GAZET GAZETAA MÉDICA DA BAHIA A Gazeta Médica da Bahia (Gaz. méd. Bahia) [CDU: 616 051)], fundada em 1866, é o periódico oficial da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Editor Suporte Administrativo José Tavares-Neto Artigos submetidos para publicação, correspondência referente a separatas de artigos publicados, reclamações, mudança de endereços, “marketing”, propaganda e demais comunicados devem ser encaminhados à Redação da Gazeta Médica da Bahia, em atenção ao Editor, Prof. José Tavares-Neto. Conselho Editorial Aldina Barral (UFBA, CPqGM/FIOCRUZ – Salvador, BA) Aluízio Prata (UFTM – Uberaba, MG) Álvaro A. Cruz (UFBA – Salvador, BA) Ângela Maria Silva (UFS – Aracaju, SE) Edgard M. de Carvalho Filho (UFBA – Salvador, BA) Eliane Azevêdo (UEFS – Feira de Santana, BA) Ernesto Takatomi (UFU – Uberlândia, MG) Fernando Martins Carvalho (UFBA – Salvador, BA) Irismar Reis de Oliveira (UFBA – Salvador, BA) João Barberino Santos (UnB, Brasília – DF) Kátia Acuña (UFAC – Rio Branco, AC) Luiz Fernando Fernandes Adan (UFBA – Salvador, BA) Mary Clarisse Bozzetti (UFRGS – Porto Alegre, RS) Niels Olsen Saraiva Camara (USP, SP) Pedro F. C. Vasconcelos (IEC – Belém, PA) Raymundo Paraná (UFBA – Salvador, BA) Rodolfo Teixeira (UFBA – Salvador, BA) William Saad Hossne (UNESP, CUSCamilo – SP) Secretaria Jundiára Paim Diagramação Luciana Bastianelli Revisão José Tavares-Neto Permissão Copyright 2006 pertence à Gazeta Médica da Bahia da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Todos os direitos reservados. Salvo sob autorização oficial da GMBahia ou da FAMEB, nenhuma parte ou seção da GMBahia poderá ser reproduzida em qualquer forma ou por quaisquer meios. A autorização para fotocópia ou reprodução de qualquer material veiculado pela GMBahia deverá ser feito pela mesma ou pela FAMEB através de carta oficial, na qual deverão conter, o volume, o número e as páginas a serem autorizadas. Periodicidade: Semestral Tiragem: 1.000 exemplares Assinatura Gratuita: docentes e Bibliotecas de Escolas Médicas do Brasil Indexação: LILACS, Bibliografia Brasileira de Medicina Correção e Impressão APOIO Gráfica Contexto www.contexto-ba.com.br Programa de Alunos Especiais-Docentes (PAED) do Programa de Pós-graduação em Medicina e Saúde (PPgMS) da FAMEB-UFBA Redação e Secretaria Gazeta Médica da Bahia Faculdade de Medicina da Bahia/UFBA Largo do Terreiro de Jesus - Centro Histórico 40026-010 Salvador, Bahia, Brasil Tel: (55) (71) 3321-0983/ Fax: (55 (71) 3321-0383 Ramal 203 ou 207E-mail: [email protected] http://www.ufba.br/medicina/gmbahia CAP CAPAA Foto da fachada da Faculdade de Medicina da Bahia, Largo do Terreiro de Jesus (Salvador, BA, Brasil), de R. A. Read (cerca de 1903/1904) UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor Naomar Monteiro de Almeida Filho FACULDADE DE MEDICINA DABAHIA Diretor José Tavares Carneiro Neto Vice-diretor Modesto Jacobino Substituto Eventual do Vice-Diretor Déa Mascarenhas Cardozo Representante no CONSEPE Fernando Carvalho Secretários Sônia Celino, Denise Sapucaia e Josias de Sena Colegiado do Curso de Graduação em Medicina Coordenador Mário Castro Carneiro Vice-Coordenador Sumaia Boaventura André Colegiado do Programa de Pós-graduação em Medicina e Saúde Coordenador Antonio Alberto da Silva Lopes Vice-Coordenadora Helma P. Cotrim Colegiado do Programa de Pós-graduação em Patologia Humana e Experimental (em convênio com o Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz, FIOCRUZ, Bahia) Coordenadora Aldina Maria Prado Barral Vice-Coordenadora Fabíola Cardillo (CPqGM/FIOCRUZ) Colegiado do Curso de Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho Coordenador Fernando Martins Carvalho Vice-Coordenador Marco Antônio Vasconcelos Rego DEPARTAMENTOS Anatomia Patológica e Medicina Legal Chefe Vice-Chefe Apoio Diagnóstico e Terapêutico Chefe Vice-Chefe Cirurgia Chefe Vice-Chefe Ginecologia, Obstetrícia e Reprodução Humana Chefe Vice-Chefe Medicina Chefe Vice-Chefe Medicina Preventiva Chefe Vice-Chefe Neuropsiquiatria Chefe Vice-Chefe Pediatria Chefe Vice-Chefe Iguaracyra Barreto de Oliveira Araújo Luiz Antônio Rodrigues Freitas Marcelo Benício dos Santos Luiz Erlon Araújo Rodrigues Jehorvan Lisboa Carvalho Gildásio de Cerqueira Daltro Antonio Carlos Vieira Lopes Conceição Maria Passos de Queiroz Albino Eduardo Machado Novaes Vera Formigli Marco Antonio Vasconcelos Rego Vitória Eugênia Ottoni de Carvalho Domingos Macedo Coutinho Déa Mascarenhas Cardozo Angelina Xavier Acosta ADMINISTRAÇÃO DO PAVILHÃO DE AULAS DA FAMEB (campus Canela) Sônia Felzemburg DIRETÓRIOACADÊMICO DE MEDICINA(DAMED) Coordenador Luamorena Leoni PROFESSORES TITULARES E EMÉRITOS DA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA TITULARES EMÉRITOSa Edgar Marcelino de Carvalho Filho Fernando Martins Carvalho Irismar Reis de Oliveira Lícia Maria Oliveira Moreira Luciana Rodrigues Silva Luiz Erlon Araújo Rodrigues Luiz Guilherme da Costa Lyra Marcelo Benício dos Santos Manoel Barral-Netto Oddone Braghiroli Neto Reinaldo Pessôa Martinelli Roberto Lorens Marback Zilton de Araújo Andrade Aluízio Prata Adilson Peixoto Sampaio Rodolfo dos Santos Teixeira Eliane Azevêdo Nelson Barros Orlando Figueira Sales Gilberto Rebouças Elsimar Coutinhob Roberto Santosb Armênio Guimarãesb a b Na ordem de concessão do título pela Congregação. Ainda não aprovado pelo Conselho Universitário da UFBA. DIRETORES DA FFAACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 1808 – 1828 1829 – 1833 1832 1833 – 1836 1836 – 1844 1844 – 1855 1855 – 1857 1857 – 1871 1871 – 1874 1874 – 1881 1881 – 1886 1886 – 1891 1891 – 1895 1895 – 1898 1898 – 1901 1901 – 1908 1908 – 1912 1913 – 1914 1915 – 1930 1931 – 1932 COLEGIO MÉDICO-CIRÚRGICO DA BAHIA (sem nomeação de Diretores pelo Governo Imperial) Jozé Avellino Barboza Lei de 03 de Outubro de 1832, da Regência Trina, em nome do Imperador D. Pedro II, altera a denominação para Faculdade de Medicina da Bahia Jozé Lino Coutinho Francisco de Paula Araujo e Almeida João Francisco de Almeida Jonathas Abbott* João Baptista dos Anjos Vicente Ferreira de Magalhães* Antonio Januario e Faria Francisco Rodrigues da Silva Ramiro Affonso Monteiro Antonio Cerqueira Pinto Antonio Pacifico Pereira José Olimpio de Azevedo Alfredo Thomé de Britto Augusto Cezar Vianna Deocleciano Ramos Augusto Cezar Vianna Aristidis Novis 1932 – 1933 1933 – 1936 1936 – 1946 1946 – 1950 1950 1950 – 1953 1953 – 1955 1955 – 1960 1960 – 1962 1962 – 1965 1965 – 1968 1968 – 1972 1973 – 1977 1977 – 1980 1980 – 1984 1984 – 1988 1988 – 1992 1992 – 1996 1996 – 2000 2000 2000 – 2003 2003 2003 – (*) Diretor Interino Augusto Cezar Vianna José de Aguiar Costa Pinto Edgard Rego Santos José Olympio da Silva* Francisco Peixoto de Magalhães Neto* Eduardo Lins Ferreira Araujo* Hosannah de Oliveira* Rodrigo Bulcão D’Argollo Ferrão Benjamim da Rocha Salles Carlos Geraldo de Oliveira Jorge Augusto Novis Rodrigo Bulcão D’Argolo Ferrão Renato Tourinho Dantas Plínio Garcez de Senna Newton Alves Guimarães José Maria de Magalhães Netto Heonir de Jesus Pereira Rocha Thomaz Rodrigues Porto da Cruz José Antonio de Almeida Souza Fernando M. Carvalho* Manoel Barral-Netto Orlando Figueira Sales* José Tavares Carneiro Neto CORPO DOCENTE DA FFAACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA, SEGUNDO A UNIDADE DEP AR AL AMENTAL DEPAR ARTTAMENT DEPARTAMENTO DE ANATOMIA PATOLÓGICA E MEDICINALEGAL Aldina Maria Prado Barral Amélia Maria Ribeiro de Jesus Antonio Nery Alves Filho Aristides Chetto de Queiroz Daysi Maria de Alcantara Jones Eduardo Antonio Gonçalves Ramos Eduardo José Bittencourt Studart Helenemarie Schaer Barbosa Iguaracyra Barreto de Oliveira Araújo José Américo Seixas Silva Luciano Espinheira Fonseca Junior Luis Carlos Cavalcante Galvão Luiz Antonio Rodrigues de Freitas Manoel Barral-Netto Marco Antonio Cardoso de Almeida Mitermayer Galvão dos Reis Moysés Sadigursky Paulo Roberto Fontes Athanazio Raul Coelho Barreto Filho Renée Amorim dos Santos DEPARTAMENTO DE APOIO DIAGNÓSTICO E TERAPÊUTICO Cesar Augusto de Araújo Neto Hélio Braga Luiz Erlon Araújo Rodrigues Marcelo Benício dos Santos Rosa Vianna Dias da Silva Brim DEPARTAMENTO DE CIRURGIA Agnaldo da Silva Fonseca Alfredo Rogério Carneiro Lopes André Barbosa Castelo Branco André Ney Menezes Freire Antonio Argolo Sampaio Filho Antonio Francisco Junquilho Vinhaes Antonio Gilson Lapa Godinho Antonio Marcos Ferracini Antonio Natalino Manta Dantas Carlos Alberto Paes Alves Cicero Fidelis Lopes Clotario Neptali Carrasco Cueva Danilo Cruz Sento Sé Durval Campos Kraychete Ediriomar Peixoto Matos Edson Bastos Freitas Edvaldo Fahel Epaminondas Castelo Branco Neto Gervásio Batista Campos Gildásio de Cerqueira Daltro Heitor Carvalho Guimarães Hélio Andrade Lessa Jayme Victal dos Santos Souza Jehorvan Lisboa Carvalho Jorge Luiz Andrade Bastos José Luiz Coelho José Neiva Eulálio José Siqueira de Araújo Filho José Valber Lima Menezes Juarez Araujo Andrade Juvenal Mascarenhas Nassari Leandro Publio da Silva Leite Luciano Santos Garrido Luiz Schiper Maria de Lourdes Lima Falcão Mário Castro Carreiro Mário Cesar Santos de Abreu Modesto Antonio de Oliveira Jacobino Nilo Cesar Leão Barreto de Souza Nilson Ferreira Gomes Normand Araujo Moura Oddone Braghirolli Neto Osório José de Oliveira Filho Paulo Afonso Batista dos Santos Paulo André Jesuíno dos Santos Pedro Hamilton Guimarães Macedo René Mariano de Almeida Roberto Lorens Marback Venceslau dos Reis Souza Silva Vilson Ulian Virginia Emilia Café Cardoso Pinto Vitor Lucio Oliveira Alves Wellington Alves Cavalcante DEPARTAMENTO DE GINECOLOGIA, OBSTETRÍCIA e REPRODUÇÃO HUMANA Antonio Carlos Vieira Lopes Carlos Augusto Santos de Menezes Conceição Maria Passos de Queiroz Denise dos Santos Barata Edson O’Dwyers Júnior Fortunato Trindade Hilton Pina Hugo da Silva Maia Filho Ione Cristina Barbosa Jorge Luiz Sapucaia Calabrich Maria da Purificação Paim Oliveira Burgos Maria Teresa Rebouças Gonçalves de Azevedo Nélia Maria Dourado Lima Barreto Nilma Antas Neves Olivia Lucia Nunes Costa Vera Lucia Rodrigues Lobo DEPARTAMENTO DE MEDICINA Albino Eduardo Machado Novaes Alcina Maria Vinhaes Bittencourt Alvaro Augusto Souza da Cruz Filho Ana Cláudia Rebouças Ramalho André Castro Lyra André Luiz Peixinho André Vila Serra Antonio Alberto da Silva Lopes Antonio Carlos Moreira Lemos Antonio Raimundo Pinto de Almeida Argemiro D’Oliveira Junior Carlos Roberto Brites Alves Edgar Marcelino de Carvalho Filho Edilton Costa e Silva Edmundo José Nassari Câmara Eleonora Lima Peixinho Elvira Barbosa Quadros Cortes Fernando Antonio Glasner da Rocha Araújo Francisco Hora de Oliveira Fontes George Barreto de Oliveira Gilvandro de Almeida Rosa Helma Pinchemel Cotrim Igelmar Barreto Paes Iraci Lucia Costa Oliveira Jackson Noya Costa Lima Jacy Amaral Freire de Andrade Jorge Carvalho Guedes Jorge Luiz Pereira e Silva José Alberto Martins da Matta José Antonio de Almeida Souza José Tavares Carneiro Neto Leila Maria Batista Araújo Lísia Marcílio Rabelo Luis Guilherme Costa Lyra Luiz Carlos Santana Passos Margarida Célia Lima Costa Neves Margarida Maria Dantas Dutra Maria da Glória Mota Bonfim Maria das Dores Acioli de Lima Maria Ermecília Almeida Melo Maria Georgina Barbosa Maria Margarida dos Santos Britto Maria Zenaide Gonzaga Murilo Pedreira Neves Júnior Newton Sales Guimarães Octavio Henrique Messeder Raymundo Paraná Ferreira Filho Regis de Albuquerque Campos Reinaldo Pessôa Martinelli Roberto José da Silva Badaró Romário Teixeira Braga Filho Roque Aras Júnior Roque Pacheco de Almeida Tania Morais Regis Tarcisio Matos de Andrade Thomaz Rodrigues Porto da Cruz Vitória Regina Pedreira de Almeida DEPARTAMENTO DE MEDICINAPREVENTIVA Annibal Muniz Silvany Neto Eduardo José Farias Borges dos Reis Fernando Martins Carvalho Lorene Louise Silva Pinto Marco Antônio Vasconcelos Rêgo Mônica Angelim Gomes de Lima Paulo Gilvane Lopes Pena Rita de Cássia Franco Rêgo Ronaldo Ribeiro Jacobina Sumaia Boaventura André Vera Lucia Almeida Formigli DEPARTAMENTO DE NEUROPSIQUIATRIA Ailton de Souza Melo Ângela Marisa de Aquino Miranda Scippa Antonio Fernando Bermudez Dreyer Antonio Reinaldo Rabelo Antonio de Souza Andrade Filho Arlúcia de Andrade Fauth Carlos Antonio Ferrreira Teixeira Célia Nunes Silva Domingos Macedo Coutinho Irismar Reis de Oliveira José Cortes Rolemberg Filho José Marcos Pondé Fraga Lima Mario Ernani Ancilon Cavalcanti Miriam Elza Gorender Magalhães Rita de Cássia Saldanha de Lucena Roberto Miguel Correia da Silva Rosa Garcia Lima Vitoria Eugênia Ottoni de Carvalho Waldeck Barreto D’Almeida Wania Marcia Aguiar William Azevedo Dunninghan DEPARTAMENTO DE PEDIATRIA Angela Peixoto de Mattos Angelina Xavier Acosta Crésio de Aragao Dantas Alves Cristiana Maria Costa Nascimento de Carvalho Déa Mascarenhas Cardozo Dulce Emilia Moreira C. Garcia Edilson Bittencourt Martins Edna Lucia Santos de Souza Hagamenon Rodrigues da Silva Hugo da Costa Ribeiro Junior Isabel Carmen Fontes da Fonseca Lara de Araújo Torreão Licia Maria Oliveira Moreira Luciana Rodrigues Silva Luís Fernando Fernandes Adan Luiza Amélia Cabus Moreira Maria Betânia Pereira Toralles Maria do Socorro Heitz Fontoura Nadya Maria Bustani Carneiro Silvana Fahel da Fonseca Solange Tavares Rubim de Pinho Suzy Santana Cavalcante Vanda Maria Mota de Miranda GAZET GAZETAA MÉDICA DA BAHIA Volume 76 • Suplemento 2 ISSN 0016-545X Dezembro 2006 SUMÁRIO/CONTENTS Editorial A Genialidade e Contemporaneidade de Nina Rodrigues .......................................................................... 1 Antonio Carlos Nogueira Britto Artigos Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro ................................................................................................ 3 Maria Theresa de Medeiros Pacheco Nina Rodrigues, Psiquiatra: Contribuições de Nina Rodrigues nos Campos da Psiquiatria Clínica, Forense e Social ..................................................................................... 11 Ronaldo Ribeiro Jacobina Nina Rodrigues e a Constituição do Campo da História da Arte Negra no Brasil ..................................... 23 Marcelo N. Bernardo, Eliane Nunes, Juipurema A. Sarraf Sandes Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia ............................................................................................. 29 Jaime Sodré Raymundo Nina Rodrigues: Resgate da Memória na Documentação Arquivística da Faculdade de Medicina da Bahia .................................................................................... 35 Zeny Duarte, Teresa Coelho, Ademir Silva, Lúcio Farias, Victor Souza, Jeane Almeida, Ana Araújo, Lázaro Castro, Aline Carvalho A Psicologia no Tempo de Nina Rodrigues ............................................................................................. 42 Nádia M.D. Rocha, Bianca Lepikson, Maria M. Brandão Quando a Desigualdade é Diferença: Reflexões sobre Antropologia Criminal e Mestiçagem na Obra de Nina Rodrigues ........................................................... 47 Lilia Katri Moritz Schwarcz Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás .................................................................................................. 54 Sergio F. Ferretti Resenha Bibliográgica Os Livros Esquecidos de Nina Rodrigues ............................................................................................... 60 Mariza Corrêa Nota Histórica A Faculdade de Medicina da Bahia na Época de Nina Rodrigues ........................................................... 63 Antonio Carlos Nogueira Britto Normas para Publicação Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S1-S2 1 EDITORIAL A GENIALIDADE E A CONTEMPORANEIDADE DE NINA RODRIGUES Era um moço preparatoriano, de olhos melancólicos e de estatura pouca vigorosa e aparência hipoteticamente lívida e que teve berço em Vargem Grande, na província do Maranhão, a quatro de dezembro de mil oitocentos e sessenta e dois, sendo batizado com o nome de Raymundo Nina Rodrigues e que havia, nesta cidade da Bahia, desembarcado do vapor “Bahia”, procedente dos portos do Norte, a 9 de março de 1882. No dia seguinte, pela manhã, já se encontrava na secretaria da Faculdade de Medicina da Bahia, passando às mãos do amanuense requerimento ao diretor da Faculdade, Conselheiro Francisco Rodrigues da Silva - (1830-1886) – solicitando fosse matriculado no 1.º ano do curso médico da dita instituição de ensino de Medicina, petição referendada pelo diretor Cons. Rodrigues, em data de 15 de março de 1882. Jamais poderia imaginar aquele estudante maranhense, dotado de incomum intelecto e ávido em cultivar a inteligência e a metódica pesquisa científica, eminentemente prática, que, volvida uma centúria da sua morte, aos 43 anos de idade, hodiernos médicos legistas, criminalistas, psiquiatras, psicólogos, legisladores, patologistas, sexólogos, antropólogos, deontólogos, juristas, etnólogos, sociólogos, africanistas, folcloristas e museólogos, do Brasil e de outros países, fossem movidos, plenos de entusiasmo e inexcedível fascínio herdados dos ensinamentos do sábio do Maranhão, a realizarem trabalhos de pesquisas, colóquios, congressos e eventos outros e publicarem trabalhos em derredor dos conceitos esposados por Nina Rodrigues, mormente sobre as suas teses relativas à Medicina Legal, e teorias respeitantes às definições raciais e concernentes à Medicina Judiciária, criminologia e moléstias da época do emérito cientista. Pesquisas foram levadas a efeito por eminentes estudiosos em etnografias e religiões afro-brasileiras e mestiçagem e rituais religiosos dos yorubás e de variadas etnias de crenças fascinantes, ocultas e obscuras, da mãe África e sua liturgia, sua arte religiosa e mitologia, detendo-se, ademais, nos fenômenos de transe espírita, delírios hipnóticos e histeria da raça negra. Desde a sua graduação em Medicina, no Rio de Janeiro, quando sustentou tese inaugural intitulada “Das amyotrophias de origem peripherica”, em fevereiro de 1888, tornou-se respeitado e admirado pelos seus coevos. Reverenciado e polêmico na Bahia, nos tempos de antanho e nos dias atuais, em todo o Brasil e no Exterior - que o digam os seus egrégios pares de Congregação, que não permitiram a publicação da sempre atual memória histórica, de sua lavra, referente ao ano de 1896, quando exarava acerbas e verossímeis críticas ao ensino prático e clínico do sobredito ano na Faculdade de Medicina e de Farmácia da Bahia. Por outro lado, são assaz conhecidas as manifestações de apreciação, consideração e respeito por Nina Rodrigues patenteadas por homens de ciências de países outros, como os Profs. Drs. Paul Camille Hypolite Brouardel, Césare Lombroso e Alexandre Lacassagne, tendo Nina mantido controvérsias científicas com os dois últimos. Além do mais, eminentes professores brasileiros de Higiene, Medicina Legal, Química Médica e Direito por ele moldados, influenciados e animados e que foram luzeiros, pelo Brasil afora, das doutrinas do afamado gênio maranhense, v.g., na Bahia, em Medicina Legal, e na reverenciada “Escola de Nina Rodrigues” ou “Escola de Medicina Legal da Bahia”: Afrânio Peixoto, Oscar Freire de Carvalho, Estácio de Lima, Maria Theresa de Medeiros Pacheco e Lamartine de Andrade Lima. Publicou ativamente suas extraordinárias obras na Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia; fundou a Sociedade de Medicina Legal, em 1895, além de um periódico, Revista Médico-Legal da Bahia e foi redator-gerente da Gazeta Médica da Bahia durante muitos anos. Em despacho manuscrito, datado de 09 de agosto de 2005, endereçado ao Dr. Lamartine de Andrade Lima e a mim, o Prof. Dr. José Tavares-Neto, digno e dinâmico diretor da provecta e estóica Faculdade de Medicina da Bahia, da Universidade Federal da Bahia, no largo do Terreiro de Jesus, indagou-nos: “Vamos planejar o Ano “Nina Rodrigues” em 2006?” E, mais adiante, acrescentou: “Isso foi pensado após conversa com o Prof. Lamartine” e ofereceu os seus préstimos para “publicar um suplemento da Gazeta com alguns trabalhos sobre o Prof. Nina Rodrigues e, por ser muito atual, sua Memória sobre a Faculdade de 1897.” 2 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S1-S2 Graças ao idealismo do Prof. Dr. José Tavares-Neto§, que tornou a ressuscitar a histórica e respeitável Gazeta Médica da Bahia, fundada em 1866, e da qual é editor, historiadores, legistas, antropólogos, criminalistas, museólogos e africanistas prestam, por meio de artigos de qualidade de excelentes, um sentido e solene tributo de respeito e admiração a Nina Rodrigues e a suas obras imortais, no azo da celebração do centenário do seu falecimento. Destarte, a hodierna e belíssima Gazeta Médica da Bahia, a qual Nina tanto reverenciava e tornava público seus artigos e que permanece esplendorosamente rediviva e com publicação rigorosamente pontual e edição e apresentação primorosas, traz a lume, em Suplemento, artigos elaborados aqui em Salvador e alhures em derredor da personalidade sedutora do Prof. Dr. Raymundo Nina Rodrigues e de suas obras singulares e sempre atuais. Por outro lado, o Dr. Lamartine de Andrade Lima, legista de escol, mentor intelectual, na Bahia, de parte dos eventos que fazem recordar o centenário do desaparecimento de Nina, e fiel seguidor das suas idéias e ideais e “expert” na existência prestante daquele notável cientista e nas obras valiosas de sua lavra, teve a feliz iniciativa de convidar o ilustre editor da encantadora e prestigiosa revista científica Prova Material, Dr. Luís Eduardo Carvalho Dorea, jornalista, conceituado perito criminalístico e diretor geral do Departamento de Polícia Técnica da Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia, ao qual está subordinado, técnica e administrativamente, o Instituto Médico Legal “Nina Rodrigues”, para se associar à Gazeta Médica da Bahia com o escopo de ambos os afamados jornais médico-científicos celebrarem, unidos, a centúria de falecimento de Nina Rodrigues, editando artigos da lavra dos mais notáveis estudiosos sobre as obras daquele sábio. Para tanto, em reunião sobre o tema, ocorrida no gabinete do diretor da Faculdade, a mim foi conferida a subida honra e as azáfamas e grande afã de organizar as edições especiais dos dois periódicos. Cotejados os trabalhos à criteriosa apreciação à luz das precisas normas para publicação, e sendo aceitos, serão os artigos compartilhados entre ambas as publicações científicas e editadas e distribuídas em datas mais adequadas para os editores, para gáudio e enriquecimento da comunidade científica nacional. Antonio Carlos Nogueira Britto Editor Convidado – Guest Editor Presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins Salvador, Bahia, Brasil § Em 2005, a Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) aprovou, como parte dos preparativos do Bicentenário da FAMEB - a ocorrer em 18 de Fevereiro de 2008 -, que o Memorialista do período de 1997 a 2007 será a Professora Emérita Dra. Eliane S. Azevêdo. Com esse propósito, carece que toda a Comunidade da FAMEB e da UFBA procure encaminhar à Sra. Memorialista ([email protected]) informações e relatórios para que a mesma melhor conte a história da última década do Bicentenário. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10 Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro 3 Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro Nina Rodrigues and the Brazilian Civil Law Maria Theresa de Medeiros Pacheco Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, Salvador, Bahia, Brasil O Alienado no Direito Civil Brasileiro: O Professor Nina Rodrigues comentou em “Apontamentos”, o Projeto Clovis Bevilaqua para o Código Civil Brasileiro. Dividiu a matéria em quatro capítulos: I) As condições da insanidade mental, II) A incapacidade civil nos estados de desordem mental, III) A interdição dos Alienados, IV) A proteção legal para o alienado, terminando pela exigência da perícia médico-forense para o doente mental e as circunstancias que o envolvem no Brasil como um correto caminho de preparação para um Código Civil. Palavras-chave: Código Civil Brasileiro, doenças mentais, Psiquiatria Forense. The alienated in Brazilian Civil Law: Professor Nina Rodrigues commented in “Apontamentos”, Clovis Bevilaqüa project for the Brazilian Civil Code. The subject matter was divided into four chapters: I) The conditions of mental insanity, II) The civil inability in the States of mental disorders, III) The interdiction of the alienated, IV) Legal protection for the alienated, terminating in the study of medical examination in forensic psychiatry: Reforms that have been requested in Brazil, a way of preparing it in the civil code. Key-words: Brazilian Civil Code, Mental Diseases, Forensic Psychiatric. Na página seguinte, obedecendo à representação gráfica do início do século XX, 1901, a autora deste comentário analisa, com reproduções de alguns textos originais, a notável contribuição do Prof. Raymundo Nina Rodrigues ao Projeto Clovis Bevilaqüa. Na ADVERTÊNCIA que antecede a ilustrada e cuidadosa exposição do Mestre Nina, comenta ele, com justo critério, as referências e transcrições efetuadas sobre o Projeto, preocupado com a “rigorosa fidelidade nas citações” e também pelo receio que “da tradução de traduções, pudesse originar graves adulterações do pensamento do autor do Projeto”. Desse modo, Nina Rodrigues transcreveu, no idioma dos tradutores, o que os vários Códigos informavam e que não conseguiu ele verificar nas leis originais. Aconteceu, assim, com o Código Civil alemão, que foi consultado através do Code Civil allemand et loi d’introduction, Paris, 1987, de Raoul de la Grasserie; para o Código Civil do Japão foi pesquisado Recebido em 2/9/2006 Aceito em 10/12/2006 Endereço para correspondência: Dra. Maria Theresa de Medeiros Pacheco, Av. Princesa Isabel, 709, Edf. Marseille, Apt. 2001, Barra Avenida, CEP 40130-030, Salvador, BA., Brasil. Tel.: (71) 3264-9068. E-mail: [email protected]. Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):3-10. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. o Code Civil de L’Empire du Japon, Paris, 1898, de Motono e Tomii; para a consulta ao Código Espanhol foi utilizado o Code Civil Espagnol, Paris, 1890, de A. Leve; nas verificações ao Código holandês, valeu-se o autor do Les Codes Nerlandais, Paris, 1886, de G. Tripels; no estudo dos Códigos da Áustria e da Luziania foi apreciada a Concordance entre les codes civiles étrangers et le code français, Bruscelles, 1842, de Saint-Joseph. Julgamos da maior importância as informações precedentes para um mais elevado juízo do criterioso trabalho científico elaborado pelo autor dos Apontamentos – Nina Rodrigues – estudando Clovis Bevilaqüa. Á INTRODUÇÃO que aparece como se fora prefácio ao exame do Projeto Bevilaqüa, Nina Rodrigues se congratula com os governos pela iniciativa de consultarem as corporações e pessoas ligadas ao exercício das perícias, a interpretação das leis, ao estudo da relação – comportamento humano e leis, dando condições de discussão ampla sobre o assunto. Na qualidade de médico legista e Professor de Medicina Legal, sentiu-se o autor a cumprir o dever de ofício de contribuir para a dotação, o mais correta possível, de um código civil brasileiro, analisando Bevilaqüa. Naquele ano de 1901, o Professor Nina Rodrigues, no curso letivo que professara aos seus alunos de Medicina Legal, já comentava com proficiência o Projeto de Código Civil Brasileiro, do Dr. Bevilaqüa, e relembrava a importância de um Código Civil, conforme aludia Teixeira de Freitas: “o essencial 4 Maria Theresa de Medeiros Pacheco Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10 Nota do Editor: reprodução do documento original com a assinatura do ilustre Diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, de 1901 a 1908, o Professor Alfredo Thomé de Britto, também concunhado de Nina Rodrigues. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10 Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro na construção de um Código é que cada um o faça em boa fé, que não procure exceder-se, que não se esforce em vão por parecer o que não for”. Refere, ainda, a informação de um colega e amigo, Francisco da Veyga, professor de Medicina Legal da Faculdade de Medicina de Buenos Aires, que se queixava do Código Civil Argentino, onde o desconhecimento da Medicina Legal era patente. Em Clóvis Bevilaqüa, entretanto, a Medicina Legal ocupava alguma parte de seu conteúdo, embora apresentasse grandes falhas que se acentuaram com a revisão efetuada por uma comissão especial de cultores das lei habituados e familiarizados com o Direito, porém, distantes dos conhecimentos da biologia, assim, da Medicina. Nina Rodrigues, ao estudar e considerar o Projeto Bevilaqüa, fê-lo particularmente, e estendeu a apreciação a partir da legislação utilizada em nosso país, mas, também aos diversos projetos de códigos como aqueles do Dr. Coelho Rodrigues, o projeto Felício dos Santos e o Esboço de Teixeira de Freitas, a todos apontando-lhes omissões, uma das principais: a ausência da psiquiatria forense no direito civil brasileiro. No índice que resume sua vastíssima colaboração a que chamou, humildemente, de Apontamentos, Nina Rodrigues esquematizou seu trabalho, dividindo o assunto em quatro capítulos que perfizeram 267 páginas bem elaboradas, bem descritas, repletas de citações em muitos idiomas. CAPÍTULO PRIMEIRO ÍNDICE 1. Os Estados de insanidade mental I. Definição ou enumeração legal dos estados de insanidade mental que excluem ou restringem a capacidade civil: Insanidade permanente ou duradoura e insanidade transitória. II. Os estados de insanidade mental permanente; loucura. III. A definição do Projeto Bevilaqüa. IV. Afasia; surdo, mudez. V. Embriaguez habitual. VI. Prodigalidade e jogo inveterado. VII. Fraqueza mental senil. VIII. A insanidade mental transitória no Projeto Bevilaqüa. IX. Modificações propostas ao Projeto. 5 X. A insanidade mental nas Ordenações, no Esboço de Teixeira de Freitas, e nos projetos Felício dos Santos e Coelho Rodrigues. OS ESTADOS DE INSANIDADE MENTAL ESTADOS MÓRBIDOS Notável é o comentário inicial, pleno de esclarecimentos científicos que fez o Professor Nina Rodrigues em relação aos Códigos e os portadores de doenças mentais, a classificação e a conceituação frente à capacidade civil dos indivíduos. Haveria que distinguir, de logo, as patologias mentais que afetassem realmente a capacidade civil das pessoas. Difícil, entretanto, à oportunidade, chegar a bom termo, com os parcos conhecimentos da distinção entre “doenças mentais ou cerebrais como a loucura e a afasia; ou de invalidez mental como a imbecilidade, a idiotia, a surdo-mudez; ou de simples anormalidade psíquica, como os estados sonambúlicos e hipnóticos, as paixões, a embriaguez, etc., ou mesmo condições psicológicas especiais como a involução senil. A insuficiência mental para o exercício dos direitos civis é um efeito, uma conseqüência de causas múltiplas, que não podem entrar numa família natural ou constituí-la”. São apreciações do Mestre Nina, ao pé da letra, em seus célebres apontamentos que ora estudamos. Assim, dificílima para a redação dos Códigos, assinalar, ao alvitre dos legisladores, quando estaria o individuo incapacitado legalmente para exercer sua cidadania, qualquer que fosse sua causa psíquica. Informa o Mestre haver encontrado no Código Alemão a especificação casuística dos estados de insanidade mental, distinguindo a moléstia ou alienação mental, a fraqueza intelectual, a prodigalidade, a embriaguez habitual, os estados de inconsciência ou de perturbações momentâneas da atividade do espírito. Foi a grande dificuldade para a conceituação jurídica da loucura e sua relação aos Códigos vigentes, à época, assim o Processo permaneceu inconcludente por muitas décadas, em diferente significação médica ou judiciária, ou melhor, ausentes às interpretações científica ou jurídica. O Projeto Clóvis Bevilaqüa, na visão de Nina Rodrigues, seguiu os postulados emanados do Esboço do Código Civil de Teixeira de Freitas que desconhecia quase completamente a psiquiatria forense; é que Teixeira de Freitas tomou como modelo as classificações de Pinel e de Esquirol, já abandonadas, e até mal copiadas ou mal compreendidas (Estudios Médicos-Legales sobre el Código Civil Argentino. Buenos Aires, 1900, p. 267). O projeto Clóvis Bevilaqüa classificou os estados de insanidade mental em três nosologias, a saber: moléstias mentais, surdo-mudez e perturbações mentais transitórias. Utilizou o termo alienado do Esboço do Projeto Teixeira de 6 Maria Theresa de Medeiros Pacheco Freitas(1) para referência às moléstias mentais, estendendo a expressão para alienados de qualquer espécie, ao que a comissão revisora preferiu o epíteto “loucos de todo o gênero” da consolidação das Leis Civis, advindas do Código Penal de 1830. Nina Rodrigues opõe-se a expressão “loucos de todo o gênero”, acompanhando e citando o pensamento transformado em letra do ilustre jurisconsulto Tobias Barreto: “Os loucos de todo gênero, a soma de todos eles é sempre inferior ao total dos que são irresponsáveis em conseqüência desse desarranjo (na economia psíquica) e daí podem resultar, como de fato tem resultado, não poucas injustiças no exercício da penalidade”(2). Comentários da mais alta capacidade e amplitude oferece Nina Rodrigues sobre a expressão alienação mental cuja origem está na Lei de 1838, do Código Francês, embora Pinel e Esquirol já a empregaram em diversas oportunidades no domínio das ciências médicas, porem, somente a partir da lei de 1838 entrou para a terminologia jurídica, o que sempre suscitou dúvidas, discussões e polêmicas de toda a espécie. Segundo Nina, ninguém melhor que Paulo Zacchias definiu a alienação mental. Ainda, conforme Nina, diante de tantas dúvidas não se poderia aceitar que o termo alienação mental do Projeto Bevilaqüa se aplicasse, genericamente, a todos os casos de doença mental, que, segundo ele, afora a surdo-mudez, deveria compor a legislação civil de um país. O próprio Bevilaqüa externou sua dificuldade em explicar a incapacidade em confronto com interdição, porquanto refere Nina a incapacidade tem mais extensão do que a interdição, pois nem todos os incapazes serão forçosamente interditos. Continuando seu belíssimo e criterioso julgamento, pois o que vem de critério é sempre bonito, ainda uma vez, Nina Rodrigues observa que na parte especial do Código de Bevilaqüa a expressão alienados de qualquer espécie deu azo a interpretação de casos de incapacidade civil por estados de insanidade mental estranhos à alienação. Finaliza Nina Rodrigues: “a não ser de fato, por uma convenção de puro arbítrio, jamais se conseguirá incluir, em loucos de todo o gênero, todos os casos de incapacidade civil por anormalidade ou perturbação psíquica, de que o Projeto não se ocupou, dando-os naturalmente por compreendidos naquela rubrica genérica. E estes são casos não só de estados permanentes de insanidade mental como de estados transitórios”. Na observação sobre o que o Projeto chamava de fraqueza mental senil, lembra o Mestre Nina os belos estudos de Legrand du Saulle, alienista e médico legista que dividia a velhice em três formas mentais: o estado rigorosamente fisiológico, o estado misto e o estado patológico, que se traduzia na demência senil. Daí, afirma Nina, a necessidade do ensino (1) (2) Teixeira de Freitas: Consolidação das Leis Civis, Rio de Janeiro, 1876, p. 25. Tobias Barreto: Menores e Loucos em direito Criminal, Rio de Janeiro, 1884, p. 125. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10 imediato da psiquiatria forense que se juntaria à perícia médicolegal, para diagnosticar tais situações de demência senil. A ausência de tão importante nosologia e seu respaldo está omissa no Projeto Bevilaqüa, conforme afirma Nina Rodrigues e relata, na qualidade de médico-legista, dois importantes casos de sua clínica médico-legal e as judiciosas observações e conclusões. “O primeiro é referente a uma velha africana octogenária, atacada, há muitos anos, de um reumatismo e de acessos de erisipela, a qual, de posse, por morte do marido, de uma pequena fortuna em alguns bens imóveis, fez hipoteca de prédios e testamento que foram denunciados como dilapidação de uma demente incapaz. O juiz mandou proceder a exame médico-legal por dois peritos médicos e estes deram parecer afirmando a existência da demência, o que motivou uma sentença de interdição. Convidado a examiná-la, por dois meses a submeteu a cuidadosa observação, fazendo acurado estudo de seu estado mental. Não se tratava, absolutamente, de um estado de demência no sentido psiquiátrico restrito desta expressão. Mas nem por isso se podia considerar válido o seu estado mental. Não sabendo ler nem escrever, expressando-se com dificuldade em português, pois melhor fala o nagô, muito ignorante, embora, não de todo destituída de inteligência, trazendo do regime do cativeiro em que viveu por toda a mocidade as reservas e subserviências para com os brancos e quaisquer pessoas investidas de autoridade, sem a menor prática da gerência dos bens que até pouco tempo antes tinham sido dirigidos exclusivamente pelo marido, sem parentes ou pessoas desinteressadas que a guiassem e lhe inspirassem confiança real, compreende-se que uma velha de oitenta anos, doente, ignorando o valor de todos os atos jurídicos, cercada de pessoas que só pensam em explorá-la, acabará sendo a presa ou vítima fatal de explorações interesseiras e que como verdadeiro caso de enfraquecimento mental deve merecer proteção da lei. Mas qualquer que seja o grau de sua senilidade mental, ela não é absolutamente uma demente. A memória, quer dos fatos recentes quer dos remotos, se acha bem conservada; o raciocínio dos limites restritos em que ele pode girar é perfeito; a integridade dos sentimentos se afirma até na reserva, nas prevenções, muitíssimas justificadas, em que tem algumas das pessoas que a cercam. Esta mulher, que no Código Civil francês teria a proteção de um conselho judiciário, que no Código italiano se abrigaria na inabilitação, que, no Código alemão podia reclamar a curatela voluntária, em rigor, no nosso direito civil, assim como no Projeto Bevilaqüa não tem a necessária proteção legal, pois que para o seu estado mental não há lugar nem nos loucos de todo o gênero, nem nos alienados de qualquer espécie. O outro caso é de uma senhora de origem italiana, septuagenária, inteligente, instruída, tendo sido professora de línguas por muitos anos. Denunciada como demente e como Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10 explorada por pessoas que já a tinham levado a fazer dois testamentos, o juiz nomeou-nos para examiná-la como peritos, a mim e a outro colega. Quer na visita feita com o juiz, quer nas visitas posteriores, ela revelou-se sempre perfeitamente lúcida, razoável e correta. Acusando ligeiro enfraquecimento da memória, ela mostrava estar perfeitamente a par de todas as circunstâncias de sua vida, de que dava explicações, as mais plausíveis. A um exame direto, a uma solicitação procurada da memória, em conversação seguida e atenta, se não percebia bem a amnésia. Mas a própria examinanda confessava que, no automatismo dos atos cotidianos, a memória se revelava enfraquecida. A inteligência era, assim, normal. No entanto, a um exame bem conduzido podíamos perceber uma alteração dos sentimentos em que o enfraquecimento senil prenunciava já a próxima desorganização de sua mentalidade. Como de fatos muito naturais, ela queixava-se com insistência de que era vítima de ladroeira dos criados, tinha sofrido diversos furtos. Na demência esses fatos denunciam um grau adiantado de amnésia. Mas como este não existe aqui, devemos ter aquelas queixas como verdadeiras, explicitando-as pelo descuido, a pouca atenção que a direção da casa lhe ia merecendo, pelo enfraquecimento da sua autoridade sobre os criados. Por outro lado fazia ela grande alarde da sua generosidade. Tinha deixado de lecionar porque, possuindo do que viver, não queria prejudicar com a sua competência a outros que daquele recurso carecessem. Não queria acompanhar aos demais proprietários, elevando o preço dos alugueis das suas propriedades, pois sabia que o quadro econômico era difícil para todos. Muitas vezes havia recusado de receber os alugueis de pessoas que eram ou ela reputava pobres. Esta generosidade era suspeita. Ela denunciava os esboços de uma prodigalidade senil, precursora da demência. Mas, sem dúvida, não era ainda a demência. Esta fraqueza mental justificava, todavia, a suspeita de captações de testamento, de doações sugestionadas. Expus a situação exata ao juiz, fazendo-lhe ver que, medicamente, a senhora não era uma louca nem uma demente. Mas que se tratava de um estado de enfraquecimento mental senil do número daqueles que o Código Civil francês aplica à proteção do Conselho Judiciário. Não existindo essa providência no nosso direito, ele absteve-se de decretar a interdição, deixando que, se atos de captação aparecessem, os interessados promovessem a sua anulação. CAPÍTULO SEGUNDO ÍNDICE 2. A incapacidade civil nos estados de insanidade mental I. A Incapacidade civil nos estados duradouros de insanidade mental e nos estados transitórios. Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro 7 II. A incapacidade civil por inconseqüência mórbida no Esboço de Teixeira de Freitas, no Código Civil Argentino, nos Projetos Felício dos Santos, Coelho Rodrigues e Clóvis Bevilaqüa. III. A sugestão criminosa não é um caso de coação moral, mas sim de inconsciência mórbida. IV. A doutrina da incapacidade civil por insanidade mental no Projeto Bevilaqüa. V. A incapacidade civil na insanidade descontínua: intervalos lúcidos. VI. A capacidade de testar nos intervalos lúcidos. VII. A capacidade de testemunhar nos loucos. A DOUTRINA DA INCAPACIDADE CIVIL POR INSANIDADE MENTAL NO PROJETO BEVILAQÜA Havendo apreciado os estados de insanidade mental que excluem a capacidade civil, Clóvis Bevilaqüa incluiu os “loucos de todo o gênero”, surdos – mudos não educados, entre os absolutamente incapazes, considerando nulos os atos por eles praticados (Art. 166, §1º) e transfere (Art. 100) a curadores a sua representação nos atos civis em que os incapazes tenham de figurar. Fica estabelecida, desse modo, uma confusão médica e jurídica entre incapacidade, insanidade mental e interdição. São as várias inconseqüências que aparecem no decorrer da leitura do citado Projeto, assevera Nina Rodrigues e que ele, Nina, procurou elucidar com a luminosidade do seu entendimento e da sua cultura cientifica, notadamente médicolegal e psiquiátrica forense. INTERVALOS LÚCIDOS “O Projeto não tomou uma posição definida em face do conflito que se origina para a continuidade da interdição, da descontinuidade da loucura. Ao contrário do direito vigente, o Projeto não firmou doutrina geral sobre esta importante questão. A doutrina do nosso direito é, todavia, a adotada pelo eminente autor do Projeto. (Clovis, Direito da Família, pg. 75) que só se manifesta contrário à validez do casamento consentido em intervalo lúcido por motivo de outra ordem que não a incapacidade do contraente que deu o seu consentimento em um destes intervalos. Se destes precedentes devemos concluir que o Projeto silenciou na espécie porque não tem os intervalos lúcidos por estados de alienação, devendo, pois, na sua qualidade de estados de sanidade mental, pressupor a plenitude da capacidade civil, o seu silencio não é certamente para louvar. 8 Maria Theresa de Medeiros Pacheco Em primeiro lugar, porque longe de ser uma doutrina cuja aceitação tenha obtido o sufrágio de todos os cientistas e legisladores, a capacidade civil nos intervalos lúcidos é questão controvertida entre jurisconsultos, psiquiatras e médicos legistas, tendo, nos códigos, escritos soluções contraditórias. Em segundo lugar, porque o Projeto, violando duas vezes o propósito do seu silêncio, o fez para sufragar as doutrinas opostas, o que torna impossível saber por qual delas se decide naqueles casos a respeito dos quais não se pronunciou expressamente. A primeira vez, sentenciou, para retirar aos alienados a capacidade civil nos intervalos lúcidos, estabelecendo que não podem servir de testemunhas, art. 162, §1: os loucos de todo o gênero, ainda que nos intervalos lúcidos; a segunda vez, para conferi-la, incluindo entre os incapazes de testar, art. 1963, §2: os loucos de todo o gênero, exceto nos lúcidos intervalos. Devia o Projeto conceder ou recusar aos alienados a capacidade civil nos intervalos lúcidos? ” Achei, por oportuno, registrar, ao pé da letra, todo o comentário efetuado pelo Professor Nina Rodrigues, tão judiciosas foram suas observações sobre os intervalos lúcidos e sua doutrina, com as devidas contestações ao Projeto Bevilaqüa. Complementa Nina, citando Linas (3) que a doutrina dos intervalos lúcidos tem seu primeiro aparecimento na Lei das Doze Tábuas (451 anos antes de Cristo) portanto, há mais de 22 séculos; a capacidade civil passou do direito romano ao português, de lá para o direito brasileiro, como conseqüência, e teve a aceitação dos Códigos espanhol, argentino, mexicano, mas, não foi incluída nos Códigos francês, alemão e outros. O autor dos apontamentos ao Projeto Bevilaqüa refere que Teixeira de Freitas também foi muito infeliz na sua apreciação sobre os intervalos lúcidos. Continua Nina Rodrigues no seu comentário sobre o assunto esclarecendo que “a doutrina dos intervalos lúcidos é reconhecida por médicos e juristas, tem a sua sagração no direito escrito desde Justiniano a quem cabe ter feito a distinção justa e feliz entre os estados de lucidez equívocos e os verdadeiros intervalos lúcidos, a que chamou de “intervalla perfectíssima”. No direito romano esta doutrina teve a consagração plena dos Tratadistas.” O assunto foi, durante séculos, debatido pelos especialistas do mundo inteiro. Por último, Nina, afirmando que a análise psiquiátrica é, ao fim e ao cabo, quem vai concluir ou distinguir entre verdadeiros e falsos intervalos lúcidos, chamando a atenção que, sendo assunto de perquirição médica, juizes e leigos jamais poderão decidir. Daí, a crítica, mais uma vez, para melhor orientação do autor do Projeto, de consolidar o pensamento, no Código, e a garantia da análise médica, no particular. (3) Linas: Art. Lucidité (Médecine Légale), Dice. Encyclopedique des Sciencies méd. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10 CAPÍTULO TERCEIRO ÍNDICE 3. A interdição dos alienados I. Da interdição completa e das atenuações da interdição nas suas relações com os diversos graus da incapacidade civil no Projeto Bevilaqüa. II. O Conselho Judiciário é a atenuação da interdição mais aplicável ao nosso direito: curatela dos pródigos. III. Alienados não interditos: curadoria provisória. IV. Curatela voluntária. V. A fórmula integral da interdição dos alienados no direito moderno. A INTERDIÇÃO DOS ALIENADOS Nina Rodrigues, de relação à Interdição dos Alienados no Projeto Bevilaqüa, aponta como erro fundamental no Projeto o fato de haver colocado, no mesmo plano, “ao lado do simples fraco de espírito ou do imbecil, o maníaco ou o demente paralítico terminal; a par da simples fraqueza mental senil, a confusão mental declarada; juntamente com as loucuras crônicas ou incuráveis, os episódios delirantes, mais ou menos efêmeros, dos degenerados”. Entretanto, relembra Nina, o próprio Bevilaqüa, no art. 528 do seu Projeto coloca a deficiência mental no exercício dos direitos civis podendo ser distribuída desde a completa inconsciência das loucuras gerais às leves falhas mentais dos senis, ao desequilíbrio psíquico dos degenerados, nas suas incursões intermitentes nos domínios da loucura. Em todos esses casos nivelou o Projeto da mesma incapacidade para todos os atos civis, desde os mais graves e complexos como a aquisição ou a alienação de imóveis, a aceitação ou o repúdio de uma sucessão, até aos de simples governo da própria pessoa ou dos objetos de seu uso pessoal. No Projeto Clóvis Bevilaqüa todos os interditos por insanidade mental são equiparados aos menores de 14 anos. A interdição dos alienados com incapacidade absoluta de que trata o terceiro capítulo do Projeto, sem minorar a ação da interdição, é uma questão ultrapassada pelos próprios códigos. Há que ser levada em consideração a criação de diversas maneiras de interdição ou na permissão ao juiz ou aos tribunais de fazer um paralelo entre a extensão da curatela e a extensão da incapacidade do insano a interdizer; ainda, poderiam os curadores, por entendimento judicial, permitir certa liberdade de ação aos interditos o que seria temerário pelo desconhecimento de curadores leigos dos problemas de psiquiatria forense; ainda, que o que ficou dito acima fosse Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10 Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro estendido também aos loucos, aos surdos-mudos e aos pródigos, daí, concluir-se que a proteção da curatela do insano dependia unicamente da sua capacidade mental comprovada em perícia médica. No Brasil, acentua e chama a atenção Nina Rodrigues “a forma de governo e o abandono em que vivem os alienados” torna difícil a plena execução de um Projeto de tão grande valor. De qualquer sorte, aqui como em toda parte, a interdição absoluta deve ser reservada para casos especiais, para os estados de alienação mental completa e jamais, como quer Bevilaqüa, aos loucos de todo o gênero ou alienados de qualquer espécie. A criação, pelo legislador, da interdição relativa ou diminuída, nos casos em que a interdição completa é excessiva, é dever dos médicos brasileiros e dos estudiosos do assunto de exigirem esta medida do legislador pátrio para aqueles portadores do maior dos infortúnios humanos – a perda da razão. De referência ainda, ao assunto da curatela dos alienados, Nina Rodrigues lamenta as falhas do artigo 539, pela não observância da duração da loucura quanto a interdição e a sua suspensão. Também não cuidou Bevilaqüa da curatela em relação aos intervalos lúcidos. Ressalta, o Mestre da Medicina Legal, a supressão no Projeto Bevilaqüa, da curatela dos inválidos por moléstia física. CAPÍTULO QUARTO ÍNDICE 4. Proteção legal dos alienados I. Inspeção da curatela dos loucos. Insuficiência da fiscalização do juiz; necessidade do Conselho de Família. II. O Tratamento dos interditos por alienação mental. III. Interdição e internamento: necessidade de interdizer a todos os alienados internados nos asilos. IV. A perícia médica em psiquiatria forense: reformas que reclama no Brasil; modo de prepará-la no Código Civil. PROTEÇÃO LEGAL DOS ALIENADOS De referência a proteção pessoal do doente mental o Projeto requer bastante alteração. Não é o real interesse da cura ou da mitigação da sorte do portador da patologia mental, mas, sim, a família que não consegue manter o paciente em casa por tantos motivos por demais conhecidos, bem como as dificuldades do próprio tutor, no particular. Assim, bastante insuficientes as soluções apontadas pelo autor do Projeto, no particular. 9 Cita o comentarista vários Códigos de todo o mundo que se interessam e lutam por solucionar os problemas que Bevilaqüa deixou passar, de referencia ao direito pessoal do doente mental. “Na regulamentação do internamento, o intuito da lei não é somente precaver os interesses do alienado, mas evitar que o abuso possa transformar este meio curativo no crime de sequestração ilegal de pessoas sãs nos asilos de alienados”; chama a atenção, Nina Rodrigues, e continua: “a grande verdade, porém, é que no Brasil não existe assistência médicolegal de alienados. Onde quer que exista, dois ou três estados brasileiros, constituem exceção. Estes valem o que valem as suas direções. O Juquery é uma lição que está destinada a confundir e a anular as veleidades de competência dos povos irmãos dos outros Estados da República. O asilo de São João de Deus, da Bahia, irrisão da psiquiatria moderna, é a mais eloqüente negação da procedência dos novos mentirosos reclamos de povo civilizado” (grifo nosso). “Não é uma simples figura de retórica a denúncia que ora formulamos, sob a responsabilidade do nosso testemunho pessoal. São fatos de verificação própria”. Prossegue Nina em seus apontamentos relatando que os alienados pobres eram mandados, na Bahia, para a Casa de Correção, cujo cognome já se imagina o que seja, salas infectas, convivendo ali com assassinos e marginais de toda a espécie. Os jornais noticiavam de maneira escandalizada, sobre a bárbara situação dos alienados pobres. A opinião pública ao lado de busca de soluções e os poderes constituídos silenciando sobre tão graves condições de vida, inclusive alguns a morrerem de fome. “É incrível, mas é absolutamente exato” (Nina Rodrigues). Cita o autor dos “Apontamentos”, vários casos, nominando os protagonistas de tão tristíssimo e doloroso registo. Crime, seguramente, e previsto em lei! Nina Rodrigues relata, e, mais uma vez, peço permissão a quem possa ler este modesto trabalho, para transcrever as palavras por ele escritas em todo o teor de sua irresignação. “É dolorosa para o nosso amor próprio de brasileiros, esta confissão, em trabalho que pode vir a ser lido por homens que se devotaram ao serviço da cura e tratamento dos loucos. Mas não é lícito que todos se conspirem para se tornar cúmplices, pelo silêncio, de um crime que já se prolonga demais.” Nina Rodrigues: grandioso e destemido em suas reflexões! O Projeto Clóvis Bevilaqüa é omisso quanto às minudências para a terapia dos alienados pobres e suas modalidades para atingi-la, ao que Nina apresenta sugestões em artigos específicos ao assunto, com base em Códigos mundiais e no seu lúcido pensamento sobre nossas condições pátrias, no particular. Chama a atenção para a importância maior e primordial das perícias científicas em caso de alienados mentais na complementação de todas as providências jurídicas. As perícias médicas, segundo Nina, são indispensáveis para a 10 Maria Theresa de Medeiros Pacheco orientação de quem vai julgar. Não será o juiz quem orientará a parte médica, até porque, incapaz de fazê-lo pela ausência de conhecimento sobre a Medicina, em especial, a psiquiatria forense. Clóvis Bevilaqüa, quando da feitura do art. 232, chegou a conclusão da necessidade de que em casos de analise médica haveria que haver dois alienistas e não somente qualquer médico. Por mais competente que seja o médico clínico ou cirurgião, jamais terá a competência legítima para os misteres da psiquiatria forense. O art. 532 do Projeto Bevilaqüa é, assim, incompleto ou impossível de ser cumprido pelo aconselhamento de “ouvidos dois alienistas”..., ora, à época, difícil seria encontrar dois alienistas, mesmo nas capitais do país, que se interessassem pela perícia psiquiátrica, mesmo sendo psiquiatra, uma condição é ser psiquiatra clínico, outra é saber fazer uma conclusão a respeito da saúde mental do individuo e as conseqüências de seus atos quando a doença mental se estabelece. A dificuldade ocorreria nas capitais, imagine-se no interior deste país continental! A Comissão revisora, entretanto, mudou a expressão de “alienistas” para “profissionais”, o que foi muito bom. Conclui, Nina Rodrigues, mais uma vez, brilhantemente, dizendo que o termo que deveria ser empregado no Código seria aquela de “médicos-peritos”. Somente, desse modo, dando-se organização científica à perícia médica os exames periciais alcançarão o que pretendem os médicos, e, sobretudo, legisladores no particular nos Códigos brasileiros, no sentido de proteger a vida, a honra, e a liberdade dos cidadãos. A nobre importância da Medicina Legal é justamente aquela de exigir bases para a formação de médio-perito. Com seu domínio próprio apresenta métodos de estudos completamente diversos daqueles da clínica, não se atendo a diagnosticar e curar doentes, mas, “habilitar o juiz a avaliar o “quantum” médico do dano que o crime causou à vítima e a sociedade”. Eis a nobilíssima missão da Medicina Legal. Daí a exigência de conhecimentos das leis e da jurisprudência que não as possui, nem o clínico e nem o cirurgião. Sendo a doença mental a mais poderosa dirimente da capacidade e da responsabilidade, somente o esclarecimento médico conclusivo, através da perícia psiquiátrica poderá oferecer ao juiz condições de pleno julgamento. Assim, nasceu a verdadeira idéia da perícia psiquiátrica nos moldes oficiais, com vistas aos Códigos Civil e Penal Brasileiros, com os peritos nomeados pela justiça, através preparo especial e provas que o habilitem a exercer a difícil e complicada arte da perícia médica, na área multifária e multidisciplinar da Medicina Legal. Os Códigos Brasileiros e até os Estrangeiros, bem como a organização judiciária, devem à douta culta e vasta orientação de assuntos da maior relevância como aqueles aqui minuciosamente apreciados ao notável Professor de Medicina Legal da Bahia, naquele ano distante de 1901, portanto, há mais de um século já doutrinava Raymundo Nina Rodrigues. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10 COMENTÁRIOS O visionário cientista médico e social Professor Raymundo Nina Rodrigues, interessado na problemática da psiquiatria, no começo do século XX, mais especificamente da psiquiatria forense e suas relações com as leis civis e penais que regem o Brasil, foi o primeiro professor médico a se preocupar com a situação legal e social do psicopata rico ou pobre do país. Não era ele um psiquiatra, e sim um médico legista. Sua apreciação rigorosa, com fundamentos procurados e analisados nos Códigos mundiais, trouxe-nos a maior clarividência, permanecendo nos tratados, nos Códigos e na palavra dos doutos, nacionais e internacionais, com as mais acreditadas referências. As conclusões a que chegou Nina Rodrigues foram adaptadas ao Código Civil Brasileiro. Clovis Bevilaqüa solicitou o parecer no notável Mestre em 1901, ele o fez e o enviou ao grande civilista, porém, a lei no país somente passou a viger em 1916, quando Nina Rodrigues já havia falecido, mas, desse modo, se manteve por quase um século, porque o Novo Código Civil (Lei nº 10.406) está proclamado a partir de 10/01/2002. O que chama a atenção, sobremodo, é que tudo por que Nina Rodrigues tanto trabalhou, apontou e demonstrou às autoridades médicas, de saúde pública, aos legisladores e poderes públicos constituídos, naquele ano distante de 2001 continuam quase o mesmo, ao menos de referência aos direitos do psicopata pobre desse país. Nos manicômios judiciários, designação mudada para hospitais de custódia e tratamento, a situação é dolorosa! Pessoas ali condenadas, não pelos crimes que cometeram, mas, abandonadas pelas leis que não se cumprem neste país, ou por seus familiares... nos demais hospitais psiquiátricos a visão não se modifica... Vale repetir Nina: “É dolorosa, para o nosso amor próprio de brasileiros, esta confissão, em trabalho que pode vir a ser lido por homens que se devotaram ao serviço da cura e tratamento dos loucos. Mas não é lícito que todos se conspirem para se tornar cúmplices, pelo silêncio de um crime que já se prolonga demais.” Expressões de há um século... hoje... permanecem... Enfim, continuamos com esperança, conforme seu aconselhamento Mestre Raymundo Nina Rodrigues! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO RODRIGUES, Coelho. Projeto de Código Civil Brasileiro. SANTOS, Felício dos. Projeto de Código Brasileiro. Esboço de Teixeira de Freitas – CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO BEVILAQÜA, Clóvis. Projeto de Código Civil Brasileiro. NINA RODRIGUES E PERÍCIAS PSQUIATRAS. LINAS. Art. Lucidité (Médicine Légale), Dice. Encyclopedique dês Sciencies Méd. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 Nina Rodrigues: Psiquiatra Nina Rodrigues, Psiquiatra: Contribuições de Nina Rodrigues nos campos da Psiquiatria Clínica, FForense orense e Social. Nina Rodrigues, Psychiatrist: Nina Rodrigues’ Contributions in the Fields of Clinical, Forensic and Social Psychiatry Ronaldo Ribeiro Jacobina Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil Objetivou-se identificar a contribuição intelectual de Raymundo Nina Rodrigues ao campo da Psiquiatria Clínica, Psicopatologia Forense e Psiquiatria Social, especialmente as síndromes psicossociais e propostas para organização da assistência psiquiátrica. Um esboço biográfico situou Nina Rodrigues (NR) no tempo/espaço. NR foi professor de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia, no período de 1889 a 1906. Na trajetória de NR, destaca-se a convivência com membros da Escola Tropicalista Bahiana e a atuação na Gazeta Médica da Bahia. Sua obra sobre “coletividades anormais” foi pioneira no Brasil, destacando-se o estudo que confirma o caráter histérico da síndrome psicossocial ‘abasia coreiforme epidêmica’. Em seus estudos sobre associações criminosas (Lucas da Feira e Antônio Conselheiro), NR constatou os limites da teoria lombrosiana do criminoso nato, confrontando teoria com dados e formulou análises sociológicas válidas, até hoje, para as questões de poder no sertão brasileiro. Sua obra mais polêmica, sobre os africanos no Brasil, ficou como um patrimônio para a etnologia, pelo rigor da descrição e sistematização de aspectos culturais como crenças, dialetos e costumes. A concepção equivocada de NR sobre a mestiçagem foi criticada não só por seus sucessores e opositores, mas também por autores contemporâneos, como Juliano Moreira. No âmbito da psiquiatria social, NR formulou as bases para uma assistência psiquiátrica que serviram de roteiro para as reformas implementadas na saúde mental durante todo o século XX. Alguns de seus princípios e propostas mantém atualidade, como regionalização, hierarquização dos serviços e a atenção psiquiátrica nos hospitais gerais. Palavras-chave: História da Psiquiatria, síndromes psicossociais; degenerescência, Psiquiatria Social. This study identified Raymundo Nina Rodrigues’ intelectual contribution in the fields of Clinical, Forensic and Social Psychiatry, especially the psychosocial syndromes and proposals to psychiatric care organization. A biographic sketch placed Nina Rodrigues (NR) in his time/ space, a full professor in the traditional School of Medicine of Bahia, where he lectured from 1889 to 1906. In this time span, NR interactions with the members from the Tropicalist School from Bahia and his performance in the periodical Gazeta Médica da Bahia. His work about “abnormal colectivities” was pioneer in Brazil, especially the study that confirms the hysterical character of the psychosocial syndrome named “abasia coreiforme epidêmica”. In his studies about criminal associations (Lucas da Feira and Antônio Conselheiro), NR investigated the limits of Lombroso’s innate criminal theory, counterpoising theory to data, and formulating sociological analyses that hold until today concerning the issue of power in the Brazilian sertões hinterland. NR most polemic work, about the African people in Brazil, is a landmark in Ethnology for its descriptive strictness and systematic approach of cultural aspects, like beliefs, dialects, habits, etc. NR’s equivocal conception about racial admixture was criticized not only by his successors and opponents but also by his contemporaries, like Juliano Moreira. In Social Psychiatry field, NR stated the bases for psychiatric care that would guide reforms in Mental Health all over the XX century. Some of his principles and proposals hold till today, like regionalization, services hierarchy and psychiatric care in general hospitals. Key-words: Psychiatry History, psychosocial syndromes, degeneration, Social Psychiatry. 11 12 Ronaldo Ribeiro Jacobina Este estudo tem como objetivo identificar a contribuição intelectual do Prof. Raymundo Nina Rodrigues, catedrático de Medicina Legal, no campo da Psiquiatria e analisar algumas das produções importantes neste campo. Como é um estudo no campo da História, mais precisamente da História das Ciências, utilizaremos a “caixa de ferramenta” da metodologia histórica, sobretudo da chamada ‘história nova’. Não será um estudo biográfico no sentido mais estrito, mas vai estar centrado num intelectual que ganhou o papel de uma personagem simbólica, num conflito extremado entre os que o condenam como um racista e os que o reverenciam como um mestre inatacável. Contribuiu para a primeira imagem, o personagem Nilo Argolo do romance “Tenda dos Milagres” de Jorge Amado, catedrático de medicina legal do início do século XX, numa caricatura que pode ser ilustrada tanto pelo apelido de “Monstro” quanto no trecho em que o catedrático, pondo os braços atrás das costas, recusa-se a apertar a mão do bedel negro da Faculdade. Para a segunda, há uma longa tradição na medicina legal, dos discípulos de sua “escola” representada na descrição apaixonada do Prof. Estácio de Lima que, segundo ele, chegou a obter uma carta de desagravo a Nina feita por Jorge Amado, na qual negava a intenção de manchar a imagem do professor, o mestre venerado por Estácio. Aqui cabe numa recomendação metodológica do historiador Marc Bloch, um dos fundadores da Escola dos Annales ou ‘história nova’(6,16). Bloch nos ensina que “durante muito tempo passou o historiador por ser uma espécie de juiz dos Infernos, encarregado de distribuir pelos heróis mortos o elogio ou a reprovação”(p.161)(4). E complementa mais adiante: “Robespierristas, anti-robespierristas, por favor! Dizei-nos simplesmente quem foi Robespierre”(p.161)(4). Esta recomendação se aplica aos apologistas e aos caricaturistas de Nina Rodrigues. Em relação aos últimos, não é só na literatura que existe esta postura anti-ninista, ela existe também na produção científica. Como exemplo, já referido em trabalho anterior(15), citamos o artigo de Barros(3), onde ele acusa Nina Rodrigues de fingidor de uma postura neutra, “postura que apenas ocultava o desejo cortesão de ser reconhecido pela elite senhorial do Estado e da Academia que ele não cansava de adular”(p.446)(3). De uma forma mais sutil e conceitual esta tese também está em Maio(18). Como um contraponto, devemos lembrar que foi Nina Rodrigues, rotulado de adulador da Academia, o autor da Memória Histórica de 1896 da Faculdade de Medicina da Bahia Recebido em 11/9/2006 Aceito em 4/12/2006 Endereço para correspondência: Dr. Ronaldo Ribeiro Jacobina. Rua Santa Rita de Cássia, 167, apto. 1001, 40.150-010, Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: [email protected]. Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):11-22. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 que não foi aprovada pela sua incisiva crítica à própria Congregação que lhe demandara o relato: “Por esta lacuna, por esta falta de rigor e de aproveitamento do ensino só é responsável a Congregação a quem o Regulamento cometeu, ou impoz, o dever fiscalizar o ensino e que(...), nunca tomou a respeito a menor providência” (p.15)(25). Ainda como ilustração dessa postura, a conclusão de Barros(3): “Visando a morte da liberdade de seus iguais, Nina Rodrigues voltava a arma da morte contra seu próprio ser, sufocado por impasses sociais, intelectuais, políticos, éticos e afetivos que ele nunca foi capaz de superar”(p.454)(3). E arremata com esta pérola: “Talvez aí esteja a chave de sua morte prematura, em Paris, sem choro nem vela”(3). O curioso é que não existe um único trabalho do próprio Nina Rodrigues nas referências desse artigo onde ele foi julgado e condenado. Nem ninistas nem anti-ninistas, por favor, em lugar de julgar, que não é próprio do historiador(10), vamos simplesmente compreender Nina Rodrigues, sua contribuição, seus acertos e seus equívocos, inclusive os mais graves. Seus estudos são ainda motivo de discussão, reavaliação e polêmica, sobretudo seus pioneiros trabalhos de antropologia física e cultural, particularmente aqueles referentes ao negro africano e descendentes. Ele chegou a organizar um registro feito com mais de dois mil africanos e descendentes diretos vivendo na Bahia (Lima, L. A Escola da Bahia, 2003; texto não publicado). A maioria de seus trabalhos de antropologia criminal e de psicopatologia forense, baseada nas formulações do francês Alexandre Lacassagne e principalmente do italiano Césare Lombroso(8,38), é datada e reflete a influência desses autores europeus na época, tanto no Brasil como em quase toda a sociedade ocidental. Seguindo uma tradição não só da “escola de criminologia italiana”(38), mas da própria medicina, da “Clínica” que, desde o início do século XIX, tinha mudado o enfoque da doença para o doente(11) , Nina e seus liderados defendiam na medicina legal a mudança da ênfase do crime para o criminoso. Com a mudança, segundo Schwarcz38, não foi difícil para esses cientistas “vincular os traços lombrosianos ao perfil dos mestiços - tão maltratados pelas teorias da época - e aí encontrar um modelo para explicar a nossa ‘degeneração racial’.”(p.92)(38). Esta necessária avaliação crítica, entretanto, não deve cometer outro grave erro histórico que é o anacronismo de julgar os trabalhos do passado, exigindo deles conhecimentos do saber atual. Iniciemos com um esboço biográfico para situar no tempo e espaço o intelectual que produziu os estudos que serão analisados a seguir. BREVES CONSIDERAÇÕES BIOGRÁFICAS Raymundo Nina Rodrigues nasceu a 4 de dezembro de 1862, no município de Vargem Grande, Estado do Maranhão. Em São Luís, capital do estado, fez o curso fundamental no Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 Seminário das Mercês e o preparatório no Colégio S. Paulo(18). Em 1882, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, onde cursou a primeira e segunda série do curso médico. Transferiu-se para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde, provavelmente por motivos de saúde, estudou o terceiro e quarto período, retornando a Salvador para cursar a quinta série a . Entretanto, em 1887, foi novamente à capital do Império, cursar o último ano, quando trabalhou como auxiliar do Prof. Agostinho José Souza Lima, um grande mestre da medicina legal brasileira(17). Com o prof. Souza Lima, ele aprendeu a importância prática das autópsias, sendo sua estadia no Rio de Janeiro crucial para sua formação em Medicina Legal. Lá, em 1887, defendeu a tese de doutoramento, a chamada tese inaugural, “Das amiotrofias de origem periférica”(32,35) obtendo o diploma em 1888, ano do decreto da abolição da escravatura e véspera da proclamação da república. O médico recém-formado voltou à terra natal, estabelecendo consultório em São Luís, capital do Maranhão. Verificou, no entanto, que os seus trabalhos de pesquisa científica, fora do paradigma vigente, sofriam resistências no meio médico, onde imperava uma mentalidade avessa aos novos paradigmas. Lima (17), num artigo especial para um jornal de grande circulação, refere em especial a resistência à tese de Nina Rodrigues de atribuir a alguns problemas de saúde da população carente do local uma causalidade de origem alimentar. Ao examinar sua obra em ordem cronológica, constata-se que, nesse período (1888), ele escreveu o “Estudo sobre o regime alimentício do Norte”(18,32,35), que o coloca como um precursor no campo científico da nutrição no Brasil. Essa nova mentalidade no saber médico, que lhe foi muito útil num dos últimos estudos de sua curta vida, quando estudou a epidemia de beribéri no asilo de alienados, ele aprendeu ainda como acadêmico na FAMEB, com os estudiosos que fundaram uma revista médica de qualidade na província da Bahia. Cabe aqui ressaltar a importância dessa revista e de seus fundadores. Desde meados do século XIX, a medicina baiana se destacava, com prestígio nacional e internacional, devido a atuação de um grupo de ‘facultativos’, em especial o português José Francisco Silva Lima, o escocês John Ligertwood Paterson e outro português de origem germânica, Otto Edward Henry Wücherer, que formaram a primeira geração da chamada “Escola Tropicalista Baiana”, organizada em torno da revista Gazeta Médica da Bahia, fundada em 1866. Mais tarde, Nina Rodrigues teria um papel de destaque na revista, como colaborador assíduo, desde 1888, quando escreveu sobre a ‘lepra’, ainda morando no Maranhão, e como “redator gerente” de 1890 a 1893 [Jacobina RR & Gelman EA. Juliano Moreira e a Gazeta Médica da Bahia, 2006: no prelo]. Com o provincianismo de sua terra natal, ele decidiu definitivamente retornar a Salvador, chegando em 1889, ano Nina Rodrigues: Psiquiatra 13 da proclamação da República, quando passou a ensinar na Faculdade de Medicina da Bahia, tendo sido aprovado por concurso para Adjunto da 2ª Cadeira de Clínica Médica. Com a Reforma Benjamin Constant, em 1891, tornou-se Lente Substituto de Higiene e Medicina Legal e, a partir de 1895, Professor catedrático de Medicina Legal(32,35). Antes de identificar a contribuição intelectual de Nina Rodrigues na medicina, em seus diversos campos, destaquese nessa área uma realização institucional, que permanece nos dias atuais. Com o incêndio de 1905, na FAMEB, o Laboratório de Medicina Legal foi totalmente destruído e ele estava “equipado com modernos aparelhos de psicologia experimental” (p.313) (5) . Nina Rodrigues idealizou e acompanhou a construção do Instituto Médico-Legal como parte da nova arquitetura que ganhou a Faculdade de Medicina da Bahia. Ele faleceu em 17 de julho de 1906, em Paris, antes de ver inteiramente realizado seu projeto, mas a Congregação da FAMEB deu o seu nome ao Instituto Médicolegal, que preservou o nome do homenageado, mesmo quando foi transferido para o governo do Estado, mudando inclusive de local. Sobre a obra de Nina Rodrigues, vale reiterar que ela merece ser examinada de modo crítico, mas nunca de modo apriorístico, tornando a expressão “Nina Rodrigues” uma categoria de acusação. Desse modo, ela pode ser fonte de pesquisas históricas sobre as relações do negro e do mestiço na América portuguesa, sobre suas manifestações religiosas (iorubá, malês), suas lutas de resistência, além do registro da tradição oral, pelo contato atento com mais de dois mil pacientes escravos e seus descendentes. Numa entrevista onde é apresentado como o último dos pioneiros dos antropólogos brasileiros de formação médica(19), Thales de Azevedo destaca o precursor: “Nina Rodrigues foi um caso completamente fora do habitual, aquele interesse dele sociológico e etnológico... inclusive venceu os preconceitos da época.”(p.142)(19) . Este acervo intelectual pode ser também fonte de informações preciosas sobre a teoria e prática da medicina legal, com algumas contribuições sendo válidas até o momento atual. Outra área no campo médico onde ele deu relevante contribuição foi a da Psiquiatria, em várias de suas sub-áreas, como a psiquiatria clínica, a psicopatologia forense e a psiquiatria social, com seus estudos sobre a legislação, planejamento e administração da assistência psiquiátrica da época. O Prof. Álvaro Rubin de Pinho, que se inclui entre os seus herdeiros intelectuais, diz que Nina Rodrigues tem uma das obras mais criativas da Psiquiatria brasileira, destacando seus estudos sobre as “coletividades anormais”, neuroses e psicoses coletivas (como a “caruara” e o evento de Canudos); os estudos etnográficos sobre os africanos no Brasil, que abriria no país o campo referido pelo Prof. Rubin de Pinho como Psiquiatria transcultural; e a análise e as propostas para o sistema de assistência psiquiátrica do país b. 14 Ronaldo Ribeiro Jacobina O PSIQUIATRA NINA RODRIGUES Diante dessa obra multifacetada, o enfoque neste trabalho sobre o legado intelectual de Nina Rodrigues não será prioritariamente aquele deixado para a Medicina Legal nem para a Etnologia, mas aquele produzido para a Psiquiatria, com destaque a dois de seus estudos sobre transtornos mentais em coletividades, onde apesar de expressar a sua crença na mestiçagem como fator de degeneração, identifica os fatores psicossociais; e sua análise crítica da assistência psiquiátrica na Bahia, onde está também o seu original estudo de “epidemiologia” sobre a determinação e distribuição de epidemias que grassavam na população dos asilos da época, que analisei em estudos anteriores(12,15) . Uma das “Coletividades Anormais”: as epidemias histéricas no Maranhão e na Bahia A denominação “coletividades anormais”, que estava em nota de trabalho publicado sobre Marcelino Bispo em 1889 e num manuscrito encontrado por Ramos(36), serviu para abranger tanto os estudos de psicopatologia das multidões – como as loucuras epidêmicas, como sua tese de ‘loucura religiosa’ para o episódio de Canudos, quanto os das associações de degenerados criminosos, como Lucas da Feira, ou o “crime a dois” do regicida Marcelino Bispo e Diocleciano Martyr. Esse discípulo, ao editar o livro “As coletividades anormais”, acrescentou um dos primeiros trabalhos do mestre sobre uma “moléstia singular”, depois reconhecida como uma “coreomania” histérica, e identificada como “abasia coreiforme epidêmica” por Nina Rodrigues, usando a terminologia de Charcot. Essa epidemia despertou o interesse de Nina Rodrigues pelos fenômenos de psicologia coletiva c. O uso do termo coréia, cujo sentido etimológico vem do grego e significa “dança” (9) abrange um conjunto de afecções, como a coréia de Sydenham, de origem infecciosa, que desde a idade média ganhou nome de santos, Dança de São Vito ou de São Guido; a coréia de Huntington, doença neurológica de origem genética; e os quadros coreiformes de natureza psíquica. a Para o editorial da Gazeta Médica, publicado logo após sua morte, Nina Rodrigues teria se matriculado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1882, porém a preocupação com a “saúde física” fez com que ele se transferisse para a FAMEB, em 1884, “aqui cursando a 3ª, a 4ª e a 5ª séries médicas, voltando a cursar em 1887, o 6° anno médico no Rio de Janeiro, onde publicou sua conscienciosa dissertação inaugural” (p.57-58) (35). b Entrevista com o Prof. Álvaro Rubin de Pinho, “Memória viva da Psiquiatria Brasileira”. Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1989. c O capítulo “Abasia coreiforme epidêmica no norte” tinha sido publicado no Brasil Médico, números 42 a 43, de 15 e 22 de novembro de 1890, mas ele também foi publicado na Gazeta Médica da Bahia. (23) Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 De início, o autor faz uma história social dessas últimas, citando as afecções coreomaníacas e convulsionárias que assolavam a Europa da Idade Média. Se havia dúvidas sobre sua natureza no passado, para Nina Rodrigues, as manifestações epidêmicas do seu tempo (cita a observada por Davy nos EUA, em 1880, e por Bouzol em Ardèche, sul da França, em 1882) foram esclarecidas pela interpretação proposta pelo prof. Charcot, como manifestações de histeria, que “operando em um meio favoravelmente predisposto, se irradia e espraia com o auxilio efficaz da imitação em torno de um fóco accidental em que muitas vezes circumstancias inteiramente fortuitas congregaram e reuniram alguns casos isolados de uma qualquer das manifestações mais insolitas da grande nevrose” (p.396-7)(23). No Brasil, ele refere que, antes da epidemia que ocorreu na Bahia, a chamada “moléstia de Itapagipe” (por ter iniciado naquele bairro de Salvador, na época, um subúrbio aprazível), testemunhou ainda bem jovem uma epidemia semelhante no Maranhão: “Não era eu ainda medico, quando os presenciei; mas o espectaculo extranho que o offerecia por aquella época a pequena cidade de S. Luiz, com as ruas diariamente percorridas por grande numero de mulheres principalmente, amparadas por duas pessoas e em um andar rythimico interrompido a cada passo de saltos repetidos, genuflexões e movimentos desordenados, me deixou uma impressão profunda e duradoura” (p. 397)(23). Além do seu testemunho, ele solicitou o depoimento de um clínico com mais de trinta anos de prática, Dr. Afonso Saulnier. O médico, através de carta datada de 1890, referia o ano de 1878 para a epidemia em São Luís (com dados de jornais, Nina Rodrigues confirmou o início no ano anterior), distinguiu bem esses quadros coreiformes, que a população chamava de “tremeliques”, da coréia de Sydenham, porém a considerou de origem beribérica(23) . Sobre a manifestação epidêmica na Bahia, ocorrida no início da década de 80 do século XIX, o autor encontrou dados publicados na Gazeta Médica da Bahia. Desde outubro de 1882, no item “moléstias reinantes” da revista, tinha uma descrição do surto: “Uma moléstia singular tem sido observada há alguns mezes no subúrbio de Itapagipe, mais raramente na cidade. Os simptomas principaes, ou pelo menos os mais apparentes são movimentos choreiformes á primeira vista, (...) As pessoas affectadas depois de caminharem naturalmente em apparencia por algum tempo, dobram de repente uma ou ambas as pernas, ou o tronco para um dos lados por alguns minutos, como se fossem coxas, paralyticas, ou cambaleassem, continuando depois a marcha regular” (p.190-1)(30). Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 Outros dados relevantes já estavam nessa breve notícia, como a observação de que as pessoas afetadas por essa doença não fatal, eram de ambos os sexos e “pouco adiantadas em idade”, não caíam e podiam subir e descer ladeiras e escadas sem dificuldades; não apresentavam outras alterações notáveis nas demais funções do corpo; e somavam “para mais de 40 casos d’esta singular moléstia, originada em um dos mais saudáveis subúrbios” de Salvador(30). Neste último comentário estava implícito o afastamento de uma possível determinação miasmática da doença, teoria ainda dominante na época. Mas reconhecia não ter informações exatas da etiologia e natureza da doença, mas que iriam obter dos colegas que estavam observando-as de perto. A Câmara Municipal nomeou uma Comissão médica, formada pelos Lentes Almeida Couto (de Clínica Médica), Manoel Vitorino (de Clínica Cirúrgica), Ramiro Afonso Monteiro (de Clínica Médica), e dos médicos Horácio César e o tropicalista e redator principal da Gazeta Médica José Francisco da Silva Lima, provável redator da notícia descrita acima e do relatório desta comissão, publicado na Gazeta Médica de abril de 1883 (Nina data equivocadamente março), com o título “Choreomania” (2) . A Comissão concluiu que “a moléstia de Itapagipe” era a coréia epidêmica, sob a forma mais benigna. Depois de uma breve revisão histórica, comentaram que “os historiadores são accordes em ligar a gravidade e extensão d’aquellas epidemias aos meios sociaes da epocha e ás práticas [supersticiosas e fanáticas] incontestavelmente errôneas” (p.447)(2), como o ajuntamento dos enfermos em romarias. O caráter epidêmico foi atribuído ao “contágio por imitação” (p.448), verificando que, no surto de Itapagipe, “os doentes sempre tinhão visto um outro soffrendo do mesmo mal” (p.449). E, de modo surpreendente, comentava que a população em geral (“o vulgo”) conhecia “essa tendencia communicativa que havia em muitos dos ‘fenômenos nervosos’; desde o bocejo, o riso, o choro, que se propagam involuntariamente por um circulo ou um grupo de indivíduos, até os ataques de hysteria (grifo nosso) que mal começam em um morador de uma rua, generalisam-se a muitos outros que não soffriam de semelhante molestia e que passaram a tel-a depois que na visinhança veio estabelecer-se o primeiro caso” (p.448)(2). E afirmam que assim se deu com a coréia de Itapagipe, reconhecendo, portanto, o caráter histérico da epidemia. Destaca inclusive o caráter ocupacional de uma parcela das pessoas acometidas, pois a fábrica, como um local de trabalho, reúne muitas pessoas e assim possibilita o contágio pela imitação, o mesmo acontecendo com o local de moradia: “o ajuntamento d’ellas, quer na fabrica de fiação onde trabalhavam muitos dos enfermos, quer nas ruas contíguas à capella do Rosário, onde residia o maior número”(p.449). Depois de enumerar as diversas formas de manifestação coreiforme, o relatório voltou a enfatizar o papel da fábrica: “Entre os casos da fábrica de fiação (maior numero que vimos Nina Rodrigues: Psiquiatra 15 reunido) foi notavel a influencia exercida pelo ajuntamento e pela attenção que os doentes prestavam não só ao proprio estado como ao estado dos demais atacados”(p.449)(2). Comentava que enquanto examinavam na fábrica cada um dos doentes de per si, os sintomas eram pouco pronunciados, mas quando eles se reuniram e, principalmente, quando se juntara ao enfermo mais atacado, “foi como uma descarga electrica se exercesse sobre toda aquella gente” (p.450)(2). Afastaram a possibilidade da epidemia está associada a intoxicações ou infecções diversas, bem como às causas miasmáticas. Para tanto analisaram as condições da fábrica de fiação da Penha, o matadouro, o cemitério da Massaranduba. As medidas recomendadas, uma vez que não havia “tratamento terapêutico propriamente dito”, deveriam estar baseadas no mais racional “tratamento higiênico’: isolar os afetados, evitar a aglomeração, a fadiga muscular e a excessiva atenção ao mal, entre outras. Em seu artigo Nina Rodrigues comentou que o Dr. Souza Leite, num trabalho de 1888, afirmara que os médicos na Bahia não tinham reconhecido a natureza histérica da afecção, tomando-a pela coréia de Sydenham, porque claramente desconhecia esse relatório publicado em 1883. Nina Rodrigues, pelo contrário, destacou a precisão da comissão de identificar como uma manifestação de natureza histérica (p.403-404)(23). Comentava que, só em 1883, ou seja no mesmo ano do relatório da comissão, Charcot escreveu o primeiro ensaio de uma descrição regular daquela afecção (Sur une forme speciale d’impuissance motrice des membres inferieurs par défaut de coordination relative à la station et à la marche). Vale registrar que esses trabalhos sobre a histéria de Charcot provocaram violenta reação entre seus contemporâneos (p.232)(1). E, só em 1888, foram empregados pela primeira vez os termos astasia e abasia (o primeiro, significando impossibilidade ou dificuldade em ficar em pé e, o segundo, de andar, sem que haja distúrbio nervoso motor ou sensitivo, ou seja, sem que haja causa orgânica, como nos transtornos histéricos). Mesmo criticando o anacronismo, ao querer um conhecimento que não existia na época, e a desinformação de Souza Leite, por não conhecer o artigo da Gazeta, NR não deixou de reconhecer que foi ele, Silva Leite, quem, pela primeira vez, no mesmo ano que Blocq empregou, em 1888, o diagnóstico de astasia-abasia os casos da moléstia epidêmica da Bahia (p.404)(23). Em sua análise das causas, entretanto, Nina Rodrigues comenta que tanto a Comissão Médica quanto o Dr. Souza Leite fizeram uma apreciação restrita e local, não identificando os determinantes que “prepararam o terreno”, sem o qual, “de nenhum effeito teria sido a imitação” (p.454)(23). Para explicar esses surtos epidêmicos nas diversas províncias, sobretudo do norte do país (além de São Luiz e Salvador, cita também Belém do Pará), o autor identificou causas mais gerais no ambiente brasileiro a enfraquecer o organismo e exaltar as faculdades psíquicas, elas seriam por influências tanto 16 Ronaldo Ribeiro Jacobina de fenômenos sociais complexos quanto de influências naturais, mesológicas. Do primeiro grupo de causas, citou o período prérepublicano, seja a condenação e surda revolta ao regime monárquico anterior, seja o “indiferentismo e descrença necessariamente mórbidos” do novo regime. Destacou “a perniciosa influência do escravismo”, que corrompeu costumes e com o abolicionismo trouxe desastradas conseqüências econômicas. Além dos determinantes políticos e econômicos, identificou também culturais, mais precisamente, religiosos. Os conflitos entre, de um lado, o monoteísmo europeu e, de outro, o fetichismo africano e a astrolatria do aborígene. Foi nesse momento que Nina Rodrigues explicitou sua crença na teoria da degenerescência, que adaptada a realidades como a brasileira, encontrava nas raças e, especialmente, na mestiçagem, o elo explicativo para uma série de fenômenos: “a explicação racional e scientifica no mestiçamento, (...), de um povo que conta como factores componentes raças em grãos diversos de civilisação porque se achavam ao tempo de fusão, em períodos muito desiguaes da evolução sociológica”(p. 456)(23). Esses determinantes, de caráter geral, não davam conta da localização regional das epidemias. As razões da decadência do norte-nordeste que tornavam os locais de tais regiões “terrenos” favoráveis aos surtos eram: em primeiro lugar, o clima quente e suas conseqüências para a saúde (indolência e anemia), em segundo, a repercussão mais forte dos processos sociais, devido ao pauperismo, emigração, entre outros fatores e, por fim, as condições sanitárias das cidades onde elas ocorreram (p.456-7)(23). Ao final do artigo, comentou que o Dr. Rodrigues Seixas, da Academia Nacional de Medicina, na capital da República, assim como fez Dr. Saulnier no Maranhão, considerou que o “treme-treme” baiano era uma manifestação de beribéri. Nina Rodrigues fez o diagnóstico diferencial das duas doenças, reconhece a possibilidade da existência das duas doenças num mesmo indivíduo, mas concluía, citando Paul Richer da escola de Charcot, pela etiologia histérica das manifestações coreiformes em Salvador e São Luís, naqueles últimos quinze anos. Degenerescência e mestiçagem na gênese das psicopatias A adoção da teoria da degenerescência e da mestiçagem como um fator degenerativo na gênese das doenças mentais, esboçada na análise anterior desses episódios de transtornos histéricos em coletividades, se consolida no pensamento de Nina Rodrigues, em especial em seus estudos de psiquiatria forense e antropologia criminal, quando abordava a psicopatologia dos delinqüentes. Em um dos seus primeiros trabalhos sobre a hanseníase na província do Maranhão, depois publicado na Gazeta Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 Médica(21), o autor foi criticado por não ter apresentado a freqüência da lepra por raças. Ainda estudante no Rio de Janeiro, tanto as observações do Prof. Érico Coelho acerca da influência da raça negra sobre o ‘puerperismo’ e a tese inaugural de seu colega Jansen Ferreira, “O parto e suas conseqüências na espécie negra”, chamaram definitivamente a atenção de Nina Rodrigues para a questão étnica, inaugurando esse campo com o trabalho sobre os mestiços no Brasil(22). Uma de suas primeiras constatações era a de que esses estudos sobre enfermidades e raças não faziam a distinção dos diversos tipos de mestiços (o mulato, do branco com o negro; o mameluco ou caboclo, do branco com o índio; o cafuso, do negro com o índio; e das formas derivadas, como por exemplo, o mulato com o índio e todas as combinações possíveis). Para o autor, isto significava previamente negar o papel das raças como fator etiológico(22). Ele levantava a questão se as três raças fundamentais no Brasil (índios, brancos e negros) transmitiram ou não aos produtos dos seus cruzamentos caracteres patológicos diferenciais. Se a resposta fosse negativa, os médicos estariam poupados do trabalho da distinção citada acima. Se positiva era tarefa árdua a ser feita. Como Nina acreditava na influência patológica diferencial das raças ele se propôs a ajudar na tarefa. De início fez uma crítica às estatísticas médicosanitárias, que distinguiam os pacientes em brancos, negros e pardos, este último abrangendo os ameríndios e todos os mestiços. Depois, elaborou uma classificação baseada nos caracteres morfológicos das raças puras, pois a filiação seria insuficiente e, segundo sua experiência, era muito difícil estabelecer o parentesco real(22). E qual seria a importância dessa definição mais precisa dos mestiços? Para compreender isto, é necessário compreender a teoria da degenerescência, adotada por Nina Rodrigues, que era hegemônica em vários campos de saberes e práticas, entre os quais na Psiquiatria. Como crítica ao paradigma anterior, do alienismo, emergiu o paradigma organicista. Enquanto o primeiro baseava-se na nosografia moral da desordem, remetendo ao terreno social patogênico (Pinel, Esquirol), o organicismo supunha uma lesão localizada na origem da doença (Bayle, Morel). Essa última corrente se tornou dominante no último quartel do século XIX e início do XX(13). Um dos precursores desse novo paradigma na psiquiatria foi A. L. Bayle (1799-1858). Ao identificar a relação de uma doença mental, a Paralisia Geral Progressiva, com uma causa física (encontrou lesões patológicas no cérebro desses pacientes), num período anterior à revolução microbiana, ele criticou o modelo anterior: Esses sábios autores, disse Bayle referindo-se a Pinel e Esquirol, contentavam-se, em geral, em observar os fenômenos sem procurar remontar à sua fonte, em descrever escrupulosamente os fatos sem querer ligá-los a nenhuma causa produtora Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 (Nouvelle doctrine des maladies mentales, em 1825, p. 8-9)(7). A descoberta de Bayle não significou uma questão relevante para o alienismo, baseado numa etiologia moral, mas foi retomada com a identificação do agente etiológico da sífilis, parecendo exemplar, no sentido paradigmático estrito, mas a busca de micróbios como causa produtora de outras formas de doença mental, apesar da euforia inicial, logo se mostrou limitada na medicina mental. Foi uma teoria não microbiana - a teoria da degenerescência de B. A. Morel (1809-1873) - que se tornou dominante na explicação da causa das doenças mentais, possibilitando a superação da simples classificação semiológica para a identificação de uma etiologia, segundo a qual as doenças mentais eram hereditariamente transmitidas. Aproximar a medicina mental do tronco comum da medicina era uma perspectiva claramente assumida por Morel, quando no seu Tratado de 1857 escreveu: “Procurei seguir minha idéia predominante que era a de vincular, de maneira mais vigorosa do que se tinha feito até então, a alienação mental à medicina geral” (p.261)(7). Como para essa doutrina organicista, a alienação mental na maioria dos casos não podia ser curada ou recuperada, Morel buscou superar essa ‘profilaxia defensiva’ do isolamento do degenerado, propondo uma ‘profilaxia preservadora’ para combater as causas das doenças e prevenir seus efeitos. Essa concepção heredobiológica das doenças mentais foi ampliada pelos estudos e experiências de Magnan (1835-1916), que a retomou à luz da teoria evolucionista, sustentando a tese de que a degenerescência seria o desvio que interrompia o processo natural da espécie; e de Lombroso (1836-1909), que a utilizou para a antropologia criminal(31,34). Esse tecno-saber se mostrou orgânico com as finalidades sociais exigidas naquele momento histórico da psiquiatria: a de referendar cientificamente os processos de exclusão dos pobres, dos imigrantes vagabundos e desordeiros, vítimas já não mais das suas lamentáveis condições de vida, mas de taras e degenerações individuais e raciais(37). Era mais uma vez o uso do velho e eficaz mecanismo ideológico de culpar as vítimas. Segundo Castel(7), não foi por acaso que Morel construiu sua concepção a partir da observação do proletariado superexplorado da região de Ruão e das populações agrícolas da periferia, chegando a propor um verdadeiro plano de vigilância das populações miseráveis (p.263)(7). Se todo degenerado seria um desequilibrado mental e a tara degenerativa era transmitida, vários fatores poderiam determinar a degenerescência, como intoxicações, doenças orgânicas, congênitas ou adquiridas, influências do meio social, bem como a mestiçagem, tese tomada como uma evidência científica na época. Segundo esta concepção, as raças se encontravam em momentos evolutivos distintos e os ameríndios e negros eram identificados em estágios atrasados ou primitivos. Por tomar essa crença e pré-conceito como Nina Rodrigues: Psiquiatra 17 verdade científica, influenciado pelos autores franceses e italianos, Nina passou a ter tanto interesse em discriminar os mestiços em seus diversos tipos. Até um dos seus diletos discípulos, Arthur Ramos, não deixou de fazer essa ‘única ressalva’ ao trabalho do mestre: “É quando faz intervir o slogan da época: a degenerescencia da mestiçagem como causa precípua dos desajustamentos sociaes. (...) Essas idéas são inacceitaveis para os nossos dias. O pretenso mal da mestiçagem é um de condições hygienicas deficitárias, em geral” (p.12)(36). Mas o discípulo não deixa de advogar em defesa do mestre quando propunha que nos trabalhos de Nina Rodrigues, os termos raça e mestiçagem, fossem substituído por cultura e aculturação, e, assim ganhariam completa e perfeita atualidade (p.12-3)(36). Num paradigma os conceitos guardam relações entre si para formar a matriz disciplinar. Era preciso passar toda a matriz por uma crítica de seus conceitos e pressupostos para que a antropologia médica sobre a temática ganhasse atualidade, atualidade esta que estava, inclusive, possibilitando a crítica de Ramos ao estudo do mestre. Uma crítica contemporânea e não a posteriori quem fez foi o psiquiatra Juliano Moreira. Ele discutia o caso de um alienado com paranóia querelante, filho de um italiano e uma negra baiana(20). Era, portanto, um mestiço. Ao mostrar a história do paciente ao Professor Nina Rodrigues, “achou elle no caso mais uma prova de que a mestiçagem é um factor degenerativo” (p.431)(20). Moreira discordou dessa apreciação do mestre: “Ora, tendo eu sempre me opposto a esta maneira superficial de ver o problema”(idem), escreveu nesse artigo que publicou anos depois, já no Rio de Janeiro, e, como um cientista que investigava os fatos, como fazia o próprio Nina Rodrigues, disse que aproveitou uma longa estadia na Europa, provavelmente na passagem dos séculos XIX-XX, e visitou a Itália. Lá, localizou e examinou os parentes do mestiço, comentando num tom irônico “que tinham ficado na Europa livres de tal mestiçagem” (p.431). No entanto, foi na família branca do pai do paciente que encontrou vários casos de transtornos mentais (epilepsia, imbecilidade, alcoolismo, entre outros) d. Se Moreira negava explicitamente, como visto acima, a mestiçagem como fator degenerativo, demonstrando inclusive d Moreira localizou a pequena cidade italiana onde moravam os parentes do pai do mestiço, que era dependente de bebidas alcoólicas. Ele tivera dois irmãos e uma irmã. Um dos irmãos desertou o exército e partiu para os EUA, não se tendo mais notícias dele. O outro, “imbecil, ébrio habitual, turbulento, muito supersticioso (...); casou-se e teve dois filhos, ambos imbecis” (p.431). A irmã era epiléptica e teve três filhos, um também epiléptico, outro imbecil e o terceiro homicida e possivelmente epiléptico. O doente teve uma irmã histérica, que se casou e teve duas filhas, que, segundo informações colhidas, nada tinham de anormal. Juliano considerou o paciente mestiço com um quadro melhor que os primos italianos, entretanto não seria devido ao “cruzamento, mas sim da circumstancia de ser a mãe delle [a negra baiana] uma mulher sã” (p.432) (20) . 18 Ronaldo Ribeiro Jacobina uma consciência étnica, por outro lado, ele não negava a teoria da degenerescência, questionando apenas alguns fatores causais dela, como a raça, o clima e o uso estereotipado dos estigmas degenerativos(31,34). Sobre a maneira superficial de analisar a questão (mestiçagem como fator degenerativo), Juliano Moreira se propôs a publicar, em outra ocasião e mais detalhadamente, documentos demonstrativos de que “neste ponto não tinha razão o meu sábio mestre”(p.431)(20). Aqui fica claro o afeto (“meu”) e a admiração intelectual (“sábio mestre”) do psiquiatra pelo Catedrático de Medicina Legal. Uma discordância pontual não fazia Moreira negar a importante contribuição intelectual de seu interlocutor. Em sua análise sobre a epidemia de loucura religiosa em Canudos, embora preso às teorias da degenerescência e dos estudos antropométricos para definir os degenerados criminosos e loucos, Nina Rodrigues buscou outras referências. Identificou uma diferença entre o mestiço do litoral e o do sertão, que chamou de ‘jagunço’, nos quais, segundo ele, a “nota degenerativa” era menos acentuada (p.64-65)(24). No exame antropométrico do crânio de Antônio Conselheiro, não encontrou nenhum dos sinais de degenerescência que apresentava o degenerado louco e criminoso(26). Em relação à vesânia (loucura) de Conselheiro, ele a diagnosticou como um delírio crônico de uma psicose – paranóia - sistematizada e progressiva (p.52-53)(24). Ela apresentava as características descritas por Magnan: longa duração do delírio, as transformações em fases bem distintas, a sistematização delirante perfeita e as alucinações: a primeira fase foi do delírio de perseguição; depois ele se transformou em enviado de Deus, ganhando conteúdo religioso (delírio místico) e, por fim, com o advento da República, tornou-se um messias monárquico contra o novo regime, em contínuo convívio com Deus, provavelmente de origem alucinatória (p. 130)(26). Nem as teorias da época (escolas francesa e italiana), nem a caracterização da loucura de Conselheiro deram conta adequadamente do fenômeno. Aqui aparece o precursor da psicologia social: “Alguma coisa mais que a simples loucura de um homem era necessária para este resultado e essa alguma coisa é a psychologia da época e do meio em que a loucura de Antonio Conselheiro achou combustível para atear o incêndio de uma verdadeira epidemia vesânica” (p.63)(24). Ele fazendo uma análise histórica sintética e magistral, destacou os determinantes sociais na eclosão da “epidemia religiosa”, como o advento da república, regime que pressupõe a autoridade racional, da lei – abstrata – e não da autoridade do rei ou do profeta. E um fator específico, os conflitos políticos e as rivalidades locais no sertão: “No que concerne aos antecedentes hereditários (grifo nosso) de Antonio Maciel, sabe-se que Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 descendia de uma família cearense valente e bellicosa, que durante muito tempo se empenhara numa dessas luctas de extermínio, muito freqüentes na história dos nossos sertões, entre famílias poderosas e rivaes. No decorrer dessas luctas, deram seus ascendentes provas de uma grande bravura, e muitas vezes requintada crueldade. Mas como temos verificado, essas luctas são a conseqüência do estado social da população inculta do interior do paiz, não sendo necessário, para explicá-las, recorrer a uma intervenção vesânica (grifo nosso)”(26). Depois de conhecido estes dois exemplos de síndromes psicossociais – um de uma grande neurose e o outro de uma psicose –, cabe, nesse momento, conhecer da obra em psiquiatria social, a análise crítica feita pelo autor para assistência psiquiátrica no país e das propostas de mudanças inovadoras para o sistema de saúde mental da época. Assistência psiquiátrica na Bahia – princípios e propostas Na sub-área da Psiquiatria social, Nina Rodrigues deu contribuições tanto para a legislação psiquiátrica quanto para o planejamento e administração do sistema de saúde mental na Bahia e no Brasil. No que diz respeito à legislação psiquiátrica, escreveu um livro importante “O alienado no direito civil brasileiro”, bem como influenciou a lei federal de 1903, que regulamentou a assistência psiquiátrica pela primeira vez no Brasil. Sobre o planejamento e a assistência psiquiátrica produziu também um livro “A Assistência a alienados no Brasil”28, que reunia vários trabalhos seus publicados em revistas e mesmo em jornais diários, destacando sua crítica ao asilo de alienados da Bahia e, consequentemente, à péssima qualidade do ensino de psiquiatria clínica que era realizado nele, na época. Quando, em 1904, uma epidemia de beribéri grassou novamente no Asilo de alienados S. João de Deus, administrado pela Santa Casa de Misericórdia (SCM), sendo que, dessa vez, quase exterminou os alienados recolhidos nele, o catedrático de Medicina Legal considerou imperativo uma ação pública ante a má qualidade da assistência no manicômio, que, como já referido, comprometia também o ensino lá realizado. Nina não apenas agiu demandando ações da Congregação da FAMEB ou produzindo artigos na imprensa médica, mas também nos jornais diários da época, como o “Jornal de Notícias” (p.165)(26). A repercussão das denúncias, inclusive com manifestações dos estudantes de medicina, levou a Faculdade de Medicina da Bahia, sob a direção do Prof. Alfredo Brito, a designar uma comissão para apurar os fatos. Uma comissão foi constituída pela Congregação da FAMEB, sendo relator o próprio Nina Rodrigues que, contando com a colaboração dos professores Pacífico Pereira, como presidente, Tillemont Fontes, catedrático Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 de psiquiatria, substituído por Luiz Pinto de Carvalho. O parecer elaborado por Nina Rodrigues, cuja versão original ele publicou no seu livro(28), sofreu algumas modificações e foi apresentado à FAMEB, em 25 de agosto de 1905(29). Este documento foi considerado por Aristides Novis em 1923, como um paradigma a ser seguido33 e a Gazeta Médica da Bahia, num artigo de homenagem póstuma que descreve sua trajetória acadêmica e científica, diz: “Seu ultimo labor scientifico foi dedicado á causa dos alienados na Bahia, tendo sido relator da Comissão encarregada pela Congregação da Faculdade de estudar a organisação do ensino da clinica psychiatrica” (p.62)(35) e. Esses estudos tiveram conseqüência práticas. A análise sobre as epidemias que dizimavam a população manicomial fundamentou a campanha do professor de medicina legal na imprensa de Salvador, em favor dos alienados, e resultou em dois fatos que, segundo ele, mereciam registro: um foi o acordo firmado entre a Diretoria da Faculdade e o governo do Estado para a elaboração do plano dos serviços de assistência a alienados da Bahia, “visando harmonizar os interesses da assistência estadual com os do ensino da clínica psychiatrica” e o outro foi a “salvação dos últimos vinte e cinco alienados beri-bericos que, feitos transferir pelo Sr. Dr. Governador para uma enfermaria improvisada no Mont-Serrat, se restabeleceram todos”(p.153)(28). O documento não se limitou a analisar o ensino de psiquiatria no asilo; fez um diagnóstico da assistência que era prestada naquele manicômio (“o que ela é”), como também elaborou uma proposta (“o que ela pode e deve ser”), sugerindo além de reformas no São João de Deus, outras modalidades de cuidado psiquiátrico (27), que só foram concretizadas no decorrer do século XX. Merece destaque e cabe uma análise mais detalhada a apresentação dos princípios que, segundo Nina, deveria servir de base para a legislação da assistência psiquiátrica na Bahia. Ele começa defendendo uma diversidade institucional para realizar a assistência aos alienados, com hospital psiquiátrico para os agudos, asilo ou hospício para os crônicos incuráveis e não aptos ao trabalho, e as colônias agrícolas para os alienados de origem rural e as “colônias industriais”, que corresponderia hoje as oficinas protegidas, para os ofícios urbanos. Enumerava ainda o instituto médico-pedagógico para a “infância anormal”(deficientes mentais); secções ou enfermarias para os “dementes senis” no asilo de velho e um serviço para o louco criminoso, nascendo a idéia do manicômio judiciário. Esta modalidade se destacaria, inicialmente, como pavilhão no Asilo e só depois, nos anos 50, como uma instituição autônoma(14). No princípio 9°, ele cita o tratamento domiciliar, desde que tenha condições dos cuidados exigidos e Este documento está publicado de três modos e existem pequenas diferenças em cada uma delas: o parecer apresentado pela Comissão que fez algumas modificações que o relator acatou(29); o artigo publicado na Revista de Curso da FAMEB(27); e o capítulo VIII do livro “A Assistência a alienados no Brasil” (28). Nina Rodrigues: Psiquiatra 19 pelo Estado, que deve ser notificado para possível fiscalização. Sobre a assistência familiar, no artigo na Revista da Faculdade, ele destacou e discutiu com mais detalhe a experiência de Franco da Rocha em São Paulo(27). Segue outros princípios que detalham a organização da rede de serviços, defendendo a regionalização, descentralização e hierarquização dos serviços: “Esses estabelecimentos serão distribuídos pelos pontos mais convenientes do Estado” (grifo nosso) (2°), seguindo as exigências técnicas da assistência e administrativas e econômicas do aparelho estatal (28) ; esses diferentes serviços seriam distribuídos, “segundo a sua importancia, n’uma graduação hierarchica (grifo nosso)”(5°). Ainda no 2° princípio, ele propôs uma articulação com a assistência hospitalar geral, que só se realizou, nos anos 80 do século XX: “o governo do Estado entrará em accordo com as administrações dos hospitaes das cidades do interior, que os possuem, para ser nelles installado pelo menos um modesto serviço destinado á admissão precoce, embora provisória, dos casos agudos curáveis”(28). Em cidades populosas podem ser criados “serviços locais”, tanto para agudos quanto para crônicos, mas que seriam também fiscalizados pelo governo (3°). Admitiu a complementaridade do setor privado (“estabelecimentos particulares congêneres”), que deveriam cumpri as leis e regulamentos estaduais, além de serem submetidos também à fiscalização estatal (também no 3° princípio). Sobre a questão da coordenação da assistência defendeu um comando colegiado, não como é hoje, com a sociedade civil organizada (estávamos na República Velha, com um estado liberal oligárquico e a sociedade civil era ainda muito pouco diferenciada). De qualquer modo, era uma proposta para além do governo estadual, com a participação de ‘profissionais competentes’, em especial da Academia. Nina Rodrigues, como relator, propôs no 7° princípio que a “Comissão de Assistência a alienados” deveria ter cinco membros, contemplando um médico alienista, um jurista e um engenheiro sanitário, além do Governador, representado pelo Secretário do Interior, onde ficava a assistência à Saúde (p.168)(28). É possível que ele tenha errado no número por pudor, mas a Comissão, que elaborou o parecer, incluiu um profissional de medicina legal e também um de higiene. Essa comissão teria entre suas funções a de fiscalização, elaboração das normas, regulamentos e regimentos internos dos estabelecimentos, indicação dos novos serviços, baseada em critérios técnicos (p.15-16)(29). Para a direção, foi proposto que deveria ser um médico alienista, que deveria residir no estabelecimento (4°). Os médicos deveriam ter competência em psiquiatria, serem aprovados por concurso e numa proporção de 1 para 100 pacientes agudos e de 1 para 200 pacientes crônicos (5°). Estudantes de medicina atuariam no 20 Ronaldo Ribeiro Jacobina asilo como internos e externos, sendo também aprovados por concurso (6°). Verifica-se aqui a articulação clara com a FAMEB para a realização de um trabalho de extensão acadêmica. Em relação aos usuários dos serviços, o relator e depois a comissão como um todo expressam a função contraditória da psiquiatria, de tratamento e cura, mas também de exclusão social: “Será recolhido (...) o indivíduo que por moléstia mental congênita ou adquirida, necessitar tratamento ou comprometter a ordem publica, a própria segurança ou a de outras pessoas”(p.169)(28);(p.16)(29). Com sua experiência em legislação sanitária, inclusive psiquiátrica, teve o cuidado de registrar na lei as formas de admissão dos doentes mentais em manicômios: “Em caso algum, porem, o internamento pode ser feito sem autorisação do juiz a quem compete no logar a proteção legal dos incapazes e sem a verificação medica do estado de alienação mental”(p.169)(28); (p.17)(29). Mesmo nos casos de urgência a admissão era considerada provisória, tendo o diretor 24 horas para levar o fato ao conhecimento do juiz (NR propôs um prazo um pouco maior de 48 horas, mas a comissão não aceitou). Parece excesso de zelo, mas o estudo sobre o asilo S. João de Deus/ Hospital Juliano Moreira, demonstrou que não foram poucos os abusos cometidos na admissão e permanência de usuários do serviço manicomial, doentes ou não(14). No financiamento, haveria a contribuição dos não indigentes, os chamados pensionistas, com o pagamento sendo feito pelo próprio doente, seus familiares, amigos ou uma corporação ou sociedade (profissional, religiosa etc.) a que pertença. Os indigentes seriam da responsabilidade do Estado. Através de legislação poderiam criar um Fundo, com recursos vindo da participação dos municípios que tivessem pacientes indigentes internados e dos impostos sobre as principais fontes de produção de alienação mental. Embora não seja explicitado, o principal alvo eram as bebidas alcoólicas. Nos anos 20, o diretor do Asilo s. João de Deus, Prof. Mário Leal, inspirado nesta proposta, conseguiu aprovar lei que tributava as bebidas(14). Os últimos princípios eram mais operacionais, estabelecendo um cronograma de prioridades na recuperação do manicômio e criação dos demais serviços. Em relação aos princípios doutrinários, que Nina Rodrigues apresentou para a Comissão e, depois de aceitos, foram aprovados também pela Faculdade de Medicina da Bahia, serviram de inspiração para dirigentes da assistência psiquiátrica na Bahia (Mário Leal, Aristides Novis, entre outros). No seu conjunto, verifica-se que, embora naquele momento ainda não existisse a proposta de um modelo de restrição à internação e centrado na reabilitação do paciente encarado como sujeito, como são as reformas contemporâneas, não deixa de impressionar a atualidade da concepção de uma rede regionalizada, hierarquizada, por complexidade crescente, esta última ilustrada no grau da especialização do profissional. São também atuais tanto a Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 defesa do concurso público para médicos e estudantes quanto a indicação dos dirigentes feita por uma comissão com critérios técnicos, além de políticos, bem como a articulação da saúde mental com a rede de saúde em geral e a idéia de um comando colegiado, pois os profissionais competentes viriam da indicação não só da Academia, mas também das entidades profissionais já existentes. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise da obra deste autor leva a uma constatação curiosa e aparentemente paradoxal. Nina Rodrigues, ao mesmo tempo em que se constituiu no principal agente intelectual do processo de especialização da Medicina Legal no interior da Medicina, produziu uma obra múltipla envolvendo não só outros campos da Medicina, como a psiquiatria, a infectologia, a medicina social, mas também em áreas afins, como o direito, a antropologia médica, a sociologia da saúde. O paradoxo é aparente, pois, ao mesmo tempo, ele demonstrava a especificidade de sua área, a necessidade de um aprofundamento, num saber que vai ficando esotérico, que só a especialização possibilita. Por outro lado, ele praticou a necessidade do especialista cada vez mais dialogar com outros campos, cujos objetos de estudo são necessariamente interdisciplinares ou, diríamos hoje, transdisciplinares. A alienação mental, usando o termo da época, é um desses objetos que requer uma abordagem múltipla e, como campo de saber e prática, a medicina mental, depois nomeada de psiquiatria, foi uma das primeiras a se constituir também como especialidade no campo médico. Ao destacar de sua obra os estudos no campo da Psiquiatria e analisar alguns desses trabalhos, embora não tendo sido exaustivo e minucioso como deveria, foi suficiente para constatar a relevância e originalidade da contribuição do catedrático de medicina legal. Sua obra sobre as síndromes psicossociais – as “coletividades anormais” – foi precursora no Brasil. A astasia-abasia histérica, com suas múltiplas denominações como “treme-treme”, tremeliques”, foi facilmente reconhecida, em 1918, com um novo nome “caruara” para essa nova epidemia. Os estudos sobre Lucas da Feira e Antônio Conselheiro permitiram a Nina Rodrigues constatar os limites da teoria lombrosiana do criminoso nato, confrontando a teoria com os dados. Isso levou o pesquisador a formular análises sociológicas válidas até hoje para as questões de poder no sertão brasileiro. Até sua obra mais polêmica, sobre os africanos no Brasil, pelo rigor de sua descrição e sistematização dos aspectos culturais (das crenças, dos dialetos, dos costumes etc.), ficou como um patrimônio para a etnologia, reconhecido pela maioria dos antropólogos baianos e brasileiros que estudam a temática. Sua concepção equivocada sobre a mestiçagem, dada como uma realidade científica na época, foi criticada, não só por seus sucessores e opositores, mas também por autores que Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 foram contemporâneos de Nina Rodrigues, como Juliano Moreira. No âmbito da psiquiatria social, formulou as bases para uma assistência psiquiátrica, que serviram de roteiro para as reformas que foram feitas na saúde mental durante todo o século XX e alguns princípios e propostas mantém atualidade, como regionalização, descentralização, hierarquização dos serviços, a atenção psiquiátrica nos hospitais gerais. A investigação sobre a epidemia de beribéri no manicômio serve como paradigma, pois, com recursos simples, permitiu uma verdadeira pesquisa-ação, ao investigar as causas, elaborando uma moderna concepção de determinação social das doenças, e, ao estabelecer como se dava a distribuição no espaço asilar, possibilitou a transferência e sobrevivência dos doentes com a doença carencial. Nem apologia nem caricatura, Raymundo Nina Rodrigues merece ter sua obra conhecida e assim, criticada com os instrumentos da ciência, refutada e/ou referida. Seguir a recomendação bíblica, separar o joio - o que em sua obra está morto - do trigo, o que nela está vivo. AGRADECIMENTOS Agradecemos ao Prof. Fernando M. Carvalho, Professor Titular de Medicina Preventiva da FAMEB-UFBA, pelas suas sempre valiosas colaborações. Ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), à linha de pesquisa “Memorial da Medicina Baiana” (PPP, Programa Primeiros Projetos). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Alexander F & Selesnick, S. História da Psiquiatria. 2ª edição. São Paulo: Ibrasa, 1980. 2. Almeida Couto JL, César H, Silva Lima JF, Monteiro RA, Pereira MV. Coreomania. Parecer da Comissão da comissão médica, nomeada pela Câmara Municipal, acerca da moléstia que ultimamente apareceu em Itapagipe e que se tem propagado por toda a cidade. Gazeta Médica da Bahia, 15: 445-453, 1883. 3. Barros PM. Alvorecer de uma nova ciência: a medicina tropicalista baiana. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, 4: 411-459, 1998. 4. Bloch M. Introdução à história. 1ª edição crítica. Mem Martins, Portugal: Publicações Europa-América, 1997. (Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien). 5. Britto ACN. A Medicina baiana nas brumas do passado. Salvador: Contexto e Arte Editorial, 2002. 6. Burke Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. 7. Castel R. A Ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1991. 8. Correa M. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Bragança Paulista, SP: Edusf, 1998. 9. Cunha AG. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 10. Febvre L. História. Coletânea organizada por Carlos Guilherme Mota. São Paulo: Ática, 1978. 11. Foucault M. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. Nina Rodrigues: Psiquiatra 21 12. Jacobina RR. O Asilo e a constituição da psiquiatria na Bahia. [Dissertação de Mestrado em Saúde Comunitária]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1982. 1 3 . Jacobina RR. O Manicômio e os movimentos de reforma na Psiquiatria: do alienismo a psiquiatria democrática. Saúde em Debate, 24: 90-104, 2000. 1 4 . Jacobina RR. A prática psiquiátrica na Bahia. Estudo histórico do Asilo São João de Deus /Hospital Juliano Moreira (18741947). [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública – Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), 2001. 1 5 . Jacobina RR & Carvalho FM. Nina Rodrigues, epidemiologista: estudo histórico de surtos de beribéri em um asilo para doentes mentais na Bahia, 1897-1904. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, 8: 113-132, 2001. 1 6 . Le Goff J. A história nova. 2ª. Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 1 7 . Lima LA. Nina Rodrigues, olhar voltado para o futuro. A Tarde Cultural, Salvador, p. 6-7, 29 de julho de 2006. 1 8 . Maio MC. A Medicina de Nina Rodrigues: Análise de uma trajetória científica. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 11: 226-237, 1995. 1 9 . Maio MC. Thales de Azevedo: desaparece o último dos pioneiros dos antropólogos brasileiros de formação médica. (Entrevista o Prof. Thales de Azevedo, com apresentação de Josildeth G. Consorte). História, Ciência, Saúde: Manguinhos, 3: 133-171, 1996. 2 0 . Moreira J. Querelantes e pseudo-querelantes. Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal. Rio de janeiro, 4: 426-434, 1908. 21. Nina Rodrigues R. Contribuição para o estudo da lepra na província do Maranhão. Gazeta Médica da Bahia, 20: 105-113, 205-11, 301-314, 1888. 22. Nina Rodrigues R. Os mestiços brasileiros. Gazeta Médica da Bahia, 21; 401-407, 497-503, 1890. 23. Nina Rodrigues R. Abasia coreiforme epidêmica no Norte do Brasil. Gazeta Médica da Bahia, 22: 396-405, 452-459, 1891. 24. Nina Rodrigues R. A loucura epidêmica de Canudos. Antônio Conselheiro e os jagunços. [1897]. In: As coletividades anormais. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1939 (Coletânea organizada por Arthur Ramos) 25. Nina Rodrigues R. Memória Histórica da Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia, 1896. (Documento de 29 de março de 1897), Gazeta Médica da Bahia, 73: 11-30, 1976. 26. Nina Rodrigues R. A loucura das multidões. Nova contribuição ao estudo das loucuras epidêmicas no Brasil. [La folie des foules. Nouvelles contributions à l1étude des folies épidemiques au Brésil, 1901]. In: As coletividades anormais. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1939 (Coletânea organizada por Arthur Ramos) 27. Nina Rodrigues R. A assistência médico-legal aos alienados no Estado da Bahia. Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia, Salvador, 3: 163-470, 1905. 28. Nina Rodrigues R. A assistência a alienados no Brasil. Salvador, Bahia:Tipografia Bahiana, [1905],1906. 29. Nina Rodrigues R, Pacífico Pereira A, Carvalho LP. Relatório sobre a organização do ensino de clínica psiquiátrica da Faculdade de medicina da Bahia e do asilo de alienados do Estado. Salvador, Bahia: Lito-tipografia Almeida, 1905. 30. Noticiário. Uma moléstia singular. Gazeta Médica da Bahia, Salvador,14: 190-191, 1882. 31. Oda, AMGR. A teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira: contraposição entre Raymundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira. Psychiatry on line Brazil, 6: 1-14, 2001. Extraído em [http://www.polbr.med.br/arquivo/ wal1201.htm]. Acesso em: [02 de outubro de 2005]. 22 Ronaldo Ribeiro Jacobina 32. Oliveira ES. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia, concernente ao ano de 1942. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1992. 33. Oliveira WF. Poetas, médicos e loucos povoaram o Solar C e n t e n á r i o . A Ta r d e , S a l v a d o r, p . 1 5 , 2 2 d e j u n h o d e 1974. 34. Portocarrero V. Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. 35. Professor Dr. Nina Rodrigues. Gazeta Médica da Bahia, Salvador, 38: 57-67, 1906. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22 36. Ramos A. Prefácio. In: Nina Rodrigues R. As coletividades anormais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939 (Coletânea organizada por Arthur Ramos) 37. Resende H. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Tundis, S.A. & Costa NR (org.). Cidadania e loucura. Políticas de saúde mental no Brasil. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, p.1575, 1994. 38. Schwarcz LKM. Usos e Abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: uma história das teorias raciais em finais do século XIX. Afro-Ásia - Centro de Estudos Afro-Orientais / UFBA, 18: 77-101, 1996. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28 Nina Rodrigues e a Arte Negra ano Brasil 23 Nina Rodrigues e a Constituição do Campo da História da Arte Negra no Brasil Nina Rodrigues and the Organization of the Field of the History of the Afro-Brazilian Art in Brazil Marcelo N. Bernardo da Cunha1 , Eliane Nunes2 , Juipurema A. Sarraf Sandes1 1 Museu Afro-Brasileiro da UFBA, Salvador, Bahia, Brasil; 2 Instituto de Artes e Design da UFPel, Pelotas, RS, Brasil Este artigo tem por finalidade avaliar o texto As Belas Artes nos Colonos pretos do Brasil, de Nina Rodrigues, produzido a partir dos estudos que realizou sobre arte negra presente na Bahia, entre finais do século XIX e início do século XX, demonstrando através de quais pressupostos ele constituiu este campo de estudos, sendo o primeiro autor a lidar com o tema, estabelecendo dois paradigmas sobre os quais o tema seria abordado na primeira metade do século XX: o acento na arte de matriz iorubana e análise exclusiva de objetos ritualísticos. Palavras-chave: Nina Rodrigues, arte negra, cultura afro-brasileira. The purpose of this article is to evaluate the text: As Belas Artes nos Colonos pretos do Brasil [The Fine Arts of the Black Colonists of Brazil], by Nina Rodrigues which was made through the research about the Afro-Brazilian art in Bahia, between the end of the 19th century and the beginning of the 20th century. It demonstrates how he made this field of research, he was the first author to deal with this theme and he established two paradigms which this issue would be approached in the first half of the 20th century: the mark at the Yoruban art origin and the analysis of the ritualistic objects. Key-words: Nina Rodrigues, Afro-Brazilian art, Afro-Brazilian culture. Ao lembrar o centenário de falecimento de Nina Rodrigues, o Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia se propôs escrever um artigo fazendo uma análise do pensamento deste pesquisador a respeito da arte afro-brasileira, sendo ele considerado o primeiro autor a lidar com este tema no Brasil. O convite formulado pelo Instituto Bahiano da História da Medicina e Ciências Afins transformou-se em desafio para a equipe de professores pesquisadores do Museu, considerando-se a escassez de fontes e a inexistência das peças que foram coletadas e analisadas por Nina Rodrigues. Mesmo assim, o caráter pioneiro dos seus estudos reveste-se da mais alta importância, como inicio de um ciclo de estudos sobre a produção cultural de negros no Brasil. Escrever sobre a obra de Raymundo Nina Rodrigues é uma tarefa complexa, pois nos cem anos que nos separam de seu falecimento, as mudanças ocorridas no modo como se pensa a questão racial foram tão profundas, que o próprio Recebido em 14/9/2006 Aceito em 11/11/2006 Endereço para correspondência: Prof. Marcelo N. Bernardo da Cunha, Praça XV de novembro s/n, Faculdade de Medicina da Bahia, Terreiro de Jesus, Cep. 40025-010, Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: [email protected]. Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):23-28. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. conceito de raça está ultrapassado. Hoje sabemos que todos somos iguais na essência humana e as diferenças não são consideradas como sinais de inferioridade e sim de diversidade. Neste contexto, as teorias de Nina foram superadas, mas não se pode incorrer num anacronismo e avaliar sua obra como se tivesse sido composta na contemporaneidade. Ela é fruto de seu tempo e o exercício que aqueles dedicados ao estudo da arte afro-brasileira devem realizar para compreendê-la é por demais atual: tratase mesmo de uma necessidade, especialmente num país como o Brasil, cuja intelectualidade, por vezes, tem dificuldades de estabelecer predecessores, avaliando criticamente as contribuições passadas, ultrapassando posições polarizantes. Reconhecer o racismo do autor não pode impedir de igualmente reconhecer seu pioneirismo e sua contribuição ao estudo do negro e de sua arte, mas trata-se de alargar diálogos, considerando as condições envolventes de sua época de forma desapaixonada. O propósito deste artigo é avaliar criticamente o legado de Nina Rodrigues sobre arte, demonstrando a partir de quais pressupostos teóricos foi montado o cerco discursivo sobre arte afro-brasileira, pois foi o primeiro autor a lidar com o tema. Para realizar o intento, será analisado como ele abordou exemplares da arte que denominou negra, ou seja, o que Nina pensava sobre arte, arte africana e arte afro-brasileira. Visando manter a terminologia utilizada pelo autor, a partir de agora 24 Marcelo Bernardo da Cunha, et al. será utilizado o termo arte negra, tanto para designar peças africanas quanto brasileiras. Se o interesse de Rodrigues sobre o negro e sobre a África o coloca como pioneiro, foi também motivo para reações de seus colegas de trabalho e da sociedade da qual era membro. Repreendido no púlpito de mais de uma igreja de Salvador, segundo seu biógrafo, o também médico Lamartine Lima(6), ganhou o apelido de ‘negreiro’. Além disso: [...] começou a sofrer certas restrições entre alguns professores das faculdades da Bahia e chegou a ter o abastecimento d’água de seu gabinete cessado propositalmente, sendo obrigado logo a busca-la no chafariz do Terreiro de Jesus, com seus alunos [...]. Mas afora a estranheza e a contradição aparente no fato de que um homem cujos desdobramentos da obra o colocam como o grande disseminador das teorias racistas no Brasil ter sofrido discriminação, afora a contradição real de um mestiço defender idéias que em última instância, iam contra ele mesmo, a originalidade de sua obra foi ter abordado um tema tão distante das preocupações dos médicos e de toda a intelectualidade brasileira da época, a arte negra. Como lembra Valdemir Zamparoni (12) , os estudos de Nina Rodrigues contrariavam a tendência do período imediatamente posterior à abolição da escravatura, que era a de negar a reflexão sobre a África, os africanos e seus descendentes. Assumia que existia no Brasil uma “questão negra”, embora, como seja claro na atualidade, partindo de uma “perspectiva evolucionista etnocêntrica em busca da solução desta questão de higiene social”. Com exceção de alguns estudos pontuais, o interesse pela África teve que esperar até os anos sessenta do século XX para ser manifesto no Brasil, na esteira dos movimentos de libertação dos países daquele continente. Principalmente após o ano das comemorações do centenário da abolição da escravidão (1988), o assunto arte afro-brasileira passou a ser muito discutido, gerando várias publicações, mas no início do século vinte, a matéria não era comum. Com o artigo As Belas Artes nos Colonos Pretos do Brasil, Nina Rodrigues inaugurou o campo de estudos sobre arte negra. Publicado inicialmente na Revista Kosmos do Rio de Janeiro, em 1904a , este artigo sintetiza as diligências de Nina Rodrigues sobre arte negra. Fruto de um trabalho de campo e análises bibliográficas sobre arte africana, trata-se de um texto seminal, que sob vários aspectos analisados a seguir, estabeleceu as bases sobre as quais o assunto seria tratado no próximo meio século. A primeira alteração ocorrerá apenas em 1956, quando Arthur Ramosb ampliou o leque de obras a serem abordadas no interior da arte afro-brasileira, incluindo artistas populares e que produziam obras laicas. Até então, o que se denominava arte afro-brasileira era a produção ritualística e de origem iorubana e fon, tal como conceituou Nina Rodrigues. Compartilhando a tese de que os povos acima eram mais desenvolvidos do que os bantos, Rodrigues aferrou-se à Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28 informação, hoje contestada, de que para o Brasil teriam vindo mais negros do primeiro grupo do que do segundo. Tomou o dado local que estudou, a Salvador do final do século dezenove, pelo Brasil como um todo, e o caracterizou como sendo um país para onde vieram predominantemente iorubanos. Ao selecionar as peças que iria abordar em seu artigo, o autor elegeu apenas obras destinadas ao culto religioso, deixando de fora as obras populares e mesmo as eruditas produzidas por negros aqui mesmo, em Salvador, na Escola de Belas Artes da Bahia e Liceu de Artes e Ofícios, tais como Antonio Firmino Monteiroc e Antônio Rafael Pinto Bandeirad . Com esta seleção criou um paradoxo que perpassa toda a história da arte afro-brasileira, a da relação exclusiva entre arte negra e religião. Somente com a exposição de 1997, A mão afro-brasileira(1), artistas negros que realizaram obras eruditas no século XIX foram historicizados, com a introdução destes na mostra, como artistas afro-brasileiros, muitos dos quais contemporâneos de Nina, considerando para a inclusão nesta categoria apenas o fato de serem negros e não a temática presente nas suas obras. Analisemos, pois As Belas Artes nos Colonos Pretos do Brasil, única obra conhecida de Nina que se refere especificamente à arte negra. Nela o autor analisou seis obras de arte negras (Figura 1)e , a saber: um Oxê de Xangô com representação masculina (2º objeto), uma estatueta de “sacerdote ou filho de santo” (3º objeto), um trono de Iemanjá (5º objeto), uma estatueta do culto de Oxum (6º objeto), um Oxê de Xangô com representação feminina (8º objeto) e um cofre que o autor atribuiu a Iemanjá (Figuras 2 e 3), peça sobre a qual o autor dedica o estudo mais detalhado. O autor inicia o sub-item, no qual faz referência especificamente à pintura e escultura, com uma defesa da arte produzida por negros: “O natural menosprezo, que votam aos escravizados as classes dominadoras, constitui sempre, e por toda a parte, perene ameaça de falseamento para os propósitos mais decididos de uma estimativa imparcial das qualidades e virtudes dos povos submetidos”(10). Claro está que ele atribui à arte negra uma positividade e esta postura fica evidenciada no decorrer do texto, em que por diversas vezes faz assertivas elogiosas a ela. [...] “nesses toscos produtos, já é Arte, que se revela e desponta na concepção da idéia a executar, como na expressão conferida à idéia dominante dos motivos” (10). Atentemos para o fato de que Nina, ao assumir esta posição estava na contramão da tendência de seu tempo, a qual, via de regra, atribuía a estes objetos apenas valor etnográfico, sequer nominando-os como arte, sendo encarados e utilizados, como documentos do estágio atrasado da cultura material e sociedades africanas e afro-brasileiras, recolhidos como indicadores da realização de cultos religiosos então abominados. A Etnologia despontava como a ciência do exótico, criando seus próprios museus, separando convenientemente as Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28 Nina Rodrigues e a Arte Negra ano Brasil 25 Figura 1. Figura 3. Figura 2. produções artísticas dos povos que estudava, daquelas da cultura erudita ocidental, medida para a atribuição do valor de arte a um objeto. As obras africanas eram adjetivadas como primitivas e sobre elas o interesse era científico e não estético. Para demarcar claramente sua posição, Nina não se satisfez em usar o termo arte, o fez utilizando em letra maiúscula, incluindo-a em um único conceito universal de belo ocidental, em uma construção histórica segundo a qual existiria uma arte fora do tempo com premissas que permearam e ainda permeiam boa parte da filosofia da arte. O termo arte utilizado com letra maiúscula fazia referência, ao seu tempo, apenas à arte erudita ocidental. Se para o médico, os negros não eram iguais aos brancos biologicamente e por isso, não poderiam ser tratados como tal, até mesmo sob o aspecto legal, com referência à arte sua postura é mais heterodoxa, pois afirma que “Com outros 26 Marcelo Bernardo da Cunha, et al. recursos, em outro meio, muito podem dar de si”(10). Assim, se os artistas negros tivessem acesso a escolas onde fossem ensinadas as regras da arte erudita ocidental realizariam as formas esculturais mais próximas daquilo que ele considerava a perfeição. Mas ao mesmo tempo, as palavras do autor deixam transparecer o tom paternal com o qual ele acreditava que deveriam ser tratados os “inferiores”: investia nas potencialidades negras, mas não as equiparava às brancas. Suas obras procuram justamente evidenciar e reconhecer, em suas palavras, as diferenças físicas, culturais e morais dos negros brasileiros como integrantes do patrimônio cultural nacional, ainda que as considere inferiores em relação à contribuição do branco europeu(12). Demonstrando conhecer as bibliografias recentes sobre arte africana, assunto que apenas começava a suscitar o interesse de etnólogos e historiadores europeus, Nina fez referência às pinturas ideográficas e ao famoso trono do rei Bêhanzin (Figura 4)f , os dois do Daomé. Aliás, comparou o referido trono a um cofre sagrado encontrado em uma praia de Salvador (Figuras 2 e 3), equiparando-os. Diz textualmente: [...] “o cofre sagrado...vale o trono de Bêhanzin”(10), o que deve ser considerado como uma tentativa de valorização da arte negra brasileira, ao tempo em que valorizava a arte do Benin. A relação que estabelece entre as duas obras serviu também para que o autor defendesse a tese de que os exescravos brasileiros eram oriundos do mesmo povo que realizou o citado trono. Figura 4. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28 Informando como pretendia realizar a análise das obras eleitas para o estudo, o autor mantém o tom relativizador em seu discurso sobre a arte dos negros e da importância dos contatos com a produção e técnicas artísticas ocidentais para o seu aperfeiçoamento: Mandam as regras de uma boa crítica desprezemos as imperfeições, o tosco da execução, dando o devido desconto à falta de escolas organizadas, da correção de mestres hábeis e experimentados, de instrumentos adequados, em resumo, da segurança e destreza manuais, como da educação precisa na reprodução do natural(10). Para Nina a boa arte era aquela ensinada nas academias que estavam encarregadas de transmitir, através de mestres, regras fixas tais como a cópia de modelos extraídos não somente da natureza, mas, sobretudo de obras do passado. Ponto pacífico nas análises do autor é a superioridade da arte européia erudita, especificamente aquela elaborada a partir do Renascimento italiano, medida de atribuição de valor a qualquer outra cultura. A arte considerada perfeita era a que imitava a realidade e, sobretudo, a que recompunha a realidade idealmente. Esta teoria da arte vigorou longo tempo, arrefecendo apenas no início do século XX na Europa e na década de vinte no Brasil, sob os auspícios da Semana de Arte Moderna de 22. A crítica de arte de Nina Rodrigues parte dos antigos pressupostos e ao analisar as obras realizadas por artistas africanos ou afro-brasileiros estabelece comparações que hoje são consideradas inoportunas, pois que não há nenhum sentido em vincular dois modelos estéticos tão diversos, já que a contemporaneidade compreende que as duas tradições tinham objetivos diferenciados ao materializarem suas formas artísticas. Podemos apontar nas análises desenvolvidas por Nina, influências claramente devidas aos médicos Jean-Martin Charcot, o mais renomado neurologista francês do século XIX, e Paul Richer, seu aluno e colaborador, que utilizam obras de arte em seus estudos. Outra influência foi a obra de Maurice Delafosse, que trabalhou no Museu de História Natural da França estudando e catalogando obras de vários povos da África, apesar de sua formação como orientalista especialista em árabes. Delafosse era administrador colonial francês na África. Dele Nina Rodrigues extraiu a precisão na descrição das peças. Este método descritivo é típico da etnologia, muito embora possa ser confundido com o método formalista da História da Arte, sendo que a diferença básica entre eles é que o método etnográfico não realiza a análise estilística das obras, pois que não lhe é necessária. As análises realizadas por estes estudiosos e seguidas por Nina partiam de indicios presentes nas obras. Ao contrário da idéia corrente à época, enfatizava que as obras dirigidas aos rituais não eram fetiches, como [...]“se poderia acreditar à primeira vista, como o supõe o vulgo, como o têm afirmado cientistas e missionários que se deixam guiar pelas aparências e exterioridades”(10), encarando-as Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28 como representações simbólicas relativas aos atributos das divindades, como imagens [...]“dos sacerdotes deles possuídos e revelando na atitude e nos gestos as qualidades privativas das divindades que os possuem”(10). As abordagens de Nina Rodrigues foram limitadas tanto pelo desconhecimento das culturas africanas e preconceitos sobre as culturas negras locais, resultando de considerações muitas vezes baseadas em observações empíricas, quanto pelas suas concepções sobre arte, a partir das quais estabelecia nexos e interpretações da realidade e da cultura material produzida por negros. No caso da análise iconográfica da peça “Sacerdote ou filho-de-santo dançando” (Figura 1, 3º objeto), fica claro que o autor desconhecia que a escultura é apresentada em posição de joelhos fletidos, figuração típica que denota posição de estabilidadeg em muitas culturas da África. Mas quando da publicação do texto, os estudos referentes à história da arte africana eram incipientesh e é presumível que estas constantes formais fossem desconhecidas. Para ele, a posição da figura do sacerdote ou filho de santo era a tentativa frustrada do artista negro de representar a dança que faz parte do ritual de possessão no candomblé. [...] representa um sacerdote ou filho de santo dançando, provavelmente possuído do orixá. É com precisão Figura 5. Nina Rodrigues e a Arte Negra ano Brasil 27 a atitude dos braços com que, num curto movimento cadenciado destes, os dançarinos, dispostos em fila, uns atrás dos outros, acompanham o ritmo da música bárbara do batucajé, batendo compasso nos flancos com os cotovelos. O escultor, não conseguindo dar aos membros inferiores a disposição da marcha, limitou-se a figurar a atitude meio agachada de um dos passos da dança”(10). Após uma breve consideração sobre um trono de Iemanjá, o autor se detém na análise de dois oxês de Xangô (Figura 5), comparando, quanto aos fins, estas obras com uma gravura cristã do século V, sobre a qual Charcot e Richer realizaram estudo iconográfico. “Como expressão simbólica, os dois produtos de arte se equivalem e bem retratam a identidade essencial do pensamento humano nas diferentes espécies ou raças”(10). Partindo da equivalência simbólica Nina Rodrigues deduz a existência de uma “identidade essencial do pensamento humano” apesar de acreditar na existência desigual de espécies ou raças humanas. O autor identificou, entre as obras analisadas, tendência à representação realística das figuras, o que atribuiu a contatos com o mundo branco, como indice do mestiçamento dos indivíduos produtores das obras, uma vez que considerava que a arte primitiva baseava-se na figuração idealizada. Ao analisar a escultura referida como uma peça do culto a Oxum (Figura 6) observou que o artista estava preocupado em representar a figura de uma mulher com traços fisionômicos brancos. As tatuagens ou gilvazes étnicos do rosto, como a cor preta, não conseguem mascarar os atributos da raça branca, no nariz afilado ou leptorrínio, na boca pequena, lábios de grossura não exagerada, nas proporções do talhe. Não fossem, como outros de menor monta, os defeitos dos braços desproporcionados as formas anatômicas bem corretas, esta peça estaria quase perfeita”(10). Excelente observador, como já apontaram vários estudos sobre ele, ao descrever o cofre que comparou ao trono de Bêhanzin, narrou toda a ação presente na figuração, como se pode observar na citação abaixo: A mulher da frente, em pé por dentro do arco formado pelo crocodilo e, logo atrás do laço, segura e levanta com a mão direita a pata esquerda do réptil que, forçado por este movimento, fica com a cabeça deitada de lado; com a mão esquerda, segura e levanta a cauda do animal, sobre cuja extremidade descansa o fundo do cofre(10). Sobre este objeto o autor consagrou o estudo mais aprofundado, primeiramente realizando longa descrição para, logo a seguir, interpretar sua iconografia complexa a partir do seu suposto conhecimento sobre mitologia jeje, identificando “incoerências” na representação da peça, como, por exemplo, a comemoração da morte de um o jacaré, animal “sagrado para muitos africanos”(12), por um homem branco, atribuindo esta iconografia às alterações que os cultos vinham sofrendo na própria África à sua época. O autor não explicita quais os parâmetros que utilizou para identificar esta peça como um 28 Marcelo Bernardo da Cunha, et al. Figura 6. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Araújo E. (org). A mão afro-brasileira. São Paulo: Tenengue, 1988. 2. Araújo E. (org). Para nunca esquecer. Negras Memórias, memórias de negros. Brasília: Ministério da Cultura, 2001. 3. Corrêa M. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. São Paulo: USP, tese de doutoramento, 1983. 4. Delafosse M. Lê trône de Behanzin et lês portes dês palais d’Abomé au Musée ethnographique du Trocadero. La Nature: revue des sciences et de leurs applications aux arts et à l’industrie, Paris: 1090, 1894 5. Lima L. Em busca de Nina Rodrigues. Salvador: CEAO/UFBA, 18p., 1979. 6. Lima L. Roteiro de Nina Rodrigues. Salvador: CEAO/UFBA, abril, 5p., 1980. 7. Ramos A. O negro na pintura, escultura e arquitetura. In: O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1956, cap. X, p. 138-149. 8. Ribeiro M. A morte de Nina Rodrigues e suas repercussões. Afroasia, nº16, p. 54-69. 1995. 9. Mello e Souza M. de. Entrevista com Alberto da Costa e Silva. Historiador Eletrônico [entrevistas, set 2003]. Recuperado em 25 de junho de 2006 de: http:// www.historiadoreletronico.com.br. 10. Rodrigues R. N. Os africanos no Brasil. 7º edição. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1988. 11. Silveira R. da. Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental. Afro-Ásia 23: 87-144, 1999. 12. Zamparoni V. D. Os estudos africanos no Brasil. Veredas. Recuperado em 10 de outubro de 2005 de: www.mulhresnegras.com.br., 2p. Notas “cofre de Iemanjá” inexistindo na análise iconográfica apresentada, quaisquer indicios que nos permitam tal atribuição. Como esta obra, bem como todas as outras às quais este estudo faz alusão estão desaparecidas, não se tem como avaliar a precisão e a justeza das descrições e interpretações de Nina Rodrigues. Refletir sobre as abordagens realizadas por ele, revela as dificuldades inerentes aos estudos de cultura material baseados na abordagem dos indícios dos objetos em si, sem maior aprofundamento e conhecimento dos contextos culturais que deram origem aos mesmos. Nina Rodrigues não compreendeu inteiramente a gramática formal da arte negra produzida na Bahia, mas é preciso que se diga que apesar de afirmações que hoje podemos apontar como resultantes de limitações relacionadas ao conhecimento da arte negra de então, reforçadas pelas teorias racistas vigentes, o seu mérito foi trazer à cena da época uma obra capital, que iniciou uma tradição de estudos sobre a temática, permitindo que na atualidade seja possível uma visão do quadro da produção de cultura material afro-brasileira na virada do século XIX ao XX, dando visibilidade à presença negra na cultura e na arte brasileira de então e suas continuidades contemporâneas. a b c d e f g h Posteriormente o artigo foi publicado no livro Os africanos no Brasil, editado em 1933. O artigo foi reeditado em 1998 no catálogo da exposição A mão afro-brasileira e também em Para nunca esquecer. Negras Memórias, memórias de negros, de 2001). In: O negro na pintura, escultura e arquitetura. In: o negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1956, cap. X, p. 138-149. Nascido no Rio de Janeiro em 1855 e falecido em 1888. Formado na Academia Imperial de Belas Artes. Pintor, tipógrafo e artesão, foi professor de Pintura na Escola de Belas Artes da Bahia de Perspectiva e Teoria da Sombra, no Liceu de Artes e Ofícios em Salvador, cerca de 1887. Nascido em Niterói em 1863, falecido no Rio de Janeiro em 1896. Formado na Academia Imperial de Belas Artes. De 1887 a 1890, ocupou o cargo de professor de desenho no Liceu de Artes e Ofícios em Salvador. As imagens das peças aqui apresentadas estão na obra Rodrigues R. N. Os africanos no Brasil (10). Esta imagem foi publicada no artigo de Maurice Delafosse na revista La Nature.(4) Posição recorrente em figuras que representam gênese, constância, força, permanência e poder em algumas sociedades tradicionais africanas, que simbolizam a base a continuidade da harmonia cultural. FROBENIUS, Leo publicou em 1898 o primeiro estudo sobre as máscaras africanas. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34 Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia 29 Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia Nina Rodrigues and the African Art in Bahia Jaime Sodré Universidade do Estado da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil Este artigo aborda as opiniões do Dr. Raymundo Nina Rodrigues, no campo da produção artísticoreligiosa dos “colonos pretos” no Brasil, levando em conta o seu o ponto de vista, de base etnográfica, sobre as peças coletadas por ele do universo do Candomblé, que serviriam de substrato para a contemporânea definição de uma “Arte afro-brasileira” ou “Arte Negra”. O texto também elabora discussões pertinentes à temática da Filosofia da Arte, e as opiniões dos artistas da “corrente cubista”, a exemplo de Picasso, sobre a “arte negra”. Palavras-chave: Nina Rodrigues, arte afro-brasileira, Filosofia da Arte, candomblé. This article treats of the Doctor Raymundo Nina Rodrigues opinions on artistic and religious production of Brazilian “black settlers”, considering his ethnographical viewpoint about the pieces he compiled in Candomblé univers and that have been the substratum for the contemporary definition of “Afro-Brazilian Art” or “Black Art”. The text also presents arguments in Art Philosophy and cubist artists like Picasso opinions about “Black Art”. Key words: Nina Rodrigues, Afro-Brazilian art, Art Philosophy, candomblé. Este texto tem o caráter de um breve ensaio, limitado pelo privilegiado espaço cedido pela “Gazeta Médica da Bahia”. O que mais me fascina neste fazer é a possibilidade, baseado no que afirmara o Dr. Nina Rodrigues(4) em seu livro “Os Africanos no Brasil”, de tratar da contribuição africana registrada na Bahia, vislumbrando uma estética particular, hoje já integrada no cotidiano baiano. Esta possibilidade resgata um aspecto de “humanização”, na “sensibilidade” espiritual e estética do povo africano e afro-brasileiro, contrastante com a idéia de um ser apenas serviçal, embrutecido, ignorante, insensível, voltado exclusivamente para o trabalho no ato braçal, pouco criativo e rudimentar, ou seja, a possibilidade do exercício da arte resgata aos negros a sua humanidade pela via do senso estético. Embora não possamos enxergar, explicitamente, uma preocupação voltada para a complexidade do objeto enquanto arte, no texto do Dr. Nina, pois esta não seria o seu objeto primordial de estudos, o registro oportuno e os seus comentários do ponto de vista etnográfico, é até hoje creditado Recebido em 20/9/2006 Aceito em 14/11/2006 Endereço para correspondência: Prof. Jaime Sodré. Av. Cardeal da Silva, 53, apto. 103, Federação. 40231-305, Salvador, BA, Brasil. Telefax: (71) 3235-2770. E-mail: [email protected] Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):29-34. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. como uma contribuição valiosa. Seria impossível aprofundarmos as apreciações das ações culturais dos negros, se não fosse a presença deste importante material, salvo de um contexto que creditava a estes objetos um baixo grau de relevância. O valor negado culminava, por vezes, em ações policiais de apropriação ou simples destruição. O cuidado observado pelo “Mestre Nina” a estas peças e seu estudo, assemelhava-se aos dos criteriosos colecionadores de uma obra de arte, na condição de instrumento etnográfico, pois ele reconhecia o seu valor. Se hoje enxergamos nestes objetos manifestações de “ARTE”, decorridos longos anos de evolução conceitual, isto nos leva, de forma mais confortável, a visualizar nestas produções qualidades estéticas, tendo como elemento gerador a matriz africana. Seria absolutamente anacrônico exigir do pesquisador Nina Rodrigues uma postura que é vigorante em nossa época, quando a arte africana e afro-brasileira já encontram-se, provavelmente, isentas de questionamentos. As preocupações dele eram outras, e também importantes, mas a seleção dos objetos estampados em seu livro, com uma visão de um “curador” que lembra, discretamente, os organizadores de exposições contemporâneas, nos é muito grato e não perdera a sua utilidade e relevância, não merecendo outra postura, senão o mais amplo reconhecimento por este cuidado e preservação de um material que outros simplesmente destruiriam com a retórica dos golpes, fruto dos preconceitos, alimentados pelo fogo da ignorância além das ações da polícia. 30 Jaime Sodré “As belas-artes nos colonos pretos”, um dos itens do livro aqui referido, de autoria de Nina Rodrigues, representa a abordagem do “Mestre”, no que ele identificou como, a “ocasião de dizer das formas por que se revelava nos colonos pretos a aptidão à cultura artística”. Para ele, todas as BelasArtes se agrupariam de modo lógico e completamente natural, em torno da Linguagem, representadas nas duas formas de exteriorização de sentimentos e pensamentos, ou seja, na palavra e na escrita. Examinaremos mais tarde estas idéias, no momento, vale a pena assegurar que, ao referir-se às “Belas-Artes”, Nina não se envolve na parafernália teórica e filosófica sobre este assunto, tão ao gosto dos pensadores da poética, da estética e da plástica, na eterna discussão do “Belo”. Estes senhores do “saber e das virtudes nos moldes dos pensadores”, elaboraram uma definição de ‘Belas-Artes” que classifica como tal a arquitetura, a escultura e a pintura, em oposição á arte aplicada ou decorativa, diferenciação indeterminada, ao menos, até os meados do século XVIII. Tampouco não acreditamos que o “Mestre” se apoiaria na concepção de “Beaux-Arts, Beaux-Arts tradition”, no sentido deste termo associado à École das Beaux-Arts de Paris, esta, fundada em 1617, apesar de Nina Rodrigues relacionar-se otimamente com a cultura francesa. As Belas-Artes em Nina reveste-se de caráter descritivo, logo, etnográfico, isenta de aprofundamentos da filosofia da arte. No campo da Filosofia da Arte, diz melhor Jean Lacoste(2), da École Normale Supérieure, exercendo a função de professortitular. Onde couber, o legado do material de arte africana coletado por Nina Rodrigues poderia, contemporâneamente, desfrutar das reflexões de Lacoste, considerando este acervo incluso no campo das artes. Para este, a “arte é irredutível à linguagem e aos conceitos [...], a própria arte encarrega-se de fazer explicar, no tempo e no espaço, toda e qualquer definição canônica do belo”. No que se refere à arte africana ou afro-brasileira, a sua força e particularidades estéticas, ao longo do tempo, as fizeram enxergá-las como tal. Quanto aos artistas, “colonos pretos ou não”, as “Belas-Artes”, segundo Lacoste, “são filhas do gênio”. A definição desta “beleza” nas Belas-Artes se faz nascer de um prazer estético implícito nas sensações dos observadores e no seu fazer. Questões como a posição de Platão, que reconhece a existência das coisas que são belas em si mesmas, por fornecerem um prazer limpo, ou seja, sem misturas, contrastando com a visão de Sócrates, onde o belo é uma concordância que resulta do ouvido e da vista, ou posições que remontam à utilidade da beleza, sendo relativa com um bem no qual o objeto belo concorda, culminará com Kant que afirmará: “o belo é útil”. São discussões alheias ao fazer do Mestre Nina, embora a aplicação destes conceitos, numa postura especulativa atual, poderia valer-se do apoio do material estético africano, recolhido pelo zelo do Mestre. Deste Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34 modo, “as coisas belas”, que cabem em todas as culturas, só são belas por conduzirem aqueles que as amam a buscarem na unidade deste fator, os sentidos que fazem estas coisas serem realmente “belas”. Um aspecto importante na definição da “beleza” como elemento de contemplação estética, é a busca da unidade dessa definição pela via da multiplicidade, que encontra-se nas “belas coisas”. Apesar da rigidez da análise etnográfica, o Mestre Nina não elimina a possibilidade do “belo” naquelas obras por ele selecionadas. Na verdade, há um julgamento na postura do Mestre, um julgamento mediante o seu gosto e gozo estético, um julgamento que postula “uma coisa bela”, levando em conta que a capacidade de julgar, em geral, seria a faculdade que permite relacionar o que é particular com o universal, onde um julgamento é algo “determinante e reflexivo”, como afirma Lacoste, sendo que, para este, essa faculdade de julgar reflexiva “é tão-só a aplicação de conceitos, apriorísticos do entendimento”. Mas, por outro lado, o “gosto”, sensação que envolve conhecimento e sentimento, cultiva-se, e só uma longa experiência apura as regras deste sabor. Deste modo, não podemos deixar de vislumbrar nas análises e afirmações do Dr. Nina Rodrigues, no campo das “Belas-Artes” dos colonos pretos, um prazer e um gozo em lidar com este material, a seu modo e época. O gosto, empenho e maneiras detectados em suas pesquisas, levariam o Mestre a um julgamento crítico das obras africanas, às regras de uma ciência, onde as especulações filosóficas seriam naquele instante desnecessárias aos seus objetivos. Seria no mínimo incoerente querer exigir do Mestre, de forma explícita, afirmações como esta, farta em Lacoste, de que: “As belas artes são as artes do gênio”. Reconhecer “genialidade” nos produtores dos objetos africanos, Nina o faz, a julgar pelo fato do seu interesse em estudar as peças produzidas por estes. O gênio importa em um “talento”, ou um “dom natural”, “uma faculdade produtiva inata”, sendo que, o paradoxo do gênio é ser simultaneamente “original e exemplar”. È possível reconhecer nas peças selecionadas pelo Mestre Nina Rodrigues estas qualidades, de modo objetivo ou até mesmo subjetivo. Os esforços empreendidos pelos africanos na produção do seu fazer artístico, tem a necessidade do nascimento da obra de arte com a finalidade de comunicar um conhecimento, um estado cultural particular, para suporte de uma prática religiosa especial e própria, reconhecida pelo Mestre. São nestas “Belas-Artes dos colonos pretos” onde encontramos o lócus da arte, em uma forma particular, sendo o suporte sobre o qual o espírito criativo africano e a sua religiosidade se manifestam, e isto o Mestre analisa bem, esboçando uma preliminar de “Arte sacra africana”, sendo esta, uma arte que extrai o seu valor e sua legitimidade, por ser um fazer essencialmente humano e para os humanos. Nina contempla a produção artística dos colonos pretos como um Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34 Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia ato de humanidade, tão oportuno naqueles tempos. A arte dos negros também tem por finalidade tornar concreto o que ela possui de conteúdo e de riqueza estética, aos olhos dos que se capacitarem para assim a ver. Especula Lacoste: “O que é o belo? Uma idéia. Mas o que é uma idéia? A idéia não é uma representação abstrata, é a unidade de um conceito e da realidade. O conceito é a alma e a realidade o invólucro físico”. Lacoste, unindo as suas idéias no essencial aos tempos pretéritos das idéias do Mestre Nina Rodrigues, em ambos poderemos visualizar, cada qual a seu modo, que: “A ARTE É NECESSÁRIA”. Mas, que Arte é esta de viés africano? Hoje, seria fácil estabelecer parâmetros conceituais sobre arte a africana e suas derivações na diáspora, desde que superadas as visões etnocêntricas ou acadêmicas conservadoras. Nem sempre existiu esta facilidade no campo conceitual, tomemos como exemplo paradigmático o que chamamos: “o caso Picasso”. Entre 1906 a 1907, Pablo Picasso pintou a célebre “Señoritas de Aviñión”. Examinando esta obra, encontramos em sua tela uma reprodução, que outros chamariam de apropriação, de traços que remetem ao repertório estético africano, deste modo, Picasso inaugura em seu repertório plástico o que foi chamado de “época ou fase negra”. Fundamentado nestes parâmetros, entre 1913 a 1914, Picasso realiza construções, em materiais diversos que, como afirma o historiador do cubismo, Daniel Henry Kahnweiler, assinala sua rigorosa ruptura com os traços da escultura européia. Nesta época, este artista admirador da produção estética negra, colecionava máscaras africanas, a exemplo de algumas da região de Sassandra, na Costa do Marfim. O que se vê é que, além da observação de caráter estético e inspirador, o pintor espanhol deveria estar absorvendo estes objetos também sob o ponto de vista de uma obra de “arte” e, mereceria um reconhecimento como tal. Pois bem, segundo o que nos informa Michel Leiris(3), associado à Jacqueline Delange, em seu livro África Negra – La criación plástica, a revista Action trazia em seu terceiro número uma discussão interessante: “Opiniones sobre el arte negra”, com visões de personalidades, a exemplo de Paul Guillaume, Victor Goloubew, além de artistas cubistas como Picasso, Juan Gris, Jacques Lipchitz, entre outros. Muitos opinavam sobre o que se chamava na época de “arte negra”. Questionado sobre este assunto, Picasso, aquele que inspirado neste acervo produziu uma revolução nas artes plásticas, respondera: “El arte negra? No lo conozco”, negavase a considerar enquanto “arte”, no sentido corrente do termo, às produções africanas. Ao que parece, segundo alguns autores, seria uma reação de Picasso contra o emprego da expressão “arte negra”, considerada vaga, já que esta expressão postulava a existência de um possível vínculo entre determinado tipo de arte e a cor da pele. Recorremos a Mariano Carneiro da Cunha(1) quando o mesmo aborda a “Arte afro-brasileira” e menciona a evolução 31 da escultura africana, numa tentativa de traçar uma linha conseqüente entre a produção de matriz africana, repercutida na produção local. Neste âmbito discute-se, ao que me parece, sem nenhuma inibição, constrangimento ou inadequação, o que conhecemos como “arte negra”. O que se torna evidente em suas afirmações é a natural visão africana da “necessidade da arte”, e a naturalidade da existência dessa forma de realização humana, que poderá ser vista como “arte negra”. Referindo-se a uma abordagem ancestral desta arte, Mariano Cunha notifica a existência do mais antigo exemplar de uma escultura africana, produzida em madeira, encontrada na África “negra”, que tem como traços escultóricos, elementos zoomorfos. Este objeto foi descoberto próximo das nascentes do rio Liavela, em uma área identificada hoje como pertencente a Angola, e foi datado pelo processo do carbono 14, como produzida por volta dos meados do século VIII. Mariano Cunha elabora elementos que considera fundamental para uma compreensão global do que seria a “arte africana” ou “arte negra”, que impõe a consideração de três elementos: “a) o formal e técnico; b) a finalidade e o sentido; c) sua capacidade de influir sobre outras culturas”. Através destes elementos analíticos, não se poderá descartar ou negligenciar o “negro” enquanto elemento componente de uma história da arte, tanto quanto se levarmos em conta esta presença em outras áreas do conhecimento, a exemplo da economia, o campo social ou cultural. No caso do ambiente antropológico, neste particular é inevitável a menção ao nome do Dr. Nina Rodrigues, onde o mesmo elabora análise tendo a “arte negra” como suporte. Indo além, Mariano Cunha notifica que neste âmbito, uma ação importante seria a que atuasse na “erradicação de certos hábitos rançosos de ex-colonizadores, de sistematicamente atribuir tudo o que se considera bom ou apreciável à metrópole, sobretudo em se tratando de bens culturais cuja origem se desconheça ou se conheça mal”. Citando Nina Rodrigues, afirma: “no que pesem os preconceitos que informam sua obra e que não mais resistem à crítica atual, continua sendo, quanto à informação e método, a fonte mais segura para os trabalhos posteriores sobre o negro no Brasil”. Referindo-se às primeiras coleções de obras de matriz africana (arte negra), o autor registra que os primeiros exemplares de arte afro-brasileira foram as peças coletadas por Nina Rodrigues e publicadas em 1949 na revista Kosmos [A]. Estas peças teriam sido recolhidas a partir de 1890. Menciona ainda, Mariano Carneiro, que na época estas peças encontravam-se na coleção de Artur Ramos, na Universidade Federal do Ceará, em 1949. É este intelectual quem analisaria alguns exemplares coletados pelo Mestre Nina, nos candomblés da Bahia, em 1927, e que também se achavam na Universidade Federal do Ceará [B]. Informa também, Mariano Cunha, que na época um acervo também importante seria o do Museu da Discoteca de São Paulo, que abrigaria uma série de 32 Jaime Sodré “ferramentas” de orixás coletadas em 1937-38, em Recife, Maranhão e Bahia. Nesta oportunidade, levando em conta o que afirmara Mariano Carneiro da Cunha, seria o Dr. Nina Rodrigues um dos pioneiros na tarefa de salvaguardar estas relíquias históricas, assumindo a preocupação de creditar a importância devida. Pioneiro pesquisador, cuidadoso colecionador, mas afinal, o que constituiria este empenho admirável do intelectual Dr. Raymundo Nina Rodrigues, na lida diuturna em relação a este acervo valioso, que legitimara, mais tarde, um conceito de “arte negra”, “arte africana” ou “arte afro-brasileira”? É o que veremos agora, afinal, esta é a verdadeira motivação destas modestas linhas. Entre as aptidões dos chamados “colonos pretos”, como se refere Nina Rodrigues aos africanos e descendentes, a pintura e a escultura merecem uma abordagem interessante, inclusive registrada na revista Kosmos, em um artigo ao qual se referiu Mariano Carneiro da Cunha. O texto do Mestre Nina inicia-se com uma reflexão sobre a atitude de menosprezo implementada pelas classes dominadoras, que engendra uma visão de falseamento diante das qualidades e virtudes dos povos submetidos, gerando uma crença geral, estimulado por “escritores pátrios” de que os negros que colonizaram o Brasil “pertenciam aos povos africanos mais estúpidos e boçais”. Para Nina, haveria de chegar o tempo em que: “observações desapaixonadas dos fatos [...] (reabilitaria) os negros dos exageros dessa condenação tão sumária quanto infundada”. E, testemunha: “nas levas de escravos [...] vinham de fato, inúmeros representantes dos povos africanos negros mais avançados em cultura e civilização”. As capacidades artísticas manifestadas na pintura e escultura pelo povo negro, consideradas pelo Dr. Nina “as mais intelectuais das belas-artes”, eram as atividades que melhor atestariam os seus talentos, do que puderam realizar na música e na dança. Da pintura negra pouco se saberia, além de “toscos desenhos”, e criações ocorridas no Daomé, em escrituras ideográficas, análogas aos hieróglifos, que seriam uma língua sagrada que decoravam palácios reais africanos. Para Nina Rodrigues é na escultura com maior segurança e apuro que se revela a capacidade artística dos negros, provado “em presunções indutivas como no testemunho de fatos e documentos”. As primeiras palavras do Mestre são generosas e francas, eliminando as possibilidades de uma inapetência dos negros no campo criativo, em especial nas artes, e acrescenta que, nas querelas africanas, ao apoderarse de Caná e Abomei, capital do reino africano, Bêhanzin entregara, destruída e em chamas, antes de abandoná-la ao general Dodds, “o salvo do incêndio em curiosas espécimes” da escultura negra, que foram enviados ao Museu do Trocadero. Compunham essas relíquias de três estátuas dos últimos reis daomeanos, duas portas do palácio real e um trono régio, em tamanho natural [C]. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34 Os deuses e o culto seriam os temas mais valiosos e fonte de inspiração “por excelência dos rudos (sic) artistas negros”, sendo que os de ordem religiosa se agregam motivos retirados da caça e da guerra. Com esta afirmação, Nina Rodrigues começa a elaborar o que chamamos de uma “análise do ponto de vista puramente etnográfico”. Mencionando as ilustrações contidas no livro de sua autoria, importantes como elementos indispensáveis à sua análise, anuncia o Mestre ter reunido no grupo “peças diversas do culto jeje-iorubano dos orixás ou voduns, peças estas ligadas às práticas destas religiões, sobreviventes. Ao que parece, não teria lhe interessado ou não teria ele encontrado, peças do repertório do campo da religiosidade de base banto, também merecedora da sua observação. Fazendo escola, anuncia Nina Rodrigues: “Mandam as regras de uma boa crítica (que) desprezemos as imperfeições, o tosco da execução, dando o devido desconto à falta de escolas organizadas, da correção de mestres hábeis e experimentados, de instrumentos adequados, em resumo da segurança e destreza manuais, como a educação precisa na reprodução do natural”. Eliminando a “idéia de ídolos”, como teriam afirmado cientistas e missionários que “se deixam guiar pelas aparências e exterioridades”, os negros da Costa dos Escravos, os de língua iorubana ou nagô, os de língua jeje, tshi ou gá “não são idólatras”, protesta com veemência Nina Rodrigues. Segundo ele, suas divindades, ou seja, “os deuses africanos”, já partilhavam de qualidades antropomórficas das outras divindades politeístas, porém “ainda conservam as formas exteriores do fetichismo primitivo”, creditando este fato a uma fase curiosa do animismo. As peças, afirma, não são representações diretas dos orixás e, sim, de sacerdotes por eles “possuídos”, revelando as qualidades das divindades, sendo que isto não passaria de uma representação. Ainda no grupo destes objetos, com exceção da quarta peça que é confeccionada em bronze, as demais se utilizavam da madeira como matéria-prima, as primeiras são todas vindas da África, às quais Nina considera nem sempre tão imperfeitas como as demais. No campo dos elementos vinculados à religião dos orixás, encontram-se os “atributos fálicos” de Exu, representado por duas peças em bronze, que o pesquisador conservara em seu poder, não sabemos se por razões de proteção, para estudos mais profundos ou uma outra razão particular, pois como sabemos, Nina Rodrigues, vinculado ao Candomblé na qualidade de Ogan de Oxalá do Terreiro do Gantóis, era cauteloso sabedor das propriedades deste orixá. Julgando por seus critérios, o Mestre atribui às peças de madeira vindas da África ou produzidas no Brasil, um caráter grosseiro e pouco significativo, porém outras traduziram as intenções conceituais dos seus autores que representaria um sacerdote ou um filho de santo dançando, possivelmente “possuído” por um orixá. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34 Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia Já a peça com cerca de 60 centímetros de altura, constitui um tronco ou banco destinado ao sacerdote ou “feiticeiro”, incorporado pelo orixá Yemanjá, tese que demonstra a intimidade do autor com as práticas rituais de matriz africana. Outras peças, ainda atuantes nos candomblés da Bahia, são os “oxés” de Xangô, tão bem retratadas pelas fotos de Pierre Verger. Diante destas avaliações, Nina Rodrigues admite que a “concepção artística do escultor negro” tem a capacidade de confrontar com as concepções similares a uma “pintura branca do século V da era cristã”, igualmente dentro da temática religiosa, e figurantes nos trabalhos iconográficos de Paul Richer e Charcot sobre o “Demoníaco na Arte”. O Mestre informa que a gravura cristã mostra o “demônio saindo da cabeça de um energúmeno” sob a injunção de Jesus Cristo. Para Nina, um oxê também reproduz uma cena de possessão, afirmando que: “Apenas Xangô reveste, não a forma humana que tem o demônio da pintura cristã, mas a sua forma fetichista de meteorito ou de pedra do raio”e, conclui: “Como expressão simbólica, os dois como produtos de arte, se equivalem.” Nina adverte que não deveria ir além desta breve análise, naquela oportunidade, para reservá-la aos estudos no campo “médico-psicológico”. A perícia dos “artistas negros”, de certo modo, recebe uma apreciação positiva, reconhece Nina que a concepção dos escultores já revela um “cunho artístico” bem elaborado em suas peças, observadas nos traços de característica étnica negra aplicados de forma bem configurada, “o nariz chato etíope, os olhos à flor da cara, os lábios grossos e pendentes estão reproduzidos fielmente nas peças.” Há ainda uma constatação de uma possível “mestiçagem” nas peças, à qual Nina não sabe afirmar ser um fator original do traço do artista ou fruto da convivência em um espaço social branco, que determinava a associação de características das duas raças. Nina considera absolutamente possível as duas procedências, sendo que, aqui, onde viviam os negros sob a direção e influência branca, a América educaria os escultores pretos com novos traços, modificando os cânones originais. Sendo, deste modo, um caso puro e simples de influência social de sugestões e imitações inconscientes, que de regra “exercem as classes superiores dirigentes sobre as classes inferiores ou dirigidas”. Mas, é preciso recordar, que o inverso também pode ocorrer, a exemplo do “caso Picasso”. A respeito do cofre, neste destacava-se uma cena de pesca análoga à reprodução escultural. A respeito desta peça, o Mestre informa que a mesma fora encontrada nas praias “de banho da Calçada do Bonfim”, envolta em uma toalha de linho branca. A explicação de Nina remete a uma “obrigação” relacionada ao falecimento de um “pai ou mãe de terreiro”, a quem pertenceria esta peça e fora lançada ao mar com outros objetos do seu peji, por não haver quem desejasse substituir na direção do culto. A peça foi confeccionada em um só bloco de madeira, as figuras representavam um homem da raça 33 branca, de olhos azuis e dentes enormes, uma mulher, um negro e um animal. A dificuldade estaria como compreender “uma escultura africana destinada a celebrar qualquer façanha de um homem branco”. Diante deste desafio interpretativo, o Mestre conclui que esta obra poderia ser em louvor a algum feito de um homem branco, aliado ou protetor, o mesmo reconhece alianças entre brancos e negros, inclusive durante o processo do tráfico negreiro, e cita o caso de Francisco Félix de Sousa, mulato fluminense, o primeiro xaxá de Ajuda, que foi agraciado pelo rei Gezo como “o primeiro dos brancos”. Como conclusão, Nina Rodrigues reivindica um tratamento especial, frente às características da produção negra, coerente com a sua história e estágio cultural. Não admitindo que fossem utilizados como pontos de aferições, cânones do que ele chama da “Arte dos povos civilizados”. Estava aí estabelecido um tratamento diferenciado, ao que parece, não sob a ótica de uma especificidade e singularidade cultural, pois para ele: “Os frutos da Arte negra não poderiam pretender mais do que documentar, em peças de real valor etnográfico, uma fase do desenvolvimento da cultura artística. E, medidas por este padrão, revelam uma fase relativamente avançada da evolução do espírito humano. É já a escultura em toda a sua evolução, mesmo na sua feição decorativa, do baixo-relevo à estatuária. Às vezes são ainda grosseiras porque as idéias não têm a precisa nitidez, os sentimentos e a concepção estão ainda pouco definidos, mas no fundo já se encontra a gema que reclama polimento e lapidação”. Mas, o Mestre Nina Rodrigues nos premia com um raio de esperança, afirmando que: (os colonos negros e seus descendentes) “com outros recursos, em outro meio, muito podem dar de si”. Parece-me que o Mestre fala de oportunidades e capacitação, na perspectiva de, como afirma o Mestre Didi: “evoluir sem perder a essência”. E ao que parece a profecia se realizou. Hoje com naturalidade, mas valendo-se do pioneirismo do MESTRE Nina Rodrigues, podemos definir uma produção artística de matriz africana com a opinião que nos fornece Mariano Carneiro da Cunha: “Arte afro-brasileira é uma expressão convencionada artística que ou desempenha função no culto dos orixás, ou trata de tema ligado ao culto”, esta forma de definição remete esta produção exclusivamente a elementos estéticos ligados ao culto de matriz africana, porém, como reconhece também Mariano Cunha, podemos incluir neste campo as iconografias associadas aos “cultos de caboclos”, e ao repertório simbólico da umbanda, ambas desfrutando da influência do culto afro-brasileiro, por terem seus esquemas estéticos e mentais ligados à cosmovisão africana. O que se afirma na arte africana cabe perfeitamente na arte afro-brasileira, uma arte conceitual e icônica que, para a sua completa fruição, o observador deverá ter intimidades com o universo simbólico que orienta esta produção. A arte afro- 34 Jaime Sodré brasileira oferece o seu sentido, significação e importância por ser um agente que exprime pela via estética, um manancial do acervo cultural negro, um dos construtores da nossa identidade. Pelo exposto, fruto do empenho do Mestre Raymundo Nina Rodrigues, muito temos que agradecer-lhe, muito que compreender na observação da ousadia dos pioneiros e suas incorreções, plantadas como sementes que os posteriores, por certo corrigirão. Tudo estaria inerte sem a gênese de um começo, muito temos que louvar ao MESTRE, destemido em suas idéias. As bênçãos de Oxalá, o seu generoso Eledá. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34 2. Lacoste J. A filosofia da arte. Tradução de Álvaro Cabral, Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 1977. 3.Michel L & Delange J. África Negra – La criación plástica. Tradução de Luiz Hernandéz Alfonso. Madrid: Aguilar. 1967. 4. Rodrigues N. Os africanos no Brasil, 7ª edição. São Paulo: UnB, 1988. Notas [A] [B] Referências Bibliográficas [C] 1. Cunha, MC da. Arte afro-brasileira. In: Zanini W. História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Sales, 1989. Revista Kosmos, ano I, agosto de 1904, sob o título – As BelasArtes nos colonos pretos do Brasil. Em seu texto Mariano Carneiro da Cunha informa que o Instituto Geográfico e Histórico das Bahia teria uma pequena coleção de peças apreendidas pela polícia, no Candomblé de Pulquéria do Gantóis, que na época estaria no Museu Estácio de Lima, do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues. Estas peças continham os traços dos protetores totêmicos dos reis Guesô, as penas de um galo, Guêlêlê um homem crocodilo e Bêhanzin um homem-leão. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41 Nina Rodrigues: Resgate da Memória 35 Raymundo Nina Rodrigues: Resgate da Memória na Documentação Arquivística da FFaculdade aculdade de Medicina da Bahia Raymundo Nina Rodrigues: Rescue of the Memory in the Arquivistic Documentation of the College of Medicine of the Bahia Zeny Duarte, Teresa Coelho, Ademir Silva, Lúcio Farias, Victor Souza, Jeane Almeida, Ana Araújo, Lázaro Castro, Aline Carvalho Grupo de pesquisa: Memória da Medicina brasileira nos primeiros tempos. Instituto de Ciência da Informação e Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB), Salvador, Bahia, Brasil A função do arquivista pressupõe seu perfil valorizado como profissional da informação e pesquisador inserido na sociedade do conhecimento. Este artigo demonstra a pertinência da sua participação no desenvolvimento de pesquisas em acervos históricos, realizando análise documentária do material existente na Faculdade de Medicina da Bahia relativo ao professor Raymundo Nina Rodrigues, 1862-1906. Destaca o valor histórico dessa documentação e seu registro na memória cultural de um tempo. O que aqui se apresenta, constitui parte de um trabalho contínuo, que visa gerar novas informações para complementar a biobibliografia desse grande mestre. Mediante a verificação de documentos manuscriptográficos, corrigemse informações equivocadas, anteriormente publicadas, sobre sua trajetória acadêmica e profissional. Apresenta-se transcrição de documentos referentes a seu nascimento e a algumas teses de doutoramento elaboradas por concluintes do curso de Medicina, nas quais ele foi citado. Palavras-chave: arquivos históricos, memória da Medicina - Brasil, Raymundo Nina Rodrigues vida acadêmica. The archivist´s function takes for granted his valorized profile as information professional and a researcher that has a share in the knowledge society. This article demonstrates the relevance of his participation in the development of researches in historical archives going through with documentary analysis of the existing material in Bahia School of Medicine related to professor Raymundo Nina Rodrigues, 1862- 1906. The historical value of those records and their register in the cultural memory of a time are placed into relief. What is presented here becomes a constituent part of a continuous work that aims at generating new information to complement the biobibliography of that great master. After observing manuscriptographic documents, mistaken information previously published about his academic and professional trajectory are corrected. A document transcription is also presented referring to his birth and to some theses elaborated by candidates for the medicine university degree, in which he was cited. Key-words: Historical archives, Medicine memorial-Brazil, Raymundo Nina Rodrigues, academic background. Recebido em 8/9/2006 Aceito em 10/11/2006 Endereço para correspondência: Programa de Arquivologia do ICI na FAMEB. Faculdade de Medicina da Bahia, Largo do Terreiro de Jesus, 40026-010, Salvador, BA, Brasil. E-mail: [email protected]. Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):35-41. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. Será que a dimensão da formação do arquivista se reduz aos procedimentos tecnicistas definidos pela necessidade de as instituições operacionalizarem seus arquivos e os meios de busca da informação? A função do arquivista deve estar direcionada à gestão de documentos e ao resgate da memória e da informação, como profissional que simplesmente atende a pedidos? Ou, ao contrário, deve-se repensar o perfil desse profissional, observando o seu valor enquanto profissional 36 Zeny Duarte, et al. da informação e pesquisador do próprio arquivo que analisa e descreve, inserido na sociedade do conhecimento? Transportamo-nos a algumas proposições epistemológicas abordadas por Silva(6) quando indica para o fato de que o objeto da Arquivologia não é apenas o arquivo, nem tampouco os documentos, mas, sim, a informação social estruturada e dinamizada na forma estabelecida de um sistema. A caracterização sistêmica tem um valor instrumental, ou seja, visa à universalização científica do conhecimento arquivístico através de um conjunto variável e cumulativo de princípios gerais demonstráveis, do específico ao genérico. O arquivista tem sido orientado para satisfazer necessidades informativas, de modo que a administração desenvolva suas funções com rapidez, eficiência, eficácia e economia, para salvaguardar direitos e deveres das pessoas, contidos nos documentos, e para tornar possíveis a pesquisa e a difusão cultural. A partir dessas observações iniciais, organizar o acervo da Faculdade de Medicina da Bahia é mais do que implementar um sistema de arquivo que atenda à necessidade dos pesquisadores e estudiosos de maneira geral. Na verdade, deparar-se com uma documentação desse jaez exige do arquivista um estudo aprofundado a partir de pesquisa cuidadosa, permitindo não somente a organização arquivística do acervo, mas, ao mesmo tempo, a análise temática representativa, interpretativa e precisa das peças. Assim, durante todo o tempo, esse profissional exerce, concomitantemente, o papel de arquivista e investigador. É com essa dimensão de seu trabalho que ele se projeta na realização de pesquisas e no âmbito social, compartilhando conhecimento com os demais pesquisadores. Neste trabalho, demonstra-se o quanto é possível e pertinente a participação do arquivista no desenvolvimento das pesquisas em acervos históricos, apresentando, inclusive, o substrato das investigações realizadas no conjunto documental da memória acadêmica da Faculdade de Medicina da Bahia. Trata-se da análise documentária do dossiê acadêmico existente nessa Faculdade referente ao Prof. Raymundo Nina Rodrigues, destacando seu valor histórico como registro da memória cultural de um tempo. A documentação analisada é representada apenas por diminuto corte do acervo arquivístico que ainda existe e resiste às circunstâncias da falta de uma política de salvaguarda e de recursos financeiros à implementação do projeto de resgate e preservação do acervo em sua totalidade, na sua ambiência física e em todo o seu entorno. Incêndio ocorrido na Faculdade de Medicina da Bahia em 1905 destruiu grande parte dos documentos e o próprio laboratório onde Nina Rodrigues desenvolvia seus experimentos. Igualmente, constatou-se a ausência de profissional de arquivo na Faculdade para manter a preservação do acervo recuperado e organizado pela Profª Maria José Rabello de Freitas A, no reitorado de Prof. Dr. Luiz Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41 Fernando Seixas de Macedo Costa, nos anos 80. Tais foram as maiores causas do processo de fragmentação, perda e dispersão de documentos arquivísticos da Faculdade. Devido à imensa gama de possibilidade de outras abordagens sobre Nina Rodrigues, este é um trabalho que se apresenta contínuo e que vai, certamente, gerar novas informações a partir do recolhimento de outros documentos a serem resgatados e descritos em futuros artigos complementares da biobibliografia desse representante da intelectualidade médica da Bahia e do Brasil. SINOPSE BIOGRÁFICA Raymundo Nina Rodrigues nasceu em 4 de dezembro de 1862, na cidade de Vargem Grande, no Estado do Maranhão. Faleceu em 1906, em Paris, França, com apenas 44 anos, e foi sepultado no cemitério do Campo Santo, em Salvador - BA. Para efeito de comprovação de seu nascimento e conforme leitura de sua certidão original, o tabelião da Vila de Vargem Grande, no Maranhão, considerou as informações prestadas pelo alferes Martiniano Andrade, apresentando certidão passada pelo padre Raymundo José Lecont da Fonseca, presbítero secular e vigário colado da Freguesia de São Sebastião de Iguará. Esse documento encontra-se no dossiê da vida acadêmica de Nina Rodrigues e consta que ele nasceu na Fazenda Santa Severa em 4 de dezembro de 1862, sendo filho de Francisco Solano Rodrigues e Dona Luiza Rosa Ferreira Nina, tendo como padrinhos Antônio José Maya, representado pelo tenente Raymundo Alves de Abreu, e Dona Rosa Bernardina Ferreira Nina. Nina Rodrigues recebeu as aulas primárias em sua cidade natal e em São Luís completou as humanidades no vetusto seminário das Mercês de São Luiz do Maranhão. Veio para a Bahia em 1882. Em 1886, no quinto ano do curso médico, publicou seu primeiro trabalho A morféia em Anajatuba. Foi aprovado em concurso, para a secção médica da Faculdade de Medicina da Bahia, ocupando o cargo de adjunto. Em 1891 foi transferido para a seção de Medicina Pública e nomeado catedrático na vaga do conselheiro Virgilio Damazio. Como substituto de Clínica Médica, revelou-se mestre na Medicina Pública. Estreou na Medicina Legal com o ensaio As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil, escrito em 1894. Durante uma década, dedicou-se aos estudos teóricos e práticos laboratoriais sobre microrreações, autópsias (necropsias), índices osteométricos, clínica forense, Medicina Legal e psiquiatria. Escreveu relatos, artigos e memórias, publicados em periódicos científicos nacionais e internacionais. A Maria José Rabello de Freitas – autora do projeto Reconhecimento global e estruturação das séries documentais do acervo do Memorial de Medicina da Faculdade de Medicina da Bahia. Diretora, por oito anos, do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia. Introdutora e mentora da Arquivologia na Bahia e Nordeste. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41 Por muito tempo publicou na Gazeta Medica da Bahia, tendo sido membro do Conselho Editorial. Fundou e manteve atualizada a Revista Médico-Legal. Colaborou com BrazilMédico, com a Revista Médica de São Paulo, com os Archivos de Criminologia, Ingenieros, publicação de Buenos Aires, os Annales Publiques et de Médecine Légale, de Brouardel, os Annales médico-psychologiques de Ritti, em Paris, os Annales d´Anthropologie Criminelle, de Lacassagne, em Lyon, e com o Archivio de Psychiatria e Antropologia Criminale, de Lombroso, em Turim. A Revista Brasileira e O Jornal do Comércio também divulgaram vários de seus artigos. Entre outras funções e representações nacionais e internacionais, foi sócio efetivo e vice-presidente da MedicoLegal Society em Nova Iorque, membro honorário da Academia Nacional de Medicina no Rio de Janeiro e membro estrangeiro da Société médico-psychologique em Paris. Pertenceu à Escola Tropicalista da Bahia, quando realizou estudos epidemiológicos sobre o beribéri. Publicou Epidemiologista: estudo histórico de surtos de beribéri em um asilo para doentes mentais na Bahia, 18971904. Nesse texto, também incluído no livro de sua autoria, Africanos no Brasil, constata-se a vocação natural de Nina Rodrigues para empreender estudos antropológicos e etnológicos, destacando-se como autodidata nessas áreas. Durante mais de uma década, realizou pesquisas sobre temas relacionados ao resgate da memória dos negros no Brasil. Investigou a procedência dos escravos deportados, as línguas das tribos, seus usos e costumes. Realizou história oral, por meio de entrevistas, em várias regiões da Bahia, no intuito de escrever sobre a vida, hábitos e o cotidiano dos africanos e também na tentativa de decifrar o enigma criado pelos portugueses a partir do qual, para esconder a realidade do tráfico de escravos e na intenção de enganar os ingleses antiescravistas, destruíram os arquivos, inibiram os manifestos nos navios, separaram famílias e tribos, entre outras formas que podiam dar condições de permanência do tráfico, apesar dos esforços ingleses. Tanto Nina Rodrigues como Silvio Romero registram em seus escritos a perda da língua, dos costumes e das tradições dos africanos trazidos ao Brasil. Nessa direção, Nina Rodrigues realizou pesquisas sobre a influência africana na culinária, na língua e na música do Brasil. Suas maiores críticas foram em relação ao estágio civilizatório daqueles escravos iletrados. Faz referências positivas aos escravos sudaneses que eram islâmicos, sabiam ler e escrever e que lideraram a Revolta dos malês, ocorrida em Salvador no ano de 1835. Pesquisando dados sobre sua vida e obra em outras fontes, na Enciclopédia Delta Universal(3), lê-se esta nótula: Nina Rodrigues (1862-1906), médico, etnógrafo e sociólogo brasileiro, é considerado o iniciador dos estudos africanos no Brasil. Na Bahia, interessou- Nina Rodrigues: Resgate da Memória 37 se pelos costumes dos antigos escravos e seus descendentes, especialmente as práticas religiosas e a convivência destas com o culto católico. O resultado desses estudos está contido principalmente em duas obras: O animismo fetichista dos negros da Bahia (Paris,1900), publicada originalmente em francês, e Os africanos no Brasil (1932). Igualmente, consta na Enciclopédia Barsa(2): Médico e etnólogo brasileiro (Vargem Grande – MA, 4-XII-1862 – Paris, 17-VII 1906). Iniciou o estudo de Medicina na Bahia, completando-o no Rio de Janeiro, onde se diplomou em 1888. Professor da Faculdade de Medicina da Bahia, a partir de 1891, a obra que deixou, de publicação póstuma, é notável pela documentação recolhida, destacando-se Os africanos no Brasil (1932), O animismo fetichista dos negros na Bahia (1900) e O alienado no direito civil brasileiro (1901). É considerado o pioneiro dos estudos sobre o negro no Brasil. Este trabalho tem o objetivo principal de resgatar a veracidade das informações acerca da biografia de Nina Rodrigues por intermédio de leituras em documentos comprobatórios do acervo arquivístico da Faculdade de Medicina da Bahia. Assim, fizemos a transcrição paleográfica (5) do registro da carta manuscrita de Nina Rodrigues com dados sobre sua nomeação e posse como docente dessa Faculdade, no ano de 1889, dirimindo dúvidas acerca de informações controversas. Registro da Carta do Dr. Raymundo Nina Rodrigues Attendendo ao merecimentoe às habilitações que em concurso mostrou o Doutor Raymundo Nina Rodrigues, Hei por bem momeal-o para o logar de adjunto à 2ª cadeira de clinica médica da Faculdade de Medicina da Bahia, com o vencimento que lhe competisi. Palacio do Rio de Janeiro em seis de setembro de mil oitocentos e oitenta e nove, sexagesimo oitavo da Independencia e do Imperio. Com a rubrica de sua Magestade o Imperador. Barão de Loreto. Cumpra-se e registra-se Palacio da Presidencia da Bahia, 27 de setembro de 1889 Almda Coreto. Nº 2032. 3 of. Pagou trinta mil reis, Re. e B. provinceal 27 de setembro de 1889. O Fiel. A. Guimarães. 38 Zeny Duarte, et al. O escrivão. N. Carneiro da Rocha. Registrada afl 216 N do livro de diplomas imperiaes. Secretaria do Governo da Bahia, 28 de setembro de 1889. C. Seabra. Cumpra-se e registra-se. Bahia e Faculdade de Medicina 28 de setembro de 1889. Dr José Olimpio. Prestou juramento e tomou posse no dia 28 de setembro de 1889. Dr. T. A. Gaspar. Retornando ao perfil do biografado, o que se observa é, sobretudo, a obstinação de um estudioso capaz de movimentar o meio acadêmico e intelectual em que vivia, mesmo com tantas polêmicas sobre sua personalidade de homem opiniâtre. Essa característica é demonstrada em documentos do acervo da Faculdade. A propósito, escreveu Memória histórica apresentada pelo Dr. Raymundo Nina Rodrigues à Congregação da Faculdade de Medicina e Pharmacia da Bahia, em março de 1897, relatando o percurso das atividades realizadas pela Faculdade, traduzindo seu pensamento sobre a instituição e sua composição, como também apontando dificuldades e deficiências do ensino e do seu funcionamento. Considerado autoridade na área da saúde, mas tido por alguns como pessoa de difícil convívio, foi, entretanto, admirado por outros que prosseguiram nos estudos por ele encetados. Dessa forma, a sua obra permanece disponibilizada para a posteridade como legado científico e cultural que o credencia entre os mais importantes nomes das ciências médicas e sociais, destacando-se como criminalista, antropólogo, etnógrafo e sociólogo. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41 latina, recebendo certificados da mesma Secretaria. Do mesmo modo, com aprovação em níveis elevados, recebeu certificados em Arithmetica, Álgebra, Geometria, Geographia, Philosophia e História. Possuir conhecimento sobre essas áreas era também condição sine qua non para o processo de seleção na Faculdade. Tendo em vista a ausência de dados em documentos comprobatórios sobre os anos letivos de Nina Rodrigues, 4°, 5° e 6°, não foi possível descrever a sua vida acadêmica nesse período, nem tampouco determinar, com segurança, a data de sua formatura, documentos que devem estar no arquivo da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No entanto, na Gazeta Médica da Bahia(4), no artigo escrito em homenagem post mortem, com o título de Professor doutor Nina Rodrigues, consta que, em 1887, ele concluiu seu curso médico na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendendo a dissertação inaugural Amyotrophias de origem peripherica. Nesse mesmo artigo(4), menciona-se que, em 1889, de volta à Boa Terra, através de concurso, entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia na qualidade de professor adjunto, da segunda cadeira de Clínica Médica. E, ainda, que, em 1891, por ocasião da reforma Benjamin Constant, foi nomeado lente substituto da 5ª Secção (Hygiene e Medicna Legal), cargo que exerceu até 1895, quando ocorreu a aposentadoria do titular, o conselheiro Virgilio Damazio, assumindo ele então a cadeira de Medicina Legal. Em páginas pré-textuais de teses da Faculdade de Medicina da Bahia, volumes encadernados, encontram-se registros de disciplinas ministradas por Nina Rodrigues, comprovando sua atuação em diversas matérias como na Medica Legal, Toxicologia e Hygiene. VIDA ACADÊMICA NINA RODRIGUES POR OUTREM No arquivo da Faculdade de Medicina da Bahia encontramse dossiês de Nina Rodrigues com documentos acadêmicos da vida estudantil durante o curso médico. Diante de sua vasta produção, a Faculdade detém uma pequena parte de artigos científicos por ele publicados. Datado de 10 de março de 1882, encontra-se um requerimento, manuscrito autógrafo, mediante o qual ele se dirige ao diretor da Faculdade de Medicina da Bahia para freqüentar as aulas da primeira série do curso médico, tendo sido matriculado em 15 de março do mesmo ano. Percebe-se seu conhecimento de outras línguas através de certificados de exames gerais realizados para sua admissão no curso médico, um dos pré-requisitos exigidos para admissão no curso. Com dezessete anos, em julho 1879, ainda na terra natal, recebeu os certificados de proficiência nas línguas portuguesa e francesa, emitidos pela Secretaria da Delegacia Especial da Inspectoria Geral da Instrucção Publica da Corte em Maranhão. Em novembro de 1880, foi aprovado, plenamente com distinção, no exame de língua inglesa e, em julho de 1881, outrossim, no exame de língua Durante bom tempo, em trabalhos escritos, como, por exemplo, em teses doutorais e de concursos, produzidas por estudantes, professores e pesquisadores da área médica, foram incluídos comentários, citações, revisões e reflexões teóricas de temas constantes em obras publicadas ou divulgadas por Nina Rodrigues. Em tese apresentada à Faculdade de Medicina e de Farmácia da Bahia, em 30 de outubro de 1899, defendida pelo acadêmico Deodoro Alvares Soares(7), o autor cita Nina Rodrigues em vários capítulos de seu trabalho, com relação aos temas de sua produção acerca do índio brasileiro, sua catequese, domesticação, sociabilização e degradação. Além dessa temática, muitas vezes debatida em estudos ninarodriguianos, Deodoro Soares fala dos males provenientes da imigração e, nesse seu trabalho repete, em citação, o seguinte pensamento de Nina Rodrigues: A experiencia tem demonstrado que mesmo criminosos de habito assim transportados para a terra longínqua são susceptiveis de regenerarem- Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41 se. Transferidos para um meio fundamentalmente differente daquelle em que se exercia a sua actividade criminosa, se não são criminosos natos ou de todo incorrigiveis podem-se entegrar na população honesta e activa das colonias. Além de citar a obra O animismo fetichista dos negros da Bahia, faz referência à adoração aos fetiches e às festas de candomblé, tema também estudado por Nina Rodrigues. Nessa abordagem, Deodoro Soares(7), transcreve a seguinte frase: A persistencia do fetichismo africano como expressão do sentimento religioso dos negros bahianos e seus mestiços, é facto que as exterioridades do culto catholico apparentemente adoptado por elles, não conseguiram disfarçar nem nas associações hibridas que com esse culto largamente estabeleceu o fetichismo, nem ainda nas praticas genuinas da feitiçaria africana, que ao lado do culto christão por hai vegeta exuberante e valida. Basicamente, nessa tese doutoral, Deodoro Soares(7), se refere a Nina Rodrigues como o mestre e o teórico que lhe concedeu a fundamentação necessária na contextualização de suas idéias e na defesa de seu tema, citando também outros estudiosos como Gabriel Mortillet, Georges Pouchet, H. Spencer, Anselmo da Fonseca. Colhemos algumas achegas acerca da obra ninarodriguiana, a exemplo da homenagem que Alcantara Machado lhe prestou, registrada na Gazeta Médica da Bahia(4) dizendo: “Nina Rodrigues atravessou o Estado de São Paulo sob a contingencia carinhosa e fidalga do escól da mentalidade paulista”. Referindo-se ao grande prestígio que ele adquiriu no mundo científico, na classe médica e entre juristas de São Paulo, disse ainda: “(...) pois que lhe pertence o que de melhor se tem publicado sobre anthropologia criminal e a Medicina Forense na América do Sul.” Em teses doutorais para a cadeira de Medicina Legal vários autores citam Nina Rodrigues. Oscar Freire Carvalho(1), em sua tese Etiologia das formas concretas da religiosidade no Norte do Brasil: introdução a um estudo de psychosociologia criminal, cita-o em diversos trechos, comungando com suas idéias no que diz respeito ao pensamento antropológico e etnológico. Numa dessas passagens, ele diz: Nitidamente precisas que fossem as indicações sobre a proveniencia dos negros africanos do Brasil, pelo pallido escorço que pude tracejar, se presente as difficuldades de delimitação ethnica até pelo crusamento endo-nacional. O Professor Nina Rodrigues, que de lonngos anos se preoccupa com estes problemas, e que se deu a demoradas pesquisas sobre elles, resume em um quadro inserto no VII cap. de uma obra que tem em impressão sobre: O Problema da raça negra do Brasil, e que com a devida venia aqui transcrevo, as raças de negros que acredita fossem trazidas Nina Rodrigues: Resgate da Memória 39 para o Brasil. Classifica-os o collendo Professor em: I Aschantis africanos puros (?) e mesticados. II Negros Bantús: angolas, congos, etc. III Negros sudaneses: nagôs, minas, gêges haussás etc. IV Negros insulares. Ainda nessa tese, o autor(1) destaca: Em um ponto filio-me, com immenso gaudio, a doutrina de meu sabio amigo Prof. Nina, na parte em que se affirma a extensão enorme da degeneração em nosso meio e nos mestiços, especialmente, que constituem a maior parte de nossas populações. O que não esta provado, porem, com as provas até hoje adduzidas, é que a mestiçagem degenere o producto. Essas posições, mesmo despropositais para a contemporaneidade, revelam um estágio temporal de estudos e pesquisas realizados nas ciências médicas, como pensamento de época das elites sociais e as suas relações com a sociedade. Elas, mesmo no seu tempo, provocaram imensas discordâncias que impulsionaram a evolução do pensamento sobre as questões étnicas relacionados aos diversos povos que formaram a gente brasileira. Além de obras escritas no âmbito da Faculdade de Medicina da Bahia, encontramos, hoje, uma extensa quantidade de textos produzidos por estudiosos, cientistas e pesquisadores que divulgam os trabalhos de Nina Rodrigues. Esses autores tratam também de sua temporalidade e das investigações que desenvolveu em várias áreas do conhecimento, transformando-o num homem plural e influente. Essa produção tem sido disseminada em periódicos, teses, noutros trabalhos técnicos e científicos, em impressos e em suportes no formato virtual. Observa-se grande quantidade de publicações sobre ele disseminadas em sites. Apresentamos como anexo um breve corte nas produções de Nina Rodrigues, iniciando o estudo cronológico de sua biobibliografia. AGRADECIMENTO Ao Prof. Dr. José Tavares-Neto pelo reconhecimento da dimensão do trabalho arquivístico para a memória da Medicina brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. CARVALHO, O.F. Etimologia das formas concretas da religiosidade no norte do Brasil: introdução a um estudo de psycho-sociologia criminal. 1902. 111p. These apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia para obtenção de grau doutor em Medicina. 2. ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro: São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações v.10, 1984. 3. ENCICLOPÉDIA DELTA UNIVERSAL. Rio de Janeiro: Delta, v.11, 1980. 4. GAZETA MÉDICA DA BAHIA. Faculdade de Medicina da Bahia. v. XXXVIII, n.2, ago. 1906. 40 Zeny Duarte, et al. 5. LIVRO DE TÍTULOS DE EMPREGADOS. Salvador: Faculdade de Medicina da Bahia, janeiro de 1857 (Manuscrito autógrafo). 6. SILVA, Armando B. Malheiro et al. Arquivística: teoria e prática de uma ciência da informação. Porto: Afrontamento, 254p. 1998, [Biblioteca das Ciências do Homem, Série Plural, 2]. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41 7. SOARES, D.A. Alguns traços da nossa população sobre o ponto de vista hygienico e evolucionista. These de gráo de doutor em Sciencias Medico-Cirurgicas - Faculdade de Medicina e de Pharmacia da Bahia, Salvador, 107p., 1899. ANEXO BREVE CORTE NAS PRODUÇÕES DE NINA RODRIGUES Produções com identificação de data Data Produção 1886 A morféia em Anajatuba. (Primeiro trabalho escrito, ainda como acadêmico, no quinto ano do curso médico). 1887 1888 1888 1889 1890 1890 1891 1892 1893 1894 1895 1896 1897 1898 1899 1900 1901 1904 Das amyotrophias de origem peripherica. Rio de Janeiro. (Tese de doutorado). Estudo sobre regimen alimentar no norte do Brazil. Maranhão Contribuição para o estudo da lepra no estado do Maranhão. Gazeta Medica da Bahia. Os mestiços brasileiros. A lepra na Bahia. Gazeta Medica da Bahia. Fragmentos de pathologia intertropical: beri-beri; afecções cardiacas e renaes. Bahia. O exercício da medicina publica. Brazil – Medico. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Bahia: Imprensa Econômica. A medicina legal no Brazil. Illusões da catechese no Brasil. Revista Brazileira. Un cas curieux d’hymen double avec défloration unilatérale. Revista Medico-Legal. An. I, fasc. I). (Texto transcrito nos Annales de la Société de Médecine Légale de Belgique. Blessure de la moelle épinière par un instrument piquant. Annales d’hygiène publique et de médecine légale. Epidemiologista: estudo histórico de surtos de beribéri em um asilo para doentes mentais na Bahia. O problema medico – judiciario: sua solução no Brazil. Revista Brazileira. Des conditions psychologiques du dépeçage criminel. Archives d’Antropologie Criminelle. Épidémie de folie religieuse au Brésil. Annales Médico – Psychologuiques. Mai – Juin. Liberdade profissional em medicina.. São Paulo. Métissage, dégénérescence et crime. Archives d’Antropologie Criminelle, n.83. O regicida Marcellino Bispo. Revista Brazileira. 1899. L’animisme fétichiste des nègres de Bahia. Bahia: Reis & Comp. Éditeurs. Des formes de l’hymen et de leur rôle dans la rupture de cette membrane. Annales d’hygiène publique et de médecine légale. Manual da autopsia médico-legal. Bahia. Contribuição ao estudo dos indices osteometricos dos membros na identificação da raça negra. Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia. Anno I, tomo I. Produção de Nina Rodrigues sem precisão de data I. Lesões pessoaes: sua doutrina medico-legal na legislação criminal brazileira. Revista Medico-Legal. An. I., fasc. Un cas curieux d’hymen double avec défloration unilatérale. Revista Medico-Legal. An. I., fasc. I. O caso medico-legal Custodio Serrão. Revista Medico-Legal, An. II., fasc. II – III. Nègres criminels au Brésil. Archivio di psichiatria, scienze penali ed antropologia criminale. V.XVI, fasc. IV-V. Africanos no Brasil. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41 Nina Rodrigues: Resgate da Memória Produção de Nina Rodrigues post mortem 2005 O animismo fetichista dos negros da Bahia. Salvador: Edições P555. 140p. (Coleção A/C Brasil, 2).(Tradução do original: L’animisme fétichiste des nègres de Bahia. Bahia: Reis & Comp. Éditeurs). Periódicos onde publicou Archives d’Antropologie Criminelle (Cassagne) Annales Médico-psychologiques (Paris) Annales d’hygiène Publique et de Médecine Légale (Brouardel) Archivio de Psychiatria, Scienze Penali ed Antropologia Criminale (Lombroso) Archivos di Psiquiatria y Antropologia (Buenos Ayres) Revista Brasileira Direito Brasil-Médico Gazeta Medica da Bahia Revista da Sociedade de Medicina e Cirurgia da Bahia Revista Medico-Legal da Bahia Revista Medica de São Paulo Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia Jornal do Commercio (Rio) Imprensa Diária da Capital Bahiana Alguns temas de estudos e pesquisas Anthropologia geral e criminal Psychologia mórbida Responsabilidade criminal Liberdade profissional Mestiçagem brasileira Fetichismo africano Monotheismo catholico Condições psychologicas das mutilações 41 42 Nadia Rocha, et al. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46 A Psicologia no TTempo empo de Nina Rodrigues The Psychology on the Nina Rodrigues‘s Time Nádia M. D. Rocha1 , Bianca B. Lepikson2 , Maria M. Brandão3 Faculdade Ruy Barbosa, Salvador, Bahia, Brasil Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906), foi um influente médico brasileiro. Buscou-se verificar a Psicologia existente durante a sua vida, para identificar possíveis fontes de influência para o seu trabalho. Foi definido o período de 1882 a 1906, sendo considerados cinco aspectos: as Escolas de Psicologia existentes, as ações em geral envolvendo a psicologia (associações, publicação bibliográfica, instalação de cátedras, por exemplo); a instalação dos laboratórios de pesquisa; as teses apresentadas à Faculdade de Medicina da Bahia e que apresentavam preocupação com questões de ordem psicológica e o acervo da Subgerência de Obras Raras e Valiosas da Biblioteca Pública do Estado da Bahia. Constatou-se a existência do Estruturalismo e do Funcionalismo, uma intensa atividade na produção mundial, seja bibliográfica seja na instalação de instâncias formais para o estudo desta ciência; a instalação de 71 Laboratórios, a maioria dos quais nos EUA; a predominância de teses doutorais que buscavam trabalhar com questões ligadas à psicopatologia; e, na Subgerência de Obras Raras e Valiosas, o predomínio de livros de livros editados na França. Palavras-chave: Psicologia, história da Psicologia, laboratórios de Psicologia. Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906) was an influent Brazilian Physian. The aim of this paper is to verify the state of Psychology during his lifetime and identify possible influence on his studies on his work. To this end, we chose the period between 1882-1906 highlights of the five following points: the existing Psychology schools at the time, the actions concerning Psychology, such as associations, bibliography and cathedras; the setting up of research laboratories; theses of the Medical School of Bahia showning a concern about Psychology matters; as well as the assets of the Bahia Public Library rare and valuable pieces section. We found that Structuralism and Functionalism were dominant well and an intensive activity worldwide, either in bibliographic production or installation of formal institutions in order to study Psychology. The setting up of 71 laboratories, most of them in the U.S.A, and in Bahia, a major amount of doctorate degree theses showing linked to Psychopathology. were also found and in the rare and valuable pieces section, there was a great propition of books edited in France. Key-words: Psychology, history of Psychology, Psychology laboratory. A Psicologia é uma ciência com um marco definidor. Há um consenso de que a atividade científica neste campo começou na Universidade de Leipzig, em 1879, quando Wilhelm Wundt (1832-1920), médico e filósofo alemão, ai instalou um Laboratório, com o objetivo de determinar a estrutura da mente e compreender os fenômenos mentais pela decomposição dos estados de consciência produzidos pelos estímulos ambientais(3). Heidbreder(7) pondera que o Laboratório em Recebido em 10/11/2006 Aceito em 4/12/2006 Endereço para correspondência: Dra. Nádia Maria Dourado Rocha, Rua General Labatut, 462 (ap304), 40070-100 Salvador, BA, Brasil. Tel.: 5571 3328-2228; E-mail: [email protected]. Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):42-46. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. Leipzig não foi o primeiro a ser instalado, pois William James (1842-1910) à época professor na Faculdade de Medicina da U. de Harvard, interessado pela fisiologia sensorial, começou a analisar no seu laboratório problemas de ordem psicológica. Este Laboratório, entretanto, não se comparava aquele instalado por Wundt. Nina Rodrigues (1862-1906) tinha 17 anos quando do início formal da Psicologia. Para trabalhar com a “Psicologia do seu tempo” foi escolhido o período de 1882 a 1906, época em que a Psicologia, ainda nos seus primórdios, começava a se espalhar mundo afora. Para dar conta do propósito, este artigo foi pensado sob cinco aspectos: as Escolas então existentes, a produção técnico-científica a nível internacional, os laboratórios já instalados, as teses apresentadas à Faculdade de Medicina da Bahia – FAMEB, neste intervalo, e a análise do acervo da Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46 Subgerência de Obras Raras e Valiosas da Biblioteca Pública do Estado da Bahia. No período sob análise, na Psicologia havia duas Escolas: o Estruturalismo e o Funcionalismo. A primeira, iniciada por Wilhelm Wundt em Leipzig foi refinada por Edward Bradford Titchener (1867-1927), seu aluno, que se radicou nos Estados Unidos, trabalhando, por 35 anos na U. de Cornell. A segunda, disseminada nos Estados Unidos, sofreu a influência do Pragmatismo americano, e do estudo sobre diferenças individuais bem como da Teoria da Evolução(7,11). O Estruturalismo é efetivamente uma Escola. Teve objetivo claro, um projeto de trabalho, um periódico para veiculação da sua produção científica, o Philosophische Studien(4). Os historiadores da psicologia ainda não chegaram a um consenso quanto ao seu iniciador. Para alguns ele é Wilhelm Wundt. Para outros, Edward Titchener que, ao levar a concepção de Wundt para a América, teria transformado radicalmente o seu percurso(7,8). O objetivo do Estruturalismo era a química mental o “estudo analítico da mente humana, adulta, normal e generalizada, que se realiza através da introspecção”(8), ou seja, a psicologia não estaria interessada nas diferenças individuais e, por decorrência, a mente normal exclui o estudo de casos psicopatológicos. A este respeito Titchener assim se colocou: I believe that physiological psychology (in the sense of this paper) has a great future; and I subscribe fully to all that has been said of the critical subtlety of Brentano’s discussions, of the delicacy of discrimination shown in Stout’s recent book, of the genius of James’ work. Nevertheless, I believe as firmly that the best hope for psychology lies to day in a continuance of structural analysis, and that the study of function will not yield final fruit until it can be controlled by the genetic and, still more, by the experimental method - in the form both of laboratory experimenting and of interpretation of that natural experiment which meets us in certain pathological cases(13). O Funcionalismo toma como objeto da psicologia não mais as estruturas, mas a função das atividades mentais (estas que seriam processos complexos, como pensamento, sentimento, imaginação – não tão elementares quanto os processos do Estruturalismo), considerando estas atividades como psicofísicas (o que determina uma nova concepção da relação corpo x mente). O método utilizado inclui a já conhecida introspecção (observação subjetiva), acrescentado a observação objetiva, quando o observador não é o próprio sujeito, mas pode observar o comportamento deste como o resultado de sua atividade mental. O objetivo do funcionalista seria descobrir como e por que se exerce a atividade mental. Dois conceitos principais resultaram das investigações, respondendo às questões: a Nina Rodrigues e a Psicologia 43 de “arco reflexo” (já muito antes visto por Descartes) e a de “comportamento adaptativo”; ambos ilustram tipos de relação entre organismo e meio ambiente, entre estimulação e resposta. Embora a multiplicidade de caminhos e uma conseqüente falta de integração tenham prejudicado o desenvolvimento do Funcionalismo como um sistema, pode-se dizer que ele foi marcante ao ampliar o campo de ação da psicologia aos animais, ‘anormais’ e crianças, às diferenças particulares, aos testes mentais ou comportamentais, enfatizando um pragmatismo inexistente nas pesquisas da tradição anterior, e que foi exigido pelo contexto norte-americano daquele período(7,8). Podem ser citados como teóricos marcantes do Funcionalismo, principalmente os norte-americanos John Dewey (1859-1952), James R. Angell (1869-1949) e Harvey Carr (1873-1954), este último talvez o maior difusor do movimento. As referências filosóficas da Psicologia Funcional foram, diferentemente do Estruturalismo, mais voltadas à biologia que à fisiologia, com destaque às teorias darwinianas e às idéias do psicólogo, fisiólogo e professor William James (18421910), que são a base da proposta funcionalista (embora este não tenha nunca fundado ou se ‘afiliado’ a escola psicológica)(7,8). Da produção existente na área da psicologia, no período de 25 anos, selecionado como período ativo de Nina Rodrigues foram catalogados 326 indicadores, entre produção bibliográfica, a criação de cargos e Departamentos Acadêmicos, eventos científicos, instrumentos e clínicas. Destacaram-se pelo volume, livros (113), artigos (73) laboratórios (71) e periódicos (14). Além disso, foram fundadas associações de Psicologia (três), uma das quais é a American Psychological Association – APA, atualmente a maior e mais influente da categoria; oito cátedras de psicologia, sendo três nos Estados Unidos, e uma na, Argentina, Espanha, França, Japão, Suíça e México; duas clínicas; uma comissão de testagem mental; uma comunicação “Sobre os diversos estados nervosos determinados pela hipnotização das histéricas”; congressos internacionais (três, sendo dois de psicologia e um de hipnotismo); um curso de psicologia experimental; a criação do Departamento de Psicologia na Universidade de Madison, nos Estados Unidos; o curso de Psicologia na Universidade Nacional de Buenos Aires, um Dicionário de Psicologia Médica e outro de Filosofia e Psicologia; a Divisão de Psicologia na Universidade de Leipzig; teses em psicologia (nove – não contabilizando as apresentadas à Faculdade de Medicina da Bahia) e ainda outras produções do tipo: exposição, feira, fundação, livraria especializada, monografia, palestra, teste e obra traduzida(79,11) . Das produções ou eventos cujo local foi identificado (247), mais de um terço (97) esteve concentrada em um único país: Estados Unidos. Também chamaram a atenção, pela concentração de trabalhos ou eventos, França (53) e Alemanha 44 Nadia Rocha, et al. (42). Houve ocorrência de produção em psicologia também nos seguintes países: Argentina, Áustria, Bélgica, Brasil, Canadá, China, Dinamarca, Escócia, Espanha, Holanda, Inglaterra, Itália, Japão, México, Polônia, Romênia, Rússia, Suíça e Tchecoslováquia. Dentre os 276 trabalhos, 63 tiveram identificados, além do país, a universidade onde foram realizados. Foram listadas 38 universidades, de 17 países, sendo que a Universidade de Leipzig, na Alemanha, foi a que mais realizou trabalhos (nove). Os Estados Unidos foram o país que mais apresentou instituições na pesquisa realizada (12), seguidos da França (seis) e da Alemanha (quatro). Dos 12 periódicos localizados, foram contabilizados 33 artigos, 21 deles com os locais de produção identificados: Estados Unidos (17), França (três) e Canadá (um). Mind, Psychological Review e American Journal of Psychology foram os periódicos mais citados (oito, seis e quatro vezes, respectivamente). Os autores que mais produziram, dentre as obras selecionadas, foram James Mark Baldwin (22 produções), Alfred Binet (13 produções, seis apenas dele), e Raymond Bernard Cattell (13, oito dele) e Sigmund Freud (10, nove dele), de nacionalidades, respectivamente, canadense, francesa, norte-americana e austríaca. O século XIX é reconhecido como aquele em que os processo de mensuração, da quantificação e os laboratórios tiveram um grande impulso. Os Laboratórios de Psicologia foram o primeiro espaço de investigação científica, e vários deles foram instalados no último quartel daquele século. Na Europa, foram instalados 14 laboratórios em dez países: Alemanha, Áustria,Bélgica, França, Holanda, Inglaterra, Itália, Polônia, Romênia e Suíça, um em cada deles, à exceção de França e Inglaterra que instalaram três. Não foi possível obter informação sobre sete dos seus responsáveis técnicos. Os outros eram: Alexius Meinong (1880-1920), Benjamin Bourdon (1860-1943), Alfred Binet (1857-1911), Francis Galton (18221911), Carl Jung (1875-1971), Oswald Külpe (1862-1915), e Edouad Toulouse (1865-1947). Todas elas pessoas de destaque na História da Psicologia. Também no Japão houve um laboratório instalado em 1903, na Universidade de Tóquio. Segundo Garvey (6) no período sob análise foram instalados 55 laboratórios nas Américas. Destes, um estava no Canadá, outro na Argentina e os demais, espalhados por 30 dos Estados Americanos. Vale informar, que o autor não teve conhecimento do laboratório instalado no Rio de Janeiro em 1906, cujo planejamento deveu-se a Manoel Bomfima, George Dumas e Alfred Binet. Seguindo uma tendência mundial, a maioria absoluta dos laboratórios estava instalado em instituições de ensino superior. Havia seis laboratórios no Estado de New York, cinco em Massassuchets, cinco no Ohio, três na Califórnia, no Illinois e na Pennsylvania, dois no Connecticut, Indiana, Iowa, Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46 Maine, New Jersey, e um em North Caroline, Colorado, Florida, Kansas, Maryland, Michigan Minnesota, Mississippi, Nebraska, Oregon, Rhode Island, Tennessee, Texas, Utah, Washington, Washington-DF, Wisconsin e Wyoming. Estes dados nos permitem concluir que houve uma rápida expansão da Psicologia no território norte-americano, vez que estes Estados estão localizados no país, de costa a costa. Quanto aos responsáveis técnicos, estavam eles entre pessoas cujas contribuições definiram o percurso posterior desta ciência, a exemplo de G. M. Stratton (U. da Califórnia), Frank Angell (Stanford U.), J. M. Baldwin (Princeton), E.W. Scripture (Yale U), G. Stanley Hall (Johns Hopkins U), E. C. Sanford ( Clark U), William Noyes (McLean Asylum), M. W. Calkins b (Wellesley‘College), F. Angell (Cornell), Robert MacDougall (New York U.), Chas. H. Judd (Cincinati U. e New York University (Washington Square Col.), M.F. Washburn (Vassar College), J. McK. Cattell (New York e Pennsylvania U) e Joseph Jastrow (Wyoming). Vários deles fizeram a formação no Laboratório de Leipzig, a exemplo de Stanley Hall, Cattell, Pace, Scripture e Frank Angell(6). No Brasil do fim do século XIX, embora ainda não existisse a formação em Psicologia, tampouco uma cadeira específica para esta disciplina,verificou-se o interesse cada vez maior por temas de ordem psicológica, o que se tornou ainda mais evidente nos primeiros anos do século XX. Uma forma de avaliar a produção nacional relacionada à Psicologia durante o período produtivo de Nina Rodrigues é a análise das teses que foram defendidas na FAMEBc. Da produção baiana localizada e parcialmente analisada, pôde-se identificar 244 teses que tratavam dos mais variados temas de cunho psicológicod. Foram identificados 98 temas com superposição, onde os nitidamente mais recorrentes são: Psicopatologia (50%), Agentes Terapêuticos (26,5%), Higienismo (13,2%) Mulher (13,2%). PSICOPATOLOGIA A maioria absoluta de temas relacionados à saúde mental, sobretudo à psicopatologia evidencia que o movimento de nascimento da Psicologia brasileira, tal como ocorreu em vários países, se deu a partir da Psiquiatria. Os temas de psicopatologia estão distribuídos por praticamente todos os anos, entre 1882 e 1906. A importância do tema na época é evidenciada tanto pelo fato dele ter sido trabalhado em vinte dos vinte e quatro anos da vida produtiva de Nina, como pela sua incidência maciça no último ano do recorte - 1906 - onde aparecem em oito teses. Os temas relacionados diretamente a psicopatologia que tiveram maior incidência nas teses desse período foram: o alcoolismo e histeria (oito teses cada) e loucura (sete teses). Além deles, diversos outros temas relacionados puderam ser Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46 identificados, entre eles: delírio, alucinação, epilepsia, demência, alienação, degeneração psíquica, paranóia e psicopatia. Rocha et al.(10), ao analisar os temas trabalhados nas teses da FAMEB, tendo como recorte todo o século XIX, identificaram os mesmos temas. Nina Rodrigues e a Psicologia 45 acadêmico. Um fato importante a ser observado é a sua incidência nos primeiros anos do século XX: entre 1905 e 1906 ele aparece em sete teses. Assim, a quantidade de teses que tratavam da higiene é um tanto maior, sobretudo na virada do século. MULHER AGENTES TERAPÊUTICOS A segunda maior incidência relaciona-se a procedimentos que foram definidos como agentes terapêuticos, donde os mais recorrentes foram: hidroterapia (seteteses), hipnotismo (seis teses) e sugestão (seis teses). Afora eles, outros agentes terapêuticos puderam ser identificados, a exemplo de: balneoterapia, eletroterapia/eletrochoque e psicoterapia. Se comparados aos temas de psicopatologia, que figuravam na academia desde o início do século XIX, os agentes terapêuticos tinham um caráter de novidade do fim do século, visto que sua maior incidência se deu a partir desse período. A hidroterapia é objeto de estudo nos anos de 1883 (três) e 1887 (quatro). Isso chama atenção para p destaque do tema nesse pequeno período, seguido de um certo por redução nos anos subseqüentes. Por outro lado, os temas hipnotismo e sugestão estão distribuídos de forma mais homogênea, com uma concentração maior entre 1888 e 1893 e tendo ambos sua última incidência no ano de 1902. Embora muitas vezes associados, hipnotismo e sugestão apareceram também como temas independentes, configurando aí novas investigações e possibilidades terapêuticas. Entre 1903 e 1905 o tema “agentes terapêuticos” como um todo foi deixado de lado, para no ano de 1906 ter uma única incidência com “balneoterapia”, um tema extremamente novo, que nunca fora trabalhado. HIGIENISMO A preocupação com a higiene é algo marcante no século XIX no Brasil. Os primórdios do movimento higienista se configuravam na Bahia oitocentista, onde a preocupação com a “saúde social” modificava as condutas e práticas, bem como re-instalava novos valores em prol da raça brasileira. Assim, surge o conceito de casal higiênico, e os modelos de homem e mulher - pai e mãe,responsáveis por fornecer herdeiros legítimos e saudáveis à pátria. Definem-se aí os comportamentos e condutas higiênicas esperados pela sociedade cristã e é instaurado o receio generalizado das doenças sexualmente transmissíveis trazidas pelas prostitutas, celibatários, libertinos e pelos homossexuais. O que se assiste nessa virada de século é uma conseqüência explícita de todo esse movimento. A primeira ocorrência do tema higienismo no período produtivo de Nina Rodrigues data de 1885, seguido do ano de 1886. Após essa data, ocorre um hiato de nove anos sem ele ser trabalhado, até 1895, quando volta ao cenário Os temas relacionados às questões femininas denotam uma preocupação bastante nova com a mulher. Considerando o recorte de datas, apenas em 1893 aparece a primeira tese sobre a mulher, tema este que passou a ser trabalhado anualmente a partir de 1899 até 1906. A importância com que as questões femininas ganharam cena na virada do século aponta para um concretização do ideário higiênico propugnado durante todo o século XIX no Brasil, visto que em sua maioria, as teses que continham este tema definiam, antes de tudo a mulher que a sociedade brasileira esperava.Temas relacionados a parto, aborto, puberdade, casamento, puerpério, sexo, sífilis, gravidez continham em sua maioria os preceitos higiênicos como pano de fundo: as posturas, comportamentos e sentimentos esperados para uma mulher cristã brasileira do fim do século. A Subgerência de Obras Raras e Valiosas da Biblioteca Pública do Estado da Bahia (SORV) tem dentre os seus 60.000 volumes, 137 livros de Psicologia que foram publicados neste período no Brasil (nove exemplares), Espanha (seis), França (99), Inglaterra (dois), Itália (15) e Portugal (três). A França é o país com a maior quantidade de livros, sendo responsável por 73% desta produção. Vale destacar que, mesmo autores de outras nacionalidades, a exemplo do americano Robert Sessions Woodworth (1869-1972) dos ingleses Herbert Spencer (1820-1903) e Henry Charlton Bastian (1837-1915), do canadense George John Romanes (1848-1894), do russo Ivan Setchénoff (1825-1905), dos italianos Angelo Mosso (1846-1910) e Scipio Sighele (1868-1913 ) tiveram suas obras traduzidas para o francês. O francês Théodule Ribot (18391916) considerado o Pai da Psicologia francesa é o autor com a maior quantidade de livros neste período. Foram 11 títulos, alguns em mais de uma edição. São eles: 1883 - Les Maladies de la Volonté 1885 - La Psychologie Allemande Contemporaine; école experimentale 1887 - La Psychologie Anglaise Contemporaine école experimentale 1889 - Psychologie de l’ Attention 1889 - Les Maladies de la Personalité 1889 - Les Maladies de la Mémoire 1897 - L’ Evolution des Idées Générales 1899 - La Psychologie des Sentiments 1902 - L’ Hérédité Psychologique 1905 - La Logique des Sentiments 1905 - L’ Imagination Créatrice 46 Nadia Rocha, et al. No Brasil, foram publicados nove títulos. Dos seus autores, três são brasileiros, um português e dois franceses. • Francisco Fajardo, (1852-1906) médico carioca, autor do primeiro livro sobre hipnotismo no Brasil, e segundo Câmara (s.d.) o primeiro a pesquisar e documentar cuidadosamente a história da introdução do magnetismo animal e do hipnotismo no Brasil(1). Encontram-se os livros: 1889 - Hypnotismo 1896 - Tratado de Hypnotismo • Pedro Lessa (1859-1921) jurista, magistrado, político e professor mineiro, autor de O Determinismo Psychico E A Imputabilidade e Responsabilidade Criminaes, publicado em São Paulo no ano de 1905. • Francisco José Viveiros de Castro (1862-1907(?) advogado maranhense, autor de Attentados Ao Pudor, Aberrações Sexuais, livro que tem o diferencial de ter sido editado no mesmo ano em Recife e no Rio de Janeiro. Alguns destes livros pertenceram a biblioteca de pessoas de destaque da sociedade baiana, como: • Bacharel José Alfredo de Campos França (1865-1923), jurista, político, professor, de tradicional família baiana, primeiro ocupante da Cadeira número 9 da Academia de Letras da Bahia, neto de Eduardo Ferreira França (18091857), médico e político, Autor de Investigações de Psicologia, publicado em Salvador no ano de 1854, provavelmente o mais antigo deste gênero nas três Américas(4). • Francisco Xavier Ferreira Marques (1861-1942) jornalista, político, romancista, poeta e ensaísta natural de Itaparica Um dos fundadores da Academia de Letras da Bahia provavelmente o seu idealizador. Membro da Academia Brasileira de Letras(5). • Galdino Ribeiro, médico, fundador e proprietário das Farmácias Galdino. • Gonçalo Muniz Sodré de Aragão (1870-1939), médico, sanitarista, professor catedrático de Patologia na FAMEB, diretor de Hygiene Municipal, Secretário de Interior, Justiça e Instrução Pública, Diretor de Saúde Pública, instituição que deu origem à Fundação Gonçalo Muniz, atualmente vinculada à Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Possuiu uma das maiores e mais selecionadas bibliotecas do deste Estado(12). • Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque, médico e professor da FAMEB, um dos primeiros presidentes do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. • Virgílio de Lemos (1862-1926), catedrático de Filosofia do Direito da Faculdade Livre de Direito da Bahia, ensaísta, jornalista, tradutor, integrante da Academia de Letras da Bahia e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia(1). Estes fatos nos revelam que a Psicologia, apesar de extremamente recente no cenário científico, teve uma grande receptividade, principalmente nos Estados Unidos da América. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46 Neste curto espaço de tempo, houve a instalação de 71 laboratórios de investigação psicológica, a maioria coordenados por personagens de destaque no cenário da Psicologia mundial. Cátedras, cursos e departamentos foram criados, periódicos fundados e até dicionários foram publicados, numa clara indicação do vigor no novo campo que se instalava. Na Bahia, e provavelmente, no Brasil, a influência norte-americana não parece ter se instalado neste período – a nossa Biblioteca Publica ainda tinha um acervo predominantemente francês. Mas a Psicologia já constava das Bibliotecas particulares de pessoas de destaque na sociedade baiana. Estávamos já em sintonia com a produção internacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Câmara FP. Instituição da psicoterapia na medicina brasileira: 18871889 Psychiatry on line Brazil. 8: 2002/2003 Acessado em 25/ 07/06 em http://www.polbr.med.br/arquivo/wal0103.htm 2. Campos RHF. Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil: Pioneiros. RJ: Imago, 2001 3. Costa, A. Antônio Ferreira França. RIGHBA, 75: 55-78, 1948 4. Cattell JM The Psychological Laboratory at Leipsic. Mind, 1: 3751, 1888.Acessado em 15/07/06 em http:// psychclassics.yorku.ca/Cattell/leipsic.htm 5. Coutinho A, Galante, J enciclopédia de Literatura Brasileira. RJ: MEC, 1990 6. Garvey CR. List of American Psychology Laboratories. Psychological Bulletin, 26: 652-660, 1929. Acessado em 10/ 07/06 em http://psychclassics.yorku.ca/Garvey/ 7. Heidbreder, E. Psicologias do século XX. SP: Mestre Jou, 1981 8. Marx M, Hillix WH. Sistemas e Teorias em Psicologia. S.P.: Cultrix, 1973. 9. Pereira ME. Linha do tempo da História da Psicologia. Acessado em 25/05/06 em http://www.geocities.com/athens/delphi/6061/ linha.htm 10. Rocha NM, Tranquilli, AG, Lepikson BB. A Faculdade de Medicina da Bahia no século XIX: a preocupação com questões de saúde mental. GMBahia, 75: 103-126, 2004 11. Schultz DP, Schultz SH. História da Psicologia Moderna. SP: Pioneira, 2005 12. Souza, AL de Baianos ilustres 1564-1925. Salvador: SEC, 1973 13. Titchener EB. The postulates of a structural Psychology. Philosophical Review, 7: 449-465 1898 .Acessado em 20/05/ 06 em http://ttp://psychclassics.yorku.ca/Titchener/ structuralism.htm NOTAS a b c d Manoel Bomfim (1868 - 1932), médico sergipano, com formação em Psicologia, tendo estudado no Laboratório de Psicologia anexo à Clínica Jouffroy, em Saint’Anne, e estudado com Georges Dumas e Alfred Binet. (2) Primeira mulher(2) a dirigir um laboratório. Em se tratando deste material nunca é excessivo pontuar que todas as afirmações a este respeito são provisórias, tendo em vista o incêndio que consumiu a biblioteca da FAMEB no ano de 1906. Lembramos que a definição dos temas a serem trabalhados anualmente pelos doutorandos da FAMEB era de competência da sua Congregação. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53 Nina Rodrigues e a Antropologia Criminal 47 Quando a Desigualdade é Diferença: Reflexões sobre Antropologia Criminal e Mestiçagem na Obra de Nina Rodrigues When Inequality Means Difference: Considerations About Criminal Anthropology and Miscegenation in Nina Rodrigues Opus Lilia Katri Moritz Schwarcz Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil O presente artigo tem como objetivo analisar a importância dos trabalhos e pesquisas do cientista Nina Rodrigues, sobretudo na área da antropologia criminal. Com efeito, em finais do século XIX, e no contexto da abolição da escravidão, o esforço deste médico traduziu-se em uma teoria que pretendia demarcar a existência de diferenças ontológicas entre as raças, bem como apontar para o perigo da “degeneração” em um país caracterizado pela miscigenação. A análise terá como pano de fundo o livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, publicado em 1894 e que, contrapunha-se, justamente, ao novo Código Penal, apresentado pela “jovem” República, e que advogava o livre arbítrio. Palavras-chave: mestiçagem, Direito Penal, final do império, teorias raciais, Nina Rodrigues. The main goal of this article is to understand the importance of the works and researches made by Nina Rodrigues, mainly in the fields of criminal anthropology. In fact, at the end of the XIXth century, in the context of the abolition of the slavery, this physician tried to defend the existence of “races”, and the idea that the miscegenation would lead to national degeneration. We are going to work with the book As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, published in 1894. Key-words: Miscegenation, penal code, end of the brazilian monarchy, racial theories, Nina Rodrigues. Nina Rodrigues legou uma imagem paradoxal. A despeito de ser considerado – a partir da publicação de obras como Africanos no Brasil e Animismo fetichista – como o primeiro antropólogo brasileiro a tratar de temas, hoje conhecidos, como “raciais”, ele é também considerado um autor maldito; reconhecido como aquele que tratou de defender – e teorizar Recebido em 20/9/2006 Aceito em 21/11/2006 Endereço para correspondência: Prof.ª Lilia Katri Motitz Schwarcz. Rua Salvador de Mendoça, 95. 01450040. São Paulo. SP, Brasil. E-mail: [email protected]. Este artigo foi originalmente apresentado em Colóquio realizado na UFMA, S. Luís, Maranhão, Brasil, no período de 02 a 15 de maio de 2006 e contou com a participação de mais de de 40 palestrantes convidados e cerca de 700 inscritos. Foi realizado junto com o VII Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões e teve como tema: Religião, Raça e Identidade. Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):47-53. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. – as diferenças ontológicas existentes entre as diversas raças no Brasil, e em especial por considerar a mestiçagem como sinal de degenerescência. No entanto, as posições desse médico, professor da Escola de Medicina da Bahia, mesmo em sua época, sempre foram de difícil doma. De um lado, é evidente a sua aceitação das teses do darwinismo social e da antropologia criminal, bem como da concepção de que hierarquias rígidas marcariam as diferenças internas existentes entre as raças. De outro lado, porém, é igualmente evidente a tentativa de Nina Rodrigues de “pensar a diferença” e, sobretudo, nomeá-la. É certo que sua defesa da existência de dois códigos penais, em As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, de 1894, é um exemplo das certezas que grassavam nessa época marcada por determinismos. No entanto, a leitura cuidadosa desse texto aponta, também, para os impasses da idéia de diferença e as decorrências de sua aceitação. O marco do centenário da morte de Nina Rodrigues pode ser, assim, uma excelente oportunidade para fazer um exercício de história da ciência, pensando os cientistas em seus próprios contextos e, de certa maneira, presos a seus cânones. A referência, portanto, não é 48 Lilia Katri Moritz Schwarcz uma história da ciência que cobra do passado as certezas do presente, mas, sim, aquela que permite retornar ao passado com suas lentes próprias. Nina Rodrigues foi, nesse sentido, um grande leitor e tradutor de seu próprio tempo. Nina: um radical do pessimismo em um tempo pessimista O momento em que o médico Nina Rodrigues escrevia e pesquisava era dado a determinismos de toda ordem: raciais, biológicos e até mesmo sociais. Por outro lado, nesse contexto, e como bem mostrou Nicolau Sevcenko, a ciência era quase uma missão, tal a maneira como ela se vinculava ao Estado; ou melhor, ao que eram consideradas necessidades do Estadoa. E Nina Rodrigues seria um dos intelectuais brasileiros mais coerentes de seu tempo, ao adotar o darwinismo social de forma bastante radical, negando o modelo evolucionista social, e ao adotar a criminologia italiana, de Cesare Lombroso, como exemplo de análise. Diferente de seus colegas, da Escola de Recife que acomodavam modelos teóricos diversos – especialmente Tobias Barreto e Silvio Romero – Nina Rodrigues, negou o suposto do evolucionismo social de que a “perfectibilidade” era possível e presente em todas as “raças”. Além do mais, ao conferir às raças o estatuto de realidades estanques e ontológicas, passou a advogar que toda mistura de espécies era sinônimo de degeneração. Nesse sentido, se opôs frontalmente aos estudos de Silvio Romero, que acreditavam numa certa mestiçagem “possível”. Afinal, o jurista teria afirmado, provocativamente, que “éramos mestiços no sangue, na alma e nas idéias”, revelando que a mestiçagem era uma realidade e melhor seria, de alguma maneira aceitálab . Com sua posição extremada e pessimista, para a sua própria época, Nina Rodrigues se opôs aos colegas de direito, que eram, justamente, os responsáveis pela conformação do Código Penal de 1894. Para ele, só os médicos teriam o arbítrio sobre esses corpos doentes, sendo que o Direito (nomeadamente o jus-naturalismo), apostava em concepções “ultrapassadas” – como a igualdade e o livre-arbítrio – que, segundo o médico, levariam ao “obscurantismo geral”. Defendeu assim uma idéia bastante “moderna” da relatividade do crime, e a associou à questão da imputabilidade: certas raças seriam responsáveis; de outras não se podia cobrar o que, simplesmente, não existia. A noção de “diferença” – nesse caso diferença racial – aparece claramente delineada no modelo de Nina Rodrigues e ainda mais em As raças humanas e a responsabilidade penal, também de 1894. Conforme ironizava: “se um país não é antigo para se fazer conhecer por sua tradição; rico para se destacar por sua economia; precisa ser diferente”. Para Nina éramos diferentes e essa diferença deveria ser, de fato, levada a sério. O problema, como veremos, não era, porém, o diagnóstico, mas sim a solução. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53 Relendo “As raças humanas” Parte da “maldição” que recaiu sobre Nina Rodrigues, advém de seus livros e estudos sobre criminalidade, que se concentraram nos finais dos anos 1880 e inícios da década de XX. “As raças humanas e a responsabilidade penal” (1894); “Negros criminosos” (1895), “O regicida Marcelino Bispo” (1899); “Mestiçagem, degenerescência e crime” (1899) entre outros textos e ensaios, representam um novo momento na carreira desse médico que vê na criminalidade mestiça uma “originalidade”; uma particularidade dessa nação evidentemente misturada não só em credos como em raças. O suposto comum é o da “desigualdade” e, portanto, da necessidade de criação de códigos penais diferenciados, que permitissem o estabelecimento de responsabilidades atenuadas. Apoiando-se em seus vários “estudos de caso”, Nina Rodrigues procurava fazer de suas teses não uma questão de ordem pessoal, mas matéria de ciência, fartamente amparada na bibliografia da época. E o contexto não poderia ser mais revelador. Afinal, nesse momento uma série de pensadores perguntava-se, exatamente, sobre qual era o lugar da população negra, recém egressa do sistema escravocrata, e sujeita ao arbítrio da República; que justamente surgia propugnando a noção de igualdade social e jurídica. O modelo aplicado pelo médico implicará, portanto, a explicitação da tese inicial – a diferença de imputabilidade entre as raças —, a demonstração da farta bibliografia técnica concernente ao tema e, finalmente, a demonstração dos “casos clínicos” para chegar-se ao corpo doente; marcado pelas manifestações de epilepsia, neurastenia (fadiga), histeria, ou alienação. O conjunto dos casos analisados permitiria, assim, demonstrar a degeneração e a inviabilidade do próprio código penal de 1894; “enganado” pelo princípio voluntarista da Ilustração: a falácia da igualdade. O livro que demonstra com maior desenvolvimento tal tipo de tese desse autor é “As raças humanas e a responsabilidade penal”, de 1894. Nele, nota-se a comprovação da idéia de que pouco vale o indivíduo (e o arbítrio), pois esse é parte de seu grupo racial que lhe condiciona o comportamento. A posição social do intelectual é típica daquele que “previne” a sociedade do mal que a aflige. Nada como seguir um pouco os argumentos desse livro, com o intuito de descrever ainda mais, as idéias, o método e as implicações das idéias de Nina Rodrigues. O texto, que é dedicado a Lombroso, Enrico Ferri e R Garofalo, — mestres da criminologia da época —, inicia afirmando sua tese central: o estudo das modificações que as condições de raça imprimem à responsabilidade penal, deve levar “ao exame das causas que podem modificar a imputabilidade”c. Para demonstrar sua hipótese, Rodrigues começa opondose a algumas concepções que considera “enganosas” e até mesmo “perigosas”. A primeira delas seria a “tese Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53 Nina Rodrigues e a Antropologia Criminal espiritualista”, que, segundo o médico, pressuporia uma mesma “natureza social” para todos os povos. A humanidade seria comum e uma e existiriam apenas variações no grau das culturas, sendo todas passíveis de atingir um nível semelhante de complexidade e até mesmo a igualdade. Nina Rodrigues, do alto de sua posição de especialista, decreta que essa seria “uma concepção irremissivelmente condenada em face dos conhecimentos científicos modernos”. E avança: “Não são tão simples e contingentes as causas do pé de desigualdade em que se apresentam na superfície do globo as diversas raças ou espécies humanas que disputam a sua posse”d . Nina passa a defender que a evolução é sempre lenta e que não se poderia exigir de um povo uma evolução incompatível com seu desenvolvimento intelectual. Igualdade vira, portanto, um “dogma”e, com todas as implicações que esse termo possa ter. Por outro lado, a concepção espiritualista passa a ser entendida como um modelo metafísico, cuja compreensão encontra-se longe da experimentação científica – e moderna – sendo antes matéria de crença. Apresentando todos os supostos da criminologia moderna, o cientista advoga a existência de ontologias entre as raças e a idéia de variações relevantes de ordem orgânica, biológica e cerebral. Seu segundo alvo de ataque é a o Direito, e, destacadamente, as legislações penais, aonde “ainda reinam com princípios soberanos os velhos conceitos metafísicos da filosofia espiritualista”f. Passa então a demonstrar sua tese a partir da citação de uma série de trabalhos que em seu conjunto demonstrariam como é preciso combater “a velha doutrina” da uniformidade das idéias em todos os cérebros humanos; ou seja, a universalidade dos sentimentos e da própria humanidade. Para Nina Rodrigues, ao contrário, “o crime não é mais que um conceito relativo”, que muda de idade para idade, de raça para raça, de povo para povog. Dessa maneira, seguindo um argumento lógico (e longe do que considera como “modelos subjetivos”), Rodrigues transforma a igualdade em uma “velha doutrina” e a universalidade em balela metafísica: tudo em nome da modernidade das idéias e de sua exeqüibilidade. A isso alia as análises de Lombroso, que teria lembrado da criminalidade própria a cada povo e em suas “origens atávicas”. Aí estaria o suposto do determinismo e da atribuição ao grupo da culpabilidade. A própria noção de cidadania passa, dessa maneira a ser questionada, uma vez que não cabe ao “indivíduo” julgar seus atos, uma vez que ele é antes uma decorrência dos atavismos de seu grupo de origem. A “justiça” não seria, dessa maneira, um termo abstrato, mas apenas referido a diferentes situações e contextos. “Os povos não sentem da mesma maneira” é um suposto extremamente moderno, que dá lugar à noção da relatividade e, mais ainda, de que os conceitos são sempre relacionais e que sua compreensão passa pela análise das concepções do próprio cientista. No entanto, se a tese em 49 termos gerais parece alentadora, e permite pensar em diferentes noções de criminalidade, as soluções encontradas por Rodrigues são, no mínimo, paradoxais. Em primeiro lugar, o cientista transforma a “vontade livre” em questão metafísica, e considera “absurda” a sua utilização; que só poderia ser aplicada a uma agremiação social homogênea. O único elemento objetivo seria o grau de evolução das raças, que caminham em acordo e harmonia com seu grau de evolução intelectual e moral. Em segundo lugar, anula a vontade do indivíduo fazendo dela uma soma das características e limitações de seu grupo “racio-cultural”. Dessa maneira, ao invés da exaltação da diversidade e da relatividade do crime, a saída implica em atitudes intervencionistas; de acordo com os determinismos de época. O alvo, explícito, a partir de então, é o código penal brasileiro que teria tomado (seja no novo código da República, seja no antigo código do Império) o pressuposto espiritualista do livre arbítrio como critério de responsabilidade penal. Diz ele que, seguindo tal procedimento, estariam os juristas apenas copiando modelos dos “povos civilizados à européia”h e não atentado para as especificidades locais. Mais uma vez, a argumentação é complexa – e, nos termos mais contemporâneos, até pluralista –, uma vez que o médico revela a necessidade de aplicar modelos que dialoguem com a própria realidade local. No entanto, é preciso ir com cuidado com esse tipo de consideração, já que Nina Rodrigues diagnostica e interessa-se, sobretudo, pelo que considera ser a degenerescência da mestiçagem existente no Brasil. Nesse sentido, critica o que chama de “ecletismo de Recife”, que procurou conciliar livre-arbítrio com determinismo. Se contrapõe, nomeadamente, a Tobias Barreto, que teria defendido um “acordo” entre monismo e determinismo, e o próprio livre-arbítrio. “A liberdade é uma aparência” diz o médico, uma “ilusão da liberdade”i e a conciliação de idéias seria, portanto, impossível. Nina Rodrigues parte então para desautorizar o argumento do colega jurista, afirmando que o problema não é o livre arbítrio, mas a impunidade. E provoca: “Vede, pois senhores: a doutrina do livre arbítrio relativo nos leva exatamente a essa perigosa impunidade geral, a que procurava fugir Tobias Barreto. E era contra esta conseqüência que eu queria e tinha o dever de prevenir-vos”j. O médico revela, dessa maneira, através do estilo direto utilizado, que tem um leitor em vista – os juristas – e como pretende desqualificar as máximas dos colegas da escola de Recife. O problema não seria a defesa do livre arbítrio, mas a impunidade que daí adviria. O médico se faz de missionário e trata de “alertar a civilização” acerca dos males, em sua opinião, efetivamente em jogo: “ou punir sacrificando o princípio do livre arbítrio ou respeitar esse princípio, detrimentando a segurança social”l. O tema implicava em “segurança nacional” e cabia ao médico social, especializado em doenças sociais, alertar a nação. 50 Lilia Katri Moritz Schwarcz Mais uma vez o cientista apela para uma relatividade evolucionista e revela como crimes são “involuntários”, em certas raças inferiores, e não se pode julgá-los com os códigos de “povos civilizados”. A crítica dirige-se, assim, aos códigos ditos universais, pregando-se a aplicação condicional em função dos diferentes estágios de civilização. A saída seria estudar as raças existentes no Brasil (e não um modelo geral); arma dessa “geração realista” que procurou analisar a realidade a partir dos elementos que encontrava. A ambigüidade da análise não está, dessa maneira, na forma acertada de anotar a importância da diferença entre culturas e povos, mas no ajuizado que parte dessa premissa e nos supostos evolucionistas que condicionam a análise. Culturas são, com efeito, raças, e suas realidades ontológicas não permitiriam arbítrio ou variação. Não por coincidência, Nina Rodrigues troca de “inimigo” e passa a criticar Silvio Romero. Retoma, nesse sentido, sua famosa frase presente em História da Literatura Brasileira (1888) – “todo brasileiro é mestiço senão no sangue pelo menos nas idéias” – e passa a dizer que o problema está em desconsiderar os elementos antropológicos distintos e presentes no país. Divide então a população local em quatro grupos, a saber: raça branca, raça negra, raça vermelha e raça dos mestiços. Esses últimos, objeto de estudo que Nina Rodrigues afirma se dedicar “faz muitos anos”, estariam, por sua vez, sub-divididos: em mulatos (mulatos dos primeiros sangues, mulatos escuros), mamelucos ou caboclos (produto do cruzamento do branco com o índio), curibocas ou cafusos (produto do cruzamento do negro com o índio) e pardos (produto do cruzamento das três raças). A decorrência de tal descrição é, portanto, que os mestiços brasileiros careceriam de unidade antropológica o que traria reflexos diretos no tema da criminalidade. Além do mais, Nina Rodrigues destaca que as raças puras estariam ameaçadas de desaparecimento, por oposição ao “mestiçamento” gradual da população brasileira, que tenderia a crescer. Por isso mesmo, o médico duvida da unidade étnica, presente e, sobretudo, futura, pretendida por Silvio Romero e considera pouco provável, como queria o jurista, que a raça branca viesse a predominar. Aqui se encontra o impasse central entre os dois autores: enquanto Silvio Romero acredita no branqueamento geral da população local – resultante da superioridade racial ou do efeito da imigração branca por ele propugnada –; já Nina Rodrigues afirma que “o futuro será mestiço”. Por outro lado, Silvio Romero veria o Brasil sob a chave da unidade; ao passo que Nina Rodrigues destacaria a diferença existente entre as raças no conjunto do território nacional. A diferença, nomeada a partir de culturas, seria, não obstante, “racial” e, portanto, “essencial”. Tais diversidades se expressariam nas quatro regiões brasileiras – Norte, Nordeste, Sul e Sudeste –, cada vez mais diferenciadas em suas características básicas. Não é o caso de repassar as especificidades dessas regiões destacadas pelo autor, mas antes de assinalar o partido que Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53 Nina Rodrigues tira dessa interpretação. Na verdade, trata-se de afirmar, uma vez mais, a competência médica e mostrar como “os nossos legisladores em matéria de conhecimento biológico e sociológico não vão muito além do ensino religioso, e influenciados por eles transportaram para os códigos este princípio da igualdade”m. Seriam os médicos assim os únicos autorizados a lidar com a “dificuldade real”, que consiste em avaliar “a responsabilidade dessas raças já incorporadas à nossa sociedade, gozando dos mesmos direitos e colaborando conosco na civilização” n. Mais ainda, seriam esses os profissionais capacitados a lidar com as variedades fundamentais presentes nessa mesma nação. O tom pretensamente apaziguador de Nina Rodrigues não oblitera o fato dele, em nome de privilegiar e defender essas mesmas raças, passar a advogar a noção de “diferenças fundamentais” das raças existentes no Brasil. O problema não seriam os indígenas, que segundo seu ponto de vista desapareceriam, mas os mestiços: produto da mestiçagem entre “raças inferiores com superiores”. Mostrando como a inferioridade do negro era um pressuposto de época – “pode ser absolutamente certo que alguns negros sejam superiores a alguns brancos; mas nenhum homem de bom senso, bem esclarecido sobre os fatos, poderá crer que em geral o negro valha tanto quanto o branco e muito menos que lhe seja superior”o – o médico procurará anotar como o maior problema nacional não seriam as “raças puras” (que ou desaparecerão ou manifestarão apenas, e tão somente, a existência de fases distintas de evolução) e sim as mestiças. Se com relação aos índios e negros caberia prever “uma responsabilidade atenuada”p ; já os mestiços constituiriam o maior desafio do ponto de vista da psicologia criminal: caberia a eles a característica “degenerativa”, resultante do cruzamento entre raças distintas. Novamente, nesse momento da argumentação, Nina Rodrigues retorna a Silvio Romero para mostrar que o jurista teria apontado para a “indolência e desânimo” de nosso povo e mesmo assim defendido o livre arbítrio. Opondo-se ao argumento, o médico afirma que a indolência seria um “legado dos maiores” e que traria decorrências evidentes para o código criminal. Não só a indolência, acrescenta, como a “imprevidência”q. Defende, ainda mais uma vez, as imensas diversidades existentes entre os mestiços, ajuizando positivamente os que se aproximam aos brancos e condenando os que se encontram na perspectiva oposta. A idéia é que não seriam todos irresponsáveis igualmente, mas que a “criminalidade, como todas as outras manifestações congêneres, biológicas ou sociológicas, seriam de fundo degenerativo, e ligadas às más condições antropológicas do mestiçamento no Brasil”r. A divisão torna-se ainda mais radical, sendo os mestiços brasileiros divididos em: “superiores, evidentemente degenerados e comuns”. Enquanto os primeiros seriam responsáveis e “aproveitáveis”; os segundos, seriam parcial Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53 ou totalmente irresponsáveis, e os terceiros teriam responsabilidade atenuada. A partir daí desqualifica a unidade do código, assim como advoga a menoridade para alguns casos. É nesse momento que Nina Rodrigues torna-se mais explícito na sua condenação à mestiçagem (alegando até a “naturalidade da escravidão, durante algumas fases”) e na acusação ao código único da República, o qual considera “um erro grave”s. A orientação do médico seria indicar uma menoridade, para o Brasil, “com prazo maior do que o aceito para as raças européias”. Ou seja, tomando a degenerescência como conseqüência de uma desigualdade antropológica e sociológica entre as raças, Rodrigues ataca a filosofia universalista do jusnaturalismo – a virtualidade da Ilustração – e passa a analisar casos que comprovam sua teoria. O debate é, então, retomado a partir da dicotomia entre universalismo e diferença e iluminado a partir da “pesquisa de campo”. São exemplos de parricídio, de embriagues, de pederastia e de vícios de toda sorte. A característica fundamental seria a reação “impassível” e “cínica” do doente diante do crime; conforme já teria demonstrado Lombroso com seu livro L’uomo delinquente. Aí estariam os casos de “criminosos natos”, acerca dos quais o famoso criminalista italiano teria apostado na “utopia” de prevenir o crime – utilizando a teoria dos estigmas —, antes do próprio ato criminoso. Na contra-mão da unificação dos códigos Nina Rodrigues defende, dessa maneira, a idéia da distinção da responsabilidade e da imputabilidade. E termina: “feliz os povos que não tem passado científico ... Oxalá a consciência exata da superioridade que nos assiste neste particular, possa guiar o legislador brasileiro na confecção da nossa legislação criminal da qual não se possa vir a dizer nunca que mesmo para o seu tempo já era ruim e atrasada”t. Não ter “passado científico” significaria não estar a par da realidade da degeneração? Não fica claro o partido de Nina Rodrigues, que parece terminar seu livro com uma espécie de desabafo, ou, ao menos, lamentando suas próprias conclusões. Mas o texto tem, ao menos, endereço certo e cada vez mais explícito. Trata-se de desautorizar o código, chamandoo de atrasado e desatualizado, assim como os próprios juristas que o elaboraram. O interessante é que tomando um argumento “simpático” às raças que considera atrasadas, mas que fazem parte de nossa civilização, o médico lhes concede a diferença. No entanto, a mistura contempla a degeneração, segundo os modelos consagrados da época, e caberia ao médico jurista, legislar sobre ela. Nada mais estranho para um cientista que usa tanto de suas “armas e referências” do que terminar com um “Oxalá”, dando ao texto um tom ao mesmo tempo predestinado como afeito a outras sortes de todo tipo. Para um cientista, que se pauta na “realidade dos dados e modelos científicos”, esse desfecho é assim revelador dos impasses de época. Nina Rodrigues e a Antropologia Criminal 51 O retorno do racialismo Nesse livro Rodrigues pratica a nova modalidade de medicina social preconizada nesse momento. E o momento não podia ser mais significativo. Além do final recente do regime escravocrata, as recentes epidemias de cólera, febre amarela e varíola, entre tantas outras, chamavam atenção para a “missão higiênica” que se reservava aos médicos. Por outro lado, com o final da Guerra do Paraguai, ainda nos anos 1870, afluíram em massa doentes e aleijados que exigiam a atuação dos novos cirurgiões. Isso sem esquecer, já em inícios da República, da necessidade de criar um novo código penal, para a jovem nação. Nesse momento toma força, assim, a figura do “médico missionário”, cujo desempenho será distinto nas duas faculdades nacionais: enquanto o Rio de Janeiro atentará para a doença, já na Bahia tratava-se de olhar para o doente. Com efeito, a relação entre as duas escolas médicas brasileiras, foi quase complementar. Se a escola do Rio de Janeiro dedicouse, sobretudo, ao combate as epidemias que grassavam no país; já na Bahia, a atenção centrou-se, em primeiro lugar, nos casos de criminologia e, a partir dos anos 1890, nos estudos de alienação. Na Escola Médica da Bahia, em finais do século, as teses sobre medicina legal predominam. Nelas, o objeto privilegiado não é mais a doença ou o crime, mas o criminoso. Sob a liderança de Nina Rodrigues, a faculdade baiana passou, dessa maneira, a seguir de perto os ensinamentos da escola de criminologia italiana, que destacava os estigmas próprios dos criminosos: era preciso reservar o olhar mais para o sujeito do que para o crime. Para esses cientistas, não foi difícil vincular os traços lombrosianos ao perfil dos mestiços - tão, mal, tratados pelas teorias da época - e aí encontrar um modelo para explicar a nossa “degeneração racial. Os exemplos de embriaguez, alienação, epilepsia, violência ou amoralidade passavam a comprovar os modelos darwinistas sociais em sua condenação do cruzamento, em sua alerta à “imperfeição da hereditariedade mista”. Sinistra originalidade encontrada pelos peritos baianos: o “enfraquecimento da raça” permitia não só a exaltação de uma especificidade da pesquisa nacional, como uma identidade do grupo profissional. Munidos dessas conclusões, esses médicos passarão a criticar o Código Penal, desconfiando do jus-naturalismo, e da igualdade entre as raças, apregoada pela letra da lei. “O código penal está errado, vê crime e não criminoso ... Não pode ser admissível em absoluto a igualdade de direitos, sem que haja ao mesmo tempo, pelo menos, igualdade na evolução ... No homem alguma cousa mais existe além do indivíduo. Individualmente sob certos aspectos, dois homens poderão ser considerados iguais; jamais o serão porém se se atender às suas funções fisiológicas. Fazer-se do indivíduo o princípio e o fim da sociedade, conferir-lhe uma liberdade sem limitações, como sendo o verdadeiro espírito da democracia, é um exagero da demagogia, é uma aberração do principio da utilidade 52 Lilia Katri Moritz Schwarcz pública. A Revolução Francesa inscreveu na sua bandeira o lema insinuante que proclamava as idéias de Voltaire, Rousseau e Diderot as quais ate hoje não se puderam conciliar pois abherrant inter se ...”, diria Nina Rodriguesu. O livre-arbítrio transformava-se, portanto, em um pressuposto espiritualistav, em uma falsa questão, como se a igualdade fosse criação própria dos “homens de lei”, assim como o pressuposto da universalidade dos homens; sem nenhum embasamento científico. A lei pressuporia a igualdade e a universalidade e era contra esses princípios da Ilustração que os profissionais médicos – em tudo contrários aos modelos Iluministas – contrapunham-se. Diferença não é, portanto, sinônimo de pluralismo, mas marca ontológica, porque desenhada pela natureza. Era a face pessimista do pensamento realista brasileiro, que diagnosticava no cruzamento a falência nacional e a primazia dos médicos sobre os demais profissionais. “Prevenir” e estabelecer o privilégio da medicina por sobre o direito eram, então, as aspirações centrais desse grupo e nesse contexto. “Diferença”, por outro lado, não era um elemento relativo (e relacional) ou aferível culturalmente. Ao contrário, surgia como conceito congelado, uma vez que diretamente vinculado à raça e à biologia. Nesse sentido, os mestiços representariam o local da ambigüidade e da aplicação de uma ciência estrita. O livro analisado representou para o médico o lugar indicado para o exercício do método e sua conclusão parece insofismável: a imputabilidade criminal é relativa às raças. O texto nos serve entre outros, como um elogio à idéia da relatividade, mas também como um alerta acerca dos perigos de sua aplicação. Numa época tomada pela “mania da identidade”, como diz o historiador Evaldo Cabral de Melo, vale a pena ficar atento para o perigo de “essencializar” o debate e transformar identidades não em relações, mas em fronteirasx.Identidades são, sempre, construções sociais, por mais que o analista pretenda dar a elas o estatuto de realidades observáveis. É certo que Nina Rodrigues não pensava exatamente em identidades (fossem elas raciais ou não), mas seu procedimento teórico poderia iluminar certos aspectos do problema. O médico era um criador, à contra-mão, de identidades e as constituía de maneira rígida e pautada por princípios do determinismo, mas que certamente dialogavam com impasses da época. Nesse sentido, é preciso alertar como identidades não são realidades fixas, rígidas e congeladas. Fazem parte de um certo agenciamento, domesticam realidades biológicas e até tradições. Por isso, são respostas políticas a contextos políticosz. A noção de “relatividade”, empregada por Nina Rodrigues, servia como um diagnóstico determinista por sobre uma categoria subjetiva e ampla: os mestiços. Poucos escapavam dessa classificação que, nas mãos do médico, virava matéria para a ciência. O problema não era de diagnóstico – a diferença, Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53 - mas a “medicação”. Ela hierarquizava a diferença e a transformava em desigualdade. Isto é, diante da variedade racial existente no país, a decorrência lógica parecia ser localizar uma hierarquia social rígida cujo pressuposto era a própria falta de igualdade. Jogava-se por terra, assim, os ganhos da Ilustração, assim como noções de cidadania que recém se instalavam entre nós a partir do princípio da universalidade da lei. Diante da objetividade da ciência, que visava o grupo racial, nada mais restava ao indivíduo que era antes o resultado de seu raça e origem. De nada adiantaria o esforço de Artur Ramos que, nos anos 1930 tentaria reabilitar as idéias de Nina Rodrigues tentando trocar o conceito de raça pelo de cultura. Com efeito, era a raça e o grupo que delimitavam as possibilidades de um indivíduo e, portanto, a relatividade defendida era absolutamente referida à “constância da raça”. As conclusões de Nina Rodrigues levavam assim a acreditar no nosso fracasso como nação e na inviabilidade de um povo mestiço, como o nosso. Dura conclusão, diante de um país cuja República pretendia redimir por meio da concepção de igualdade social. De tal papel sinistro o médico procurou afastar-se; tanto que, a partir de inícios do século, Nina Rodrigues basicamente abriu mão de seu papel de arauto da diferença e da degeneração. Dedicou-se aos estudos de alienação e adotou as mesmas premissas deterministas que outrora utilizara para pensar a criminalidade. Guardadas todas as especificidades contextuais, esse livro de Nina Rodrigues abre, por outra porta, a imensa fresta do perigo da “racialização” do debate. Clamar por uma diferença que não é plural e relacional, mas racial, e que abole o suposto da universalidade humana, é a atuar de acordo com a marcha do caranguejo: “uma para frente e mais dois para trás”. Mais que isso: Nina Rodrigues pode ser tomado como um arauto – na contra-mão – desses tempos tomados pelo debate sobre cotas. O médico, racializou o debate (em um momento suficientemente tomado pelo modelo científico das raças), só que usou seus conhecimentos para caracterizar a inferioridade e não a igualdade. Por isso mesmo, suas propostas – entre elas a idéia da formação de dois códigos – foram condenadas e seu autor chamado de “maldito”. Hoje, a “racialização” serve a uma causa considerada “positiva” (e que levaria a igualdade aos desiguais) está mais uma vez em pauta, e continua a essencializar e cristalizar. A pergunta é antiga e lembra o velho e bom Machiavel: os meios justificam os fins? E no caso de Nina Rodrigues seu contexto lhe era até, digamos assim, favorável. Afinal, o médico não poderia estar a par dos usos contemporâneos do conceito de cultura na Alemanha, que como diz Norbert Elias, era uma região relativamente pouco conhecida (em contraste com as potências imperiais e coloniais da Europa Ocidental), e que expressava ora seu atraso comparativo, ora suas exigências regionalistasa1. Também, com certeza, desconhecia (até por motivos óbvios e temporais) a noção de relatividade cultural, Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53 Nina Rodrigues e a Antropologia Criminal 53 cujo bastião era a antropologia culturalista, que surgia nessa época com a figura de Franz Boas. Ao contrário, o médico apoiava-se em bibliografia de ponta e, em sua época, acima de suspeitas científicas. Mas a despeito de tantos reparos, o certo é que seus conceitos de raça não permitem “migrar” rapidamente para a idéia de cultura. Sua base teórica é a biologia determinista e incomoda ao fazer da defesa da diferença um mote para estigmatizá-la e transformá-la em demonstração da hierarquia social e da inferioridade. Nina Rodrigues, o defensor da craniologia, foi vencido pelo tempo e seus ideais foram devidamente datados. Resta saber, porém o que é datado. O pressuposto da desigualdade com certeza sim, a “persistência da raça” parece que não tantob1. Tudo faz lembrar o conhecido conto de Machado de Assis - “O alienista”, de 1882, - em que Simão Bacamarte - um famoso alienista – dá início a seus trabalhos internando vários membros da sua cidade – e até a própria mulher – para depois retirar a todos e estudar, apenas, a si próprio. O conto de Machado é anterior ao livro de Nina Rodrigues e data dos anos 1880. E por isso, mesmo que queiramos, não é possível tratá-lo como um exercício de predestinação. No entanto, como diz R Barthes a literatura sempre sabe “algo das coisas”. É no mínimo evidente como a ciência era, já na época, um mito de difícil digestão. 14. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, “Identidade cultural, identidade nacional no Brasil”. In: Tempo Social 1. São Paulo, Edusp, 1989. 15. RODRIGUES, Nina (1862-1906), “Os mestiços brasileiros”. In: Brazil Medico. Rio de Janeiro, s.e., 1890. 16. ________. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Gazeta Médica da Bahia, Progresso (1ª ed. 1933), 1959. 17. ________. “Métissage, dégénérescence et crime. In Archives d’anthropologie criminelle. Lion, 1889. 18. ROMERO, Sylvio (1851-1906), O Brasil social. Rio de Janeiro. Typografia Jornal do Commercio, 1907. 19. ________. História da Literatura Brasileira, 4ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio. (1ª ed. 1888), 1968. 20. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. 21. SCHWARCZ, Lilia K. Moritz, O espetáculo das raças. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 22. STOCKING, George W. Race, culture and evolution. Chicago, University of Chicago Press, 1968. 23. VENTURA, Roberto, Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. 24. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naif, 2002. Referências Bibliográficas d Notas a b c e f 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. ARENDT, Hannah, The origins of totalitarism. New York, Harvest, 1973. ASSIS, Machado. “O alienista”. In ‘Papéis avulsos. Rio de Janeiro, Livraria Garnier, (1a. edição 1982) BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro, 2006. CORREA, Mariza. As ilusões da liberdade. A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. São Paulo, 1983. Tese (Doutoramento), Universidade de São Paulo. CUNHA, Manuela Carneiro da Cunha. Negros estrangeiros. São Paulo, Brasiliense, 1987. DA MATTA, Roberto. “Você sabe com quem está falando?” In: Carnavais, malandros e heróis, 3ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. DUMONT, Louis. Homo hierarchinus. Essai sur le système de castes. Paris, Gallimard, 1966. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 1999. FRY, Peter. A persistência da raça. Rio de Janeiro, Civilizaçãp Brasileira, 2005/ HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. São Paulo, Paz e Terra, 1987. HOLANDA, Sergio Buarque de, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio, (1ª ed. 1936), 1979. LOMBROSO, Cesare, L ‘uomo delinquente. Roma, s.e., 1876. NOGUEIRA, Marco Aurélio, As desventuras do liberalismo. Joaquim Nabuco, a monarquia e a República. Rio de janeiro, Paz e Tetra, 1984. g h i j l m n o p q r s t u v x z a1 b1 Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. Romero, Silvio. História da literatura brasileira.1888. Rodrigues, Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal. 1894: 27 Rodrigues, Nina. Op.cit:28 Rodrigues, Nina. Op.cit:30 Rodrigues, Nina. Op.cit: 35 Rodrigues, Nina. Op.cit: 37 Rodrigues, Nina. Op.cit: 50 Rodrigues, Nina. Op.cit: 60 Rodrigues, Nina. Op.cit: 67 Rodrigues, Nina. Op.cit: 68 Rodrigues, Nina. Op.cit: 107 Rodrigues, Nina. Op.cit: 108 Rodrigues, Nina. Op.cit: 112 Rodrigues, Nina. Op.cit: 122 Rodrigues, Nina. Op.cit: 137 e 139 Rodrigues, Nina. Op.cit: 158 Rodrigues, Nina. Op.cit: 167 Rodrigues, Nina. Op.cit: 200, 201. Gazeta Médica da Bahia, 1906:256-7 Correa, Mariza. 1983:64 Vide, Viveiros de Castro, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naif, 2002. Vide, Cunha, Manuela Carneiro da Cunha. Negros estrangeiros. São Paulo, Brasiliense, 1987 e Bauman, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro, 2006. Elias, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 1999. O antropólogo Peter Fry escreveu livro exatamente com esse título – A persistência da raça (2005) – e tratou de temas semelhantes aos que estamos abordando no final desse artigo. 54 Sergio Ferretti Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59 Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás Nina Rodrigues and the Orixás Religion Sergio F. Ferretti Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA, S. Luís, MA, Brasil Comentário sobre o centenário da morte de Nina Rodrigues. Apresenta síntese e comentários sobre os livros O animismo fetichista dos negros bahianos, publicado em 1896 e traduzido em francês em 1900 e Os africanos no Brasil publicado cerca de trinta anos após o falecimento do autor. Ambos os livros apresentam inúmeras informações sobre o trabalho de campo realizado pelo autor que é o pioneiro destes estudos e abriu caminhos para pesquisas posteriores. Mostra sua afinidade e interesse pelos estudos do negro no Brasil. Descreve o momento público das festas, vestes e contas usadas e detalhes da iniciação, demonstrando a proximidade entre o autor e os elementos pesquisados. Nina Rodrigues escrevia bem e fundamentava seus escritos em pesquisas de campo minuciosas. É lamentável que hoje em dia a maioria dos seus trabalhos não estejam disponíveis ao público. Mostra que práticas dos negros e brancos em toda parte encontram-se associadas, que não são apenas práticas de negros pois os brancos estão aptos a tornarem-se negros. Considera que as praticas religiosas, sobretudo a religião dos nagôs foram as principais instituições africanas conservadas entre nós, tendo em vista o seu predomínio numérico, a melhor organização do sacerdócio e a maior difusão da língua. Nina Rodrigues foi o pai fundador dos estudos afro-brasileiros, o pioneiro nessa área, e sua contribuição foi fundamental para estabelecer diretrizes deste campo de estudos. Palavras-chave: Nina Rodrigues, centenário da morte, religião dos orixás, nagôs, mitologia e liturgia, trabalho de campo. A commentary on the centenary of Nina Rodrigues’ death. A presentation of synthesis and comments about the books O animismo fetichista dos negros bahianos (The fetishist animism of black baianos), published in 1896 and translated into French in 1900 and Os africanos no Brasil(Africans in Brazil) published about thirty years after the death of its author. Both books present a great deal of information about the fieldwork done by the author, a pioneer of these studies, who blazed a trail later followed by other researchers. His affinity and interest for the study of Negroes in Brazil is clear. The public moments of the parties are described, clothing, stories that were told and details of initiation, this clearly demonstrating the proximity of the author to his research subject. Nina Rodrigues wrote well and supported his writings in research done in a minute field. It is lamentable that today most of his work is not available to the public. It shows that practices of Negroes and whites are always linked to each other since whites are apt to become negroes. It is considered that religious practice above all the religion of the nagôs, are the main African institutions conserved amongst us, considering numerical predominance, the most well organized priesthood and the greatest diffusion of the language. Nina Rodrigues was the founding father of afro-brazilian studies, pioneer in this area and his contribution was fundamental in establishing the directions later taken in this area of study. Key words: Nina Rodrigues, centenary of death, religion of the Orixás, Nagôs, mythology and liturgy, fieldwork. Recebido em 6/9/2006 Aceito em 20/11/2006 Endereço para correspondência: Prof. Sergio F. Ferretti, Av. do Vale 14 apt. 401, Ed. Titanium, Bairro Renascença II,CEP 65075829 – São Luís, MA, Brasil. Tel./ FAX: (98) 3235-1291. E-mail: [email protected]. Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):54-59. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. No dia 17 de julho de 1906 o médico maranhense Raymundo Nina Rodrigues, precursor dos estudos do negro no Brasil, faleceu em Paris, com apenas 43 anos. Nina Rodrigues estudou medicina na Bahia e no Rio de Janeiro. Segundo o professor Lamartine Lima(3), Nina Rodrigues não era mulato, mas descendente de judeus sefaraditas. Segundo Domingos Vieira Filho(8), a rua do Sol, em São Luís, recebeu o nome atual de Nina Rodrigues no ano de seu Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59 falecimento em homenagem àquele médico maranhense que, após a sua formação universitária, trabalhou cerca de dois anos no Maranhão. Antes de regressar à Bahia ele residiu e manteve um consultório no prédio que tem hoje o nº 95, em frente ao Teatro Arthur Azevedo, onde, em 1962, no centenário de seu nascimento, foi colocada uma placa de mármore alusiva ao evento. Realizou pesquisas alimentares publicando seus resultados no Jornal Pacotilha e por causa de um deles teria sido apelidado de Dr. Farinha Seca, um dos motivos pelo qual não se estabeleceu no Maranhão por muito tempo e se mudou para a Bahia, onde realizara parte de seus estudos superiores e onde exerceu com brilho a profissão de médico, daí porque é mais conhecido como baiano de que como maranhense. Na Bahia, Nina Rodrigues encontrou numerosa população negra, a que mais tarde dedicou seu estudo. Trabalhou em inúmeras frentes: como professor universitário, como escritor, como antropólogo e como pesquisador das áreas de saúde pública e medicina legal. Deixou cerca de 60 artigos, vários reunidos em livros, a maioria deles publicada nos seus dez últimos anos de vida. Alguns de seus trabalhos tiveram edições publicadas em outros países, onde mantinha correspondência com pesquisadores ilustres. Cerca de cinco anos após o seu falecimento os estudos sobre raça, conceito central em suas obras, começaram a adquirir outros enfoques, sobretudo a partir de pesquisas do antropólogo Franz Boas nos Estados Unidos. Caso tivesse vivido mais alguns anos Nina Rodrigues certamente teria revisto diversos de seus pontos de vista e afirmações sobre o negro que tornam ultrapassados, atualmente, inúmeras de suas perspectivas. O ANIMISMO FETICHISTA O livro O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos, publicado na Revista Brasileira no Rio de Janeiro, em 1896 e depois traduzido para francês na Bahia, em 1900, mereceu resenha elogiosa de Marcel Mauss, publicada em Paris, em 1902, no Anuário Sociológico de 1900-1901, onde foi considerado uma elegante monografia. Trata-se do livro fundador da etnografia do estudo das religiões afro-brasileiras, cujo modelo de estudos foi estabelecido por Nina Rodrigues no século XIX, o pai fundador desta área de conhecimento entre nós, e que necessita de uma edição revista e atualizada. Animismo fetichista é a expressão, hoje preconceituosa, pela qual no século XIX, eram conhecidas as religiões dos chamados povos primitivos, hoje superada, juntamente com outros conceitos como o de totemismo. O livro Os Africanos no Brasil foi deixado na gráfica quando ele viajou para a França em 1906 e fazia parte de uma História da América Portuguesa, inacabada. O livro só foi publicado 30 anos após a sua morte, o que Arthur Ramos denominou de conspiração do silêncio contra Nina Rodrigues. Esses dois Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás 55 livros reúnem suas idéias em torno do estudo da Religião dos Orixás que queremos comentar aqui. Apesar de ultrapassados, muitos pontos de vista do autor são até hoje importantes, especialmente nos estudos sobre religiões afro, metodologia de pesquisa, mitologia, liturgia e arte religiosa. Infelizmente, Nina Rodrigues, hoje é pouco lido, pouco conhecido e muito criticado, especialmente por suas idéias relativas as raças, atreladas a teorias da época que afirmavam a inferioridade da raça negra, do ponto de vista intelectual, físico, moral e religioso, embora reconhecesse muitas qualidades no negro. Outros aspectos de sua obra têm sido também pouco estudados pela dificuldade de localização de seus trabalhos, que não foram reeditados. Nina Rodrigues informa ter conhecido diversos negros que aprenderam, em Lagos, a ler e escrever a língua Yorubá. Mostra que a revolta de 1835 foi liderada sobretudo por negros haussás ou malês; que devido à repressão policial, as práticas muçulmanas eram na época, muito limitadas na Bahia e que a religião dos yorubanos era muito mais importante. Considera que a concepção dos orixás é sobretudo, politeísta, que o deus supremo Olorum praticamente não recebe nenhum culto e que os orixás são fenômenos meteorológicos divinizados. Entre os orixás tem primazia Obatalá ou Orixalá, chamado de Gunoco pelos africanos de nação Tapa. Menciona, em seguida, o orixá Exú, Exú Bará ou Elegbará que os afro-bahianos tendem a confundir com o diabo, por influência do ensino católico. No terreiro do Gantois, o primeiro dia de festa é consagrado à Exu. Ogum é representado por fetiches em cuja concepção entra o ferro. Xangô, uma das figuras mitológicas mais proeminentes, é chamado Dzakoutá, o emissor de pedras de raio, o deus do trovão. Narra estórias de Xangô na África. Para ele, Xangô é a pedra de raio em que o orixá está encantado, o que prova a litolatria baiana. Refere-se à existência de uns 15 a 20 terreiros de candomblé em Salvador e outros tantos nos arrabaldes da cidade, que conhecia e que diz terem preservado, naquela cidade, os costumes africanos com maior rigor. Comenta que os terreiros do Engenho Velho, do Garcia e do Gantois são os mais afamados e que era impossível calcular o número exato de terreiros existentes, sobretudo em Cachoeira, em Santo Amaro e em São Francisco. Menciona rivalidades entre país e mães de terreiros africanos e crioulos. Diz que o terreiro do Gantois pode servir de modelo e dá uma idéia exata do que é um templo fetichista na Bahia. Afirma que a procura para eles de lugares ermos e de difícil acesso não é fortuito. Em alguns é impraticável o acesso a cavalo com botas de montaria. O Gantois funciona num barracão coberto de telha e paredes de taipa no centro de uma clareira. A metade anterior da casa constitui uma grande sala de dança em solo nu e batido. A parte posterior é dividida ao meio por um corredor subdividido em pequenos aposentos. Nina Rodrigues descreve o peji, onde diz ter estado diversas vezes. Os pais e mães de terreiros têm auxiliares que dirigem a orquestra, chamam os santos nas árvores e o mestre dos 56 Sergio Ferretti sacrifícios. A transmissão hereditária das funções não parece rigorosa, mas todos saem da confraria dos filhos-de-santo. As vestes e contas usadas variam com os santos. A iniciação é um processo longo e complicado. Conhecia crioulos e africanos que ficaram velhos e não conseguiram recursos necessários à iniciação. Descreve as vestimentas e os momentos públicos do processo de iniciação e os feitiços que eram colocados nas ruas, como a troca simbólica de cabeças portadoras de infelicidades e venturas. Comenta características dos diferentes orixás e seus assentamentos em pedras de procedências diversas. Diz que as árvores também podem ser um fetiche ou representar os orixás e mostra a importância da gameleira no culto de Iroco, que ninguém se atreve a abater e em cujo tronco oferecem-se sacrifícios diversos. Mas considera essa árvore mais como um altar do que o próprio deus. Afirma que a pedra, o ferro e os búzios tornam-se santos pela intervenção do sacerdote, daí a importância das coisas feitas, ou gris-gris que coexistem com uma mitologia complexa. Diz que o culto yorubano na Bahia tem uma forma exterior complexa, brilhante e ruidosa. Sem dúvidas, Nina Rodrigues escrevia bem e fundamentava seus escritos em pesquisas de campo minuciosas. É lamentável que hoje em dia seus trabalhos não estejam disponíveis ao grande público. Esperamos que o centenário de seu falecimento inicie um movimento pela reedição de suas obras. Como médico, interpreta o transe como sonambulismo provocado com desdobramento de personalidade ou como delírio hipnótico e faz experiências no consultório para induzir uma iniciada ao transe, razoavelmente bem sucedida, demonstrando seu interesse e acuidade nas observações. Narra caso de tratamento hipnótico no lugar da curas de feitiçaria. Tenta realizar outras experiências para dar continuidade a seus estudos, mas os iniciados se recusam a aceitar. Refere-se ao transe de fenômenos espíritas que não pode estudar. Constata a natureza histérica dessas manifestações e surpreende-se com a hipótese de não histeria na raça negra, com o que absolutamente não concorda. Para dar crédito a suas informações, cita numerosos autores, sobretudo franceses da última década do século XIX e alguns autores brasileiros. Descreve sacrifícios aos orixás, desde as oferendas a Exu, que assistiu em candomblés e comenta e descreve ritos funerários a partir de escritos de Melo Moraes, no Rio de Janeiro, sobre o enterro de negros pobres ou dos mais importantes. Lembra que muitos ídolos africanos eram enterrados junto com os mortos no cemitério dos Lázaros. Apresenta, igualmente, um candomblé funerário e objetos do despacho, que foram apanhados por um amigo e lhe foram entregues e doados ao Museu de Medicina Legal da Bahia. Mostra a influência de idéias cristãs nas crenças dos africanos sobre a morte e os mortos. Discorre sobre festa no candomblé Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59 do Gantois, dirigido pela africana Júlia e por sua filha Pulchéria. Refere-se a milhares de pessoas que assistem as festas nos terreiros do Gantois e do Engenho Velho. Descreve as danças ao ar livre e no salão do terreiro e afirma que no Gantois o candomblé termina com uma missa mandada dizer na última sexta-feira e com um almoço no último domingo. Menciona a importância dos negros haussás ou malês na Bahia e à inferioridade da mitologia dos bantus em relação à dos yorubás. No último capítulo do Animismo Fetichista discute a conversão ao catolicismo dos afro-baianos. Considera que o catolicismo brasileiro recebeu influências do negro. Refere-se às navegações comerciais existentes na época entre Salvador e a África que facilitavam a importação de crenças e práticas e informa que conheceu diversos negros e negras que fizeram muitas viagens à África. Prevê que não é para tão cedo a extinção dos cultos africanos na Bahia. Refere-se a rivalidades entre pais-de-santo africanos e brasileiros. Comenta sobre a tendência à fusão de crenças trazidas da África com crenças católicas, especialmente no crioulo e no mulato, que compara com a conversão dos politeístas ao monoteísmo no tempo dos primeiros cristãos da Europa. Refere-se à identificação entre santos católicos e orixás yorubanos. Assim, Xangô equivale a Santa Bárbara, apesar das diferenças de sexo, pela relação com o trovão e os raios. Oxossi equivale a São Jorge, devido à presença do cavalo e da lança. Obatalá ou Orixalá é identificado com o Senhor do Bonfim, objeto do culto mais popular na Bahia. Sexta-feira é o dia consagrado à Obatalá e ao Senhor do Bonfim. Afirma que a imprensa reclama de providências da polícia pelos maus costumes presentes nas festas da Igreja, como na lavagem da igreja do Bonfim -, considerada como verdadeiro bacanal num templo cristão. Menciona a equivalência da identificação virgem Maria com certos orixás como Oxum ou Iemanjá. Indaga-se sobre a equivalência entre Santo Antônio e Ogum. Sem renunciar a seus deuses africanos, o negro tem profunda devoção pelos santos católicos, uma vez que os santos constituem orixás para eles. Informa que a mãe de terreiro, Livaldina, interrompia o candomblé para assistir à missa do galo no Natal; que havia negras profundamente católicas e ao mesmo tempo fetichistas e que uma negra, mãe de leite de um aluno da escola jurídica, procurava convencê-lo a não se meter a entender de santos da Costa, pois haveria de arrepender-se de tal temeridade. Informa que, na Bahia, em toda parte encontram-se cruzes ao lado de figas, búzios etc., que torna compreensível a associação dos ritos católico e yorubano, e que essas práticas não são apenas dos negros, pois os brancos também estão aptos “a tornarem-se negros”. Segundo ele, na Bahia, todas as classes, mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem negras. O número de indivíduos de todas as cores que vão consultar os feiticeiros nas suas aflições é tal que se pode dizer que toda a população, com exceção de pequena minoria, participa desses cultos. Refere-se à romaria a Santo Antônio da Barra por ocasião de uma epidemia de varíola e a pedidos de interferência Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59 do clero e da polícia contra tais práticas. Declara que não apenas o culto católico recebe influências dos negros, mas também as práticas espíritas e a cartomancia. Descreve a sua participação num terreiro ao mesmo tempo, espírita e de candomblé, onde encontrou todos os preparativos para se celebrar missas, que ouviu dizer já terem sido ali celebradas. Descreve o culto com elementos sincréticos espíritas e africanos, com caboclos e orixás. Afirma que os negros são mais fáceis de cair no santo do que os brancos. Conclui afirmando que os negros baianos são católicos e que a conversão tem êxito no Brasil, mas é uma ilusão, e não está conforme a realidade dos fatos. OS AFRICANOS NO BRASIL O outro livro de Nina Rodrigues sobre o negro recebeu o título Os africanos no Brasil e foi publicado somente em 1933, (27 anos após seu falecimento). Os originais do primeiro volume foram deixados pelo autor na editora antes de viajar para a Europa. Seu discípulo e sucessor, Oscar Freire, faleceu sem publicá-lo, o que ocorreu cerca de 30 anos depois por um seguidor de Oscar Freire. Neste segundo livro, Nina Rodrigues utiliza maiores referências bibliográficas sobre religiões e povos da África, como os trabalhos do coronel J.B. Ellis sobre os yorubás, os fons e os fantis. Na introdução, trata de vários assuntos a cerca da inferioridade científica da raça negra, mostrando, ao mesmo tempo, a simpatia que o negro lhe inspira. Afirma que o problema social da raça negra foi sempre mal compreendido no país e que, por maiores que sejam as nossas simpatias para com o negro, a raça negra no Brasil há que constituir um dos fatores de nossa inferioridade como povo, uma de suas frases famosas, responsável pelo seu descrédito atual por parte dos movimentos negros. Continua todo o capítulo discutindo tópicos sobre a pureza racial. Faz diversas comparações sobre a presença negra nos Estados Unidos e na América Latina. No capítulo 1, discute procedências africanas do negro no Brasil. Invoca Silvio Romero, ao comentar a vergonha de até agora não termos consagrado trabalhos ao estudo das línguas e das religiões africanas trazidas ao Brasil e argumentou que o negro deve ser considerado como objeto de ciência. Explica que pelo ensino da medicina legal, impôs-se o dever de conhecer de perto os negros brasileiros e afirma que circulam, entre nós, idéias errôneas sobre a procedência de nossos negros. Lamenta que os poucos atores que trataram do assunto cometeram enganos que se difundiram, considerando quase todos do grupo banto e mostrando a primazia dos sudaneses na Bahia. Discute comentários do Visconde de Porto Seguro e de E. Reclus sobre a procedência dos negros; comenta a queima de documentos e estatísticas aduaneiras sobre o tráfico e se refere a documentos relativos à importação de negros nagôs e sudaneses trazidos como contrabando. Apoiado em escritos do coronel Ellis, refere-se Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás 57 aos grandes comerciantes de escravos brasileiros, Francisco Felix de Sousa e Domingos Martins, que se tornaram árbitros do tráfico de escravos no Reino do Daomé. Destaca a forte ascendência de sudaneses na Bahia em comparação com os bantos no Rio de Janeiro e Pernambuco, nações africanas mais valorizadas pelo tráfico. No capítulo II, comenta a situação dos negros maometanos no Brasil e as revoltas e insurreições de escravos ocorridas na Bahia por influência, sobretudo, dos haussás e dos nagôs, mostrando as causas religiosas dos levantes. Descreve práticas religiosas dos muçulmanos que conheceu e comenta a tradução que conseguiu, em Paris, de coleção de gris-gris e amuletos que possuía, contendo versos do Alcorão. No capítulo III, refere-se às sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX e à Guerra de Palmares, denominada de Tróia Negra. É importante destacar que Nina Rodrigues foi dos primeiros autores a discutir as revoltas de escravos ocorridas no Brasil, tanto de Salvador quanto em outras províncias. No capítulo IV, refere-se aos últimos africanos e nações que se extinguem no Brasil e relata que assistiu, com emoção, em 1897 uma turma de velhos nagôs e haussás atravessar a cidade e embarcar para a África. Lembra que inúmeras partidas precederam a essa. Em 1899, partiu para Lagos o patacho Aliança, levando 60 velhos africanos dos quais 12 morreram de difteria e os demais tiveram que passar uma quarentena até desembarcarem. Acredita que não passava de 500 o número de velhos africanos que ainda viviam na Bahia àquela época. Cita os numerosos locais em que se reuniam antigos africanos haussás, nagôs e jejes, oferecendo-se para pequenos serviços, e comenta as diferentes denominações utilizadas pelos escravos de procedências diversas. Refere-se aos negros nagôs, aos jejes, minas, tapas, haussás e outros, mencionando suas diferentes origens e a minoria de bantos que encontrou na Bahia. Menciona usos e costumes dos africanos, vestimentas, culinária etc. No capítulo V, discute sobrevivências africanas, referindose às línguas e às artes. Transcreve e traduz vários cânticos religiosos yorubás, comentando a importância da língua nagô na Bahia. Apresenta um vocabulário de línguas africanas faladas no Brasil, entre as quais o grunce, o jeje (mahi), o haussá, o kamari e o tapa, traduzindo 122 palavras nessas línguas. Discute, ainda, elementos de diversas outras línguas africanas conhecidas na Bahia. Sobre artes, comenta a importância da escultura entre os negros e analisa coleção de objetos religiosos a que teve acesso. Explica ainda a importância das danças e sua contribuição para o gosto artístico de nosso povo, da música e de instrumentos africanos. No capítulo VI, trata de sobrevivências totêmicas, festas populares e folclore. Narra alguns contos africanos coletados por vários autores e por ele próprio, comentando a influência exercida pelos negros na psicologia popular de nosso povo. 58 Sergio Ferretti No capítulo VII, aborda as sobrevivências religiosas africanas na Bahia. Avalia que as práticas religiosas foram as principais instituições africanas conservadas entre nós, sobretudo a religião dos nagôs, tendo em vista o seu predomínio numérico, a melhor organização do seu sacerdócio e a maior difusão da língua. Considera a mitologia jeje-yorubana como síntese do animismo superior do negro, que predomina meio século após a extinção do tráfico, e que as divindades de outros povos, ao lado dos santos católicos, recebem culto externo mais ou menos copiados das práticas nagôs. Lembra que seus primeiros estudos da religião tiveram inspiração apenas na observação direta e pessoal do fenômeno, uma vez que praticamente desconhecia estudos similares a que teve acesso posteriormente. Analisa que os nagôs possuem uma mitologia bem complexa com divinização de elementos naturais. Passa a tratar das diferentes divindades, a partir de Olorum, o deus do céu, discutindo o possível monoteísmo africano, com o qual não concorda, uma vez que o deus supremo existe em todos os politeísmos e está muito distante para preocupar-se com a vida cotidiana. Considera, porém, que há uma tendência ao monoteísmo nessas práticas. Descreve características e atribuições dos orixás, destacando a importância de Xangô, Oxum e Iemanjá. Ressalta a importância de Ifá, de Elegbá ou Exu, Xapanã e Ibeji. Comenta a fusão entre a mitologia ewe e yorubana, destacando a presença de Quevioçô ou Xangô e de Loco, a gameleira. Afirma que o culto da serpente dos daomeanos não se consolidou aqui devido à sua inexistência entre os nagôs. Passa a comentar a organização do sacerdócio e da liturgia africana na Bahia a partir de características africanas do culto. Mostra que, no Brasil, os terreiros são autônomos e não se subordinam a uma hierarquia entre os grupos. Descreve as características da organização dos terreiros desde a feitura no santo. Constata que o processo descrito por Ellis para os minas, jeje e nagôs é o mesmo que ele próprio descreveu no Animismo Fetichista. Reafirma que considera o transe um estado de sonambulismo provocado dos mais curiosos e afirma que o sacerdócio yorubano perdeu, no Brasil, toda intervenção nos atos da vida civil. Nina Rodrigues comenta medidas repressivas ao culto jeje-nagô bem como sua grande vitalidade e resistência. Mostra que, na África, esses cultos constituem verdadeira religião, mas no Brasil são considerados práticas de feitiçaria sem proteção nas leis, condenadas pela religião dominante e pelo desprezo aparente das classes influentes. Passa a analisar notícias divulgadas na imprensa em fins do século XIX e inícios do XX, especialmente da Bahia, contra as religiões afro e as práticas realizadas no candomblé do Gantois, do Engenho Velho e outros, solicitando medidas contra as mesmas. Considera que sobressai a extraordinária resistência e vitalidade dessas crenças da raça negra e que Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59 esse culto está destinado a resistir por longo prazo. Adverte que a Constituição do País da época defende a liberdade de consciência e de culto e o Código Penal da República qualifica os crimes de violência contra a liberdade de cultos. Critica a abusiva violação de templos pela polícia. Lembra que os candomblés, como os conventos e seminários, são acusados de serem focos de devassidão e que o exercício ilegal da medicina é um crime nas nossas leis. Apresenta longa citação de Pastoral do Prelado D. João Correia Nery sobre práticas da chamada cabula, em que o Bispo comenta ritual religioso que se assemelha à umbanda, “numa perigosa amálgama que serve para ofender a Deus”, nas palavras do Prelado. No capítulo VIII, apresenta comentários sobre o valor social dos povos e raças negras que colonizaram o Brasil e, no capítulo IX, comenta a sobrevivência psíquica na criminalidade dos negros no Brasil, discutindo o que considera características do atavismo e da sobrevivência nos hábitos e aquisições morais relacionadas ao estado da evolução jurídica. CONCLUSÃO Nina Rodrigues foi o pai fundador do campo de estudos das religiões afro-brasileiras, o pioneiro nessa área, e sua contribuição foi fundamental para estabelecer as diretrizes desse campo de estudos. Da mesma forma, os estudos sobre antropologia urbana tiveram nele um precursor, com análises de temas relacionados com a violência e a medicina legal. Partindo da medicina, campo de estudo científico dos mais avançados na época, Nina Rodrigues foi um inovador e não teve receio de incorrer em perspectivas hoje ultrapassadas. Tinha grande dedicação aos estudos e, apesar de ter falecido muito cedo, conseguiu abrir um amplo campo de estudos sobre o negro e a religião dos orixás, campo que até hoje é preenchido por numerosos seguidores que aprofundam temas por ele levantados há mais de cem anos. A forma científica com que ele aborda os problemas tratados mostra seu interesse nesse campo e sua simpatia pelo negro, sempre demonstrado, embora colocando-se numa postura teórica racista, típica de sua época e da qual ele não conseguiu se libertar. Mas seu interesse pelo tema despertou vocações de estudos nesse campo e permitiu que muitas novas perspectivas fossem abertas. Nina Rodrigues não escreveu apenas sobre a religião dos orixás nagôs. Escreveu também sobre os voduns jeje, sobre os caboclos e outras entidades que encontrou nos cultos. Como, porém, em sua época, os nagôs deveriam ser mais numerosos entre os africanos da Bahia e como considerava que os candomblés nagôs eram os mais influentes ele escreveu, sobretudo, sobre as entidades nagôs e comentou os mitos e a religião dos orixás e suas influências na vida religiosa baiana. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. ACADEMIA MARANHENSE DE LETRAS. Nina Rodrigues: comemorações do cinqüentenário de sua morte. S. Luís, 49 p., 1956. 2. FERRETTI, SF. Nina Rodrigues e as religiões afro-brasileiras. In: Cadernos de Pesquisa. UFMA, 10: 19-28.1999. 3. LIMA, LA. Roteiro de Nina Rodrigues. Salvador, UFBA/4. C E A O , 1993, Col. Ensaios e Pesquisa 2. Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás 59 4. MAUSS, Marcel. Nina Rodrigues, L´animisme fetichiste des nègres de Bahia. In: L´Année Sociologique 1900-1901. Paris, Librairie Felix Alcan, p. 224-5. 1902, 5. RODRIGUES, Nina. Animismo Fetichista dos negros Bahianos. p. 555, Coleção A/C/ Brasil, Teatro XVIII: Salvador, 139 p., 2005. 6. ___________. Os Africanos no Brasil. São Paulo, C E N., 253 p. 1977. 7. VIEIRA FILHO, Domingos, Breve História das Ruas e Praças de S. Luís. São Luís, s. ed., 204 p., 1971. 60 Mariza Corrêa Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S60-S62 RESENHA BIBLIOGRÁFICA Os Livros Esquecidos de Nina Rodrigues1 Mariza Corrêa2 Departamento de Antropologia da UNICAMP Mais conhecido pelos livros Os Africanos no Brasil e As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, ambos re-editados quatro ou cinco vezes, Raimundo Nina Rodrigues publicou durante sua vida vários outros livros que só tiveram edição local e nunca foram re-editados. Além de seus esforços para constituir uma bibliografia brasileira básica sobre Medicina Legal – nos numerosos artigos que publicou na Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia, em seu Manual de autópsia médico-legal e em A Medicina Legal no Brasil - nos últimos anos de sua vida Nina Rodrigues estava dedicado à defesa dos alienados baianos e publicou um volume sobre a situação deles: A assistência médico-legal aos alienados no Estado da Bahia. Além disso, O alienado no direito civil brasileiro, O animismo fetichista dos negros bahianos e Collectividades anormaes, editados ou re-editados por Arthur Ramos nos anos 1930, também não foram mais publicados, sendo conhecidos quase que só dos especialistas. Some-se a essa lista vários artigos publicados apenas em francês e outros esquecidos nas gazetas médicas e temos o estranho caso de um autor famoso com a maior parte de sua obra quase desconhecida e inacessível. O marco do centenário de sua morte pode ser uma boa ocasião para rememorarmos algumas dessas obras esquecidas também há mais de cem anos. Uma palavra, se você me permite, sobre a idéia de progresso. Concebemos o tempo como uma linha irreversível, cortada ou contínua, o que importa, de aquisições e de invenções. Vamos de generalizações a descobertas, de modo que deixamos para trás, como a nuvem de tinta das lulas, um rastro de erros enfim corrigidos. Ufa! Chegamos finalmente à verdade. Jamais se poderá demonstrar se essa idéia do tempo é falsa ou verdadeira. Mas não posso me impedir de pensar que ela equivale a esses esquemas antigos, dos quais rimos hoje, que situavam a Terra no centro do mundo, ou nossa galáxia no centro do universo, para que nosso narcisismo fosse satisfeito. Assim como no espaço nós nos situamos no centro, no umbigo das coisas e do universo, assim, para o tempo, pelo progresso, estamos sempre no cume, na ponta, na extrema perfeição do desenvolvimento. Assim, temos sempre razão, pelo simples, banal e ingênuo motivo de vivermos o tempo presente. .. Esse esquema nos permite ter, de maneira permanente (sim, de maneira permanente, já que o presente é sempre a última palavra do tempo e da verdade; de maneira permanente, eis um belo paradoxo para uma teoria da evolução histórica) não só razão, como a melhor das razões possíveis. Ora, é preciso sempre, creio eu, desconfiar de alguém ou de uma teoria que tem sempre razão: não é plausível, não é provável. Michel Serres3 Gostaria de começar com duas observações que julgo que podem ser pertinentes à nossa discussão aqui hoje: a primeira, que diz respeito à ambigüidade de Nina Rodrigues em relação às questões raciais, e que sei que vai ser abordada por todos os componentes desta mesa, parte de uma suposição, sugerida por um dos familiares de Nina Rodrigues que entrevistei em São Luiz, há muitos anos – a de que ele era descendente de judeus fugidos da Península Ibérica na época da perseguição aos judeus. Isso, se comprovado, daria um novo matiz às acusações de racismo em seus textos. A segunda observação, que se relaciona com a primeira, diz respeito às reiteradas observações em seus textos tanto sobre as vantagens da administração laica, sobre a religiosa, na administração de asilos e hospitais, como à equiparação feita, em diversos textos, particularmente no Animismo fetichista, entre as atitudes dos pais e mães de santo e os líderes da igreja católica, em várias situações, ambos os coletivos sendo vistos como igualmente ‘fetichistas’ pelo médico. Isto é, que alguns de seus comentários céticos em certas passagens das análises das religiões afro-brasileiras, deveriam ser postas no contexto de suas observações, também céticas, sobre a religião em geral. Dito isso, gostaria de falar sobre os livros esquecidos de Nina Rodrigues, começando por uma citação de Michel Serres. Serres, filósofo e historiador da ciência, falando da visão que, na história da ciência, opõe o passado, como obsoleto e superado, ao presente, como único detentor da razão, define 1 Trabalho apresentado na mesa-redonda O centenário da morte de Raymundo Nina Rodrigues: uma avaliação crítica, na 25a Reunião Brasileira de Antropologia, em Goiânia, em junho de 2006. Os outros participantes do evento foram: Lilia Schwarcz (coordenadora), Peter Fry e Yvonne Maggie. 2 Endereço para correspondência: Rua Emília Paiva Meira, 77, apto.21, Cambuí - 13025-040, Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Michel Serres, Luzes. Cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo:Unimarco Editora, 1999. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S60-S62 como sua tarefa a de “lutar contra o esquecimento”, já que “ignorar o passado[nos] expõe com freqüência ao risco de repeti-lo”. Contra essa anulação reiterada do passado, que considera um preconceito, Serres propõe a ressurreição de textos mortos, sugerindo que muitas partes de textos científicos esquecidos, que podem dialogar com as descobertas das ciências contemporâneas, foram enterradas junto com as partes que são consideradas ‘superadas’ – e são assim desconhecidas dos cientistas de hoje. No caso de Raimundo Nina Rodrigues, foi provavelmente a constatação de seu racismo, racismo que era o do seu tempo, o que fez com que fossem reiteradamente re-editados os textos nos quais esse racismo pode ser re-afirmado e esquecidos os textos nos quais, talvez, possamos encontrar ecos para outras questões contemporâneas. Ao fazer uma (breve) listagem das obras de Nina Rodrigues, constato que quase todos os seus textos, com uma exceção, estão fora de mercado há muito, muito tempo, em alguns casos, há mais de um século: temos aqui, então, um raro caso de um autor famoso com a obra quase inacessível ao público, o que não só deixa a tarefa de leitura crítica de sua obra nas mãos de poucos especialistas, que o lêem em cópias xerox, como também contribui para a divulgação de um perfil monolítico de um autor tão multifacetado4. Começo com um exemplo muito simples: foi justamente utilizando artigos esquecidos de Nina Rodrigues, em jornais diários e revistas médicas, que Ronaldo Ribeiro Jacobina e Fernando Martins de Carvalho escreveram um belo artigo sobre ele como epidemiologista, apontando a campanha feita por ele nos jornais baianos, em 1904, quando uma epidemia de beribéri matou quase a metade da população do Asilo São João de Deus: como resultado dessa campanha, os loucos restantes, entre os quais havia muitos negros, foram poupados da mesma sorte5. Os autores apontam para o pioneirismo do diagnóstico de Nina Rodrigues no campo da epidemiologia, mostrando como ele se afastava dos diagnósticos comuns na época e se aproximava dos diagnósticos contemporâneos. Tal posicionamento, feito contra a corrente na época, foi possível a partir de sua pesquisa de campo para analisar as causas da doença. É um artigo cuja leitura recomendo e que expressa à perfeição a observação de Michel Serres sobre os livros esquecidos dos cientistas do passado. Gostaria de sugerir que vários dos textos dos quais vou tratar aqui podem ser analisados tanto da perspectiva de Livros Esquecidos de Nina Rodrigues 61 questões atuais, seja das disciplinas específicas às quais podem ser filiados, quanto de uma perspectiva da história das ciências. Os artigos médicos publicados por ele são muito numerosos (cerca de 60) para serem tratados aqui – só vou citar os seus livros - mas convém lembrar que vários deles abordam a questão sanitária, na mesma época em que essa questão tornou-se central para a medicina brasileira, na virada do século 19 para o 20, e que desde a publicação de seu primeiro artigo, quando ainda vivia no Maranhão, a questão da saúde pública é a tônica de seus artigos publicados em jornais diários, cujo levantamento não foi feito de maneira completa até hoje6. Toda uma faceta do trabalho de Nina Rodrigues, que me esforcei por pelo menos apontar em outro trabalho – como sanitarista, como especialista em saúde pública- está assim à espera de pesquisadores. Sigo aqui apenas a cronologia das suas publicações em livro, ou de artigos que pela extensão e densidade poderiam tornar-se livros, e inicio a lista pelo primeiro livro publicado por Nina Rodrigues: As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, editado em 1894, em Salvador. O livro, que é um conjunto de suas lições de Medicina Legal na Faculdade de Medicina da Bahia, até a data de publicação, foi muito discutido pelos juristas no âmbito do debate sobre o projeto de um novo código penal então em andamento. Um dos autores de um substitutivo ao projeto, o jurista João Vieira, levou em conta suas considerações a respeito da precocidade do brasileiro em matéria criminal. Certamente uma discussão deste livro hoje nos ajudaria a não esquecer, e, portanto, a não repetila nos debates contemporâneos, uma tradição no pensamento social brasileiro que vê os jovens de nosso país como precocemente amadurecidos. O livro foi re-editado mais três vezes, a última edição sendo de 1957, pela Livraria Progresso editora, em Salvador (o que por si só merece registro, sendo essa uma editora comunista), em 1957, isto é há quase cinqüenta anos atrás. Creio que Peter Fry e Lilia Schwarcz vão falar mais sobre esse livro. Seu segundo livro, também editado em Salvador, em 1900, saiu em francês: L’animisme fétichiste des négres de Bahia. O livro foi composto a partir de vários artigos publicados, em português, na Revista Brazileira, do Rio de Janeiro, desde 1896. A segunda edição, incorporando as alterações feitas na versão francesa, com prefácio e notas de Arthur Ramos, é de 1935, pela Editora Civilização Brasileira do Rio de Janeiro. Há uma versão na internet, no endereço 4 Para uma análise crítica mais aprofundada de sua atuação e produção, ver Mariza Corrêa, As ilusões da liberdade. A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001 (2a edição) originalmente uma tese de doutorado defendida em 1982. 5 Ronaldo Ribeiro Jacobina e Fernando Martins de Carvalho, Nina Rodrigues, epidemiologista: estudo histórico de surtos de beribéri em um asilo para doentes mentais na Bahia !897-1904. História, Ciências, Saúde – Manguinhos VIII (1), 2001. 6 Ver Luiz de Castro Santos, As origens da reforma sanitária e da modernização conservadora na Bahia durante a primeira república, Dados 41(3), artigo no qual o autor aponta “uma vigorosa resistência da parte de um establishment médico conservador” como uma das razões de iniciativas de Nina Rodrigues e de outros médicos não terem resultado na aplicação de medidas sanitárias que já estavam vigorando em outros estados, como São Paulo e o Rio de Janeiro. A consequência desse descaso com a saúde pública foram várias epidemias: de varíola, peste bubônica, febre amarela, além de doenças endêmicas que matavam muito, como a malária e a tuberculose, entre outras. 62 Mariza Corrêa www.dtremel.hpg.ig.com.br/bibliovirtu/ninarodrigues.htm e sei que a professora Yvonne Maggie está preparando uma nova edição, cotejando as três edições anteriores. De todo modo, a edição em papel disponível hoje para os pesquisadores tem mais de setenta anos. Creio que Yvonne vai falar um pouco desse livro e de sua importância para os estudos sobre as religiões afro-brasileiras. Acho que ele é importante também por mostrar as ambigüidades de um pesquisador que, ao mesmo tempo que adere ao ‘racismo científico’ de sua época, tem uma enorme empatia pelos sujeitos pesquisados, empatia que, aliás, aparece também em Os africanos no Brasil. Breves vinhetas ao longo desse livro, mostram o antropólogo inscrito no médico que se queria um observador objetivo da cena religiosa dos negros, mas que ficava quatro horas no frio da madrugada, esperando que baixasse o santo em Olímpia, ou que observava os lindos efeitos coloridos de uma pedra ritual mergulhada numa mistura de cera. Nesse mesmo ano, 1900, Nina Rodrigues publicou, no Jornal do Comércio, o primeiro dos artigos, que saíram nesse e em outros jornais até 1905, e que iriam compor o livro Os africanos no Brasil. Em 1901, Nina Rodrigues publicou dois livros, um, o Manual de autópsia médico-legal (Reis & Comp., Salvador), provavelmente o primeiro manual desse tipo a ser publicado em português, o outro, O alienado no direito civil brasileiro. Apontamentos ao projeto de código civil (Prudêncio de Carvalho, editor, Salvador), que inaugura sua preocupação com a situação dos loucos no país, e que foi re-editado por Afrânio Peixoto pela editora Guanabara, do Rio, sem data de publicação, mas provavelmente de 1933. Outro livro há mais de setenta anos fora de circulação. A miserável condição dos alienados no país, tanto nas situações de institucionalização, como nas de negação de seus direitos humanos é aqui retratada com vigor e não creio que tenha mudado muito nesses setenta anos. Já o Manual está inacessível há mais de cem anos. Na Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia, da qual Nina Rodrigues foi um dos editores e animadores, e que começou a ser editada em 1902, Nina Rodrigues publicou vários artigos de medicina-legal que, reunidos, dariam um livro. Uma dessas compilações foi feita pelo próprio autor, que publicou A medicina legal no Brasil, pela Typographia Bahiana de Cincinnato Melchiades, em Salvador, em 1905, com prefácio de Alcântara Machado. Nunca re-editado como livro, o conjunto desses artigos está também há mais de cem anos fora de circulação. Mas é com o artigo de 305 páginas, Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S60-S62 que saiu na Revista e depois como livro - A assistência médico-legal aos alienados no estado da Bahia - pela Typografia Bahiana de Salvador, um ano antes de sua morte, que Nina Rodrigues encerra sua carreira. Outro livro fora do alcance dos pesquisadores há mais de cem anos. O livro é uma contundente apreciação sobre o modo como os alienados são tratados no estado da Bahia e inclui a análise sobre o escândalo da epidemia de beribéri que causou a morte de quase metade dos asilados no ano anterior. É também uma minuciosa análise de como a burocracia médica e a burocracia política tem historicamente entravado a implantação da saúde pública neste país. O livro mais conhecido de Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, foi publicado postumamente, pela primeira vez em 1933. Os artigos que o compõem foram publicados desde 1900. Já está na oitava edição (Editora da UnB, 2004) e é o livro mais citado de nosso autor – e o único de fato acessível ao público leitor contemporâneo. Resta ainda mencionar um livro que Nina Rodrigues não alcançou ver, mas que tinha planejado, e que foi publicado por Arthur Ramos em 1939 – Collectividades anormaes - conjunto de alguns artigos escritos desde a juventude (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira S. A.) e duas brochuras. A primeira, Liberdade profissional em medicina, publicada em 1899, em São Paulo, reproduz uma aula inaugural sobre este tema, inscrito na Constituição brasileira e interpretado pelos positivistas como livre exercício da profissão de médico, e a segunda, em francês, uma extensa monografia sobre uma pequena cidade do interior da Bahia, que nunca saiu em português – Métissage, dégénerescence et crime (Archives d’Anthropologie Criminel), também de 1899. Não creio que seja necessário esboçar aqui uma conclusão, mas creio que é importante observar que tratei, de maneira breve, de um escândalo epistemológico de grandes proporções na história das ciências sociais no Brasil: um dos autores obrigatoriamente citado quando se trata de analisar as chamadas relações afro-brasileiras no país, é também o estranho caso de um pensador famoso cuja obra é praticamente desconhecida de grande parte dos pesquisadores brasileiros, e quase inacessível a eles, não só aos que se interessam por essas relações como também àqueles que se interessam pela história do sanitarismo, da saúde pública, dos códigos civil e penal, ou pela história da loucura no nosso país. Um autor famoso com um único livro nas nossas estantes. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues NOT NOTAA HISTÓRICA A FFaculdade aculdade de Medicina da Bahia na Época de Nina Rodrigues The Medical School of Bahia in Nina Rodrigues Era Antonio Carlos Nogueira Britto Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins Durante alguns períodos da vida de Nina Rodrigues como lente de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia, são exibidas descrições sinópticas dos óbices apresentados ante o ensino de Medicina Legal em 1891 e 1896 e do planejamento do ensino médicos nos anos de 1902, 1903 e 1905, além da exibição de estampas narrativas que representavam o rudimentar planeado arquitetônico do edifício da Faculdade. Mostram-se aligeirados informes das tentativas de melhoramentos da então acanhada edificação, de construção pesada e de interior mal dividido nos anos de 1882, 1884, 1885, 1891, 1902 e 1903, além de considerações sobre as obras de um novo e amplo prédido da Faculdade, edificado após violento incêndio, em 1905, e inaugurado em 31 de janeiro de 1909. Aprouve ao destino, que Raymundo Nina Rodrigues não tivesse a fortuna de assistir o término das construções da moderna Faculdade de Medicina da Bahia e do hodierno gabinete de Medicina Legal, pois faleceu em Paris, em 17 de julho de 1906, em um quarto do Nouvel Hotel, 49, rue La Fayette, antiga rue Charles X. Tão logo o vapor nacional Bahia, transportando o preparatoriano Nina Rodrigues, procedente da província do Maranhão, fundeou no porto da Bahia, em 9 de março de 1882, dirigiu-se aquele estudante, no dia seguinte, à Faculdade de Medicina da Bahia, de posse dos documentos precisos, para matricular-se no curso médico. Tais manuscritos inéditos do tirocínio escolar das disciplinas de instrução secundária realizada na sobredita província, além de outros documentos, foram descobertos pelo autor, os quais foram inclusos à petição dirigida por Nina, em 10 de março de 1882, ao diretor Conselheiro Francisco Rodrigues da Silva, requerendo que fosse matriculado na primeira série do curso de medicina, a qual foi referendada, não obstante a revista Gazeta Médica da Bahia, de agosto de 1906, informar que Nina estudou no Rio em 1882. Dado a lume este artigo, ainda não foram encontradas pelo autor na Faculdade de Medicina da Bahia, da Universidade Federal da Bahia, as fontes primárias e secundárias referentes ao tirocínio discente de Nina Rodrigues. Outrossim, não obstante o interesse e empenho, em busca incessante, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em atenção ao pedido do autor, formulado ao diretor daquela Escola, solicitação reiterada pelo diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, da Universidade Federal da Bahia, ainda não foi localizada naquela instituição a documentação relativa ao acadêmico Nina Rodrigues nos anos de 1882, 1883 e 1887, período em que lá estudou e colou grau em Medicina pela Faculdade do Rio, em 1887. Além da constatação, na Faculdade de Medicina da Bahia, de vácuos no acervo historiográfico respeitante ao aluno Nina, comprovou-se a privação de bibliografias da lavra do cientista, onde deitou sabença. Não obstante as escassas fontes sobre Nina Rodrigues, o autor abeberou-se de material de pesquisa da Faculdade de Medicina da Bahia: livros de atas da Congregação e alguns volumes das Memórias Históricas da Faculdade de Medicina da Bahia. Do acervo do autor, foram estudados três volumes da Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia e exemplares da Gazeta Médica da Bahia. O mesmo acredita que obras científicas de Nina Rodrigues poderão ser perlustradas, em breve, quando proficientes especialistas concluírem a restauração dos milhares de corrompidos volumes da Biblioteca da Faculdade de Medicina da Bahia. Palavras-chave: Faculdade de Medicina da Bahia, fatos mais notáveis, edifício da Faculdade, época de Nina Rodrigues, período: 1882-1906. 63 64 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 This paper shows a general review to the years 1891 and 1896, in terms of noteworthy difficulties of Legal Medicine teaching on the history of the Faculty of Medicine of Bahia at the stage of life of Nina Rodrigues as a professor of this discipline. A planned work and activity concerning to the medical teaching in the years 1902, 1903 and 1905 are displayed. A slight descriptive pictorial recording unveils the old-fashioned architetonic drawings up plans concernig to the building of the Faculty of Medicine and shows off the endeavor to change and improvement of the appearance of its narrow and severe structure with its inside divided into uncomfortableness rooms during the years 1882, 1884, 1885, 1891, 1902 and 1903. Description about the building of a brand-new and huge edifice is displayed which set up after the wrack brought about a great fire in 1905. The new building of the Faculty of Medicine celebrated formally the first use to medical students on January 31th, 1909. However, in view of the fact that Nina Rodrigues died in Paris on July 17th, 1906, on the Nouvel Hotel bedroom, 49, rue La Fayette, former rue Charles Xth, destiny has refused to allow him in attending the end of the works of the new edifying in the latest style of the Medical School of Bahia building as well as the modern Forensic Laboratory with brought up to date scientific equipment for teaching Legal Medicine. As soon as the brazilian steamship Bahia called at the cidade da Bahia port, on March 9th, 1882, transporting from the province of Maranhão the young boy Nina Rodrigues, as a pupil of a preparatory course, he moveded in the next day forward the Medical School of Bahia holding his very precious documents in order to put himself onto the official list as an applicant for a member of the medical course. The author of this paper found and made known the set of inedited documents recording Nina’s group of preparatory course subjects studied in province of Maranhão school. Those papers with worthy written information as well as differents documentes were included to a formal application made by Nina in March 10th, 1882, to the director of the Faculty of Medicine of Bahia, Francisco Rodrigues da Silva, Counsellor of the Emperor of Brazil, for the purpose of attending the first year of the medical school. In spite of Nina has been formally matriculated in 1882 at the Faculty of Medicine of Bahia, the periodical Gazeta Médica da Bahia, issued in August, 1906, recorded that Nina studyied in Rio during that year. At the time wherein this paper is been publised, the author couldn’t find out sources conncerning to the student Nina Rodrigues events and activities of which took place at the medical school of Bahia. The author made a request to the director of the Faculty of Medicine of the Federal University of Rio de Janeiro, which was said over again by the director of the Faculty of Medicine of Bahia – Federal University of Bahia - for searching of the above-mentioned documents concerning to the years 1882, 1883 and 1887, when Nina received the medical degree in Rio. Unfortunately, they were not found out yet, notwithstanding the engage of attention and interest of the Faculty of Medicine of Rio in attending the author request for searching out. It was verified the lack of historical assortment of documents in regard to the young Nina. Evidence was accumulated in proving the absence of notice regarding Ninas’s books in which he poured his wisdom. Nevertheless, the author made use of searching original medical works belonging to the Faculty of Medicine of Bahia as books of proceedings and register of the meeting of professors as well as some volumes of the Memórias Históricas da Faculdade de Medicina da Bahia. The author searched 3 volumes of his own – Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina and volumes of the Gazeta Médica da Bahia. In a short time Nina’s works will be analyzed as soon as the skilled restauration of Medical School of Bahia thousands of damaged books is finished. Key words: Faculty of Medicine of Bahia, noteworthy events, faculty building, Nina Rodrigues, period: 1882-1906. Recebido em 9/11/2006 Aceito em 30/11/2006 Endereço para correspondência: Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto, Rua Dr. João Pondé 162 (Apto 102), bairro Barra, CEP: 40.140.810, Salvador, Bahia, Brasil, Tel.:71 32640085. E-mail: [email protected]. Observou-se rigorosamente a ortografia da época, transcrição paleográfica, em determinados textos, que estão digitados em itálico. (1882-1906). Gazeta Médica da Bahia 2006;76(Suplemento 2):63-79. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues Com o escopo de ser mais sintético e preciso e considerando o longo período da era de Nina Rodrigues, que teve início desde 1882, quando cursou o 1.º ano de medicina, até o ano em que faleceu, 1906, e atentando para a escassez e falta de fontes concernentes à sua vida acadêmica nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, além dos óbices em localizar a extensa bibliografia do cientista em estudo, o autor decidiu tecer tão-somente considerações por ele julgadas mais relevantes para levar a efeito o presente artigo em derredor dos períodos exarados no resumo deste trabalho. Quinta-feira, 9 de março de 1882 – O vapor nacional Bahia(1,6), da Companhia Brasileira de Navegação a Vapor, procedente da Paraíba, com escalas na Bahia, Santos, Desterro, (atual Florianópolis) e Porto Alegre, singrava em mar encarneirado e ferrou o porto da cidade da Bahia, procedente do Norte. Desceram a estreita ponte passadiça do portaló, a estibordo, 79 viajores, e percorreram caminho a pé, sem tardança, em fila, até o amanuense do “Commissariado da Policia do Porto”. Dentre eles, estava um moço, pouco robusto e de olhos tristes, os quais, todavia, tornavam visíveis o robusto talento e notáveis dotes intelectuais do mancebo. Era o estudante preparatoriano Raymundo Nina Rodrigues, vindo da província do Maranhão, onde houve berço a 4 de dezembro de 1862(1,6). No dia seguinte, pela manhã, o dito aluno quedava no centro do largo do Terreiro de Jesus, próximo ao chafariz, cercado por grade, da Companhia do Queimado, criado em 1852, para abastecer de água a cidade. O rapazo mirava a antiga e imponente igreja do Colégio dos extintos Jesuítas e o provecto edifício da Faculdade de Medicina da Bahia, de fachada mal conservada e de aspecto grave. Observou as armas do Império colocadas no frontispício da porta principal da Escola de Medicina, na ala do antigo “Noviciado” e “internato” do Colégio, situada ao lado esquerdo da igreja. Sobraçando seus documentos precisos para a matrícula no primeiro ano do curso médico, o moço do Maranhão deu os primeiros passos no interior do prédio da Faculdade de Medicina da Bahia. O jovem Nina passou às mãos do amanuense da secretaria da Faculdade petição escrita do próprio punho e datada de 10 de março de 1882, dirigida ao diretor, Conselheiro Francisco Rodrigues da Silva, requerendo que fosse matriculado no primeiro ano do curso de Medicina. Ao sobredito requerimento juntou manuscrito original do instrumento dado em pública forma em Vargem Grande, província do Maranhão, aos quatorze de junho de 1876, onde estava consignado o assentamento do batizado do “innocente” Raymundo, filho legítimo de Francisco Solano Rodrigues e dona Luiza Rosa Ferreira Nina. O infante foi batizado solenemente aos doze de dezembro de 1863 na Fazenda Santa Severa e posto os santos óleos pelo padre Raymundo José Lecont da Fonseca, Presbítero Secular e vigário Colado na freguesia de São Sebastião do Iguará. Foram padrinhos Antonio José Maya, representado pelo tenente Raymundo Alves de Abreu e dona 65 Rosa Bernardina Ferreira Nina; manuscrito firmado pelo Dr. Francisco Joaquim Ferreira Nina, Doutor em Medicina pela “Faculdade da Bahia”, atestando que o “Sr. Raymundo Nina Rodrigues foi vaccinado há tres annos mais ou menos – Maranhão, 1 de Março de 1882”; 10 (dez) manuscritos de certificado de aprovação em “Exames Geraes”, expedido pela “Secretaria da Delegacia especial da Inspectoria Geral da Instrucção Publica da Corte em Maranhão”, firmado pelo secretário Antonio Aniceto de Azevedo, com datas de 13 e 14 de fevereiro de 1882. Nina Rodrigues foi aprovado “plenamente” nos exames de Português e Álgebra e aprovado “plenamente com distinção” nos exames de Francês, Geografia. Aritmética, Inglês, Latim, Geometria, História e Filosofia; recibo de pagamento à Recebedoria da Bahia da quantia de cinqüenta e um mil e duzentos réis para satisfazer a 1.ª prestação de sua matrícula na 1.ª série do curso médico, lançada em débito ao tesoureiro Maximiano dos Santos Marques, à F 28 do Livro 45 da Receita rubricada, pelo dito tesoureiro e pelo ajudante Catão Pereira de Mesquita, da Faculdade de Medicina da Bahia, sob n.º 808, com data de 10 de março de 1882. O diretor, Conselheiro Francisco Rodrigues da Silva, aprovou a petição lendo-se no frontispício do requerimento: “Matriculado B.ª 15 de M.ço 1882 / Rodrigues”(2,6). A partir daquele momento, começou a tremeluzir e brilhar com desusado fulgor a magnificência do cabedal de inteligência, destreza e habilidade de penetração de espírito do moço do Maranhão que tornar-se-ia, mais tarde, benemérito da ciência e da Pátria, pois era nobre e brioso, ao abraçar a medicina que escolhera com decidida vocação, com a qual abria caminho com essa grandeza moral que distingue os homens superiores. Volvida uma centúria desde que a Parca cortou o fio precioso da vida de Nina Rodrigues, pesado reposteiro cerrou-se em torno das fontes primárias concernentes à vida discente e do tirocínio nas matérias do curso de medicina do dito aluno, dificultando análise historiográfica das suas atividades estudantis, além de pouco se descobrir a respeito das obras da lavra do celebrado cientista, criando-se, destarte, um indesejável hiato entre os historiadores e estudiosos e o acervo da vastíssima bibliografia de Nina. Foram assaz insuficientes as fontes historiográficas primárias e secundárias encontradas pelo autor em derredor das diversas fases da existência e falecimento do estudante e cientista Raymundo Nina Rodrigues, inobstante a busca exaurível e continuada nos arquivos da Faculdade de Medicina da Bahia; no Arquivo Histórico da Casa da Santa Misericórdia; no arquivo do cemitério do Campo Santo, de propriedade da dita Santa Casa; no Arquivo Público do Estado da Bahia; no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Departamento de História/Centro de Documentação/ Laboratório de Conservação e Restauração do Acervo da Cúria Metropolitana de Salvador Reitor Eugênio de Andrade Veiga, / Universidade Católica do Salvador – UCSal – 66 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 Convênio UCSal e Arquidiocese; Cúria do Bom Pastor/ UCSal e na Biblioteca Central do Estado da Bahia. serem separados das casas vizinhas por um terreno baldio de sete metros, que deveria ser transformado em jardim. Foi proposto erigir um edifício com 20 metros de largura por 28 de comprimento, perfazendo 560 metros quadrados de base, de dois andares situados ao mesmo nível dos pavimentos do antigo edifício, com ele apresentando a mesma face da frente, todavia devendo ser inteiramente dada nova feição edificada em estilo “grave e sério,” adequado a edificação de tal espécie. Assinalava, ainda, o relatório que as divisões desses dois andares seriam levadas a efeito obedecendo o mesmo projeto, de maneira a formar na área no espaço poligonal restrito pela caixa do prédio, inteiramente rodeado de janelas, dois amplos salões eqüidistantes em toda a extensão tendo por grandeza a largueza do edifício, isto é, 20 metros, e por largura 6 metros e 65 centímetros, determinados aos laboratórios. A área intermediária destes dois salões seria dividida em uma sala de ingresso e passagem para o andar superior e uma outra com 10 metros e 50 de largueza por 3 e 20 de grandeza ou 1386 metros quadrados, onde far-se-iam os laboratórios, entre os quais ficaria localizado o anfiteatro. De acordo com os projetos, seriam beneficiados com ventilação e luz satisfatórias os dois laboratórios dispostos no primeiro andar, que serviriam para a Química Orgânica e Biológica e à Fisiologia Experimental com o respectivo anfiteatro, e. no segundo andar, a Física Médica e Matéria Médica, Terapêutica Experimental, da mesma maneira com um anfiteatro intermediário. Destarte, quatro laboratórios no primeiro pavimento poderiam acomodar de 30 a 40 alunos cada um e dois anfiteatros permitiriam que 250 ouvintes pudessem freqüentá-los confortavelmente. Respeitante à biblioteca, não poderia permanecer onde estava instalada em razão do parco espaço. Considerando que o então bibliotecário da biblioteca pública rogou ao governo da província transferência daquele estabelecimento para diferente prédio dotado de cômodos mais extensos, o governo geral poderia ajudar a província nesta remoção e valer-se do lugar adjacente ao prédio da faculdade, para nele ser instalada a biblioteca da dita Escola, com pouco custeio e ligeiras obras. A sala onde estava estabelecida a biblioteca seria transformada em museu e laboratório de Botânica e Zoologia, que deveria ser ampliada pela banda do museu que era prolongamento da dita sala com a eliminação das suas divisões. A antiga secretaria, que se prestava para sala de aulas, seria destinada ao museu de Mineralogia. O anfiteatro de Anatomia, o gabinete Abbott e o anfiteatro de Clínica, instalados no pátio da Faculdade, encontravamse em precário estado sanitário e deveriam ser substituídos por dois pavilhões de 10 metros de largura por 20 de comprimento, separados por um baldio de 8 metros de largura e em continuação com o horto botânico já existente. Ambos os pavilhões, rodeados de janelas, teriam dois andares e deveriam ser aumentados ao fundo, sobre a montanha, por uma edificação em arcos, disposta em forma de jardim, com 1882, período em que Nina Rodrigues matriculou-se no 1.º ano do curso(17) A Faculdade de Medicina da Bahia iniciou o ano de 1882 sob a diretoria do Conselheiro Francisco Rodrigues da Silva, empossado em 28 de dezembro de 1881, sucedendo ao Conselheiro Antonio Januário de Faria. Naquele tempo, quando o moço do Maranhão, dotado de notável intelecto, talento e aptidão para compreender, percorreu os corredores e pavilhões da Faculdade de Medicina da Bahia, observou que o edifício carecia de melhoramentos e, no seu modo de ver, parecia que se achava imprestável para estabelecer novos laboratórios. Reconheceu, discretamente, que os existentes tinham área restrita e limitada, ventilação deficiente, com iluminação débil e sem o preciso aparelhamento técnico necessários para o ensino prático. Não sabia aquele rapaz que alvissareiro e esperançoso aviso de 18 de fevereiro de 1882, emitido pelo ministro do Império à diretoria da Faculdade de Medicina da Bahia encarregava ao presidente da província da Bahia, João dos Reis de Souza Dantas, nomeado em 30 de março de 1879, que medidas precisas fossem adotadas afim de que um engenheiro indicado pela diretoria das obras públicas apresentasse orçamento necessário para a instalação dos novos laboratórios no edifício da Faculdade. Para tal escopo, o Conselheiro diretor Francisco Rodrigues da Silva nomeou comissão composta dos lentes Manoel Victorino Pereira e Virgilio Climaco Damazio para exibirem, ao lado do engenheiro provincial, o parecer concernente ao projeto e orçamento dos trabalhos de engenharia para o edifício e anexos onde deveriam funcionar os laboratórios, gabinetes e museus. A referida exposição, circunstanciada, do punho do Dr. Virgilio Climaco Damazio, levada à presença de Sua Majestade Imperial, em 18 de abril, era um exato relato das carências da Faculdade, frutos das desigualdades sustentadas pela Corte. A suma do parecer da sobredita comissão salientava que o novo edifício da Faculdade e seus anexos compreenderiam o antigo prédio que valer-se-ia da área de 5 prédios localizados nas portas do Carmo e de uma parte conquistada à montanha, tudo completando uma superfície de 3,876 metros quadrados com 2.190 metros de construção e 1.686 de terreno baldio para o horto botânico. Adiantava a comissão que o maior dos cinco prédios indicados para desapropriação era alugado ao governo por 1:500$, anuais destinado a aula e gabinetes, alertando para a probabilidade de incêndio pelo fato das casas de residência particulares e prédios que constituíam o pavimento térreo Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues bancos e grades de ferro, em substituição ao cúmulo de esterquilínio. O primeiro pavilhão à esquerda, separado do depósito dos cadáveres por um baldio de 3 metros e 5 de largura, teria um pavimento térreo ladrilhado de mármore para a sala de dissecções, onde poderia caber dezesseis grandes mesas também de mármore com dois metros de comprimento para um, e dez de largura. O segundo pavimento seria dividido em duas metades de 10 metros de comprimento por 8 e 70 de largura, isto é, de 100 metros quadrados cada uma, na primeira das quais ficaria instalado o museu de anatomia, enquanto que na outra funcionaria o anfiteatro da mesma ciência. O segundo pavilhão teria no pavimento térreo o laboratório de Histologia, e no pavimento superior um anfiteatro para Histologia, Anatomia Patológica e Clínica estabelecendo-se um passadiço facílimo para a enfermaria de S. Francisco e na metade superior desse local à instalação do museu anátomo-patológico. O gabinete de Anatomia Patológica continuaria no lugar onde se encontrava. A oficina de Farmácia permaneceria como estava, mudando-se apenas a comunicação que não seria efetuada através do laboratório de Química e sim pelo corredor descoberto, que separava as duas partes do grande edifício. Antes de penetrar-se nesse corredor descoberto, deveria ser construído um vestíbulo comum às duas partes, nova e velha de todo o edifício. O antigo saguão da Faculdade passaria por sérias reformas, instalando-se janelas onde existiam postigos elípticos, ladrilhando-se toda a entrada e reformando-se as escadas atualmente existentes. O governo deveria requisitar à Casa da Santa Misericórdia permissão para instalar junto a cada clínica o gabinete e sala de ambulatório correspondente e as despesas deveriam correr por conta da Faculdade. Com as expropriações, construção de edifício novo, consertos do prédio antigo, restauração de toda a sua face da frente, de vestíbulo, construção de dois pavilhões, no pátio, paredão, etc., desobstrução de esgoto, esgoto, abastecimento de gás, água, instalação de latrinas de disposição mais moderna e adequada, etc., em observância aos projetos, salvo alguma ligeira modificação que a execução indicasse como melhor, o governo faria despesa de cerca de duzentos e cinqüenta contos de réis(17). O historiador da Faculdade, referente ao ano de 1884, testemunhava: “O salão nobre, que estava ameaçando ruina, a ponto do soalho dever ser escorado para ter logar o acto da collação de grau em 1883, além do frontispicio, que está adeantado, apenas está coberto, forrado, com andaimes, vigamentos, algumas portas e janellas, mas sem o soalho.”(10). Ano de 1885, época em que o aluno Nina Rodrigues cursou o 4.º ano de medicina na Bahia(20) A lei n.º 3141, de 30 de Outubro de 1882 aprovava o regulamento de 12 de março de 1881, que exigia prova 67 prática nos exames das diversas séries do curso acadêmico A lei criava 14 laboratórios, gabinetes e museus. Os laboratórios existentes, conforme já foi consignado, eram limitados em número, incompletos e assaz deficientes, sem espaço e inadequadamente acomodados aos seus objetivos; o antigo edifício em que estava instalada a Faculdade de Medicina da Bahia não oferecia condições plenas para os precisos laboratórios, que ocupavam, além de parte do edifício do antigo Colégio dos Jesuítas, o prédio adjacente alugado. A Faculdade estava estabelecida em uma limitada parte de um edifício ameaçando derruir em alguns locais, com insuficiente espaço e sem a precisa adaptação para a sua finalidade redobrando-se as dificuldades e a imprestável condição do edifício acentuou-se de modo patente e claro. Tal situação foi lembrada ao Governo Imperial pela diretoria, quando se requeria o necessário atendimento e mantendo-se entendimento nesse mister por várias oportunidades com o ministério do Império. Todavia, por intermédio do perverso e infeliz aviso de 16 de janeiro de 1883, o ministro informava à perplexa e desiludida diretoria que estabelecia o aumento de crédito no valor de 60:000$000 para levar a cabo as obras do prédio em que estava instalada a Faculdade. Lamentava-se o vice-diretor, Dr. Pacífico Pereira, em 8 de abril de 1884: “ O laboratorio de pharmacia ficará no mesmo local acanhado e deficiente em que tem estado até agora. Não haverá espaço para o museu de botanica e zoologia, e ficam sem área para suas instalações os laboratorios de hygiene, de toxicologia e de botanica e zoologia. A bibliotheca da Faculdade continuará a permanecer na mesma salla estreita e mal illuminada, onde já na cabem novas estantes”(20). Ano de 1891, período em que Nina Rodrigues, pela Reforma Benjamin Constant, foi nomeado substituto da 5.ª Seção (Higiene e Medicina Legal)(12) Naquele ano, a diretoria da Escola admitia a insuficiência do local da Faculdade de Medicina da Bahia que ocupava as duas seções do velho monastério e Colégio dos padres da Companhia de Jesus. Desde 1855, imaginava-se comprar o anciano casarão adjacente à seção da Faculdade perpendicular à parte da frontaria do Colégio dos Jesuítas e que tinha por nome casa do Banco. Em 1873, atendendo pedido e autorização do vice-diretor Conselheiro Vicente de Magalhães, a diretoria anexou o referido prédio e pelo mesmo Conselheiro foi conferido permissão para nele levar a efeito os precisos arranjos. Alguns laboratórios foram ali instalados em 1874 e 1875 e deram início a determinado número de lições. Não obstante este anexo, a Faculdade deu continuidade à luta contra os 68 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 óbices resultantes da carência de espaço e de salas, considerando que a chamada casa do Banco, mesmo sendo assaz ampla e com dois pavimentos, era imperfeitamente dividida, como era comum a todos os prédios de tempo remoto desta cidade. Na esperança de se por em prática, em tempo mais ou menos breve, os projetos delineados no decreto de 19 de abril de 1879, concernentes à criação de novos laboratórios para os estudos práticos, todos os pensamentos foram uníssonos na urgência de se corrigir tão inoportuno estorvo mediante a edificação ou compra de um novo edifício para a Faculdade, ou, então, o empreendimento de trabalhos de recuperação e ampliação do prédio em que a Faculdade estava instalada. Destarte, em sua exposição do ano de 1882, reportava-se a esta matéria ao ministro do Império o diretor Francisco Rodrigues da Silva: “O edificio da Faculdade por suas acanhadas dimensões não se presta, hoje, ao desenvolvimento exigido pela creação projectada dos novos gabinetes e laboratorios.” Já foi exarado acima, em referência ao ano de 1882, que a sobredita comissão agiu com celeridade no desempenho das duas atribuições, formulando um plano muito bem elaborado respeitante à benfeitoria do provecto edifício incluindo as novas edificações complementares, que deveriam ser realizadas no espaço dedicado ao anfiteatro de anatomia e ao gabinete Abbott, assim como na área em que estavam a casa do Banco (já convertida em dependência da Faculdade) e quatro outras casas de residência sitas à rua das Portas do Carmo. O cálculo dos dispêndios prováveis relativos ao projeto dos trabalhos de construção foram calculados em 266. 846$763 réis. Tratava-se de um projeto bem delineado na suposição de se valer do anciano convento dos extintos Inacianos que abrigava a Faculdade, que não era a decisão apropriada para dotar a instituição de ensino de medicina de um edifício compatível com as iminentes necessidades daquele tempo. Nenhuma atenção foi adotada pelo governo em relação ao projeto das obras e orçamento, a ele encaminhado no mês de abril. Ao findarem-se os trabalhos letivos do ano de 1882, o Dr. Pacífico Pereira expôs à Congregação uma proposta que foi aprovada, depois de devidamente discutida: “A congregação d’esta Faculdade solicita do governo imperial que mande com urgencia fazer as desapropriações e começar as construcções necessarias para a installação dos novos laboratorios, applicando a elles toda a verba destinada no actual exercicio ao pessoal dos laboratorios e das novas cadeiras.” Como resultado desta reivindicação da diretoria, foram gerados os avisos de 16 de janeiro e 16 de fevereiro de 1883 a ela determinando que fossem iniciadas as obras, para o que foi estabelecido pelo ministro do Império, no exercício de 1882 a 1883, um crédito de 65:000$000. Consoante o projeto elaborado pela comissão, aceito com ligeiras alterações, deram começo às obras em 15 de junho de 1883. Em 1889, Nina veio para a Bahia, e ingressou na corporação docente da Faculdade de Medicina da Bahia na 5.ª Seção Médica da Faculdade, ocupando o cargo de Adjunto da 2.ª Cadeira de Clínica Médica. Naquela época, já estavam concluídos os dois novos pavilhões erigidos atrás do pátio da Faculdade, sendo terminados os trabalhos de restauração do antigo edifício e iniciados os da nova obra, em sua adjacência, os quais ainda não estavam concluídos. Consoante o projeto, determinouse o tempo de 4 a 5 anos, que seria bastante para o término de todas as obras planejadas. Todavia, volveram nove anos e as azáfamas de construção ainda não tinham sido levadas a cabo. Os trabalhos sofreram renovadas paradas e estorvos em conseqüência da tardança na liberação da dotação da quantia precisa e pelo fato de parte da verba ter caído em exercício findo e em razão dos métodos burocráticos confusos e tardos das convenções governamentais existentes. A demora na concessão das verbas prejudicou sobremaneira o ensino da medicina, além de se criar molestos obstáculos sob o ponto de vista econômico e administrativo. Destarte, foram removidos da Faculdade, com o escopo de se poder dar início às obras, quase todos os antigos laboratórios e instalados temporariamente em edifícios particulares, nos quais alguns lá continuavam. Os gabinetes criados a partir de 1883 estavam funcionado alguns na própria Faculdade, tão logo as salas respectivas iam sendo concluídas e outros estavam sendo estabelecidos em prédios privados. A Faculdade pagava elevado aluguel por um dos laboratórios sito à rua das Laranjeiras e equipamentos caríssimos lá estavam a se danificar por se encontrarem incorretamente guardados em salas pouco espaçosas. Observava-se que na parte nova do edifício, as paredes estavam sem reboco e cobertura e se corrompiam pela atuação das chuvas. Outros laboratórios funcionavam na Academia de Belas Artes. Tal divisão da Faculdade, com seus gabinetes espalhados nos mais diversos locais, provocaram estorvos na administração e impossibilitavam a agilidade do seu funcionamento, porquanto, em muitas salas com pouco espaço, os alunos eram prejudicados nos exercícios dos trabalhos práticos. Além dos ditos óbices, as dotações foram interrompidas desde março de 1890 e cessaram as obras. O ministro da instrução pública, em aviso de 29 de janeiro de 1890, determinou ao diretor da Faculdade que desse conta da necessidade da aquisição dos prédios de números 6 e 8, à rua das Portas do Carmo, pertencentes ao convento da Soledade, e, no caso de ser essa compra Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues imprescindível, poder-se-ia o competente pagamento ser realizado pela dotação consignada para as obras de reconstrução da Faculdade. Informou a diretoria que os mencionados prédios compunham o grupo dos cinco, cuja expropriação entrara no plano das mencionadas obras e bem assim que as verbas estabelecidas para as ditas eram também determinadas em parte, para as desapropriações em tela. Informava, ainda, que a verba superior a 15:000$000, consignada nos gastos repartição fiscal, tinha caído em exercício findo. A diretoria, em agosto de 30 de março, recebeu do governo a comunicação do reconhecimento de que era preciso a compra dos prédios em referência, e aprovara a aquisição dos mesmos pelo valor de 12:000$000, sendo pago o dispêndio pela verba destinada para as obras de reconstrução, e solicitava, naquela data, do Ministro do Interior a precisa autorização para a alienação dos ditos prédios. Foi concedida a respectiva licença em 30 de abril, sendo uma cópia dela remetida ao Governador do Estado, general Hermes Ernesto da Fonseca, 3.º governador da Bahia, que a enviou à diretoria. Todavia o governo, como se esperava, não adotou as precisas medidas, conscientemente, para o prosseguimento das obras. Em ofício emitido em de 24 de julho e 28 de setembro, a diretoria da Faculdade achou que era necessário que se pedisse e solicitasse com urgência e protestasse nos teores mais significativos, o que fez surgir o aviso de 23 de outubro, facultando, para o prosseguimento das obras, a quantia de 25:000$000, da qual 12:000$000 deveriam ser empregados para a desapropriação dos prédios. A despeito de estarem as obras já suficientemente aceleradas e haver abundância de materiais já comprados à custa das dotações anteriores, o restante da última verba, isto é a quantia de treze contos, não bastava para terminálas. Para auxiliar a despesa que faltava realizar, já existia, felizmente, a mesma soma posta à disposição da diretoria. Esta verba era superior ao que era necessário para a conclusão das obras. Consoante dados fornecidos pelo engenheiro que as administrava, as obras da Faculdade, além dos 12:000$000 necessitavam de cerca de 20:000$000 para a conclusão, podendo ficarem terminadas no ano de 1890, se esta verba fosse consignada a tempo. Tinha se despendido até o mês de março de 1889, com as obras, a quantia de 322:464$489 E acrescentava o historiador da Faculdade, relativo ao ano de 1891: “Junctando-se-lhe a importancia concedida por aviso de 23 de Outubro __________25:000$000 e mais a quantia necessaria para a conclusão ___________________________20:000$000 temos a somma de 367.464$489.” 69 Esta quantia, segundo o sobredito memorialista, era mais elevada do que a avaliada na dotação orçamentária de 1883 e a ultrapassava em mais de 100 contos. Outras razões que justificavam o acréscimo no dispêndio deveriam ser atribuídas à restauração do salão nobre e do vestíbulo do prédio, que não constava do plano da comissão e foi ulteriormente solucionada. O projeto da comissão sofreu alteração, pois, em vez da desapropriação dos cinco prédios que se seguiam ao provecto edifício, ordenou-se que somente dois seriam derribados além dos dois que já tinham sido adquiridos e deitados abaixo. Em 1889, foram terminadas as obras de benfeitoria do edifício em que funcionava a Faculdade e a construção dos dois pavilhões constantes no projeto da comissão elaborado em 1882. Na parte principal e central do antigo prédio estavam estabelecidos no andar superior, o salão nobre, considerado o maior da Bahia, abundantemente iluminado e ventilado, o qual apresentava, todavia, graves imperfeições na ornamentação e nos projetos arquitetônicos oriundos do passado; a secretaria e o gabinete da diretoria estabelecidos em amplas salas bastante iluminadas e arejadas; o laboratório de Botânica e Zoologia não era bastante arejado e tinha espaço acanhado; o laboratório de Anatomia Cirúrgica e Comparada, instalado numa dependência assaz estreita, e quente, escura e de péssima ventilação. No mesmo andar superior estava instalada a biblioteca, apropriadamente denominada pelo lente memorialista do ano de 1891 de deposito dos livros. A dita biblioteca achava-se instalada em uma sala longa e apertada, qual um corredor, contígua à Catedral, a qual, não obstante ter sido ampliada pela retirada do laboratório de botânica, que invadia uma das extremidades, permanecia mal arejada, acanhada, e inadequada para funcionar como biblioteca, além de ter na sua adjacência a morgue e o ruído deletério das maquinarias do elevador Plano Inclinado. No andar que ficava ao rés do chão, existia o vestíbulo amplo, que era uma sala bastante espaçosa, reservada para o material e aulas das diversas clínicas. O laboratório de Farmácia estava adequadamente instalado. No pavilhão do sul permaneciam estabelecidos o laboratório de Anatomia Descritiva e o de Operações e Aparelhos, ambos tomando espaço de um dos dois pavimentos. O museu ocupava restrita parte do andar superior e permanecia muito mal colocado e apertado pela situação de adjacência dos dois ditos laboratórios. Com referência ao pavilhão do norte, estavam funcionando no andar térreo os laboratórios de Terapêutica e o de Histologia, separados por uma parede pouco espessa, que os tornavam independentes. No andar superior, encontravam-se dispostos o laboratório de Higiene e um anfiteatro. O laboratório de Anatomia Patológica achava-se muito inadequadamente localizado em pavilhão térreo de pouca 70 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 largura, e que por muito tempo se prestou para sala de dissecções. Os novos eram dotados de pavimentos térreos ladrilhados, da mesma forma que o antigo prédio, diferindo daqueles pelos ladrilhos de mármore. Estavam provisoriamente estabelecidos em prédio da rua das Laranjeiras, em péssimas condições, os laboratórios de Física, de Química Inorgânica e Biológica e Fisiologia. Na entre-sala do edifício da Academia de Belas Artes também estavam a funcionar, temporariamente, os laboratórios de Medicina Legal e Química Analítica e Toxicológica. O de Odontologia ainda não estava aprontado. Com a edificação dos novos pavilhões anexos na nova seção da Faculdade ocupada, outrora por dois prédios, já desapropriados, deveria haver ampliação da área em seis compartimentos. Três no andar térreo e três na andar superior, sendo as suas extremidades dotadas de salas para laboratórios e as salas centrais seriam destinadas para anfiteatros. Não obstante as modificações e ampliações, o edifício da Faculdade dificilmente possuiria as instalações ideais e do ponto de vista da higiene e da estética. Com a nova edificação anexa, adquiriria a Faculdade apenas quatro salas para a instalação de quatro laboratórios. Todavia, se eram em número de seis os gabinetes que funcionavam em prédio da rua das Laranjeiras e na Academia de Belas Artes, criou-se um impasse relativo à acomodação de dois laboratórios. O de Odontologia estava sem solução ideal de local onde deveria ser instalado. Incerteza permanecia quanto ao destino a ser dado para o funcionamento dos gabinetes de Anatomia Cirúrgica e Comparada e o de Anatomia Patológica, a biblioteca e o museu, que achavam-se pessimamente situados. A comissão criada pelo governo em aviso de 3 de novembro de 1889, elaborou um projeto de reforma para as Faculdades de Medicina do Rio e da Bahia, consoante seu parecer de 21 de janeiro de 1890, que indicava a criação urgente de um laboratório de Bacteriologia. Persistia, porém, o problema da falta do local para receber tal gabinete. Por outro lado, existia a escassez de áreas precisas para a criação de viveiros, jardins, pátios e logradouros. A solução para esta grave situação residia no aproveitamento das construções adjacentes ao edifício da Faculdade, nos pavilhões que serviam ao Hospital da Caridade, da Casa da Santa Misericórdia, o qual deveria ser removido para o novo prédio, que a Santa Casa estava edificando no largo de Nazaré. A tal respeito, o lente historiador do ano de 1891 posicionou-se contrário a semelhante pretensão. E relatou: “Do actual hospital da Caridade, d’aquelle inintelligivel labyrintho situado por detraz da Faculdade e nos fundos dos quintaes da rua das Portas do Carmo, d’aquella disparatada aglomeração de baixos corredores, de trevosas galerias inferiores ao nivel commum do solo, d’aquelle tristonho conjuncto de grutas, de fogos alveolos e cubículos, d’aquella sombria estancia de ar estagnado, d’aquelle monumento de barbarie, d’aquillo só uma cousa unica póde ser aproveitada: - é a area, - depois de inteiramente desocupada pela demolição completa e pela remoção do material e de estar por muito tempo exposto á acção purificadora dos agentes naturaes”. E descreveu o prédio da Faculdade de Medicina da Bahia: “Um edificio collocado num sitio pouco espaçoso, minimamente acanhado e sem a possibilidade de ser augmentado, salvo á custa de despendiosas desapropriações e de demolições previas; que não tem as dimensões necessarias para aquartelar os dezeseis laboratorios que devem funccionar em compartimentos distinctos, diversos amphitheatros, uma enorme bibliotheca e um museu; um edifício composto de duas secções, que se unem formando um angulo reintrante e das quaes uma está alguns metros fora do alinhamento do lado da praça em que demora e que irregularisa e desfeia; um edifício, cuja architetura é litteralmente monstruosa, pois que se deram uns ares de modernidadede e de elegancia ao velho convento, cuja construcção pesada e cuja forma obsoleta, foi necessario conservar e seguir na secção nova; um edifício em cujo vestibular acaçapado em relação a suas dimensões, se penetra por uma porta aberta n’um recanto e em que não se vê a escada concernente ao pavimento superior, a qual procede da extremidade de um corredor parallelo ao plano de entrada, - escada que sendo de lizo marmore e fórma conchoide merece a qualificação de anti-hygienica; finalmente, um edifício interiormente mal dividido, desproporcionado e cujo soalho se acha em niveis differentes”. Era convicção do sobredito memorialista que seria preferível adotar uma solução pela qual o edifício da Faculdade não devesse sofrer modificações e aumentos no velho Colégio que pertencera aos Inacianos, quando dever-se-ia optar por uma edificação nova, projetada por arquiteto de escol, nos moldes das faculdades de medicina congêneres européias, a começar pelos planos dos alicerces e erigida em terreno adequadamente escolhido e devidamente amplo. Teria a faculdade a necessidade premente de ser ampliada, se não se concretizasse a sua transferência para sítios alhures. Opinava que haveria a vantagem das adjacências dos mais variados institutos e, se a hipótese de ampliação do antigo edifício fosse aceita, far-se-ia mister deitar abaixo o hospital e desapropriar e derruir 6 ou 8 prédios às Portas do Carmo, além de estender sobre a montanha ou escarpa a arcaria sobre a qual seria construídos os dois novos pavilhões. Em não se escolhendo a alternativa da construção de um novo edifício, dar-se-ia preferência a medidas outras, como a compra de vasto prédio em outras bandas. Assim é que, em Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues 1883, quando ainda estavam no início as obras da Faculdade, foi proposto ao governo imperial pela Venerável Ordem Terceira de S. Francisco, a venda do extenso e novo edifício do seu asilo de “Sancta Izabel”, pela quantia de 170 contos de réis. O presidente da província da Bahia, Pedro Luiz Pereira de Souza, empossado a 16 de dezembro de 1882, e que fora encarregado pelo ministério do império de efetuar a compra do dito prédio, foi em companhia do vice-diretor e de vários lentes visitar o casarão do asilo. Houve, entre os lentes, divergência de opiniões respeitantes à compra, todavia a maioria foi favorável à aquisição. Paradoxalmente, o vice-diretor Pacífico Pereira, ferrenho defensor e autor da proposta de restauração e ampliação do provecto edifício do Terreiro de Jesus, estava entre os lentes favoráveis à compra do prédio do asilo de “Sancta Izabel”, quando expôs ao governo, em relatório minudencioso, datado de 11 de fevereiro de 1884, as vantagens da compra do prédio dos Franciscanos e a transferência da Faculdade As vantagens consignadas no dito relatório eram , em síntese: “vastissimo predio, novo, solidamente construido e situado no centro da cidade”; continha “area sufficiente para serem n’elle installados todos os laboratorios e museus”; “a proximidade a uma linha de tramway”; E acrescentava a exposição: “O edifício tem em dois pavimentos, 8 sallões, tendo cada um 24 metros de comprimento sobre 8 de largura, 4 sallões com 15 m. 5 sobre 9 m, e mais 7 com 14 m sobre 9m de largo.” “Além destes tem um pavimento terreo com um vestibulo de 14 metros sobre 8m de largura, dos lados 2 salões com 24 metros sobre 7m,50, e um de 15 metros sobre 9m de largura.” “Tem de frente o prédio 65 metros de extensão sobre 35 de fundos; occupa, portanto, uma area de 2275 metros quadrados, ...” Em fevereiro de 1884, o vice-diretor, Dr. Pacífico Pereira, viajou ao Rio com o escopo de relatar vocalmente ao governo imperial, a aflitíssima e precária situação do ensino médico na província da Bahia, onde ainda não estavam funcionando os laboratórios instituídos pela lei de 30 de outubro de 1882, em razão da insuficiência de dotação orçamentária que resultou na paralisação das obras iniciadas em 1883. No ensejo, o vice diretor mostrou-se favorável à compra do edifício do asilo dos Franciscanos, quando apresentou o relatório concernente ao prédio onde eram abrigados idosos necessitados e exibiu ao governo o competente projeto. Todavia, por razões não definidas, o governo imperial não autorizou, naquela oportunidade, a aquisição do dito edifício e, mais tarde, em 8 de julho daquele mesmo ano, foi concedido o crédito de 50 contos de réis para a prossecução das obras principiadas no velho prédio. Os lentes que, desde 1882, exerceram a diretoria da Faculdade de Medicina da Bahia, na qualidade de diretores e em caráter interino, os professores Francisco Rodrigues da 71 Silva, Jeronymo Sodré Pereira, Ramiro Affonso Monteiro, Antonio Pacifico Pereira e Jozé Olimpio de Azevedo dedicaram-se com inexcedível zelo na azáfama de ampliar e melhorar o edifício da Faculdade e instalar novos gabinetes e laboratórios, rogando ao governo a dotação orçamentária para tal mister(12). Volvidos quase três qüinqüênios, a retratada Faculdade teve uma relativa melhora, devido às lentas e penosas obras de reparação e principalmente em virtude da transferência, em 1893, dos serviços clínicos da Casa da Santa Misericórdia para o novo Hospital Santa Izabel, edificado no largo de Nazaré. Destarte, transformaram-se os cômodos e salões do velho Colégio que fora dos Jesuítas, e que se prestavam a enfermarias, os quais, após os precisos arranjos, foram devidamente aproveitados pela instituição de ensino médico para a instalação de gabinetes, laboratórios, biblioteca e museu. Mesmo de posse dos projetos e instruções das precisas obras do edifício da Faculdade, as verbas insuficientes que chegavam obedecendo a morosidade de irritante procedimento burocrático, obrigou o Dr. Antonio Pacífico Pereira a fornecer pecúnia do seu próprio bolso para evitar a paralisação dos trabalhos, que ficaram concluídas as fases evidenciadas, em 1889(5). Nomeado diretor da Faculdade de Medicina da Bahia o lente Alfredo Thomé de Britto, por decreto de 10 de agosto de 1901, sendo empossado a 21 de do mesmo mês, já no ano de 1902, em seu relatório registado em ata da sessão da Congregação(3), patenteava os melhoramentos levados a efeito em tão pouco tempo no edifício da escola mater das ciências médicas da Bahia, causando consternação e indignação pelo quadro gritante e estarrecedor dos cômodos mais venerados e sagrados da Escola, descrito pelo dirigente máximo, que eram a capela dos Jesuítas, de São Estanilau Kostka, ao depois, do Hospital Real Militar e o solene e magnificente salão nobre ou salão dos atos. Consignou-se no dito relatório: “Foi desocupada e limpa a antiga e historica capella dos Jesuítas, verdadeira joia arquitetonica, transformada em deposito de objectos velhos e inserviveis; pozeram-se portas de madeira nas janellas do salão nobre, cujos ornatos se estragavam cada vez mais, pela acção da luz e da humidade. Construiu-se um grande tanque ou reservatorio central de 12 mil litros de capacidade, armazenando permanentemente essa enorme porção de agua do Queimado, mais que sufficiente para todas as necessidades. Foi collocado um pararaios no edifício no edifício. Está feito o orçamento de um plano completo de reforma do salão nobre, cujo papel e tapete, principalmente, já se achavam bastante estragados, substituindo-os pelo revestimento do soalho, “á parquet”, e a pintura a oleo das paredes, obedecendo á hygiene e á esthetica. Egualmente com relação á pintura do exterior do edifício ...”(3). 72 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 Com referência à exposição concernente ao ensino na Faculdade de Medicina da Bahia no ano de 1902, em seu relatório com data de 31 de janeiro de 1903(8), dizia o Dr. Alfredo Britto: “A deficiencia com que estão montados os laboratorios, a insignificancia relativa da verba destinada ao seo custeio e aperfeiçoamento annual, a carencia absoluta, por assim dizer, de tudo quanto é imprescindivel para um ensino clinico regularmente organisado, são os obices mais faceis de remediar de prompto, por dependerem quasi que exclusivamente da concessão de verbas necessarias e de sua conveniente applicação por parte de uma administração bem orientada. Em alguma cousa, entretanto, consegui sempre fazer melhorar o ensino, no anno passado, nos limites da verba ordinaria. Com a installação electrica, os laboratorios preparamse para uma transformação completa no ensino, logo que consigam fornecer-se do material necessario a utilisação das energias d’aquella força; a bibliotheca se acha provida de illuminação abundante e hygienica; os amphithatros e salas de aulas com ventilação franca e amena; todos os laboratorios e demais dependencias com agua em profusão, automaticamente distribuida; o ensino oral ou as preleções, de um serviço completo de projeções.” “O bioterio, commum aos differentes laboratorios, segundo o plano apresentado pelo Dr. Manoel de Araujo, distincto lente de Physiologia, como presidente da commissão que para esse fim nomeei, está prompto para começar a funcionar no primeiro anno lectivo, tendo compartimentos especiaes para coelhos, pombos, rãs, cobaios e cães. A canalisação electrica se estendeo a mais alguns laboratorios. O ensino de odontologia foi dotado com o material electrico promettido. O numero de cadaveres fornecido para o ensino pratico das cadeiras em que são necessarios, elevou-se a 215, em vez de 187 no anno anterior, sendo, em sua grande maioria, longamente aproveitados por meio de injecções conservadoras. O serviço de autopsias, a cargo do illustre lente de Anatomia Pathologica, foi regularmente feito, no respectivo laboratorio, prestando valiosissimo subsidio ao ensino clinico.” “Os laboratorios da Faculdade terão tambem o seu material consideravelmente augmentado, ficando, além disto, muito melhorado o de bacteriologia que, satisfazendo ao pedido do respectivo lente, passará por completa reforma, preparando-se um bioterio particular para os animaes em experiencia e uma camara escura para microphotographia, adaptando-se a sala annexa de preleções para ser convenientemente transformada em camara escura para projecções, e fazendo-se uma nova canalisação de gaz directa e especial para que possam funccionar satisfatoriamente os autoclaves, as estufas e os fornos de incineração.” “Quanto ao accordo entre a Faculdade e a Santa Casa de Misericordia, justamente considerado como indispensavel para o bom funccionamento do ensino clinico, acha-se felizmente realizado e se executando regularmente.”(8). Em a noite de quinta-feira, 2 de março de 1905, que antecedia o carnaval, irrompeu violento incêndio no edifício da Faculdade, por volta das 8 e ½ horas da noite, nos baixos do pavilhão da biblioteca, onde ficava o almoxarifado, alastrando-se célere para o resto do edifício, consumindo os gabinetes de Anatomia Patológica, de Bacteriologia e de Química, além da biblioteca e a belíssima capela do padre Antonio Vieira, consagrada a S. Estanislau Kostka e o gabinete de Medicina Legal, que era dirigido pelo Dr. Nina Rodrigues e estava equipado com modernos aparelhos de psicologia experimental. Enérgicas medidas foram prontamente adotadas pelo desolado diretor Alfredo Britto, para a imediata reconstrução do edifício incinerado, atuando, diligentemente, junto ao governo da União, que abriu um crédito extraordinário de 600 contos, ato benemérito do presidente da República Francisco de Paula Rodrigues Alves e José Joaquim Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Obedecendo arrojado projeto do arquiteto franco-argentino Victor Dubrugas para a edificação de novo e moderno edifício da Faculdade, começaram as obras em meado de 1905, com a reconstrução de parte do prédio incendiado, com ampliações às custas de desapropriações e demolições de edificações contíguas, cujos trabalhos foram dirigidos pelo celebrado engenheiro civil Theodoro Sampaio. As obras de reconstrução do prédio da nova Faculdade de Medicina da Bahia terminaram em 31 de janeiro de 1909, pelo engenheiro João Navarro de Andrade, que deu continuidade a grande parte dos trabalhos iniciados por Theodoro Sampaio(7). Em Relatório de 1905 ao ministro do Interior, J. J. Seabra, assim registou o Dr. Alfredo Britto as providências adotadas para a restauração do edifício da Faculdade(9) “Reparados com a maxima presteza os damnos causados pelo incendio na parte nova do edifício, progridem as obras de sua reconstrução, obedecendo ao plano estabelecido e approvado pelo Governo, alargada a area primitivamente occupada com a demolição dos 13 predios para esse fim desapropriados por utilidade publica, pelo decreto n. 5544 de 5 de Junho.” “Além de largamente accommodados os 6 laboratorios destruidos, conforme os planos dos lentes respectivos, ficará também optimamente situada a nova bibliotheca, em edifício annexo, porém isolado e independente. No centro da praça interior ajardinada, em torno da qual se desenvolvem as edificações, occupando tres de suas faces, ligadas por galeria coberta, haverá um grande amphitheatro para 500 alumnos, adaptado ás varias especies de demonstrações praticas exigidas pelo methodo intuitivo, particularmente por meio de projecções electricas de todo genero.” Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues “Junto ao laboratorio de Medicina Legal, mas com entrada livre e separada, ficará a Morgue, dependencia de maior importancia para o ensino e funccionando por meio de eletricidade pelos mais aperfeiçoados processos. O bioterio, a casa das machinas e a do guarda, assim como o almoxarifado, occuparão terrenos situados por detraz dos novos edifícios, na parte ocidental.” “As novas construcções, de cimento armado, são incombustiveis e, por conseguinte, garantidas contra novos incendios.” “O salão nobre, o museu, o pantheon, a sala das congregrações, a dos lentes, as da Secretaria e Diretoria, terão egualmente prompta a sua installação definitiva.” “Quanto a dos novos laboratorios e institutos, necessariamente em proporção com os edifícios em que vão funccionar e com os progressos do actual momento scientifico, depende unicamnente da concessão de verba especial para esse fim, que venho solicitar no meu relatorio ao Governo, e dos planos definitivos, sob este ponto egualmente dos lentes respectivos.” “Para auxiliar, nessa difficil e importante incumbencia, os que disto se quizerem aproveitar, fiz organisar, na Europa, e tenho á sua disposição, planos completos para os differentes laboratorios e as dependencias dos novos edifícios, de accordo com as respectivas plantas e dimensões. É assim que o da futura Morgue, acceito com applauso pelo Sr. Professor de Medicina Legal, consoante á nova organisação do ensino de sua cadeira por elle proposto, e approvado o anno passado por esta congregação, está sendo já executado, em condições, me parece, de vir prestar á Faculdade e á Bahia o mais assignalado serviço, constituindo para ambas inestimavel serviço”. “A nova casa de machinas para o serviço de eletricidade, modelo no seu genero, já está prompta a funccionar, fornecendo energia electrica para todos os misteres aos amphitheatros e laboratorios que o requisitarem, provendo á distribuição automatica de agua e á illuminação em todo o edifício, e, bem assim, muito brevemente, á producção do gelo e de agua distillada, em abundancia, para as clinicas e laboratorios. Tambem está prompto o novo almoxarifado, em pavilhão especial, convenientemente isolado, e acabam de soffrer completa caiação e pintura quase todos os commodos e dependencias da Faculdade, principalmente os amphitheatros, o necroterio e a sala de dissecções.” “As reformas dos serviços clinicos no hospital de Santa Isabel estão a concluir-se todas. O pavilhão de operações assepticas; - a sala de operações septicas; - a de electrotherapia e phototherapia; - a de hydrotherapia, maçagem, sudação e banhos hydroelectricos; o novo gabinete Röentgen, especialmente adaptado á radiotherapia, funccionarão no corrente anno lectivo.” “Assim tambem o Instituto Clinico, para onde será 73 transferido o material já existente das differentes clinicas, organisando-se os futuros gabinetes nas salas que escolherem os respectivos lentes ....” A Maternidade, si for concedido esse mesmo credito, ficará prompta egualmente, nem só na sua construcção propriamente dita, como na installação interna, em seus varios aspectos (mobiliamento, material, etc.). “...resta unicamente a organisação do ensino da Clinica Psychyatrica e de Molestias Nervosas.” ... “ Nesse intuito grande somma de trabalho já está realisada”(9). Consoante as palavras do lente memorialista de 1909(11), “Dispomos hoje de um edifício grandioso, dividido em duas partes, uma que chamamos antiga, cuja fachada de estilo Renascença olha para a Praça Quinze de Novembro, antigo “Terreiro de Jesus”, e outra parte, a nova, em estilo grego, ocupando uma vasta area, dá para a rua das Portas do Carmo”(11). Ao lado das tristes exposições que exibiam os cômodos do velho edifício da Faculdade de Medicina da Bahia em condições mesquinhas, anti-higiênicas, acanhadas, mal arejadas e de iluminação insuficiente e de estrutura mal arquiteturada, que perduraram ao longo de toda a sua história, desde o seu estádio embrionário até a época do quase completo desmoronamento pelo incêndio de 1905, serão mostrados, a seguir, aspectos breves do ensino na Faculdade durante alguns períodos da vida de Nina Rodrigues como professor de Medicina Legal. Todos os historiadores da Faculdade de Medicina da Bahia abordavam o tirocínio teórico e prático ministrado pela Faculdade de Medicina da Bahia, rotulando-os como deficientes. Os lentes, embora quase todos notáveis e donos de eloqüente expressão de viva voz no ensino das lições, eram, todavia, limitados sobremaneira pelos óbices impostos pelo carente ensino prático em gabinetes e laboratórios assaz desaparelhados. Era o ensino mais especulativo e teórico, afastando os estudantes da observação e exame direto dos enfermos. Nas aulas, alguns lentes costumavam ler (do latim Legens – leitor) – compêndios (em francês) e apostilas e estimulavam os alunos a procederem da mesma maneira. Nina Rodrigues entrou na liça ao ingressar no magistério, em 1891, para dar a conhecer o péssimo ensino teórico e prático da Faculdade. Foi o sobredito professor nomeado substituto da 5.ª Seção, por decreto de 21 de fevereiro de 1891 e empossado a 4 de março.por ocasião da reforma Benjamin Constant, exercendo as funções de docente no impedimento do professor catedrático Conselheiro Virgilio Climaco Damazio. Naquela oportunidade, dirigiu ao memorialista do ano de 1891, Dr. Luiz Anselmo da Fonseca, Lente Catedrático de Higiene e História da Medicina(12), de acordo com o dispostos nos estatutos da Faculdade, sobre o que de mais notável e interessante ocorrera na disciplina em cujo ensino colaborava naquele ano letivo. 74 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 Apresentou circunstanciadas informações sobre as aulas e teceu ligeiras ponderações sobre as cadeiras em cujo tirocínio tomou parte direta: o ensino de Higiene e a sua cadeira complementar de Bacteriologia, através de curso prático no tocante à contagem das bactérias do ar e da água, porquanto, na forma do artigo 127 dos estatutos, foi encarregado de fazer o curso sobre bacteriologia do ar e da água. Discorreu sobre a cadeira de Medicina Legal, quando substituiu o catedrático da dita matéria durante quase todo o ano letivo, cadeira que, na sua opinião, estava a carecer de toda a atenção da Faculdade em razão das modificações da última reforma dos estatutos, em conflito com os óbices do seu ensino, agravados pela má vontade daqueles que deveriam coadjuvar os professores e a instrução destes estudos. E acrescentou: “A creação das cadeiras de medicina legal nas faculdades juridicas, a separação da chimica toxicologica em cadeira especial nas faculdades medicas, bem como a instituição de um ensino externo de medicina legal são outras tantas disposições da ultima reforma geral do ensino superior do paiz que, realisando aspirações dos competentes, deviam imprimir um grande impulso no aperfeiçoamento do ensino e da pratica da medicina legal entre nós”. Asseverou que a série de reformas foram incompletas e as que pretendiam reformar a Medicina Judiciária e o ensino da Medicina Legal as mutilaram. Em paises mais desenvolvidos, afirmavam-se a divergência e independência completa em que estavam as habilitações do médico legista da competência puramente clinica. “Entre nós revela-se o mais completo desprezo pelo valor scientifico de medico perito, comettendo estas funcções a profissionais sem instrução especial em uns casos, e manifesta incompetencia em outros e em alguns até de insanavel incapacidade mental.” Os médicos competentes, de modo geral, se afastavam dos incômodos gerados pela “ridicula” atuação do médicoperito. Denunciou, ademais, reportando-se a sucessos “escandalosos” ocorridos no Rio de Janeiro, quando encaminhavam para exame mental pacientes confiados a médicos saídos da Faculdade, ainda no “noviciado” clínico. Tais fatos deploráveis não eram devidos à carência de médicos peritos com habilitações especiais e sim à falta de escrúpulo na escolha do médico versado em perícias e pelo menosprezo das suas funções especializadas. Informava Nina que o Conselheiro Virgilio Damazio costumava dividir as lições de Medicina Legal em intra e extra-escolar, adiantando que os estatutos adotaram esta discriminação ao separar a Medicina Legal da Química Toxicológica, sendo o ensino intra-escolar por ele subdividido assim: 1.º ensino clínico, ministrado nos hospitais, maternidades e asilos de alienados. Todavia, segundo Nina, não seria exeqüível esta proposição, porquanto deveria ser considerada a “imprestabilidade” do asilo de alienados e de não existir até hoje maternidade. 2.º estudo e ensino necroscópicos. Não obstante a falta de cadáveres e dificuldade no processo de conservação, era, para Nina, o mais exeqüível dele. 3.º ensino estudo microscópico, químico, e de toxicologia experimental. A respeito deste assunto, Nina lamentou a maneira infeliz na divisão do antigo gabinete de Medicina Legal entre esta cadeira e a de Química Toxicológica. Naquela época, por insuficiência de local, o gabinete de Medicina Legal não estava instalado ainda. Esta deficiência criou transtorno, com a dita divisão, pela transferência para o gabinete de Química Toxicológica de todas as substâncias, produtos e reagentes químicos, deixando para a cadeira de Medicina Legal exclusivamente os aparelhos. Assim, só podiam ali realizar-se estudos limitados de microscopia e química legal aplicados ao exame de manchas, líquidos orgânicos etc. Ensino externo de Medicina Legal O art. 208 dos novos estatutos estabelecia o ensino externo de Medicina Legal, dado na chefatura de policia por pequenas turmas de estudantes concernentes aos exames biológicos e às autopsias médico-legais da morgue para os exames farmacológicos, serviço que tinha regulado o seu modo prático pelo art. 209 que previa acordo entre o ministério da instrução pública e o da justiça. Segundo Nina, este artigo se aplicava exclusivamente para Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Oficiou Nina ao diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, solicitando que lhe fosse autorizado entender-se em seu nome com o chefe de policia para se ensaiar a aplicação do dito dispositivo, dirigindo-se ao então chefe de polícia para se reportar sobre o assunto. “Parecia á primeira vista que nada seria mais facil de obter, pois não possue este Estado nem a organização nem serviço medico judiciario regular.” Os médicos a quem a polícia encaminhava este serviço não possuíam auxiliares e instrumentos para verificação de óbitos e prática de autópsias médico-legais. Levavam a efeito apenas os mais rotineiros corpos de delito. Normalmente, esse serviço era feito na acanhada sala adjacente ao depósito de cadáveres do hospital de Caridade. Em algumas ocasiões, realizavam-se autópsias no salão do diretor do gabinete de anatomia da Faculdade. A curiosidade fazia com que curiosos penetrassem de maneira desimpedida naquele recinto, coadjuvados pelos parentes, “adherentes” e conhecidos do defunto, que atopetavam literalmente as portas, janelas e adjacências do recinto, invadido de modo a dificultar a locomoção de médicos e auxiliares. A aversão pelas autopsias, agravada com a exibição desrespeitosa e inconveniente, sob a vista de pessoas supersticiosas, impedia um serviço com respeito pelos Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues mortos, obrigando tal estorvo a que a equipe adotasse os precisos resguardos e respeito. Tais pessoas exerciam pressão sobre os médicos legistas através de pedidos, rogos e reclamação, havendo necessidade da requisição de força policial para conter tais indivíduos.(13) Na lição de abertura do curso de Medicina Legal, na Faculdade de Medicina da Bahia, em abril de 1901, dizia, ao ser empossado da direção da respectiva Cadeira (14,4): “Creada em 1832, a cadeira de medicina legal da Bahia vai ter agora o sexto cathedratico, quando no mesmo lapso de tempo a do Rio de Janeiro tem tido tres apenas.” E acrescentava que a história do ensino da cadeira de Medicina Legal era dividida em tres fases: “a primeira, que vae da creação da cadeira, em 1832, á reforma de 1854, com João Francisco de Almeida e Malaquias Alvares dos Santos, prematuramente fallecido; a segunda, que vai de 1856 á reformas de 1882, com Salustiano Ferreira Souto e Francisco Rodrigues da Silva: a terceira, em que nos achamos e que começa com Virgilio Damazio em 1882”. Dizia ainda na referida lição de abertura: “O ensino pratico de Medicina Legal que se dá hoje nesta Faculdade é um fruto do esforço e da vontade pessoais do professor, produto de uma atividade que não é a que dele exige ou lhe impõe o regulamento, mas da que lhe ditam as suas convicções e a idéia que faz das necessidades do ensino a ele confiado. O que nunca se pôde conseguir oficialmente entre a Faculdade e a Chefatura de Policia, obtive das minhas relações pessoais com os distintos medicos do serviço medico-legal desta ultima repartição. Não é a primeira vez que dou publico testemunho dos reais serviços prestados a este ensino pelo Dr. Octaviano Pimenta e mais tarde pelo seu companheiro Dr. Aristides de Andrade. Sempre os achamos prontos a atender aos nossos pedidos de coadjuvação, avisando-nos dos casos mais importantes, facilitando o exames com a presença dos alunos, demorando para isso os exames e muitas vezes repetindo-os, concedendo-nos a conservação das peças anatomicas que a deficiencia da instalação da policia não lhes permite ainda aproveitar ... “Tenho mesmo o prazer de declarar que encontrei sempre da repartição de policia da Bahia a melhor boa vontade e todas as facilidades para os meus estudos. Desde 1895, instituimos um serviço ainda muito irregular de clinica forense nos hospitais, asilos, penitenciarias e chefaturas de policia. Estes cursos, pelas razões expostas, não podem ser muito seguidos. “Costumo, por isso, estudar previamente os casos aproveitaveis e uteis ao ensino e em algumas lições mostralos aos alunos. Assim temos conseguido fazer, com os alunos, cursos metodicos de afrodisialogia forenese, de antropologia criminal, de psiquiatria e de traumatologia forense. “Para tirar todo o proveito das poucas autopsias judiciarias que os alunos podem assistir, criamos desde 1895, nos anfiteatros de anatomia e em cadaveres do 75 Hospital de Caridade, um curso metodico de estudo das alterações cadavericas e de instrução pratica dos alunos nos processos gerais da autopsia medico-legal. “No laboratorio propriamente dito, funciona um curso de exame de manchas, marcas etc., dos elementos de identidade pelo exame do esqueleto; de preparação de peças anatomicas, de exames microscopicos, etc. “Como atestado da realidade destes estudos praticos, eu tenho a satisfação de inaugurar hoje o nucleo do primeiro museu medico-legal do Brasil(4,14)”. Enquanto era reconstruído o pavilhão para nele ser instalado a Medicina Legal, durante as grandes obras de reconstrução e ampliação do edifício, após o incêndio de 2 de março de 1905, Nina Rodrigues oficiou ao diretor Alfredo Britto, no dia 20 de julho de 1905, formulando as bases para um acordo entre o governo do estado e a Faculdade de Medicina da Bahia, com o escopo de funcionar parte do serviço médico-legal do estado no pavilhão em via de reconstrução. Os docentes de Medicina Legal trabalhariam em parceria com os médicos legistas da polícia, ficando incumbidos de fornecer às autoridades relatórios ou pareceres sobre os trabalhos de tal mister que fossem realizados. E para que possuíssem valor legal aos seus atos no assunto, o governo estadual conferiria aos ditos professores a qualidade de peritos oficiais. Faleceu, todavia, o professor Raymundo Nina Rodrigues às 4 ½ horas, do dia 17 de julho de 1906, em Paris, em um quarto do Nouvel Hotel, 49, rue La Fayette, antiga rue Charles X, com apenas 43 anos de idade, não deixando o destino que ele presenciasse a inauguração da sua grandiosa obra(6). Os projetos para a construção e instalações do novo Instituto Médico-Legal foram da lavra de Nina Rodrigues. Um dia após o falecimento do pranteado professor, Congregados os lentes da Faculdade de Medicina da Bahia, em 18 de julho de 1906, o professor Francisco Bráulio Pereira apresentou moção propondo, dentre outras, que fosse denominado Instituto “Nina Rodrigues” o novo pavilhão destinado à Medicina Legal, que foi aprovada unanimemente(6). A obra de Nina Rodrigues teve dignos sucessores: o professor Oscar Freire de Carvalho, catedrático da disciplina de 1915 a 1922, e como colaboradores Josino Correia Cotias e José de Aguiar Costa Pinto. Por decreto de 21 de dezembro de 1911, o Governador do Estado, Dr. Araújo Pinho, reorganizou e regulamentou o Serviço Médico Legal da Polícia, consoante o acordo feito com a Faculdade, em 31 de Dezembro de 1907, sendo governador o Dr. José Marcellino de Souza. O Serviço Médico-Legal da Polícia no Instituto “Nina Rodrigues” foi solenemente instalado em 30 de dezembro de 1911. As transformações culturais, científicas e sociais desencadeadas pelo gênio de Nina Rodrigues, analisadas pelo Dr. Arthur Ramos, geraram a Escola Médico Legal da 76 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 Bahia, ou Escola de Nina Rodrigues, segundo a conceituação de médico legista de nomeada(16). Dentre seus alunos, ao depois professores: Afrânio Peixoto, de Higiene e Medicina Legal, nas Faculdades de Medicina e de Direito, no Rio de Janeiro; Diógenes de Almeida Sampaio, de Química Médica e Assistente de Medicina Legal, no Rio; Costa Pinto e Oscar Freire, catedrático de Medicina Legal, ao depois lecionando em São Paulo, tendo fundado a cátedra; Lins e Silva, de Medicina Legal, nas Faculdades de Medicina e de Direito do Recife; e Ulysses Paranhos(15). São dignos de menção os fieis e proficientes seguidores da “Escola da Bahia”, em nosso estado: o Prof. Dr. Estácio de Lima, a Prof.ª Dr.ª Maria Theresa de Medeiros Pacheco e o Dr. Lamartine de Andrade Lima. Em 30 de novembro de 1891, em substituição ao professor catedrático, Conselheiro Virgilio Climaco Damazio, reportava Nina Rodrigues ao Dr. Luiz Anselmo da Fonseca ter lecionado a disciplina de Medicina Legal de junho até outubro de 1891, ocupando-se das questões de imputabilidade, capacidade e identidade, da tanatologia e afrodisiologia forenses(14). O atraso em que se achava o curso de Medicina Legal era devido ao costume abusivo dos alunos de tirarem férias desnecessárias e prolongadas de semanas e até meses e interrupção brusca em fins de outubro por haverem todos requeridos exames livres nessa época. Faltavam os alunos, por conseguinte, ao estudo da toxicologia. Os estudos práticos de Medicina Legal foram realizados consoante o programa apresentado por Nina à Congregação no seu primeiro relatório mensal, não obstante as inúmeras dificuldades apostas à sua execução. Uma delas era a deficiência do laboratório de materiais para os importantes estudos práticos sobre infanticídios; falta de um serviço prático de Medicina Legal, funcionando como auxiliar de justiça pública e de onde fosse possível retirar os elementos deste ensino. Não foi possível a Nina Rodrigues realizar um só dos trabalhos do serviço externo de Medicina Legal. Comunicou então à Congregação, que oficiou à diretoria, para que fosse autorizado entender-se com as autoridades policiais a respeito do serviço prático externo de Medicina Legal. Foi muito bem recebido pelo chefe de policia que lhe fez muitas promessas, nenhuma delas cumpridas, nenhum cadáver foi fornecido para a prática de autópsias judiciárias nem foi convidado par assistir aos corpos de delito realizados na chefatura de policia. Foi sempre regular a freqüência dos alunos, afora as épocas de férias prolongadas durante o ano. A aplicação média foi também regular, recebendo muitos estudantes bom aproveitamento(14). O professor de Medicina Legal, Raymundo Nina Rodrigues, de 35 anos de idade, relatava à egrégia Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia do Terreiro de Jesus, a 29 de março de 1897, a Memória Histórica da dita Faculdade concernente ao ano de 1896(19). Confessava o insigne memorialista a sua grande preocupação de “estabelecer o estado atual do nosso ensino medico-pratico.” Referiu-se ao histórico da Faculdade de Medicina da Bahia como “mais ou menos brilhante”. É assaz sagaz e sarcástico, porém sincero e verdadeiro, ao discorrer sobre a imutável e genuína aspereza da verdade histórica ao emitir juízo em derredor dos sucessos acadêmicos de 1896. Considerava o ensino teórico “com todo seu aparato espetaculoso de sucessos oratorios, e que na avidez dos aplausos sacrifica, sem pejo, a utilidade do ensino, por mais de meio seculo de esterilidade banal ...” e, mais adiante, “Os impulsos indomaveis da retorica recalcitrante não salvam o ensino, quando falta a verdade cientifica.” Ponderava serem “escassos e de procedencia muito suspeita os documentos de que dispõe o historiador para julgar o curso pratico das diferentes disciplinas lecionadas na Faculdade,” porquanto se restringiam aos relatórios apresentados à Congregação no término do ano letivo. Os professores registavam nos seus relatórios que se consideravam satisfeitos quanto às condições de instalação e aparelhos para as lições do curso pratico, excetuando-se os professores substitutos da 1.ª seção, professor de Botânica e Zoologia Médicas e do de Medicina Legal, colocando-se, destarte, segundo confessou Nina Rodrigues, em primeiro lugar entre os que consideravam incompletos os cursos práticos de suas respectivas Cadeiras. Afirmava, destemidamente, que, “Em materia de instalação, o laboratorio de medicina legal é o menos afortunado da Faculdade, é o enteado entre tantos irmãos.” Com referência às condições precárias da instalação do laboratório de Medicina Legal, responsabilizava o “atraso e desorganização da Justiça Administrativa, da Justiça do país e a responsabilidade desta Congregação que não tem querido tomar na devida consideração as exigencias deste ensino. A falta de uma organização medico-judiciaria no pais, a carencia de um titulo ou diploma especial do medico perito, que, aliás, contra todas as tendencias do ensino moderno nos países civilizados, a Congregação já declarou que não é necessario entre nós, estão no 1.º caso e são as causas remotas. As dificuldades do ensino, em si mesmo estão no 2.º caso e são as causas imediatas em que a Faculdade podia ter ação.” Denunciava que, em 1896, os alunos nunca tiveram oportunidade de comparecer à chefatura de polícia e raras vezes foram ao hospital, não passando de meia dúzia o número de estudantes que estudaram ferimentos e ajudaram nas autópsias judiciárias. A deficiência da Cadeira de Anatomia descritiva foi revelada: “Os cadaveres foram em numero insuficientes, alguns em estado de não poderem ser aproveitados por estarem em putrefação, e chegaram quase sempre depois da hora marcada (10 da manhã) para os trabalhos praticos.”. “Em seguida dá o mesmo professor o número de cadaveres de que dispos a Cadeira, Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues discriminadamente, pelos meses, sendo o total anual de 29; 7 o maior numero por mes, e 2 o menor.” “No entanto, no relatorio do chefe dos trabalhos anatomicos, figuram 43 cadaveres para esta Cadeira.” E Nina interrogava: “Diante de uma Faculdade de Medicina em que não existe estudo pratico de Anatomia, o que valem os gabinetes e laboratorios repletos de aparelhos, principal mira da organização do ensino pratico entre nós?”. E lamentava a inexistência de aparelhos frigoríficos na Faculdade e o não procedimento nos anfiteatros da utilização rotineira das injeções conservadoras para coadjuvarem no ensino prático de Anatomia. Respeitante ao ensino de clínica médica e de outras disciplinas, o historiador da Faculdade em 1896 enfatizou a apreciação do relatório do Conselheiro Ramiro Affonso Monteiro: “Desde a simples noção sobre a anamnese que não raro é inveridica e incompleta, até a autopsia, quando se oferece pratica-la, toda a estada do doente no Hospital é acompanhada de uma serie de falhas que dificultam a justa apreciação da marcha e evolução da molestia; falhas que não me dou ao trabalho de enumerar, porque são do conhecimento de todos nós que frequentamos aquele estabelecimento e que são devidas em parte á ignorancia da maioria do doentes que o procuram e em parte tambem á exiguidade dos meios de que é servido”. O memorialista do sobredito ano letivo teceu rápidas considerações sobre o relatório das cadeiras de Clínica Propedêutica e da 2.ª cadeira de Clínica Médica, exaradas para o ano de 1896: “A primeira tem laboratorio regular, mas não tem frequencia; a segunda não tem laboratorio, não tem frequencia, não tem doentes.” O celebrado cientista pretendeu demonstrar nas suas memórias que o ensino médico oficial no Brasil, não obstante existir há quase uma centúria, ainda não tinha vida própria. Concluiu apresentando as condições fundamentais para o ensino moderno, que dependia, segundo ele, de locais adequados, material suficiente e pessoal idôneo e capacitado, que promovesse a investigação experimental, fixando o trabalho do professor no seu laboratório de pesquisas, que tivesse a capacidade de contagiar a teoria em seus discípulos através da demonstração experimental de maneira que os alunos pudessem, um dia, assumir o cargo de professor(19). A polêmica e corajosa Memória Histórica da lavra do imortal Nina Rodrigues, ante os melindres e suscetibilidades dos seus pares da corporação de lentes, sofreria a censura dos tíbios e intolerantes. Não lho permitiram a sua publicação. Mas a verdade histórica não sucumbiu aos néscios e incapazes e os enunciados da notável Memória foram reverberados e ouvidos anos afora, até os nossos dias. Todavia, a egrégia Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia, da Universidade Federal da Bahia, em histórica sessão de 23 de abril de 1975, acolhendo o douto e judicioso parecer de seu relator, o 77 Prof. Dr. Estácio de Lima, aprovou a publicação da celebrada Memória Histórica na edição memorável de relançamento da respeitável e veneranda Gazeta Médica da Bahia, fundada a 10 de julho de 1866. Não poupou esforços o Professor Nina Rodrigues, coadjuvado pelo diretor Alfredo Britto, até os últimos momentos de vida de levar a efeito o seu ideal de instalar um modelar ensino teórico e prático de Medicina Legal, não obstante ter, no alvor do seu sacerdócio de Hipócrates, entrado na seara da Medicina preventiva, higiene e clínica médica, avançando na antropologia geral e criminal, preocupando-se sobremaneira com a científica análise “sobre a diferença das respostas do meio ambiente às agressões ao somático e ao psíquico,” sendo, por conseguinte, precursor dos estudos dos problemas nacionais relacionados à antropologia(16). O epílogo deste trabalho, determinado pelos limites da quantidade de páginas impressas na Gazeta Médica da Bahia, infere que o moço Raymundo Nina Rodrigues, ao matricular-se no 1.º ano do curso médico da Faculdade de Medicina da Bahia, no largo do Terreiro de Jesus, a 10 de Março de 1882, teve a história do seu tirocínio estudantil envolto em misterioso e obscuro reposteiro, em virtude dos óbices em localizar os documentos relativos ao seu desempenho como estudante de Medicina nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Exibe este artigo a precariedade da estrutura do edifício da Faculdade de Medicina da Bahia, com seus pavilhões acanhados, mal divididos, mal arejados, com iluminação deficiente e anti-higiênicos durante os anos de 1882, 1884, 1885, 1891, 1902 e 1903. São apresentadas informações do diretor da Faculdade no ano de 1905 dando conta da rapidez com que foram reparados os prejuízos provocados pelo incêndio de 2 de março daquele ano, evoluindo os trabalhos de reconstrução em observância ao projeto elaborado e consentido pelo governo federal, com a ampliação do espaço deixado pela demolição de 13 prédios e reportando-se às obras de recuperação e alargamento dos laboratórios danificados, ajardinamento, edificação de amplo anfiteatro, projeção da Morgue, biotérios, novo almoxarifado e amplos pavilhões de cimento armado, além da instalação definitiva do salão nobre, museu, panteão, sala das congregações, a dos lentes, as da secretaria e diretoria etc. São oferecidas sinopses de textos da lição de abertura do curso de Medicina Legal, em 1901,versando sobre os progressos da Medicina Legal no Brasil no século XIX, e de relatório como substituto da 5.ª Seção, em 15 de março de 1892, relativo ao ano de 1891 e encaminhado ao Dr. Luiz Anselmo da Fonseca, Lente Catedrático de Física Médica e ex-adjunto de Higiene e História da Medicina; relatório da Cadeira de Medicina Legal, datado de 30 de novembro de 1892; sumário da Memória Histórica apresentada pelo 78 Antonio Carlos Nogueira Britto Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 professor Raymundo Nina Rodrigues á Congregação da Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia, em 29 de março de 1897, concernente ao ano letivo de 1896, quando são mostradas sintéticas abordagens em ambos os documentos respeitantes ao ensino prático da Faculdade, mormente da disciplina de Medicina Legal nos anos de 1891 e 1896. Desditosamente, torna a dar-se a epopéia dramática das diferentes fases e particularidades de ações penosas e árduas na azáfama da diretoria da Faculdade de antanho, que era carregada de sentimento veemente pela restauração, ampliação, modernização e conveniente utilização dos velhos, acanhados, escuros, mal arejados e anti-higiênicos pavilhões e gabinetes do edifício da Faculdade de Medicina da Bahia. A História se repete. Em tempos passados, a desídia de alguns e a luta desigual de muitos, impregnada de amor filial e zelo acendrado da maioria dos diretores, ombreados com ilustrados pares da Congregação de lentes da anciana Faculdade de Medicina da Bahia em prol dos melhoramentos do prédio do estabelecimento de ensino médico; aqueles que entraram na liça depararam-se com os obstáculos criados pela insuficiência de verba e pelo molesto farisaísmo, má vontade e óbices burocráticos dos governos do Império e da República. Hoje, a incúria dos iconoclastas, que abandonaram o prédio venerável da Faculdade, ameaçado de profligar e derruir os vigamentos e abater a parte exterior da cobertura do edifício, a despeito da pugna sobre-humana, da mesma maneira desproporcional, de passadas Diretorias e da atual Diretoria, da egrégia Congregação e da Universidade Federal da Bahia, ao lado de médicos e associações da classe médica, pela restauração e revitalização da provecta e em outro tempo, magnificente e, agora, assaz desamparada Faculdade de Medicina da Bahia, ao Terreiro de Jesus. A celebração do bicentenário da instituição primaz do ensino médico nacional, a 18 de fevereiro de 2008, não será um aparato solene e infecundo e sim uma projeção de resplandecente fulgor com a qual, pela história da Medicina, tornaremos redivivos o pretérito; será um olhar para o passado, dirigido para a origem de ensinos das ciências médicas e para o fundamento das transmissões de conhecimento e prática das gerações finadas, que revitalizaram o legado que herdaram e aproveitaram as lições edificantes. Destarte, se toda a Bahia médica tiver a dita de contemplar no expressivo bicentenário da criação do ensino médico e da instrução superior nacional, no ano de 2008, o venerando edifício da Faculdade de Medicina da Bahia plenamente restaurado, observando fielmente seu belíssimo e portentoso estilo arquitetônico de outrora, fortalecerá, seguramente, crenças, animará adesões ao conjunto de transformações hodiernas ocorridas no ensino médico por meio dos cursos de pós-graduação, pelo funcionamento do programa de Educação Médica Continuada e cursos e atividades de pesquisa e extensão e agremiará simpatias e incitará entusiasmos. Será a ocasião oportuna em que todos terão consciência da extraordinária herança legada pelos seus fundadores e da heróica peleja pelo desenvolvimento da Faculdade de Medicina da Bahia, narrada pela epopéia grandiosa e heróica da sua História. ARQUIVOS Fontes historiográficas primárias manuscritas e originais 1. Arquivo Público do Estado da Bahia - Seção Republicano. “Commissariado” de Policia do Porto – Livro de Entrada de Passageiros n.º.03 – data: 09 de março de 1882. 2. Faculdade de Medicina da Bahia, no largo do Terreiro de Jesus. Arquivo do Memorial da Medicina Brasileira.- Universidade Federal da Bahia. Maço contendo os documentos manuscritos originais e inéditos exigidos para a matrícula do preparatoriano Raymundo Nina Rodrigues, em 10 de março de 1882, na 1.ª série do curso médico na Faculdade de Medicina da Bahia. 3. Faculdade de Medicina da Bahia, ao Terreiro de Jesus, da Universidade Federal da Bahia. Biblioteca e Arquivo do Memorial da Medicina Brasileira. Livro de “actas” da Congregação – 1898-1903 – p. 152-161v REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes historiográficas primárias e secundárias impressas 4. Aragão GMS. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1924. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p.191-196, 1940. 5. Bomfim A. Faculdade de Medicina da Bahia. Diário Oficial do Estado da Bahia. Edição Especial do Centenário. 1923. Salvador, p. 470, 1923. 6. Britto ACN. O falecimento do professor doutor Raymundo Nina Rodrigues, em Paris, a 17 de julho de 1906 e a narrativa da chegada do cadáver ao porto desta capital, no dia 10 de agosto do mesmo ano. A exposição minudenciosa das exéquias do célebre cientista brasileiro. Documento capturado em 8 de maio de 2006 na “home page” http://www.medicina.ufba.br/história, 2006. 7. Britto ACN. A medicina baiana nas brumas do passado. 1.ª edição, Contexto & Arte Editorial: Salvador, p. 311-322, 2002. 8. Britto A. O ensino na Faculdade de Medicina da Bahia. Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia para o ano de 1903. 1.ª edição, Typografia Bahiana: Bahia, p. 234-239, 1904. 9. Britto A. Desenvolvimento do ensino em 1905. Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia para o ano de 1905 – Typografia Bahiana: Bahia, p. 267-272, 1906. 10. Carvalho AA. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1884. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p. 25, 1885. In: Oliveira ES. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1942. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p.94, 1992. 11. Filho JEFC. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente aos anos de 1909 - 1910. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p. 54, 1913. 12. Fonseca LA. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1891. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p.54-73, 1893. 13. Fonseca LA. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1891. Universidade Federal da Bahia: Salvador. Anexo. p.XXVIII-XXXV, 1893. Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79 A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues 14. Fonseca LA. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1891. Universidade Federal da Bahia: Salvador. Anexo. p.LXIV-LXV, 1893. 15. Lima LA. Roteiro de Nina Rodrigues. 2.ª edição. UFBA, Centro de Estudos Afro-Orientais, Salvador: p.9, 1984. 16. Pacheco MTM. Raymundo Nina Rodrigues. Sinopse Informativa. Órgão da Diretoria da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia. Gráfica Universitária: Salvador, p.269, 1978. 17. Pereira AP. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1882. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p..36-38, (o exemplar consultado não regista o ano da publicação). 79 18. Rodrigues RN. Os progressos da Medicina Legal no Brasil no século XIX. Lição de abertura do curso de Medicina Legal na Faculdade da Bahia, pronunciada em abril de 1901. Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia para o ano de 1902. Imprensa Nacional: Rio de Janeiro, p. 11- 50. 19. Rodrigues RN Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1896. Universidade Federal da Bahia. Gazeta Médica da Bahia. 1.ª edição. Salvador: p 17-25, 1976 20. Saraiva MJ. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de 1885. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p. 34-38, 1986. NORMAS PPARA ARA PUBLICAÇÃO 1. Informações Gerais A Gazeta Médica da Bahia (GMBahia), fundada em 10 de julho de 1866, teve circulação regular de 1866 a 1934 e de 1966 a 1972, e outro número avulso em 1976. A GMBahia é órgão oficial da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia e tem periodicidade semestral, mas a partir de 2008 será trimestral. Os trabalhos submetidos à Gazeta Médica da Bahia serão encaminhados aos membros do Conselho Editorial, que decidirão sobre sua aceitação (com ou sem revisão) ou recusa, sem conhecimento de sua autoria (“blind review”). A revista tem como linha editorial publicações científicas e trabalhos técnicos e de extensão vinculados, estritamente, à área médica em temas de interesse da saúde coletiva, epidemiologia, clínica, terapêutica, diagnóstico ou da reabilitação, ou de áreas correlatas. Aceitam-se trabalhos escritos em português, espanhol ou inglês, com título, resumo e palavras-chaves no idioma original e em inglês. Serão aceitos exclusivamente em língua portuguesa se for editorial, resenha bibliográfica, noticiário ou carta ao Editor. As demais formas de publicação devem conter resumo e “abstract”: artigo original; artigo de revisão (esse só será aceito de autor convidado pelo Conselho Editorial); artigo de opinião (“Ponto de vista”); discussão de caso na área da Bioética ou Ética Médica; conferência; comunicação (“Nota prévia”); relato de caso; informe técnico; resumo e “abstract” de Monografia; Dissertação ou Tese; relatório de atividade de extensão; opinião de estudante de Medicina; nota sobre História da Medicina; e projetos e atividades na área da Educação Médica. Outro tipo de abordagem deverá, previamente à apresentação, receber autorização do Conselho Editorial da GMBahia. A publicação submetida em língua estrangeira deve vir acompanhada de resumo em língua portuguesa. 2 Considerações Éticas e Bioéticas Todos os trabalhos submetidos, envolvendo a participação de seres humanos, devem observar as recomendações da Declaração de Helsinki de 1975 (revisada em 1983) e aquelas da Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. No trabalho deve ser citado qual o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) aprovou o projeto de pesquisa que originou a publicação, informando também o número/ano do Parecer (e.g., ... aprovado pelo Parecer nº 24/2004 (ou assinale a data, se não houver número), do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário ... [cidade, Estado] ...”. A citação de medicamento deve fazer referência ao nome genérico. Quando for estritamente necessária a citação do nome da marca, inserir nota de rodapé informando a razão e o nome genérico, outras medicações similares e/ou de marca. Também, a Gazeta Médica da Bahia não aceita divulgação de produtos de indústria farmacêutica e de produtos médico-hospitalares. 3. Formato Geral do Trabalho a Ser Submetido 3.1 todo o trabalho deve ser compatível com o processador de texto “WORD for WINDOWS”â, em qualquer das versões do “software” e desde que assinale na etiqueta do CD (vide item 3.18); 3.2 ao digitar o texto, o comando de retorno da linha “enter” só deve ser utilizado no final de cada parágrafo; em nenhuma hipótese será aceito trabalho que ao final de cada linha conste um “enter”, pois só é cabível ao final do parágrafo; 3.3 também não utilizar “tab” para recuo da primeira linha ou centralização de título ou capítulo; 3.4 não utilizar espaço (“enter”) adicional entre os parágrafos; 3.5 margens esquerda e direita com 3,0cm, e a superior e inferior de 2,5cm; 3.6 as margens direita e esquerda devem ser alinhadas (justificadas); 3.7 todas as páginas devem ser numeradas, inclusive a primeira, com números arábicos e no canto superior direito; 3.8 o espaçamento de todo o texto deve ser duplo (exceto no título e “corpo” das tabelas, gráficos, figuras, etc.); 3.9 o tamanho da fonte (letra), de todo o texto, deve ser 12, inclusive o título do trabalho; 3.10 todos os trabalhos devem ter título em língua portuguesa e inglesa (exceto se for editorial, resenha bibliográfica, noticiário ou carta ao Editor), sendo o primeiro na mesma língua empregada no texto. O primeiro título deve ficar em negrito e com fonte no formato “times new roman” e, o segundo, sem negrito e com fontes em “arial” e em itálico. Exemplos (extraídos da RSBMT 34 (2), 2001): Facial nerve palsy associated with leptospirosis Paralisia facial associada à leptospirose ou Mudanças no controle da leishmaniose visceral no Brasil Changes in the control program of visceral leishmaniasis in Brazil 3.11 todo o texto deve ser redigido no formato de fonte “times new roman”, exceto o segundo título (vide acima) ou quando houver outra indicação técnica; 3.12 não citar abreviaturas (sem antes a expressão completa) ou referência bibliográfica no resumo ou no “abstract”; 3.13 no texto (exceto do resumo ou no “abstract”) as referências devem ser citadas da seguinte forma: se o(s) autor(es) é (são) sujeito(s) do período ou da sentença. Exemplo: ... Carmo et al.(5) (no caso de três ou mais autores, sendo o (5) sobrescrito correspondente ao número da referência bibliográfica) e Bittencourt & Moreira(3) (no caso de dois autores, com o “&” comercial entre os mesmos, sendo o (3) sobrescrito também correspondente ao número da referência bibliográfica) reviram, recentemente, a literatura e assinalaram ... a(s) referência(s) bibliográfica(s) é(são) citada(s) conforme o número da referência bibliográfica. Exemplo: ... Em revisões recentes(3 5), foi assinalado a dispersão de pessoas com história da infecção, não obstante outros autores (2 4 11-16 25) avaliam isso como efeito da migração de pessoas ... (no caso, todos trabalhos foram citados pelo número da referência bibliográfica correspondente) 3.14 quando o formato do trabalho couber capítulo (e.g., artigo, conferência) não “quebrar a página” entre um capítulo e o seguinte. O texto deve ser contínuo; 3.15 figuras, gráficos, quadros, tabelas, etc., cada um destes elementos deve ficar em arquivo (CD) à parte e encaminhado, nas cópias impressas, na ordem de citação e após o capítulo referências bibliográficas. A GMBahia não aceita para publicação elementos coloridos (figuras, gráficos, etc.), mas, se houver indicação técnica, o autor deverá ressarcir as despesas adicionais com fotolitos e impressão; 3.16 figuras, gráficos, quadros, tabelas, etc., só serão aceitos se digitados ou reproduzidos nos seguintes formatos: BMP, TIFF, PICT, GIF, ou outro de fácil compatibilidade; 3.17 além das cópias impressas o autor responsável pela correspondência deve anexar CD, obrigatoriamente, com etiqueta especificando o conteúdo e o sobrenome do primeiro autor em destaque; 3.18 na etiqueta do CD, os arquivos devem ser nomeados da seguinte forma: 9 arquivo com o texto: sobrenome do primeiro autor[texto] 9 anexo(s): sobrenome do primeiro autor[tabela1] sobrenome do primeiro autor[tabela2] sobrenome do primeiro autor[quadro1] 3.19 antes de encaminhar as 4 (quatro) cópias impressas, exclua do CD todos os arquivos não relacionados ao trabalho encaminhado; 3.20 em todo o conteúdo, se for em língua portuguesa, os números decimais devem ser separados por vírgula (13,3%) e os milhares por ponto (1.000.504 pessoas), mas, se for em língua inglesa a mesma situação é inversa, respectivamente: 13.3% ou 1,000,504. 4. Itens de Cada Tipo de Trabalho 4.1 primeira página: títulos (em língua portuguesa e inglesa, ou vice-versa); nomes dos autores (com número sobrescrito para a correspondência institucional na nota de rodapé), resumo (na linha seguinte: palavras-chave) e “abstract” (na linha seguinte“key-words”). O número de palavras-chave (ou de “key-words”) deve ser no mínimo de três (3) e no máximo seis (6). Ainda na primeira página, citar um “short title” com até 40 toques (incluindo os espaços entre as palavras), em língua portuguesa ou, caso se aplique, espanhola e em inglesa. Primeiro o resumo, se o texto for em língua portuguesa, ou abstract, se na língua inglesa. Os nomes dos autores devem ser registrados, preferencialmente: prenome e último sobrenome, abreviando ou excluindo os nomes intermediários, exceto Filho, Neto, Sobrinho, etc. (e.g., Demétrio C. V. Tourinho Filho ou Demétrio Tourinho Filho); 4.2 nota de rodapé da primeira página: 1ª linha: vinculação institucional principal do(s) autor(es), antecedida pelo número de registro, citado sobrescrito após o nome de cada autor; cidade, abreviatura do Estado [e.g., 1. Faculdade de Medicina da Bahia da UFBA, Salvador, BA; 2. Hospital Geral do Estado (SESAB), Salvador, BA]. Não citar titulação, ocupação, cargo ou função; linha seguinte: Fonte (ou fontes) de financiamento, se houver; linha seguinte: Endereço para correspondência (em negrito e itálico): nome do autor responsável pela correspondência, endereço, CEP cidade, País. Telefone e/ou FAX. Exemplo: Dra. Magda Villanova, R. das Ciências 890 (Apto. 12), 40845-900 Salvador, BA, Brasil. Tel.: 55 71 789-0906; FAX: 55 71 789-6564; linha seguinte: endereço eletrônico (campo obrigatório, e com fontes de cor preta); linha seguinte: registrar a expressão: “Recebido para publicação em” (a data será registrada pela Secretaria da Revista); 4.3 o resumo e o “abstract” (correspondendo à tradução do primeiro), na primeira página, devem ter até 250 palavras, ou até 100 palavras se for comunicação, informe técnico ou outros formatos. O formato do resumo deve ser o narrativo, destacando objetivo(s), material(is) e método(s), local e população de estudo, principais resultados e conclusões (considerando os objetivos do trabalho). O resumo e “abstract” não devem conter citações bibliográficas ou abreviaturas (exceto se citar previamente) o nome ou expressão por extenso; 4.4 os artigos e as comunicações devem ter, respectivamente, até 20 (vinte) e dez (10) páginas impressas, incluindo as páginas correspondentes às figuras, tabelas, etc.; 4.5 os artigos têm os seguintes elementos: 4.5.1 primeira página, vide acima; 4.5.2 as páginas seguintes (no máximo três), correspondendo ao capítulo introdução (a palavra “introdução” não deve ser registrada), devem conter a delimitação da pergunta a ser estudada e as justificativas de forma objetiva; 4.5.3 capítulo subseqüente, MATERIAL E MÉTODOS, escritos de forma que o leitor tenha a exata compreensão de toda a metodologia e população estudada. Quando se aplicar (vide item 2), citar Comissão de Ética em Pesquisa (CEP) e número do Parecer que aprovou o projeto de pesquisa de onde se originou o artigo. As técnicas e métodos, já estabelecidos na literatura, devem ser descritos pela citação bibliográfica afim. Apenas se for estritamente necessário, este capítulo pode conter figura ou mapa, gráfico, quadro, tabela, etc. Caso se aplique, de forma objetiva, deve ser citado o plano da análise estatística; 4.5.4 capítulo subseqüente, RESULTADOS, escritos de forma clara e objetiva, sem interpretação de nenhum deles. O número de Tabelas, Figuras, Quadros, etc., deve ser o mais restrito possível e citados no texto pelo número arábico correspondente, da seguinte forma: “... na Tabela 2 as principais as alterações eletrocardiográficas foram associadas ao tipo de saída hospitalar do paciente ...” ou As principais alterações eletrocardiográficas foram associadas ao tipo de saída hospitalar do paciente (Tabela 2) ...”; 4.5.5 capítulo subseqüente, DISCUSSÃO, baseada na interpretação dos resultados observados (sem repeti-los em detalhes e sem a citação de tabelas, figuras, etc.), comparando-os com a bibliografia pertinente. As especulações, sugestões ou hipóteses devem ter como fundamentação os resultados observados; 4.5.6 capítulo, se couber, de AGRADECIMENTOS - citando, sumariamente, o nome completo da pessoa (instituição) e qual a real contribuição ao trabalho; 4.5.7. capítulo final, das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (as mesmas normas são aplicadas aos demais formatos de trabalhos). Não usar outros termos aparentemente equivalentes (Bibliografia, Referências, etc.). Devem ser ordenadas em rigorosa ordem alfabética, numeradas consecutivamente, e citando todos os co-autores – exceto se houver 25 ou mais co-autores, nesse caso cite os 24 primeiros seguidos da expressão latina et al. No texto (exceto se sujeito da sentença), tabelas e em legendas de ilustrações, as referências bibliográficas devem ser citadas por numerais arábicos e entre parênteses (1) ou (2 14 23). Só a letra primeira letra do sobrenome de cada autor deve ficar em maiúscula e as demais abreviaturas não devem ser seguidas por ponto ou ponto e vírgula entre os autores. Se houver mais de um trabalho do(s) mesmo(s) autor(es), a ordem dever ser cronológica, começando pelo mais antigo; 4.6 ainda sobre as Referências bibliográficas, use o estilo dos exemplos adiante descritos e que observam os formatos usados pela “National Library of Medicine” (NLM) no Index Medicus. Os títulos das revistas ou periódicos devem ser abreviados de acordo com a formatação oficial estabelecida no Index Medicus. Em caso de dúvida, consulte a Lista de Revistas Indexadas no Index Medicus (“List of Journals Indexed in Index Medicus”), publicada anualmente pela NLM em separado e também no número de janeiro de cada ano do Index Medicus, a qual pode ser obtida no endereço eletrônico http://www.nlm.nih.gov (ou mais especificamente no: http://www.nlm.nih.gov/ tsd/serials/terms_cond.html; depois “clique” sobre o formato de impressão desejado [“available formats”]); 4.6.1 o estilo dos requisitos uniformes (o estilo de Vancouver) baseia-se, amplamente, no estilo-padrão ANSI adaptado pela NLM para seus bancos de dados (e.g., MEDLINE). Nas modalidades de referências, nota foi incluída quando o estilo Vancouver difere do atualmente usado pela NLM; 4.6.2 modalidades de trabalhos a serem citados (alguns exemplos são fictícios): Artigo Almeida BS, Tavanni GHT, Silva YHU, Caldas HFT, Almeida Neto BS. Níveis de aminotransferases em escolares de Mendonça (SE), soronegativos para os vírus das hepatites B e C. Rev Soc Bras Med Trop 56: 34-39, 2001. Não citar número da revista ou periódico, só o volume. Tese, Dissertação, Monografia ou assemelhando Britto Netto AF. Distribuição espacial dos casos de sarampo no Nordeste brasileiro, de 1960 a 2002 [tese de Livre-Docência]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2003. Livro Carmo HF, Fonseca Filho TG, Melo-Silva TT. Antropologia médica: estudos afrobrasileiros. 5ª edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 302p., 2001. Capítulo de livro: Vinhais C. Conduta e tratamento: hipertensão arterial. In: Sardinha GTR, Romero MC (ed), Terapêutica clínica. 1ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 123-129, 2001. Resumo de trabalho científico apresentado em Evento Científico Araújo JS, Carneiro JN, Almeida BS, Tavanni GHT, Silva YHU, Caldas HFT, Almeida Neto BS. Esquistossomose mansônica na cidade do Salvador, Bahia. In: Resumos do XXII Simpósio Internacional de Medicina Tropical, 20 a 27 de setembro, Rio Branco, p. 87, 1999. Patente Larsen CE, Trip R, Johnson CR, inventors; Novoste Corporation, assignee. Methods for procedures related to the electrophysiology of the heart. US patent 5,529,067. Jun 25, 1995. Publicação extraído de período ou jornal popular Marconi TQ. Novo caso de raiva humana em Salvador. Jornal Clarin, Salvador, junho 21; Sect. A:3 (col. 5), 1999. Publicação audiovisual [videocassete] [DVD], [CD-ROM] etc. HIV+/AIDS: the facts and the future [videocassete]. St. Louis: Mosby-Year Book, 1995. Mapa (não parte de alguma publicação específica) Estado da Bahia. Distribuição dos casos de calazar [mapa demográfico]. Salvador: Secretaria de Estado de Saúde, Departamento de Epidemiologia, 2001. 4.6.2.1 publicação sem número ou volume: ... Curr Opin Gen Surg 32533, 1993. 4.6.2.2 paginação em numerais romanos: ... Hematol Oncol Clin North Am 9: xi-xii, 1995. 4.6.2.3 se carta (letter) ou resumo (abstract) em publicação periódica: Clement J, Fischer PA. Metronome in Parkinson’s disease [letter]. Lancet 347: 1337, 1996. Ou seja, colocar entre colchetes letter ou abstract. 4.6.2.4 publicação de erratum: Hamlin JA, Kahn AM. Herniography in symptomatic patients following inguinal hérnia repair [published erratum appears in West J Med 162: 278, 1995]. West J Med 162: 28-31, 1995. 4.6.2.5 publicação contendo retratação: Garey CE, Schwarzman AL, Rise ML, Seyfried TN. Ceruloplasmin gene ... [retraction of Garey CE, Schwarzman AL, Rise ML, Seyfried TN. In: Nat Genet 6: 426-31, 1994]. Nat Genet 11: 104, 1995. 4.6.2.6 publicação retratada: Liou GI, …, Matragoon S. Precocious IRBP gene ... [retracted in Invest Ophthalmol Vis Sci 35: 3127, 1994]. Invest Ophthalmol Vis Sci 35: 1083-8, 1994. 4.7 não incluir entre as referências bibliográficas: trabalhos submetidos e ainda não-aprovados; dados nãopublicados ou comunicação pessoal. Essas informações devem citadas no texto, do seguinte modo: “... foi observado em 44,5% dos casos a mesma lesão [Almeida Neto & Souza R em 20/11/2004: dados nãopublicados]” ou em caso de comunicação pessoal: “... o ajuste do aparelho X® (nome do fabricante, cidade) para a temperatura ambiente de 25°C, foi realizado do seguinte modo ... [Silva-Araújo J (FAMEB/UFBA), comunicação pessoal em 07/10/2003]”; 4.8 os quadros (fechados com linhas verticais nas laterais), figuras, gráficos e ou tabelas (sem linhas verticais) devem ter título objetivo, numeração com algarismo arábico e título [e.g. Tabela 4. Indicadores demográficos da população de Cavunge, Ipecaetá, Bahia (2001)]. A compreensão desses elementos deve independer da leitura do texto. Em caso de figura, deve ser numerada no verso e o título encaminhado em folha à parte. Caso a(s) figura(s) ou outro(s) elementos seja(m) colorido(s), o autor principal deve informar ao Editor da GMBahia a fonte de custeio dessa despesa; 5. Submissão do Trabalho Na carta ao Editor da GMBahia deve constar a assinatura de todos os autores do trabalho, mas, se isso não for possível anexar à correspondência cópia de FAX ou de mensagem eletrônica autorizando o(a) autor(a) responsável a apresentar o trabalho para publicação. Na correspondência devem constar as seguintes informações: título do trabalho; seção da GMBahia ou tipo de trabalho (se artigo, conferência, comunicação, ou outro tipo de apresentação); declaração que o trabalho está sendo submetido apenas à GMBahia; e a concordância de cessão dos direitos autorais para a GMBahia. Caso haja a utilização de figura, tabela, etc. publicada em outra fonte, deve-se anexar documento que ateste a permissão para seu uso em publicação cientifica. Nesse caso, o documento probatório deve constar nome, endereço, e-mail, telefone e fax do autor responsável ou do Editor da publicação original. Antes de submeter o trabalho, uma a uma das exigências deve ser revista pelo autor responsável para evitar a devolução ou a rejeição do trabalho pela Secretaria da GMBahia. Caso o trabalho seja entregue pessoalmente por um dos autores na Secretaria da GMBahia, o autor responsável deve trazer uma segunda via da carta de submissão para o devido registro de recebimento pela Secretaria. Não será aceito nenhum trabalho entregue por terceiros ou em locais não autorizados. O trabalho deve ser encaminhado, preferencialmente, através de correspondência registrada para o seguinte endereço: Gazeta Médica da Bahia Faculdade de Medicina da Bahia (UFBA) Largo do Terreiro de Jesus, Centro Histórico de Salvador 40025-010 Salvador, Bahia, Brasil