́quido ao estado de vapor. O vapor é encaminhado para uma turbina de vapor, empurrando as suas pás e obtendo energia mecânica (associada ao movimento das pás do rotor da turbina). Acoplado no mesmo veio onde roda a turbina, encontra-se um gerador elétrico, o qual transforma a energia mecânica em energia elétrica. Entretanto, o vapor é arrefecido num condensador11 , que obriga a água a retornar ao estado lı́quido. Esta água é introduzida na caldeira e o processo é reiniciado (ver Figura 1.4). Figura 1.4: Esquema de uma central térmica convencional; Fonte: Kalipedia. O rendimento, isto é, o quociente entre a energia elétrica obtida à saı́da e a energia térmica colocada à entrada, das centrais térmicas convencionais é baixo, da ordem dos 35%. Acresce que o carvão é um combustı́vel extremamente poluente, contribuindo acentuadamente para a emissão de gases nocivos para a atmosfera, os chamados gases de efeito de estufa. Por estas razões, há muitos anos que não se constroem em Portugal, e na Europa em geral, centrais térmicas convencionais. A tecnologia do ciclo combinado a gás natural veio substituir a tecnologia do carvão. Nas centrais de ciclo combinado queima-se gás natural. Uma mistura de ar e dos gases provenientes da combustão empurra as pás de uma turbina de gás, à qual está acoplado um gerador elétrico, de forma a obter energia elétrica à saı́da, num processo similar ao que ocorre nas centrais térmicas convencionais. O rendimento desta transformação é também baixo, da ordem dos 30%, o que significa que uma parte substancial da energia térmica colocada à entrada não é convertida em energia elétrica. A energia térmica disponı́vel é então encaminhada para uma caldeira onde se obtém vapor por aquecimento de água que percorre as tubagens existentes nesta segunda caldeira. O vapor assim obtido é encaminhado para uma segunda turbina, esta de vapor, a qual aciona um segundo gerador elétrico, de forma a obter mais energia elétrica(ver Figura 1.5). Repare-se que esta tecnologia opera com dois ciclos: o ciclo do gás e o ciclo do vapor, daı́ o seu nome de ciclo combinado. 11 Não confundir com os condensadores elétricos, que têm inúmeras aplicações em sistemas de energia, e que são dispositivos capazes de armazenar energia elétrica. 9 Organização Figura 1.5: Esquema de uma central térmica de ciclo combinado; Fonte: Sagan-gea. O rendimento total do processo, isto é o quociente entre a energia térmica colocada à entrada na combustão do único combustı́vel, o gás natural, e a energia elétrica obtida à saı́da no conjunto dos dois geradores, é agora bem mais elevado, da ordem dos 55– 60%. O gás natural é um combustı́vel menos poluente do que o carvão, tipicamente a poluição originada pelas emissões associadas à queima de gás natural é cerca de metade das referentes ao carvão. Por esta razão, todas as centrais térmicas instaladas em Portugal, e na Europa, nos últimos anos usam esta tecnologia. Centrais hı́dricas Nas centrais hı́dricas aproveita-se o desnı́vel existente entre dois pontos do leito de um rio e o caudal de água, isto é, o volume de água que atravessa uma determinada área, na unidade de tempo, para empurrar as pás de uma turbina hidráulica e obter, depois, energia elétrica através de um gerador elétrico12 montado no mesmo veio da turbina (ver Figura 1.6). O rendimento deste processo é bem mais elevado do que o das centrais térmicas, da ordem dos 80%. Acresce que a produção de energia elétrica é conduzida com recurso a uma fonte primária renovável, o que torna estes empreendimentos extremamente valiosos. O problema das centrais hı́dricas é que não podem ser colocadas em qualquer lugar, antes requerem a existência de condições geográficas adequadas para a sua instalação. Existem dois tipos de centrais hı́dricas: as de fio-de-água e as de albufeira. Nas centrais de fio-de-água, o recurso é aproveitado na exata medida da sua disponibilidade, isto é, as condições geográficas do local não permitem o armazenamento de água: quando o recurso é insuficiente, a central para; quando o recurso excede a potência da central, o excedente é desperdiçado. As centrais com albufeira são muito mais valiosas; a albufeira é 12 Os geradores das centrais hı́dricas, e também das centrais térmicas, são do tipo designado por sı́ncrono. Os geradores sı́ncronos chamam-se alternadores. 10 O Sistema de Energia Elétrica Figura 1.6: Esquema de uma central hı́drica; Fonte: electricenergyiespn. um reservatório natural, proporcionado pela existência de condições geográficas propı́cias, que permite armazenar a água afluente. Consegue-se, deste modo, uma gestão otimizada do recurso hı́drico, pois a central pode funcionar mesmo em perı́odos de seca, recorrendo à água armazenada em perı́odos de abundância. Centrais eólicas Os aproveitamentos eólicos transformam a energia cinética associada à velocidade do vento em energia mecânica, obtida através da rotação das pás do rotor da turbina eólica. Mais uma vez, no veio onde roda a turbina eólica está instalado um gerador elétrico13 , o qual permite obter energia elétrica (ver Figura 1.7). O rendimento dos geradores eólicos depende da velocidade do vento a que estão a operar, mas situa-se, tipicamente, na casa dos 35–40%. Naturalmente que a valia dos geradores eólicos resulta de usarem um recurso renovável, isento de emissões nocivas. A sua principal desvantagem relaciona-se com a incapacidade de regularem a potência fornecida, ao contrário das centrais térmicas e hı́dricas de albufeira que possuem essa capacidade. Este problema é importante, na medida em que para conseguir balancear a geração com o consumo, condição essencial ao funcionamento do SEE, como já vimos, é necessária capacidade de regulação da potência gerada nas centrais elétricas. Uma área onde se estão a verificar evoluções assinaláveis é na instalação de geradores eólicos no mar, o chamado offshore. O motor do desenvolvimento do offshore é a progressiva exaustão dos locais com caracterı́sticas ideais em terra, a prazo, e o benefı́cio de regimes de ventos mais uniformes. Em Portugal está instalada uma unidade de demonstração de tecnologia, ao largo da Póvoa do Varzim, a 6 km de terra e 60 m de profundidade – o projeto WindFloat (ver Figura 1.8). 13 Os geradores que equipam as unidade de produção eólica são, na sua maioria, de um tipo distinto dos que equipam as centrais térmicas e hı́dricas. Os geradores eólicos são do tipo assı́ncrono, também conhecidos por geradores de indução. 11 Organização Figura 1.7: Esquema de um gerador eólico; Fonte: Nordex. Figura 1.8: Gerador eólico offshore em Portugal – projeto WindFloat; Fonte: EDP. Centrais fotovoltaicas O princı́pio de funcionamento das centrais já abordadas – térmicas, hı́dricas e eólicas – é semelhante, baseado sempre na existência de um grupo turbina-gerador. As centrais fotovoltaicas configuram um princı́pio de funcionamento completamente diferente, pois não existe, nem turbina, nem gerador. Os painéis fotovoltaicos são constituı́dos por um material – o silı́cio –, o qual, depois de convenientemente tratado, possui caracterı́sticas especiais, quando é colocado ao sol. Os 12 O Sistema de Energia Elétrica fotões, que são as partı́culas constituintes da radiação solar, deslocam os eletrões do silı́cio para uma banda de condução, onde adquirem a capacidade de se movimentarem e, assim, gerarem uma corrente elétrica. Esta corrente elétrica é contı́nua, pelo que a ligação dos painéis fotovoltaicos a uma rede elétrica de corrente alternada requer a instalação de um dispositivo de interface. Tal dispositivo designa-se por inversor, o qual transforma corrente contı́nua em corrente alternada, recorrendo a dispositivos eletrónicos de potência14 (ver Figura 1.9). Figura 1.9: Esquema de uma central fotovoltaica; Fonte: Unesa. Historicamente, a energia fotovoltaica apresentava duas desvantagens: o custo elevado e o baixo rendimento. O custo dos painéis fotovoltaicos tem vindo a descer, de forma sustentada, nos últimos anos, estando, hoje em dia, próximo dos valores praticados para os conversores eólicos. Quanto ao rendimento, os avanços não foram tão espetaculares, situando-se em valores da ordem de 10–15%, valores estes que não sofreram grandes alterações nos últimos anos. Centrais de cogeração As centrais de cogeração são centrais térmicas de pequena potência, em que energia térmica que não pode ser convertida em energia elétrica é usada numa aplicação útil. Aplicações úteis são, por exemplo, aquecimento de água para climatização de espaços (aquecimento e refrigeração, num processo conhecido como trigeração), ou calor necessário em processos industriais. 1.3.2 Transporte A atividade de transporte de energia é exercida no modo de concessão exclusiva e em regime de serviço público. O concessionário da Rede Nacional de Transporte (RNT) é a 14 A eletrónica de potência teve um desenvolvimento assinalável nos últimos anos, sendo, hoje em dia, correntemente utilizada para otimizar a ligação das fontes de energia renovável (principalmente eólica e fotovoltaica) à rede elétrica. 13 Organização Redes Energéticas Nacionais (REN – www.ren.pt). A REN exerce também a função de operador do sistema, a quem cabe a gestão técnica global do SEE. Pelo uso da RNT, a REN recebe uma tarifa, que é regulada pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE – www.erse.pt). A RNT é composta pela rede de MAT (ver Figura 1.10). Em Portugal existem três nı́veis de tensão MAT: 400 kV, 220 kV e 150 kV15 . A rede de transporte é constituı́da quase exclusivamente por linhas aéreas, englobando apenas alguns troços em cabo subterrâneo, explorados a 220 kV e 150 kV, nomeadamente na região da Grande Lisboa. Figura 1.10: Rede Nacional de Transporte (RNT); Fonte: REN. Na RNT existem transformadores para adaptar os nı́veis de tensão no interior da RNT (MAT/MAT) e transformadores para fazer a interface entre a RNT e a RND em AT (MAT/AT). Os transformadores estão alojados nas chamadas subestações. 1.3.3 Distribuição A atividade de distribuição de energia é exercida no modo de concessão exclusiva e em regime de serviço público. O concessionário da Rede Nacional de Distribuição (RND) é a Energias de Portugal – Distribuição (EDP-Distribuição – www.edpdistribuicao.pt). A 15 Estes números representam o valor eficaz da tensão composta. Aliás, sempre que nos referimos a uma tensão através de um número, estamos sempre a referirmo-nos ao valor eficaz da tensão composta. 14 O Sistema de Energia Elétrica EDP-Distribuição exerce também a função de operador da rede de distribuição, a quem cabe a exploração e manutenção da RND e gerir os fluxos energéticos. Pelo uso da RND, a EDP-Distribuição recebe uma tarifa, que é regulada pela ERSE. A RND é constituı́da pelas linhas aéreas (80%) e cabos subterrâneos (20%) que operam nos nı́veis de AT e de MT. Em Portugal, usam-se as tensões de 60 kV em AT, e de 30 kV, 15 kV e 10 kV em MT. Além das linhas e cabos, as redes de distribuição são ainda constituı́das por subestações, postos de seccionamento, postos de transformação (onde estão alojados os transformadores MT/BT) e equipamentos acessórios ligados à sua exploração. A Figura 1.11 mostra um segmento da RND em AT. Figura 1.11: Segmento da Rede Nacional de Distribuição (RND) em AT; Fonte: EDP-Distribuição. A rede de BT é uma concessão municipal. A EDP-Distribuição é a titular da grande maioria destas concessões, existindo, no entanto, alguns pequenos operadores, localizados no norte do paı́s. A tensão de operação da rede BT é 400 V. Em BT usa-se também a tensão de 230 V, que é a tensão simples correspondente. 1.3.4 Comercialização A atividade de comercialização de energia é uma atividade separada da distribuição, constituindo a última atividade na cadeia de fornecimento de energia aos consumidores. É uma atividade livre, sujeita à atribuição de uma licença; em Portugal, existem diversos comercializadores de energia elétrica, que operam no âmbito do mercado da energia. O mercado da energia é o Mercado Ibérico da Energia Elétrica (MIBEL), onde os produtores fazem ofertas de venda e os comercializadores fazem ofertas de compra. O preço da 15 Organização energia resulta do equilı́brio entre a oferta e a procura e varia de hora para hora, apesar de as tarifas que os clientes pagam não refletir ainda esta variação horária. O comercializador é o representante dos seus clientes no mercado. Ele compra energia elétrica, ao preço de mercado, e vende-a aos seus clientes. Como esta operação de compra e venda requer o uso da rede de transporte e da rede de distribuição, os clientes têm de pagar uma tarifa de utilização das redes. Fora do ambiente de mercado, está também consagrada, para proteção dos consumidores, a figura do Comercializador de Último Recurso (CUR), cuja finalidade é servir de garante do fornecimento de eletricidade aos consumidores, nomeadamente os mais frágeis e os que não pretendem aderir ao regime de mercado. 1.3.5 Consumo Os consumidores de energia domésticos estão ligados na rede de BT. Os grandes consumidores podem ligar-se diretamente na rede MAT ou na rede AT; os consumidores industriais encontram-se ligados no nı́vel de MT. O diagrama de carga é a representação da potência de carga16 em função do tempo. Os diagramas de carga fornecem informação especialmente importante, pois permitem também determinar a ponta (valor máximo) e a energia consumida (área sob a curva do diagrama de carga). Na Figura 1.12 apresenta-se o diagrama de carga da rede portuguesa nos dias em que a potência pedida à rede atingiu o seu máximo anual, nos anos de 2010 e 2011. Figura 1.12: Diagrama de carga nos dias de ponta anual, em 2010 e 2011; Fonte: REN. 16 A palavra “carga” é muitas vezes usada como “potência de consumo”. 16 O Sistema de Energia Elétrica 1.4 Conclusões Neste capı́tulo apresentou-se o Sistema de Energia Elétrica (SEE) e os seus princı́pios básicos de funcionamento. O SEE é um sistema de elevada complexidade, governado por uma restrição fundamental: em cada instante, a produção tem de igualar o consumo adicionado das perdas na transmissão. No passado, o sistema de geração era composto por centrais de produção concentrada e controlada. No entanto, ao longo dos anos, a estrutura do sistema eletroprodutor tem vindo a sofrer alterações assinaláveis, com o aparecimento de geração distribuı́da, constituı́da por muitas unidades de produção de pequena potência distribuı́das ao longo da rede, em geral dependentes de recursos renováveis não controláveis, como o sol e o vento. Esta alteração estrutural está a motivar uma mudança de paradigma, de um sistema conduzido em função do consumo, para um sistema conduzido em função da geração. A descoberta das melhores estratégias para lidar com o novo paradigma, que se afigura irreversı́vel, é uma tarefa desafiante. O capı́tulo discutiu as razões que estiveram por trás das opções fundamentais tomadas: corrente alternada e não corrente contı́nua; 50 Hz e não 60 Hz; trifásico e não monofásico. Ainda neste capı́tulo, apresentou-se cada um dos cinco blocos que constitui o SEE: produção, transporte, distribuição, comercialização e consumo. Ao nı́vel do sistema eletroprodutor, abordou-se o princı́pio de funcionamento das centrais térmicas convencionais, das centrais térmicas de ciclo combinado, das centrais hı́dricas, das centrais eólicas e das centrais fotovoltaicas. Distinguiu-se a rede de transporte, que funciona no nı́vel de tensão MAT, da rede de distribuição, que funciona nos nı́veis de AT, MT e BT. Esclareceu-se o papel dos comercializadores como representantes dos clientes no mercado da energia elétrica. Finalmente, introduziu-se o conceito de diagrama de carga, como forma de representação do consumo de energia elétrica. As matérias apresentadas de forma superficial neste capı́tulo são aprofundadas nas Unidades Curriculares (UC) da área de especialização de Energia do curso de Mestrado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores (MEEC) do Instituto Superior Técnico. Nas diversas UC (ou “cadeiras”, na gı́ria popular) do perfil de Energia estudam-se, tanto do ponto de vista da teoria subjacente, como das diversas aplicações práticas, os seguintes tópicos, entre outros: • Os sistemas eletroprodutores convencional e de base renovável, e o seu impacto no planeamento e exploração do SEE. • O funcionamento da rede de transporte em regime normal, incluindo os instrumentos de cálculo computacional que permitem determinar as principais grandezas caracterı́sticas: tensões, correntes e potências, e da rede de distribuição, nomeadamente, aspetos relacionados com o seu planeamento e operação, e o projeto e cálculo das instalações e equipamentos associados. • A atividade dos mercados energéticos (eletricidade e gás) e as correspondentes transações efetuadas. • As caracterı́sticas e previsão dos consumos de energia elétrica. • Os algoritmos e metodologias avançadas de controlo, regulação e proteção do SEE, que permitem o seu funcionamento eficiente e económico. 17 Conclusões • O comportamento do SEE em regime transitório, isto é, na sequência de perturbações, como sejam, por exemplo, curto-circuitos, manobras de órgãos de proteção, descargas elétricas. • As máquinas elétricas, tais como, os transformadores, os geradores, que equipam as centrais produtoras, e os motores, presentes nas instalações de utilização da energia elétrica, e os aspetos relacionados com o seu comando e regulação. • Os modernos conversores eletrónicos de potência, que fazem a interface entre os equipamentos e o SEE, melhorando os rendimentos e otimizando a exploração dos mesmos. Rui Castro é doutorado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores, professor auxiliar da Área Cientı́fica de Energia do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Instituto Superior Técnico (IST) e investigador sénior do INESC-ID; é responsável da disciplina “Energias Renováveis e Produção Descentralizada” dos cursos de Mestrado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores e Mestrado em Engenharia e Gestão de Energia do IST; é autor dos livros “Uma Introdução às Energias Renováveis” e “Exercı́cios de Redes e Sistemas de Energia Elétrica”, publicados pela ISTPress, e autor de mais de uma centena de artigos em revistas e conferências nacionais e internacionais; no âmbito da atividade de investigação, participou em diversos projetos de colaboração com empresas, designadamente com a REN, EDP, EDA, EEM, AREAM e ERSE. Duarte M. Sousa nasceu Viana do Castelo, Portugal, in 1970. Obteve os graus de Licenciado, Mestre e Doutor em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores pelo Instituto Superior Técnico em 1993, 1996 e 2003, respetivamente. É docente no Instituto Superior Técnico desde 1993, com a categoria de Prof. Auxiliar desde 2003. É investigador no INESC-ID. Tem como interesses cientı́ficos principais a conversão eletromecânica de energia, o equipamento de RMN de campo cı́clico rápido e os veı́culos elétricos. 18