GAZET
GAZETAA MÉDICA DA BAHIA
A Gazeta Médica da Bahia (Gaz. méd. Bahia) [CDU: 616 051)], fundada em 1866, é o periódico oficial da Faculdade
de Medicina da Bahia (FAMEB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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da Gazeta Médica da Bahia, em atenção ao Editor, Prof.
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Bahia, Largo do Terreiro de Jesus (Salvador, BA,
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Reitor
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FACULDADE DE MEDICINA DABAHIA
Diretor
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Vice-diretor
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Substituto Eventual do Vice-Diretor
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Representante no CONSEPE
Fernando Carvalho
Secretários
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Colegiado do Curso de Graduação em Medicina
Coordenador
Mário Castro Carneiro
Vice-Coordenador
Sumaia Boaventura André
Colegiado do Programa de Pós-graduação em Medicina e Saúde
Coordenador
Antonio Alberto da Silva Lopes
Vice-Coordenadora
Helma P. Cotrim
Colegiado do Programa de Pós-graduação em Patologia Humana e Experimental
(em convênio com o Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz, FIOCRUZ, Bahia)
Coordenadora
Aldina Maria Prado Barral
Vice-Coordenadora
Fabíola Cardillo (CPqGM/FIOCRUZ)
Colegiado do Curso de Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho
Coordenador
Fernando Martins Carvalho
Vice-Coordenador
Marco Antônio Vasconcelos Rego
DEPARTAMENTOS
Anatomia Patológica e Medicina Legal
Chefe
Vice-Chefe
Apoio Diagnóstico e Terapêutico
Chefe
Vice-Chefe
Cirurgia
Chefe
Vice-Chefe
Ginecologia, Obstetrícia e Reprodução Humana
Chefe
Vice-Chefe
Medicina
Chefe
Vice-Chefe
Medicina Preventiva
Chefe
Vice-Chefe
Neuropsiquiatria
Chefe
Vice-Chefe
Pediatria
Chefe
Vice-Chefe
Iguaracyra Barreto de Oliveira Araújo
Luiz Antônio Rodrigues Freitas
Marcelo Benício dos Santos
Luiz Erlon Araújo Rodrigues
Jehorvan Lisboa Carvalho
Gildásio de Cerqueira Daltro
Antonio Carlos Vieira Lopes
Conceição Maria Passos de Queiroz
Albino Eduardo Machado Novaes
Vera Formigli
Marco Antonio Vasconcelos Rego
Vitória Eugênia Ottoni de Carvalho
Domingos Macedo Coutinho
Déa Mascarenhas Cardozo
Angelina Xavier Acosta
ADMINISTRAÇÃO DO PAVILHÃO DE AULAS DA FAMEB (campus Canela)
Sônia Felzemburg
DIRETÓRIOACADÊMICO DE MEDICINA(DAMED)
Coordenador
Luamorena Leoni
PROFESSORES TITULARES E EMÉRITOS DA
FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA
TITULARES
EMÉRITOSa
Edgar Marcelino de Carvalho Filho
Fernando Martins Carvalho
Irismar Reis de Oliveira
Lícia Maria Oliveira Moreira
Luciana Rodrigues Silva
Luiz Erlon Araújo Rodrigues
Luiz Guilherme da Costa Lyra
Marcelo Benício dos Santos
Manoel Barral-Netto
Oddone Braghiroli Neto
Reinaldo Pessôa Martinelli
Roberto Lorens Marback
Zilton de Araújo Andrade
Aluízio Prata
Adilson Peixoto Sampaio
Rodolfo dos Santos Teixeira
Eliane Azevêdo
Nelson Barros
Orlando Figueira Sales
Gilberto Rebouças
Elsimar Coutinhob
Roberto Santosb
Armênio Guimarãesb
a
b
Na ordem de concessão do título pela Congregação.
Ainda não aprovado pelo Conselho Universitário da UFBA.
DIRETORES DA FFAACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA
1808 – 1828
1829 – 1833
1832
1833 – 1836
1836 – 1844
1844 – 1855
1855 – 1857
1857 – 1871
1871 – 1874
1874 – 1881
1881 – 1886
1886 – 1891
1891 – 1895
1895 – 1898
1898 – 1901
1901 – 1908
1908 – 1912
1913 – 1914
1915 – 1930
1931 – 1932
COLEGIO MÉDICO-CIRÚRGICO DA
BAHIA (sem nomeação de Diretores
pelo Governo Imperial)
Jozé Avellino Barboza
Lei de 03 de Outubro de 1832, da
Regência Trina, em nome do Imperador
D. Pedro II, altera a denominação para
Faculdade de Medicina da Bahia
Jozé Lino Coutinho
Francisco de Paula Araujo e Almeida
João Francisco de Almeida
Jonathas Abbott*
João Baptista dos Anjos
Vicente Ferreira de Magalhães*
Antonio Januario e Faria
Francisco Rodrigues da Silva
Ramiro Affonso Monteiro
Antonio Cerqueira Pinto
Antonio Pacifico Pereira
José Olimpio de Azevedo
Alfredo Thomé de Britto
Augusto Cezar Vianna
Deocleciano Ramos
Augusto Cezar Vianna
Aristidis Novis
1932 – 1933
1933 – 1936
1936 – 1946
1946 – 1950
1950
1950 – 1953
1953 – 1955
1955 – 1960
1960 – 1962
1962 – 1965
1965 – 1968
1968 – 1972
1973 – 1977
1977 – 1980
1980 – 1984
1984 – 1988
1988 – 1992
1992 – 1996
1996 – 2000
2000
2000 – 2003
2003
2003 –
(*) Diretor Interino
Augusto Cezar Vianna
José de Aguiar Costa Pinto
Edgard Rego Santos
José Olympio da Silva*
Francisco Peixoto de Magalhães Neto*
Eduardo Lins Ferreira Araujo*
Hosannah de Oliveira*
Rodrigo Bulcão D’Argollo Ferrão
Benjamim da Rocha Salles
Carlos Geraldo de Oliveira
Jorge Augusto Novis
Rodrigo Bulcão D’Argolo Ferrão
Renato Tourinho Dantas
Plínio Garcez de Senna
Newton Alves Guimarães
José Maria de Magalhães Netto
Heonir de Jesus Pereira Rocha
Thomaz Rodrigues Porto da Cruz
José Antonio de Almeida Souza
Fernando M. Carvalho*
Manoel Barral-Netto
Orlando Figueira Sales*
José Tavares Carneiro Neto
CORPO DOCENTE DA FFAACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA,
SEGUNDO A UNIDADE DEP
AR
AL
AMENTAL
DEPAR
ARTTAMENT
DEPARTAMENTO DE ANATOMIA PATOLÓGICA E
MEDICINALEGAL
ƒ Aldina Maria Prado Barral
ƒ Amélia Maria Ribeiro de Jesus
ƒ Antonio Nery Alves Filho
ƒ Aristides Chetto de Queiroz
ƒ Daysi Maria de Alcantara Jones
ƒ Eduardo Antonio Gonçalves Ramos
ƒ Eduardo José Bittencourt Studart
ƒ Helenemarie Schaer Barbosa
ƒ Iguaracyra Barreto de Oliveira Araújo
ƒ José Américo Seixas Silva
ƒ Luciano Espinheira Fonseca Junior
ƒ Luis Carlos Cavalcante Galvão
ƒ Luiz Antonio Rodrigues de Freitas
ƒ Manoel Barral-Netto
ƒ Marco Antonio Cardoso de Almeida
ƒ Mitermayer Galvão dos Reis
ƒ Moysés Sadigursky
ƒ Paulo Roberto Fontes Athanazio
ƒ Raul Coelho Barreto Filho
ƒ Renée Amorim dos Santos
DEPARTAMENTO DE APOIO DIAGNÓSTICO E
TERAPÊUTICO
ƒ Cesar Augusto de Araújo Neto
ƒ Hélio Braga
ƒ Luiz Erlon Araújo Rodrigues
ƒ Marcelo Benício dos Santos
ƒ Rosa Vianna Dias da Silva Brim
DEPARTAMENTO DE CIRURGIA
ƒ Agnaldo da Silva Fonseca
ƒ Alfredo Rogério Carneiro Lopes
ƒ André Barbosa Castelo Branco
ƒ André Ney Menezes Freire
ƒ Antonio Argolo Sampaio Filho
ƒ Antonio Francisco Junquilho Vinhaes
ƒ Antonio Gilson Lapa Godinho
ƒ Antonio Marcos Ferracini
ƒ Antonio Natalino Manta Dantas
ƒ Carlos Alberto Paes Alves
ƒ Cicero Fidelis Lopes
ƒ Clotario Neptali Carrasco Cueva
ƒ Danilo Cruz Sento Sé
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Durval Campos Kraychete
Ediriomar Peixoto Matos
Edson Bastos Freitas
Edvaldo Fahel
Epaminondas Castelo Branco Neto
Gervásio Batista Campos
Gildásio de Cerqueira Daltro
Heitor Carvalho Guimarães
Hélio Andrade Lessa
Jayme Victal dos Santos Souza
Jehorvan Lisboa Carvalho
Jorge Luiz Andrade Bastos
José Luiz Coelho
José Neiva Eulálio
José Siqueira de Araújo Filho
José Valber Lima Menezes
Juarez Araujo Andrade
Juvenal Mascarenhas Nassari
Leandro Publio da Silva Leite
Luciano Santos Garrido
Luiz Schiper
Maria de Lourdes Lima Falcão
Mário Castro Carreiro
Mário Cesar Santos de Abreu
Modesto Antonio de Oliveira Jacobino
Nilo Cesar Leão Barreto de Souza
Nilson Ferreira Gomes
Normand Araujo Moura
Oddone Braghirolli Neto
Osório José de Oliveira Filho
Paulo Afonso Batista dos Santos
Paulo André Jesuíno dos Santos
Pedro Hamilton Guimarães Macedo
René Mariano de Almeida
Roberto Lorens Marback
Venceslau dos Reis Souza Silva
Vilson Ulian
Virginia Emilia Café Cardoso Pinto
Vitor Lucio Oliveira Alves
Wellington Alves Cavalcante
DEPARTAMENTO DE GINECOLOGIA, OBSTETRÍCIA e
REPRODUÇÃO HUMANA
ƒ Antonio Carlos Vieira Lopes
ƒ Carlos Augusto Santos de Menezes
ƒ Conceição Maria Passos de Queiroz
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Denise dos Santos Barata
Edson O’Dwyers Júnior
Fortunato Trindade
Hilton Pina
Hugo da Silva Maia Filho
Ione Cristina Barbosa
Jorge Luiz Sapucaia Calabrich
Maria da Purificação Paim Oliveira Burgos
Maria Teresa Rebouças Gonçalves de Azevedo
Nélia Maria Dourado Lima Barreto
Nilma Antas Neves
Olivia Lucia Nunes Costa
Vera Lucia Rodrigues Lobo
DEPARTAMENTO DE MEDICINA
ƒ Albino Eduardo Machado Novaes
ƒ Alcina Maria Vinhaes Bittencourt
ƒ Alvaro Augusto Souza da Cruz Filho
ƒ Ana Cláudia Rebouças Ramalho
ƒ André Castro Lyra
ƒ André Luiz Peixinho
ƒ André Vila Serra
ƒ Antonio Alberto da Silva Lopes
ƒ Antonio Carlos Moreira Lemos
ƒ Antonio Raimundo Pinto de Almeida
ƒ Argemiro D’Oliveira Junior
ƒ Carlos Roberto Brites Alves
ƒ Edgar Marcelino de Carvalho Filho
ƒ Edilton Costa e Silva
ƒ Edmundo José Nassari Câmara
ƒ Eleonora Lima Peixinho
ƒ Elvira Barbosa Quadros Cortes
ƒ Fernando Antonio Glasner da Rocha Araújo
ƒ Francisco Hora de Oliveira Fontes
ƒ George Barreto de Oliveira
ƒ Gilvandro de Almeida Rosa
ƒ Helma Pinchemel Cotrim
ƒ Igelmar Barreto Paes
ƒ Iraci Lucia Costa Oliveira
ƒ Jackson Noya Costa Lima
ƒ Jacy Amaral Freire de Andrade
ƒ Jorge Carvalho Guedes
ƒ Jorge Luiz Pereira e Silva
ƒ José Alberto Martins da Matta
ƒ José Antonio de Almeida Souza
ƒ José Tavares Carneiro Neto
ƒ Leila Maria Batista Araújo
ƒ Lísia Marcílio Rabelo
ƒ Luis Guilherme Costa Lyra
ƒ Luiz Carlos Santana Passos
ƒ Margarida Célia Lima Costa Neves
ƒ Margarida Maria Dantas Dutra
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Maria da Glória Mota Bonfim
Maria das Dores Acioli de Lima
Maria Ermecília Almeida Melo
Maria Georgina Barbosa
Maria Margarida dos Santos Britto
Maria Zenaide Gonzaga
Murilo Pedreira Neves Júnior
Newton Sales Guimarães
Octavio Henrique Messeder
Raymundo Paraná Ferreira Filho
Regis de Albuquerque Campos
Reinaldo Pessôa Martinelli
Roberto José da Silva Badaró
Romário Teixeira Braga Filho
Roque Aras Júnior
Roque Pacheco de Almeida
Tania Morais Regis
Tarcisio Matos de Andrade
Thomaz Rodrigues Porto da Cruz
Vitória Regina Pedreira de Almeida
DEPARTAMENTO DE MEDICINAPREVENTIVA
ƒ Annibal Muniz Silvany Neto
ƒ Eduardo José Farias Borges dos Reis
ƒ Fernando Martins Carvalho
ƒ Lorene Louise Silva Pinto
ƒ Marco Antônio Vasconcelos Rêgo
ƒ Mônica Angelim Gomes de Lima
ƒ Paulo Gilvane Lopes Pena
ƒ Rita de Cássia Franco Rêgo
ƒ Ronaldo Ribeiro Jacobina
ƒ Sumaia Boaventura André
ƒ Vera Lucia Almeida Formigli
DEPARTAMENTO DE NEUROPSIQUIATRIA
ƒ Ailton de Souza Melo
ƒ Ângela Marisa de Aquino Miranda Scippa
ƒ Antonio Fernando Bermudez Dreyer
ƒ Antonio Reinaldo Rabelo
ƒ Antonio de Souza Andrade Filho
ƒ Arlúcia de Andrade Fauth
ƒ Carlos Antonio Ferrreira Teixeira
ƒ Célia Nunes Silva
ƒ Domingos Macedo Coutinho
ƒ Irismar Reis de Oliveira
ƒ José Cortes Rolemberg Filho
ƒ José Marcos Pondé Fraga Lima
ƒ Mario Ernani Ancilon Cavalcanti
ƒ Miriam Elza Gorender Magalhães
ƒ Rita de Cássia Saldanha de Lucena
ƒ Roberto Miguel Correia da Silva
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
Rosa Garcia Lima
Vitoria Eugênia Ottoni de Carvalho
Waldeck Barreto D’Almeida
Wania Marcia Aguiar
William Azevedo Dunninghan
DEPARTAMENTO DE PEDIATRIA
ƒ Angela Peixoto de Mattos
ƒ Angelina Xavier Acosta
ƒ Crésio de Aragao Dantas Alves
ƒ Cristiana Maria Costa Nascimento de Carvalho
ƒ Déa Mascarenhas Cardozo
ƒ Dulce Emilia Moreira C. Garcia
ƒ Edilson Bittencourt Martins
ƒ Edna Lucia Santos de Souza
ƒ Hagamenon Rodrigues da Silva
ƒ Hugo da Costa Ribeiro Junior
ƒ Isabel Carmen Fontes da Fonseca
ƒ Lara de Araújo Torreão
ƒ Licia Maria Oliveira Moreira
ƒ Luciana Rodrigues Silva
ƒ Luís Fernando Fernandes Adan
ƒ Luiza Amélia Cabus Moreira
ƒ Maria Betânia Pereira Toralles
ƒ Maria do Socorro Heitz Fontoura
ƒ Nadya Maria Bustani Carneiro
ƒ Silvana Fahel da Fonseca
ƒ Solange Tavares Rubim de Pinho
ƒ Suzy Santana Cavalcante
ƒ Vanda Maria Mota de Miranda
GAZET
GAZETAA MÉDICA DA BAHIA
Volume 76 • Suplemento 2
ISSN 0016-545X
Dezembro 2006
SUMÁRIO/CONTENTS
Editorial
A Genialidade e Contemporaneidade de Nina Rodrigues .......................................................................... 1
Antonio Carlos Nogueira Britto
Artigos
Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro ................................................................................................ 3
Maria Theresa de Medeiros Pacheco
Nina Rodrigues, Psiquiatra: Contribuições de Nina Rodrigues nos
Campos da Psiquiatria Clínica, Forense e Social ..................................................................................... 11
Ronaldo Ribeiro Jacobina
Nina Rodrigues e a Constituição do Campo da História da Arte Negra no Brasil ..................................... 23
Marcelo N. Bernardo, Eliane Nunes, Juipurema A. Sarraf Sandes
Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia ............................................................................................. 29
Jaime Sodré
Raymundo Nina Rodrigues: Resgate da Memória na Documentação
Arquivística da Faculdade de Medicina da Bahia .................................................................................... 35
Zeny Duarte, Teresa Coelho, Ademir Silva, Lúcio Farias, Victor Souza, Jeane Almeida, Ana Araújo, Lázaro Castro, Aline
Carvalho
A Psicologia no Tempo de Nina Rodrigues ............................................................................................. 42
Nádia M.D. Rocha, Bianca Lepikson, Maria M. Brandão
Quando a Desigualdade é Diferença: Reflexões sobre
Antropologia Criminal e Mestiçagem na Obra de Nina Rodrigues ........................................................... 47
Lilia Katri Moritz Schwarcz
Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás .................................................................................................. 54
Sergio F. Ferretti
Resenha Bibliográgica
Os Livros Esquecidos de Nina Rodrigues ............................................................................................... 60
Mariza Corrêa
Nota Histórica
A Faculdade de Medicina da Bahia na Época de Nina Rodrigues ........................................................... 63
Antonio Carlos Nogueira Britto
Normas para Publicação
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S1-S2
1
EDITORIAL
A GENIALIDADE E A CONTEMPORANEIDADE DE NINA RODRIGUES
Era um moço preparatoriano, de olhos melancólicos e de estatura pouca vigorosa e aparência hipoteticamente lívida e que
teve berço em Vargem Grande, na província do Maranhão, a quatro de dezembro de mil oitocentos e sessenta e dois, sendo
batizado com o nome de Raymundo Nina Rodrigues e que havia, nesta cidade da Bahia, desembarcado do vapor “Bahia”,
procedente dos portos do Norte, a 9 de março de 1882. No dia seguinte, pela manhã, já se encontrava na secretaria da Faculdade
de Medicina da Bahia, passando às mãos do amanuense requerimento ao diretor da Faculdade, Conselheiro Francisco Rodrigues
da Silva - (1830-1886) – solicitando fosse matriculado no 1.º ano do curso médico da dita instituição de ensino de Medicina,
petição referendada pelo diretor Cons. Rodrigues, em data de 15 de março de 1882.
Jamais poderia imaginar aquele estudante maranhense, dotado de incomum intelecto e ávido em cultivar a inteligência e a
metódica pesquisa científica, eminentemente prática, que, volvida uma centúria da sua morte, aos 43 anos de idade, hodiernos
médicos legistas, criminalistas, psiquiatras, psicólogos, legisladores, patologistas, sexólogos, antropólogos, deontólogos, juristas,
etnólogos, sociólogos, africanistas, folcloristas e museólogos, do Brasil e de outros países, fossem movidos, plenos de entusiasmo
e inexcedível fascínio herdados dos ensinamentos do sábio do Maranhão, a realizarem trabalhos de pesquisas, colóquios,
congressos e eventos outros e publicarem trabalhos em derredor dos conceitos esposados por Nina Rodrigues, mormente sobre
as suas teses relativas à Medicina Legal, e teorias respeitantes às definições raciais e concernentes à Medicina Judiciária,
criminologia e moléstias da época do emérito cientista. Pesquisas foram levadas a efeito por eminentes estudiosos em etnografias
e religiões afro-brasileiras e mestiçagem e rituais religiosos dos yorubás e de variadas etnias de crenças fascinantes, ocultas e
obscuras, da mãe África e sua liturgia, sua arte religiosa e mitologia, detendo-se, ademais, nos fenômenos de transe espírita,
delírios hipnóticos e histeria da raça negra.
Desde a sua graduação em Medicina, no Rio de Janeiro, quando sustentou tese inaugural intitulada “Das amyotrophias de
origem peripherica”, em fevereiro de 1888, tornou-se respeitado e admirado pelos seus coevos. Reverenciado e polêmico na
Bahia, nos tempos de antanho e nos dias atuais, em todo o Brasil e no Exterior - que o digam os seus egrégios pares de
Congregação, que não permitiram a publicação da sempre atual memória histórica, de sua lavra, referente ao ano de 1896, quando
exarava acerbas e verossímeis críticas ao ensino prático e clínico do sobredito ano na Faculdade de Medicina e de Farmácia da
Bahia. Por outro lado, são assaz conhecidas as manifestações de apreciação, consideração e respeito por Nina Rodrigues
patenteadas por homens de ciências de países outros, como os Profs. Drs. Paul Camille Hypolite Brouardel, Césare Lombroso e
Alexandre Lacassagne, tendo Nina mantido controvérsias científicas com os dois últimos. Além do mais, eminentes professores
brasileiros de Higiene, Medicina Legal, Química Médica e Direito por ele moldados, influenciados e animados e que foram
luzeiros, pelo Brasil afora, das doutrinas do afamado gênio maranhense, v.g., na Bahia, em Medicina Legal, e na reverenciada
“Escola de Nina Rodrigues” ou “Escola de Medicina Legal da Bahia”: Afrânio Peixoto, Oscar Freire de Carvalho, Estácio de Lima,
Maria Theresa de Medeiros Pacheco e Lamartine de Andrade Lima.
Publicou ativamente suas extraordinárias obras na Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia; fundou a
Sociedade de Medicina Legal, em 1895, além de um periódico, Revista Médico-Legal da Bahia e foi redator-gerente da Gazeta
Médica da Bahia durante muitos anos.
Em despacho manuscrito, datado de 09 de agosto de 2005, endereçado ao Dr. Lamartine de Andrade Lima e a mim, o Prof. Dr.
José Tavares-Neto, digno e dinâmico diretor da provecta e estóica Faculdade de Medicina da Bahia, da Universidade Federal da
Bahia, no largo do Terreiro de Jesus, indagou-nos: “Vamos planejar o Ano “Nina Rodrigues” em 2006?” E, mais adiante,
acrescentou: “Isso foi pensado após conversa com o Prof. Lamartine” e ofereceu os seus préstimos para “publicar um suplemento
da Gazeta com alguns trabalhos sobre o Prof. Nina Rodrigues e, por ser muito atual, sua Memória sobre a Faculdade de 1897.”
2
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S1-S2
Graças ao idealismo do Prof. Dr. José Tavares-Neto§, que tornou a ressuscitar a histórica e respeitável Gazeta Médica da
Bahia, fundada em 1866, e da qual é editor, historiadores, legistas, antropólogos, criminalistas, museólogos e africanistas
prestam, por meio de artigos de qualidade de excelentes, um sentido e solene tributo de respeito e admiração a Nina Rodrigues
e a suas obras imortais, no azo da celebração do centenário do seu falecimento.
Destarte, a hodierna e belíssima Gazeta Médica da Bahia, a qual Nina tanto reverenciava e tornava público seus artigos e
que permanece esplendorosamente rediviva e com publicação rigorosamente pontual e edição e apresentação primorosas, traz
a lume, em Suplemento, artigos elaborados aqui em Salvador e alhures em derredor da personalidade sedutora do Prof. Dr.
Raymundo Nina Rodrigues e de suas obras singulares e sempre atuais.
Por outro lado, o Dr. Lamartine de Andrade Lima, legista de escol, mentor intelectual, na Bahia, de parte dos eventos que
fazem recordar o centenário do desaparecimento de Nina, e fiel seguidor das suas idéias e ideais e “expert” na existência
prestante daquele notável cientista e nas obras valiosas de sua lavra, teve a feliz iniciativa de convidar o ilustre editor da
encantadora e prestigiosa revista científica Prova Material, Dr. Luís Eduardo Carvalho Dorea, jornalista, conceituado perito
criminalístico e diretor geral do Departamento de Polícia Técnica da Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia, ao qual
está subordinado, técnica e administrativamente, o Instituto Médico Legal “Nina Rodrigues”, para se associar à Gazeta Médica
da Bahia com o escopo de ambos os afamados jornais médico-científicos celebrarem, unidos, a centúria de falecimento de Nina
Rodrigues, editando artigos da lavra dos mais notáveis estudiosos sobre as obras daquele sábio. Para tanto, em reunião sobre
o tema, ocorrida no gabinete do diretor da Faculdade, a mim foi conferida a subida honra e as azáfamas e grande afã de organizar
as edições especiais dos dois periódicos.
Cotejados os trabalhos à criteriosa apreciação à luz das precisas normas para publicação, e sendo aceitos, serão os artigos
compartilhados entre ambas as publicações científicas e editadas e distribuídas em datas mais adequadas para os editores, para
gáudio e enriquecimento da comunidade científica nacional.
Antonio Carlos Nogueira Britto
Editor Convidado – Guest Editor
Presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins
Salvador, Bahia, Brasil
§
Em 2005, a Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) aprovou, como parte dos
preparativos do Bicentenário da FAMEB - a ocorrer em 18 de Fevereiro de 2008 -, que o Memorialista do período de 1997 a 2007 será a Professora
Emérita Dra. Eliane S. Azevêdo. Com esse propósito, carece que toda a Comunidade da FAMEB e da UFBA procure encaminhar à Sra. Memorialista
([email protected]) informações e relatórios para que a mesma melhor conte a história da última década do Bicentenário.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10
Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro
3
Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro
Nina Rodrigues and the Brazilian Civil Law
Maria Theresa de Medeiros Pacheco
Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, Salvador, Bahia, Brasil
O Alienado no Direito Civil Brasileiro: O Professor Nina Rodrigues comentou em
“Apontamentos”, o Projeto Clovis Bevilaqua para o Código Civil Brasileiro. Dividiu a matéria em
quatro capítulos: I) As condições da insanidade mental, II) A incapacidade civil nos estados de
desordem mental, III) A interdição dos Alienados, IV) A proteção legal para o alienado, terminando
pela exigência da perícia médico-forense para o doente mental e as circunstancias que o envolvem
no Brasil como um correto caminho de preparação para um Código Civil.
Palavras-chave: Código Civil Brasileiro, doenças mentais, Psiquiatria Forense.
The alienated in Brazilian Civil Law: Professor Nina Rodrigues commented in “Apontamentos”,
Clovis Bevilaqüa project for the Brazilian Civil Code. The subject matter was divided into four
chapters: I) The conditions of mental insanity, II) The civil inability in the States of mental
disorders, III) The interdiction of the alienated, IV) Legal protection for the alienated, terminating
in the study of medical examination in forensic psychiatry: Reforms that have been requested in
Brazil, a way of preparing it in the civil code.
Key-words: Brazilian Civil Code, Mental Diseases, Forensic Psychiatric.
Na página seguinte, obedecendo à representação gráfica
do início do século XX, 1901, a autora deste comentário
analisa, com reproduções de alguns textos originais, a notável
contribuição do Prof. Raymundo Nina Rodrigues ao Projeto
Clovis Bevilaqüa.
Na ADVERTÊNCIA que antecede a ilustrada e cuidadosa
exposição do Mestre Nina, comenta ele, com justo critério,
as referências e transcrições efetuadas sobre o Projeto,
preocupado com a “rigorosa fidelidade nas citações” e
também pelo receio que “da tradução de traduções, pudesse
originar graves adulterações do pensamento do autor do
Projeto”.
Desse modo, Nina Rodrigues transcreveu, no idioma dos
tradutores, o que os vários Códigos informavam e que não
conseguiu ele verificar nas leis originais. Aconteceu, assim,
com o Código Civil alemão, que foi consultado através do
Code Civil allemand et loi d’introduction, Paris, 1987, de Raoul
de la Grasserie; para o Código Civil do Japão foi pesquisado
Recebido em 2/9/2006
Aceito em 10/12/2006
Endereço para correspondência: Dra. Maria Theresa de
Medeiros Pacheco, Av. Princesa Isabel, 709, Edf. Marseille,
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Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):3-10.
© 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.
o Code Civil de L’Empire du Japon, Paris, 1898, de Motono e
Tomii; para a consulta ao Código Espanhol foi utilizado o
Code Civil Espagnol, Paris, 1890, de A. Leve; nas verificações
ao Código holandês, valeu-se o autor do Les Codes
Nerlandais, Paris, 1886, de G. Tripels; no estudo dos Códigos
da Áustria e da Luziania foi apreciada a Concordance entre
les codes civiles étrangers et le code français, Bruscelles,
1842, de Saint-Joseph.
Julgamos da maior importância as informações precedentes
para um mais elevado juízo do criterioso trabalho científico
elaborado pelo autor dos Apontamentos – Nina Rodrigues –
estudando Clovis Bevilaqüa.
Á INTRODUÇÃO que aparece como se fora prefácio ao
exame do Projeto Bevilaqüa, Nina Rodrigues se congratula
com os governos pela iniciativa de consultarem as
corporações e pessoas ligadas ao exercício das perícias, a
interpretação das leis, ao estudo da relação – comportamento
humano e leis, dando condições de discussão ampla sobre o
assunto. Na qualidade de médico legista e Professor de
Medicina Legal, sentiu-se o autor a cumprir o dever de ofício
de contribuir para a dotação, o mais correta possível, de um
código civil brasileiro, analisando Bevilaqüa.
Naquele ano de 1901, o Professor Nina Rodrigues, no curso
letivo que professara aos seus alunos de Medicina Legal, já
comentava com proficiência o Projeto de Código Civil
Brasileiro, do Dr. Bevilaqüa, e relembrava a importância de um
Código Civil, conforme aludia Teixeira de Freitas: “o essencial
4
Maria Theresa de Medeiros Pacheco
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10
Nota do Editor: reprodução do documento original com a assinatura do ilustre Diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, de 1901 a 1908, o
Professor Alfredo Thomé de Britto, também concunhado de Nina Rodrigues.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10
Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro
na construção de um Código é que cada um o faça em boa fé,
que não procure exceder-se, que não se esforce em vão por
parecer o que não for”. Refere, ainda, a informação de um
colega e amigo, Francisco da Veyga, professor de Medicina
Legal da Faculdade de Medicina de Buenos Aires, que se
queixava do Código Civil Argentino, onde o desconhecimento
da Medicina Legal era patente. Em Clóvis Bevilaqüa,
entretanto, a Medicina Legal ocupava alguma parte de seu
conteúdo, embora apresentasse grandes falhas que se
acentuaram com a revisão efetuada por uma comissão especial
de cultores das lei habituados e familiarizados com o Direito,
porém, distantes dos conhecimentos da biologia, assim, da
Medicina.
Nina Rodrigues, ao estudar e considerar o Projeto
Bevilaqüa, fê-lo particularmente, e estendeu a apreciação a
partir da legislação utilizada em nosso país, mas, também aos
diversos projetos de códigos como aqueles do Dr. Coelho
Rodrigues, o projeto Felício dos Santos e o Esboço de Teixeira
de Freitas, a todos apontando-lhes omissões, uma das
principais: a ausência da psiquiatria forense no direito civil
brasileiro.
No índice que resume sua vastíssima colaboração a que
chamou, humildemente, de Apontamentos, Nina Rodrigues
esquematizou seu trabalho, dividindo o assunto em quatro
capítulos que perfizeram 267 páginas bem elaboradas, bem
descritas, repletas de citações em muitos idiomas.
CAPÍTULO PRIMEIRO
ÍNDICE
1. Os Estados de insanidade mental
I. Definição ou enumeração legal dos estados de insanidade
mental que excluem ou restringem a capacidade civil:
Insanidade permanente ou duradoura e insanidade
transitória.
II. Os estados de insanidade mental permanente; loucura.
III. A definição do Projeto Bevilaqüa.
IV. Afasia; surdo, mudez.
V. Embriaguez habitual.
VI. Prodigalidade e jogo inveterado.
VII. Fraqueza mental senil.
VIII. A insanidade mental transitória no Projeto Bevilaqüa.
IX. Modificações propostas ao Projeto.
5
X. A insanidade mental nas Ordenações, no Esboço de
Teixeira de Freitas, e nos projetos Felício dos Santos e
Coelho Rodrigues.
OS ESTADOS DE INSANIDADE MENTAL
ESTADOS MÓRBIDOS
Notável é o comentário inicial, pleno de esclarecimentos
científicos que fez o Professor Nina Rodrigues em relação aos
Códigos e os portadores de doenças mentais, a classificação
e a conceituação frente à capacidade civil dos indivíduos.
Haveria que distinguir, de logo, as patologias mentais que
afetassem realmente a capacidade civil das pessoas. Difícil,
entretanto, à oportunidade, chegar a bom termo, com os parcos
conhecimentos da distinção entre “doenças mentais ou
cerebrais como a loucura e a afasia; ou de invalidez mental
como a imbecilidade, a idiotia, a surdo-mudez; ou de simples
anormalidade psíquica, como os estados sonambúlicos e
hipnóticos, as paixões, a embriaguez, etc., ou mesmo
condições psicológicas especiais como a involução senil. A
insuficiência mental para o exercício dos direitos civis é um
efeito, uma conseqüência de causas múltiplas, que não podem
entrar numa família natural ou constituí-la”. São apreciações
do Mestre Nina, ao pé da letra, em seus célebres apontamentos
que ora estudamos.
Assim, dificílima para a redação dos Códigos, assinalar,
ao alvitre dos legisladores, quando estaria o individuo
incapacitado legalmente para exercer sua cidadania, qualquer
que fosse sua causa psíquica.
Informa o Mestre haver encontrado no Código Alemão a
especificação casuística dos estados de insanidade mental,
distinguindo a moléstia ou alienação mental, a fraqueza
intelectual, a prodigalidade, a embriaguez habitual, os estados
de inconsciência ou de perturbações momentâneas da
atividade do espírito.
Foi a grande dificuldade para a conceituação jurídica da
loucura e sua relação aos Códigos vigentes, à época, assim o
Processo permaneceu inconcludente por muitas décadas, em
diferente significação médica ou judiciária, ou melhor, ausentes
às interpretações científica ou jurídica.
O Projeto Clóvis Bevilaqüa, na visão de Nina Rodrigues,
seguiu os postulados emanados do Esboço do Código Civil
de Teixeira de Freitas que desconhecia quase completamente
a psiquiatria forense; é que Teixeira de Freitas tomou como
modelo as classificações de Pinel e de Esquirol, já
abandonadas, e até mal copiadas ou mal compreendidas
(Estudios Médicos-Legales sobre el Código Civil Argentino.
Buenos Aires, 1900, p. 267).
O projeto Clóvis Bevilaqüa classificou os estados de
insanidade mental em três nosologias, a saber: moléstias
mentais, surdo-mudez e perturbações mentais transitórias.
Utilizou o termo alienado do Esboço do Projeto Teixeira de
6
Maria Theresa de Medeiros Pacheco
Freitas(1) para referência às moléstias mentais, estendendo a
expressão para alienados de qualquer espécie, ao que a
comissão revisora preferiu o epíteto “loucos de todo o gênero”
da consolidação das Leis Civis, advindas do Código Penal de
1830.
Nina Rodrigues opõe-se a expressão “loucos de todo o
gênero”, acompanhando e citando o pensamento
transformado em letra do ilustre jurisconsulto Tobias Barreto:
“Os loucos de todo gênero, a soma de todos eles é sempre
inferior ao total dos que são irresponsáveis em conseqüência
desse desarranjo (na economia psíquica) e daí podem resultar,
como de fato tem resultado, não poucas injustiças no exercício
da penalidade”(2).
Comentários da mais alta capacidade e amplitude oferece
Nina Rodrigues sobre a expressão alienação mental cuja origem
está na Lei de 1838, do Código Francês, embora Pinel e Esquirol
já a empregaram em diversas oportunidades no domínio das
ciências médicas, porem, somente a partir da lei de 1838 entrou
para a terminologia jurídica, o que sempre suscitou dúvidas,
discussões e polêmicas de toda a espécie. Segundo Nina,
ninguém melhor que Paulo Zacchias definiu a alienação mental.
Ainda, conforme Nina, diante de tantas dúvidas não se poderia
aceitar que o termo alienação mental do Projeto Bevilaqüa se
aplicasse, genericamente, a todos os casos de doença mental,
que, segundo ele, afora a surdo-mudez, deveria compor a
legislação civil de um país. O próprio Bevilaqüa externou sua
dificuldade em explicar a incapacidade em confronto com
interdição, porquanto refere Nina a incapacidade tem mais
extensão do que a interdição, pois nem todos os incapazes
serão forçosamente interditos. Continuando seu belíssimo e
criterioso julgamento, pois o que vem de critério é sempre
bonito, ainda uma vez, Nina Rodrigues observa que na parte
especial do Código de Bevilaqüa a expressão alienados de
qualquer espécie deu azo a interpretação de casos de
incapacidade civil por estados de insanidade mental estranhos
à alienação. Finaliza Nina Rodrigues: “a não ser de fato, por
uma convenção de puro arbítrio, jamais se conseguirá incluir,
em loucos de todo o gênero, todos os casos de incapacidade
civil por anormalidade ou perturbação psíquica, de que o
Projeto não se ocupou, dando-os naturalmente por
compreendidos naquela rubrica genérica. E estes são casos
não só de estados permanentes de insanidade mental como
de estados transitórios”.
Na observação sobre o que o Projeto chamava de fraqueza
mental senil, lembra o Mestre Nina os belos estudos de Legrand
du Saulle, alienista e médico legista que dividia a velhice em
três formas mentais: o estado rigorosamente fisiológico, o
estado misto e o estado patológico, que se traduzia na
demência senil. Daí, afirma Nina, a necessidade do ensino
(1)
(2)
Teixeira de Freitas: Consolidação das Leis Civis, Rio de Janeiro,
1876, p. 25.
Tobias Barreto: Menores e Loucos em direito Criminal, Rio de
Janeiro, 1884, p. 125.
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imediato da psiquiatria forense que se juntaria à perícia médicolegal, para diagnosticar tais situações de demência senil. A
ausência de tão importante nosologia e seu respaldo está
omissa no Projeto Bevilaqüa, conforme afirma Nina Rodrigues
e relata, na qualidade de médico-legista, dois importantes
casos de sua clínica médico-legal e as judiciosas observações
e conclusões.
“O primeiro é referente a uma velha africana octogenária,
atacada, há muitos anos, de um reumatismo e de acessos de
erisipela, a qual, de posse, por morte do marido, de uma
pequena fortuna em alguns bens imóveis, fez hipoteca de
prédios e testamento que foram denunciados como dilapidação
de uma demente incapaz. O juiz mandou proceder a exame
médico-legal por dois peritos médicos e estes deram parecer
afirmando a existência da demência, o que motivou uma
sentença de interdição. Convidado a examiná-la, por dois
meses a submeteu a cuidadosa observação, fazendo acurado
estudo de seu estado mental. Não se tratava, absolutamente,
de um estado de demência no sentido psiquiátrico restrito
desta expressão. Mas nem por isso se podia considerar válido
o seu estado mental.
Não sabendo ler nem escrever, expressando-se com
dificuldade em português, pois melhor fala o nagô, muito
ignorante, embora, não de todo destituída de inteligência,
trazendo do regime do cativeiro em que viveu por toda a
mocidade as reservas e subserviências para com os brancos e
quaisquer pessoas investidas de autoridade, sem a menor
prática da gerência dos bens que até pouco tempo antes
tinham sido dirigidos exclusivamente pelo marido, sem
parentes ou pessoas desinteressadas que a guiassem e lhe
inspirassem confiança real, compreende-se que uma velha de
oitenta anos, doente, ignorando o valor de todos os atos
jurídicos, cercada de pessoas que só pensam em explorá-la,
acabará sendo a presa ou vítima fatal de explorações
interesseiras e que como verdadeiro caso de enfraquecimento
mental deve merecer proteção da lei.
Mas qualquer que seja o grau de sua senilidade mental,
ela não é absolutamente uma demente. A memória, quer dos
fatos recentes quer dos remotos, se acha bem conservada; o
raciocínio dos limites restritos em que ele pode girar é perfeito;
a integridade dos sentimentos se afirma até na reserva, nas
prevenções, muitíssimas justificadas, em que tem algumas das
pessoas que a cercam.
Esta mulher, que no Código Civil francês teria a proteção
de um conselho judiciário, que no Código italiano se abrigaria
na inabilitação, que, no Código alemão podia reclamar a curatela
voluntária, em rigor, no nosso direito civil, assim como no
Projeto Bevilaqüa não tem a necessária proteção legal, pois
que para o seu estado mental não há lugar nem nos loucos de
todo o gênero, nem nos alienados de qualquer espécie.
O outro caso é de uma senhora de origem italiana,
septuagenária, inteligente, instruída, tendo sido professora
de línguas por muitos anos. Denunciada como demente e como
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explorada por pessoas que já a tinham levado a fazer dois
testamentos, o juiz nomeou-nos para examiná-la como peritos,
a mim e a outro colega.
Quer na visita feita com o juiz, quer nas visitas posteriores,
ela revelou-se sempre perfeitamente lúcida, razoável e correta.
Acusando ligeiro enfraquecimento da memória, ela mostrava
estar perfeitamente a par de todas as circunstâncias de sua
vida, de que dava explicações, as mais plausíveis. A um exame
direto, a uma solicitação procurada da memória, em
conversação seguida e atenta, se não percebia bem a amnésia.
Mas a própria examinanda confessava que, no automatismo
dos atos cotidianos, a memória se revelava enfraquecida.
A inteligência era, assim, normal. No entanto, a um exame
bem conduzido podíamos perceber uma alteração dos
sentimentos em que o enfraquecimento senil prenunciava já a
próxima desorganização de sua mentalidade. Como de fatos
muito naturais, ela queixava-se com insistência de que era
vítima de ladroeira dos criados, tinha sofrido diversos furtos.
Na demência esses fatos denunciam um grau adiantado de
amnésia. Mas como este não existe aqui, devemos ter aquelas
queixas como verdadeiras, explicitando-as pelo descuido, a
pouca atenção que a direção da casa lhe ia merecendo, pelo
enfraquecimento da sua autoridade sobre os criados. Por outro
lado fazia ela grande alarde da sua generosidade. Tinha deixado
de lecionar porque, possuindo do que viver, não queria
prejudicar com a sua competência a outros que daquele recurso
carecessem. Não queria acompanhar aos demais proprietários,
elevando o preço dos alugueis das suas propriedades, pois
sabia que o quadro econômico era difícil para todos. Muitas
vezes havia recusado de receber os alugueis de pessoas que
eram ou ela reputava pobres. Esta generosidade era suspeita.
Ela denunciava os esboços de uma prodigalidade senil,
precursora da demência. Mas, sem dúvida, não era ainda a
demência. Esta fraqueza mental justificava, todavia, a suspeita
de captações de testamento, de doações sugestionadas.
Expus a situação exata ao juiz, fazendo-lhe ver que,
medicamente, a senhora não era uma louca nem uma demente.
Mas que se tratava de um estado de enfraquecimento mental
senil do número daqueles que o Código Civil francês aplica à
proteção do Conselho Judiciário.
Não existindo essa providência no nosso direito, ele
absteve-se de decretar a interdição, deixando que, se atos de
captação aparecessem, os interessados promovessem a sua
anulação.
CAPÍTULO SEGUNDO
ÍNDICE
2. A incapacidade civil nos estados de insanidade mental
I. A Incapacidade civil nos estados duradouros de
insanidade mental e nos estados transitórios.
Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro
7
II. A incapacidade civil por inconseqüência mórbida no
Esboço de Teixeira de Freitas, no Código Civil Argentino,
nos Projetos Felício dos Santos, Coelho Rodrigues e Clóvis
Bevilaqüa.
III. A sugestão criminosa não é um caso de coação moral, mas
sim de inconsciência mórbida.
IV. A doutrina da incapacidade civil por insanidade mental no
Projeto Bevilaqüa.
V. A incapacidade civil na insanidade descontínua: intervalos
lúcidos.
VI. A capacidade de testar nos intervalos lúcidos.
VII. A capacidade de testemunhar nos loucos.
A DOUTRINA DA INCAPACIDADE CIVIL POR
INSANIDADE MENTAL NO PROJETO BEVILAQÜA
Havendo apreciado os estados de insanidade mental que
excluem a capacidade civil, Clóvis Bevilaqüa incluiu os “loucos
de todo o gênero”, surdos – mudos não educados, entre os
absolutamente incapazes, considerando nulos os atos por
eles praticados (Art. 166, §1º) e transfere (Art. 100) a curadores
a sua representação nos atos civis em que os incapazes tenham
de figurar.
Fica estabelecida, desse modo, uma confusão médica e
jurídica entre incapacidade, insanidade mental e interdição.
São as várias inconseqüências que aparecem no decorrer da
leitura do citado Projeto, assevera Nina Rodrigues e que ele,
Nina, procurou elucidar com a luminosidade do seu
entendimento e da sua cultura cientifica, notadamente médicolegal e psiquiátrica forense.
INTERVALOS LÚCIDOS
“O Projeto não tomou uma posição definida em face do
conflito que se origina para a continuidade da interdição, da
descontinuidade da loucura. Ao contrário do direito vigente,
o Projeto não firmou doutrina geral sobre esta importante
questão. A doutrina do nosso direito é, todavia, a adotada
pelo eminente autor do Projeto. (Clovis, Direito da Família, pg.
75) que só se manifesta contrário à validez do casamento
consentido em intervalo lúcido por motivo de outra ordem
que não a incapacidade do contraente que deu o seu
consentimento em um destes intervalos. Se destes
precedentes devemos concluir que o Projeto silenciou na
espécie porque não tem os intervalos lúcidos por estados de
alienação, devendo, pois, na sua qualidade de estados de
sanidade mental, pressupor a plenitude da capacidade civil, o
seu silencio não é certamente para louvar.
8
Maria Theresa de Medeiros Pacheco
Em primeiro lugar, porque longe de ser uma doutrina
cuja aceitação tenha obtido o sufrágio de todos os
cientistas e legisladores, a capacidade civil nos intervalos
lúcidos é questão controvertida entre jurisconsultos,
psiquiatras e médicos legistas, tendo, nos códigos, escritos
soluções contraditórias. Em segundo lugar, porque o
Projeto, violando duas vezes o propósito do seu silêncio,
o fez para sufragar as doutrinas opostas, o que torna
impossível saber por qual delas se decide naqueles casos
a respeito dos quais não se pronunciou expressamente. A
primeira vez, sentenciou, para retirar aos alienados a
capacidade civil nos intervalos lúcidos, estabelecendo que
não podem servir de testemunhas, art. 162, §1: os loucos
de todo o gênero, ainda que nos intervalos lúcidos; a
segunda vez, para conferi-la, incluindo entre os incapazes
de testar, art. 1963, §2: os loucos de todo o gênero, exceto
nos lúcidos intervalos.
Devia o Projeto conceder ou recusar aos alienados a
capacidade civil nos intervalos lúcidos? ”
Achei, por oportuno, registrar, ao pé da letra, todo o
comentário efetuado pelo Professor Nina Rodrigues, tão
judiciosas foram suas observações sobre os intervalos lúcidos
e sua doutrina, com as devidas contestações ao Projeto
Bevilaqüa.
Complementa Nina, citando Linas (3) que a doutrina dos
intervalos lúcidos tem seu primeiro aparecimento na Lei das
Doze Tábuas (451 anos antes de Cristo) portanto, há mais de
22 séculos; a capacidade civil passou do direito romano ao
português, de lá para o direito brasileiro, como conseqüência,
e teve a aceitação dos Códigos espanhol, argentino, mexicano,
mas, não foi incluída nos Códigos francês, alemão e outros.
O autor dos apontamentos ao Projeto Bevilaqüa refere
que Teixeira de Freitas também foi muito infeliz na sua
apreciação sobre os intervalos lúcidos.
Continua Nina Rodrigues no seu comentário sobre o
assunto esclarecendo que “a doutrina dos intervalos lúcidos
é reconhecida por médicos e juristas, tem a sua sagração no
direito escrito desde Justiniano a quem cabe ter feito a
distinção justa e feliz entre os estados de lucidez equívocos e
os verdadeiros intervalos lúcidos, a que chamou de “intervalla
perfectíssima”. No direito romano esta doutrina teve a
consagração plena dos Tratadistas.” O assunto foi, durante
séculos, debatido pelos especialistas do mundo inteiro.
Por último, Nina, afirmando que a análise psiquiátrica é,
ao fim e ao cabo, quem vai concluir ou distinguir entre
verdadeiros e falsos intervalos lúcidos, chamando a atenção
que, sendo assunto de perquirição médica, juizes e leigos
jamais poderão decidir. Daí, a crítica, mais uma vez, para
melhor orientação do autor do Projeto, de consolidar o
pensamento, no Código, e a garantia da análise médica, no
particular.
(3)
Linas: Art. Lucidité (Médecine Légale), Dice. Encyclopedique des
Sciencies méd.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10
CAPÍTULO TERCEIRO
ÍNDICE
3. A interdição dos alienados
I. Da interdição completa e das atenuações da interdição
nas suas relações com os diversos graus da incapacidade
civil no Projeto Bevilaqüa.
II. O Conselho Judiciário é a atenuação da interdição mais
aplicável ao nosso direito: curatela dos pródigos.
III. Alienados não interditos: curadoria provisória.
IV. Curatela voluntária.
V. A fórmula integral da interdição dos alienados no direito
moderno.
A INTERDIÇÃO DOS ALIENADOS
Nina Rodrigues, de relação à Interdição dos Alienados no
Projeto Bevilaqüa, aponta como erro fundamental no Projeto
o fato de haver colocado, no mesmo plano, “ao lado do simples
fraco de espírito ou do imbecil, o maníaco ou o demente paralítico
terminal; a par da simples fraqueza mental senil, a confusão
mental declarada; juntamente com as loucuras crônicas ou
incuráveis, os episódios delirantes, mais ou menos efêmeros,
dos degenerados”. Entretanto, relembra Nina, o próprio
Bevilaqüa, no art. 528 do seu Projeto coloca a deficiência mental
no exercício dos direitos civis podendo ser distribuída desde a
completa inconsciência das loucuras gerais às leves falhas
mentais dos senis, ao desequilíbrio psíquico dos degenerados,
nas suas incursões intermitentes nos domínios da loucura. Em
todos esses casos nivelou o Projeto da mesma incapacidade
para todos os atos civis, desde os mais graves e complexos
como a aquisição ou a alienação de imóveis, a aceitação ou o
repúdio de uma sucessão, até aos de simples governo da própria
pessoa ou dos objetos de seu uso pessoal.
No Projeto Clóvis Bevilaqüa todos os interditos por
insanidade mental são equiparados aos menores de 14 anos.
A interdição dos alienados com incapacidade absoluta de que
trata o terceiro capítulo do Projeto, sem minorar a ação da
interdição, é uma questão ultrapassada pelos próprios códigos.
Há que ser levada em consideração a criação de diversas
maneiras de interdição ou na permissão ao juiz ou aos tribunais
de fazer um paralelo entre a extensão da curatela e a extensão
da incapacidade do insano a interdizer; ainda, poderiam os
curadores, por entendimento judicial, permitir certa liberdade
de ação aos interditos o que seria temerário pelo
desconhecimento de curadores leigos dos problemas de
psiquiatria forense; ainda, que o que ficou dito acima fosse
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10
Nina Rodrigues e o Direito Civil Brasileiro
estendido também aos loucos, aos surdos-mudos e aos
pródigos, daí, concluir-se que a proteção da curatela do insano
dependia unicamente da sua capacidade mental comprovada
em perícia médica.
No Brasil, acentua e chama a atenção Nina Rodrigues “a
forma de governo e o abandono em que vivem os alienados”
torna difícil a plena execução de um Projeto de tão grande
valor. De qualquer sorte, aqui como em toda parte, a interdição
absoluta deve ser reservada para casos especiais, para os
estados de alienação mental completa e jamais, como quer
Bevilaqüa, aos loucos de todo o gênero ou alienados de
qualquer espécie.
A criação, pelo legislador, da interdição relativa ou
diminuída, nos casos em que a interdição completa é excessiva,
é dever dos médicos brasileiros e dos estudiosos do assunto
de exigirem esta medida do legislador pátrio para aqueles
portadores do maior dos infortúnios humanos – a perda da
razão.
De referência ainda, ao assunto da curatela dos alienados,
Nina Rodrigues lamenta as falhas do artigo 539, pela não
observância da duração da loucura quanto a interdição e a
sua suspensão. Também não cuidou Bevilaqüa da curatela
em relação aos intervalos lúcidos. Ressalta, o Mestre da
Medicina Legal, a supressão no Projeto Bevilaqüa, da curatela
dos inválidos por moléstia física.
CAPÍTULO QUARTO
ÍNDICE
4. Proteção legal dos alienados
I. Inspeção da curatela dos loucos. Insuficiência da
fiscalização do juiz; necessidade do Conselho de Família.
II. O Tratamento dos interditos por alienação mental.
III. Interdição e internamento: necessidade de interdizer a
todos os alienados internados nos asilos.
IV. A perícia médica em psiquiatria forense: reformas que
reclama no Brasil; modo de prepará-la no Código Civil.
PROTEÇÃO LEGAL DOS ALIENADOS
De referência a proteção pessoal do doente mental o
Projeto requer bastante alteração.
Não é o real interesse da cura ou da mitigação da sorte do
portador da patologia mental, mas, sim, a família que não
consegue manter o paciente em casa por tantos motivos por
demais conhecidos, bem como as dificuldades do próprio tutor,
no particular. Assim, bastante insuficientes as soluções
apontadas pelo autor do Projeto, no particular.
9
Cita o comentarista vários Códigos de todo o mundo que
se interessam e lutam por solucionar os problemas que
Bevilaqüa deixou passar, de referencia ao direito pessoal do
doente mental.
“Na regulamentação do internamento, o intuito da lei não
é somente precaver os interesses do alienado, mas evitar que
o abuso possa transformar este meio curativo no crime de
sequestração ilegal de pessoas sãs nos asilos de alienados”;
chama a atenção, Nina Rodrigues, e continua: “a grande
verdade, porém, é que no Brasil não existe assistência médicolegal de alienados. Onde quer que exista, dois ou três estados
brasileiros, constituem exceção. Estes valem o que valem as
suas direções. O Juquery é uma lição que está destinada a
confundir e a anular as veleidades de competência dos povos
irmãos dos outros Estados da República. O asilo de São João
de Deus, da Bahia, irrisão da psiquiatria moderna, é a mais
eloqüente negação da procedência dos novos mentirosos
reclamos de povo civilizado” (grifo nosso).
“Não é uma simples figura de retórica a denúncia que ora
formulamos, sob a responsabilidade do nosso testemunho
pessoal. São fatos de verificação própria”. Prossegue Nina
em seus apontamentos relatando que os alienados pobres
eram mandados, na Bahia, para a Casa de Correção, cujo
cognome já se imagina o que seja, salas infectas, convivendo
ali com assassinos e marginais de toda a espécie. Os jornais
noticiavam de maneira escandalizada, sobre a bárbara situação
dos alienados pobres. A opinião pública ao lado de busca de
soluções e os poderes constituídos silenciando sobre tão
graves condições de vida, inclusive alguns a morrerem de
fome. “É incrível, mas é absolutamente exato” (Nina
Rodrigues). Cita o autor dos “Apontamentos”, vários casos,
nominando os protagonistas de tão tristíssimo e doloroso
registo. Crime, seguramente, e previsto em lei!
Nina Rodrigues relata, e, mais uma vez, peço permissão a
quem possa ler este modesto trabalho, para transcrever as
palavras por ele escritas em todo o teor de sua irresignação.
“É dolorosa para o nosso amor próprio de brasileiros, esta
confissão, em trabalho que pode vir a ser lido por homens que
se devotaram ao serviço da cura e tratamento dos loucos.
Mas não é lícito que todos se conspirem para se tornar
cúmplices, pelo silêncio, de um crime que já se prolonga
demais.”
Nina Rodrigues: grandioso e destemido em suas reflexões!
O Projeto Clóvis Bevilaqüa é omisso quanto às
minudências para a terapia dos alienados pobres e suas
modalidades para atingi-la, ao que Nina apresenta sugestões
em artigos específicos ao assunto, com base em Códigos
mundiais e no seu lúcido pensamento sobre nossas condições
pátrias, no particular.
Chama a atenção para a importância maior e primordial das
perícias científicas em caso de alienados mentais na
complementação de todas as providências jurídicas. As
perícias médicas, segundo Nina, são indispensáveis para a
10
Maria Theresa de Medeiros Pacheco
orientação de quem vai julgar. Não será o juiz quem orientará
a parte médica, até porque, incapaz de fazê-lo pela ausência
de conhecimento sobre a Medicina, em especial, a psiquiatria
forense.
Clóvis Bevilaqüa, quando da feitura do art. 232, chegou a
conclusão da necessidade de que em casos de analise médica
haveria que haver dois alienistas e não somente qualquer
médico. Por mais competente que seja o médico clínico ou
cirurgião, jamais terá a competência legítima para os misteres
da psiquiatria forense. O art. 532 do Projeto Bevilaqüa é, assim,
incompleto ou impossível de ser cumprido pelo
aconselhamento de “ouvidos dois alienistas”..., ora, à época,
difícil seria encontrar dois alienistas, mesmo nas capitais do
país, que se interessassem pela perícia psiquiátrica, mesmo
sendo psiquiatra, uma condição é ser psiquiatra clínico, outra
é saber fazer uma conclusão a respeito da saúde mental do
individuo e as conseqüências de seus atos quando a doença
mental se estabelece. A dificuldade ocorreria nas capitais,
imagine-se no interior deste país continental! A Comissão
revisora, entretanto, mudou a expressão de “alienistas” para
“profissionais”, o que foi muito bom. Conclui, Nina Rodrigues,
mais uma vez, brilhantemente, dizendo que o termo que deveria
ser empregado no Código seria aquela de “médicos-peritos”.
Somente, desse modo, dando-se organização científica à
perícia médica os exames periciais alcançarão o que pretendem
os médicos, e, sobretudo, legisladores no particular nos
Códigos brasileiros, no sentido de proteger a vida, a honra, e
a liberdade dos cidadãos.
A nobre importância da Medicina Legal é justamente aquela
de exigir bases para a formação de médio-perito. Com seu
domínio próprio apresenta métodos de estudos completamente
diversos daqueles da clínica, não se atendo a diagnosticar e
curar doentes, mas, “habilitar o juiz a avaliar o “quantum”
médico do dano que o crime causou à vítima e a sociedade”.
Eis a nobilíssima missão da Medicina Legal. Daí a exigência
de conhecimentos das leis e da jurisprudência que não as
possui, nem o clínico e nem o cirurgião. Sendo a doença mental
a mais poderosa dirimente da capacidade e da
responsabilidade, somente o esclarecimento médico
conclusivo, através da perícia psiquiátrica poderá oferecer ao
juiz condições de pleno julgamento.
Assim, nasceu a verdadeira idéia da perícia psiquiátrica
nos moldes oficiais, com vistas aos Códigos Civil e Penal
Brasileiros, com os peritos nomeados pela justiça, através
preparo especial e provas que o habilitem a exercer a difícil e
complicada arte da perícia médica, na área multifária e
multidisciplinar da Medicina Legal.
Os Códigos Brasileiros e até os Estrangeiros, bem como a
organização judiciária, devem à douta culta e vasta orientação
de assuntos da maior relevância como aqueles aqui
minuciosamente apreciados ao notável Professor de Medicina
Legal da Bahia, naquele ano distante de 1901, portanto, há
mais de um século já doutrinava Raymundo Nina Rodrigues.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S3-S10
COMENTÁRIOS
O visionário cientista médico e social Professor Raymundo
Nina Rodrigues, interessado na problemática da psiquiatria, no
começo do século XX, mais especificamente da psiquiatria
forense e suas relações com as leis civis e penais que regem o
Brasil, foi o primeiro professor médico a se preocupar com a
situação legal e social do psicopata rico ou pobre do país. Não
era ele um psiquiatra, e sim um médico legista.
Sua apreciação rigorosa, com fundamentos procurados e
analisados nos Códigos mundiais, trouxe-nos a maior
clarividência, permanecendo nos tratados, nos Códigos e na
palavra dos doutos, nacionais e internacionais, com as mais
acreditadas referências.
As conclusões a que chegou Nina Rodrigues foram
adaptadas ao Código Civil Brasileiro. Clovis Bevilaqüa
solicitou o parecer no notável Mestre em 1901, ele o fez e o
enviou ao grande civilista, porém, a lei no país somente
passou a viger em 1916, quando Nina Rodrigues já havia
falecido, mas, desse modo, se manteve por quase um século,
porque o Novo Código Civil (Lei nº 10.406) está proclamado a
partir de 10/01/2002.
O que chama a atenção, sobremodo, é que tudo por que
Nina Rodrigues tanto trabalhou, apontou e demonstrou às
autoridades médicas, de saúde pública, aos legisladores e
poderes públicos constituídos, naquele ano distante de
2001 continuam quase o mesmo, ao menos de referência
aos direitos do psicopata pobre desse país. Nos
manicômios judiciários, designação mudada para hospitais
de custódia e tratamento, a situação é dolorosa! Pessoas
ali condenadas, não pelos crimes que cometeram, mas,
abandonadas pelas leis que não se cumprem neste país, ou
por seus familiares... nos demais hospitais psiquiátricos a
visão não se modifica...
Vale repetir Nina: “É dolorosa, para o nosso amor próprio
de brasileiros, esta confissão, em trabalho que pode vir a ser
lido por homens que se devotaram ao serviço da cura e
tratamento dos loucos. Mas não é lícito que todos se
conspirem para se tornar cúmplices, pelo silêncio de um crime
que já se prolonga demais.” Expressões de há um século...
hoje... permanecem...
Enfim, continuamos com esperança, conforme seu
aconselhamento Mestre Raymundo Nina Rodrigues!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2.
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5.
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CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
RODRIGUES, Coelho. Projeto de Código Civil Brasileiro.
SANTOS, Felício dos. Projeto de Código Brasileiro.
Esboço de Teixeira de Freitas – CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
BEVILAQÜA, Clóvis. Projeto de Código Civil Brasileiro.
NINA RODRIGUES E PERÍCIAS PSQUIATRAS.
LINAS. Art. Lucidité (Médicine Légale), Dice. Encyclopedique dês
Sciencies Méd.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
Nina Rodrigues: Psiquiatra
Nina Rodrigues, Psiquiatra:
Contribuições de Nina Rodrigues nos campos da Psiquiatria Clínica, FForense
orense e Social.
Nina Rodrigues, Psychiatrist:
Nina Rodrigues’ Contributions in the Fields of Clinical, Forensic and Social Psychiatry
Ronaldo Ribeiro Jacobina
Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil
Objetivou-se identificar a contribuição intelectual de Raymundo Nina Rodrigues ao campo da
Psiquiatria Clínica, Psicopatologia Forense e Psiquiatria Social, especialmente as síndromes
psicossociais e propostas para organização da assistência psiquiátrica. Um esboço biográfico
situou Nina Rodrigues (NR) no tempo/espaço. NR foi professor de Medicina Legal da Faculdade de
Medicina da Bahia, no período de 1889 a 1906. Na trajetória de NR, destaca-se a convivência com
membros da Escola Tropicalista Bahiana e a atuação na Gazeta Médica da Bahia. Sua obra sobre
“coletividades anormais” foi pioneira no Brasil, destacando-se o estudo que confirma o caráter
histérico da síndrome psicossocial ‘abasia coreiforme epidêmica’. Em seus estudos sobre
associações criminosas (Lucas da Feira e Antônio Conselheiro), NR constatou os limites da
teoria lombrosiana do criminoso nato, confrontando teoria com dados e formulou análises
sociológicas válidas, até hoje, para as questões de poder no sertão brasileiro. Sua obra mais
polêmica, sobre os africanos no Brasil, ficou como um patrimônio para a etnologia, pelo rigor da
descrição e sistematização de aspectos culturais como crenças, dialetos e costumes. A concepção
equivocada de NR sobre a mestiçagem foi criticada não só por seus sucessores e opositores, mas
também por autores contemporâneos, como Juliano Moreira. No âmbito da psiquiatria social, NR
formulou as bases para uma assistência psiquiátrica que serviram de roteiro para as reformas
implementadas na saúde mental durante todo o século XX. Alguns de seus princípios e propostas
mantém atualidade, como regionalização, hierarquização dos serviços e a atenção psiquiátrica
nos hospitais gerais.
Palavras-chave: História da Psiquiatria, síndromes psicossociais; degenerescência, Psiquiatria
Social.
This study identified Raymundo Nina Rodrigues’ intelectual contribution in the fields of Clinical,
Forensic and Social Psychiatry, especially the psychosocial syndromes and proposals to
psychiatric care organization. A biographic sketch placed Nina Rodrigues (NR) in his time/
space, a full professor in the traditional School of Medicine of Bahia, where he lectured from
1889 to 1906. In this time span, NR interactions with the members from the Tropicalist School
from Bahia and his performance in the periodical Gazeta Médica da Bahia. His work about
“abnormal colectivities” was pioneer in Brazil, especially the study that confirms the hysterical
character of the psychosocial syndrome named “abasia coreiforme epidêmica”. In his studies
about criminal associations (Lucas da Feira and Antônio Conselheiro), NR investigated the
limits of Lombroso’s innate criminal theory, counterpoising theory to data, and formulating
sociological analyses that hold until today concerning the issue of power in the Brazilian
sertões hinterland. NR most polemic work, about the African people in Brazil, is a landmark in
Ethnology for its descriptive strictness and systematic approach of cultural aspects, like beliefs,
dialects, habits, etc. NR’s equivocal conception about racial admixture was criticized not only
by his successors and opponents but also by his contemporaries, like Juliano Moreira. In Social
Psychiatry field, NR stated the bases for psychiatric care that would guide reforms in Mental
Health all over the XX century. Some of his principles and proposals hold till today, like
regionalization, services hierarchy and psychiatric care in general hospitals.
Key-words: Psychiatry History, psychosocial syndromes, degeneration, Social Psychiatry.
11
12
Ronaldo Ribeiro Jacobina
Este estudo tem como objetivo identificar a contribuição
intelectual do Prof. Raymundo Nina Rodrigues, catedrático
de Medicina Legal, no campo da Psiquiatria e analisar algumas
das produções importantes neste campo.
Como é um estudo no campo da História, mais
precisamente da História das Ciências, utilizaremos a “caixa
de ferramenta” da metodologia histórica, sobretudo da
chamada ‘história nova’. Não será um estudo biográfico no
sentido mais estrito, mas vai estar centrado num intelectual
que ganhou o papel de uma personagem simbólica, num
conflito extremado entre os que o condenam como um racista
e os que o reverenciam como um mestre inatacável. Contribuiu
para a primeira imagem, o personagem Nilo Argolo do romance
“Tenda dos Milagres” de Jorge Amado, catedrático de
medicina legal do início do século XX, numa caricatura que
pode ser ilustrada tanto pelo apelido de “Monstro” quanto
no trecho em que o catedrático, pondo os braços atrás das
costas, recusa-se a apertar a mão do bedel negro da Faculdade.
Para a segunda, há uma longa tradição na medicina legal, dos
discípulos de sua “escola” representada na descrição
apaixonada do Prof. Estácio de Lima que, segundo ele, chegou
a obter uma carta de desagravo a Nina feita por Jorge Amado,
na qual negava a intenção de manchar a imagem do professor,
o mestre venerado por Estácio.
Aqui cabe numa recomendação metodológica do
historiador Marc Bloch, um dos fundadores da Escola dos
Annales ou ‘história nova’(6,16). Bloch nos ensina que “durante
muito tempo passou o historiador por ser uma espécie de juiz
dos Infernos, encarregado de distribuir pelos heróis mortos o
elogio ou a reprovação”(p.161)(4). E complementa mais adiante:
“Robespierristas, anti-robespierristas, por favor! Dizei-nos
simplesmente quem foi Robespierre”(p.161)(4).
Esta recomendação se aplica aos apologistas e aos
caricaturistas de Nina Rodrigues. Em relação aos últimos, não
é só na literatura que existe esta postura anti-ninista, ela existe
também na produção científica. Como exemplo, já referido em
trabalho anterior(15), citamos o artigo de Barros(3), onde ele
acusa Nina Rodrigues de fingidor de uma postura neutra,
“postura que apenas ocultava o desejo cortesão de ser
reconhecido pela elite senhorial do Estado e da Academia que
ele não cansava de adular”(p.446)(3). De uma forma mais sutil
e conceitual esta tese também está em Maio(18).
Como um contraponto, devemos lembrar que foi Nina
Rodrigues, rotulado de adulador da Academia, o autor da
Memória Histórica de 1896 da Faculdade de Medicina da Bahia
Recebido em 11/9/2006
Aceito em 4/12/2006
Endereço para correspondência: Dr. Ronaldo Ribeiro Jacobina.
Rua Santa Rita de Cássia, 167, apto. 1001, 40.150-010, Salvador,
Bahia, Brasil. E-mail: [email protected].
Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):11-22.
© 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
que não foi aprovada pela sua incisiva crítica à própria
Congregação que lhe demandara o relato: “Por esta lacuna,
por esta falta de rigor e de aproveitamento do ensino só é
responsável a Congregação a quem o Regulamento cometeu,
ou impoz, o dever fiscalizar o ensino e que(...), nunca tomou a
respeito a menor providência” (p.15)(25). Ainda como ilustração
dessa postura, a conclusão de Barros(3): “Visando a morte da
liberdade de seus iguais, Nina Rodrigues voltava a arma da
morte contra seu próprio ser, sufocado por impasses sociais,
intelectuais, políticos, éticos e afetivos que ele nunca foi capaz
de superar”(p.454)(3). E arremata com esta pérola: “Talvez aí
esteja a chave de sua morte prematura, em Paris, sem choro
nem vela”(3). O curioso é que não existe um único trabalho do
próprio Nina Rodrigues nas referências desse artigo onde ele
foi julgado e condenado.
Nem ninistas nem anti-ninistas, por favor, em lugar de
julgar, que não é próprio do historiador(10), vamos simplesmente
compreender Nina Rodrigues, sua contribuição, seus acertos
e seus equívocos, inclusive os mais graves. Seus estudos
são ainda motivo de discussão, reavaliação e polêmica,
sobretudo seus pioneiros trabalhos de antropologia física e
cultural, particularmente aqueles referentes ao negro africano
e descendentes. Ele chegou a organizar um registro feito com
mais de dois mil africanos e descendentes diretos vivendo na
Bahia (Lima, L. A Escola da Bahia, 2003; texto não publicado).
A maioria de seus trabalhos de antropologia criminal e de
psicopatologia forense, baseada nas formulações do francês
Alexandre Lacassagne e principalmente do italiano Césare
Lombroso(8,38), é datada e reflete a influência desses autores
europeus na época, tanto no Brasil como em quase toda a
sociedade ocidental.
Seguindo uma tradição não só da “escola de criminologia
italiana”(38), mas da própria medicina, da “Clínica” que, desde
o início do século XIX, tinha mudado o enfoque da doença
para o doente(11) , Nina e seus liderados defendiam na medicina
legal a mudança da ênfase do crime para o criminoso. Com a
mudança, segundo Schwarcz38, não foi difícil para esses
cientistas “vincular os traços lombrosianos ao perfil dos
mestiços - tão maltratados pelas teorias da época - e aí
encontrar um modelo para explicar a nossa ‘degeneração
racial’.”(p.92)(38).
Esta necessária avaliação crítica, entretanto, não deve
cometer outro grave erro histórico que é o anacronismo de
julgar os trabalhos do passado, exigindo deles conhecimentos
do saber atual. Iniciemos com um esboço biográfico para situar
no tempo e espaço o intelectual que produziu os estudos que
serão analisados a seguir.
BREVES CONSIDERAÇÕES BIOGRÁFICAS
Raymundo Nina Rodrigues nasceu a 4 de dezembro de
1862, no município de Vargem Grande, Estado do Maranhão.
Em São Luís, capital do estado, fez o curso fundamental no
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
Seminário das Mercês e o preparatório no Colégio S.
Paulo(18). Em 1882, matriculou-se na Faculdade de Medicina
da Bahia, onde cursou a primeira e segunda série do curso
médico. Transferiu-se para a Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro, onde, provavelmente por motivos de saúde,
estudou o terceiro e quarto período, retornando a Salvador
para cursar a quinta série a . Entretanto, em 1887, foi
novamente à capital do Império, cursar o último ano, quando
trabalhou como auxiliar do Prof. Agostinho José Souza
Lima, um grande mestre da medicina legal brasileira(17). Com
o prof. Souza Lima, ele aprendeu a importância prática das
autópsias, sendo sua estadia no Rio de Janeiro crucial para
sua formação em Medicina Legal. Lá, em 1887, defendeu a
tese de doutoramento, a chamada tese inaugural, “Das
amiotrofias de origem periférica”(32,35) obtendo o diploma
em 1888, ano do decreto da abolição da escravatura e
véspera da proclamação da república.
O médico recém-formado voltou à terra natal,
estabelecendo consultório em São Luís, capital do
Maranhão. Verificou, no entanto, que os seus trabalhos de
pesquisa científica, fora do paradigma vigente, sofriam
resistências no meio médico, onde imperava uma
mentalidade avessa aos novos paradigmas. Lima (17), num
artigo especial para um jornal de grande circulação, refere
em especial a resistência à tese de Nina Rodrigues de atribuir
a alguns problemas de saúde da população carente do local
uma causalidade de origem alimentar. Ao examinar sua obra
em ordem cronológica, constata-se que, nesse período
(1888), ele escreveu o “Estudo sobre o regime alimentício
do Norte”(18,32,35), que o coloca como um precursor no campo
científico da nutrição no Brasil. Essa nova mentalidade no
saber médico, que lhe foi muito útil num dos últimos estudos
de sua curta vida, quando estudou a epidemia de beribéri
no asilo de alienados, ele aprendeu ainda como acadêmico
na FAMEB, com os estudiosos que fundaram uma revista
médica de qualidade na província da Bahia.
Cabe aqui ressaltar a importância dessa revista e de
seus fundadores. Desde meados do século XIX, a medicina
baiana se destacava, com prestígio nacional e internacional,
devido a atuação de um grupo de ‘facultativos’, em especial
o português José Francisco Silva Lima, o escocês John
Ligertwood Paterson e outro português de origem
germânica, Otto Edward Henry Wücherer, que formaram a
primeira geração da chamada “Escola Tropicalista Baiana”,
organizada em torno da revista Gazeta Médica da Bahia,
fundada em 1866. Mais tarde, Nina Rodrigues teria um papel
de destaque na revista, como colaborador assíduo, desde
1888, quando escreveu sobre a ‘lepra’, ainda morando no
Maranhão, e como “redator gerente” de 1890 a 1893
[Jacobina RR & Gelman EA. Juliano Moreira e a Gazeta
Médica da Bahia, 2006: no prelo].
Com o provincianismo de sua terra natal, ele decidiu
definitivamente retornar a Salvador, chegando em 1889, ano
Nina Rodrigues: Psiquiatra
13
da proclamação da República, quando passou a ensinar na
Faculdade de Medicina da Bahia, tendo sido aprovado por
concurso para Adjunto da 2ª Cadeira de Clínica Médica. Com
a Reforma Benjamin Constant, em 1891, tornou-se Lente
Substituto de Higiene e Medicina Legal e, a partir de 1895,
Professor catedrático de Medicina Legal(32,35).
Antes de identificar a contribuição intelectual de Nina
Rodrigues na medicina, em seus diversos campos, destaquese nessa área uma realização institucional, que permanece
nos dias atuais. Com o incêndio de 1905, na FAMEB, o
Laboratório de Medicina Legal foi totalmente destruído e ele
estava “equipado com modernos aparelhos de psicologia
experimental” (p.313) (5) . Nina Rodrigues idealizou e
acompanhou a construção do Instituto Médico-Legal como
parte da nova arquitetura que ganhou a Faculdade de
Medicina da Bahia. Ele faleceu em 17 de julho de 1906, em
Paris, antes de ver inteiramente realizado seu projeto, mas a
Congregação da FAMEB deu o seu nome ao Instituto Médicolegal, que preservou o nome do homenageado, mesmo quando
foi transferido para o governo do Estado, mudando inclusive
de local.
Sobre a obra de Nina Rodrigues, vale reiterar que ela
merece ser examinada de modo crítico, mas nunca de modo
apriorístico, tornando a expressão “Nina Rodrigues” uma
categoria de acusação. Desse modo, ela pode ser fonte de
pesquisas históricas sobre as relações do negro e do mestiço
na América portuguesa, sobre suas manifestações religiosas
(iorubá, malês), suas lutas de resistência, além do registro da
tradição oral, pelo contato atento com mais de dois mil
pacientes escravos e seus descendentes. Numa entrevista
onde é apresentado como o último dos pioneiros dos
antropólogos brasileiros de formação médica(19), Thales de
Azevedo destaca o precursor: “Nina Rodrigues foi um caso
completamente fora do habitual, aquele interesse dele
sociológico e etnológico... inclusive venceu os preconceitos
da época.”(p.142)(19) .
Este acervo intelectual pode ser também fonte de
informações preciosas sobre a teoria e prática da medicina
legal, com algumas contribuições sendo válidas até o momento
atual. Outra área no campo médico onde ele deu relevante
contribuição foi a da Psiquiatria, em várias de suas sub-áreas,
como a psiquiatria clínica, a psicopatologia forense e a
psiquiatria social, com seus estudos sobre a legislação,
planejamento e administração da assistência psiquiátrica da
época. O Prof. Álvaro Rubin de Pinho, que se inclui entre os
seus herdeiros intelectuais, diz que Nina Rodrigues tem uma
das obras mais criativas da Psiquiatria brasileira, destacando
seus estudos sobre as “coletividades anormais”, neuroses e
psicoses coletivas (como a “caruara” e o evento de Canudos);
os estudos etnográficos sobre os africanos no Brasil, que
abriria no país o campo referido pelo Prof. Rubin de Pinho
como Psiquiatria transcultural; e a análise e as propostas para
o sistema de assistência psiquiátrica do país b.
14
Ronaldo Ribeiro Jacobina
O PSIQUIATRA NINA RODRIGUES
Diante dessa obra multifacetada, o enfoque neste trabalho
sobre o legado intelectual de Nina Rodrigues não será
prioritariamente aquele deixado para a Medicina Legal nem
para a Etnologia, mas aquele produzido para a Psiquiatria,
com destaque a dois de seus estudos sobre transtornos
mentais em coletividades, onde apesar de expressar a sua
crença na mestiçagem como fator de degeneração, identifica
os fatores psicossociais; e sua análise crítica da assistência
psiquiátrica na Bahia, onde está também o seu original estudo
de “epidemiologia” sobre a determinação e distribuição de
epidemias que grassavam na população dos asilos da época,
que analisei em estudos anteriores(12,15) .
Uma das “Coletividades Anormais”: as epidemias histéricas
no Maranhão e na Bahia
A denominação “coletividades anormais”, que estava
em nota de trabalho publicado sobre Marcelino Bispo em
1889 e num manuscrito encontrado por Ramos(36), serviu
para abranger tanto os estudos de psicopatologia das
multidões – como as loucuras epidêmicas, como sua tese
de ‘loucura religiosa’ para o episódio de Canudos, quanto
os das associações de degenerados criminosos, como
Lucas da Feira, ou o “crime a dois” do regicida Marcelino
Bispo e Diocleciano Martyr.
Esse discípulo, ao editar o livro “As coletividades
anormais”, acrescentou um dos primeiros trabalhos do mestre
sobre uma “moléstia singular”, depois reconhecida como uma
“coreomania” histérica, e identificada como “abasia coreiforme
epidêmica” por Nina Rodrigues, usando a terminologia de
Charcot. Essa epidemia despertou o interesse de Nina
Rodrigues pelos fenômenos de psicologia coletiva c.
O uso do termo coréia, cujo sentido etimológico vem do
grego e significa “dança” (9) abrange um conjunto de afecções,
como a coréia de Sydenham, de origem infecciosa, que desde
a idade média ganhou nome de santos, Dança de São Vito ou
de São Guido; a coréia de Huntington, doença neurológica de
origem genética; e os quadros coreiformes de natureza
psíquica.
a
Para o editorial da Gazeta Médica, publicado logo após sua morte,
Nina Rodrigues teria se matriculado na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro em 1882, porém a preocupação com a “saúde física” fez com
que ele se transferisse para a FAMEB, em 1884, “aqui cursando a 3ª, a
4ª e a 5ª séries médicas, voltando a cursar em 1887, o 6° anno médico
no Rio de Janeiro, onde publicou sua conscienciosa dissertação inaugural”
(p.57-58) (35).
b
Entrevista com o Prof. Álvaro Rubin de Pinho, “Memória viva da
Psiquiatria Brasileira”. Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1989.
c
O capítulo “Abasia coreiforme epidêmica no norte” tinha sido publicado
no Brasil Médico, números 42 a 43, de 15 e 22 de novembro de 1890,
mas ele também foi publicado na Gazeta Médica da Bahia. (23)
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
De início, o autor faz uma história social dessas últimas,
citando as afecções coreomaníacas e convulsionárias que
assolavam a Europa da Idade Média. Se havia dúvidas sobre
sua natureza no passado, para Nina Rodrigues, as
manifestações epidêmicas do seu tempo (cita a observada
por Davy nos EUA, em 1880, e por Bouzol em Ardèche, sul da
França, em 1882) foram esclarecidas pela interpretação
proposta pelo prof. Charcot, como manifestações de histeria,
que
“operando em um meio favoravelmente
predisposto, se irradia e espraia com o auxilio efficaz
da imitação em torno de um fóco accidental em que
muitas vezes circumstancias inteiramente fortuitas
congregaram e reuniram alguns casos isolados de
uma qualquer das manifestações mais insolitas da
grande nevrose” (p.396-7)(23).
No Brasil, ele refere que, antes da epidemia que ocorreu na
Bahia, a chamada “moléstia de Itapagipe” (por ter iniciado
naquele bairro de Salvador, na época, um subúrbio aprazível),
testemunhou ainda bem jovem uma epidemia semelhante no
Maranhão:
“Não era eu ainda medico, quando os presenciei; mas o
espectaculo extranho que o offerecia por aquella época a
pequena cidade de S. Luiz, com as ruas diariamente percorridas
por grande numero de mulheres principalmente, amparadas
por duas pessoas e em um andar rythimico interrompido a
cada passo de saltos repetidos, genuflexões e movimentos
desordenados, me deixou uma impressão profunda e
duradoura” (p. 397)(23).
Além do seu testemunho, ele solicitou o depoimento de
um clínico com mais de trinta anos de prática, Dr. Afonso
Saulnier. O médico, através de carta datada de 1890, referia o
ano de 1878 para a epidemia em São Luís (com dados de jornais,
Nina Rodrigues confirmou o início no ano anterior), distinguiu
bem esses quadros coreiformes, que a população chamava de
“tremeliques”, da coréia de Sydenham, porém a considerou
de origem beribérica(23) .
Sobre a manifestação epidêmica na Bahia, ocorrida no início
da década de 80 do século XIX, o autor encontrou dados
publicados na Gazeta Médica da Bahia. Desde outubro de
1882, no item “moléstias reinantes” da revista, tinha uma
descrição do surto:
“Uma moléstia singular tem sido observada há
alguns mezes no subúrbio de Itapagipe, mais
raramente na cidade. Os simptomas principaes, ou
pelo menos os mais apparentes são movimentos
choreiformes á primeira vista, (...) As pessoas
affectadas depois de caminharem naturalmente em
apparencia por algum tempo, dobram de repente
uma ou ambas as pernas, ou o tronco para um dos
lados por alguns minutos, como se fossem coxas,
paralyticas, ou cambaleassem, continuando depois
a marcha regular” (p.190-1)(30).
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
Outros dados relevantes já estavam nessa breve notícia,
como a observação de que as pessoas afetadas por essa doença
não fatal, eram de ambos os sexos e “pouco adiantadas em
idade”, não caíam e podiam subir e descer ladeiras e escadas
sem dificuldades; não apresentavam outras alterações
notáveis nas demais funções do corpo; e somavam “para mais
de 40 casos d’esta singular moléstia, originada em um dos
mais saudáveis subúrbios” de Salvador(30). Neste último
comentário estava implícito o afastamento de uma possível
determinação miasmática da doença, teoria ainda dominante
na época. Mas reconhecia não ter informações exatas da
etiologia e natureza da doença, mas que iriam obter dos
colegas que estavam observando-as de perto.
A Câmara Municipal nomeou uma Comissão médica,
formada pelos Lentes Almeida Couto (de Clínica Médica),
Manoel Vitorino (de Clínica Cirúrgica), Ramiro Afonso
Monteiro (de Clínica Médica), e dos médicos Horácio César e
o tropicalista e redator principal da Gazeta Médica José
Francisco da Silva Lima, provável redator da notícia descrita
acima e do relatório desta comissão, publicado na Gazeta
Médica de abril de 1883 (Nina data equivocadamente março),
com o título “Choreomania” (2) .
A Comissão concluiu que “a moléstia de Itapagipe” era a
coréia epidêmica, sob a forma mais benigna. Depois de uma
breve revisão histórica, comentaram que “os historiadores
são accordes em ligar a gravidade e extensão d’aquellas
epidemias aos meios sociaes da epocha e ás práticas
[supersticiosas e fanáticas] incontestavelmente errôneas”
(p.447)(2), como o ajuntamento dos enfermos em romarias. O
caráter epidêmico foi atribuído ao “contágio por imitação”
(p.448), verificando que, no surto de Itapagipe, “os doentes
sempre tinhão visto um outro soffrendo do mesmo mal” (p.449).
E, de modo surpreendente, comentava que a população em
geral (“o vulgo”) conhecia “essa tendencia communicativa
que havia em muitos dos ‘fenômenos nervosos’; desde o
bocejo, o riso, o choro, que se propagam involuntariamente
por um circulo ou um grupo de indivíduos, até os ataques de
hysteria (grifo nosso) que mal começam em um morador de
uma rua, generalisam-se a muitos outros que não soffriam de
semelhante molestia e que passaram a tel-a depois que na
visinhança veio estabelecer-se o primeiro caso” (p.448)(2). E
afirmam que assim se deu com a coréia de Itapagipe,
reconhecendo, portanto, o caráter histérico da epidemia.
Destaca inclusive o caráter ocupacional de uma parcela
das pessoas acometidas, pois a fábrica, como um local de
trabalho, reúne muitas pessoas e assim possibilita o contágio
pela imitação, o mesmo acontecendo com o local de moradia:
“o ajuntamento d’ellas, quer na fabrica de fiação onde
trabalhavam muitos dos enfermos, quer nas ruas contíguas à
capella do Rosário, onde residia o maior número”(p.449).
Depois de enumerar as diversas formas de manifestação
coreiforme, o relatório voltou a enfatizar o papel da fábrica:
“Entre os casos da fábrica de fiação (maior numero que vimos
Nina Rodrigues: Psiquiatra
15
reunido) foi notavel a influencia exercida pelo ajuntamento e
pela attenção que os doentes prestavam não só ao proprio
estado como ao estado dos demais atacados”(p.449)(2).
Comentava que enquanto examinavam na fábrica cada um
dos doentes de per si, os sintomas eram pouco pronunciados,
mas quando eles se reuniram e, principalmente, quando se
juntara ao enfermo mais atacado, “foi como uma descarga
electrica se exercesse sobre toda aquella gente” (p.450)(2).
Afastaram a possibilidade da epidemia está associada a
intoxicações ou infecções diversas, bem como às causas
miasmáticas. Para tanto analisaram as condições da fábrica de
fiação da Penha, o matadouro, o cemitério da Massaranduba.
As medidas recomendadas, uma vez que não havia “tratamento
terapêutico propriamente dito”, deveriam estar baseadas no
mais racional “tratamento higiênico’: isolar os afetados, evitar
a aglomeração, a fadiga muscular e a excessiva atenção ao
mal, entre outras.
Em seu artigo Nina Rodrigues comentou que o Dr. Souza
Leite, num trabalho de 1888, afirmara que os médicos na Bahia
não tinham reconhecido a natureza histérica da afecção,
tomando-a pela coréia de Sydenham, porque claramente
desconhecia esse relatório publicado em 1883. Nina Rodrigues,
pelo contrário, destacou a precisão da comissão de identificar
como uma manifestação de natureza histérica (p.403-404)(23).
Comentava que, só em 1883, ou seja no mesmo ano do relatório
da comissão, Charcot escreveu o primeiro ensaio de uma
descrição regular daquela afecção (Sur une forme speciale
d’impuissance motrice des membres inferieurs par défaut de
coordination relative à la station et à la marche). Vale
registrar que esses trabalhos sobre a histéria de Charcot
provocaram violenta reação entre seus contemporâneos
(p.232)(1). E, só em 1888, foram empregados pela primeira vez
os termos astasia e abasia (o primeiro, significando
impossibilidade ou dificuldade em ficar em pé e, o segundo,
de andar, sem que haja distúrbio nervoso motor ou sensitivo,
ou seja, sem que haja causa orgânica, como nos transtornos
histéricos). Mesmo criticando o anacronismo, ao querer um
conhecimento que não existia na época, e a desinformação de
Souza Leite, por não conhecer o artigo da Gazeta, NR não
deixou de reconhecer que foi ele, Silva Leite, quem, pela primeira
vez, no mesmo ano que Blocq empregou, em 1888, o diagnóstico
de astasia-abasia os casos da moléstia epidêmica da Bahia
(p.404)(23).
Em sua análise das causas, entretanto, Nina Rodrigues
comenta que tanto a Comissão Médica quanto o Dr. Souza
Leite fizeram uma apreciação restrita e local, não identificando
os determinantes que “prepararam o terreno”, sem o qual, “de
nenhum effeito teria sido a imitação” (p.454)(23).
Para explicar esses surtos epidêmicos nas diversas
províncias, sobretudo do norte do país (além de São Luiz e
Salvador, cita também Belém do Pará), o autor identificou causas
mais gerais no ambiente brasileiro a enfraquecer o organismo e
exaltar as faculdades psíquicas, elas seriam por influências tanto
16
Ronaldo Ribeiro Jacobina
de fenômenos sociais complexos quanto de influências naturais,
mesológicas. Do primeiro grupo de causas, citou o período prérepublicano, seja a condenação e surda revolta ao regime
monárquico anterior, seja o “indiferentismo e descrença
necessariamente mórbidos” do novo regime.
Destacou “a perniciosa influência do escravismo”, que
corrompeu costumes e com o abolicionismo trouxe desastradas
conseqüências econômicas. Além dos determinantes políticos
e econômicos, identificou também culturais, mais
precisamente, religiosos. Os conflitos entre, de um lado, o
monoteísmo europeu e, de outro, o fetichismo africano e a
astrolatria do aborígene. Foi nesse momento que Nina
Rodrigues explicitou sua crença na teoria da degenerescência,
que adaptada a realidades como a brasileira, encontrava nas
raças e, especialmente, na mestiçagem, o elo explicativo para
uma série de fenômenos:
“a explicação racional e scientifica no
mestiçamento, (...), de um povo que conta como
factores componentes raças em grãos diversos de
civilisação porque se achavam ao tempo de fusão,
em períodos muito desiguaes da evolução
sociológica”(p. 456)(23).
Esses determinantes, de caráter geral, não davam conta
da localização regional das epidemias. As razões da decadência
do norte-nordeste que tornavam os locais de tais regiões
“terrenos” favoráveis aos surtos eram: em primeiro lugar, o
clima quente e suas conseqüências para a saúde (indolência e
anemia), em segundo, a repercussão mais forte dos processos
sociais, devido ao pauperismo, emigração, entre outros fatores
e, por fim, as condições sanitárias das cidades onde elas
ocorreram (p.456-7)(23).
Ao final do artigo, comentou que o Dr. Rodrigues Seixas,
da Academia Nacional de Medicina, na capital da República,
assim como fez Dr. Saulnier no Maranhão, considerou que o
“treme-treme” baiano era uma manifestação de beribéri. Nina
Rodrigues fez o diagnóstico diferencial das duas doenças,
reconhece a possibilidade da existência das duas doenças
num mesmo indivíduo, mas concluía, citando Paul Richer da
escola de Charcot, pela etiologia histérica das manifestações
coreiformes em Salvador e São Luís, naqueles últimos quinze
anos.
Degenerescência e mestiçagem na gênese das psicopatias
A adoção da teoria da degenerescência e da mestiçagem
como um fator degenerativo na gênese das doenças mentais,
esboçada na análise anterior desses episódios de transtornos
histéricos em coletividades, se consolida no pensamento de
Nina Rodrigues, em especial em seus estudos de psiquiatria
forense e antropologia criminal, quando abordava a
psicopatologia dos delinqüentes.
Em um dos seus primeiros trabalhos sobre a hanseníase
na província do Maranhão, depois publicado na Gazeta
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
Médica(21), o autor foi criticado por não ter apresentado a
freqüência da lepra por raças. Ainda estudante no Rio de
Janeiro, tanto as observações do Prof. Érico Coelho acerca da
influência da raça negra sobre o ‘puerperismo’ e a tese inaugural
de seu colega Jansen Ferreira, “O parto e suas conseqüências
na espécie negra”, chamaram definitivamente a atenção de
Nina Rodrigues para a questão étnica, inaugurando esse
campo com o trabalho sobre os mestiços no Brasil(22).
Uma de suas primeiras constatações era a de que esses
estudos sobre enfermidades e raças não faziam a distinção
dos diversos tipos de mestiços (o mulato, do branco com o
negro; o mameluco ou caboclo, do branco com o índio; o
cafuso, do negro com o índio; e das formas derivadas, como
por exemplo, o mulato com o índio e todas as combinações
possíveis). Para o autor, isto significava previamente negar o
papel das raças como fator etiológico(22).
Ele levantava a questão se as três raças fundamentais no
Brasil (índios, brancos e negros) transmitiram ou não aos
produtos dos seus cruzamentos caracteres patológicos
diferenciais. Se a resposta fosse negativa, os médicos estariam
poupados do trabalho da distinção citada acima. Se positiva
era tarefa árdua a ser feita. Como Nina acreditava na influência
patológica diferencial das raças ele se propôs a ajudar na
tarefa. De início fez uma crítica às estatísticas médicosanitárias, que distinguiam os pacientes em brancos, negros
e pardos, este último abrangendo os ameríndios e todos os
mestiços. Depois, elaborou uma classificação baseada nos
caracteres morfológicos das raças puras, pois a filiação seria
insuficiente e, segundo sua experiência, era muito difícil
estabelecer o parentesco real(22).
E qual seria a importância dessa definição mais precisa
dos mestiços? Para compreender isto, é necessário
compreender a teoria da degenerescência, adotada por Nina
Rodrigues, que era hegemônica em vários campos de saberes
e práticas, entre os quais na Psiquiatria.
Como crítica ao paradigma anterior, do alienismo, emergiu
o paradigma organicista. Enquanto o primeiro baseava-se na
nosografia moral da desordem, remetendo ao terreno social
patogênico (Pinel, Esquirol), o organicismo supunha uma lesão
localizada na origem da doença (Bayle, Morel). Essa última
corrente se tornou dominante no último quartel do século
XIX e início do XX(13).
Um dos precursores desse novo paradigma na psiquiatria
foi A. L. Bayle (1799-1858). Ao identificar a relação de uma
doença mental, a Paralisia Geral Progressiva, com uma causa
física (encontrou lesões patológicas no cérebro desses
pacientes), num período anterior à revolução microbiana, ele
criticou o modelo anterior:
Esses sábios autores, disse Bayle referindo-se a
Pinel e Esquirol, contentavam-se, em geral, em
observar os fenômenos sem procurar remontar à
sua fonte, em descrever escrupulosamente os fatos
sem querer ligá-los a nenhuma causa produtora
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
(Nouvelle doctrine des maladies mentales, em 1825,
p. 8-9)(7).
A descoberta de Bayle não significou uma questão
relevante para o alienismo, baseado numa etiologia moral, mas
foi retomada com a identificação do agente etiológico da sífilis,
parecendo exemplar, no sentido paradigmático estrito, mas a
busca de micróbios como causa produtora de outras formas
de doença mental, apesar da euforia inicial, logo se mostrou
limitada na medicina mental.
Foi uma teoria não microbiana - a teoria da
degenerescência de B. A. Morel (1809-1873) - que se tornou
dominante na explicação da causa das doenças mentais,
possibilitando a superação da simples classificação
semiológica para a identificação de uma etiologia, segundo a
qual as doenças mentais eram hereditariamente transmitidas.
Aproximar a medicina mental do tronco comum da medicina
era uma perspectiva claramente assumida por Morel, quando
no seu Tratado de 1857 escreveu: “Procurei seguir minha idéia
predominante que era a de vincular, de maneira mais vigorosa
do que se tinha feito até então, a alienação mental à medicina
geral” (p.261)(7).
Como para essa doutrina organicista, a alienação mental
na maioria dos casos não podia ser curada ou recuperada,
Morel buscou superar essa ‘profilaxia defensiva’ do isolamento
do degenerado, propondo uma ‘profilaxia preservadora’ para
combater as causas das doenças e prevenir seus efeitos.
Essa concepção heredobiológica das doenças mentais foi
ampliada pelos estudos e experiências de Magnan (1835-1916),
que a retomou à luz da teoria evolucionista, sustentando a
tese de que a degenerescência seria o desvio que interrompia
o processo natural da espécie; e de Lombroso (1836-1909),
que a utilizou para a antropologia criminal(31,34).
Esse tecno-saber se mostrou orgânico com as finalidades
sociais exigidas naquele momento histórico da psiquiatria: a
de referendar cientificamente os processos de exclusão dos
pobres, dos imigrantes vagabundos e desordeiros, vítimas já
não mais das suas lamentáveis condições de vida, mas de
taras e degenerações individuais e raciais(37). Era mais uma
vez o uso do velho e eficaz mecanismo ideológico de culpar
as vítimas. Segundo Castel(7), não foi por acaso que Morel
construiu sua concepção a partir da observação do
proletariado superexplorado da região de Ruão e das
populações agrícolas da periferia, chegando a propor um
verdadeiro plano de vigilância das populações miseráveis
(p.263)(7). Se todo degenerado seria um desequilibrado mental
e a tara degenerativa era transmitida, vários fatores poderiam
determinar a degenerescência, como intoxicações, doenças
orgânicas, congênitas ou adquiridas, influências do meio
social, bem como a mestiçagem, tese tomada como uma
evidência científica na época. Segundo esta concepção, as
raças se encontravam em momentos evolutivos distintos e os
ameríndios e negros eram identificados em estágios atrasados
ou primitivos. Por tomar essa crença e pré-conceito como
Nina Rodrigues: Psiquiatra
17
verdade científica, influenciado pelos autores franceses e
italianos, Nina passou a ter tanto interesse em discriminar os
mestiços em seus diversos tipos.
Até um dos seus diletos discípulos, Arthur Ramos, não
deixou de fazer essa ‘única ressalva’ ao trabalho do mestre: “É
quando faz intervir o slogan da época: a degenerescencia da
mestiçagem como causa precípua dos desajustamentos
sociaes. (...) Essas idéas são inacceitaveis para os nossos
dias. O pretenso mal da mestiçagem é um de condições
hygienicas deficitárias, em geral” (p.12)(36).
Mas o discípulo não deixa de advogar em defesa do mestre
quando propunha que nos trabalhos de Nina Rodrigues, os
termos raça e mestiçagem, fossem substituído por cultura e
aculturação, e, assim ganhariam completa e perfeita atualidade
(p.12-3)(36). Num paradigma os conceitos guardam relações
entre si para formar a matriz disciplinar. Era preciso passar
toda a matriz por uma crítica de seus conceitos e pressupostos
para que a antropologia médica sobre a temática ganhasse
atualidade, atualidade esta que estava, inclusive,
possibilitando a crítica de Ramos ao estudo do mestre.
Uma crítica contemporânea e não a posteriori quem fez
foi o psiquiatra Juliano Moreira. Ele discutia o caso de um
alienado com paranóia querelante, filho de um italiano e uma
negra baiana(20). Era, portanto, um mestiço. Ao mostrar a
história do paciente ao Professor Nina Rodrigues, “achou elle
no caso mais uma prova de que a mestiçagem é um factor
degenerativo” (p.431)(20). Moreira discordou dessa apreciação
do mestre: “Ora, tendo eu sempre me opposto a esta maneira
superficial de ver o problema”(idem), escreveu nesse artigo
que publicou anos depois, já no Rio de Janeiro, e, como um
cientista que investigava os fatos, como fazia o próprio Nina
Rodrigues, disse que aproveitou uma longa estadia na Europa,
provavelmente na passagem dos séculos XIX-XX, e visitou a
Itália. Lá, localizou e examinou os parentes do mestiço,
comentando num tom irônico “que tinham ficado na Europa
livres de tal mestiçagem” (p.431). No entanto, foi na família
branca do pai do paciente que encontrou vários casos de
transtornos mentais (epilepsia, imbecilidade, alcoolismo, entre
outros) d.
Se Moreira negava explicitamente, como visto acima, a
mestiçagem como fator degenerativo, demonstrando inclusive
d
Moreira localizou a pequena cidade italiana onde moravam os parentes
do pai do mestiço, que era dependente de bebidas alcoólicas. Ele tivera
dois irmãos e uma irmã. Um dos irmãos desertou o exército e partiu
para os EUA, não se tendo mais notícias dele. O outro, “imbecil, ébrio
habitual, turbulento, muito supersticioso (...); casou-se e teve dois filhos,
ambos imbecis” (p.431). A irmã era epiléptica e teve três filhos, um
também epiléptico, outro imbecil e o terceiro homicida e possivelmente
epiléptico. O doente teve uma irmã histérica, que se casou e teve duas
filhas, que, segundo informações colhidas, nada tinham de anormal.
Juliano considerou o paciente mestiço com um quadro melhor que os
primos italianos, entretanto não seria devido ao “cruzamento, mas sim
da circumstancia de ser a mãe delle [a negra baiana] uma mulher sã”
(p.432) (20) .
18
Ronaldo Ribeiro Jacobina
uma consciência étnica, por outro lado, ele não negava a teoria
da degenerescência, questionando apenas alguns fatores
causais dela, como a raça, o clima e o uso estereotipado dos
estigmas degenerativos(31,34).
Sobre a maneira superficial de analisar a questão
(mestiçagem como fator degenerativo), Juliano Moreira se
propôs a publicar, em outra ocasião e mais detalhadamente,
documentos demonstrativos de que “neste ponto não tinha
razão o meu sábio mestre”(p.431)(20). Aqui fica claro o afeto
(“meu”) e a admiração intelectual (“sábio mestre”) do
psiquiatra pelo Catedrático de Medicina Legal. Uma
discordância pontual não fazia Moreira negar a importante
contribuição intelectual de seu interlocutor.
Em sua análise sobre a epidemia de loucura religiosa em
Canudos, embora preso às teorias da degenerescência e dos
estudos antropométricos para definir os degenerados
criminosos e loucos, Nina Rodrigues buscou outras
referências. Identificou uma diferença entre o mestiço do litoral
e o do sertão, que chamou de ‘jagunço’, nos quais, segundo
ele, a “nota degenerativa” era menos acentuada (p.64-65)(24).
No exame antropométrico do crânio de Antônio Conselheiro,
não encontrou nenhum dos sinais de degenerescência que
apresentava o degenerado louco e criminoso(26).
Em relação à vesânia (loucura) de Conselheiro, ele a
diagnosticou como um delírio crônico de uma psicose –
paranóia - sistematizada e progressiva (p.52-53)(24). Ela
apresentava as características descritas por Magnan: longa
duração do delírio, as transformações em fases bem distintas,
a sistematização delirante perfeita e as alucinações: a primeira
fase foi do delírio de perseguição; depois ele se transformou
em enviado de Deus, ganhando conteúdo religioso (delírio
místico) e, por fim, com o advento da República, tornou-se um
messias monárquico contra o novo regime, em contínuo
convívio com Deus, provavelmente de origem alucinatória (p.
130)(26).
Nem as teorias da época (escolas francesa e italiana), nem
a caracterização da loucura de Conselheiro deram conta
adequadamente do fenômeno. Aqui aparece o precursor da
psicologia social:
“Alguma coisa mais que a simples loucura de um
homem era necessária para este resultado e essa
alguma coisa é a psychologia da época e do meio
em que a loucura de Antonio Conselheiro achou
combustível para atear o incêndio de uma
verdadeira epidemia vesânica” (p.63)(24).
Ele fazendo uma análise histórica sintética e magistral,
destacou os determinantes sociais na eclosão da “epidemia
religiosa”, como o advento da república, regime que pressupõe
a autoridade racional, da lei – abstrata – e não da autoridade
do rei ou do profeta. E um fator específico, os conflitos políticos
e as rivalidades locais no sertão:
“No que concerne aos antecedentes hereditários
(grifo nosso) de Antonio Maciel, sabe-se que
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
descendia de uma família cearense valente e
bellicosa, que durante muito tempo se empenhara
numa dessas luctas de extermínio, muito freqüentes
na história dos nossos sertões, entre famílias
poderosas e rivaes. No decorrer dessas luctas,
deram seus ascendentes provas de uma grande
bravura, e muitas vezes requintada crueldade. Mas
como temos verificado, essas luctas são a
conseqüência do estado social da população
inculta do interior do paiz, não sendo necessário,
para explicá-las, recorrer a uma intervenção
vesânica (grifo nosso)”(26).
Depois de conhecido estes dois exemplos de síndromes
psicossociais – um de uma grande neurose e o outro de uma
psicose –, cabe, nesse momento, conhecer da obra em
psiquiatria social, a análise crítica feita pelo autor para
assistência psiquiátrica no país e das propostas de mudanças
inovadoras para o sistema de saúde mental da época.
Assistência psiquiátrica na Bahia – princípios e propostas
Na sub-área da Psiquiatria social, Nina Rodrigues deu
contribuições tanto para a legislação psiquiátrica quanto para
o planejamento e administração do sistema de saúde mental
na Bahia e no Brasil. No que diz respeito à legislação
psiquiátrica, escreveu um livro importante “O alienado no
direito civil brasileiro”, bem como influenciou a lei federal de
1903, que regulamentou a assistência psiquiátrica pela primeira
vez no Brasil. Sobre o planejamento e a assistência psiquiátrica
produziu também um livro “A Assistência a alienados no
Brasil”28, que reunia vários trabalhos seus publicados em
revistas e mesmo em jornais diários, destacando sua crítica ao
asilo de alienados da Bahia e, consequentemente, à péssima
qualidade do ensino de psiquiatria clínica que era realizado
nele, na época.
Quando, em 1904, uma epidemia de beribéri grassou
novamente no Asilo de alienados S. João de Deus,
administrado pela Santa Casa de Misericórdia (SCM), sendo
que, dessa vez, quase exterminou os alienados recolhidos
nele, o catedrático de Medicina Legal considerou imperativo
uma ação pública ante a má qualidade da assistência no
manicômio, que, como já referido, comprometia também o
ensino lá realizado. Nina não apenas agiu demandando ações
da Congregação da FAMEB ou produzindo artigos na imprensa
médica, mas também nos jornais diários da época, como o
“Jornal de Notícias” (p.165)(26).
A repercussão das denúncias, inclusive com manifestações
dos estudantes de medicina, levou a Faculdade de Medicina
da Bahia, sob a direção do Prof. Alfredo Brito, a designar uma
comissão para apurar os fatos. Uma comissão foi constituída
pela Congregação da FAMEB, sendo relator o próprio Nina
Rodrigues que, contando com a colaboração dos professores
Pacífico Pereira, como presidente, Tillemont Fontes, catedrático
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
de psiquiatria, substituído por Luiz Pinto de Carvalho. O parecer
elaborado por Nina Rodrigues, cuja versão original ele publicou
no seu livro(28), sofreu algumas modificações e foi apresentado
à FAMEB, em 25 de agosto de 1905(29). Este documento foi
considerado por Aristides Novis em 1923, como um paradigma
a ser seguido33 e a Gazeta Médica da Bahia, num artigo de
homenagem póstuma que descreve sua trajetória acadêmica e
científica, diz: “Seu ultimo labor scientifico foi dedicado á
causa dos alienados na Bahia, tendo sido relator da Comissão
encarregada pela Congregação da Faculdade de estudar a
organisação do ensino da clinica psychiatrica” (p.62)(35) e.
Esses estudos tiveram conseqüência práticas. A análise
sobre as epidemias que dizimavam a população manicomial
fundamentou a campanha do professor de medicina legal na
imprensa de Salvador, em favor dos alienados, e resultou em
dois fatos que, segundo ele, mereciam registro: um foi o acordo
firmado entre a Diretoria da Faculdade e o governo do Estado
para a elaboração do plano dos serviços de assistência a
alienados da Bahia, “visando harmonizar os interesses da
assistência estadual com os do ensino da clínica psychiatrica”
e o outro foi a “salvação dos últimos vinte e cinco alienados
beri-bericos que, feitos transferir pelo Sr. Dr. Governador para
uma enfermaria improvisada no Mont-Serrat, se
restabeleceram todos”(p.153)(28).
O documento não se limitou a analisar o ensino de
psiquiatria no asilo; fez um diagnóstico da assistência que era
prestada naquele manicômio (“o que ela é”), como também
elaborou uma proposta (“o que ela pode e deve ser”),
sugerindo além de reformas no São João de Deus, outras
modalidades de cuidado psiquiátrico (27), que só foram
concretizadas no decorrer do século XX. Merece destaque e
cabe uma análise mais detalhada a apresentação dos princípios
que, segundo Nina, deveria servir de base para a legislação
da assistência psiquiátrica na Bahia.
Ele começa defendendo uma diversidade institucional para
realizar a assistência aos alienados, com hospital psiquiátrico
para os agudos, asilo ou hospício para os crônicos incuráveis
e não aptos ao trabalho, e as colônias agrícolas para os
alienados de origem rural e as “colônias industriais”, que
corresponderia hoje as oficinas protegidas, para os ofícios
urbanos. Enumerava ainda o instituto médico-pedagógico para
a “infância anormal”(deficientes mentais); secções ou
enfermarias para os “dementes senis” no asilo de velho e um
serviço para o louco criminoso, nascendo a idéia do manicômio
judiciário. Esta modalidade se destacaria, inicialmente, como
pavilhão no Asilo e só depois, nos anos 50, como uma
instituição autônoma(14). No princípio 9°, ele cita o tratamento
domiciliar, desde que tenha condições dos cuidados exigidos
e
Este documento está publicado de três modos e existem pequenas
diferenças em cada uma delas: o parecer apresentado pela Comissão que
fez algumas modificações que o relator acatou(29); o artigo publicado na
Revista de Curso da FAMEB(27); e o capítulo VIII do livro “A Assistência
a alienados no Brasil” (28).
Nina Rodrigues: Psiquiatra
19
pelo Estado, que deve ser notificado para possível fiscalização.
Sobre a assistência familiar, no artigo na Revista da Faculdade,
ele destacou e discutiu com mais detalhe a experiência de
Franco da Rocha em São Paulo(27).
Segue outros princípios que detalham a organização da
rede de serviços, defendendo a regionalização,
descentralização e hierarquização dos serviços:
“Esses estabelecimentos serão distribuídos pelos
pontos mais convenientes do Estado” (grifo nosso)
(2°), seguindo as exigências técnicas da assistência
e administrativas e econômicas do aparelho
estatal (28) ; esses diferentes serviços seriam
distribuídos, “segundo a sua importancia, n’uma
graduação hierarchica (grifo nosso)”(5°).
Ainda no 2° princípio, ele propôs uma articulação com a
assistência hospitalar geral, que só se realizou, nos anos 80
do século XX: “o governo do Estado entrará em accordo
com as administrações dos hospitaes das cidades do interior,
que os possuem, para ser nelles installado pelo menos um
modesto serviço destinado á admissão precoce, embora
provisória, dos casos agudos curáveis”(28). Em cidades
populosas podem ser criados “serviços locais”, tanto para
agudos quanto para crônicos, mas que seriam também
fiscalizados pelo governo (3°).
Admitiu a complementaridade do setor privado
(“estabelecimentos particulares congêneres”), que deveriam
cumpri as leis e regulamentos estaduais, além de serem
submetidos também à fiscalização estatal (também no 3°
princípio).
Sobre a questão da coordenação da assistência defendeu
um comando colegiado, não como é hoje, com a sociedade
civil organizada (estávamos na República Velha, com um
estado liberal oligárquico e a sociedade civil era ainda muito
pouco diferenciada). De qualquer modo, era uma proposta
para além do governo estadual, com a participação de
‘profissionais competentes’, em especial da Academia. Nina
Rodrigues, como relator, propôs no 7° princípio que a
“Comissão de Assistência a alienados” deveria ter cinco
membros, contemplando um médico alienista, um jurista e um
engenheiro sanitário, além do Governador, representado pelo
Secretário do Interior, onde ficava a assistência à Saúde
(p.168)(28). É possível que ele tenha errado no número por
pudor, mas a Comissão, que elaborou o parecer, incluiu um
profissional de medicina legal e também um de higiene. Essa
comissão teria entre suas funções a de fiscalização, elaboração
das normas, regulamentos e regimentos internos dos
estabelecimentos, indicação dos novos serviços, baseada em
critérios técnicos (p.15-16)(29). Para a direção, foi proposto
que deveria ser um médico alienista, que deveria residir no
estabelecimento (4°). Os médicos deveriam ter competência
em psiquiatria, serem aprovados por concurso e numa
proporção de 1 para 100 pacientes agudos e de 1 para 200
pacientes crônicos (5°). Estudantes de medicina atuariam no
20
Ronaldo Ribeiro Jacobina
asilo como internos e externos, sendo também aprovados por
concurso (6°). Verifica-se aqui a articulação clara com a FAMEB
para a realização de um trabalho de extensão acadêmica.
Em relação aos usuários dos serviços, o relator e depois a
comissão como um todo expressam a função contraditória da
psiquiatria, de tratamento e cura, mas também de exclusão
social: “Será recolhido (...) o indivíduo que por moléstia mental
congênita ou adquirida, necessitar tratamento ou
comprometter a ordem publica, a própria segurança ou a de
outras pessoas”(p.169)(28);(p.16)(29). Com sua experiência em
legislação sanitária, inclusive psiquiátrica, teve o cuidado de
registrar na lei as formas de admissão dos doentes mentais em
manicômios: “Em caso algum, porem, o internamento pode
ser feito sem autorisação do juiz a quem compete no logar a
proteção legal dos incapazes e sem a verificação medica do
estado de alienação mental”(p.169)(28); (p.17)(29). Mesmo nos
casos de urgência a admissão era considerada provisória,
tendo o diretor 24 horas para levar o fato ao conhecimento do
juiz (NR propôs um prazo um pouco maior de 48 horas, mas a
comissão não aceitou).
Parece excesso de zelo, mas o estudo sobre o asilo S. João
de Deus/ Hospital Juliano Moreira, demonstrou que não foram
poucos os abusos cometidos na admissão e permanência de
usuários do serviço manicomial, doentes ou não(14).
No financiamento, haveria a contribuição dos não
indigentes, os chamados pensionistas, com o pagamento
sendo feito pelo próprio doente, seus familiares, amigos ou
uma corporação ou sociedade (profissional, religiosa etc.) a
que pertença. Os indigentes seriam da responsabilidade do
Estado. Através de legislação poderiam criar um Fundo, com
recursos vindo da participação dos municípios que tivessem
pacientes indigentes internados e dos impostos sobre as
principais fontes de produção de alienação mental. Embora
não seja explicitado, o principal alvo eram as bebidas
alcoólicas. Nos anos 20, o diretor do Asilo s. João de Deus,
Prof. Mário Leal, inspirado nesta proposta, conseguiu aprovar
lei que tributava as bebidas(14).
Os últimos princípios eram mais operacionais,
estabelecendo um cronograma de prioridades na recuperação
do manicômio e criação dos demais serviços.
Em relação aos princípios doutrinários, que Nina Rodrigues
apresentou para a Comissão e, depois de aceitos, foram
aprovados também pela Faculdade de Medicina da Bahia,
serviram de inspiração para dirigentes da assistência
psiquiátrica na Bahia (Mário Leal, Aristides Novis, entre
outros). No seu conjunto, verifica-se que, embora naquele
momento ainda não existisse a proposta de um modelo de
restrição à internação e centrado na reabilitação do paciente
encarado como sujeito, como são as reformas
contemporâneas, não deixa de impressionar a atualidade da
concepção de uma rede regionalizada, hierarquizada, por
complexidade crescente, esta última ilustrada no grau da
especialização do profissional. São também atuais tanto a
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
defesa do concurso público para médicos e estudantes quanto
a indicação dos dirigentes feita por uma comissão com critérios
técnicos, além de políticos, bem como a articulação da saúde
mental com a rede de saúde em geral e a idéia de um comando
colegiado, pois os profissionais competentes viriam da
indicação não só da Academia, mas também das entidades
profissionais já existentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da obra deste autor leva a uma constatação
curiosa e aparentemente paradoxal. Nina Rodrigues, ao mesmo
tempo em que se constituiu no principal agente intelectual
do processo de especialização da Medicina Legal no interior
da Medicina, produziu uma obra múltipla envolvendo não
só outros campos da Medicina, como a psiquiatria, a
infectologia, a medicina social, mas também em áreas afins,
como o direito, a antropologia médica, a sociologia da saúde.
O paradoxo é aparente, pois, ao mesmo tempo, ele
demonstrava a especificidade de sua área, a necessidade de
um aprofundamento, num saber que vai ficando esotérico,
que só a especialização possibilita. Por outro lado, ele
praticou a necessidade do especialista cada vez mais dialogar
com outros campos, cujos objetos de estudo são
necessariamente interdisciplinares ou, diríamos hoje,
transdisciplinares. A alienação mental, usando o termo da
época, é um desses objetos que requer uma abordagem
múltipla e, como campo de saber e prática, a medicina mental,
depois nomeada de psiquiatria, foi uma das primeiras a se
constituir também como especialidade no campo médico.
Ao destacar de sua obra os estudos no campo da
Psiquiatria e analisar alguns desses trabalhos, embora não
tendo sido exaustivo e minucioso como deveria, foi suficiente
para constatar a relevância e originalidade da contribuição do
catedrático de medicina legal. Sua obra sobre as síndromes
psicossociais – as “coletividades anormais” – foi precursora
no Brasil. A astasia-abasia histérica, com suas múltiplas
denominações como “treme-treme”, tremeliques”, foi
facilmente reconhecida, em 1918, com um novo nome “caruara”
para essa nova epidemia. Os estudos sobre Lucas da Feira e
Antônio Conselheiro permitiram a Nina Rodrigues constatar
os limites da teoria lombrosiana do criminoso nato,
confrontando a teoria com os dados. Isso levou o pesquisador
a formular análises sociológicas válidas até hoje para as
questões de poder no sertão brasileiro. Até sua obra mais
polêmica, sobre os africanos no Brasil, pelo rigor de sua
descrição e sistematização dos aspectos culturais (das
crenças, dos dialetos, dos costumes etc.), ficou como um
patrimônio para a etnologia, reconhecido pela maioria dos
antropólogos baianos e brasileiros que estudam a temática.
Sua concepção equivocada sobre a mestiçagem, dada como
uma realidade científica na época, foi criticada, não só por
seus sucessores e opositores, mas também por autores que
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S11-S22
foram contemporâneos de Nina Rodrigues, como Juliano
Moreira.
No âmbito da psiquiatria social, formulou as bases para
uma assistência psiquiátrica, que serviram de roteiro para as
reformas que foram feitas na saúde mental durante todo o
século XX e alguns princípios e propostas mantém atualidade,
como regionalização, descentralização, hierarquização dos
serviços, a atenção psiquiátrica nos hospitais gerais. A
investigação sobre a epidemia de beribéri no manicômio serve
como paradigma, pois, com recursos simples, permitiu uma
verdadeira pesquisa-ação, ao investigar as causas, elaborando
uma moderna concepção de determinação social das doenças,
e, ao estabelecer como se dava a distribuição no espaço asilar,
possibilitou a transferência e sobrevivência dos doentes com
a doença carencial.
Nem apologia nem caricatura, Raymundo Nina Rodrigues
merece ter sua obra conhecida e assim, criticada com os
instrumentos da ciência, refutada e/ou referida. Seguir a
recomendação bíblica, separar o joio - o que em sua obra está
morto - do trigo, o que nela está vivo.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos ao Prof. Fernando M. Carvalho, Professor
Titular de Medicina Preventiva da FAMEB-UFBA, pelas suas
sempre valiosas colaborações. Ao apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), à linha de
pesquisa “Memorial da Medicina Baiana” (PPP, Programa
Primeiros Projetos).
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Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28
Nina Rodrigues e a Arte Negra ano Brasil
23
Nina Rodrigues e a Constituição do Campo da História da Arte Negra no Brasil
Nina Rodrigues and the Organization of the Field of the History of the Afro-Brazilian Art in Brazil
Marcelo N. Bernardo da Cunha1 , Eliane Nunes2 , Juipurema A. Sarraf Sandes1
1
Museu Afro-Brasileiro da UFBA, Salvador, Bahia, Brasil;
2
Instituto de Artes e Design da UFPel, Pelotas, RS, Brasil
Este artigo tem por finalidade avaliar o texto As Belas Artes nos Colonos pretos do Brasil, de Nina
Rodrigues, produzido a partir dos estudos que realizou sobre arte negra presente na Bahia, entre
finais do século XIX e início do século XX, demonstrando através de quais pressupostos ele
constituiu este campo de estudos, sendo o primeiro autor a lidar com o tema, estabelecendo dois
paradigmas sobre os quais o tema seria abordado na primeira metade do século XX: o acento na
arte de matriz iorubana e análise exclusiva de objetos ritualísticos.
Palavras-chave: Nina Rodrigues, arte negra, cultura afro-brasileira.
The purpose of this article is to evaluate the text: As Belas Artes nos Colonos pretos do Brasil
[The Fine Arts of the Black Colonists of Brazil], by Nina Rodrigues which was made through the
research about the Afro-Brazilian art in Bahia, between the end of the 19th century and the
beginning of the 20th century. It demonstrates how he made this field of research, he was the first
author to deal with this theme and he established two paradigms which this issue would be
approached in the first half of the 20th century: the mark at the Yoruban art origin and the
analysis of the ritualistic objects.
Key-words: Nina Rodrigues, Afro-Brazilian art, Afro-Brazilian culture.
Ao lembrar o centenário de falecimento de Nina Rodrigues,
o Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia se
propôs escrever um artigo fazendo uma análise do pensamento
deste pesquisador a respeito da arte afro-brasileira, sendo ele
considerado o primeiro autor a lidar com este tema no Brasil.
O convite formulado pelo Instituto Bahiano da História da
Medicina e Ciências Afins transformou-se em desafio para a
equipe de professores pesquisadores do Museu,
considerando-se a escassez de fontes e a inexistência das
peças que foram coletadas e analisadas por Nina Rodrigues.
Mesmo assim, o caráter pioneiro dos seus estudos reveste-se
da mais alta importância, como inicio de um ciclo de estudos
sobre a produção cultural de negros no Brasil.
Escrever sobre a obra de Raymundo Nina Rodrigues é
uma tarefa complexa, pois nos cem anos que nos separam de
seu falecimento, as mudanças ocorridas no modo como se
pensa a questão racial foram tão profundas, que o próprio
Recebido em 14/9/2006
Aceito em 11/11/2006
Endereço para correspondência: Prof. Marcelo N. Bernardo da
Cunha, Praça XV de novembro s/n, Faculdade de Medicina
da Bahia, Terreiro de Jesus, Cep. 40025-010, Salvador, Bahia,
Brasil. E-mail: [email protected].
Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):23-28.
© 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.
conceito de raça está ultrapassado. Hoje sabemos que todos
somos iguais na essência humana e as diferenças não são
consideradas como sinais de inferioridade e sim de
diversidade. Neste contexto, as teorias de Nina foram
superadas, mas não se pode incorrer num anacronismo e
avaliar sua obra como se tivesse sido composta na
contemporaneidade. Ela é fruto de seu tempo e o exercício
que aqueles dedicados ao estudo da arte afro-brasileira
devem realizar para compreendê-la é por demais atual: tratase mesmo de uma necessidade, especialmente num país como
o Brasil, cuja intelectualidade, por vezes, tem dificuldades
de estabelecer predecessores, avaliando criticamente as
contribuições passadas, ultrapassando posições
polarizantes. Reconhecer o racismo do autor não pode
impedir de igualmente reconhecer seu pioneirismo e sua
contribuição ao estudo do negro e de sua arte, mas trata-se
de alargar diálogos, considerando as condições envolventes
de sua época de forma desapaixonada.
O propósito deste artigo é avaliar criticamente o legado de
Nina Rodrigues sobre arte, demonstrando a partir de quais
pressupostos teóricos foi montado o cerco discursivo sobre
arte afro-brasileira, pois foi o primeiro autor a lidar com o tema.
Para realizar o intento, será analisado como ele abordou
exemplares da arte que denominou negra, ou seja, o que Nina
pensava sobre arte, arte africana e arte afro-brasileira. Visando
manter a terminologia utilizada pelo autor, a partir de agora
24
Marcelo Bernardo da Cunha, et al.
será utilizado o termo arte negra, tanto para designar peças
africanas quanto brasileiras.
Se o interesse de Rodrigues sobre o negro e sobre a África
o coloca como pioneiro, foi também motivo para reações de
seus colegas de trabalho e da sociedade da qual era membro.
Repreendido no púlpito de mais de uma igreja de Salvador,
segundo seu biógrafo, o também médico Lamartine Lima(6),
ganhou o apelido de ‘negreiro’. Além disso: [...] começou a
sofrer certas restrições entre alguns professores das
faculdades da Bahia e chegou a ter o abastecimento d’água
de seu gabinete cessado propositalmente, sendo obrigado
logo a busca-la no chafariz do Terreiro de Jesus, com seus
alunos [...].
Mas afora a estranheza e a contradição aparente no fato
de que um homem cujos desdobramentos da obra o colocam
como o grande disseminador das teorias racistas no Brasil ter
sofrido discriminação, afora a contradição real de um mestiço
defender idéias que em última instância, iam contra ele mesmo,
a originalidade de sua obra foi ter abordado um tema tão
distante das preocupações dos médicos e de toda a
intelectualidade brasileira da época, a arte negra. Como lembra
Valdemir Zamparoni (12) , os estudos de Nina Rodrigues
contrariavam a tendência do período imediatamente posterior
à abolição da escravatura, que era a de negar a reflexão sobre
a África, os africanos e seus descendentes. Assumia que
existia no Brasil uma “questão negra”, embora, como seja claro
na atualidade, partindo de uma “perspectiva evolucionista
etnocêntrica em busca da solução desta questão de higiene
social”.
Com exceção de alguns estudos pontuais, o interesse pela
África teve que esperar até os anos sessenta do século XX
para ser manifesto no Brasil, na esteira dos movimentos de
libertação dos países daquele continente. Principalmente após
o ano das comemorações do centenário da abolição da
escravidão (1988), o assunto arte afro-brasileira passou a ser
muito discutido, gerando várias publicações, mas no início
do século vinte, a matéria não era comum. Com o artigo As
Belas Artes nos Colonos Pretos do Brasil, Nina Rodrigues
inaugurou o campo de estudos sobre arte negra. Publicado
inicialmente na Revista Kosmos do Rio de Janeiro, em 1904a ,
este artigo sintetiza as diligências de Nina Rodrigues sobre
arte negra. Fruto de um trabalho de campo e análises
bibliográficas sobre arte africana, trata-se de um texto seminal,
que sob vários aspectos analisados a seguir, estabeleceu as
bases sobre as quais o assunto seria tratado no próximo meio
século. A primeira alteração ocorrerá apenas em 1956, quando
Arthur Ramosb ampliou o leque de obras a serem abordadas
no interior da arte afro-brasileira, incluindo artistas populares
e que produziam obras laicas. Até então, o que se denominava
arte afro-brasileira era a produção ritualística e de origem
iorubana e fon, tal como conceituou Nina Rodrigues.
Compartilhando a tese de que os povos acima eram mais
desenvolvidos do que os bantos, Rodrigues aferrou-se à
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28
informação, hoje contestada, de que para o Brasil teriam vindo
mais negros do primeiro grupo do que do segundo. Tomou o
dado local que estudou, a Salvador do final do século
dezenove, pelo Brasil como um todo, e o caracterizou como
sendo um país para onde vieram predominantemente
iorubanos. Ao selecionar as peças que iria abordar em seu
artigo, o autor elegeu apenas obras destinadas ao culto
religioso, deixando de fora as obras populares e mesmo as
eruditas produzidas por negros aqui mesmo, em Salvador, na
Escola de Belas Artes da Bahia e Liceu de Artes e Ofícios, tais
como Antonio Firmino Monteiroc e Antônio Rafael Pinto
Bandeirad . Com esta seleção criou um paradoxo que perpassa
toda a história da arte afro-brasileira, a da relação exclusiva
entre arte negra e religião. Somente com a exposição de 1997,
A mão afro-brasileira(1), artistas negros que realizaram obras
eruditas no século XIX foram historicizados, com a introdução
destes na mostra, como artistas afro-brasileiros, muitos dos
quais contemporâneos de Nina, considerando para a inclusão
nesta categoria apenas o fato de serem negros e não a temática
presente nas suas obras.
Analisemos, pois As Belas Artes nos Colonos Pretos do
Brasil, única obra conhecida de Nina que se refere
especificamente à arte negra. Nela o autor analisou seis obras
de arte negras (Figura 1)e , a saber: um Oxê de Xangô com
representação masculina (2º objeto), uma estatueta de
“sacerdote ou filho de santo” (3º objeto), um trono de Iemanjá
(5º objeto), uma estatueta do culto de Oxum (6º objeto), um
Oxê de Xangô com representação feminina (8º objeto) e um
cofre que o autor atribuiu a Iemanjá (Figuras 2 e 3), peça sobre
a qual o autor dedica o estudo mais detalhado.
O autor inicia o sub-item, no qual faz referência
especificamente à pintura e escultura, com uma defesa da arte
produzida por negros: “O natural menosprezo, que votam
aos escravizados as classes dominadoras, constitui sempre,
e por toda a parte, perene ameaça de falseamento para os
propósitos mais decididos de uma estimativa imparcial das
qualidades e virtudes dos povos submetidos”(10). Claro está
que ele atribui à arte negra uma positividade e esta postura
fica evidenciada no decorrer do texto, em que por diversas
vezes faz assertivas elogiosas a ela. [...] “nesses toscos
produtos, já é Arte, que se revela e desponta na concepção
da idéia a executar, como na expressão conferida à idéia
dominante dos motivos” (10).
Atentemos para o fato de que Nina, ao assumir esta posição
estava na contramão da tendência de seu tempo, a qual, via
de regra, atribuía a estes objetos apenas valor etnográfico,
sequer nominando-os como arte, sendo encarados e utilizados,
como documentos do estágio atrasado da cultura material e
sociedades africanas e afro-brasileiras, recolhidos como
indicadores da realização de cultos religiosos então
abominados.
A Etnologia despontava como a ciência do exótico, criando
seus próprios museus, separando convenientemente as
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28
Nina Rodrigues e a Arte Negra ano Brasil
25
Figura 1.
Figura 3.
Figura 2.
produções artísticas dos povos que estudava, daquelas da
cultura erudita ocidental, medida para a atribuição do valor de
arte a um objeto. As obras africanas eram adjetivadas como
primitivas e sobre elas o interesse era científico e não estético.
Para demarcar claramente sua posição, Nina não se satisfez
em usar o termo arte, o fez utilizando em letra maiúscula,
incluindo-a em um único conceito universal de belo ocidental,
em uma construção histórica segundo a qual existiria uma arte
fora do tempo com premissas que permearam e ainda permeiam
boa parte da filosofia da arte. O termo arte utilizado com letra
maiúscula fazia referência, ao seu tempo, apenas à arte erudita
ocidental.
Se para o médico, os negros não eram iguais aos brancos
biologicamente e por isso, não poderiam ser tratados como
tal, até mesmo sob o aspecto legal, com referência à arte sua
postura é mais heterodoxa, pois afirma que “Com outros
26
Marcelo Bernardo da Cunha, et al.
recursos, em outro meio, muito podem dar de si”(10). Assim,
se os artistas negros tivessem acesso a escolas onde fossem
ensinadas as regras da arte erudita ocidental realizariam as
formas esculturais mais próximas daquilo que ele considerava
a perfeição. Mas ao mesmo tempo, as palavras do autor deixam
transparecer o tom paternal com o qual ele acreditava que
deveriam ser tratados os “inferiores”: investia nas
potencialidades negras, mas não as equiparava às brancas.
Suas obras procuram justamente evidenciar e reconhecer,
em suas palavras, as diferenças físicas, culturais e morais
dos negros brasileiros como integrantes do patrimônio
cultural nacional, ainda que as considere inferiores em
relação à contribuição do branco europeu(12).
Demonstrando conhecer as bibliografias recentes sobre
arte africana, assunto que apenas começava a suscitar o
interesse de etnólogos e historiadores europeus, Nina fez
referência às pinturas ideográficas e ao famoso trono do rei
Bêhanzin (Figura 4)f , os dois do Daomé. Aliás, comparou o
referido trono a um cofre sagrado encontrado em uma praia de
Salvador (Figuras 2 e 3), equiparando-os. Diz textualmente:
[...] “o cofre sagrado...vale o trono de Bêhanzin”(10), o que
deve ser considerado como uma tentativa de valorização da
arte negra brasileira, ao tempo em que valorizava a arte do
Benin. A relação que estabelece entre as duas obras serviu
também para que o autor defendesse a tese de que os exescravos brasileiros eram oriundos do mesmo povo que
realizou o citado trono.
Figura 4.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28
Informando como pretendia realizar a análise das obras
eleitas para o estudo, o autor mantém o tom relativizador em
seu discurso sobre a arte dos negros e da importância dos
contatos com a produção e técnicas artísticas ocidentais para
o seu aperfeiçoamento: Mandam as regras de uma boa crítica
desprezemos as imperfeições, o tosco da execução, dando o
devido desconto à falta de escolas organizadas, da correção
de mestres hábeis e experimentados, de instrumentos
adequados, em resumo, da segurança e destreza manuais,
como da educação precisa na reprodução do natural(10).
Para Nina a boa arte era aquela ensinada nas academias
que estavam encarregadas de transmitir, através de mestres,
regras fixas tais como a cópia de modelos extraídos não somente
da natureza, mas, sobretudo de obras do passado.
Ponto pacífico nas análises do autor é a superioridade da
arte européia erudita, especificamente aquela elaborada a partir
do Renascimento italiano, medida de atribuição de valor a
qualquer outra cultura. A arte considerada perfeita era a que
imitava a realidade e, sobretudo, a que recompunha a realidade
idealmente. Esta teoria da arte vigorou longo tempo,
arrefecendo apenas no início do século XX na Europa e na
década de vinte no Brasil, sob os auspícios da Semana de
Arte Moderna de 22.
A crítica de arte de Nina Rodrigues parte dos antigos
pressupostos e ao analisar as obras realizadas por artistas
africanos ou afro-brasileiros estabelece comparações que hoje
são consideradas inoportunas, pois que não há nenhum
sentido em vincular dois modelos estéticos tão diversos, já
que a contemporaneidade compreende que as duas tradições
tinham objetivos diferenciados ao materializarem suas formas
artísticas.
Podemos apontar nas análises desenvolvidas por Nina,
influências claramente devidas aos médicos Jean-Martin
Charcot, o mais renomado neurologista francês do século XIX,
e Paul Richer, seu aluno e colaborador, que utilizam obras de
arte em seus estudos. Outra influência foi a obra de Maurice
Delafosse, que trabalhou no Museu de História Natural da
França estudando e catalogando obras de vários povos da
África, apesar de sua formação como orientalista especialista
em árabes. Delafosse era administrador colonial francês na
África. Dele Nina Rodrigues extraiu a precisão na descrição
das peças. Este método descritivo é típico da etnologia, muito
embora possa ser confundido com o método formalista da
História da Arte, sendo que a diferença básica entre eles é que
o método etnográfico não realiza a análise estilística das obras,
pois que não lhe é necessária. As análises realizadas por estes
estudiosos e seguidas por Nina partiam de indicios presentes
nas obras.
Ao contrário da idéia corrente à época, enfatizava que as
obras dirigidas aos rituais não eram fetiches, como [...]“se
poderia acreditar à primeira vista, como o supõe o vulgo,
como o têm afirmado cientistas e missionários que se deixam
guiar pelas aparências e exterioridades”(10), encarando-as
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28
como representações simbólicas relativas aos atributos das
divindades, como imagens [...]“dos sacerdotes deles
possuídos e revelando na atitude e nos gestos as qualidades
privativas das divindades que os possuem”(10).
As abordagens de Nina Rodrigues foram limitadas tanto
pelo desconhecimento das culturas africanas e preconceitos
sobre as culturas negras locais, resultando de considerações
muitas vezes baseadas em observações empíricas, quanto
pelas suas concepções sobre arte, a partir das quais estabelecia
nexos e interpretações da realidade e da cultura material
produzida por negros. No caso da análise iconográfica da
peça “Sacerdote ou filho-de-santo dançando” (Figura 1, 3º
objeto), fica claro que o autor desconhecia que a escultura é
apresentada em posição de joelhos fletidos, figuração típica
que denota posição de estabilidadeg em muitas culturas da
África. Mas quando da publicação do texto, os estudos
referentes à história da arte africana eram incipientesh e é
presumível que estas constantes formais fossem
desconhecidas. Para ele, a posição da figura do sacerdote ou
filho de santo era a tentativa frustrada do artista negro de
representar a dança que faz parte do ritual de possessão no
candomblé. [...] representa um sacerdote ou filho de santo
dançando, provavelmente possuído do orixá. É com precisão
Figura 5.
Nina Rodrigues e a Arte Negra ano Brasil
27
a atitude dos braços com que, num curto movimento
cadenciado destes, os dançarinos, dispostos em fila, uns atrás
dos outros, acompanham o ritmo da música bárbara do
batucajé, batendo compasso nos flancos com os cotovelos.
O escultor, não conseguindo dar aos membros inferiores a
disposição da marcha, limitou-se a figurar a atitude meio
agachada de um dos passos da dança”(10).
Após uma breve consideração sobre um trono de Iemanjá,
o autor se detém na análise de dois oxês de Xangô (Figura 5),
comparando, quanto aos fins, estas obras com uma gravura
cristã do século V, sobre a qual Charcot e Richer realizaram
estudo iconográfico. “Como expressão simbólica, os dois
produtos de arte se equivalem e bem retratam a identidade
essencial do pensamento humano nas diferentes espécies ou
raças”(10). Partindo da equivalência simbólica Nina Rodrigues
deduz a existência de uma “identidade essencial do
pensamento humano” apesar de acreditar na existência
desigual de espécies ou raças humanas.
O autor identificou, entre as obras analisadas, tendência à
representação realística das figuras, o que atribuiu a contatos
com o mundo branco, como indice do mestiçamento dos
indivíduos produtores das obras, uma vez que considerava
que a arte primitiva baseava-se na figuração idealizada. Ao
analisar a escultura referida como uma peça do culto a Oxum
(Figura 6) observou que o artista estava preocupado em
representar a figura de uma mulher com traços fisionômicos
brancos. As tatuagens ou gilvazes étnicos do rosto, como a
cor preta, não conseguem mascarar os atributos da raça
branca, no nariz afilado ou leptorrínio, na boca pequena,
lábios de grossura não exagerada, nas proporções do talhe.
Não fossem, como outros de menor monta, os defeitos dos
braços desproporcionados as formas anatômicas bem
corretas, esta peça estaria quase perfeita”(10).
Excelente observador, como já apontaram vários estudos
sobre ele, ao descrever o cofre que comparou ao trono de
Bêhanzin, narrou toda a ação presente na figuração, como se
pode observar na citação abaixo: A mulher da frente, em pé
por dentro do arco formado pelo crocodilo e, logo atrás do
laço, segura e levanta com a mão direita a pata esquerda do
réptil que, forçado por este movimento, fica com a cabeça
deitada de lado; com a mão esquerda, segura e levanta a
cauda do animal, sobre cuja extremidade descansa o fundo
do cofre(10).
Sobre este objeto o autor consagrou o estudo mais
aprofundado, primeiramente realizando longa descrição para,
logo a seguir, interpretar sua iconografia complexa a partir do
seu suposto conhecimento sobre mitologia jeje, identificando
“incoerências” na representação da peça, como, por exemplo,
a comemoração da morte de um o jacaré, animal “sagrado
para muitos africanos”(12), por um homem branco, atribuindo
esta iconografia às alterações que os cultos vinham sofrendo
na própria África à sua época. O autor não explicita quais os
parâmetros que utilizou para identificar esta peça como um
28
Marcelo Bernardo da Cunha, et al.
Figura 6.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S23-S28
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Antropologia no Brasil. São Paulo: USP, tese de doutoramento,
1983.
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au Musée ethnographique du Trocadero. La Nature: revue des
sciences et de leurs applications aux arts et à l’industrie, Paris:
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na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
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http://
www.historiadoreletronico.com.br.
10. Rodrigues R. N. Os africanos no Brasil. 7º edição. São Paulo: Ed.
Nacional; Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1988.
11. Silveira R. da. Os selvagens e a massa: papel do racismo científico
na montagem da hegemonia ocidental. Afro-Ásia 23: 87-144,
1999.
12. Zamparoni V. D. Os estudos africanos no Brasil. Veredas.
Recuperado em 10 de outubro de 2005 de:
www.mulhresnegras.com.br., 2p.
Notas
“cofre de Iemanjá” inexistindo na análise iconográfica
apresentada, quaisquer indicios que nos permitam tal
atribuição.
Como esta obra, bem como todas as outras às quais este
estudo faz alusão estão desaparecidas, não se tem como avaliar
a precisão e a justeza das descrições e interpretações de Nina
Rodrigues. Refletir sobre as abordagens realizadas por ele,
revela as dificuldades inerentes aos estudos de cultura material
baseados na abordagem dos indícios dos objetos em si, sem
maior aprofundamento e conhecimento dos contextos
culturais que deram origem aos mesmos.
Nina Rodrigues não compreendeu inteiramente a gramática
formal da arte negra produzida na Bahia, mas é preciso que se
diga que apesar de afirmações que hoje podemos apontar como
resultantes de limitações relacionadas ao conhecimento da arte
negra de então, reforçadas pelas teorias racistas vigentes, o
seu mérito foi trazer à cena da época uma obra capital, que
iniciou uma tradição de estudos sobre a temática, permitindo
que na atualidade seja possível uma visão do quadro da
produção de cultura material afro-brasileira na virada do século
XIX ao XX, dando visibilidade à presença negra na cultura e na
arte brasileira de então e suas continuidades contemporâneas.
a
b
c
d
e
f
g
h
Posteriormente o artigo foi publicado no livro Os africanos no
Brasil, editado em 1933. O artigo foi reeditado em 1998 no
catálogo da exposição A mão afro-brasileira e também em Para
nunca esquecer. Negras Memórias, memórias de negros, de
2001).
In: O negro na pintura, escultura e arquitetura. In: o negro na
civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,
1956, cap. X, p. 138-149.
Nascido no Rio de Janeiro em 1855 e falecido em 1888. Formado
na Academia Imperial de Belas Artes. Pintor, tipógrafo e artesão,
foi professor de Pintura na Escola de Belas Artes da Bahia de
Perspectiva e Teoria da Sombra, no Liceu de Artes e Ofícios em
Salvador, cerca de 1887.
Nascido em Niterói em 1863, falecido no Rio de Janeiro em 1896.
Formado na Academia Imperial de Belas Artes. De 1887 a 1890,
ocupou o cargo de professor de desenho no Liceu de Artes e Ofícios
em Salvador.
As imagens das peças aqui apresentadas estão na obra Rodrigues R.
N. Os africanos no Brasil (10).
Esta imagem foi publicada no artigo de Maurice Delafosse na revista
La Nature.(4)
Posição recorrente em figuras que representam gênese, constância,
força, permanência e poder em algumas sociedades tradicionais
africanas, que simbolizam a base a continuidade da harmonia cultural.
FROBENIUS, Leo publicou em 1898 o primeiro estudo sobre as
máscaras africanas.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34
Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia
29
Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia
Nina Rodrigues and the African Art in Bahia
Jaime Sodré
Universidade do Estado da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil
Este artigo aborda as opiniões do Dr. Raymundo Nina Rodrigues, no campo da produção artísticoreligiosa dos “colonos pretos” no Brasil, levando em conta o seu o ponto de vista, de base etnográfica,
sobre as peças coletadas por ele do universo do Candomblé, que serviriam de substrato para a
contemporânea definição de uma “Arte afro-brasileira” ou “Arte Negra”. O texto também elabora
discussões pertinentes à temática da Filosofia da Arte, e as opiniões dos artistas da “corrente
cubista”, a exemplo de Picasso, sobre a “arte negra”.
Palavras-chave: Nina Rodrigues, arte afro-brasileira, Filosofia da Arte, candomblé.
This article treats of the Doctor Raymundo Nina Rodrigues opinions on artistic and religious
production of Brazilian “black settlers”, considering his ethnographical viewpoint about the
pieces he compiled in Candomblé univers and that have been the substratum for the contemporary
definition of “Afro-Brazilian Art” or “Black Art”. The text also presents arguments in Art
Philosophy and cubist artists like Picasso opinions about “Black Art”.
Key words: Nina Rodrigues, Afro-Brazilian art, Art Philosophy, candomblé.
Este texto tem o caráter de um breve ensaio, limitado pelo
privilegiado espaço cedido pela “Gazeta Médica da Bahia”. O
que mais me fascina neste fazer é a possibilidade, baseado no
que afirmara o Dr. Nina Rodrigues(4) em seu livro “Os Africanos
no Brasil”, de tratar da contribuição africana registrada na
Bahia, vislumbrando uma estética particular, hoje já integrada
no cotidiano baiano. Esta possibilidade resgata um aspecto
de “humanização”, na “sensibilidade” espiritual e estética do
povo africano e afro-brasileiro, contrastante com a idéia de
um ser apenas serviçal, embrutecido, ignorante, insensível,
voltado exclusivamente para o trabalho no ato braçal, pouco
criativo e rudimentar, ou seja, a possibilidade do exercício da
arte resgata aos negros a sua humanidade pela via do senso
estético.
Embora não possamos enxergar, explicitamente, uma
preocupação voltada para a complexidade do objeto enquanto
arte, no texto do Dr. Nina, pois esta não seria o seu objeto
primordial de estudos, o registro oportuno e os seus
comentários do ponto de vista etnográfico, é até hoje creditado
Recebido em 20/9/2006
Aceito em 14/11/2006
Endereço para correspondência: Prof. Jaime Sodré. Av. Cardeal
da Silva, 53, apto. 103, Federação. 40231-305, Salvador, BA,
Brasil. Telefax: (71) 3235-2770.
E-mail: [email protected]
Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):29-34.
© 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.
como uma contribuição valiosa. Seria impossível
aprofundarmos as apreciações das ações culturais dos negros,
se não fosse a presença deste importante material, salvo de
um contexto que creditava a estes objetos um baixo grau de
relevância. O valor negado culminava, por vezes, em ações
policiais de apropriação ou simples destruição. O cuidado
observado pelo “Mestre Nina” a estas peças e seu estudo,
assemelhava-se aos dos criteriosos colecionadores de uma
obra de arte, na condição de instrumento etnográfico, pois ele
reconhecia o seu valor.
Se hoje enxergamos nestes objetos manifestações de
“ARTE”, decorridos longos anos de evolução conceitual, isto
nos leva, de forma mais confortável, a visualizar nestas
produções qualidades estéticas, tendo como elemento gerador
a matriz africana. Seria absolutamente anacrônico exigir do
pesquisador Nina Rodrigues uma postura que é vigorante em
nossa época, quando a arte africana e afro-brasileira já
encontram-se, provavelmente, isentas de questionamentos.
As preocupações dele eram outras, e também
importantes, mas a seleção dos objetos estampados em seu
livro, com uma visão de um “curador” que lembra,
discretamente, os organizadores de exposições
contemporâneas, nos é muito grato e não perdera a sua
utilidade e relevância, não merecendo outra postura, senão
o mais amplo reconhecimento por este cuidado e preservação
de um material que outros simplesmente destruiriam com a
retórica dos golpes, fruto dos preconceitos, alimentados pelo
fogo da ignorância além das ações da polícia.
30
Jaime Sodré
“As belas-artes nos colonos pretos”, um dos itens do
livro aqui referido, de autoria de Nina Rodrigues, representa a
abordagem do “Mestre”, no que ele identificou como, a
“ocasião de dizer das formas por que se revelava nos colonos
pretos a aptidão à cultura artística”. Para ele, todas as BelasArtes se agrupariam de modo lógico e completamente natural,
em torno da Linguagem, representadas nas duas formas de
exteriorização de sentimentos e pensamentos, ou seja, na
palavra e na escrita.
Examinaremos mais tarde estas idéias, no momento, vale a
pena assegurar que, ao referir-se às “Belas-Artes”, Nina não
se envolve na parafernália teórica e filosófica sobre este
assunto, tão ao gosto dos pensadores da poética, da estética
e da plástica, na eterna discussão do “Belo”.
Estes senhores do “saber e das virtudes nos moldes dos
pensadores”, elaboraram uma definição de ‘Belas-Artes” que
classifica como tal a arquitetura, a escultura e a pintura, em
oposição á arte aplicada ou decorativa, diferenciação
indeterminada, ao menos, até os meados do século XVIII.
Tampouco não acreditamos que o “Mestre” se apoiaria na
concepção de “Beaux-Arts, Beaux-Arts tradition”, no sentido
deste termo associado à École das Beaux-Arts de Paris, esta,
fundada em 1617, apesar de Nina Rodrigues relacionar-se
otimamente com a cultura francesa. As Belas-Artes em Nina
reveste-se de caráter descritivo, logo, etnográfico, isenta de
aprofundamentos da filosofia da arte.
No campo da Filosofia da Arte, diz melhor Jean Lacoste(2),
da École Normale Supérieure, exercendo a função de professortitular. Onde couber, o legado do material de arte africana
coletado por Nina Rodrigues poderia, contemporâneamente,
desfrutar das reflexões de Lacoste, considerando este acervo
incluso no campo das artes.
Para este, a “arte é irredutível à linguagem e aos conceitos
[...], a própria arte encarrega-se de fazer explicar, no tempo e
no espaço, toda e qualquer definição canônica do belo”. No
que se refere à arte africana ou afro-brasileira, a sua força e
particularidades estéticas, ao longo do tempo, as fizeram
enxergá-las como tal. Quanto aos artistas, “colonos pretos ou
não”, as “Belas-Artes”, segundo Lacoste, “são filhas do
gênio”. A definição desta “beleza” nas Belas-Artes se faz
nascer de um prazer estético implícito nas sensações dos
observadores e no seu fazer.
Questões como a posição de Platão, que reconhece a
existência das coisas que são belas em si mesmas, por
fornecerem um prazer limpo, ou seja, sem misturas,
contrastando com a visão de Sócrates, onde o belo é uma
concordância que resulta do ouvido e da vista, ou posições
que remontam à utilidade da beleza, sendo relativa com um
bem no qual o objeto belo concorda, culminará com Kant que
afirmará: “o belo é útil”. São discussões alheias ao fazer do
Mestre Nina, embora a aplicação destes conceitos, numa
postura especulativa atual, poderia valer-se do apoio do
material estético africano, recolhido pelo zelo do Mestre. Deste
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34
modo, “as coisas belas”, que cabem em todas as culturas, só
são belas por conduzirem aqueles que as amam a buscarem na
unidade deste fator, os sentidos que fazem estas coisas serem
realmente “belas”.
Um aspecto importante na definição da “beleza” como
elemento de contemplação estética, é a busca da unidade dessa
definição pela via da multiplicidade, que encontra-se nas “belas
coisas”. Apesar da rigidez da análise etnográfica, o Mestre
Nina não elimina a possibilidade do “belo” naquelas obras
por ele selecionadas. Na verdade, há um julgamento na postura
do Mestre, um julgamento mediante o seu gosto e gozo
estético, um julgamento que postula “uma coisa bela”, levando
em conta que a capacidade de julgar, em geral, seria a faculdade
que permite relacionar o que é particular com o universal,
onde um julgamento é algo “determinante e reflexivo”, como
afirma Lacoste, sendo que, para este, essa faculdade de julgar
reflexiva “é tão-só a aplicação de conceitos, apriorísticos do
entendimento”.
Mas, por outro lado, o “gosto”, sensação que envolve
conhecimento e sentimento, cultiva-se, e só uma longa
experiência apura as regras deste sabor. Deste modo, não
podemos deixar de vislumbrar nas análises e afirmações do
Dr. Nina Rodrigues, no campo das “Belas-Artes” dos colonos
pretos, um prazer e um gozo em lidar com este material, a seu
modo e época. O gosto, empenho e maneiras detectados em
suas pesquisas, levariam o Mestre a um julgamento crítico
das obras africanas, às regras de uma ciência, onde as
especulações filosóficas seriam naquele instante
desnecessárias aos seus objetivos.
Seria no mínimo incoerente querer exigir do Mestre, de
forma explícita, afirmações como esta, farta em Lacoste, de
que: “As belas artes são as artes do gênio”. Reconhecer
“genialidade” nos produtores dos objetos africanos, Nina o
faz, a julgar pelo fato do seu interesse em estudar as peças
produzidas por estes. O gênio importa em um “talento”, ou
um “dom natural”, “uma faculdade produtiva inata”, sendo
que, o paradoxo do gênio é ser simultaneamente “original e
exemplar”. È possível reconhecer nas peças selecionadas pelo
Mestre Nina Rodrigues estas qualidades, de modo objetivo
ou até mesmo subjetivo. Os esforços empreendidos pelos
africanos na produção do seu fazer artístico, tem a necessidade
do nascimento da obra de arte com a finalidade de comunicar
um conhecimento, um estado cultural particular, para suporte
de uma prática religiosa especial e própria, reconhecida pelo
Mestre.
São nestas “Belas-Artes dos colonos pretos” onde
encontramos o lócus da arte, em uma forma particular, sendo
o suporte sobre o qual o espírito criativo africano e a sua
religiosidade se manifestam, e isto o Mestre analisa bem,
esboçando uma preliminar de “Arte sacra africana”, sendo
esta, uma arte que extrai o seu valor e sua legitimidade, por ser
um fazer essencialmente humano e para os humanos. Nina
contempla a produção artística dos colonos pretos como um
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34
Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia
ato de humanidade, tão oportuno naqueles tempos. A arte
dos negros também tem por finalidade tornar concreto o que
ela possui de conteúdo e de riqueza estética, aos olhos dos
que se capacitarem para assim a ver.
Especula Lacoste: “O que é o belo? Uma idéia. Mas o que
é uma idéia? A idéia não é uma representação abstrata, é a
unidade de um conceito e da realidade. O conceito é a alma e
a realidade o invólucro físico”. Lacoste, unindo as suas idéias
no essencial aos tempos pretéritos das idéias do Mestre Nina
Rodrigues, em ambos poderemos visualizar, cada qual a seu
modo, que: “A ARTE É NECESSÁRIA”.
Mas, que Arte é esta de viés africano?
Hoje, seria fácil estabelecer parâmetros conceituais sobre
arte a africana e suas derivações na diáspora, desde que
superadas as visões etnocêntricas ou acadêmicas
conservadoras. Nem sempre existiu esta facilidade no campo
conceitual, tomemos como exemplo paradigmático o que
chamamos: “o caso Picasso”. Entre 1906 a 1907, Pablo Picasso
pintou a célebre “Señoritas de Aviñión”. Examinando esta
obra, encontramos em sua tela uma reprodução, que outros
chamariam de apropriação, de traços que remetem ao repertório
estético africano, deste modo, Picasso inaugura em seu
repertório plástico o que foi chamado de “época ou fase negra”.
Fundamentado nestes parâmetros, entre 1913 a 1914, Picasso
realiza construções, em materiais diversos que, como afirma o
historiador do cubismo, Daniel Henry Kahnweiler, assinala
sua rigorosa ruptura com os traços da escultura européia.
Nesta época, este artista admirador da produção estética
negra, colecionava máscaras africanas, a exemplo de algumas
da região de Sassandra, na Costa do Marfim. O que se vê é
que, além da observação de caráter estético e inspirador, o
pintor espanhol deveria estar absorvendo estes objetos
também sob o ponto de vista de uma obra de “arte” e, mereceria
um reconhecimento como tal.
Pois bem, segundo o que nos informa Michel Leiris(3),
associado à Jacqueline Delange, em seu livro África Negra –
La criación plástica, a revista Action trazia em seu terceiro
número uma discussão interessante: “Opiniones sobre el arte
negra”, com visões de personalidades, a exemplo de Paul
Guillaume, Victor Goloubew, além de artistas cubistas como
Picasso, Juan Gris, Jacques Lipchitz, entre outros. Muitos
opinavam sobre o que se chamava na época de “arte negra”.
Questionado sobre este assunto, Picasso, aquele que
inspirado neste acervo produziu uma revolução nas artes
plásticas, respondera: “El arte negra? No lo conozco”, negavase a considerar enquanto “arte”, no sentido corrente do termo,
às produções africanas.
Ao que parece, segundo alguns autores, seria uma reação de
Picasso contra o emprego da expressão “arte negra”, considerada
vaga, já que esta expressão postulava a existência de um possível
vínculo entre determinado tipo de arte e a cor da pele.
Recorremos a Mariano Carneiro da Cunha(1) quando o
mesmo aborda a “Arte afro-brasileira” e menciona a evolução
31
da escultura africana, numa tentativa de traçar uma linha
conseqüente entre a produção de matriz africana, repercutida
na produção local. Neste âmbito discute-se, ao que me parece,
sem nenhuma inibição, constrangimento ou inadequação, o
que conhecemos como “arte negra”.
O que se torna evidente em suas afirmações é a natural
visão africana da “necessidade da arte”, e a naturalidade da
existência dessa forma de realização humana, que poderá ser
vista como “arte negra”.
Referindo-se a uma abordagem ancestral desta arte,
Mariano Cunha notifica a existência do mais antigo exemplar
de uma escultura africana, produzida em madeira, encontrada
na África “negra”, que tem como traços escultóricos,
elementos zoomorfos. Este objeto foi descoberto próximo das
nascentes do rio Liavela, em uma área identificada hoje como
pertencente a Angola, e foi datado pelo processo do carbono
14, como produzida por volta dos meados do século VIII.
Mariano Cunha elabora elementos que considera
fundamental para uma compreensão global do que seria a
“arte africana” ou “arte negra”, que impõe a consideração de
três elementos: “a) o formal e técnico; b) a finalidade e o sentido;
c) sua capacidade de influir sobre outras culturas”.
Através destes elementos analíticos, não se poderá
descartar ou negligenciar o “negro” enquanto elemento
componente de uma história da arte, tanto quanto se levarmos
em conta esta presença em outras áreas do conhecimento, a
exemplo da economia, o campo social ou cultural. No caso do
ambiente antropológico, neste particular é inevitável a menção
ao nome do Dr. Nina Rodrigues, onde o mesmo elabora análise
tendo a “arte negra” como suporte.
Indo além, Mariano Cunha notifica que neste âmbito, uma
ação importante seria a que atuasse na “erradicação de certos
hábitos rançosos de ex-colonizadores, de sistematicamente
atribuir tudo o que se considera bom ou apreciável à metrópole,
sobretudo em se tratando de bens culturais cuja origem se
desconheça ou se conheça mal”. Citando Nina Rodrigues,
afirma: “no que pesem os preconceitos que informam sua obra
e que não mais resistem à crítica atual, continua sendo, quanto
à informação e método, a fonte mais segura para os trabalhos
posteriores sobre o negro no Brasil”.
Referindo-se às primeiras coleções de obras de matriz
africana (arte negra), o autor registra que os primeiros
exemplares de arte afro-brasileira foram as peças coletadas por
Nina Rodrigues e publicadas em 1949 na revista Kosmos [A].
Estas peças teriam sido recolhidas a partir de 1890. Menciona
ainda, Mariano Carneiro, que na época estas peças
encontravam-se na coleção de Artur Ramos, na Universidade
Federal do Ceará, em 1949. É este intelectual quem analisaria
alguns exemplares coletados pelo Mestre Nina, nos
candomblés da Bahia, em 1927, e que também se achavam na
Universidade Federal do Ceará [B]. Informa também, Mariano
Cunha, que na época um acervo também importante seria o do
Museu da Discoteca de São Paulo, que abrigaria uma série de
32
Jaime Sodré
“ferramentas” de orixás coletadas em 1937-38, em Recife,
Maranhão e Bahia. Nesta oportunidade, levando em conta o
que afirmara Mariano Carneiro da Cunha, seria o Dr. Nina
Rodrigues um dos pioneiros na tarefa de salvaguardar estas
relíquias históricas, assumindo a preocupação de creditar a
importância devida.
Pioneiro pesquisador, cuidadoso colecionador, mas afinal,
o que constituiria este empenho admirável do intelectual Dr.
Raymundo Nina Rodrigues, na lida diuturna em relação a este
acervo valioso, que legitimara, mais tarde, um conceito de
“arte negra”, “arte africana” ou “arte afro-brasileira”? É o que
veremos agora, afinal, esta é a verdadeira motivação destas
modestas linhas.
Entre as aptidões dos chamados “colonos pretos”, como
se refere Nina Rodrigues aos africanos e descendentes, a
pintura e a escultura merecem uma abordagem interessante,
inclusive registrada na revista Kosmos, em um artigo ao qual
se referiu Mariano Carneiro da Cunha.
O texto do Mestre Nina inicia-se com uma reflexão sobre a
atitude de menosprezo implementada pelas classes
dominadoras, que engendra uma visão de falseamento diante
das qualidades e virtudes dos povos submetidos, gerando
uma crença geral, estimulado por “escritores pátrios” de que
os negros que colonizaram o Brasil “pertenciam aos povos
africanos mais estúpidos e boçais”. Para Nina, haveria de
chegar o tempo em que: “observações desapaixonadas dos
fatos [...] (reabilitaria) os negros dos exageros dessa
condenação tão sumária quanto infundada”. E, testemunha:
“nas levas de escravos [...] vinham de fato, inúmeros
representantes dos povos africanos negros mais avançados
em cultura e civilização”.
As capacidades artísticas manifestadas na pintura e
escultura pelo povo negro, consideradas pelo Dr. Nina “as mais
intelectuais das belas-artes”, eram as atividades que melhor
atestariam os seus talentos, do que puderam realizar na música
e na dança. Da pintura negra pouco se saberia, além de “toscos
desenhos”, e criações ocorridas no Daomé, em escrituras
ideográficas, análogas aos hieróglifos, que seriam uma língua
sagrada que decoravam palácios reais africanos.
Para Nina Rodrigues é na escultura com maior segurança
e apuro que se revela a capacidade artística dos negros,
provado “em presunções indutivas como no testemunho de
fatos e documentos”. As primeiras palavras do Mestre são
generosas e francas, eliminando as possibilidades de uma
inapetência dos negros no campo criativo, em especial nas
artes, e acrescenta que, nas querelas africanas, ao apoderarse de Caná e Abomei, capital do reino africano, Bêhanzin
entregara, destruída e em chamas, antes de abandoná-la ao
general Dodds, “o salvo do incêndio em curiosas espécimes”
da escultura negra, que foram enviados ao Museu do
Trocadero. Compunham essas relíquias de três estátuas dos
últimos reis daomeanos, duas portas do palácio real e um
trono régio, em tamanho natural [C].
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34
Os deuses e o culto seriam os temas mais valiosos e fonte
de inspiração “por excelência dos rudos (sic) artistas negros”,
sendo que os de ordem religiosa se agregam motivos retirados
da caça e da guerra. Com esta afirmação, Nina Rodrigues
começa a elaborar o que chamamos de uma “análise do ponto
de vista puramente etnográfico”.
Mencionando as ilustrações contidas no livro de sua
autoria, importantes como elementos indispensáveis à sua
análise, anuncia o Mestre ter reunido no grupo “peças
diversas do culto jeje-iorubano dos orixás ou voduns, peças
estas ligadas às práticas destas religiões, sobreviventes. Ao
que parece, não teria lhe interessado ou não teria ele
encontrado, peças do repertório do campo da religiosidade
de base banto, também merecedora da sua observação.
Fazendo escola, anuncia Nina Rodrigues: “Mandam as
regras de uma boa crítica (que) desprezemos as imperfeições,
o tosco da execução, dando o devido desconto à falta de
escolas organizadas, da correção de mestres hábeis e
experimentados, de instrumentos adequados, em resumo da
segurança e destreza manuais, como a educação precisa na
reprodução do natural”.
Eliminando a “idéia de ídolos”, como teriam afirmado
cientistas e missionários que “se deixam guiar pelas
aparências e exterioridades”, os negros da Costa dos
Escravos, os de língua iorubana ou nagô, os de língua jeje,
tshi ou gá “não são idólatras”, protesta com veemência Nina
Rodrigues. Segundo ele, suas divindades, ou seja, “os
deuses africanos”, já partilhavam de qualidades
antropomórficas das outras divindades politeístas, porém
“ainda conservam as formas exteriores do fetichismo
primitivo”, creditando este fato a uma fase curiosa do
animismo. As peças, afirma, não são representações diretas
dos orixás e, sim, de sacerdotes por eles “possuídos”,
revelando as qualidades das divindades, sendo que isto não
passaria de uma representação.
Ainda no grupo destes objetos, com exceção da quarta
peça que é confeccionada em bronze, as demais se utilizavam
da madeira como matéria-prima, as primeiras são todas vindas
da África, às quais Nina considera nem sempre tão imperfeitas
como as demais. No campo dos elementos vinculados à
religião dos orixás, encontram-se os “atributos fálicos” de
Exu, representado por duas peças em bronze, que o
pesquisador conservara em seu poder, não sabemos se por
razões de proteção, para estudos mais profundos ou uma
outra razão particular, pois como sabemos, Nina Rodrigues,
vinculado ao Candomblé na qualidade de Ogan de Oxalá do
Terreiro do Gantóis, era cauteloso sabedor das propriedades
deste orixá. Julgando por seus critérios, o Mestre atribui às
peças de madeira vindas da África ou produzidas no Brasil,
um caráter grosseiro e pouco significativo, porém outras
traduziram as intenções conceituais dos seus autores que
representaria um sacerdote ou um filho de santo dançando,
possivelmente “possuído” por um orixá.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34
Nina Rodrigues e a Arte Africana na Bahia
Já a peça com cerca de 60 centímetros de altura, constitui
um tronco ou banco destinado ao sacerdote ou “feiticeiro”,
incorporado pelo orixá Yemanjá, tese que demonstra a
intimidade do autor com as práticas rituais de matriz africana.
Outras peças, ainda atuantes nos candomblés da Bahia, são
os “oxés” de Xangô, tão bem retratadas pelas fotos de Pierre
Verger. Diante destas avaliações, Nina Rodrigues admite que
a “concepção artística do escultor negro” tem a capacidade
de confrontar com as concepções similares a uma “pintura
branca do século V da era cristã”, igualmente dentro da
temática religiosa, e figurantes nos trabalhos iconográficos
de Paul Richer e Charcot sobre o “Demoníaco na Arte”.
O Mestre informa que a gravura cristã mostra o “demônio
saindo da cabeça de um energúmeno” sob a injunção de Jesus
Cristo. Para Nina, um oxê também reproduz uma cena de
possessão, afirmando que: “Apenas Xangô reveste, não a
forma humana que tem o demônio da pintura cristã, mas a sua
forma fetichista de meteorito ou de pedra do raio”e, conclui:
“Como expressão simbólica, os dois como produtos de arte,
se equivalem.” Nina adverte que não deveria ir além desta
breve análise, naquela oportunidade, para reservá-la aos
estudos no campo “médico-psicológico”.
A perícia dos “artistas negros”, de certo modo, recebe
uma apreciação positiva, reconhece Nina que a concepção
dos escultores já revela um “cunho artístico” bem elaborado
em suas peças, observadas nos traços de característica
étnica negra aplicados de forma bem configurada, “o nariz
chato etíope, os olhos à flor da cara, os lábios grossos e
pendentes estão reproduzidos fielmente nas peças.” Há
ainda uma constatação de uma possível “mestiçagem” nas
peças, à qual Nina não sabe afirmar ser um fator original do
traço do artista ou fruto da convivência em um espaço
social branco, que determinava a associação de
características das duas raças. Nina considera
absolutamente possível as duas procedências, sendo que,
aqui, onde viviam os negros sob a direção e influência
branca, a América educaria os escultores pretos com novos
traços, modificando os cânones originais. Sendo, deste
modo, um caso puro e simples de influência social de
sugestões e imitações inconscientes, que de regra
“exercem as classes superiores dirigentes sobre as classes
inferiores ou dirigidas”. Mas, é preciso recordar, que o
inverso também pode ocorrer, a exemplo do “caso Picasso”.
A respeito do cofre, neste destacava-se uma cena de
pesca análoga à reprodução escultural. A respeito desta peça,
o Mestre informa que a mesma fora encontrada nas praias “de
banho da Calçada do Bonfim”, envolta em uma toalha de linho
branca. A explicação de Nina remete a uma “obrigação”
relacionada ao falecimento de um “pai ou mãe de terreiro”, a
quem pertenceria esta peça e fora lançada ao mar com outros
objetos do seu peji, por não haver quem desejasse substituir
na direção do culto. A peça foi confeccionada em um só bloco
de madeira, as figuras representavam um homem da raça
33
branca, de olhos azuis e dentes enormes, uma mulher, um
negro e um animal.
A dificuldade estaria como compreender “uma escultura
africana destinada a celebrar qualquer façanha de um homem
branco”. Diante deste desafio interpretativo, o Mestre conclui
que esta obra poderia ser em louvor a algum feito de um homem
branco, aliado ou protetor, o mesmo reconhece alianças entre
brancos e negros, inclusive durante o processo do tráfico
negreiro, e cita o caso de Francisco Félix de Sousa, mulato
fluminense, o primeiro xaxá de Ajuda, que foi agraciado pelo
rei Gezo como “o primeiro dos brancos”.
Como conclusão, Nina Rodrigues reivindica um tratamento
especial, frente às características da produção negra, coerente
com a sua história e estágio cultural. Não admitindo que
fossem utilizados como pontos de aferições, cânones do que
ele chama da “Arte dos povos civilizados”. Estava aí
estabelecido um tratamento diferenciado, ao que parece, não
sob a ótica de uma especificidade e singularidade cultural,
pois para ele: “Os frutos da Arte negra não poderiam pretender
mais do que documentar, em peças de real valor etnográfico,
uma fase do desenvolvimento da cultura artística. E, medidas
por este padrão, revelam uma fase relativamente avançada da
evolução do espírito humano. É já a escultura em toda a sua
evolução, mesmo na sua feição decorativa, do baixo-relevo à
estatuária. Às vezes são ainda grosseiras porque as idéias
não têm a precisa nitidez, os sentimentos e a concepção estão
ainda pouco definidos, mas no fundo já se encontra a gema
que reclama polimento e lapidação”.
Mas, o Mestre Nina Rodrigues nos premia com um raio de
esperança, afirmando que: (os colonos negros e seus
descendentes) “com outros recursos, em outro meio, muito
podem dar de si”. Parece-me que o Mestre fala de
oportunidades e capacitação, na perspectiva de, como afirma
o Mestre Didi: “evoluir sem perder a essência”. E ao que
parece a profecia se realizou.
Hoje com naturalidade, mas valendo-se do pioneirismo do
MESTRE Nina Rodrigues, podemos definir uma produção
artística de matriz africana com a opinião que nos fornece
Mariano Carneiro da Cunha: “Arte afro-brasileira é uma
expressão convencionada artística que ou desempenha função
no culto dos orixás, ou trata de tema ligado ao culto”, esta
forma de definição remete esta produção exclusivamente a
elementos estéticos ligados ao culto de matriz africana, porém,
como reconhece também Mariano Cunha, podemos incluir
neste campo as iconografias associadas aos “cultos de
caboclos”, e ao repertório simbólico da umbanda, ambas
desfrutando da influência do culto afro-brasileiro, por terem
seus esquemas estéticos e mentais ligados à cosmovisão
africana.
O que se afirma na arte africana cabe perfeitamente na arte
afro-brasileira, uma arte conceitual e icônica que, para a sua
completa fruição, o observador deverá ter intimidades com o
universo simbólico que orienta esta produção. A arte afro-
34
Jaime Sodré
brasileira oferece o seu sentido, significação e importância
por ser um agente que exprime pela via estética, um manancial
do acervo cultural negro, um dos construtores da nossa
identidade.
Pelo exposto, fruto do empenho do Mestre Raymundo
Nina Rodrigues, muito temos que agradecer-lhe, muito que
compreender na observação da ousadia dos pioneiros e suas
incorreções, plantadas como sementes que os posteriores,
por certo corrigirão. Tudo estaria inerte sem a gênese de um
começo, muito temos que louvar ao MESTRE, destemido em
suas idéias.
As bênçãos de Oxalá, o seu generoso Eledá.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S29-S34
2. Lacoste J. A filosofia da arte. Tradução de Álvaro Cabral, Rio de
Janeiro. Jorge Zahar. 1977.
3.Michel L & Delange J. África Negra – La criación plástica. Tradução
de Luiz Hernandéz Alfonso. Madrid: Aguilar. 1967.
4. Rodrigues N. Os africanos no Brasil, 7ª edição. São Paulo: UnB,
1988.
Notas
[A]
[B]
Referências Bibliográficas
[C]
1. Cunha, MC da. Arte afro-brasileira. In: Zanini W. História geral da
arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Sales, 1989.
Revista Kosmos, ano I, agosto de 1904, sob o título – As BelasArtes nos colonos pretos do Brasil.
Em seu texto Mariano Carneiro da Cunha informa que o
Instituto Geográfico e Histórico das Bahia teria uma
pequena coleção de peças apreendidas pela polícia, no
Candomblé de Pulquéria do Gantóis, que na época estaria
no Museu Estácio de Lima, do Instituto Médico Legal Nina
Rodrigues.
Estas peças continham os traços dos protetores totêmicos dos
reis Guesô, as penas de um galo, Guêlêlê um homem crocodilo e
Bêhanzin um homem-leão.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41
Nina Rodrigues: Resgate da Memória
35
Raymundo Nina Rodrigues: Resgate da Memória na
Documentação Arquivística da FFaculdade
aculdade de Medicina da Bahia
Raymundo Nina Rodrigues: Rescue of the Memory in the Arquivistic Documentation
of the College of Medicine of the Bahia
Zeny Duarte, Teresa Coelho, Ademir Silva, Lúcio Farias, Victor Souza,
Jeane Almeida, Ana Araújo, Lázaro Castro, Aline Carvalho
Grupo de pesquisa: Memória da Medicina brasileira nos primeiros tempos. Instituto de
Ciência da Informação e Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB), Salvador, Bahia, Brasil
A função do arquivista pressupõe seu perfil valorizado como profissional da informação e
pesquisador inserido na sociedade do conhecimento. Este artigo demonstra a pertinência da
sua participação no desenvolvimento de pesquisas em acervos históricos, realizando análise
documentária do material existente na Faculdade de Medicina da Bahia relativo ao professor
Raymundo Nina Rodrigues, 1862-1906. Destaca o valor histórico dessa documentação e seu
registro na memória cultural de um tempo. O que aqui se apresenta, constitui parte de um
trabalho contínuo, que visa gerar novas informações para complementar a biobibliografia
desse grande mestre. Mediante a verificação de documentos manuscriptográficos, corrigemse informações equivocadas, anteriormente publicadas, sobre sua trajetória acadêmica e
profissional. Apresenta-se transcrição de documentos referentes a seu nascimento e a
algumas teses de doutoramento elaboradas por concluintes do curso de Medicina, nas quais
ele foi citado.
Palavras-chave: arquivos históricos, memória da Medicina - Brasil, Raymundo Nina Rodrigues vida acadêmica.
The archivist´s function takes for granted his valorized profile as information professional and
a researcher that has a share in the knowledge society. This article demonstrates the relevance
of his participation in the development of researches in historical archives going through with
documentary analysis of the existing material in Bahia School of Medicine related to professor
Raymundo Nina Rodrigues, 1862- 1906. The historical value of those records and their register
in the cultural memory of a time are placed into relief. What is presented here becomes a
constituent part of a continuous work that aims at generating new information to complement
the biobibliography of that great master. After observing manuscriptographic documents,
mistaken information previously published about his academic and professional trajectory are
corrected. A document transcription is also presented referring to his birth and to some theses
elaborated by candidates for the medicine university degree, in which he was cited.
Key-words: Historical archives, Medicine memorial-Brazil, Raymundo Nina Rodrigues,
academic background.
Recebido em 8/9/2006
Aceito em 10/11/2006
Endereço para correspondência: Programa de Arquivologia do
ICI na FAMEB. Faculdade de Medicina da Bahia, Largo do
Terreiro de Jesus, 40026-010, Salvador, BA, Brasil. E-mail:
[email protected].
Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):35-41.
© 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.
Será que a dimensão da formação do arquivista se reduz
aos procedimentos tecnicistas definidos pela necessidade de
as instituições operacionalizarem seus arquivos e os meios
de busca da informação? A função do arquivista deve estar
direcionada à gestão de documentos e ao resgate da memória
e da informação, como profissional que simplesmente atende
a pedidos? Ou, ao contrário, deve-se repensar o perfil desse
profissional, observando o seu valor enquanto profissional
36
Zeny Duarte, et al.
da informação e pesquisador do próprio arquivo que analisa e
descreve, inserido na sociedade do conhecimento?
Transportamo-nos a algumas proposições epistemológicas
abordadas por Silva(6) quando indica para o fato de que o
objeto da Arquivologia não é apenas o arquivo, nem tampouco
os documentos, mas, sim, a informação social estruturada e
dinamizada na forma estabelecida de um sistema. A
caracterização sistêmica tem um valor instrumental, ou seja,
visa à universalização científica do conhecimento arquivístico
através de um conjunto variável e cumulativo de princípios
gerais demonstráveis, do específico ao genérico.
O arquivista tem sido orientado para satisfazer
necessidades informativas, de modo que a administração
desenvolva suas funções com rapidez, eficiência, eficácia e
economia, para salvaguardar direitos e deveres das pessoas,
contidos nos documentos, e para tornar possíveis a pesquisa
e a difusão cultural.
A partir dessas observações iniciais, organizar o acervo
da Faculdade de Medicina da Bahia é mais do que implementar
um sistema de arquivo que atenda à necessidade dos
pesquisadores e estudiosos de maneira geral.
Na verdade, deparar-se com uma documentação desse jaez
exige do arquivista um estudo aprofundado a partir de
pesquisa cuidadosa, permitindo não somente a organização
arquivística do acervo, mas, ao mesmo tempo, a análise
temática representativa, interpretativa e precisa das peças.
Assim, durante todo o tempo, esse profissional exerce,
concomitantemente, o papel de arquivista e investigador. É
com essa dimensão de seu trabalho que ele se projeta na
realização de pesquisas e no âmbito social, compartilhando
conhecimento com os demais pesquisadores.
Neste trabalho, demonstra-se o quanto é possível e
pertinente a participação do arquivista no desenvolvimento
das pesquisas em acervos históricos, apresentando, inclusive,
o substrato das investigações realizadas no conjunto
documental da memória acadêmica da Faculdade de Medicina
da Bahia. Trata-se da análise documentária do dossiê
acadêmico existente nessa Faculdade referente ao Prof.
Raymundo Nina Rodrigues, destacando seu valor histórico
como registro da memória cultural de um tempo.
A documentação analisada é representada apenas por
diminuto corte do acervo arquivístico que ainda existe e resiste
às circunstâncias da falta de uma política de salvaguarda e de
recursos financeiros à implementação do projeto de resgate e
preservação do acervo em sua totalidade, na sua ambiência
física e em todo o seu entorno.
Incêndio ocorrido na Faculdade de Medicina da Bahia em
1905 destruiu grande parte dos documentos e o próprio
laboratório onde Nina Rodrigues desenvolvia seus
experimentos. Igualmente, constatou-se a ausência de
profissional de arquivo na Faculdade para manter a
preservação do acervo recuperado e organizado pela Profª
Maria José Rabello de Freitas A, no reitorado de Prof. Dr. Luiz
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41
Fernando Seixas de Macedo Costa, nos anos 80. Tais foram
as maiores causas do processo de fragmentação, perda e
dispersão de documentos arquivísticos da Faculdade.
Devido à imensa gama de possibilidade de outras
abordagens sobre Nina Rodrigues, este é um trabalho que se
apresenta contínuo e que vai, certamente, gerar novas
informações a partir do recolhimento de outros documentos a
serem resgatados e descritos em futuros artigos
complementares da biobibliografia desse representante da
intelectualidade médica da Bahia e do Brasil.
SINOPSE BIOGRÁFICA
Raymundo Nina Rodrigues nasceu em 4 de dezembro de
1862, na cidade de Vargem Grande, no Estado do Maranhão.
Faleceu em 1906, em Paris, França, com apenas 44 anos, e foi
sepultado no cemitério do Campo Santo, em Salvador - BA.
Para efeito de comprovação de seu nascimento e conforme
leitura de sua certidão original, o tabelião da Vila de Vargem
Grande, no Maranhão, considerou as informações prestadas
pelo alferes Martiniano Andrade, apresentando certidão
passada pelo padre Raymundo José Lecont da Fonseca,
presbítero secular e vigário colado da Freguesia de São
Sebastião de Iguará. Esse documento encontra-se no dossiê
da vida acadêmica de Nina Rodrigues e consta que ele nasceu
na Fazenda Santa Severa em 4 de dezembro de 1862, sendo
filho de Francisco Solano Rodrigues e Dona Luiza Rosa Ferreira
Nina, tendo como padrinhos Antônio José Maya,
representado pelo tenente Raymundo Alves de Abreu, e Dona
Rosa Bernardina Ferreira Nina.
Nina Rodrigues recebeu as aulas primárias em sua cidade
natal e em São Luís completou as humanidades no vetusto
seminário das Mercês de São Luiz do Maranhão. Veio para a
Bahia em 1882. Em 1886, no quinto ano do curso médico,
publicou seu primeiro trabalho A morféia em Anajatuba. Foi
aprovado em concurso, para a secção médica da Faculdade
de Medicina da Bahia, ocupando o cargo de adjunto. Em 1891
foi transferido para a seção de Medicina Pública e nomeado
catedrático na vaga do conselheiro Virgilio Damazio.
Como substituto de Clínica Médica, revelou-se mestre na
Medicina Pública. Estreou na Medicina Legal com o ensaio
As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil,
escrito em 1894. Durante uma década, dedicou-se aos estudos
teóricos e práticos laboratoriais sobre microrreações, autópsias
(necropsias), índices osteométricos, clínica forense, Medicina
Legal e psiquiatria. Escreveu relatos, artigos e memórias,
publicados em periódicos científicos nacionais e
internacionais.
A
Maria José Rabello de Freitas – autora do projeto Reconhecimento
global e estruturação das séries documentais do acervo do Memorial
de Medicina da Faculdade de Medicina da Bahia. Diretora, por oito
anos, do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da
Bahia. Introdutora e mentora da Arquivologia na Bahia e Nordeste.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41
Por muito tempo publicou na Gazeta Medica da Bahia,
tendo sido membro do Conselho Editorial. Fundou e manteve
atualizada a Revista Médico-Legal. Colaborou com BrazilMédico, com a Revista Médica de São Paulo, com os Archivos
de Criminologia, Ingenieros, publicação de Buenos Aires,
os Annales Publiques et de Médecine Légale, de Brouardel,
os Annales médico-psychologiques de Ritti, em Paris, os
Annales d´Anthropologie Criminelle, de Lacassagne, em
Lyon, e com o Archivio de Psychiatria e Antropologia
Criminale, de Lombroso, em Turim. A Revista Brasileira e O
Jornal do Comércio também divulgaram vários de seus
artigos.
Entre outras funções e representações nacionais e
internacionais, foi sócio efetivo e vice-presidente da MedicoLegal Society em Nova Iorque, membro honorário da
Academia Nacional de Medicina no Rio de Janeiro e membro
estrangeiro da Société médico-psychologique em Paris.
Pertenceu à Escola Tropicalista da Bahia, quando realizou
estudos epidemiológicos sobre o beribéri.
Publicou Epidemiologista: estudo histórico de surtos de
beribéri em um asilo para doentes mentais na Bahia, 18971904. Nesse texto, também incluído no livro de sua autoria,
Africanos no Brasil, constata-se a vocação natural de Nina
Rodrigues para empreender estudos antropológicos e
etnológicos, destacando-se como autodidata nessas áreas.
Durante mais de uma década, realizou pesquisas sobre
temas relacionados ao resgate da memória dos negros no
Brasil. Investigou a procedência dos escravos deportados,
as línguas das tribos, seus usos e costumes. Realizou história
oral, por meio de entrevistas, em várias regiões da Bahia, no
intuito de escrever sobre a vida, hábitos e o cotidiano dos
africanos e também na tentativa de decifrar o enigma criado
pelos portugueses a partir do qual, para esconder a realidade
do tráfico de escravos e na intenção de enganar os ingleses
antiescravistas, destruíram os arquivos, inibiram os manifestos
nos navios, separaram famílias e tribos, entre outras formas
que podiam dar condições de permanência do tráfico, apesar
dos esforços ingleses.
Tanto Nina Rodrigues como Silvio Romero registram em
seus escritos a perda da língua, dos costumes e das tradições
dos africanos trazidos ao Brasil. Nessa direção, Nina
Rodrigues realizou pesquisas sobre a influência africana na
culinária, na língua e na música do Brasil.
Suas maiores críticas foram em relação ao estágio
civilizatório daqueles escravos iletrados. Faz referências
positivas aos escravos sudaneses que eram islâmicos, sabiam
ler e escrever e que lideraram a Revolta dos malês, ocorrida
em Salvador no ano de 1835.
Pesquisando dados sobre sua vida e obra em outras fontes,
na Enciclopédia Delta Universal(3), lê-se esta nótula:
Nina Rodrigues (1862-1906), médico, etnógrafo e
sociólogo brasileiro, é considerado o iniciador dos
estudos africanos no Brasil. Na Bahia, interessou-
Nina Rodrigues: Resgate da Memória
37
se pelos costumes dos antigos escravos e seus
descendentes, especialmente as práticas religiosas
e a convivência destas com o culto católico. O
resultado desses estudos está contido
principalmente em duas obras: O animismo
fetichista dos negros da Bahia (Paris,1900),
publicada originalmente em francês, e Os africanos
no Brasil (1932).
Igualmente, consta na Enciclopédia Barsa(2):
Médico e etnólogo brasileiro (Vargem Grande –
MA, 4-XII-1862 – Paris, 17-VII 1906). Iniciou o
estudo de Medicina na Bahia, completando-o no
Rio de Janeiro, onde se diplomou em 1888.
Professor da Faculdade de Medicina da Bahia, a
partir de 1891, a obra que deixou, de publicação
póstuma, é notável pela documentação recolhida,
destacando-se Os africanos no Brasil (1932), O
animismo fetichista dos negros na Bahia (1900) e O
alienado no direito civil brasileiro (1901). É
considerado o pioneiro dos estudos sobre o negro
no Brasil.
Este trabalho tem o objetivo principal de resgatar a
veracidade das informações acerca da biografia de Nina
Rodrigues por intermédio de leituras em documentos
comprobatórios do acervo arquivístico da Faculdade de
Medicina da Bahia. Assim, fizemos a transcrição paleográfica
(5)
do registro da carta manuscrita de Nina Rodrigues com
dados sobre sua nomeação e posse como docente dessa
Faculdade, no ano de 1889, dirimindo dúvidas acerca de
informações controversas.
Registro da Carta do Dr.
Raymundo Nina Rodrigues
Attendendo ao merecimentoe às habilitações que em concurso mostrou o Doutor
Raymundo Nina Rodrigues, Hei por
bem momeal-o para o logar de adjunto à 2ª cadeira de clinica médica
da Faculdade de Medicina da Bahia, com o vencimento que lhe competisi. Palacio do Rio de Janeiro em
seis de setembro de mil oitocentos e
oitenta e nove, sexagesimo oitavo da
Independencia e do Imperio. Com
a rubrica de sua Magestade o
Imperador. Barão de Loreto. Cumpra-se e registra-se Palacio da Presidencia da Bahia, 27 de setembro
de 1889 Almda Coreto. Nº 2032. 3 of.
Pagou trinta mil reis, Re. e B. provinceal
27 de setembro de 1889. O Fiel. A. Guimarães.
38
Zeny Duarte, et al.
O escrivão. N. Carneiro da Rocha. Registrada afl 216 N do livro de diplomas
imperiaes. Secretaria do Governo da
Bahia, 28 de setembro de 1889. C. Seabra. Cumpra-se e registra-se. Bahia
e Faculdade de Medicina 28 de setembro de 1889. Dr José Olimpio. Prestou
juramento e tomou posse no dia
28 de setembro de 1889. Dr. T. A. Gaspar.
Retornando ao perfil do biografado, o que se observa é,
sobretudo, a obstinação de um estudioso capaz de movimentar
o meio acadêmico e intelectual em que vivia, mesmo com tantas
polêmicas sobre sua personalidade de homem opiniâtre. Essa
característica é demonstrada em documentos do acervo da
Faculdade. A propósito, escreveu Memória histórica
apresentada pelo Dr. Raymundo Nina Rodrigues à
Congregação da Faculdade de Medicina e Pharmacia da
Bahia, em março de 1897, relatando o percurso das atividades
realizadas pela Faculdade, traduzindo seu pensamento sobre
a instituição e sua composição, como também apontando
dificuldades e deficiências do ensino e do seu funcionamento.
Considerado autoridade na área da saúde, mas tido por alguns
como pessoa de difícil convívio, foi, entretanto, admirado por
outros que prosseguiram nos estudos por ele encetados.
Dessa forma, a sua obra permanece disponibilizada para a
posteridade como legado científico e cultural que o credencia
entre os mais importantes nomes das ciências médicas e
sociais, destacando-se como criminalista, antropólogo,
etnógrafo e sociólogo.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41
latina, recebendo certificados da mesma Secretaria. Do mesmo
modo, com aprovação em níveis elevados, recebeu
certificados em Arithmetica, Álgebra, Geometria, Geographia,
Philosophia e História. Possuir conhecimento sobre essas
áreas era também condição sine qua non para o processo de
seleção na Faculdade.
Tendo em vista a ausência de dados em documentos
comprobatórios sobre os anos letivos de Nina Rodrigues, 4°,
5° e 6°, não foi possível descrever a sua vida acadêmica nesse
período, nem tampouco determinar, com segurança, a data de
sua formatura, documentos que devem estar no arquivo da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No entanto, na
Gazeta Médica da Bahia(4), no artigo escrito em homenagem
post mortem, com o título de Professor doutor Nina
Rodrigues, consta que, em 1887, ele concluiu seu curso médico
na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendendo a
dissertação inaugural Amyotrophias de origem peripherica.
Nesse mesmo artigo(4), menciona-se que, em 1889, de volta
à Boa Terra, através de concurso, entrou para a Faculdade de
Medicina da Bahia na qualidade de professor adjunto, da
segunda cadeira de Clínica Médica. E, ainda, que, em 1891,
por ocasião da reforma Benjamin Constant, foi nomeado lente
substituto da 5ª Secção (Hygiene e Medicna Legal), cargo
que exerceu até 1895, quando ocorreu a aposentadoria do
titular, o conselheiro Virgilio Damazio, assumindo ele então a
cadeira de Medicina Legal.
Em páginas pré-textuais de teses da Faculdade de Medicina
da Bahia, volumes encadernados, encontram-se registros de
disciplinas ministradas por Nina Rodrigues, comprovando sua
atuação em diversas matérias como na Medica Legal,
Toxicologia e Hygiene.
VIDA ACADÊMICA
NINA RODRIGUES POR OUTREM
No arquivo da Faculdade de Medicina da Bahia encontramse dossiês de Nina Rodrigues com documentos acadêmicos
da vida estudantil durante o curso médico. Diante de sua
vasta produção, a Faculdade detém uma pequena parte de
artigos científicos por ele publicados.
Datado de 10 de março de 1882, encontra-se um
requerimento, manuscrito autógrafo, mediante o qual ele se
dirige ao diretor da Faculdade de Medicina da Bahia para
freqüentar as aulas da primeira série do curso médico, tendo
sido matriculado em 15 de março do mesmo ano.
Percebe-se seu conhecimento de outras línguas através
de certificados de exames gerais realizados para sua admissão
no curso médico, um dos pré-requisitos exigidos para
admissão no curso. Com dezessete anos, em julho 1879, ainda
na terra natal, recebeu os certificados de proficiência nas
línguas portuguesa e francesa, emitidos pela Secretaria da
Delegacia Especial da Inspectoria Geral da Instrucção
Publica da Corte em Maranhão. Em novembro de 1880, foi
aprovado, plenamente com distinção, no exame de língua
inglesa e, em julho de 1881, outrossim, no exame de língua
Durante bom tempo, em trabalhos escritos, como, por
exemplo, em teses doutorais e de concursos, produzidas por
estudantes, professores e pesquisadores da área médica,
foram incluídos comentários, citações, revisões e reflexões
teóricas de temas constantes em obras publicadas ou
divulgadas por Nina Rodrigues.
Em tese apresentada à Faculdade de Medicina e de
Farmácia da Bahia, em 30 de outubro de 1899, defendida pelo
acadêmico Deodoro Alvares Soares(7), o autor cita Nina
Rodrigues em vários capítulos de seu trabalho, com relação
aos temas de sua produção acerca do índio brasileiro, sua
catequese, domesticação, sociabilização e degradação. Além
dessa temática, muitas vezes debatida em estudos ninarodriguianos, Deodoro Soares fala dos males provenientes
da imigração e, nesse seu trabalho repete, em citação, o
seguinte pensamento de Nina Rodrigues:
A experiencia tem demonstrado que mesmo
criminosos de habito assim transportados para a
terra longínqua são susceptiveis de regenerarem-
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41
se. Transferidos para um meio fundamentalmente
differente daquelle em que se exercia a sua
actividade criminosa, se não são criminosos natos
ou de todo incorrigiveis podem-se entegrar na
população honesta e activa das colonias.
Além de citar a obra O animismo fetichista dos negros da
Bahia, faz referência à adoração aos fetiches e às festas de
candomblé, tema também estudado por Nina Rodrigues. Nessa
abordagem, Deodoro Soares(7), transcreve a seguinte frase:
A persistencia do fetichismo africano como
expressão do sentimento religioso dos negros
bahianos e seus mestiços, é facto que as
exterioridades do culto catholico apparentemente
adoptado por elles, não conseguiram disfarçar nem
nas associações hibridas que com esse culto
largamente estabeleceu o fetichismo, nem ainda nas
praticas genuinas da feitiçaria africana, que ao lado
do culto christão por hai vegeta exuberante e valida.
Basicamente, nessa tese doutoral, Deodoro Soares(7), se
refere a Nina Rodrigues como o mestre e o teórico que lhe
concedeu a fundamentação necessária na contextualização
de suas idéias e na defesa de seu tema, citando também outros
estudiosos como Gabriel Mortillet, Georges Pouchet, H.
Spencer, Anselmo da Fonseca.
Colhemos algumas achegas acerca da obra ninarodriguiana, a exemplo da homenagem que Alcantara Machado
lhe prestou, registrada na Gazeta Médica da Bahia(4) dizendo:
“Nina Rodrigues atravessou o Estado de São Paulo sob a
contingencia carinhosa e fidalga do escól da mentalidade
paulista”. Referindo-se ao grande prestígio que ele adquiriu
no mundo científico, na classe médica e entre juristas de São
Paulo, disse ainda: “(...) pois que lhe pertence o que de melhor
se tem publicado sobre anthropologia criminal e a Medicina
Forense na América do Sul.”
Em teses doutorais para a cadeira de Medicina Legal vários
autores citam Nina Rodrigues. Oscar Freire Carvalho(1), em
sua tese Etiologia das formas concretas da religiosidade no
Norte do Brasil: introdução a um estudo de psychosociologia criminal, cita-o em diversos trechos, comungando
com suas idéias no que diz respeito ao pensamento
antropológico e etnológico. Numa dessas passagens, ele diz:
Nitidamente precisas que fossem as indicações
sobre a proveniencia dos negros africanos do Brasil,
pelo pallido escorço que pude tracejar, se presente
as difficuldades de delimitação ethnica até pelo
crusamento endo-nacional.
O Professor Nina Rodrigues, que de lonngos anos
se preoccupa com estes problemas, e que se deu a
demoradas pesquisas sobre elles, resume em um
quadro inserto no VII cap. de uma obra que tem em
impressão sobre: O Problema da raça negra do
Brasil, e que com a devida venia aqui transcrevo,
as raças de negros que acredita fossem trazidas
Nina Rodrigues: Resgate da Memória
39
para o Brasil. Classifica-os o collendo Professor
em: I Aschantis africanos puros (?) e mesticados.
II Negros Bantús: angolas, congos, etc. III Negros
sudaneses: nagôs, minas, gêges haussás etc. IV
Negros insulares.
Ainda nessa tese, o autor(1) destaca:
Em um ponto filio-me, com immenso gaudio, a
doutrina de meu sabio amigo Prof. Nina, na parte
em que se affirma a extensão enorme da
degeneração em nosso meio e nos mestiços,
especialmente, que constituem a maior parte de
nossas populações. O que não esta provado,
porem, com as provas até hoje adduzidas, é que a
mestiçagem degenere o producto.
Essas posições, mesmo despropositais para a
contemporaneidade, revelam um estágio temporal de estudos
e pesquisas realizados nas ciências médicas, como
pensamento de época das elites sociais e as suas relações
com a sociedade. Elas, mesmo no seu tempo, provocaram
imensas discordâncias que impulsionaram a evolução do
pensamento sobre as questões étnicas relacionados aos
diversos povos que formaram a gente brasileira.
Além de obras escritas no âmbito da Faculdade de
Medicina da Bahia, encontramos, hoje, uma extensa
quantidade de textos produzidos por estudiosos, cientistas e
pesquisadores que divulgam os trabalhos de Nina Rodrigues.
Esses autores tratam também de sua temporalidade e das
investigações que desenvolveu em várias áreas do
conhecimento, transformando-o num homem plural e influente.
Essa produção tem sido disseminada em periódicos, teses,
noutros trabalhos técnicos e científicos, em impressos e em
suportes no formato virtual. Observa-se grande quantidade
de publicações sobre ele disseminadas em sites.
Apresentamos como anexo um breve corte nas produções
de Nina Rodrigues, iniciando o estudo cronológico de sua
biobibliografia.
AGRADECIMENTO
Ao Prof. Dr. José Tavares-Neto pelo reconhecimento da
dimensão do trabalho arquivístico para a memória da Medicina
brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. CARVALHO, O.F. Etimologia das formas concretas da religiosidade
no norte do Brasil: introdução a um estudo de psycho-sociologia
criminal. 1902. 111p. These apresentada à Faculdade de Medicina
da Bahia para obtenção de grau doutor em Medicina.
2. ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro: São Paulo: Encyclopaedia
Britannica do Brasil Publicações v.10, 1984.
3. ENCICLOPÉDIA DELTA UNIVERSAL. Rio de Janeiro: Delta, v.11,
1980.
4. GAZETA MÉDICA DA BAHIA. Faculdade de Medicina da Bahia. v.
XXXVIII, n.2, ago. 1906.
40
Zeny Duarte, et al.
5. LIVRO DE TÍTULOS DE EMPREGADOS. Salvador: Faculdade de
Medicina da Bahia, janeiro de 1857 (Manuscrito autógrafo).
6. SILVA, Armando B. Malheiro et al. Arquivística: teoria e prática de
uma ciência da informação. Porto: Afrontamento, 254p. 1998,
[Biblioteca das Ciências do Homem, Série Plural, 2].
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41
7. SOARES, D.A. Alguns traços da nossa população sobre o
ponto de vista hygienico e evolucionista. These de gráo
de doutor em Sciencias Medico-Cirurgicas - Faculdade
de Medicina e de Pharmacia da Bahia, Salvador, 107p.,
1899.
ANEXO
BREVE CORTE NAS PRODUÇÕES DE NINA RODRIGUES
Produções com identificação de data
Data Produção
1886 A morféia em Anajatuba. (Primeiro trabalho escrito, ainda como acadêmico, no quinto ano do curso médico).
1887
1888
1888
1889
1890
1890
1891
1892
1893
1894
1895
1896
1897
1898
1899
1900
1901
1904
Das amyotrophias de origem peripherica. Rio de Janeiro. (Tese de doutorado).
Estudo sobre regimen alimentar no norte do Brazil. Maranhão
Contribuição para o estudo da lepra no estado do Maranhão. Gazeta Medica da Bahia.
Os mestiços brasileiros.
A lepra na Bahia. Gazeta Medica da Bahia.
Fragmentos de pathologia intertropical: beri-beri; afecções cardiacas e renaes. Bahia.
O exercício da medicina publica. Brazil – Medico.
As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Bahia: Imprensa Econômica.
A medicina legal no Brazil.
Illusões da catechese no Brasil. Revista Brazileira.
Un cas curieux d’hymen double avec défloration unilatérale. Revista Medico-Legal. An. I, fasc. I). (Texto transcrito
nos Annales de la Société de Médecine Légale de Belgique.
Blessure de la moelle épinière par un instrument piquant. Annales d’hygiène publique et de médecine légale.
Epidemiologista: estudo histórico de surtos de beribéri em um asilo para doentes mentais na Bahia.
O problema medico – judiciario: sua solução no Brazil. Revista Brazileira.
Des conditions psychologiques du dépeçage criminel. Archives d’Antropologie Criminelle.
Épidémie de folie religieuse au Brésil. Annales Médico – Psychologuiques. Mai – Juin.
Liberdade profissional em medicina.. São Paulo.
Métissage, dégénérescence et crime. Archives d’Antropologie Criminelle, n.83.
O regicida Marcellino Bispo. Revista Brazileira. 1899.
L’animisme fétichiste des nègres de Bahia. Bahia: Reis & Comp. Éditeurs.
Des formes de l’hymen et de leur rôle dans la rupture de cette membrane. Annales d’hygiène publique et de médecine
légale.
Manual da autopsia médico-legal. Bahia.
Contribuição ao estudo dos indices osteometricos dos membros na identificação da raça negra. Revista dos
Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia. Anno I, tomo I.
Produção de Nina Rodrigues sem precisão de data
I.
Lesões pessoaes: sua doutrina medico-legal na legislação criminal brazileira. Revista Medico-Legal. An. I., fasc.
Un cas curieux d’hymen double avec défloration unilatérale. Revista Medico-Legal. An. I., fasc. I.
O caso medico-legal Custodio Serrão. Revista Medico-Legal, An. II., fasc. II – III.
Nègres criminels au Brésil. Archivio di psichiatria, scienze penali ed antropologia criminale. V.XVI, fasc. IV-V.
Africanos no Brasil.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S35-S41
Nina Rodrigues: Resgate da Memória
Produção de Nina Rodrigues post mortem
2005 O animismo fetichista dos negros da Bahia. Salvador: Edições P555. 140p. (Coleção A/C Brasil, 2).(Tradução do
original: L’animisme fétichiste des nègres de Bahia. Bahia: Reis & Comp. Éditeurs).
Periódicos onde publicou
Archives d’Antropologie Criminelle (Cassagne)
Annales Médico-psychologiques (Paris)
Annales d’hygiène Publique et de Médecine Légale (Brouardel)
Archivio de Psychiatria, Scienze Penali ed Antropologia Criminale (Lombroso)
Archivos di Psiquiatria y Antropologia (Buenos Ayres)
Revista Brasileira
Direito
Brasil-Médico
Gazeta Medica da Bahia
Revista da Sociedade de Medicina e Cirurgia da Bahia
Revista Medico-Legal da Bahia
Revista Medica de São Paulo
Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia
Jornal do Commercio (Rio)
Imprensa Diária da Capital Bahiana
Alguns temas de estudos e pesquisas
Anthropologia geral e criminal
Psychologia mórbida
Responsabilidade criminal
Liberdade profissional
Mestiçagem brasileira
Fetichismo africano
Monotheismo catholico
Condições psychologicas das mutilações
41
42
Nadia Rocha, et al.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46
A Psicologia no TTempo
empo de Nina Rodrigues
The Psychology on the Nina Rodrigues‘s Time
Nádia M. D. Rocha1 , Bianca B. Lepikson2 , Maria M. Brandão3
Faculdade Ruy Barbosa, Salvador, Bahia, Brasil
Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906), foi um influente médico brasileiro. Buscou-se verificar
a Psicologia existente durante a sua vida, para identificar possíveis fontes de influência para o seu
trabalho. Foi definido o período de 1882 a 1906, sendo considerados cinco aspectos: as Escolas de
Psicologia existentes, as ações em geral envolvendo a psicologia (associações, publicação
bibliográfica, instalação de cátedras, por exemplo); a instalação dos laboratórios de pesquisa; as
teses apresentadas à Faculdade de Medicina da Bahia e que apresentavam preocupação com questões
de ordem psicológica e o acervo da Subgerência de Obras Raras e Valiosas da Biblioteca Pública
do Estado da Bahia. Constatou-se a existência do Estruturalismo e do Funcionalismo, uma intensa
atividade na produção mundial, seja bibliográfica seja na instalação de instâncias formais para o
estudo desta ciência; a instalação de 71 Laboratórios, a maioria dos quais nos EUA; a predominância
de teses doutorais que buscavam trabalhar com questões ligadas à psicopatologia; e, na Subgerência
de Obras Raras e Valiosas, o predomínio de livros de livros editados na França.
Palavras-chave: Psicologia, história da Psicologia, laboratórios de Psicologia.
Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906) was an influent Brazilian Physian. The aim of this paper
is to verify the state of Psychology during his lifetime and identify possible influence on his
studies on his work. To this end, we chose the period between 1882-1906 highlights of the five
following points: the existing Psychology schools at the time, the actions concerning Psychology,
such as associations, bibliography and cathedras; the setting up of research laboratories; theses
of the Medical School of Bahia showning a concern about Psychology matters; as well as the
assets of the Bahia Public Library rare and valuable pieces section. We found that Structuralism
and Functionalism were dominant well and an intensive activity worldwide, either in bibliographic
production or installation of formal institutions in order to study Psychology. The setting up of 71
laboratories, most of them in the U.S.A, and in Bahia, a major amount of doctorate degree theses
showing linked to Psychopathology. were also found and in the rare and valuable pieces section,
there was a great propition of books edited in France.
Key-words: Psychology, history of Psychology, Psychology laboratory.
A Psicologia é uma ciência com um marco definidor. Há um
consenso de que a atividade científica neste campo começou
na Universidade de Leipzig, em 1879, quando Wilhelm Wundt
(1832-1920), médico e filósofo alemão, ai instalou um
Laboratório, com o objetivo de determinar a estrutura da mente
e compreender os fenômenos mentais pela decomposição dos
estados de consciência produzidos pelos estímulos
ambientais(3). Heidbreder(7) pondera que o Laboratório em
Recebido em 10/11/2006
Aceito em 4/12/2006
Endereço para correspondência: Dra. Nádia Maria Dourado
Rocha, Rua General Labatut, 462 (ap304), 40070-100 Salvador,
BA, Brasil. Tel.: 5571 3328-2228; E-mail: [email protected].
Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):42-46.
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Leipzig não foi o primeiro a ser instalado, pois William James
(1842-1910) à época professor na Faculdade de Medicina da
U. de Harvard, interessado pela fisiologia sensorial, começou
a analisar no seu laboratório problemas de ordem psicológica.
Este Laboratório, entretanto, não se comparava aquele
instalado por Wundt.
Nina Rodrigues (1862-1906) tinha 17 anos quando do início
formal da Psicologia. Para trabalhar com a “Psicologia do seu
tempo” foi escolhido o período de 1882 a 1906, época em que
a Psicologia, ainda nos seus primórdios, começava a se
espalhar mundo afora.
Para dar conta do propósito, este artigo foi pensado sob
cinco aspectos: as Escolas então existentes, a produção
técnico-científica a nível internacional, os laboratórios já
instalados, as teses apresentadas à Faculdade de Medicina
da Bahia – FAMEB, neste intervalo, e a análise do acervo da
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46
Subgerência de Obras Raras e Valiosas da Biblioteca Pública
do Estado da Bahia.
No período sob análise, na Psicologia havia duas Escolas:
o Estruturalismo e o Funcionalismo. A primeira, iniciada por
Wilhelm Wundt em Leipzig foi refinada por Edward Bradford
Titchener (1867-1927), seu aluno, que se radicou nos Estados
Unidos, trabalhando, por 35 anos na U. de Cornell. A segunda,
disseminada nos Estados Unidos, sofreu a influência do
Pragmatismo americano, e do estudo sobre diferenças
individuais bem como da Teoria da Evolução(7,11).
O Estruturalismo é efetivamente uma Escola. Teve objetivo
claro, um projeto de trabalho, um periódico para veiculação
da sua produção científica, o Philosophische Studien(4). Os
historiadores da psicologia ainda não chegaram a um consenso
quanto ao seu iniciador. Para alguns ele é Wilhelm Wundt.
Para outros, Edward Titchener que, ao levar a concepção de
Wundt para a América, teria transformado radicalmente o seu
percurso(7,8).
O objetivo do Estruturalismo era a química mental o
“estudo analítico da mente humana, adulta, normal e
generalizada, que se realiza através da introspecção”(8), ou
seja, a psicologia não estaria interessada nas diferenças
individuais e, por decorrência, a mente normal exclui o estudo
de casos psicopatológicos.
A este respeito Titchener assim se colocou:
I believe that physiological psychology (in the
sense of this paper) has a great future; and I
subscribe fully to all that has been said of the critical
subtlety of Brentano’s discussions, of the delicacy
of discrimination shown in Stout’s recent book, of
the genius of James’ work. Nevertheless, I believe
as firmly that the best hope for psychology lies to
day in a continuance of structural analysis, and
that the study of function will not yield final fruit
until it can be controlled by the genetic and, still
more, by the experimental method - in the form both
of laboratory experimenting and of interpretation
of that natural experiment which meets us in certain
pathological cases(13).
O Funcionalismo toma como objeto da psicologia não mais
as estruturas, mas a função das atividades mentais (estas que
seriam processos complexos, como pensamento, sentimento,
imaginação – não tão elementares quanto os processos do
Estruturalismo), considerando estas atividades como
psicofísicas (o que determina uma nova concepção da relação
corpo x mente). O método utilizado inclui a já conhecida
introspecção (observação subjetiva), acrescentado a
observação objetiva, quando o observador não é o próprio
sujeito, mas pode observar o comportamento deste como o
resultado de sua atividade mental.
O objetivo do funcionalista seria descobrir como e por
que se exerce a atividade mental. Dois conceitos principais
resultaram das investigações, respondendo às questões: a
Nina Rodrigues e a Psicologia
43
de “arco reflexo” (já muito antes visto por Descartes) e a de
“comportamento adaptativo”; ambos ilustram tipos de relação
entre organismo e meio ambiente, entre estimulação e resposta.
Embora a multiplicidade de caminhos e uma conseqüente falta
de integração tenham prejudicado o desenvolvimento do
Funcionalismo como um sistema, pode-se dizer que ele foi
marcante ao ampliar o campo de ação da psicologia aos
animais, ‘anormais’ e crianças, às diferenças particulares, aos
testes mentais ou comportamentais, enfatizando um
pragmatismo inexistente nas pesquisas da tradição anterior, e
que foi exigido pelo contexto norte-americano daquele
período(7,8).
Podem ser citados como teóricos marcantes do
Funcionalismo, principalmente os norte-americanos John
Dewey (1859-1952), James R. Angell (1869-1949) e Harvey Carr
(1873-1954), este último talvez o maior difusor do movimento.
As referências filosóficas da Psicologia Funcional foram,
diferentemente do Estruturalismo, mais voltadas à biologia
que à fisiologia, com destaque às teorias darwinianas e às
idéias do psicólogo, fisiólogo e professor William James (18421910), que são a base da proposta funcionalista (embora este
não tenha nunca fundado ou se ‘afiliado’ a escola
psicológica)(7,8).
Da produção existente na área da psicologia, no período
de 25 anos, selecionado como período ativo de Nina Rodrigues
foram catalogados 326 indicadores, entre produção
bibliográfica, a criação de cargos e Departamentos
Acadêmicos, eventos científicos, instrumentos e clínicas.
Destacaram-se pelo volume, livros (113), artigos (73)
laboratórios (71) e periódicos (14). Além disso, foram fundadas
associações de Psicologia (três), uma das quais é a American
Psychological Association – APA, atualmente a maior e mais
influente da categoria; oito cátedras de psicologia, sendo três
nos Estados Unidos, e uma na, Argentina, Espanha, França,
Japão, Suíça e México; duas clínicas; uma comissão de
testagem mental; uma comunicação “Sobre os diversos
estados nervosos determinados pela hipnotização das
histéricas”; congressos internacionais (três, sendo dois de
psicologia e um de hipnotismo); um curso de psicologia
experimental; a criação do Departamento de Psicologia na
Universidade de Madison, nos Estados Unidos; o curso de
Psicologia na Universidade Nacional de Buenos Aires, um
Dicionário de Psicologia Médica e outro de Filosofia e
Psicologia; a Divisão de Psicologia na Universidade de Leipzig;
teses em psicologia (nove – não contabilizando as
apresentadas à Faculdade de Medicina da Bahia) e ainda
outras produções do tipo: exposição, feira, fundação, livraria
especializada, monografia, palestra, teste e obra traduzida(79,11)
.
Das produções ou eventos cujo local foi identificado (247),
mais de um terço (97) esteve concentrada em um único país:
Estados Unidos. Também chamaram a atenção, pela
concentração de trabalhos ou eventos, França (53) e Alemanha
44
Nadia Rocha, et al.
(42). Houve ocorrência de produção em psicologia também
nos seguintes países: Argentina, Áustria, Bélgica, Brasil,
Canadá, China, Dinamarca, Escócia, Espanha, Holanda,
Inglaterra, Itália, Japão, México, Polônia, Romênia, Rússia,
Suíça e Tchecoslováquia.
Dentre os 276 trabalhos, 63 tiveram identificados, além do
país, a universidade onde foram realizados. Foram listadas 38
universidades, de 17 países, sendo que a Universidade de
Leipzig, na Alemanha, foi a que mais realizou trabalhos (nove).
Os Estados Unidos foram o país que mais apresentou
instituições na pesquisa realizada (12), seguidos da França
(seis) e da Alemanha (quatro).
Dos 12 periódicos localizados, foram contabilizados 33
artigos, 21 deles com os locais de produção identificados:
Estados Unidos (17), França (três) e Canadá (um). Mind,
Psychological Review e American Journal of Psychology foram
os periódicos mais citados (oito, seis e quatro vezes,
respectivamente).
Os autores que mais produziram, dentre as obras
selecionadas, foram James Mark Baldwin (22 produções),
Alfred Binet (13 produções, seis apenas dele), e Raymond
Bernard Cattell (13, oito dele) e Sigmund Freud (10, nove dele),
de nacionalidades, respectivamente, canadense, francesa,
norte-americana e austríaca.
O século XIX é reconhecido como aquele em que os
processo de mensuração, da quantificação e os laboratórios
tiveram um grande impulso. Os Laboratórios de Psicologia
foram o primeiro espaço de investigação científica, e vários
deles foram instalados no último quartel daquele século.
Na Europa, foram instalados 14 laboratórios em dez países:
Alemanha, Áustria,Bélgica, França, Holanda, Inglaterra, Itália,
Polônia, Romênia e Suíça, um em cada deles, à exceção de
França e Inglaterra que instalaram três. Não foi possível obter
informação sobre sete dos seus responsáveis técnicos. Os
outros eram: Alexius Meinong (1880-1920), Benjamin Bourdon
(1860-1943), Alfred Binet (1857-1911), Francis Galton (18221911), Carl Jung (1875-1971), Oswald Külpe (1862-1915), e
Edouad Toulouse (1865-1947). Todas elas pessoas de destaque
na História da Psicologia.
Também no Japão houve um laboratório instalado em 1903,
na Universidade de Tóquio.
Segundo Garvey (6) no período sob análise foram
instalados 55 laboratórios nas Américas. Destes, um estava
no Canadá, outro na Argentina e os demais, espalhados por
30 dos Estados Americanos. Vale informar, que o autor não
teve conhecimento do laboratório instalado no Rio de Janeiro
em 1906, cujo planejamento deveu-se a Manoel Bomfima,
George Dumas e Alfred Binet.
Seguindo uma tendência mundial, a maioria absoluta dos
laboratórios estava instalado em instituições de ensino
superior. Havia seis laboratórios no Estado de New York, cinco
em Massassuchets, cinco no Ohio, três na Califórnia, no
Illinois e na Pennsylvania, dois no Connecticut, Indiana, Iowa,
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46
Maine, New Jersey, e um em North Caroline, Colorado, Florida,
Kansas, Maryland, Michigan Minnesota, Mississippi,
Nebraska, Oregon, Rhode Island, Tennessee, Texas, Utah,
Washington, Washington-DF, Wisconsin e Wyoming. Estes
dados nos permitem concluir que houve uma rápida expansão
da Psicologia no território norte-americano, vez que estes
Estados estão localizados no país, de costa a costa. Quanto
aos responsáveis técnicos, estavam eles entre pessoas cujas
contribuições definiram o percurso posterior desta ciência, a
exemplo de G. M. Stratton (U. da Califórnia), Frank Angell
(Stanford U.), J. M. Baldwin (Princeton), E.W. Scripture (Yale
U), G. Stanley Hall (Johns Hopkins U), E. C. Sanford ( Clark U),
William Noyes (McLean Asylum), M. W. Calkins b
(Wellesley‘College), F. Angell (Cornell), Robert MacDougall
(New York U.), Chas. H. Judd (Cincinati U. e New York
University (Washington Square Col.), M.F. Washburn (Vassar
College), J. McK. Cattell (New York e Pennsylvania U) e Joseph
Jastrow (Wyoming).
Vários deles fizeram a formação no Laboratório de Leipzig,
a exemplo de Stanley Hall, Cattell, Pace, Scripture e Frank
Angell(6).
No Brasil do fim do século XIX, embora ainda não existisse
a formação em Psicologia, tampouco uma cadeira específica
para esta disciplina,verificou-se o interesse cada vez maior
por temas de ordem psicológica, o que se tornou ainda mais
evidente nos primeiros anos do século XX.
Uma forma de avaliar a produção nacional relacionada à
Psicologia durante o período produtivo de Nina Rodrigues é
a análise das teses que foram defendidas na FAMEBc. Da
produção baiana localizada e parcialmente analisada, pôde-se
identificar 244 teses que tratavam dos mais variados temas de
cunho psicológicod.
Foram identificados 98 temas com superposição, onde os
nitidamente mais recorrentes são: Psicopatologia (50%),
Agentes Terapêuticos (26,5%), Higienismo (13,2%) Mulher
(13,2%).
PSICOPATOLOGIA
A maioria absoluta de temas relacionados à saúde mental,
sobretudo à psicopatologia evidencia que o movimento de
nascimento da Psicologia brasileira, tal como ocorreu em vários
países, se deu a partir da Psiquiatria. Os temas de
psicopatologia estão distribuídos por praticamente todos os
anos, entre 1882 e 1906. A importância do tema na época é
evidenciada tanto pelo fato dele ter sido trabalhado em vinte
dos vinte e quatro anos da vida produtiva de Nina, como pela
sua incidência maciça no último ano do recorte - 1906 - onde
aparecem em oito teses.
Os temas relacionados diretamente a psicopatologia que
tiveram maior incidência nas teses desse período foram: o
alcoolismo e histeria (oito teses cada) e loucura (sete teses).
Além deles, diversos outros temas relacionados puderam ser
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46
identificados, entre eles: delírio, alucinação, epilepsia,
demência, alienação, degeneração psíquica, paranóia e
psicopatia.
Rocha et al.(10), ao analisar os temas trabalhados nas teses
da FAMEB, tendo como recorte todo o século XIX,
identificaram os mesmos temas.
Nina Rodrigues e a Psicologia
45
acadêmico. Um fato importante a ser observado é a sua
incidência nos primeiros anos do século XX: entre 1905 e
1906 ele aparece em sete teses. Assim, a quantidade de teses
que tratavam da higiene é um tanto maior, sobretudo na virada
do século.
MULHER
AGENTES TERAPÊUTICOS
A segunda maior incidência relaciona-se a procedimentos
que foram definidos como agentes terapêuticos, donde os
mais recorrentes foram: hidroterapia (seteteses), hipnotismo
(seis teses) e sugestão (seis teses). Afora eles, outros agentes
terapêuticos puderam ser identificados, a exemplo de:
balneoterapia, eletroterapia/eletrochoque e psicoterapia.
Se comparados aos temas de psicopatologia, que
figuravam na academia desde o início do século XIX, os
agentes terapêuticos tinham um caráter de novidade do fim
do século, visto que sua maior incidência se deu a partir desse
período. A hidroterapia é objeto de estudo nos anos de 1883
(três) e 1887 (quatro). Isso chama atenção para p destaque do
tema nesse pequeno período, seguido de um certo por redução
nos anos subseqüentes.
Por outro lado, os temas hipnotismo e sugestão estão
distribuídos de forma mais homogênea, com uma concentração
maior entre 1888 e 1893 e tendo ambos sua última incidência
no ano de 1902. Embora muitas vezes associados, hipnotismo
e sugestão apareceram também como temas independentes,
configurando aí novas investigações e possibilidades
terapêuticas. Entre 1903 e 1905 o tema “agentes terapêuticos”
como um todo foi deixado de lado, para no ano de 1906 ter
uma única incidência com “balneoterapia”, um tema
extremamente novo, que nunca fora trabalhado.
HIGIENISMO
A preocupação com a higiene é algo marcante no século
XIX no Brasil. Os primórdios do movimento higienista se
configuravam na Bahia oitocentista, onde a preocupação com
a “saúde social” modificava as condutas e práticas, bem como
re-instalava novos valores em prol da raça brasileira. Assim,
surge o conceito de casal higiênico, e os modelos de homem
e mulher - pai e mãe,responsáveis por fornecer herdeiros
legítimos e saudáveis à pátria. Definem-se aí os
comportamentos e condutas higiênicas esperados pela
sociedade cristã e é instaurado o receio generalizado das
doenças sexualmente transmissíveis trazidas pelas prostitutas,
celibatários, libertinos e pelos homossexuais. O que se assiste
nessa virada de século é uma conseqüência explícita de todo
esse movimento. A primeira ocorrência do tema higienismo no
período produtivo de Nina Rodrigues data de 1885, seguido
do ano de 1886. Após essa data, ocorre um hiato de nove
anos sem ele ser trabalhado, até 1895, quando volta ao cenário
Os temas relacionados às questões femininas denotam
uma preocupação bastante nova com a mulher. Considerando
o recorte de datas, apenas em 1893 aparece a primeira tese
sobre a mulher, tema este que passou a ser trabalhado
anualmente a partir de 1899 até 1906.
A importância com que as questões femininas ganharam
cena na virada do século aponta para um concretização do
ideário higiênico propugnado durante todo o século XIX no
Brasil, visto que em sua maioria, as teses que continham este
tema definiam, antes de tudo a mulher que a sociedade brasileira
esperava.Temas relacionados a parto, aborto, puberdade,
casamento, puerpério, sexo, sífilis, gravidez continham em
sua maioria os preceitos higiênicos como pano de fundo: as
posturas, comportamentos e sentimentos esperados para uma
mulher cristã brasileira do fim do século.
A Subgerência de Obras Raras e Valiosas da Biblioteca
Pública do Estado da Bahia (SORV) tem dentre os seus 60.000
volumes, 137 livros de Psicologia que foram publicados neste
período no Brasil (nove exemplares), Espanha (seis), França
(99), Inglaterra (dois), Itália (15) e Portugal (três). A França é o
país com a maior quantidade de livros, sendo responsável por
73% desta produção. Vale destacar que, mesmo autores de
outras nacionalidades, a exemplo do americano Robert
Sessions Woodworth (1869-1972) dos ingleses Herbert
Spencer (1820-1903) e Henry Charlton Bastian (1837-1915),
do canadense George John Romanes (1848-1894), do russo
Ivan Setchénoff (1825-1905), dos italianos Angelo Mosso
(1846-1910) e Scipio Sighele (1868-1913 ) tiveram suas obras
traduzidas para o francês. O francês Théodule Ribot (18391916) considerado o Pai da Psicologia francesa é o autor com
a maior quantidade de livros neste período. Foram 11 títulos,
alguns em mais de uma edição. São eles:
1883 - Les Maladies de la Volonté
1885 - La Psychologie Allemande Contemporaine; école
experimentale
1887 - La Psychologie Anglaise Contemporaine école
experimentale
1889 - Psychologie de l’ Attention
1889 - Les Maladies de la Personalité
1889 - Les Maladies de la Mémoire
1897 - L’ Evolution des Idées Générales
1899 - La Psychologie des Sentiments
1902 - L’ Hérédité Psychologique
1905 - La Logique des Sentiments
1905 - L’ Imagination Créatrice
46
Nadia Rocha, et al.
No Brasil, foram publicados nove títulos. Dos seus autores,
três são brasileiros, um português e dois franceses.
• Francisco Fajardo, (1852-1906) médico carioca, autor do
primeiro livro sobre hipnotismo no Brasil, e segundo
Câmara (s.d.) o primeiro a pesquisar e documentar
cuidadosamente a história da introdução do magnetismo
animal e do hipnotismo no Brasil(1). Encontram-se os livros:
1889 - Hypnotismo
1896 - Tratado de Hypnotismo
• Pedro Lessa (1859-1921) jurista, magistrado, político e
professor mineiro, autor de O Determinismo Psychico E A
Imputabilidade e Responsabilidade Criminaes,
publicado em São Paulo no ano de 1905.
• Francisco José Viveiros de Castro (1862-1907(?) advogado
maranhense, autor de Attentados Ao Pudor, Aberrações
Sexuais, livro que tem o diferencial de ter sido editado no
mesmo ano em Recife e no Rio de Janeiro.
Alguns destes livros pertenceram a biblioteca de pessoas
de destaque da sociedade baiana, como:
• Bacharel José Alfredo de Campos França (1865-1923),
jurista, político, professor, de tradicional família baiana,
primeiro ocupante da Cadeira número 9 da Academia de
Letras da Bahia, neto de Eduardo Ferreira França (18091857), médico e político, Autor de Investigações de
Psicologia, publicado em Salvador no ano de 1854,
provavelmente o mais antigo deste gênero nas três
Américas(4).
• Francisco Xavier Ferreira Marques (1861-1942) jornalista,
político, romancista, poeta e ensaísta natural de Itaparica
Um dos fundadores da Academia de Letras da Bahia
provavelmente o seu idealizador. Membro da Academia
Brasileira de Letras(5).
• Galdino Ribeiro, médico, fundador e proprietário das
Farmácias Galdino.
• Gonçalo Muniz Sodré de Aragão (1870-1939), médico,
sanitarista, professor catedrático de Patologia na FAMEB,
diretor de Hygiene Municipal, Secretário de Interior, Justiça
e Instrução Pública, Diretor de Saúde Pública, instituição
que deu origem à Fundação Gonçalo Muniz, atualmente
vinculada à Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Possuiu
uma das maiores e mais selecionadas bibliotecas do deste
Estado(12).
• Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque, médico e
professor da FAMEB, um dos primeiros presidentes do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
• Virgílio de Lemos (1862-1926), catedrático de Filosofia do
Direito da Faculdade Livre de Direito da Bahia, ensaísta,
jornalista, tradutor, integrante da Academia de Letras da
Bahia e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia(1).
Estes fatos nos revelam que a Psicologia, apesar de
extremamente recente no cenário científico, teve uma grande
receptividade, principalmente nos Estados Unidos da América.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S42-S46
Neste curto espaço de tempo, houve a instalação de 71
laboratórios de investigação psicológica, a maioria
coordenados por personagens de destaque no cenário da
Psicologia mundial. Cátedras, cursos e departamentos foram
criados, periódicos fundados e até dicionários foram
publicados, numa clara indicação do vigor no novo campo
que se instalava. Na Bahia, e provavelmente, no Brasil, a
influência norte-americana não parece ter se instalado neste
período – a nossa Biblioteca Publica ainda tinha um acervo
predominantemente francês. Mas a Psicologia já constava
das Bibliotecas particulares de pessoas de destaque na
sociedade baiana. Estávamos já em sintonia com a produção
internacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Câmara FP. Instituição da psicoterapia na medicina brasileira: 18871889 Psychiatry on line Brazil. 8: 2002/2003 Acessado em 25/
07/06 em http://www.polbr.med.br/arquivo/wal0103.htm
2. Campos RHF. Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil:
Pioneiros. RJ: Imago, 2001
3. Costa, A. Antônio Ferreira França. RIGHBA, 75: 55-78, 1948
4. Cattell JM The Psychological Laboratory at Leipsic. Mind, 1: 3751,
1888.Acessado
em
15/07/06
em
http://
psychclassics.yorku.ca/Cattell/leipsic.htm
5. Coutinho A, Galante, J enciclopédia de Literatura Brasileira. RJ:
MEC, 1990
6. Garvey CR. List of American Psychology Laboratories.
Psychological Bulletin, 26: 652-660, 1929. Acessado em 10/
07/06 em http://psychclassics.yorku.ca/Garvey/
7. Heidbreder, E. Psicologias do século XX. SP: Mestre Jou, 1981
8. Marx M, Hillix WH. Sistemas e Teorias em Psicologia. S.P.: Cultrix,
1973.
9. Pereira ME. Linha do tempo da História da Psicologia. Acessado
em 25/05/06 em http://www.geocities.com/athens/delphi/6061/
linha.htm
10. Rocha NM, Tranquilli, AG, Lepikson BB. A Faculdade de Medicina
da Bahia no século XIX: a preocupação com questões de saúde
mental. GMBahia, 75: 103-126, 2004
11. Schultz DP, Schultz SH. História da Psicologia Moderna. SP:
Pioneira, 2005
12. Souza, AL de Baianos ilustres 1564-1925. Salvador: SEC, 1973
13. Titchener EB. The postulates of a structural Psychology.
Philosophical Review, 7: 449-465 1898 .Acessado em 20/05/
06
em
http://ttp://psychclassics.yorku.ca/Titchener/
structuralism.htm
NOTAS
a
b
c
d
Manoel Bomfim (1868 - 1932), médico sergipano, com formação
em Psicologia, tendo estudado no Laboratório de Psicologia anexo
à Clínica Jouffroy, em Saint’Anne, e estudado com Georges Dumas
e Alfred Binet. (2)
Primeira mulher(2) a dirigir um laboratório.
Em se tratando deste material nunca é excessivo pontuar que
todas as afirmações a este respeito são provisórias, tendo em
vista o incêndio que consumiu a biblioteca da FAMEB no ano de
1906.
Lembramos que a definição dos temas a serem trabalhados
anualmente pelos doutorandos da FAMEB era de competência da
sua Congregação.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53
Nina Rodrigues e a Antropologia Criminal
47
Quando a Desigualdade é Diferença: Reflexões sobre
Antropologia Criminal e Mestiçagem na Obra de Nina Rodrigues
When Inequality Means Difference: Considerations About
Criminal Anthropology and Miscegenation in Nina Rodrigues Opus
Lilia Katri Moritz Schwarcz
Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
O presente artigo tem como objetivo analisar a importância dos trabalhos e pesquisas do cientista
Nina Rodrigues, sobretudo na área da antropologia criminal. Com efeito, em finais do século XIX,
e no contexto da abolição da escravidão, o esforço deste médico traduziu-se em uma teoria que
pretendia demarcar a existência de diferenças ontológicas entre as raças, bem como apontar para
o perigo da “degeneração” em um país caracterizado pela miscigenação. A análise terá como pano
de fundo o livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, publicado em 1894 e que,
contrapunha-se, justamente, ao novo Código Penal, apresentado pela “jovem” República, e que
advogava o livre arbítrio.
Palavras-chave: mestiçagem, Direito Penal, final do império, teorias raciais, Nina Rodrigues.
The main goal of this article is to understand the importance of the works and researches made
by Nina Rodrigues, mainly in the fields of criminal anthropology. In fact, at the end of the XIXth
century, in the context of the abolition of the slavery, this physician tried to defend the existence
of “races”, and the idea that the miscegenation would lead to national degeneration. We are
going to work with the book As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, published
in 1894.
Key-words: Miscegenation, penal code, end of the brazilian monarchy, racial theories, Nina
Rodrigues.
Nina Rodrigues legou uma imagem paradoxal. A despeito
de ser considerado – a partir da publicação de obras como
Africanos no Brasil e Animismo fetichista – como o primeiro
antropólogo brasileiro a tratar de temas, hoje conhecidos, como
“raciais”, ele é também considerado um autor maldito;
reconhecido como aquele que tratou de defender – e teorizar
Recebido em 20/9/2006
Aceito em 21/11/2006
Endereço para correspondência: Prof.ª Lilia Katri Motitz
Schwarcz. Rua Salvador de Mendoça, 95. 01450040. São Paulo.
SP, Brasil. E-mail: [email protected].
Este artigo foi originalmente apresentado em Colóquio
realizado na UFMA, S. Luís, Maranhão, Brasil, no período de
02 a 15 de maio de 2006 e contou com a participação de mais
de de 40 palestrantes convidados e cerca de 700 inscritos. Foi
realizado junto com o VII Simpósio da Associação Brasileira
de História das Religiões e teve como tema: Religião, Raça e
Identidade.
Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):47-53.
© 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.
– as diferenças ontológicas existentes entre as diversas raças
no Brasil, e em especial por considerar a mestiçagem como
sinal de degenerescência.
No entanto, as posições desse médico, professor da Escola
de Medicina da Bahia, mesmo em sua época, sempre foram de
difícil doma. De um lado, é evidente a sua aceitação das teses
do darwinismo social e da antropologia criminal, bem como da
concepção de que hierarquias rígidas marcariam as diferenças
internas existentes entre as raças. De outro lado, porém, é
igualmente evidente a tentativa de Nina Rodrigues de “pensar
a diferença” e, sobretudo, nomeá-la. É certo que sua defesa
da existência de dois códigos penais, em As raças humanas e
a responsabilidade penal no Brasil, de 1894, é um exemplo
das certezas que grassavam nessa época marcada por
determinismos. No entanto, a leitura cuidadosa desse texto
aponta, também, para os impasses da idéia de diferença e as
decorrências de sua aceitação. O marco do centenário da morte
de Nina Rodrigues pode ser, assim, uma excelente
oportunidade para fazer um exercício de história da ciência,
pensando os cientistas em seus próprios contextos e, de certa
maneira, presos a seus cânones. A referência, portanto, não é
48
Lilia Katri Moritz Schwarcz
uma história da ciência que cobra do passado as certezas do
presente, mas, sim, aquela que permite retornar ao passado
com suas lentes próprias. Nina Rodrigues foi, nesse sentido,
um grande leitor e tradutor de seu próprio tempo.
Nina: um radical do pessimismo em um tempo pessimista
O momento em que o médico Nina Rodrigues escrevia e
pesquisava era dado a determinismos de toda ordem: raciais,
biológicos e até mesmo sociais. Por outro lado, nesse contexto,
e como bem mostrou Nicolau Sevcenko, a ciência era quase
uma missão, tal a maneira como ela se vinculava ao Estado;
ou melhor, ao que eram consideradas necessidades do Estadoa.
E Nina Rodrigues seria um dos intelectuais brasileiros mais
coerentes de seu tempo, ao adotar o darwinismo social de
forma bastante radical, negando o modelo evolucionista social,
e ao adotar a criminologia italiana, de Cesare Lombroso, como
exemplo de análise.
Diferente de seus colegas, da Escola de Recife que
acomodavam modelos teóricos diversos – especialmente
Tobias Barreto e Silvio Romero – Nina Rodrigues, negou o
suposto do evolucionismo social de que a “perfectibilidade”
era possível e presente em todas as “raças”. Além do mais,
ao conferir às raças o estatuto de realidades estanques e
ontológicas, passou a advogar que toda mistura de espécies
era sinônimo de degeneração. Nesse sentido, se opôs
frontalmente aos estudos de Silvio Romero, que acreditavam
numa certa mestiçagem “possível”. Afinal, o jurista teria
afirmado, provocativamente, que “éramos mestiços no
sangue, na alma e nas idéias”, revelando que a mestiçagem
era uma realidade e melhor seria, de alguma maneira aceitálab .
Com sua posição extremada e pessimista, para a sua própria
época, Nina Rodrigues se opôs aos colegas de direito, que
eram, justamente, os responsáveis pela conformação do
Código Penal de 1894. Para ele, só os médicos teriam o arbítrio
sobre esses corpos doentes, sendo que o Direito
(nomeadamente o jus-naturalismo), apostava em concepções
“ultrapassadas” – como a igualdade e o livre-arbítrio – que,
segundo o médico, levariam ao “obscurantismo geral”.
Defendeu assim uma idéia bastante “moderna” da
relatividade do crime, e a associou à questão da imputabilidade:
certas raças seriam responsáveis; de outras não se podia
cobrar o que, simplesmente, não existia. A noção de “diferença”
– nesse caso diferença racial – aparece claramente delineada
no modelo de Nina Rodrigues e ainda mais em As raças
humanas e a responsabilidade penal, também de 1894.
Conforme ironizava: “se um país não é antigo para se fazer
conhecer por sua tradição; rico para se destacar por sua
economia; precisa ser diferente”. Para Nina éramos diferentes
e essa diferença deveria ser, de fato, levada a sério.
O problema, como veremos, não era, porém, o diagnóstico,
mas sim a solução.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53
Relendo “As raças humanas”
Parte da “maldição” que recaiu sobre Nina Rodrigues,
advém de seus livros e estudos sobre criminalidade, que se
concentraram nos finais dos anos 1880 e inícios da década de
XX. “As raças humanas e a responsabilidade penal” (1894);
“Negros criminosos” (1895), “O regicida Marcelino Bispo”
(1899); “Mestiçagem, degenerescência e crime” (1899) entre
outros textos e ensaios, representam um novo momento na
carreira desse médico que vê na criminalidade mestiça uma
“originalidade”; uma particularidade dessa nação
evidentemente misturada não só em credos como em raças.
O suposto comum é o da “desigualdade” e, portanto, da
necessidade de criação de códigos penais diferenciados, que
permitissem o estabelecimento de responsabilidades
atenuadas. Apoiando-se em seus vários “estudos de caso”,
Nina Rodrigues procurava fazer de suas teses não uma questão
de ordem pessoal, mas matéria de ciência, fartamente amparada
na bibliografia da época.
E o contexto não poderia ser mais revelador. Afinal, nesse
momento uma série de pensadores perguntava-se, exatamente,
sobre qual era o lugar da população negra, recém egressa do
sistema escravocrata, e sujeita ao arbítrio da República; que
justamente surgia propugnando a noção de igualdade social
e jurídica. O modelo aplicado pelo médico implicará, portanto,
a explicitação da tese inicial – a diferença de imputabilidade
entre as raças —, a demonstração da farta bibliografia técnica
concernente ao tema e, finalmente, a demonstração dos “casos
clínicos” para chegar-se ao corpo doente; marcado pelas
manifestações de epilepsia, neurastenia (fadiga), histeria, ou
alienação. O conjunto dos casos analisados permitiria, assim,
demonstrar a degeneração e a inviabilidade do próprio código
penal de 1894; “enganado” pelo princípio voluntarista da
Ilustração: a falácia da igualdade.
O livro que demonstra com maior desenvolvimento tal tipo
de tese desse autor é “As raças humanas e a responsabilidade
penal”, de 1894. Nele, nota-se a comprovação da idéia de que
pouco vale o indivíduo (e o arbítrio), pois esse é parte de seu
grupo racial que lhe condiciona o comportamento.
A posição social do intelectual é típica daquele que “previne”
a sociedade do mal que a aflige. Nada como seguir um pouco
os argumentos desse livro, com o intuito de descrever ainda
mais, as idéias, o método e as implicações das idéias de Nina
Rodrigues.
O texto, que é dedicado a Lombroso, Enrico Ferri e R
Garofalo, — mestres da criminologia da época —, inicia
afirmando sua tese central: o estudo das modificações que as
condições de raça imprimem à responsabilidade penal, deve
levar “ao exame das causas que podem modificar a
imputabilidade”c.
Para demonstrar sua hipótese, Rodrigues começa opondose a algumas concepções que considera “enganosas” e até
mesmo “perigosas”. A primeira delas seria a “tese
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53
Nina Rodrigues e a Antropologia Criminal
espiritualista”, que, segundo o médico, pressuporia uma
mesma “natureza social” para todos os povos. A humanidade
seria comum e uma e existiriam apenas variações no grau das
culturas, sendo todas passíveis de atingir um nível semelhante
de complexidade e até mesmo a igualdade. Nina Rodrigues,
do alto de sua posição de especialista, decreta que essa seria
“uma concepção irremissivelmente condenada em face dos
conhecimentos científicos modernos”. E avança: “Não são
tão simples e contingentes as causas do pé de desigualdade
em que se apresentam na superfície do globo as diversas
raças ou espécies humanas que disputam a sua posse”d . Nina
passa a defender que a evolução é sempre lenta e que não se
poderia exigir de um povo uma evolução incompatível com
seu desenvolvimento intelectual. Igualdade vira, portanto, um
“dogma”e, com todas as implicações que esse termo possa
ter.
Por outro lado, a concepção espiritualista passa a ser
entendida como um modelo metafísico, cuja compreensão
encontra-se longe da experimentação científica – e moderna –
sendo antes matéria de crença. Apresentando todos os
supostos da criminologia moderna, o cientista advoga a
existência de ontologias entre as raças e a idéia de variações
relevantes de ordem orgânica, biológica e cerebral.
Seu segundo alvo de ataque é a o Direito, e,
destacadamente, as legislações penais, aonde “ainda reinam
com princípios soberanos os velhos conceitos metafísicos da
filosofia espiritualista”f. Passa então a demonstrar sua tese a
partir da citação de uma série de trabalhos que em seu conjunto
demonstrariam como é preciso combater “a velha doutrina”
da uniformidade das idéias em todos os cérebros humanos;
ou seja, a universalidade dos sentimentos e da própria
humanidade. Para Nina Rodrigues, ao contrário, “o crime não
é mais que um conceito relativo”, que muda de idade para
idade, de raça para raça, de povo para povog.
Dessa maneira, seguindo um argumento lógico (e longe
do que considera como “modelos subjetivos”), Rodrigues
transforma a igualdade em uma “velha doutrina” e a
universalidade em balela metafísica: tudo em nome da
modernidade das idéias e de sua exeqüibilidade. A isso alia as
análises de Lombroso, que teria lembrado da criminalidade
própria a cada povo e em suas “origens atávicas”. Aí estaria o
suposto do determinismo e da atribuição ao grupo da
culpabilidade.
A própria noção de cidadania passa, dessa maneira a ser
questionada, uma vez que não cabe ao “indivíduo” julgar
seus atos, uma vez que ele é antes uma decorrência dos
atavismos de seu grupo de origem. A “justiça” não seria, dessa
maneira, um termo abstrato, mas apenas referido a diferentes
situações e contextos. “Os povos não sentem da mesma
maneira” é um suposto extremamente moderno, que dá lugar à
noção da relatividade e, mais ainda, de que os conceitos são
sempre relacionais e que sua compreensão passa pela análise
das concepções do próprio cientista. No entanto, se a tese em
49
termos gerais parece alentadora, e permite pensar em diferentes
noções de criminalidade, as soluções encontradas por
Rodrigues são, no mínimo, paradoxais.
Em primeiro lugar, o cientista transforma a “vontade livre”
em questão metafísica, e considera “absurda” a sua utilização;
que só poderia ser aplicada a uma agremiação social
homogênea. O único elemento objetivo seria o grau de
evolução das raças, que caminham em acordo e harmonia com
seu grau de evolução intelectual e moral.
Em segundo lugar, anula a vontade do indivíduo fazendo
dela uma soma das características e limitações de seu grupo
“racio-cultural”. Dessa maneira, ao invés da exaltação da
diversidade e da relatividade do crime, a saída implica em
atitudes intervencionistas; de acordo com os determinismos
de época.
O alvo, explícito, a partir de então, é o código penal brasileiro
que teria tomado (seja no novo código da República, seja no
antigo código do Império) o pressuposto espiritualista do
livre arbítrio como critério de responsabilidade penal. Diz ele
que, seguindo tal procedimento, estariam os juristas apenas
copiando modelos dos “povos civilizados à européia”h e não
atentado para as especificidades locais. Mais uma vez, a
argumentação é complexa – e, nos termos mais
contemporâneos, até pluralista –, uma vez que o médico revela
a necessidade de aplicar modelos que dialoguem com a própria
realidade local. No entanto, é preciso ir com cuidado com esse
tipo de consideração, já que Nina Rodrigues diagnostica e
interessa-se, sobretudo, pelo que considera ser a
degenerescência da mestiçagem existente no Brasil.
Nesse sentido, critica o que chama de “ecletismo de Recife”,
que procurou conciliar livre-arbítrio com determinismo. Se
contrapõe, nomeadamente, a Tobias Barreto, que teria
defendido um “acordo” entre monismo e determinismo, e o
próprio livre-arbítrio. “A liberdade é uma aparência” diz o
médico, uma “ilusão da liberdade”i e a conciliação de idéias
seria, portanto, impossível.
Nina Rodrigues parte então para desautorizar o argumento
do colega jurista, afirmando que o problema não é o livre
arbítrio, mas a impunidade. E provoca: “Vede, pois senhores:
a doutrina do livre arbítrio relativo nos leva exatamente a essa
perigosa impunidade geral, a que procurava fugir Tobias
Barreto. E era contra esta conseqüência que eu queria e tinha
o dever de prevenir-vos”j. O médico revela, dessa maneira,
através do estilo direto utilizado, que tem um leitor em vista –
os juristas – e como pretende desqualificar as máximas dos
colegas da escola de Recife. O problema não seria a defesa do
livre arbítrio, mas a impunidade que daí adviria. O médico se
faz de missionário e trata de “alertar a civilização” acerca dos
males, em sua opinião, efetivamente em jogo: “ou punir
sacrificando o princípio do livre arbítrio ou respeitar esse
princípio, detrimentando a segurança social”l. O tema implicava
em “segurança nacional” e cabia ao médico social,
especializado em doenças sociais, alertar a nação.
50
Lilia Katri Moritz Schwarcz
Mais uma vez o cientista apela para uma relatividade
evolucionista e revela como crimes são “involuntários”, em
certas raças inferiores, e não se pode julgá-los com os códigos
de “povos civilizados”. A crítica dirige-se, assim, aos códigos
ditos universais, pregando-se a aplicação condicional em
função dos diferentes estágios de civilização. A saída seria
estudar as raças existentes no Brasil (e não um modelo geral);
arma dessa “geração realista” que procurou analisar a realidade
a partir dos elementos que encontrava.
A ambigüidade da análise não está, dessa maneira, na forma
acertada de anotar a importância da diferença entre culturas e
povos, mas no ajuizado que parte dessa premissa e nos
supostos evolucionistas que condicionam a análise. Culturas
são, com efeito, raças, e suas realidades ontológicas não
permitiriam arbítrio ou variação. Não por coincidência, Nina
Rodrigues troca de “inimigo” e passa a criticar Silvio Romero.
Retoma, nesse sentido, sua famosa frase presente em História
da Literatura Brasileira (1888) – “todo brasileiro é mestiço
senão no sangue pelo menos nas idéias” – e passa a dizer que
o problema está em desconsiderar os elementos
antropológicos distintos e presentes no país. Divide então a
população local em quatro grupos, a saber: raça branca, raça
negra, raça vermelha e raça dos mestiços. Esses últimos, objeto
de estudo que Nina Rodrigues afirma se dedicar “faz muitos
anos”, estariam, por sua vez, sub-divididos: em mulatos
(mulatos dos primeiros sangues, mulatos escuros), mamelucos
ou caboclos (produto do cruzamento do branco com o índio),
curibocas ou cafusos (produto do cruzamento do negro com
o índio) e pardos (produto do cruzamento das três raças). A
decorrência de tal descrição é, portanto, que os mestiços
brasileiros careceriam de unidade antropológica o que traria
reflexos diretos no tema da criminalidade. Além do mais, Nina
Rodrigues destaca que as raças puras estariam ameaçadas de
desaparecimento, por oposição ao “mestiçamento” gradual
da população brasileira, que tenderia a crescer. Por isso mesmo,
o médico duvida da unidade étnica, presente e, sobretudo,
futura, pretendida por Silvio Romero e considera pouco
provável, como queria o jurista, que a raça branca viesse a
predominar.
Aqui se encontra o impasse central entre os dois autores:
enquanto Silvio Romero acredita no branqueamento geral da
população local – resultante da superioridade racial ou do
efeito da imigração branca por ele propugnada –; já Nina
Rodrigues afirma que “o futuro será mestiço”. Por outro lado,
Silvio Romero veria o Brasil sob a chave da unidade; ao passo
que Nina Rodrigues destacaria a diferença existente entre as
raças no conjunto do território nacional. A diferença, nomeada
a partir de culturas, seria, não obstante, “racial” e, portanto,
“essencial”. Tais diversidades se expressariam nas quatro
regiões brasileiras – Norte, Nordeste, Sul e Sudeste –, cada
vez mais diferenciadas em suas características básicas.
Não é o caso de repassar as especificidades dessas regiões
destacadas pelo autor, mas antes de assinalar o partido que
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53
Nina Rodrigues tira dessa interpretação. Na verdade, trata-se
de afirmar, uma vez mais, a competência médica e mostrar como
“os nossos legisladores em matéria de conhecimento biológico
e sociológico não vão muito além do ensino religioso, e
influenciados por eles transportaram para os códigos este
princípio da igualdade”m. Seriam os médicos assim os únicos
autorizados a lidar com a “dificuldade real”, que consiste em
avaliar “a responsabilidade dessas raças já incorporadas à
nossa sociedade, gozando dos mesmos direitos e colaborando
conosco na civilização” n. Mais ainda, seriam esses os
profissionais capacitados a lidar com as variedades
fundamentais presentes nessa mesma nação.
O tom pretensamente apaziguador de Nina Rodrigues não
oblitera o fato dele, em nome de privilegiar e defender essas
mesmas raças, passar a advogar a noção de “diferenças
fundamentais” das raças existentes no Brasil. O problema não
seriam os indígenas, que segundo seu ponto de vista
desapareceriam, mas os mestiços: produto da mestiçagem
entre “raças inferiores com superiores”.
Mostrando como a inferioridade do negro era um
pressuposto de época – “pode ser absolutamente certo que
alguns negros sejam superiores a alguns brancos; mas nenhum
homem de bom senso, bem esclarecido sobre os fatos, poderá
crer que em geral o negro valha tanto quanto o branco e muito
menos que lhe seja superior”o – o médico procurará anotar
como o maior problema nacional não seriam as “raças puras”
(que ou desaparecerão ou manifestarão apenas, e tão somente,
a existência de fases distintas de evolução) e sim as mestiças.
Se com relação aos índios e negros caberia prever “uma
responsabilidade atenuada”p ; já os mestiços constituiriam o
maior desafio do ponto de vista da psicologia criminal: caberia
a eles a característica “degenerativa”, resultante do cruzamento
entre raças distintas.
Novamente, nesse momento da argumentação, Nina
Rodrigues retorna a Silvio Romero para mostrar que o jurista
teria apontado para a “indolência e desânimo” de nosso povo
e mesmo assim defendido o livre arbítrio. Opondo-se ao
argumento, o médico afirma que a indolência seria um “legado
dos maiores” e que traria decorrências evidentes para o código
criminal. Não só a indolência, acrescenta, como a
“imprevidência”q.
Defende, ainda mais uma vez, as imensas diversidades
existentes entre os mestiços, ajuizando positivamente os que
se aproximam aos brancos e condenando os que se encontram
na perspectiva oposta. A idéia é que não seriam todos
irresponsáveis igualmente, mas que a “criminalidade, como
todas as outras manifestações congêneres, biológicas ou
sociológicas, seriam de fundo degenerativo, e ligadas às más
condições antropológicas do mestiçamento no Brasil”r.
A divisão torna-se ainda mais radical, sendo os mestiços
brasileiros divididos em: “superiores, evidentemente
degenerados e comuns”. Enquanto os primeiros seriam
responsáveis e “aproveitáveis”; os segundos, seriam parcial
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53
ou totalmente irresponsáveis, e os terceiros teriam
responsabilidade atenuada.
A partir daí desqualifica a unidade do código, assim como
advoga a menoridade para alguns casos. É nesse momento
que Nina Rodrigues torna-se mais explícito na sua condenação
à mestiçagem (alegando até a “naturalidade da escravidão,
durante algumas fases”) e na acusação ao código único da
República, o qual considera “um erro grave”s. A orientação do
médico seria indicar uma menoridade, para o Brasil, “com prazo
maior do que o aceito para as raças européias”. Ou seja,
tomando a degenerescência como conseqüência de uma
desigualdade antropológica e sociológica entre as raças,
Rodrigues ataca a filosofia universalista do jusnaturalismo –
a virtualidade da Ilustração – e passa a analisar casos que
comprovam sua teoria. O debate é, então, retomado a partir da
dicotomia entre universalismo e diferença e iluminado a partir
da “pesquisa de campo”.
São exemplos de parricídio, de embriagues, de pederastia
e de vícios de toda sorte. A característica fundamental seria a
reação “impassível” e “cínica” do doente diante do crime;
conforme já teria demonstrado Lombroso com seu livro L’uomo
delinquente. Aí estariam os casos de “criminosos natos”,
acerca dos quais o famoso criminalista italiano teria apostado
na “utopia” de prevenir o crime – utilizando a teoria dos
estigmas —, antes do próprio ato criminoso.
Na contra-mão da unificação dos códigos Nina Rodrigues
defende, dessa maneira, a idéia da distinção da
responsabilidade e da imputabilidade. E termina: “feliz os
povos que não tem passado científico ... Oxalá a consciência
exata da superioridade que nos assiste neste particular, possa
guiar o legislador brasileiro na confecção da nossa legislação
criminal da qual não se possa vir a dizer nunca que mesmo
para o seu tempo já era ruim e atrasada”t.
Não ter “passado científico” significaria não estar a par da
realidade da degeneração? Não fica claro o partido de Nina
Rodrigues, que parece terminar seu livro com uma espécie de
desabafo, ou, ao menos, lamentando suas próprias
conclusões.
Mas o texto tem, ao menos, endereço certo e cada vez
mais explícito. Trata-se de desautorizar o código, chamandoo de atrasado e desatualizado, assim como os próprios juristas
que o elaboraram. O interessante é que tomando um argumento
“simpático” às raças que considera atrasadas, mas que fazem
parte de nossa civilização, o médico lhes concede a diferença.
No entanto, a mistura contempla a degeneração, segundo os
modelos consagrados da época, e caberia ao médico jurista,
legislar sobre ela.
Nada mais estranho para um cientista que usa tanto de
suas “armas e referências” do que terminar com um “Oxalá”,
dando ao texto um tom ao mesmo tempo predestinado como
afeito a outras sortes de todo tipo. Para um cientista, que se
pauta na “realidade dos dados e modelos científicos”, esse
desfecho é assim revelador dos impasses de época.
Nina Rodrigues e a Antropologia Criminal
51
O retorno do racialismo
Nesse livro Rodrigues pratica a nova modalidade de
medicina social preconizada nesse momento. E o momento
não podia ser mais significativo. Além do final recente do
regime escravocrata, as recentes epidemias de cólera, febre
amarela e varíola, entre tantas outras, chamavam atenção para
a “missão higiênica” que se reservava aos médicos. Por outro
lado, com o final da Guerra do Paraguai, ainda nos anos 1870,
afluíram em massa doentes e aleijados que exigiam a atuação
dos novos cirurgiões. Isso sem esquecer, já em inícios da
República, da necessidade de criar um novo código penal,
para a jovem nação. Nesse momento toma força, assim, a figura
do “médico missionário”, cujo desempenho será distinto nas
duas faculdades nacionais: enquanto o Rio de Janeiro atentará
para a doença, já na Bahia tratava-se de olhar para o doente.
Com efeito, a relação entre as duas escolas médicas brasileiras,
foi quase complementar. Se a escola do Rio de Janeiro dedicouse, sobretudo, ao combate as epidemias que grassavam no
país; já na Bahia, a atenção centrou-se, em primeiro lugar, nos
casos de criminologia e, a partir dos anos 1890, nos estudos
de alienação.
Na Escola Médica da Bahia, em finais do século, as teses
sobre medicina legal predominam. Nelas, o objeto privilegiado
não é mais a doença ou o crime, mas o criminoso. Sob a liderança
de Nina Rodrigues, a faculdade baiana passou, dessa maneira,
a seguir de perto os ensinamentos da escola de criminologia
italiana, que destacava os estigmas próprios dos criminosos:
era preciso reservar o olhar mais para o sujeito do que para o
crime. Para esses cientistas, não foi difícil vincular os traços
lombrosianos ao perfil dos mestiços - tão, mal, tratados pelas
teorias da época - e aí encontrar um modelo para explicar a
nossa “degeneração racial. Os exemplos de embriaguez,
alienação, epilepsia, violência ou amoralidade passavam a
comprovar os modelos darwinistas sociais em sua condenação
do cruzamento, em sua alerta à “imperfeição da hereditariedade
mista”. Sinistra originalidade encontrada pelos peritos baianos:
o “enfraquecimento da raça” permitia não só a exaltação de
uma especificidade da pesquisa nacional, como uma
identidade do grupo profissional.
Munidos dessas conclusões, esses médicos passarão a
criticar o Código Penal, desconfiando do jus-naturalismo, e
da igualdade entre as raças, apregoada pela letra da lei. “O
código penal está errado, vê crime e não criminoso ... Não
pode ser admissível em absoluto a igualdade de direitos, sem
que haja ao mesmo tempo, pelo menos, igualdade na evolução
... No homem alguma cousa mais existe além do indivíduo.
Individualmente sob certos aspectos, dois homens poderão
ser considerados iguais; jamais o serão porém se se atender
às suas funções fisiológicas. Fazer-se do indivíduo o princípio
e o fim da sociedade, conferir-lhe uma liberdade sem limitações,
como sendo o verdadeiro espírito da democracia, é um exagero
da demagogia, é uma aberração do principio da utilidade
52
Lilia Katri Moritz Schwarcz
pública. A Revolução Francesa inscreveu na sua bandeira o
lema insinuante que proclamava as idéias de Voltaire, Rousseau
e Diderot as quais ate hoje não se puderam conciliar pois
abherrant inter se ...”, diria Nina Rodriguesu.
O livre-arbítrio transformava-se, portanto, em um
pressuposto espiritualistav, em uma falsa questão, como se a
igualdade fosse criação própria dos “homens de lei”, assim
como o pressuposto da universalidade dos homens; sem
nenhum embasamento científico. A lei pressuporia a igualdade
e a universalidade e era contra esses princípios da Ilustração
que os profissionais médicos – em tudo contrários aos
modelos Iluministas – contrapunham-se. Diferença não é,
portanto, sinônimo de pluralismo, mas marca ontológica,
porque desenhada pela natureza. Era a face pessimista do
pensamento realista brasileiro, que diagnosticava no
cruzamento a falência nacional e a primazia dos médicos sobre
os demais profissionais.
“Prevenir” e estabelecer o privilégio da medicina por sobre
o direito eram, então, as aspirações centrais desse grupo e
nesse contexto. “Diferença”, por outro lado, não era um
elemento relativo (e relacional) ou aferível culturalmente. Ao
contrário, surgia como conceito congelado, uma vez que
diretamente vinculado à raça e à biologia.
Nesse sentido, os mestiços representariam o local da
ambigüidade e da aplicação de uma ciência estrita. O livro
analisado representou para o médico o lugar indicado para o
exercício do método e sua conclusão parece insofismável: a
imputabilidade criminal é relativa às raças.
O texto nos serve entre outros, como um elogio à idéia da
relatividade, mas também como um alerta acerca dos perigos
de sua aplicação. Numa época tomada pela “mania da
identidade”, como diz o historiador Evaldo Cabral de Melo,
vale a pena ficar atento para o perigo de “essencializar” o
debate e transformar identidades não em relações, mas em
fronteirasx.Identidades são, sempre, construções sociais, por
mais que o analista pretenda dar a elas o estatuto de realidades
observáveis.
É certo que Nina Rodrigues não pensava exatamente em
identidades (fossem elas raciais ou não), mas seu
procedimento teórico poderia iluminar certos aspectos do
problema. O médico era um criador, à contra-mão, de
identidades e as constituía de maneira rígida e pautada por
princípios do determinismo, mas que certamente dialogavam
com impasses da época. Nesse sentido, é preciso alertar como
identidades não são realidades fixas, rígidas e congeladas.
Fazem parte de um certo agenciamento, domesticam realidades
biológicas e até tradições. Por isso, são respostas políticas a
contextos políticosz.
A noção de “relatividade”, empregada por Nina Rodrigues,
servia como um diagnóstico determinista por sobre uma
categoria subjetiva e ampla: os mestiços. Poucos escapavam
dessa classificação que, nas mãos do médico, virava matéria
para a ciência. O problema não era de diagnóstico – a diferença,
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53
- mas a “medicação”. Ela hierarquizava a diferença e a
transformava em desigualdade. Isto é, diante da variedade
racial existente no país, a decorrência lógica parecia ser
localizar uma hierarquia social rígida cujo pressuposto era a
própria falta de igualdade. Jogava-se por terra, assim, os
ganhos da Ilustração, assim como noções de cidadania que
recém se instalavam entre nós a partir do princípio da
universalidade da lei. Diante da objetividade da ciência, que
visava o grupo racial, nada mais restava ao indivíduo que era
antes o resultado de seu raça e origem.
De nada adiantaria o esforço de Artur Ramos que, nos
anos 1930 tentaria reabilitar as idéias de Nina Rodrigues
tentando trocar o conceito de raça pelo de cultura. Com efeito,
era a raça e o grupo que delimitavam as possibilidades de um
indivíduo e, portanto, a relatividade defendida era
absolutamente referida à “constância da raça”.
As conclusões de Nina Rodrigues levavam assim a
acreditar no nosso fracasso como nação e na inviabilidade de
um povo mestiço, como o nosso. Dura conclusão, diante de
um país cuja República pretendia redimir por meio da
concepção de igualdade social. De tal papel sinistro o médico
procurou afastar-se; tanto que, a partir de inícios do século,
Nina Rodrigues basicamente abriu mão de seu papel de arauto
da diferença e da degeneração. Dedicou-se aos estudos de
alienação e adotou as mesmas premissas deterministas que
outrora utilizara para pensar a criminalidade.
Guardadas todas as especificidades contextuais, esse livro
de Nina Rodrigues abre, por outra porta, a imensa fresta do
perigo da “racialização” do debate. Clamar por uma diferença
que não é plural e relacional, mas racial, e que abole o suposto
da universalidade humana, é a atuar de acordo com a marcha
do caranguejo: “uma para frente e mais dois para trás”. Mais
que isso: Nina Rodrigues pode ser tomado como um arauto –
na contra-mão – desses tempos tomados pelo debate sobre
cotas. O médico, racializou o debate (em um momento
suficientemente tomado pelo modelo científico das raças), só
que usou seus conhecimentos para caracterizar a inferioridade
e não a igualdade. Por isso mesmo, suas propostas – entre
elas a idéia da formação de dois códigos – foram condenadas
e seu autor chamado de “maldito”. Hoje, a “racialização” serve
a uma causa considerada “positiva” (e que levaria a igualdade
aos desiguais) está mais uma vez em pauta, e continua a
essencializar e cristalizar. A pergunta é antiga e lembra o velho
e bom Machiavel: os meios justificam os fins?
E no caso de Nina Rodrigues seu contexto lhe era até,
digamos assim, favorável. Afinal, o médico não poderia estar
a par dos usos contemporâneos do conceito de cultura na
Alemanha, que como diz Norbert Elias, era uma região
relativamente pouco conhecida (em contraste com as
potências imperiais e coloniais da Europa Ocidental), e que
expressava ora seu atraso comparativo, ora suas exigências
regionalistasa1. Também, com certeza, desconhecia (até por
motivos óbvios e temporais) a noção de relatividade cultural,
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S47-S53
Nina Rodrigues e a Antropologia Criminal
53
cujo bastião era a antropologia culturalista, que surgia nessa
época com a figura de Franz Boas. Ao contrário, o médico
apoiava-se em bibliografia de ponta e, em sua época, acima de
suspeitas científicas.
Mas a despeito de tantos reparos, o certo é que seus
conceitos de raça não permitem “migrar” rapidamente para a
idéia de cultura. Sua base teórica é a biologia determinista e
incomoda ao fazer da defesa da diferença um mote para
estigmatizá-la e transformá-la em demonstração da hierarquia
social e da inferioridade.
Nina Rodrigues, o defensor da craniologia, foi vencido
pelo tempo e seus ideais foram devidamente datados. Resta
saber, porém o que é datado. O pressuposto da desigualdade
com certeza sim, a “persistência da raça” parece que não
tantob1.
Tudo faz lembrar o conhecido conto de Machado de Assis
- “O alienista”, de 1882, - em que Simão Bacamarte - um famoso
alienista – dá início a seus trabalhos internando vários
membros da sua cidade – e até a própria mulher – para depois
retirar a todos e estudar, apenas, a si próprio. O conto de
Machado é anterior ao livro de Nina Rodrigues e data dos
anos 1880. E por isso, mesmo que queiramos, não é possível
tratá-lo como um exercício de predestinação. No entanto, como
diz R Barthes a literatura sempre sabe “algo das coisas”. É no
mínimo evidente como a ciência era, já na época, um mito de
difícil digestão.
14. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, “Identidade cultural, identidade
nacional no Brasil”. In: Tempo Social 1. São Paulo, Edusp,
1989.
15. RODRIGUES, Nina (1862-1906), “Os mestiços brasileiros”. In:
Brazil Medico. Rio de Janeiro, s.e., 1890.
16. ________. As raças humanas e a responsabilidade penal no
Brasil, Gazeta Médica da Bahia, Progresso (1ª ed. 1933), 1959.
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20. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo,
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21. SCHWARCZ, Lilia K. Moritz, O espetáculo das raças. São Paulo,
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22. STOCKING, George W. Race, culture and evolution. Chicago,
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23. VENTURA, Roberto, Estilo tropical: história cultural e polêmicas
literárias no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
24. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre
a inconstância da alma selvagem”. In A inconstância da alma
selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac &
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Referências Bibliográficas
d
Notas
a
b
c
e
f
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
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Romero, Silvio. História da literatura brasileira.1888.
Rodrigues, Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal.
1894: 27
Rodrigues, Nina. Op.cit:28
Rodrigues, Nina. Op.cit:30
Rodrigues, Nina. Op.cit: 35
Rodrigues, Nina. Op.cit: 37
Rodrigues, Nina. Op.cit: 50
Rodrigues, Nina. Op.cit: 60
Rodrigues, Nina. Op.cit: 67
Rodrigues, Nina. Op.cit: 68
Rodrigues, Nina. Op.cit: 107
Rodrigues, Nina. Op.cit: 108
Rodrigues, Nina. Op.cit: 112
Rodrigues, Nina. Op.cit: 122
Rodrigues, Nina. Op.cit: 137 e 139
Rodrigues, Nina. Op.cit: 158
Rodrigues, Nina. Op.cit: 167
Rodrigues, Nina. Op.cit: 200, 201.
Gazeta Médica da Bahia, 1906:256-7
Correa, Mariza. 1983:64
Vide, Viveiros de Castro, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre a
inconstância da alma selvagem”. In A inconstância da alma
selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac &
Naif, 2002.
Vide, Cunha, Manuela Carneiro da Cunha. Negros estrangeiros. São
Paulo, Brasiliense, 1987 e Bauman, Zygmunt. Identidade. Rio de
Janeiro, 2006.
Elias, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 1999.
O antropólogo Peter Fry escreveu livro exatamente com esse título
– A persistência da raça (2005) – e tratou de temas semelhantes
aos que estamos abordando no final desse artigo.
54
Sergio Ferretti
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59
Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás
Nina Rodrigues and the Orixás Religion
Sergio F. Ferretti
Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA, S. Luís, MA, Brasil
Comentário sobre o centenário da morte de Nina Rodrigues. Apresenta síntese e comentários sobre
os livros O animismo fetichista dos negros bahianos, publicado em 1896 e traduzido em francês em
1900 e Os africanos no Brasil publicado cerca de trinta anos após o falecimento do autor. Ambos os
livros apresentam inúmeras informações sobre o trabalho de campo realizado pelo autor que é o
pioneiro destes estudos e abriu caminhos para pesquisas posteriores. Mostra sua afinidade e interesse
pelos estudos do negro no Brasil. Descreve o momento público das festas, vestes e contas usadas e
detalhes da iniciação, demonstrando a proximidade entre o autor e os elementos pesquisados. Nina
Rodrigues escrevia bem e fundamentava seus escritos em pesquisas de campo minuciosas. É lamentável
que hoje em dia a maioria dos seus trabalhos não estejam disponíveis ao público. Mostra que práticas
dos negros e brancos em toda parte encontram-se associadas, que não são apenas práticas de negros
pois os brancos estão aptos a tornarem-se negros. Considera que as praticas religiosas, sobretudo
a religião dos nagôs foram as principais instituições africanas conservadas entre nós, tendo em
vista o seu predomínio numérico, a melhor organização do sacerdócio e a maior difusão da língua.
Nina Rodrigues foi o pai fundador dos estudos afro-brasileiros, o pioneiro nessa área, e sua
contribuição foi fundamental para estabelecer diretrizes deste campo de estudos.
Palavras-chave: Nina Rodrigues, centenário da morte, religião dos orixás, nagôs, mitologia e
liturgia, trabalho de campo.
A commentary on the centenary of Nina Rodrigues’ death. A presentation of synthesis and comments
about the books O animismo fetichista dos negros bahianos (The fetishist animism of black baianos),
published in 1896 and translated into French in 1900 and Os africanos no Brasil(Africans in Brazil)
published about thirty years after the death of its author. Both books present a great deal of information
about the fieldwork done by the author, a pioneer of these studies, who blazed a trail later followed
by other researchers. His affinity and interest for the study of Negroes in Brazil is clear. The public
moments of the parties are described, clothing, stories that were told and details of initiation, this
clearly demonstrating the proximity of the author to his research subject. Nina Rodrigues wrote well
and supported his writings in research done in a minute field. It is lamentable that today most of his
work is not available to the public. It shows that practices of Negroes and whites are always linked
to each other since whites are apt to become negroes. It is considered that religious practice above all
the religion of the nagôs, are the main African institutions conserved amongst us, considering
numerical predominance, the most well organized priesthood and the greatest diffusion of the
language. Nina Rodrigues was the founding father of afro-brazilian studies, pioneer in this area and
his contribution was fundamental in establishing the directions later taken in this area of study.
Key words: Nina Rodrigues, centenary of death, religion of the Orixás, Nagôs, mythology and
liturgy, fieldwork.
Recebido em 6/9/2006
Aceito em 20/11/2006
Endereço para correspondência: Prof. Sergio F. Ferretti, Av. do
Vale 14 apt. 401, Ed. Titanium, Bairro Renascença II,CEP 65075829 – São Luís, MA, Brasil. Tel./ FAX: (98) 3235-1291. E-mail:
[email protected].
Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):54-59.
© 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.
No dia 17 de julho de 1906 o médico maranhense
Raymundo Nina Rodrigues, precursor dos estudos do negro
no Brasil, faleceu em Paris, com apenas 43 anos. Nina
Rodrigues estudou medicina na Bahia e no Rio de Janeiro.
Segundo o professor Lamartine Lima(3), Nina Rodrigues não
era mulato, mas descendente de judeus sefaraditas.
Segundo Domingos Vieira Filho(8), a rua do Sol, em São
Luís, recebeu o nome atual de Nina Rodrigues no ano de seu
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59
falecimento em homenagem àquele médico maranhense que,
após a sua formação universitária, trabalhou cerca de dois
anos no Maranhão. Antes de regressar à Bahia ele residiu e
manteve um consultório no prédio que tem hoje o nº 95, em
frente ao Teatro Arthur Azevedo, onde, em 1962, no
centenário de seu nascimento, foi colocada uma placa de
mármore alusiva ao evento. Realizou pesquisas alimentares
publicando seus resultados no Jornal Pacotilha e por causa
de um deles teria sido apelidado de Dr. Farinha Seca, um dos
motivos pelo qual não se estabeleceu no Maranhão por muito
tempo e se mudou para a Bahia, onde realizara parte de seus
estudos superiores e onde exerceu com brilho a profissão
de médico, daí porque é mais conhecido como baiano de que
como maranhense.
Na Bahia, Nina Rodrigues encontrou numerosa população
negra, a que mais tarde dedicou seu estudo. Trabalhou em
inúmeras frentes: como professor universitário, como escritor,
como antropólogo e como pesquisador das áreas de saúde
pública e medicina legal. Deixou cerca de 60 artigos, vários
reunidos em livros, a maioria deles publicada nos seus dez
últimos anos de vida. Alguns de seus trabalhos tiveram
edições publicadas em outros países, onde mantinha
correspondência com pesquisadores ilustres.
Cerca de cinco anos após o seu falecimento os estudos
sobre raça, conceito central em suas obras, começaram a
adquirir outros enfoques, sobretudo a partir de pesquisas do
antropólogo Franz Boas nos Estados Unidos. Caso tivesse
vivido mais alguns anos Nina Rodrigues certamente teria
revisto diversos de seus pontos de vista e afirmações sobre o
negro que tornam ultrapassados, atualmente, inúmeras de
suas perspectivas.
O ANIMISMO FETICHISTA
O livro O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos,
publicado na Revista Brasileira no Rio de Janeiro, em 1896 e
depois traduzido para francês na Bahia, em 1900, mereceu
resenha elogiosa de Marcel Mauss, publicada em Paris, em
1902, no Anuário Sociológico de 1900-1901, onde foi
considerado uma elegante monografia. Trata-se do livro
fundador da etnografia do estudo das religiões afro-brasileiras,
cujo modelo de estudos foi estabelecido por Nina Rodrigues
no século XIX, o pai fundador desta área de conhecimento
entre nós, e que necessita de uma edição revista e atualizada.
Animismo fetichista é a expressão, hoje preconceituosa, pela
qual no século XIX, eram conhecidas as religiões dos
chamados povos primitivos, hoje superada, juntamente com
outros conceitos como o de totemismo.
O livro Os Africanos no Brasil foi deixado na gráfica quando
ele viajou para a França em 1906 e fazia parte de uma História
da América Portuguesa, inacabada. O livro só foi publicado
30 anos após a sua morte, o que Arthur Ramos denominou de
conspiração do silêncio contra Nina Rodrigues. Esses dois
Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás
55
livros reúnem suas idéias em torno do estudo da Religião dos
Orixás que queremos comentar aqui.
Apesar de ultrapassados, muitos pontos de vista do autor
são até hoje importantes, especialmente nos estudos sobre
religiões afro, metodologia de pesquisa, mitologia, liturgia e
arte religiosa. Infelizmente, Nina Rodrigues, hoje é pouco lido,
pouco conhecido e muito criticado, especialmente por suas
idéias relativas as raças, atreladas a teorias da época que
afirmavam a inferioridade da raça negra, do ponto de vista
intelectual, físico, moral e religioso, embora reconhecesse
muitas qualidades no negro. Outros aspectos de sua obra têm
sido também pouco estudados pela dificuldade de localização
de seus trabalhos, que não foram reeditados.
Nina Rodrigues informa ter conhecido diversos negros
que aprenderam, em Lagos, a ler e escrever a língua Yorubá.
Mostra que a revolta de 1835 foi liderada sobretudo por negros
haussás ou malês; que devido à repressão policial, as práticas
muçulmanas eram na época, muito limitadas na Bahia e que a
religião dos yorubanos era muito mais importante. Considera
que a concepção dos orixás é sobretudo, politeísta, que o
deus supremo Olorum praticamente não recebe nenhum culto
e que os orixás são fenômenos meteorológicos divinizados.
Entre os orixás tem primazia Obatalá ou Orixalá, chamado de
Gunoco pelos africanos de nação Tapa. Menciona, em seguida,
o orixá Exú, Exú Bará ou Elegbará que os afro-bahianos tendem
a confundir com o diabo, por influência do ensino católico.
No terreiro do Gantois, o primeiro dia de festa é consagrado à
Exu. Ogum é representado por fetiches em cuja concepção
entra o ferro. Xangô, uma das figuras mitológicas mais
proeminentes, é chamado Dzakoutá, o emissor de pedras de
raio, o deus do trovão. Narra estórias de Xangô na África.
Para ele, Xangô é a pedra de raio em que o orixá está encantado,
o que prova a litolatria baiana.
Refere-se à existência de uns 15 a 20 terreiros de candomblé
em Salvador e outros tantos nos arrabaldes da cidade, que
conhecia e que diz terem preservado, naquela cidade, os
costumes africanos com maior rigor. Comenta que os terreiros
do Engenho Velho, do Garcia e do Gantois são os mais afamados
e que era impossível calcular o número exato de terreiros
existentes, sobretudo em Cachoeira, em Santo Amaro e em São
Francisco. Menciona rivalidades entre país e mães de terreiros
africanos e crioulos. Diz que o terreiro do Gantois pode servir
de modelo e dá uma idéia exata do que é um templo fetichista na
Bahia. Afirma que a procura para eles de lugares ermos e de
difícil acesso não é fortuito. Em alguns é impraticável o acesso
a cavalo com botas de montaria. O Gantois funciona num
barracão coberto de telha e paredes de taipa no centro de uma
clareira. A metade anterior da casa constitui uma grande sala de
dança em solo nu e batido. A parte posterior é dividida ao meio
por um corredor subdividido em pequenos aposentos. Nina
Rodrigues descreve o peji, onde diz ter estado diversas vezes.
Os pais e mães de terreiros têm auxiliares que dirigem a
orquestra, chamam os santos nas árvores e o mestre dos
56
Sergio Ferretti
sacrifícios. A transmissão hereditária das funções não parece
rigorosa, mas todos saem da confraria dos filhos-de-santo.
As vestes e contas usadas variam com os santos. A iniciação
é um processo longo e complicado. Conhecia crioulos e
africanos que ficaram velhos e não conseguiram recursos
necessários à iniciação.
Descreve as vestimentas e os momentos públicos do
processo de iniciação e os feitiços que eram colocados nas
ruas, como a troca simbólica de cabeças portadoras de
infelicidades e venturas.
Comenta características dos diferentes orixás e seus
assentamentos em pedras de procedências diversas. Diz que
as árvores também podem ser um fetiche ou representar os
orixás e mostra a importância da gameleira no culto de Iroco,
que ninguém se atreve a abater e em cujo tronco oferecem-se
sacrifícios diversos. Mas considera essa árvore mais como
um altar do que o próprio deus. Afirma que a pedra, o ferro e
os búzios tornam-se santos pela intervenção do sacerdote,
daí a importância das coisas feitas, ou gris-gris que coexistem
com uma mitologia complexa.
Diz que o culto yorubano na Bahia tem uma forma exterior
complexa, brilhante e ruidosa. Sem dúvidas, Nina Rodrigues
escrevia bem e fundamentava seus escritos em pesquisas de
campo minuciosas. É lamentável que hoje em dia seus trabalhos
não estejam disponíveis ao grande público. Esperamos que o
centenário de seu falecimento inicie um movimento pela
reedição de suas obras.
Como médico, interpreta o transe como sonambulismo
provocado com desdobramento de personalidade ou como
delírio hipnótico e faz experiências no consultório para induzir
uma iniciada ao transe, razoavelmente bem sucedida,
demonstrando seu interesse e acuidade nas observações.
Narra caso de tratamento hipnótico no lugar da curas de
feitiçaria. Tenta realizar outras experiências para dar
continuidade a seus estudos, mas os iniciados se recusam a
aceitar. Refere-se ao transe de fenômenos espíritas que não
pode estudar. Constata a natureza histérica dessas
manifestações e surpreende-se com a hipótese de não histeria
na raça negra, com o que absolutamente não concorda. Para
dar crédito a suas informações, cita numerosos autores,
sobretudo franceses da última década do século XIX e alguns
autores brasileiros.
Descreve sacrifícios aos orixás, desde as oferendas a Exu,
que assistiu em candomblés e comenta e descreve ritos
funerários a partir de escritos de Melo Moraes, no Rio de
Janeiro, sobre o enterro de negros pobres ou dos mais
importantes. Lembra que muitos ídolos africanos eram
enterrados junto com os mortos no cemitério dos Lázaros.
Apresenta, igualmente, um candomblé funerário e objetos do
despacho, que foram apanhados por um amigo e lhe foram
entregues e doados ao Museu de Medicina Legal da Bahia.
Mostra a influência de idéias cristãs nas crenças dos africanos
sobre a morte e os mortos. Discorre sobre festa no candomblé
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59
do Gantois, dirigido pela africana Júlia e por sua filha Pulchéria.
Refere-se a milhares de pessoas que assistem as festas nos
terreiros do Gantois e do Engenho Velho. Descreve as danças
ao ar livre e no salão do terreiro e afirma que no Gantois o
candomblé termina com uma missa mandada dizer na última
sexta-feira e com um almoço no último domingo. Menciona a
importância dos negros haussás ou malês na Bahia e à
inferioridade da mitologia dos bantus em relação à dos yorubás.
No último capítulo do Animismo Fetichista discute a
conversão ao catolicismo dos afro-baianos. Considera que o
catolicismo brasileiro recebeu influências do negro. Refere-se
às navegações comerciais existentes na época entre Salvador
e a África que facilitavam a importação de crenças e práticas e
informa que conheceu diversos negros e negras que fizeram
muitas viagens à África. Prevê que não é para tão cedo a
extinção dos cultos africanos na Bahia. Refere-se a rivalidades
entre pais-de-santo africanos e brasileiros. Comenta sobre a
tendência à fusão de crenças trazidas da África com crenças
católicas, especialmente no crioulo e no mulato, que compara
com a conversão dos politeístas ao monoteísmo no tempo
dos primeiros cristãos da Europa. Refere-se à identificação
entre santos católicos e orixás yorubanos. Assim, Xangô
equivale a Santa Bárbara, apesar das diferenças de sexo, pela
relação com o trovão e os raios. Oxossi equivale a São Jorge,
devido à presença do cavalo e da lança. Obatalá ou Orixalá é
identificado com o Senhor do Bonfim, objeto do culto mais
popular na Bahia. Sexta-feira é o dia consagrado à Obatalá e
ao Senhor do Bonfim. Afirma que a imprensa reclama de
providências da polícia pelos maus costumes presentes nas
festas da Igreja, como na lavagem da igreja do Bonfim -,
considerada como verdadeiro bacanal num templo cristão.
Menciona a equivalência da identificação virgem Maria com
certos orixás como Oxum ou Iemanjá. Indaga-se sobre a
equivalência entre Santo Antônio e Ogum. Sem renunciar a
seus deuses africanos, o negro tem profunda devoção pelos
santos católicos, uma vez que os santos constituem orixás
para eles. Informa que a mãe de terreiro, Livaldina, interrompia
o candomblé para assistir à missa do galo no Natal; que havia
negras profundamente católicas e ao mesmo tempo fetichistas
e que uma negra, mãe de leite de um aluno da escola jurídica,
procurava convencê-lo a não se meter a entender de santos
da Costa, pois haveria de arrepender-se de tal temeridade.
Informa que, na Bahia, em toda parte encontram-se cruzes ao
lado de figas, búzios etc., que torna compreensível a associação
dos ritos católico e yorubano, e que essas práticas não são
apenas dos negros, pois os brancos também estão aptos “a
tornarem-se negros”. Segundo ele, na Bahia, todas as classes,
mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem negras. O
número de indivíduos de todas as cores que vão consultar os
feiticeiros nas suas aflições é tal que se pode dizer que toda a
população, com exceção de pequena minoria, participa desses
cultos. Refere-se à romaria a Santo Antônio da Barra por
ocasião de uma epidemia de varíola e a pedidos de interferência
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59
do clero e da polícia contra tais práticas. Declara que não
apenas o culto católico recebe influências dos negros, mas
também as práticas espíritas e a cartomancia. Descreve a sua
participação num terreiro ao mesmo tempo, espírita e de
candomblé, onde encontrou todos os preparativos para se
celebrar missas, que ouviu dizer já terem sido ali celebradas.
Descreve o culto com elementos sincréticos espíritas e
africanos, com caboclos e orixás. Afirma que os negros são
mais fáceis de cair no santo do que os brancos. Conclui
afirmando que os negros baianos são católicos e que a
conversão tem êxito no Brasil, mas é uma ilusão, e não está
conforme a realidade dos fatos.
OS AFRICANOS NO BRASIL
O outro livro de Nina Rodrigues sobre o negro recebeu o
título Os africanos no Brasil e foi publicado somente em 1933,
(27 anos após seu falecimento). Os originais do primeiro
volume foram deixados pelo autor na editora antes de viajar
para a Europa. Seu discípulo e sucessor, Oscar Freire, faleceu
sem publicá-lo, o que ocorreu cerca de 30 anos depois por um
seguidor de Oscar Freire. Neste segundo livro, Nina Rodrigues
utiliza maiores referências bibliográficas sobre religiões e
povos da África, como os trabalhos do coronel J.B. Ellis sobre
os yorubás, os fons e os fantis.
Na introdução, trata de vários assuntos a cerca da
inferioridade científica da raça negra, mostrando, ao mesmo
tempo, a simpatia que o negro lhe inspira. Afirma que o
problema social da raça negra foi sempre mal compreendido
no país e que, por maiores que sejam as nossas simpatias para
com o negro, a raça negra no Brasil há que constituir um dos
fatores de nossa inferioridade como povo, uma de suas frases
famosas, responsável pelo seu descrédito atual por parte dos
movimentos negros. Continua todo o capítulo discutindo
tópicos sobre a pureza racial. Faz diversas comparações sobre
a presença negra nos Estados Unidos e na América Latina.
No capítulo 1, discute procedências africanas do negro no
Brasil. Invoca Silvio Romero, ao comentar a vergonha de até
agora não termos consagrado trabalhos ao estudo das línguas
e das religiões africanas trazidas ao Brasil e argumentou que o
negro deve ser considerado como objeto de ciência.
Explica que pelo ensino da medicina legal, impôs-se o dever
de conhecer de perto os negros brasileiros e afirma que
circulam, entre nós, idéias errôneas sobre a procedência de
nossos negros. Lamenta que os poucos atores que trataram
do assunto cometeram enganos que se difundiram,
considerando quase todos do grupo banto e mostrando a
primazia dos sudaneses na Bahia. Discute comentários do
Visconde de Porto Seguro e de E. Reclus sobre a procedência
dos negros; comenta a queima de documentos e estatísticas
aduaneiras sobre o tráfico e se refere a documentos relativos
à importação de negros nagôs e sudaneses trazidos como
contrabando. Apoiado em escritos do coronel Ellis, refere-se
Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás
57
aos grandes comerciantes de escravos brasileiros, Francisco
Felix de Sousa e Domingos Martins, que se tornaram árbitros
do tráfico de escravos no Reino do Daomé. Destaca a forte
ascendência de sudaneses na Bahia em comparação com os
bantos no Rio de Janeiro e Pernambuco, nações africanas
mais valorizadas pelo tráfico.
No capítulo II, comenta a situação dos negros maometanos
no Brasil e as revoltas e insurreições de escravos ocorridas
na Bahia por influência, sobretudo, dos haussás e dos nagôs,
mostrando as causas religiosas dos levantes. Descreve
práticas religiosas dos muçulmanos que conheceu e comenta
a tradução que conseguiu, em Paris, de coleção de gris-gris e
amuletos que possuía, contendo versos do Alcorão.
No capítulo III, refere-se às sublevações de negros no
Brasil anteriores ao século XIX e à Guerra de Palmares,
denominada de Tróia Negra. É importante destacar que Nina
Rodrigues foi dos primeiros autores a discutir as revoltas de
escravos ocorridas no Brasil, tanto de Salvador quanto em
outras províncias.
No capítulo IV, refere-se aos últimos africanos e nações
que se extinguem no Brasil e relata que assistiu, com emoção,
em 1897 uma turma de velhos nagôs e haussás atravessar a
cidade e embarcar para a África. Lembra que inúmeras partidas
precederam a essa. Em 1899, partiu para Lagos o patacho
Aliança, levando 60 velhos africanos dos quais 12 morreram
de difteria e os demais tiveram que passar uma quarentena até
desembarcarem. Acredita que não passava de 500 o número
de velhos africanos que ainda viviam na Bahia àquela época.
Cita os numerosos locais em que se reuniam antigos africanos
haussás, nagôs e jejes, oferecendo-se para pequenos serviços,
e comenta as diferentes denominações utilizadas pelos
escravos de procedências diversas. Refere-se aos negros
nagôs, aos jejes, minas, tapas, haussás e outros, mencionando
suas diferentes origens e a minoria de bantos que encontrou
na Bahia. Menciona usos e costumes dos africanos,
vestimentas, culinária etc.
No capítulo V, discute sobrevivências africanas, referindose às línguas e às artes. Transcreve e traduz vários cânticos
religiosos yorubás, comentando a importância da língua nagô
na Bahia. Apresenta um vocabulário de línguas africanas
faladas no Brasil, entre as quais o grunce, o jeje (mahi), o
haussá, o kamari e o tapa, traduzindo 122 palavras nessas
línguas. Discute, ainda, elementos de diversas outras línguas
africanas conhecidas na Bahia. Sobre artes, comenta a
importância da escultura entre os negros e analisa coleção de
objetos religiosos a que teve acesso. Explica ainda a
importância das danças e sua contribuição para o gosto
artístico de nosso povo, da música e de instrumentos
africanos.
No capítulo VI, trata de sobrevivências totêmicas, festas
populares e folclore. Narra alguns contos africanos coletados
por vários autores e por ele próprio, comentando a influência
exercida pelos negros na psicologia popular de nosso povo.
58
Sergio Ferretti
No capítulo VII, aborda as sobrevivências religiosas
africanas na Bahia. Avalia que as práticas religiosas foram as
principais instituições africanas conservadas entre nós,
sobretudo a religião dos nagôs, tendo em vista o seu
predomínio numérico, a melhor organização do seu
sacerdócio e a maior difusão da língua. Considera a mitologia
jeje-yorubana como síntese do animismo superior do negro,
que predomina meio século após a extinção do tráfico, e que
as divindades de outros povos, ao lado dos santos católicos,
recebem culto externo mais ou menos copiados das práticas
nagôs.
Lembra que seus primeiros estudos da religião tiveram
inspiração apenas na observação direta e pessoal do
fenômeno, uma vez que praticamente desconhecia estudos
similares a que teve acesso posteriormente. Analisa que os
nagôs possuem uma mitologia bem complexa com divinização
de elementos naturais. Passa a tratar das diferentes
divindades, a partir de Olorum, o deus do céu, discutindo o
possível monoteísmo africano, com o qual não concorda,
uma vez que o deus supremo existe em todos os politeísmos
e está muito distante para preocupar-se com a vida cotidiana.
Considera, porém, que há uma tendência ao monoteísmo
nessas práticas. Descreve características e atribuições dos
orixás, destacando a importância de Xangô, Oxum e Iemanjá.
Ressalta a importância de Ifá, de Elegbá ou Exu, Xapanã e
Ibeji. Comenta a fusão entre a mitologia ewe e yorubana,
destacando a presença de Quevioçô ou Xangô e de Loco, a
gameleira. Afirma que o culto da serpente dos daomeanos
não se consolidou aqui devido à sua inexistência entre os
nagôs.
Passa a comentar a organização do sacerdócio e da liturgia
africana na Bahia a partir de características africanas do culto.
Mostra que, no Brasil, os terreiros são autônomos e não se
subordinam a uma hierarquia entre os grupos. Descreve as
características da organização dos terreiros desde a feitura
no santo. Constata que o processo descrito por Ellis para os
minas, jeje e nagôs é o mesmo que ele próprio descreveu no
Animismo Fetichista. Reafirma que considera o transe um
estado de sonambulismo provocado dos mais curiosos e
afirma que o sacerdócio yorubano perdeu, no Brasil, toda
intervenção nos atos da vida civil.
Nina Rodrigues comenta medidas repressivas ao culto
jeje-nagô bem como sua grande vitalidade e resistência.
Mostra que, na África, esses cultos constituem verdadeira
religião, mas no Brasil são considerados práticas de feitiçaria
sem proteção nas leis, condenadas pela religião dominante
e pelo desprezo aparente das classes influentes. Passa a
analisar notícias divulgadas na imprensa em fins do século
XIX e inícios do XX, especialmente da Bahia, contra as
religiões afro e as práticas realizadas no candomblé do
Gantois, do Engenho Velho e outros, solicitando medidas
contra as mesmas. Considera que sobressai a extraordinária
resistência e vitalidade dessas crenças da raça negra e que
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59
esse culto está destinado a resistir por longo prazo. Adverte
que a Constituição do País da época defende a liberdade de
consciência e de culto e o Código Penal da República
qualifica os crimes de violência contra a liberdade de cultos.
Critica a abusiva violação de templos pela polícia.
Lembra que os candomblés, como os conventos e
seminários, são acusados de serem focos de devassidão e
que o exercício ilegal da medicina é um crime nas nossas leis.
Apresenta longa citação de Pastoral do Prelado D. João
Correia Nery sobre práticas da chamada cabula, em que o
Bispo comenta ritual religioso que se assemelha à umbanda,
“numa perigosa amálgama que serve para ofender a Deus”,
nas palavras do Prelado.
No capítulo VIII, apresenta comentários sobre o valor
social dos povos e raças negras que colonizaram o Brasil e,
no capítulo IX, comenta a sobrevivência psíquica na
criminalidade dos negros no Brasil, discutindo o que
considera características do atavismo e da sobrevivência
nos hábitos e aquisições morais relacionadas ao estado da
evolução jurídica.
CONCLUSÃO
Nina Rodrigues foi o pai fundador do campo de estudos
das religiões afro-brasileiras, o pioneiro nessa área, e sua
contribuição foi fundamental para estabelecer as diretrizes
desse campo de estudos. Da mesma forma, os estudos sobre
antropologia urbana tiveram nele um precursor, com análises
de temas relacionados com a violência e a medicina legal.
Partindo da medicina, campo de estudo científico dos mais
avançados na época, Nina Rodrigues foi um inovador e não
teve receio de incorrer em perspectivas hoje ultrapassadas.
Tinha grande dedicação aos estudos e, apesar de ter falecido
muito cedo, conseguiu abrir um amplo campo de estudos
sobre o negro e a religião dos orixás, campo que até hoje é
preenchido por numerosos seguidores que aprofundam temas
por ele levantados há mais de cem anos. A forma científica
com que ele aborda os problemas tratados mostra seu
interesse nesse campo e sua simpatia pelo negro, sempre
demonstrado, embora colocando-se numa postura teórica
racista, típica de sua época e da qual ele não conseguiu se
libertar. Mas seu interesse pelo tema despertou vocações
de estudos nesse campo e permitiu que muitas novas
perspectivas fossem abertas.
Nina Rodrigues não escreveu apenas sobre a religião dos
orixás nagôs. Escreveu também sobre os voduns jeje, sobre
os caboclos e outras entidades que encontrou nos cultos.
Como, porém, em sua época, os nagôs deveriam ser mais
numerosos entre os africanos da Bahia e como considerava
que os candomblés nagôs eram os mais influentes ele
escreveu, sobretudo, sobre as entidades nagôs e comentou
os mitos e a religião dos orixás e suas influências na vida
religiosa baiana.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S54-S59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ACADEMIA MARANHENSE DE LETRAS. Nina Rodrigues:
comemorações do cinqüentenário de sua morte. S. Luís, 49 p.,
1956.
2. FERRETTI, SF. Nina Rodrigues e as religiões afro-brasileiras. In:
Cadernos de Pesquisa. UFMA, 10: 19-28.1999.
3. LIMA, LA. Roteiro de Nina Rodrigues. Salvador, UFBA/4. C E A O ,
1993, Col. Ensaios e Pesquisa 2.
Nina Rodrigues e a Religião dos Orixás
59
4. MAUSS, Marcel. Nina Rodrigues, L´animisme fetichiste des nègres
de Bahia. In: L´Année Sociologique 1900-1901. Paris, Librairie
Felix Alcan, p. 224-5. 1902,
5. RODRIGUES, Nina. Animismo Fetichista dos negros Bahianos. p.
555, Coleção A/C/ Brasil, Teatro XVIII: Salvador, 139 p., 2005.
6. ___________. Os Africanos no Brasil. São Paulo, C E N., 253 p.
1977.
7. VIEIRA FILHO, Domingos, Breve História das Ruas e Praças de S.
Luís. São Luís, s. ed., 204 p., 1971.
60
Mariza Corrêa
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S60-S62
RESENHA BIBLIOGRÁFICA
Os Livros Esquecidos de Nina Rodrigues1
Mariza Corrêa2
Departamento de Antropologia da UNICAMP
Mais conhecido pelos livros Os Africanos no Brasil e As
raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, ambos
re-editados quatro ou cinco vezes, Raimundo Nina Rodrigues
publicou durante sua vida vários outros livros que só tiveram
edição local e nunca foram re-editados. Além de seus esforços
para constituir uma bibliografia brasileira básica sobre
Medicina Legal – nos numerosos artigos que publicou na
Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia, em
seu Manual de autópsia médico-legal e em A Medicina Legal
no Brasil - nos últimos anos de sua vida Nina Rodrigues
estava dedicado à defesa dos alienados baianos e publicou
um volume sobre a situação deles: A assistência médico-legal
aos alienados no Estado da Bahia.
Além disso, O alienado no direito civil brasileiro, O
animismo fetichista dos negros bahianos e Collectividades
anormaes, editados ou re-editados por Arthur Ramos nos
anos 1930, também não foram mais publicados, sendo
conhecidos quase que só dos especialistas. Some-se a essa
lista vários artigos publicados apenas em francês e outros
esquecidos nas gazetas médicas e temos o estranho caso de
um autor famoso com a maior parte de sua obra quase
desconhecida e inacessível. O marco do centenário de sua
morte pode ser uma boa ocasião para rememorarmos algumas
dessas obras esquecidas também há mais de cem anos.
Uma palavra, se você me permite, sobre a idéia de
progresso. Concebemos o tempo como uma linha
irreversível, cortada ou contínua, o que importa,
de aquisições e de invenções. Vamos de
generalizações a descobertas, de modo que
deixamos para trás, como a nuvem de tinta das lulas,
um rastro de erros enfim corrigidos. Ufa! Chegamos
finalmente à verdade. Jamais se poderá demonstrar
se essa idéia do tempo é falsa ou verdadeira. Mas
não posso me impedir de pensar que ela equivale a
esses esquemas antigos, dos quais rimos hoje, que
situavam a Terra no centro do mundo, ou nossa
galáxia no centro do universo, para que nosso
narcisismo fosse satisfeito. Assim como no espaço
nós nos situamos no centro, no umbigo das coisas
e do universo, assim, para o tempo, pelo progresso,
estamos sempre no cume, na ponta, na extrema
perfeição do desenvolvimento. Assim, temos
sempre razão, pelo simples, banal e ingênuo motivo
de vivermos o tempo presente. .. Esse esquema
nos permite ter, de maneira permanente (sim, de
maneira permanente, já que o presente é sempre a
última palavra do tempo e da verdade; de maneira
permanente, eis um belo paradoxo para uma teoria
da evolução histórica) não só razão, como a melhor
das razões possíveis. Ora, é preciso sempre, creio
eu, desconfiar de alguém ou de uma teoria que tem
sempre razão: não é plausível, não é provável.
Michel Serres3
Gostaria de começar com duas observações que julgo que
podem ser pertinentes à nossa discussão aqui hoje: a primeira,
que diz respeito à ambigüidade de Nina Rodrigues em relação
às questões raciais, e que sei que vai ser abordada por todos
os componentes desta mesa, parte de uma suposição, sugerida
por um dos familiares de Nina Rodrigues que entrevistei em
São Luiz, há muitos anos – a de que ele era descendente de
judeus fugidos da Península Ibérica na época da perseguição
aos judeus. Isso, se comprovado, daria um novo matiz às
acusações de racismo em seus textos. A segunda observação,
que se relaciona com a primeira, diz respeito às reiteradas
observações em seus textos tanto sobre as vantagens da
administração laica, sobre a religiosa, na administração de
asilos e hospitais, como à equiparação feita, em diversos textos,
particularmente no Animismo fetichista, entre as atitudes dos
pais e mães de santo e os líderes da igreja católica, em várias
situações, ambos os coletivos sendo vistos como igualmente
‘fetichistas’ pelo médico. Isto é, que alguns de seus
comentários céticos em certas passagens das análises das
religiões afro-brasileiras, deveriam ser postas no contexto de
suas observações, também céticas, sobre a religião em geral.
Dito isso, gostaria de falar sobre os livros esquecidos de
Nina Rodrigues, começando por uma citação de Michel Serres.
Serres, filósofo e historiador da ciência, falando da visão que,
na história da ciência, opõe o passado, como obsoleto e
superado, ao presente, como único detentor da razão, define
1
Trabalho apresentado na mesa-redonda O centenário da morte de Raymundo Nina Rodrigues: uma avaliação crítica, na 25a Reunião Brasileira de
Antropologia, em Goiânia, em junho de 2006. Os outros participantes do evento foram: Lilia Schwarcz (coordenadora), Peter Fry e Yvonne Maggie.
2
Endereço para correspondência: Rua Emília Paiva Meira, 77, apto.21, Cambuí - 13025-040, Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected].
3
Michel Serres, Luzes. Cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo:Unimarco Editora, 1999.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S60-S62
como sua tarefa a de “lutar contra o esquecimento”, já que
“ignorar o passado[nos] expõe com freqüência ao risco de
repeti-lo”. Contra essa anulação reiterada do passado, que
considera um preconceito, Serres propõe a ressurreição de
textos mortos, sugerindo que muitas partes de textos científicos
esquecidos, que podem dialogar com as descobertas das
ciências contemporâneas, foram enterradas junto com as partes
que são consideradas ‘superadas’ – e são assim
desconhecidas dos cientistas de hoje.
No caso de Raimundo Nina Rodrigues, foi provavelmente
a constatação de seu racismo, racismo que era o do seu tempo,
o que fez com que fossem reiteradamente re-editados os textos
nos quais esse racismo pode ser re-afirmado e esquecidos os
textos nos quais, talvez, possamos encontrar ecos para outras
questões contemporâneas. Ao fazer uma (breve) listagem das
obras de Nina Rodrigues, constato que quase todos os seus
textos, com uma exceção, estão fora de mercado há muito,
muito tempo, em alguns casos, há mais de um século: temos
aqui, então, um raro caso de um autor famoso com a obra
quase inacessível ao público, o que não só deixa a tarefa de
leitura crítica de sua obra nas mãos de poucos especialistas,
que o lêem em cópias xerox, como também contribui para a
divulgação de um perfil monolítico de um autor tão
multifacetado4.
Começo com um exemplo muito simples: foi justamente
utilizando artigos esquecidos de Nina Rodrigues, em jornais
diários e revistas médicas, que Ronaldo Ribeiro Jacobina e
Fernando Martins de Carvalho escreveram um belo artigo
sobre ele como epidemiologista, apontando a campanha feita
por ele nos jornais baianos, em 1904, quando uma epidemia de
beribéri matou quase a metade da população do Asilo São
João de Deus: como resultado dessa campanha, os loucos
restantes, entre os quais havia muitos negros, foram poupados
da mesma sorte5. Os autores apontam para o pioneirismo do
diagnóstico de Nina Rodrigues no campo da epidemiologia,
mostrando como ele se afastava dos diagnósticos comuns na
época e se aproximava dos diagnósticos contemporâneos.
Tal posicionamento, feito contra a corrente na época, foi
possível a partir de sua pesquisa de campo para analisar as
causas da doença. É um artigo cuja leitura recomendo e que
expressa à perfeição a observação de Michel Serres sobre os
livros esquecidos dos cientistas do passado.
Gostaria de sugerir que vários dos textos dos quais vou
tratar aqui podem ser analisados tanto da perspectiva de
Livros Esquecidos de Nina Rodrigues
61
questões atuais, seja das disciplinas específicas às quais
podem ser filiados, quanto de uma perspectiva da história das
ciências. Os artigos médicos publicados por ele são muito
numerosos (cerca de 60) para serem tratados aqui – só vou
citar os seus livros - mas convém lembrar que vários deles
abordam a questão sanitária, na mesma época em que essa
questão tornou-se central para a medicina brasileira, na virada
do século 19 para o 20, e que desde a publicação de seu
primeiro artigo, quando ainda vivia no Maranhão, a questão
da saúde pública é a tônica de seus artigos publicados em
jornais diários, cujo levantamento não foi feito de maneira
completa até hoje6. Toda uma faceta do trabalho de Nina
Rodrigues, que me esforcei por pelo menos apontar em outro
trabalho – como sanitarista, como especialista em saúde
pública- está assim à espera de pesquisadores.
Sigo aqui apenas a cronologia das suas publicações em
livro, ou de artigos que pela extensão e densidade poderiam
tornar-se livros, e inicio a lista pelo primeiro livro publicado
por Nina Rodrigues: As raças humanas e a responsabilidade
penal no Brasil, editado em 1894, em Salvador. O livro, que é
um conjunto de suas lições de Medicina Legal na Faculdade
de Medicina da Bahia, até a data de publicação, foi muito
discutido pelos juristas no âmbito do debate sobre o projeto
de um novo código penal então em andamento. Um dos autores
de um substitutivo ao projeto, o jurista João Vieira, levou em
conta suas considerações a respeito da precocidade do
brasileiro em matéria criminal. Certamente uma discussão deste
livro hoje nos ajudaria a não esquecer, e, portanto, a não repetila nos debates contemporâneos, uma tradição no pensamento
social brasileiro que vê os jovens de nosso país como
precocemente amadurecidos. O livro foi re-editado mais três
vezes, a última edição sendo de 1957, pela Livraria Progresso
editora, em Salvador (o que por si só merece registro, sendo
essa uma editora comunista), em 1957, isto é há quase
cinqüenta anos atrás. Creio que Peter Fry e Lilia Schwarcz vão
falar mais sobre esse livro.
Seu segundo livro, também editado em Salvador, em 1900,
saiu em francês: L’animisme fétichiste des négres de Bahia.
O livro foi composto a partir de vários artigos publicados, em
português, na Revista Brazileira, do Rio de Janeiro, desde
1896. A segunda edição, incorporando as alterações feitas na
versão francesa, com prefácio e notas de Arthur Ramos, é de
1935, pela Editora Civilização Brasileira do Rio de Janeiro. Há
uma
versão
na
internet,
no
endereço
4
Para uma análise crítica mais aprofundada de sua atuação e produção, ver Mariza Corrêa, As ilusões da liberdade. A Escola Nina Rodrigues e a
Antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001 (2a edição) originalmente uma tese de doutorado defendida
em 1982.
5
Ronaldo Ribeiro Jacobina e Fernando Martins de Carvalho, Nina Rodrigues, epidemiologista: estudo histórico de surtos de beribéri em um asilo para
doentes mentais na Bahia !897-1904. História, Ciências, Saúde – Manguinhos VIII (1), 2001.
6
Ver Luiz de Castro Santos, As origens da reforma sanitária e da modernização conservadora na Bahia durante a primeira república, Dados 41(3),
artigo no qual o autor aponta “uma vigorosa resistência da parte de um establishment médico conservador” como uma das razões de iniciativas de
Nina Rodrigues e de outros médicos não terem resultado na aplicação de medidas sanitárias que já estavam vigorando em outros estados, como São
Paulo e o Rio de Janeiro. A consequência desse descaso com a saúde pública foram várias epidemias: de varíola, peste bubônica, febre amarela, além
de doenças endêmicas que matavam muito, como a malária e a tuberculose, entre outras.
62
Mariza Corrêa
www.dtremel.hpg.ig.com.br/bibliovirtu/ninarodrigues.htm e
sei que a professora Yvonne Maggie está preparando uma
nova edição, cotejando as três edições anteriores. De todo
modo, a edição em papel disponível hoje para os pesquisadores
tem mais de setenta anos. Creio que Yvonne vai falar um pouco
desse livro e de sua importância para os estudos sobre as
religiões afro-brasileiras. Acho que ele é importante também
por mostrar as ambigüidades de um pesquisador que, ao
mesmo tempo que adere ao ‘racismo científico’ de sua época,
tem uma enorme empatia pelos sujeitos pesquisados, empatia
que, aliás, aparece também em Os africanos no Brasil. Breves
vinhetas ao longo desse livro, mostram o antropólogo inscrito
no médico que se queria um observador objetivo da cena
religiosa dos negros, mas que ficava quatro horas no frio da
madrugada, esperando que baixasse o santo em Olímpia, ou
que observava os lindos efeitos coloridos de uma pedra ritual
mergulhada numa mistura de cera. Nesse mesmo ano, 1900,
Nina Rodrigues publicou, no Jornal do Comércio, o primeiro
dos artigos, que saíram nesse e em outros jornais até 1905, e
que iriam compor o livro Os africanos no Brasil.
Em 1901, Nina Rodrigues publicou dois livros, um, o
Manual de autópsia médico-legal (Reis & Comp., Salvador),
provavelmente o primeiro manual desse tipo a ser publicado
em português, o outro, O alienado no direito civil brasileiro.
Apontamentos ao projeto de código civil (Prudêncio de
Carvalho, editor, Salvador), que inaugura sua preocupação
com a situação dos loucos no país, e que foi re-editado por
Afrânio Peixoto pela editora Guanabara, do Rio, sem data de
publicação, mas provavelmente de 1933. Outro livro há mais
de setenta anos fora de circulação. A miserável condição dos
alienados no país, tanto nas situações de institucionalização,
como nas de negação de seus direitos humanos é aqui retratada
com vigor e não creio que tenha mudado muito nesses setenta
anos. Já o Manual está inacessível há mais de cem anos.
Na Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia,
da qual Nina Rodrigues foi um dos editores e animadores, e
que começou a ser editada em 1902, Nina Rodrigues publicou
vários artigos de medicina-legal que, reunidos, dariam um livro.
Uma dessas compilações foi feita pelo próprio autor, que
publicou A medicina legal no Brasil, pela Typographia
Bahiana de Cincinnato Melchiades, em Salvador, em 1905,
com prefácio de Alcântara Machado. Nunca re-editado como
livro, o conjunto desses artigos está também há mais de cem
anos fora de circulação. Mas é com o artigo de 305 páginas,
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S60-S62
que saiu na Revista e depois como livro - A assistência
médico-legal aos alienados no estado da Bahia - pela
Typografia Bahiana de Salvador, um ano antes de sua morte,
que Nina Rodrigues encerra sua carreira. Outro livro fora do
alcance dos pesquisadores há mais de cem anos. O livro é
uma contundente apreciação sobre o modo como os alienados
são tratados no estado da Bahia e inclui a análise sobre o
escândalo da epidemia de beribéri que causou a morte de
quase metade dos asilados no ano anterior. É também uma
minuciosa análise de como a burocracia médica e a burocracia
política tem historicamente entravado a implantação da saúde
pública neste país.
O livro mais conhecido de Nina Rodrigues, Os africanos
no Brasil, foi publicado postumamente, pela primeira vez em
1933. Os artigos que o compõem foram publicados desde 1900.
Já está na oitava edição (Editora da UnB, 2004) e é o livro mais
citado de nosso autor – e o único de fato acessível ao público
leitor contemporâneo. Resta ainda mencionar um livro que Nina
Rodrigues não alcançou ver, mas que tinha planejado, e que foi
publicado por Arthur Ramos em 1939 – Collectividades
anormaes - conjunto de alguns artigos escritos desde a
juventude (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira S. A.) e duas
brochuras. A primeira, Liberdade profissional em medicina,
publicada em 1899, em São Paulo, reproduz uma aula inaugural
sobre este tema, inscrito na Constituição brasileira e interpretado
pelos positivistas como livre exercício da profissão de médico,
e a segunda, em francês, uma extensa monografia sobre uma
pequena cidade do interior da Bahia, que nunca saiu em
português – Métissage, dégénerescence et crime (Archives
d’Anthropologie Criminel), também de 1899.
Não creio que seja necessário esboçar aqui uma conclusão,
mas creio que é importante observar que tratei, de maneira
breve, de um escândalo epistemológico de grandes proporções
na história das ciências sociais no Brasil: um dos autores
obrigatoriamente citado quando se trata de analisar as
chamadas relações afro-brasileiras no país, é também o
estranho caso de um pensador famoso cuja obra é
praticamente desconhecida de grande parte dos
pesquisadores brasileiros, e quase inacessível a eles, não só
aos que se interessam por essas relações como também
àqueles que se interessam pela história do sanitarismo, da
saúde pública, dos códigos civil e penal, ou pela história da
loucura no nosso país. Um autor famoso com um único livro
nas nossas estantes.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
NOT
NOTAA HISTÓRICA
A FFaculdade
aculdade de Medicina da Bahia na Época de Nina Rodrigues
The Medical School of Bahia in Nina Rodrigues Era
Antonio Carlos Nogueira Britto
Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins
Durante alguns períodos da vida de Nina Rodrigues como lente de Medicina Legal da Faculdade
de Medicina da Bahia, são exibidas descrições sinópticas dos óbices apresentados ante o ensino
de Medicina Legal em 1891 e 1896 e do planejamento do ensino médicos nos anos de 1902, 1903
e 1905, além da exibição de estampas narrativas que representavam o rudimentar planeado
arquitetônico do edifício da Faculdade. Mostram-se aligeirados informes das tentativas de
melhoramentos da então acanhada edificação, de construção pesada e de interior mal dividido nos
anos de 1882, 1884, 1885, 1891, 1902 e 1903, além de considerações sobre as obras de um novo
e amplo prédido da Faculdade, edificado após violento incêndio, em 1905, e inaugurado em 31 de
janeiro de 1909. Aprouve ao destino, que Raymundo Nina Rodrigues não tivesse a fortuna de
assistir o término das construções da moderna Faculdade de Medicina da Bahia e do hodierno
gabinete de Medicina Legal, pois faleceu em Paris, em 17 de julho de 1906, em um quarto do
Nouvel Hotel, 49, rue La Fayette, antiga rue Charles X. Tão logo o vapor nacional Bahia,
transportando o preparatoriano Nina Rodrigues, procedente da província do Maranhão, fundeou
no porto da Bahia, em 9 de março de 1882, dirigiu-se aquele estudante, no dia seguinte, à
Faculdade de Medicina da Bahia, de posse dos documentos precisos, para matricular-se no curso
médico. Tais manuscritos inéditos do tirocínio escolar das disciplinas de instrução secundária
realizada na sobredita província, além de outros documentos, foram descobertos pelo autor, os
quais foram inclusos à petição dirigida por Nina, em 10 de março de 1882, ao diretor Conselheiro
Francisco Rodrigues da Silva, requerendo que fosse matriculado na primeira série do curso de
medicina, a qual foi referendada, não obstante a revista Gazeta Médica da Bahia, de agosto de
1906, informar que Nina estudou no Rio em 1882. Dado a lume este artigo, ainda não foram
encontradas pelo autor na Faculdade de Medicina da Bahia, da Universidade Federal da Bahia, as
fontes primárias e secundárias referentes ao tirocínio discente de Nina Rodrigues. Outrossim,
não obstante o interesse e empenho, em busca incessante, da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, em atenção ao pedido do autor, formulado ao diretor
daquela Escola, solicitação reiterada pelo diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, da
Universidade Federal da Bahia, ainda não foi localizada naquela instituição a documentação
relativa ao acadêmico Nina Rodrigues nos anos de 1882, 1883 e 1887, período em que lá estudou
e colou grau em Medicina pela Faculdade do Rio, em 1887. Além da constatação, na Faculdade de
Medicina da Bahia, de vácuos no acervo historiográfico respeitante ao aluno Nina, comprovou-se
a privação de bibliografias da lavra do cientista, onde deitou sabença. Não obstante as escassas
fontes sobre Nina Rodrigues, o autor abeberou-se de material de pesquisa da Faculdade de
Medicina da Bahia: livros de atas da Congregação e alguns volumes das Memórias Históricas da
Faculdade de Medicina da Bahia. Do acervo do autor, foram estudados três volumes da Revista dos
Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia e exemplares da Gazeta Médica da Bahia. O mesmo
acredita que obras científicas de Nina Rodrigues poderão ser perlustradas, em breve, quando
proficientes especialistas concluírem a restauração dos milhares de corrompidos volumes da
Biblioteca da Faculdade de Medicina da Bahia.
Palavras-chave: Faculdade de Medicina da Bahia, fatos mais notáveis, edifício da Faculdade,
época de Nina Rodrigues, período: 1882-1906.
63
64
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
This paper shows a general review to the years 1891 and 1896, in terms of noteworthy difficulties of
Legal Medicine teaching on the history of the Faculty of Medicine of Bahia at the stage of life of
Nina Rodrigues as a professor of this discipline. A planned work and activity concerning to the
medical teaching in the years 1902, 1903 and 1905 are displayed. A slight descriptive pictorial
recording unveils the old-fashioned architetonic drawings up plans concernig to the building of the
Faculty of Medicine and shows off the endeavor to change and improvement of the appearance of
its narrow and severe structure with its inside divided into uncomfortableness rooms during the
years 1882, 1884, 1885, 1891, 1902 and 1903. Description about the building of a brand-new and
huge edifice is displayed which set up after the wrack brought about a great fire in 1905. The new
building of the Faculty of Medicine celebrated formally the first use to medical students on January
31th, 1909. However, in view of the fact that Nina Rodrigues died in Paris on July 17th, 1906, on the
Nouvel Hotel bedroom, 49, rue La Fayette, former rue Charles Xth, destiny has refused to allow him
in attending the end of the works of the new edifying in the latest style of the Medical School of
Bahia building as well as the modern Forensic Laboratory with brought up to date scientific
equipment for teaching Legal Medicine. As soon as the brazilian steamship Bahia called at the
cidade da Bahia port, on March 9th, 1882, transporting from the province of Maranhão the young
boy Nina Rodrigues, as a pupil of a preparatory course, he moveded in the next day forward the
Medical School of Bahia holding his very precious documents in order to put himself onto the
official list as an applicant for a member of the medical course. The author of this paper found and
made known the set of inedited documents recording Nina’s group of preparatory course subjects
studied in province of Maranhão school. Those papers with worthy written information as well as
differents documentes were included to a formal application made by Nina in March 10th, 1882, to
the director of the Faculty of Medicine of Bahia, Francisco Rodrigues da Silva, Counsellor of the
Emperor of Brazil, for the purpose of attending the first year of the medical school. In spite of Nina
has been formally matriculated in 1882 at the Faculty of Medicine of Bahia, the periodical Gazeta
Médica da Bahia, issued in August, 1906, recorded that Nina studyied in Rio during that year. At
the time wherein this paper is been publised, the author couldn’t find out sources conncerning to the
student Nina Rodrigues events and activities of which took place at the medical school of Bahia.
The author made a request to the director of the Faculty of Medicine of the Federal University of
Rio de Janeiro, which was said over again by the director of the Faculty of Medicine of Bahia –
Federal University of Bahia - for searching of the above-mentioned documents concerning to the
years 1882, 1883 and 1887, when Nina received the medical degree in Rio. Unfortunately, they were
not found out yet, notwithstanding the engage of attention and interest of the Faculty of Medicine
of Rio in attending the author request for searching out. It was verified the lack of historical
assortment of documents in regard to the young Nina. Evidence was accumulated in proving the
absence of notice regarding Ninas’s books in which he poured his wisdom. Nevertheless, the author
made use of searching original medical works belonging to the Faculty of Medicine of Bahia as
books of proceedings and register of the meeting of professors as well as some volumes of the
Memórias Históricas da Faculdade de Medicina da Bahia. The author searched 3 volumes of his
own – Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina and volumes of the Gazeta Médica da Bahia.
In a short time Nina’s works will be analyzed as soon as the skilled restauration of Medical School
of Bahia thousands of damaged books is finished.
Key words: Faculty of Medicine of Bahia, noteworthy events, faculty building, Nina Rodrigues,
period: 1882-1906.
Recebido em 9/11/2006
Aceito em 30/11/2006
Endereço para correspondência: Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto, Rua Dr. João Pondé 162 (Apto 102), bairro Barra, CEP:
40.140.810, Salvador, Bahia, Brasil, Tel.:71 32640085. E-mail: [email protected]. Observou-se rigorosamente a
ortografia da época, transcrição paleográfica, em determinados textos, que estão digitados em itálico. (1882-1906).
Gazeta Médica da Bahia
2006;76(Suplemento 2):63-79. © 2006 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
Com o escopo de ser mais sintético e preciso e considerando
o longo período da era de Nina Rodrigues, que teve início
desde 1882, quando cursou o 1.º ano de medicina, até o ano em
que faleceu, 1906, e atentando para a escassez e falta de fontes
concernentes à sua vida acadêmica nas Faculdades de
Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, além dos óbices em
localizar a extensa bibliografia do cientista em estudo, o autor
decidiu tecer tão-somente considerações por ele julgadas mais
relevantes para levar a efeito o presente artigo em derredor
dos períodos exarados no resumo deste trabalho.
Quinta-feira, 9 de março de 1882 – O vapor nacional
Bahia(1,6), da Companhia Brasileira de Navegação a Vapor,
procedente da Paraíba, com escalas na Bahia, Santos, Desterro,
(atual Florianópolis) e Porto Alegre, singrava em mar
encarneirado e ferrou o porto da cidade da Bahia, procedente
do Norte. Desceram a estreita ponte passadiça do portaló, a
estibordo, 79 viajores, e percorreram caminho a pé, sem
tardança, em fila, até o amanuense do “Commissariado da
Policia do Porto”. Dentre eles, estava um moço, pouco robusto
e de olhos tristes, os quais, todavia, tornavam visíveis o
robusto talento e notáveis dotes intelectuais do mancebo.
Era o estudante preparatoriano Raymundo Nina Rodrigues,
vindo da província do Maranhão, onde houve berço a 4 de
dezembro de 1862(1,6). No dia seguinte, pela manhã, o dito
aluno quedava no centro do largo do Terreiro de Jesus,
próximo ao chafariz, cercado por grade, da Companhia do
Queimado, criado em 1852, para abastecer de água a cidade.
O rapazo mirava a antiga e imponente igreja do Colégio dos
extintos Jesuítas e o provecto edifício da Faculdade de
Medicina da Bahia, de fachada mal conservada e de aspecto
grave. Observou as armas do Império colocadas no
frontispício da porta principal da Escola de Medicina, na ala
do antigo “Noviciado” e “internato” do Colégio, situada ao
lado esquerdo da igreja. Sobraçando seus documentos
precisos para a matrícula no primeiro ano do curso médico, o
moço do Maranhão deu os primeiros passos no interior do
prédio da Faculdade de Medicina da Bahia.
O jovem Nina passou às mãos do amanuense da secretaria
da Faculdade petição escrita do próprio punho e datada de
10 de março de 1882, dirigida ao diretor, Conselheiro Francisco
Rodrigues da Silva, requerendo que fosse matriculado no
primeiro ano do curso de Medicina. Ao sobredito requerimento
juntou manuscrito original do instrumento dado em pública
forma em Vargem Grande, província do Maranhão, aos
quatorze de junho de 1876, onde estava consignado o
assentamento do batizado do “innocente” Raymundo, filho
legítimo de Francisco Solano Rodrigues e dona Luiza Rosa
Ferreira Nina. O infante foi batizado solenemente aos doze de
dezembro de 1863 na Fazenda Santa Severa e posto os santos
óleos pelo padre Raymundo José Lecont da Fonseca,
Presbítero Secular e vigário Colado na freguesia de São
Sebastião do Iguará. Foram padrinhos Antonio José Maya,
representado pelo tenente Raymundo Alves de Abreu e dona
65
Rosa Bernardina Ferreira Nina; manuscrito firmado pelo Dr.
Francisco Joaquim Ferreira Nina, Doutor em Medicina pela
“Faculdade da Bahia”, atestando que o “Sr. Raymundo Nina
Rodrigues foi vaccinado há tres annos mais ou menos –
Maranhão, 1 de Março de 1882”; 10 (dez) manuscritos de
certificado de aprovação em “Exames Geraes”, expedido pela
“Secretaria da Delegacia especial da Inspectoria Geral da
Instrucção Publica da Corte em Maranhão”, firmado pelo
secretário Antonio Aniceto de Azevedo, com datas de 13 e 14
de fevereiro de 1882. Nina Rodrigues foi aprovado
“plenamente” nos exames de Português e Álgebra e aprovado
“plenamente com distinção” nos exames de Francês,
Geografia. Aritmética, Inglês, Latim, Geometria, História e
Filosofia; recibo de pagamento à Recebedoria da Bahia da
quantia de cinqüenta e um mil e duzentos réis para satisfazer a
1.ª prestação de sua matrícula na 1.ª série do curso médico,
lançada em débito ao tesoureiro Maximiano dos Santos
Marques, à F 28 do Livro 45 da Receita rubricada, pelo dito
tesoureiro e pelo ajudante Catão Pereira de Mesquita, da
Faculdade de Medicina da Bahia, sob n.º 808, com data de 10
de março de 1882. O diretor, Conselheiro Francisco Rodrigues
da Silva, aprovou a petição lendo-se no frontispício do
requerimento: “Matriculado B.ª 15 de M.ço 1882 / Rodrigues”(2,6).
A partir daquele momento, começou a tremeluzir e brilhar
com desusado fulgor a magnificência do cabedal de
inteligência, destreza e habilidade de penetração de espírito
do moço do Maranhão que tornar-se-ia, mais tarde,
benemérito da ciência e da Pátria, pois era nobre e brioso, ao
abraçar a medicina que escolhera com decidida vocação, com
a qual abria caminho com essa grandeza moral que distingue
os homens superiores.
Volvida uma centúria desde que a Parca cortou o fio
precioso da vida de Nina Rodrigues, pesado reposteiro
cerrou-se em torno das fontes primárias concernentes à vida
discente e do tirocínio nas matérias do curso de medicina do
dito aluno, dificultando análise historiográfica das suas
atividades estudantis, além de pouco se descobrir a respeito
das obras da lavra do celebrado cientista, criando-se, destarte,
um indesejável hiato entre os historiadores e estudiosos e o
acervo da vastíssima bibliografia de Nina.
Foram assaz insuficientes as fontes historiográficas
primárias e secundárias encontradas pelo autor em derredor
das diversas fases da existência e falecimento do estudante e
cientista Raymundo Nina Rodrigues, inobstante a busca
exaurível e continuada nos arquivos da Faculdade de
Medicina da Bahia; no Arquivo Histórico da Casa da Santa
Misericórdia; no arquivo do cemitério do Campo Santo, de
propriedade da dita Santa Casa; no Arquivo Público do Estado
da Bahia; no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/
Departamento de História/Centro de Documentação/
Laboratório de Conservação e Restauração do Acervo da
Cúria Metropolitana de Salvador Reitor Eugênio de Andrade
Veiga, / Universidade Católica do Salvador – UCSal –
66
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
Convênio UCSal e Arquidiocese; Cúria do Bom Pastor/
UCSal e na Biblioteca Central do Estado da Bahia.
serem separados das casas vizinhas por um terreno baldio de
sete metros, que deveria ser transformado em jardim.
Foi proposto erigir um edifício com 20 metros de largura
por 28 de comprimento, perfazendo 560 metros quadrados de
base, de dois andares situados ao mesmo nível dos
pavimentos do antigo edifício, com ele apresentando a mesma
face da frente, todavia devendo ser inteiramente dada nova
feição edificada em estilo “grave e sério,” adequado a
edificação de tal espécie. Assinalava, ainda, o relatório que
as divisões desses dois andares seriam levadas a efeito
obedecendo o mesmo projeto, de maneira a formar na área no
espaço poligonal restrito pela caixa do prédio, inteiramente
rodeado de janelas, dois amplos salões eqüidistantes em toda
a extensão tendo por grandeza a largueza do edifício, isto é,
20 metros, e por largura 6 metros e 65 centímetros,
determinados aos laboratórios. A área intermediária destes
dois salões seria dividida em uma sala de ingresso e passagem
para o andar superior e uma outra com 10 metros e 50 de
largueza por 3 e 20 de grandeza ou 1386 metros quadrados,
onde far-se-iam os laboratórios, entre os quais ficaria
localizado o anfiteatro. De acordo com os projetos, seriam
beneficiados com ventilação e luz satisfatórias os dois
laboratórios dispostos no primeiro andar, que serviriam para
a Química Orgânica e Biológica e à Fisiologia Experimental
com o respectivo anfiteatro, e. no segundo andar, a Física
Médica e Matéria Médica, Terapêutica Experimental, da
mesma maneira com um anfiteatro intermediário. Destarte,
quatro laboratórios no primeiro pavimento poderiam acomodar
de 30 a 40 alunos cada um e dois anfiteatros permitiriam que
250 ouvintes pudessem freqüentá-los confortavelmente.
Respeitante à biblioteca, não poderia permanecer onde
estava instalada em razão do parco espaço. Considerando
que o então bibliotecário da biblioteca pública rogou ao
governo da província transferência daquele estabelecimento
para diferente prédio dotado de cômodos mais extensos, o
governo geral poderia ajudar a província nesta remoção e
valer-se do lugar adjacente ao prédio da faculdade, para nele
ser instalada a biblioteca da dita Escola, com pouco custeio e
ligeiras obras. A sala onde estava estabelecida a biblioteca
seria transformada em museu e laboratório de Botânica e
Zoologia, que deveria ser ampliada pela banda do museu que
era prolongamento da dita sala com a eliminação das suas
divisões. A antiga secretaria, que se prestava para sala de
aulas, seria destinada ao museu de Mineralogia.
O anfiteatro de Anatomia, o gabinete Abbott e o anfiteatro
de Clínica, instalados no pátio da Faculdade, encontravamse em precário estado sanitário e deveriam ser substituídos
por dois pavilhões de 10 metros de largura por 20 de
comprimento, separados por um baldio de 8 metros de largura
e em continuação com o horto botânico já existente. Ambos
os pavilhões, rodeados de janelas, teriam dois andares e
deveriam ser aumentados ao fundo, sobre a montanha, por
uma edificação em arcos, disposta em forma de jardim, com
1882, período em que Nina Rodrigues matriculou-se no 1.º
ano do curso(17)
A Faculdade de Medicina da Bahia iniciou o ano de 1882
sob a diretoria do Conselheiro Francisco Rodrigues da Silva,
empossado em 28 de dezembro de 1881, sucedendo ao
Conselheiro Antonio Januário de Faria.
Naquele tempo, quando o moço do Maranhão, dotado de
notável intelecto, talento e aptidão para compreender,
percorreu os corredores e pavilhões da Faculdade de
Medicina da Bahia, observou que o edifício carecia de
melhoramentos e, no seu modo de ver, parecia que se achava
imprestável para estabelecer novos laboratórios.
Reconheceu, discretamente, que os existentes tinham área
restrita e limitada, ventilação deficiente, com iluminação débil
e sem o preciso aparelhamento técnico necessários para o
ensino prático.
Não sabia aquele rapaz que alvissareiro e esperançoso
aviso de 18 de fevereiro de 1882, emitido pelo ministro do
Império à diretoria da Faculdade de Medicina da Bahia
encarregava ao presidente da província da Bahia, João dos
Reis de Souza Dantas, nomeado em 30 de março de 1879, que
medidas precisas fossem adotadas afim de que um engenheiro
indicado pela diretoria das obras públicas apresentasse
orçamento necessário para a instalação dos novos
laboratórios no edifício da Faculdade.
Para tal escopo, o Conselheiro diretor Francisco Rodrigues
da Silva nomeou comissão composta dos lentes Manoel
Victorino Pereira e Virgilio Climaco Damazio para exibirem, ao
lado do engenheiro provincial, o parecer concernente ao
projeto e orçamento dos trabalhos de engenharia para o
edifício e anexos onde deveriam funcionar os laboratórios,
gabinetes e museus.
A referida exposição, circunstanciada, do punho do Dr.
Virgilio Climaco Damazio, levada à presença de Sua
Majestade Imperial, em 18 de abril, era um exato relato das
carências da Faculdade, frutos das desigualdades
sustentadas pela Corte.
A suma do parecer da sobredita comissão salientava
que o novo edifício da Faculdade e seus anexos
compreenderiam o antigo prédio que valer-se-ia da área de
5 prédios localizados nas portas do Carmo e de uma parte
conquistada à montanha, tudo completando uma superfície
de 3,876 metros quadrados com 2.190 metros de construção
e 1.686 de terreno baldio para o horto botânico.
Adiantava a comissão que o maior dos cinco prédios
indicados para desapropriação era alugado ao governo por
1:500$, anuais destinado a aula e gabinetes, alertando para a
probabilidade de incêndio pelo fato das casas de residência
particulares e prédios que constituíam o pavimento térreo
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
bancos e grades de ferro, em substituição ao cúmulo de
esterquilínio.
O primeiro pavilhão à esquerda, separado do depósito
dos cadáveres por um baldio de 3 metros e 5 de largura, teria
um pavimento térreo ladrilhado de mármore para a sala de
dissecções, onde poderia caber dezesseis grandes mesas
também de mármore com dois metros de comprimento para um,
e dez de largura. O segundo pavimento seria dividido em duas
metades de 10 metros de comprimento por 8 e 70 de largura,
isto é, de 100 metros quadrados cada uma, na primeira das
quais ficaria instalado o museu de anatomia, enquanto que na
outra funcionaria o anfiteatro da mesma ciência. O segundo
pavilhão teria no pavimento térreo o laboratório de Histologia,
e no pavimento superior um anfiteatro para Histologia,
Anatomia Patológica e Clínica estabelecendo-se um passadiço
facílimo para a enfermaria de S. Francisco e na metade superior
desse local à instalação do museu anátomo-patológico.
O gabinete de Anatomia Patológica continuaria no lugar
onde se encontrava. A oficina de Farmácia permaneceria
como estava, mudando-se apenas a comunicação que não
seria efetuada através do laboratório de Química e sim pelo
corredor descoberto, que separava as duas partes do grande
edifício. Antes de penetrar-se nesse corredor descoberto,
deveria ser construído um vestíbulo comum às duas partes,
nova e velha de todo o edifício. O antigo saguão da
Faculdade passaria por sérias reformas, instalando-se
janelas onde existiam postigos elípticos, ladrilhando-se toda
a entrada e reformando-se as escadas atualmente existentes.
O governo deveria requisitar à Casa da Santa Misericórdia
permissão para instalar junto a cada clínica o gabinete e
sala de ambulatório correspondente e as despesas deveriam
correr por conta da Faculdade.
Com as expropriações, construção de edifício novo,
consertos do prédio antigo, restauração de toda a sua face
da frente, de vestíbulo, construção de dois pavilhões, no
pátio, paredão, etc., desobstrução de esgoto, esgoto,
abastecimento de gás, água, instalação de latrinas de
disposição mais moderna e adequada, etc., em observância
aos projetos, salvo alguma ligeira modificação que a execução
indicasse como melhor, o governo faria despesa de cerca de
duzentos e cinqüenta contos de réis(17).
O historiador da Faculdade, referente ao ano de 1884,
testemunhava: “O salão nobre, que estava ameaçando ruina,
a ponto do soalho dever ser escorado para ter logar o acto
da collação de grau em 1883, além do frontispicio, que está
adeantado, apenas está coberto, forrado, com andaimes,
vigamentos, algumas portas e janellas, mas sem o soalho.”(10).
Ano de 1885, época em que o aluno Nina Rodrigues cursou
o 4.º ano de medicina na Bahia(20)
A lei n.º 3141, de 30 de Outubro de 1882 aprovava o
regulamento de 12 de março de 1881, que exigia prova
67
prática nos exames das diversas séries do curso acadêmico
A lei criava 14 laboratórios, gabinetes e museus. Os
laboratórios existentes, conforme já foi consignado, eram
limitados em número, incompletos e assaz deficientes, sem
espaço e inadequadamente acomodados aos seus
objetivos; o antigo edifício em que estava instalada a
Faculdade de Medicina da Bahia não oferecia condições
plenas para os precisos laboratórios, que ocupavam, além
de parte do edifício do antigo Colégio dos Jesuítas, o
prédio adjacente alugado.
A Faculdade estava estabelecida em uma limitada parte
de um edifício ameaçando derruir em alguns locais, com
insuficiente espaço e sem a precisa adaptação para a sua
finalidade redobrando-se as dificuldades e a imprestável
condição do edifício acentuou-se de modo patente e claro.
Tal situação foi lembrada ao Governo Imperial pela diretoria,
quando se requeria o necessário atendimento e mantendo-se
entendimento nesse mister por várias oportunidades com o
ministério do Império.
Todavia, por intermédio do perverso e infeliz aviso de 16
de janeiro de 1883, o ministro informava à perplexa e desiludida
diretoria que estabelecia o aumento de crédito no valor de
60:000$000 para levar a cabo as obras do prédio em que estava
instalada a Faculdade.
Lamentava-se o vice-diretor, Dr. Pacífico Pereira, em 8 de
abril de 1884: “ O laboratorio de pharmacia ficará no mesmo
local acanhado e deficiente em que tem estado até agora.
Não haverá espaço para o museu de botanica e zoologia, e
ficam sem área para suas instalações os laboratorios de
hygiene, de toxicologia e de botanica e zoologia. A
bibliotheca da Faculdade continuará a permanecer na
mesma salla estreita e mal illuminada, onde já na cabem
novas estantes”(20).
Ano de 1891, período em que Nina Rodrigues, pela Reforma
Benjamin Constant, foi nomeado substituto da 5.ª Seção
(Higiene e Medicina Legal)(12)
Naquele ano, a diretoria da Escola admitia a insuficiência
do local da Faculdade de Medicina da Bahia que ocupava as
duas seções do velho monastério e Colégio dos padres da
Companhia de Jesus.
Desde 1855, imaginava-se comprar o anciano casarão
adjacente à seção da Faculdade perpendicular à parte da
frontaria do Colégio dos Jesuítas e que tinha por nome casa
do Banco.
Em 1873, atendendo pedido e autorização do vice-diretor
Conselheiro Vicente de Magalhães, a diretoria anexou o
referido prédio e pelo mesmo Conselheiro foi conferido
permissão para nele levar a efeito os precisos arranjos.
Alguns laboratórios foram ali instalados em 1874 e 1875 e
deram início a determinado número de lições. Não obstante
este anexo, a Faculdade deu continuidade à luta contra os
68
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
óbices resultantes da carência de espaço e de salas,
considerando que a chamada casa do Banco, mesmo sendo
assaz ampla e com dois pavimentos, era imperfeitamente
dividida, como era comum a todos os prédios de tempo remoto
desta cidade. Na esperança de se por em prática, em tempo
mais ou menos breve, os projetos delineados no decreto de
19 de abril de 1879, concernentes à criação de novos
laboratórios para os estudos práticos, todos os pensamentos
foram uníssonos na urgência de se corrigir tão inoportuno
estorvo mediante a edificação ou compra de um novo edifício
para a Faculdade, ou, então, o empreendimento de trabalhos
de recuperação e ampliação do prédio em que a Faculdade
estava instalada.
Destarte, em sua exposição do ano de 1882, reportava-se
a esta matéria ao ministro do Império o diretor Francisco
Rodrigues da Silva: “O edificio da Faculdade por suas
acanhadas dimensões não se presta, hoje, ao
desenvolvimento exigido pela creação projectada dos novos
gabinetes e laboratorios.”
Já foi exarado acima, em referência ao ano de 1882, que a
sobredita comissão agiu com celeridade no desempenho das
duas atribuições, formulando um plano muito bem elaborado
respeitante à benfeitoria do provecto edifício incluindo as
novas edificações complementares, que deveriam ser realizadas
no espaço dedicado ao anfiteatro de anatomia e ao gabinete
Abbott, assim como na área em que estavam a casa do Banco
(já convertida em dependência da Faculdade) e quatro outras
casas de residência sitas à rua das Portas do Carmo.
O cálculo dos dispêndios prováveis relativos ao projeto
dos trabalhos de construção foram calculados em 266.
846$763 réis.
Tratava-se de um projeto bem delineado na suposição de
se valer do anciano convento dos extintos Inacianos que
abrigava a Faculdade, que não era a decisão apropriada para
dotar a instituição de ensino de medicina de um edifício
compatível com as iminentes necessidades daquele tempo.
Nenhuma atenção foi adotada pelo governo em relação
ao projeto das obras e orçamento, a ele encaminhado no mês
de abril.
Ao findarem-se os trabalhos letivos do ano de 1882, o Dr.
Pacífico Pereira expôs à Congregação uma proposta que foi
aprovada, depois de devidamente discutida: “A congregação
d’esta Faculdade solicita do governo imperial que mande
com urgencia fazer as desapropriações e começar as
construcções necessarias para a installação dos novos
laboratorios, applicando a elles toda a verba destinada no
actual exercicio ao pessoal dos laboratorios e das novas
cadeiras.”
Como resultado desta reivindicação da diretoria, foram
gerados os avisos de 16 de janeiro e 16 de fevereiro de 1883
a ela determinando que fossem iniciadas as obras, para o que
foi estabelecido pelo ministro do Império, no exercício de
1882 a 1883, um crédito de 65:000$000.
Consoante o projeto elaborado pela comissão, aceito com
ligeiras alterações, deram começo às obras em 15 de junho de
1883.
Em 1889, Nina veio para a Bahia, e ingressou na corporação
docente da Faculdade de Medicina da Bahia na 5.ª Seção
Médica da Faculdade, ocupando o cargo de Adjunto da 2.ª
Cadeira de Clínica Médica.
Naquela época, já estavam concluídos os dois novos
pavilhões erigidos atrás do pátio da Faculdade, sendo
terminados os trabalhos de restauração do antigo edifício e
iniciados os da nova obra, em sua adjacência, os quais ainda
não estavam concluídos. Consoante o projeto, determinouse o tempo de 4 a 5 anos, que seria bastante para o término de
todas as obras planejadas.
Todavia, volveram nove anos e as azáfamas de construção
ainda não tinham sido levadas a cabo.
Os trabalhos sofreram renovadas paradas e estorvos em
conseqüência da tardança na liberação da dotação da quantia
precisa e pelo fato de parte da verba ter caído em exercício
findo e em razão dos métodos burocráticos confusos e tardos
das convenções governamentais existentes.
A demora na concessão das verbas prejudicou
sobremaneira o ensino da medicina, além de se criar molestos
obstáculos sob o ponto de vista econômico e administrativo.
Destarte, foram removidos da Faculdade, com o escopo
de se poder dar início às obras, quase todos os antigos
laboratórios e instalados temporariamente em edifícios
particulares, nos quais alguns lá continuavam.
Os gabinetes criados a partir de 1883 estavam funcionado
alguns na própria Faculdade, tão logo as salas respectivas
iam sendo concluídas e outros estavam sendo estabelecidos
em prédios privados.
A Faculdade pagava elevado aluguel por um dos
laboratórios sito à rua das Laranjeiras e equipamentos
caríssimos lá estavam a se danificar por se encontrarem
incorretamente guardados em salas pouco espaçosas.
Observava-se que na parte nova do edifício, as paredes
estavam sem reboco e cobertura e se corrompiam pela atuação
das chuvas.
Outros laboratórios funcionavam na Academia de Belas
Artes. Tal divisão da Faculdade, com seus gabinetes
espalhados nos mais diversos locais, provocaram estorvos
na administração e impossibilitavam a agilidade do seu
funcionamento, porquanto, em muitas salas com pouco
espaço, os alunos eram prejudicados nos exercícios dos
trabalhos práticos.
Além dos ditos óbices, as dotações foram interrompidas
desde março de 1890 e cessaram as obras.
O ministro da instrução pública, em aviso de 29 de
janeiro de 1890, determinou ao diretor da Faculdade que
desse conta da necessidade da aquisição dos prédios de
números 6 e 8, à rua das Portas do Carmo, pertencentes ao
convento da Soledade, e, no caso de ser essa compra
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
imprescindível, poder-se-ia o competente pagamento ser
realizado pela dotação consignada para as obras de
reconstrução da Faculdade. Informou a diretoria que os
mencionados prédios compunham o grupo dos cinco, cuja
expropriação entrara no plano das mencionadas obras e bem
assim que as verbas estabelecidas para as ditas eram também
determinadas em parte, para as desapropriações em tela.
Informava, ainda, que a verba superior a 15:000$000,
consignada nos gastos repartição fiscal, tinha caído em
exercício findo.
A diretoria, em agosto de 30 de março, recebeu do governo
a comunicação do reconhecimento de que era preciso a
compra dos prédios em referência, e aprovara a aquisição
dos mesmos pelo valor de 12:000$000, sendo pago o
dispêndio pela verba destinada para as obras de reconstrução,
e solicitava, naquela data, do Ministro do Interior a precisa
autorização para a alienação dos ditos prédios.
Foi concedida a respectiva licença em 30 de abril, sendo
uma cópia dela remetida ao Governador do Estado, general
Hermes Ernesto da Fonseca, 3.º governador da Bahia, que a
enviou à diretoria.
Todavia o governo, como se esperava, não adotou as
precisas medidas, conscientemente, para o prosseguimento
das obras.
Em ofício emitido em de 24 de julho e 28 de setembro, a
diretoria da Faculdade achou que era necessário que se
pedisse e solicitasse com urgência e protestasse nos teores
mais significativos, o que fez surgir o aviso de 23 de outubro,
facultando, para o prosseguimento das obras, a quantia de
25:000$000, da qual 12:000$000 deveriam ser empregados para
a desapropriação dos prédios.
A despeito de estarem as obras já suficientemente
aceleradas e haver abundância de materiais já comprados à
custa das dotações anteriores, o restante da última verba,
isto é a quantia de treze contos, não bastava para terminálas.
Para auxiliar a despesa que faltava realizar, já existia,
felizmente, a mesma soma posta à disposição da diretoria.
Esta verba era superior ao que era necessário para a
conclusão das obras.
Consoante dados fornecidos pelo engenheiro que as
administrava, as obras da Faculdade, além dos 12:000$000
necessitavam de cerca de 20:000$000 para a conclusão,
podendo ficarem terminadas no ano de 1890, se esta verba
fosse consignada a tempo.
Tinha se despendido até o mês de março de 1889, com as
obras, a quantia de 322:464$489
E acrescentava o historiador da Faculdade, relativo ao
ano de 1891: “Junctando-se-lhe a importancia concedida
por aviso de 23 de Outubro __________25:000$000 e mais
a
quantia
necessaria
para
a
conclusão
___________________________20:000$000 temos a
somma de 367.464$489.”
69
Esta quantia, segundo o sobredito memorialista, era mais
elevada do que a avaliada na dotação orçamentária de 1883 e
a ultrapassava em mais de 100 contos. Outras razões que
justificavam o acréscimo no dispêndio deveriam ser atribuídas
à restauração do salão nobre e do vestíbulo do prédio, que
não constava do plano da comissão e foi ulteriormente
solucionada.
O projeto da comissão sofreu alteração, pois, em vez da
desapropriação dos cinco prédios que se seguiam ao provecto
edifício, ordenou-se que somente dois seriam derribados além
dos dois que já tinham sido adquiridos e deitados abaixo.
Em 1889, foram terminadas as obras de benfeitoria do
edifício em que funcionava a Faculdade e a construção dos
dois pavilhões constantes no projeto da comissão elaborado
em 1882. Na parte principal e central do antigo prédio estavam
estabelecidos no andar superior, o salão nobre, considerado o
maior da Bahia, abundantemente iluminado e ventilado, o qual
apresentava, todavia, graves imperfeições na ornamentação e
nos projetos arquitetônicos oriundos do passado; a secretaria
e o gabinete da diretoria estabelecidos em amplas salas
bastante iluminadas e arejadas; o laboratório de Botânica e
Zoologia não era bastante arejado e tinha espaço acanhado; o
laboratório de Anatomia Cirúrgica e Comparada, instalado
numa dependência assaz estreita, e quente, escura e de péssima
ventilação. No mesmo andar superior estava instalada a
biblioteca, apropriadamente denominada pelo lente
memorialista do ano de 1891 de deposito dos livros.
A dita biblioteca achava-se instalada em uma sala longa e
apertada, qual um corredor, contígua à Catedral, a qual, não
obstante ter sido ampliada pela retirada do laboratório de
botânica, que invadia uma das extremidades, permanecia mal
arejada, acanhada, e inadequada para funcionar como
biblioteca, além de ter na sua adjacência a morgue e o ruído
deletério das maquinarias do elevador Plano Inclinado.
No andar que ficava ao rés do chão, existia o vestíbulo
amplo, que era uma sala bastante espaçosa, reservada para o
material e aulas das diversas clínicas. O laboratório de
Farmácia estava adequadamente instalado.
No pavilhão do sul permaneciam estabelecidos o
laboratório de Anatomia Descritiva e o de Operações e
Aparelhos, ambos tomando espaço de um dos dois
pavimentos.
O museu ocupava restrita parte do andar superior e
permanecia muito mal colocado e apertado pela situação de
adjacência dos dois ditos laboratórios.
Com referência ao pavilhão do norte, estavam
funcionando no andar térreo os laboratórios de Terapêutica
e o de Histologia, separados por uma parede pouco espessa,
que os tornavam independentes. No andar superior,
encontravam-se dispostos o laboratório de Higiene e um
anfiteatro.
O laboratório de Anatomia Patológica achava-se muito
inadequadamente localizado em pavilhão térreo de pouca
70
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
largura, e que por muito tempo se prestou para sala de
dissecções.
Os novos eram dotados de pavimentos térreos
ladrilhados, da mesma forma que o antigo prédio, diferindo
daqueles pelos ladrilhos de mármore.
Estavam provisoriamente estabelecidos em prédio da rua
das Laranjeiras, em péssimas condições, os laboratórios de
Física, de Química Inorgânica e Biológica e Fisiologia.
Na entre-sala do edifício da Academia de Belas Artes
também estavam a funcionar, temporariamente, os laboratórios
de Medicina Legal e Química Analítica e Toxicológica.
O de Odontologia ainda não estava aprontado.
Com a edificação dos novos pavilhões anexos na nova
seção da Faculdade ocupada, outrora por dois prédios, já
desapropriados, deveria haver ampliação da área em seis
compartimentos.
Três no andar térreo e três na andar superior, sendo as
suas extremidades dotadas de salas para laboratórios e as
salas centrais seriam destinadas para anfiteatros.
Não obstante as modificações e ampliações, o edifício da
Faculdade dificilmente possuiria as instalações ideais e do
ponto de vista da higiene e da estética.
Com a nova edificação anexa, adquiriria a Faculdade
apenas quatro salas para a instalação de quatro laboratórios.
Todavia, se eram em número de seis os gabinetes que
funcionavam em prédio da rua das Laranjeiras e na Academia
de Belas Artes, criou-se um impasse relativo à acomodação
de dois laboratórios. O de Odontologia estava sem solução
ideal de local onde deveria ser instalado.
Incerteza permanecia quanto ao destino a ser dado para o
funcionamento dos gabinetes de Anatomia Cirúrgica e
Comparada e o de Anatomia Patológica, a biblioteca e o
museu, que achavam-se pessimamente situados.
A comissão criada pelo governo em aviso de 3 de
novembro de 1889, elaborou um projeto de reforma para as
Faculdades de Medicina do Rio e da Bahia, consoante seu
parecer de 21 de janeiro de 1890, que indicava a criação urgente
de um laboratório de Bacteriologia. Persistia, porém, o
problema da falta do local para receber tal gabinete.
Por outro lado, existia a escassez de áreas precisas para a
criação de viveiros, jardins, pátios e logradouros.
A solução para esta grave situação residia no
aproveitamento das construções adjacentes ao edifício da
Faculdade, nos pavilhões que serviam ao Hospital da
Caridade, da Casa da Santa Misericórdia, o qual deveria ser
removido para o novo prédio, que a Santa Casa estava
edificando no largo de Nazaré.
A tal respeito, o lente historiador do ano de 1891
posicionou-se contrário a semelhante pretensão. E relatou:
“Do actual hospital da Caridade, d’aquelle inintelligivel
labyrintho situado por detraz da Faculdade e nos fundos
dos quintaes da rua das Portas do Carmo, d’aquella
disparatada aglomeração de baixos corredores, de trevosas
galerias inferiores ao nivel commum do solo, d’aquelle
tristonho conjuncto de grutas, de fogos alveolos e cubículos,
d’aquella sombria estancia de ar estagnado, d’aquelle
monumento de barbarie, d’aquillo só uma cousa unica póde
ser aproveitada: - é a area, - depois de inteiramente
desocupada pela demolição completa e pela remoção do
material e de estar por muito tempo exposto á acção
purificadora dos agentes naturaes”.
E descreveu o prédio da Faculdade de Medicina da Bahia:
“Um edificio collocado num sitio pouco espaçoso,
minimamente acanhado e sem a possibilidade de ser
augmentado, salvo á custa de despendiosas desapropriações
e de demolições previas; que não tem as dimensões
necessarias para aquartelar os dezeseis laboratorios que
devem funccionar em compartimentos distinctos, diversos
amphitheatros, uma enorme bibliotheca e um museu; um
edifício composto de duas secções, que se unem formando
um angulo reintrante e das quaes uma está alguns metros
fora do alinhamento do lado da praça em que demora e que
irregularisa e desfeia; um edifício, cuja architetura é
litteralmente monstruosa, pois que se deram uns ares de
modernidadede e de elegancia ao velho convento, cuja
construcção pesada e cuja forma obsoleta, foi necessario
conservar e seguir na secção nova; um edifício em cujo
vestibular acaçapado em relação a suas dimensões, se
penetra por uma porta aberta n’um recanto e em que não se
vê a escada concernente ao pavimento superior, a qual
procede da extremidade de um corredor parallelo ao plano
de entrada, - escada que sendo de lizo marmore e fórma
conchoide merece a qualificação de anti-hygienica;
finalmente, um edifício interiormente mal dividido,
desproporcionado e cujo soalho se acha em niveis
differentes”.
Era convicção do sobredito memorialista que seria
preferível adotar uma solução pela qual o edifício da Faculdade
não devesse sofrer modificações e aumentos no velho
Colégio que pertencera aos Inacianos, quando dever-se-ia
optar por uma edificação nova, projetada por arquiteto de
escol, nos moldes das faculdades de medicina congêneres
européias, a começar pelos planos dos alicerces e erigida em
terreno adequadamente escolhido e devidamente amplo. Teria
a faculdade a necessidade premente de ser ampliada, se não
se concretizasse a sua transferência para sítios alhures.
Opinava que haveria a vantagem das adjacências dos
mais variados institutos e, se a hipótese de ampliação do
antigo edifício fosse aceita, far-se-ia mister deitar abaixo o
hospital e desapropriar e derruir 6 ou 8 prédios às Portas do
Carmo, além de estender sobre a montanha ou escarpa a
arcaria sobre a qual seria construídos os dois novos
pavilhões.
Em não se escolhendo a alternativa da construção de um
novo edifício, dar-se-ia preferência a medidas outras, como a
compra de vasto prédio em outras bandas. Assim é que, em
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
1883, quando ainda estavam no início as obras da Faculdade,
foi proposto ao governo imperial pela Venerável Ordem
Terceira de S. Francisco, a venda do extenso e novo edifício
do seu asilo de “Sancta Izabel”, pela quantia de 170 contos
de réis.
O presidente da província da Bahia, Pedro Luiz Pereira de
Souza, empossado a 16 de dezembro de 1882, e que fora
encarregado pelo ministério do império de efetuar a compra
do dito prédio, foi em companhia do vice-diretor e de vários
lentes visitar o casarão do asilo.
Houve, entre os lentes, divergência de opiniões respeitantes
à compra, todavia a maioria foi favorável à aquisição.
Paradoxalmente, o vice-diretor Pacífico Pereira, ferrenho
defensor e autor da proposta de restauração e ampliação do
provecto edifício do Terreiro de Jesus, estava entre os lentes
favoráveis à compra do prédio do asilo de “Sancta Izabel”,
quando expôs ao governo, em relatório minudencioso, datado
de 11 de fevereiro de 1884, as vantagens da compra do prédio
dos Franciscanos e a transferência da Faculdade As
vantagens consignadas no dito relatório eram , em síntese:
“vastissimo predio, novo, solidamente construido e situado
no centro da cidade”; continha “area sufficiente para serem
n’elle installados todos os laboratorios e museus”; “a
proximidade a uma linha de tramway”;
E acrescentava a exposição: “O edifício tem em dois
pavimentos, 8 sallões, tendo cada um 24 metros de
comprimento sobre 8 de largura, 4 sallões com 15 m. 5 sobre
9 m, e mais 7 com 14 m sobre 9m de largo.”
“Além destes tem um pavimento terreo com um vestibulo
de 14 metros sobre 8m de largura, dos lados 2 salões com 24
metros sobre 7m,50, e um de 15 metros sobre 9m de largura.”
“Tem de frente o prédio 65 metros de extensão sobre 35 de
fundos; occupa, portanto, uma area de 2275 metros
quadrados, ...”
Em fevereiro de 1884, o vice-diretor, Dr. Pacífico Pereira,
viajou ao Rio com o escopo de relatar vocalmente ao governo
imperial, a aflitíssima e precária situação do ensino médico na
província da Bahia, onde ainda não estavam funcionando os
laboratórios instituídos pela lei de 30 de outubro de 1882, em
razão da insuficiência de dotação orçamentária que resultou
na paralisação das obras iniciadas em 1883. No ensejo, o vice
diretor mostrou-se favorável à compra do edifício do asilo
dos Franciscanos, quando apresentou o relatório concernente
ao prédio onde eram abrigados idosos necessitados e exibiu
ao governo o competente projeto.
Todavia, por razões não definidas, o governo imperial
não autorizou, naquela oportunidade, a aquisição do dito
edifício e, mais tarde, em 8 de julho daquele mesmo ano, foi
concedido o crédito de 50 contos de réis para a prossecução
das obras principiadas no velho prédio.
Os lentes que, desde 1882, exerceram a diretoria da
Faculdade de Medicina da Bahia, na qualidade de diretores e
em caráter interino, os professores Francisco Rodrigues da
71
Silva, Jeronymo Sodré Pereira, Ramiro Affonso Monteiro,
Antonio Pacifico Pereira e Jozé Olimpio de Azevedo
dedicaram-se com inexcedível zelo na azáfama de ampliar e
melhorar o edifício da Faculdade e instalar novos gabinetes e
laboratórios, rogando ao governo a dotação orçamentária
para tal mister(12).
Volvidos quase três qüinqüênios, a retratada Faculdade
teve uma relativa melhora, devido às lentas e penosas obras
de reparação e principalmente em virtude da transferência,
em 1893, dos serviços clínicos da Casa da Santa Misericórdia
para o novo Hospital Santa Izabel, edificado no largo de
Nazaré. Destarte, transformaram-se os cômodos e salões do
velho Colégio que fora dos Jesuítas, e que se prestavam a
enfermarias, os quais, após os precisos arranjos, foram
devidamente aproveitados pela instituição de ensino médico
para a instalação de gabinetes, laboratórios, biblioteca e
museu.
Mesmo de posse dos projetos e instruções das precisas
obras do edifício da Faculdade, as verbas insuficientes que
chegavam obedecendo a morosidade de irritante
procedimento burocrático, obrigou o Dr. Antonio Pacífico
Pereira a fornecer pecúnia do seu próprio bolso para evitar a
paralisação dos trabalhos, que ficaram concluídas as fases
evidenciadas, em 1889(5).
Nomeado diretor da Faculdade de Medicina da Bahia o
lente Alfredo Thomé de Britto, por decreto de 10 de agosto
de 1901, sendo empossado a 21 de do mesmo mês, já no ano
de 1902, em seu relatório registado em ata da sessão da
Congregação(3), patenteava os melhoramentos levados a
efeito em tão pouco tempo no edifício da escola mater das
ciências médicas da Bahia, causando consternação e
indignação pelo quadro gritante e estarrecedor dos cômodos
mais venerados e sagrados da Escola, descrito pelo dirigente
máximo, que eram a capela dos Jesuítas, de São Estanilau
Kostka, ao depois, do Hospital Real Militar e o solene e
magnificente salão nobre ou salão dos atos. Consignou-se
no dito relatório: “Foi desocupada e limpa a antiga e
historica capella dos Jesuítas, verdadeira joia
arquitetonica, transformada em deposito de objectos velhos
e inserviveis; pozeram-se portas de madeira nas janellas do
salão nobre, cujos ornatos se estragavam cada vez mais,
pela acção da luz e da humidade. Construiu-se um grande
tanque ou reservatorio central de 12 mil litros de
capacidade, armazenando permanentemente essa enorme
porção de agua do Queimado, mais que sufficiente para
todas as necessidades. Foi collocado um pararaios no
edifício no edifício. Está feito o orçamento de um plano
completo de reforma do salão nobre, cujo papel e tapete,
principalmente, já se achavam bastante estragados,
substituindo-os pelo revestimento do soalho, “á parquet”,
e a pintura a oleo das paredes, obedecendo á hygiene e á
esthetica. Egualmente com relação á pintura do exterior
do edifício ...”(3).
72
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
Com referência à exposição concernente ao ensino na
Faculdade de Medicina da Bahia no ano de 1902, em seu
relatório com data de 31 de janeiro de 1903(8), dizia o Dr.
Alfredo Britto: “A deficiencia com que estão montados os
laboratorios, a insignificancia relativa da verba
destinada ao seo custeio e aperfeiçoamento annual, a
carencia absoluta, por assim dizer, de tudo quanto é
imprescindivel para um ensino clinico regularmente
organisado, são os obices mais faceis de remediar de
prompto, por dependerem quasi que exclusivamente da
concessão de verbas necessarias e de sua conveniente
applicação por parte de uma administração bem
orientada. Em alguma cousa, entretanto, consegui sempre
fazer melhorar o ensino, no anno passado, nos limites da
verba ordinaria.
Com a installação electrica, os laboratorios preparamse para uma transformação completa no ensino, logo que
consigam fornecer-se do material necessario a utilisação
das energias d’aquella força; a bibliotheca se acha provida
de illuminação abundante e hygienica; os amphithatros e
salas de aulas com ventilação franca e amena; todos os
laboratorios e demais dependencias com agua em profusão,
automaticamente distribuida; o ensino oral ou as preleções,
de um serviço completo de projeções.”
“O bioterio, commum aos differentes laboratorios,
segundo o plano apresentado pelo Dr. Manoel de Araujo,
distincto lente de Physiologia, como presidente da
commissão que para esse fim nomeei, está prompto para
começar a funcionar no primeiro anno lectivo, tendo
compartimentos especiaes para coelhos, pombos, rãs,
cobaios e cães. A canalisação electrica se estendeo a mais
alguns laboratorios. O ensino de odontologia foi dotado
com o material electrico promettido. O numero de cadaveres
fornecido para o ensino pratico das cadeiras em que são
necessarios, elevou-se a 215, em vez de 187 no anno
anterior, sendo, em sua grande maioria, longamente
aproveitados por meio de injecções conservadoras. O
serviço de autopsias, a cargo do illustre lente de Anatomia
Pathologica, foi regularmente feito, no respectivo
laboratorio, prestando valiosissimo subsidio ao ensino
clinico.”
“Os laboratorios da Faculdade terão tambem o seu
material consideravelmente augmentado, ficando, além
disto, muito melhorado o de bacteriologia que, satisfazendo
ao pedido do respectivo lente, passará por completa
reforma, preparando-se um bioterio particular para os
animaes em experiencia e uma camara escura para
microphotographia, adaptando-se a sala annexa de
preleções para ser convenientemente transformada em
camara escura para projecções, e fazendo-se uma nova
canalisação de gaz directa e especial para que possam
funccionar satisfatoriamente os autoclaves, as estufas e os
fornos de incineração.”
“Quanto ao accordo entre a Faculdade e a Santa Casa
de Misericordia, justamente considerado como
indispensavel para o bom funccionamento do ensino clinico,
acha-se felizmente realizado e se executando
regularmente.”(8).
Em a noite de quinta-feira, 2 de março de 1905, que
antecedia o carnaval, irrompeu violento incêndio no edifício
da Faculdade, por volta das 8 e ½ horas da noite, nos baixos
do pavilhão da biblioteca, onde ficava o almoxarifado,
alastrando-se célere para o resto do edifício, consumindo os
gabinetes de Anatomia Patológica, de Bacteriologia e de
Química, além da biblioteca e a belíssima capela do padre
Antonio Vieira, consagrada a S. Estanislau Kostka e o
gabinete de Medicina Legal, que era dirigido pelo Dr. Nina
Rodrigues e estava equipado com modernos aparelhos de
psicologia experimental. Enérgicas medidas foram
prontamente adotadas pelo desolado diretor Alfredo Britto,
para a imediata reconstrução do edifício incinerado, atuando,
diligentemente, junto ao governo da União, que abriu um crédito
extraordinário de 600 contos, ato benemérito do presidente da
República Francisco de Paula Rodrigues Alves e José Joaquim
Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Obedecendo
arrojado projeto do arquiteto franco-argentino Victor Dubrugas
para a edificação de novo e moderno edifício da Faculdade,
começaram as obras em meado de 1905, com a reconstrução de
parte do prédio incendiado, com ampliações às custas de
desapropriações e demolições de edificações contíguas, cujos
trabalhos foram dirigidos pelo celebrado engenheiro civil
Theodoro Sampaio. As obras de reconstrução do prédio da
nova Faculdade de Medicina da Bahia terminaram em 31 de
janeiro de 1909, pelo engenheiro João Navarro de Andrade,
que deu continuidade a grande parte dos trabalhos iniciados
por Theodoro Sampaio(7).
Em Relatório de 1905 ao ministro do Interior, J. J. Seabra,
assim registou o Dr. Alfredo Britto as providências adotadas
para a restauração do edifício da Faculdade(9) “Reparados
com a maxima presteza os damnos causados pelo incendio
na parte nova do edifício, progridem as obras de sua
reconstrução, obedecendo ao plano estabelecido e
approvado pelo Governo, alargada a area primitivamente
occupada com a demolição dos 13 predios para esse fim
desapropriados por utilidade publica, pelo decreto n. 5544
de 5 de Junho.”
“Além de largamente accommodados os 6 laboratorios
destruidos, conforme os planos dos lentes respectivos, ficará
também optimamente situada a nova bibliotheca, em edifício
annexo, porém isolado e independente. No centro da praça
interior ajardinada, em torno da qual se desenvolvem as
edificações, occupando tres de suas faces, ligadas por
galeria coberta, haverá um grande amphitheatro para 500
alumnos, adaptado ás varias especies de demonstrações
praticas exigidas pelo methodo intuitivo, particularmente
por meio de projecções electricas de todo genero.”
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
“Junto ao laboratorio de Medicina Legal, mas com
entrada livre e separada, ficará a Morgue, dependencia de
maior importancia para o ensino e funccionando por meio
de eletricidade pelos mais aperfeiçoados processos. O
bioterio, a casa das machinas e a do guarda, assim como o
almoxarifado, occuparão terrenos situados por detraz dos
novos edifícios, na parte ocidental.”
“As novas construcções, de cimento armado, são
incombustiveis e, por conseguinte, garantidas contra novos
incendios.”
“O salão nobre, o museu, o pantheon, a sala das
congregrações, a dos lentes, as da Secretaria e Diretoria,
terão egualmente prompta a sua installação definitiva.”
“Quanto a dos novos laboratorios e institutos,
necessariamente em proporção com os edifícios em que vão
funccionar e com os progressos do actual momento
scientifico, depende unicamnente da concessão de verba
especial para esse fim, que venho solicitar no meu relatorio
ao Governo, e dos planos definitivos, sob este ponto
egualmente dos lentes respectivos.”
“Para auxiliar, nessa difficil e importante incumbencia,
os que disto se quizerem aproveitar, fiz organisar, na Europa,
e tenho á sua disposição, planos completos para os
differentes laboratorios e as dependencias dos novos
edifícios, de accordo com as respectivas plantas e dimensões.
É assim que o da futura Morgue, acceito com applauso pelo
Sr. Professor de Medicina Legal, consoante á nova
organisação do ensino de sua cadeira por elle proposto, e
approvado o anno passado por esta congregação, está
sendo já executado, em condições, me parece, de vir prestar
á Faculdade e á Bahia o mais assignalado serviço,
constituindo para ambas inestimavel serviço”.
“A nova casa de machinas para o serviço de
eletricidade, modelo no seu genero, já está prompta a
funccionar, fornecendo energia electrica para todos os
misteres aos amphitheatros e laboratorios que o
requisitarem, provendo á distribuição automatica de agua
e á illuminação em todo o edifício, e, bem assim, muito
brevemente, á producção do gelo e de agua distillada, em
abundancia, para as clinicas e laboratorios. Tambem está
prompto o novo almoxarifado, em pavilhão especial,
convenientemente isolado, e acabam de soffrer completa
caiação e pintura quase todos os commodos e
dependencias da Faculdade, principalmente os
amphitheatros, o necroterio e a sala de dissecções.”
“As reformas dos serviços clinicos no hospital de Santa
Isabel estão a concluir-se todas. O pavilhão de operações
assepticas; - a sala de operações septicas; - a de
electrotherapia e phototherapia; - a de hydrotherapia,
maçagem, sudação e banhos hydroelectricos; o novo
gabinete Röentgen, especialmente adaptado á
radiotherapia, funccionarão no corrente anno lectivo.”
“Assim tambem o Instituto Clinico, para onde será
73
transferido o material já existente das differentes clinicas,
organisando-se os futuros gabinetes nas salas que
escolherem os respectivos lentes ....”
A Maternidade, si for concedido esse mesmo credito,
ficará prompta egualmente, nem só na sua construcção
propriamente dita, como na installação interna, em seus
varios aspectos (mobiliamento, material, etc.).
“...resta unicamente a organisação do ensino da Clinica
Psychyatrica e de Molestias Nervosas.” ... “ Nesse intuito
grande somma de trabalho já está realisada”(9).
Consoante as palavras do lente memorialista de 1909(11),
“Dispomos hoje de um edifício grandioso, dividido em duas
partes, uma que chamamos antiga, cuja fachada de estilo
Renascença olha para a Praça Quinze de Novembro, antigo
“Terreiro de Jesus”, e outra parte, a nova, em estilo grego,
ocupando uma vasta area, dá para a rua das Portas do
Carmo”(11).
Ao lado das tristes exposições que exibiam os cômodos
do velho edifício da Faculdade de Medicina da Bahia em
condições mesquinhas, anti-higiênicas, acanhadas, mal
arejadas e de iluminação insuficiente e de estrutura mal
arquiteturada, que perduraram ao longo de toda a sua história,
desde o seu estádio embrionário até a época do quase
completo desmoronamento pelo incêndio de 1905, serão
mostrados, a seguir, aspectos breves do ensino na Faculdade
durante alguns períodos da vida de Nina Rodrigues como
professor de Medicina Legal.
Todos os historiadores da Faculdade de Medicina da
Bahia abordavam o tirocínio teórico e prático ministrado pela
Faculdade de Medicina da Bahia, rotulando-os como
deficientes. Os lentes, embora quase todos notáveis e donos
de eloqüente expressão de viva voz no ensino das lições,
eram, todavia, limitados sobremaneira pelos óbices impostos
pelo carente ensino prático em gabinetes e laboratórios assaz
desaparelhados.
Era o ensino mais especulativo e teórico, afastando os
estudantes da observação e exame direto dos enfermos. Nas
aulas, alguns lentes costumavam ler (do latim Legens – leitor)
– compêndios (em francês) e apostilas e estimulavam os
alunos a procederem da mesma maneira.
Nina Rodrigues entrou na liça ao ingressar no magistério,
em 1891, para dar a conhecer o péssimo ensino teórico e
prático da Faculdade.
Foi o sobredito professor nomeado substituto da 5.ª
Seção, por decreto de 21 de fevereiro de 1891 e empossado a
4 de março.por ocasião da reforma Benjamin Constant,
exercendo as funções de docente no impedimento do professor
catedrático Conselheiro Virgilio Climaco Damazio. Naquela
oportunidade, dirigiu ao memorialista do ano de 1891, Dr. Luiz
Anselmo da Fonseca, Lente Catedrático de Higiene e História
da Medicina(12), de acordo com o dispostos nos estatutos da
Faculdade, sobre o que de mais notável e interessante ocorrera
na disciplina em cujo ensino colaborava naquele ano letivo.
74
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
Apresentou circunstanciadas informações sobre as aulas e
teceu ligeiras ponderações sobre as cadeiras em cujo tirocínio
tomou parte direta: o ensino de Higiene e a sua cadeira
complementar de Bacteriologia, através de curso prático no
tocante à contagem das bactérias do ar e da água, porquanto,
na forma do artigo 127 dos estatutos, foi encarregado de fazer
o curso sobre bacteriologia do ar e da água.
Discorreu sobre a cadeira de Medicina Legal, quando
substituiu o catedrático da dita matéria durante quase todo o
ano letivo, cadeira que, na sua opinião, estava a carecer de
toda a atenção da Faculdade em razão das modificações da
última reforma dos estatutos, em conflito com os óbices do
seu ensino, agravados pela má vontade daqueles que
deveriam coadjuvar os professores e a instrução destes
estudos.
E acrescentou: “A creação das cadeiras de medicina
legal nas faculdades juridicas, a separação da chimica
toxicologica em cadeira especial nas faculdades medicas,
bem como a instituição de um ensino externo de medicina
legal são outras tantas disposições da ultima reforma geral
do ensino superior do paiz que, realisando aspirações dos
competentes, deviam imprimir um grande impulso no
aperfeiçoamento do ensino e da pratica da medicina legal
entre nós”.
Asseverou que a série de reformas foram incompletas e
as que pretendiam reformar a Medicina Judiciária e o ensino
da Medicina Legal as mutilaram. Em paises mais
desenvolvidos, afirmavam-se a divergência e independência
completa em que estavam as habilitações do médico legista
da competência puramente clinica. “Entre nós revela-se o
mais completo desprezo pelo valor scientifico de medico
perito, comettendo estas funcções a profissionais sem
instrução especial em uns casos, e manifesta incompetencia
em outros e em alguns até de insanavel incapacidade
mental.”
Os médicos competentes, de modo geral, se afastavam
dos incômodos gerados pela “ridicula” atuação do médicoperito. Denunciou, ademais, reportando-se a sucessos
“escandalosos” ocorridos no Rio de Janeiro, quando
encaminhavam para exame mental pacientes confiados a
médicos saídos da Faculdade, ainda no “noviciado” clínico.
Tais fatos deploráveis não eram devidos à carência de
médicos peritos com habilitações especiais e sim à falta de
escrúpulo na escolha do médico versado em perícias e pelo
menosprezo das suas funções especializadas.
Informava Nina que o Conselheiro Virgilio Damazio
costumava dividir as lições de Medicina Legal em intra e
extra-escolar, adiantando que os estatutos adotaram esta
discriminação ao separar a Medicina Legal da Química
Toxicológica, sendo o ensino intra-escolar por ele subdividido
assim: 1.º ensino clínico, ministrado nos hospitais,
maternidades e asilos de alienados. Todavia, segundo Nina,
não seria exeqüível esta proposição, porquanto deveria ser
considerada a “imprestabilidade” do asilo de alienados e de
não existir até hoje maternidade. 2.º estudo e ensino
necroscópicos. Não obstante a falta de cadáveres e
dificuldade no processo de conservação, era, para Nina, o
mais exeqüível dele. 3.º ensino estudo microscópico, químico,
e de toxicologia experimental. A respeito deste assunto, Nina
lamentou a maneira infeliz na divisão do antigo gabinete de
Medicina Legal entre esta cadeira e a de Química Toxicológica.
Naquela época, por insuficiência de local, o gabinete de
Medicina Legal não estava instalado ainda.
Esta deficiência criou transtorno, com a dita divisão, pela
transferência para o gabinete de Química Toxicológica de
todas as substâncias, produtos e reagentes químicos,
deixando para a cadeira de Medicina Legal exclusivamente
os aparelhos. Assim, só podiam ali realizar-se estudos
limitados de microscopia e química legal aplicados ao exame
de manchas, líquidos orgânicos etc.
Ensino externo de Medicina Legal
O art. 208 dos novos estatutos estabelecia o ensino externo
de Medicina Legal, dado na chefatura de policia por pequenas
turmas de estudantes concernentes aos exames biológicos e
às autopsias médico-legais da morgue para os exames
farmacológicos, serviço que tinha regulado o seu modo
prático pelo art. 209 que previa acordo entre o ministério da
instrução pública e o da justiça. Segundo Nina, este artigo se
aplicava exclusivamente para Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro.
Oficiou Nina ao diretor da Faculdade de Medicina da Bahia,
solicitando que lhe fosse autorizado entender-se em seu nome
com o chefe de policia para se ensaiar a aplicação do dito
dispositivo, dirigindo-se ao então chefe de polícia para se
reportar sobre o assunto. “Parecia á primeira vista que nada
seria mais facil de obter, pois não possue este Estado nem a
organização nem serviço medico judiciario regular.”
Os médicos a quem a polícia encaminhava este serviço
não possuíam auxiliares e instrumentos para verificação de
óbitos e prática de autópsias médico-legais. Levavam a efeito
apenas os mais rotineiros corpos de delito.
Normalmente, esse serviço era feito na acanhada sala
adjacente ao depósito de cadáveres do hospital de Caridade.
Em algumas ocasiões, realizavam-se autópsias no salão do
diretor do gabinete de anatomia da Faculdade.
A curiosidade fazia com que curiosos penetrassem de
maneira desimpedida naquele recinto, coadjuvados pelos
parentes, “adherentes” e conhecidos do defunto, que
atopetavam literalmente as portas, janelas e adjacências do
recinto, invadido de modo a dificultar a locomoção de médicos
e auxiliares.
A aversão pelas autopsias, agravada com a exibição
desrespeitosa e inconveniente, sob a vista de pessoas
supersticiosas, impedia um serviço com respeito pelos
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
mortos, obrigando tal estorvo a que a equipe adotasse os
precisos resguardos e respeito.
Tais pessoas exerciam pressão sobre os médicos legistas
através de pedidos, rogos e reclamação, havendo necessidade
da requisição de força policial para conter tais indivíduos.(13)
Na lição de abertura do curso de Medicina Legal, na
Faculdade de Medicina da Bahia, em abril de 1901, dizia, ao
ser empossado da direção da respectiva Cadeira (14,4): “Creada
em 1832, a cadeira de medicina legal da Bahia vai ter agora
o sexto cathedratico, quando no mesmo lapso de tempo a
do Rio de Janeiro tem tido tres apenas.” E acrescentava que
a história do ensino da cadeira de Medicina Legal era dividida
em tres fases: “a primeira, que vae da creação da cadeira,
em 1832, á reforma de 1854, com João Francisco de Almeida
e Malaquias Alvares dos Santos, prematuramente fallecido;
a segunda, que vai de 1856 á reformas de 1882, com
Salustiano Ferreira Souto e Francisco Rodrigues da Silva:
a terceira, em que nos achamos e que começa com Virgilio
Damazio em 1882”. Dizia ainda na referida lição de abertura:
“O ensino pratico de Medicina Legal que se dá hoje nesta
Faculdade é um fruto do esforço e da vontade pessoais do
professor, produto de uma atividade que não é a que dele
exige ou lhe impõe o regulamento, mas da que lhe ditam as
suas convicções e a idéia que faz das necessidades do ensino
a ele confiado. O que nunca se pôde conseguir oficialmente
entre a Faculdade e a Chefatura de Policia, obtive das
minhas relações pessoais com os distintos medicos do
serviço medico-legal desta ultima repartição. Não é a
primeira vez que dou publico testemunho dos reais serviços
prestados a este ensino pelo Dr. Octaviano Pimenta e mais
tarde pelo seu companheiro Dr. Aristides de Andrade.
Sempre os achamos prontos a atender aos nossos pedidos
de coadjuvação, avisando-nos dos casos mais importantes,
facilitando o exames com a presença dos alunos, demorando
para isso os exames e muitas vezes repetindo-os,
concedendo-nos a conservação das peças anatomicas que
a deficiencia da instalação da policia não lhes permite
ainda aproveitar ...
“Tenho mesmo o prazer de declarar que encontrei sempre
da repartição de policia da Bahia a melhor boa vontade e
todas as facilidades para os meus estudos. Desde 1895,
instituimos um serviço ainda muito irregular de clinica
forense nos hospitais, asilos, penitenciarias e chefaturas de
policia. Estes cursos, pelas razões expostas, não podem ser
muito seguidos.
“Costumo, por isso, estudar previamente os casos
aproveitaveis e uteis ao ensino e em algumas lições mostralos aos alunos. Assim temos conseguido fazer, com os alunos,
cursos metodicos de afrodisialogia forenese, de antropologia
criminal, de psiquiatria e de traumatologia forense.
“Para tirar todo o proveito das poucas autopsias
judiciarias que os alunos podem assistir, criamos desde
1895, nos anfiteatros de anatomia e em cadaveres do
75
Hospital de Caridade, um curso metodico de estudo das
alterações cadavericas e de instrução pratica dos alunos
nos processos gerais da autopsia medico-legal.
“No laboratorio propriamente dito, funciona um curso
de exame de manchas, marcas etc., dos elementos de
identidade pelo exame do esqueleto; de preparação de peças
anatomicas, de exames microscopicos, etc.
“Como atestado da realidade destes estudos praticos,
eu tenho a satisfação de inaugurar hoje o nucleo do primeiro
museu medico-legal do Brasil(4,14)”.
Enquanto era reconstruído o pavilhão para nele ser
instalado a Medicina Legal, durante as grandes obras de
reconstrução e ampliação do edifício, após o incêndio de 2
de março de 1905, Nina Rodrigues oficiou ao diretor Alfredo
Britto, no dia 20 de julho de 1905, formulando as bases para
um acordo entre o governo do estado e a Faculdade de
Medicina da Bahia, com o escopo de funcionar parte do
serviço médico-legal do estado no pavilhão em via de
reconstrução. Os docentes de Medicina Legal trabalhariam
em parceria com os médicos legistas da polícia, ficando
incumbidos de fornecer às autoridades relatórios ou pareceres
sobre os trabalhos de tal mister que fossem realizados.
E para que possuíssem valor legal aos seus atos no
assunto, o governo estadual conferiria aos ditos professores
a qualidade de peritos oficiais.
Faleceu, todavia, o professor Raymundo Nina Rodrigues
às 4 ½ horas, do dia 17 de julho de 1906, em Paris, em um
quarto do Nouvel Hotel, 49, rue La Fayette, antiga rue Charles
X, com apenas 43 anos de idade, não deixando o destino que
ele presenciasse a inauguração da sua grandiosa obra(6).
Os projetos para a construção e instalações do novo
Instituto Médico-Legal foram da lavra de Nina Rodrigues.
Um dia após o falecimento do pranteado professor,
Congregados os lentes da Faculdade de Medicina da Bahia,
em 18 de julho de 1906, o professor Francisco Bráulio Pereira
apresentou moção propondo, dentre outras, que fosse
denominado Instituto “Nina Rodrigues” o novo pavilhão
destinado à Medicina Legal, que foi aprovada
unanimemente(6).
A obra de Nina Rodrigues teve dignos sucessores: o
professor Oscar Freire de Carvalho, catedrático da disciplina
de 1915 a 1922, e como colaboradores Josino Correia Cotias e
José de Aguiar Costa Pinto.
Por decreto de 21 de dezembro de 1911, o Governador do
Estado, Dr. Araújo Pinho, reorganizou e regulamentou o
Serviço Médico Legal da Polícia, consoante o acordo feito
com a Faculdade, em 31 de Dezembro de 1907, sendo
governador o Dr. José Marcellino de Souza.
O Serviço Médico-Legal da Polícia no Instituto “Nina
Rodrigues” foi solenemente instalado em 30 de dezembro de 1911.
As transformações culturais, científicas e sociais
desencadeadas pelo gênio de Nina Rodrigues, analisadas
pelo Dr. Arthur Ramos, geraram a Escola Médico Legal da
76
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
Bahia, ou Escola de Nina Rodrigues, segundo a conceituação
de médico legista de nomeada(16). Dentre seus alunos, ao
depois professores: Afrânio Peixoto, de Higiene e Medicina
Legal, nas Faculdades de Medicina e de Direito, no Rio de
Janeiro; Diógenes de Almeida Sampaio, de Química Médica e
Assistente de Medicina Legal, no Rio; Costa Pinto e Oscar
Freire, catedrático de Medicina Legal, ao depois lecionando
em São Paulo, tendo fundado a cátedra; Lins e Silva, de
Medicina Legal, nas Faculdades de Medicina e de Direito do
Recife; e Ulysses Paranhos(15).
São dignos de menção os fieis e proficientes seguidores
da “Escola da Bahia”, em nosso estado: o Prof. Dr. Estácio de
Lima, a Prof.ª Dr.ª Maria Theresa de Medeiros Pacheco e o Dr.
Lamartine de Andrade Lima.
Em 30 de novembro de 1891, em substituição ao professor
catedrático, Conselheiro Virgilio Climaco Damazio, reportava
Nina Rodrigues ao Dr. Luiz Anselmo da Fonseca ter lecionado
a disciplina de Medicina Legal de junho até outubro de 1891,
ocupando-se das questões de imputabilidade, capacidade e
identidade, da tanatologia e afrodisiologia forenses(14).
O atraso em que se achava o curso de Medicina Legal era
devido ao costume abusivo dos alunos de tirarem férias
desnecessárias e prolongadas de semanas e até meses e
interrupção brusca em fins de outubro por haverem todos
requeridos exames livres nessa época. Faltavam os alunos,
por conseguinte, ao estudo da toxicologia.
Os estudos práticos de Medicina Legal foram realizados
consoante o programa apresentado por Nina à Congregação
no seu primeiro relatório mensal, não obstante as inúmeras
dificuldades apostas à sua execução. Uma delas era a
deficiência do laboratório de materiais para os importantes
estudos práticos sobre infanticídios; falta de um serviço
prático de Medicina Legal, funcionando como auxiliar de
justiça pública e de onde fosse possível retirar os elementos
deste ensino.
Não foi possível a Nina Rodrigues realizar um só dos
trabalhos do serviço externo de Medicina Legal.
Comunicou então à Congregação, que oficiou à diretoria,
para que fosse autorizado entender-se com as autoridades
policiais a respeito do serviço prático externo de Medicina Legal.
Foi muito bem recebido pelo chefe de policia que lhe fez
muitas promessas, nenhuma delas cumpridas, nenhum
cadáver foi fornecido para a prática de autópsias judiciárias
nem foi convidado par assistir aos corpos de delito realizados
na chefatura de policia. Foi sempre regular a freqüência dos
alunos, afora as épocas de férias prolongadas durante o ano.
A aplicação média foi também regular, recebendo muitos
estudantes bom aproveitamento(14).
O professor de Medicina Legal, Raymundo Nina
Rodrigues, de 35 anos de idade, relatava à egrégia
Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia do Terreiro
de Jesus, a 29 de março de 1897, a Memória Histórica da dita
Faculdade concernente ao ano de 1896(19).
Confessava o insigne memorialista a sua grande
preocupação de “estabelecer o estado atual do nosso ensino
medico-pratico.” Referiu-se ao histórico da Faculdade de
Medicina da Bahia como “mais ou menos brilhante”. É assaz
sagaz e sarcástico, porém sincero e verdadeiro, ao discorrer
sobre a imutável e genuína aspereza da verdade histórica ao
emitir juízo em derredor dos sucessos acadêmicos de 1896.
Considerava o ensino teórico “com todo seu aparato
espetaculoso de sucessos oratorios, e que na avidez dos
aplausos sacrifica, sem pejo, a utilidade do ensino, por mais
de meio seculo de esterilidade banal ...” e, mais adiante,
“Os impulsos indomaveis da retorica recalcitrante não
salvam o ensino, quando falta a verdade cientifica.”
Ponderava serem “escassos e de procedencia muito
suspeita os documentos de que dispõe o historiador para
julgar o curso pratico das diferentes disciplinas lecionadas
na Faculdade,” porquanto se restringiam aos relatórios
apresentados à Congregação no término do ano letivo.
Os professores registavam nos seus relatórios que se
consideravam satisfeitos quanto às condições de instalação
e aparelhos para as lições do curso pratico, excetuando-se
os professores substitutos da 1.ª seção, professor de Botânica
e Zoologia Médicas e do de Medicina Legal, colocando-se,
destarte, segundo confessou Nina Rodrigues, em primeiro
lugar entre os que consideravam incompletos os cursos
práticos de suas respectivas Cadeiras. Afirmava,
destemidamente, que, “Em materia de instalação, o
laboratorio de medicina legal é o menos afortunado da
Faculdade, é o enteado entre tantos irmãos.”
Com referência às condições precárias da instalação do
laboratório de Medicina Legal, responsabilizava o “atraso e
desorganização da Justiça Administrativa, da Justiça do
país e a responsabilidade desta Congregação que não tem
querido tomar na devida consideração as exigencias deste
ensino. A falta de uma organização medico-judiciaria no
pais, a carencia de um titulo ou diploma especial do medico
perito, que, aliás, contra todas as tendencias do ensino
moderno nos países civilizados, a Congregação já declarou
que não é necessario entre nós, estão no 1.º caso e são as
causas remotas. As dificuldades do ensino, em si mesmo estão
no 2.º caso e são as causas imediatas em que a Faculdade
podia ter ação.”
Denunciava que, em 1896, os alunos nunca tiveram
oportunidade de comparecer à chefatura de polícia e raras
vezes foram ao hospital, não passando de meia dúzia o número
de estudantes que estudaram ferimentos e ajudaram nas
autópsias judiciárias. A deficiência da Cadeira de Anatomia
descritiva foi revelada: “Os cadaveres foram em numero
insuficientes, alguns em estado de não poderem ser
aproveitados por estarem em putrefação, e chegaram quase
sempre depois da hora marcada (10 da manhã) para os
trabalhos praticos.”. “Em seguida dá o mesmo professor o
número de cadaveres de que dispos a Cadeira,
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
discriminadamente, pelos meses, sendo o total anual de 29;
7 o maior numero por mes, e 2 o menor.” “No entanto, no
relatorio do chefe dos trabalhos anatomicos, figuram 43
cadaveres para esta Cadeira.” E Nina interrogava: “Diante
de uma Faculdade de Medicina em que não existe estudo
pratico de Anatomia, o que valem os gabinetes e
laboratorios repletos de aparelhos, principal mira da
organização do ensino pratico entre nós?”. E lamentava a
inexistência de aparelhos frigoríficos na Faculdade e o não
procedimento nos anfiteatros da utilização rotineira das
injeções conservadoras para coadjuvarem no ensino prático
de Anatomia.
Respeitante ao ensino de clínica médica e de outras
disciplinas, o historiador da Faculdade em 1896 enfatizou a
apreciação do relatório do Conselheiro Ramiro Affonso
Monteiro: “Desde a simples noção sobre a anamnese que
não raro é inveridica e incompleta, até a autopsia, quando
se oferece pratica-la, toda a estada do doente no Hospital é
acompanhada de uma serie de falhas que dificultam a justa
apreciação da marcha e evolução da molestia; falhas que
não me dou ao trabalho de enumerar, porque são do
conhecimento de todos nós que frequentamos aquele
estabelecimento e que são devidas em parte á ignorancia
da maioria do doentes que o procuram e em parte tambem á
exiguidade dos meios de que é servido”.
O memorialista do sobredito ano letivo teceu rápidas
considerações sobre o relatório das cadeiras de Clínica
Propedêutica e da 2.ª cadeira de Clínica Médica, exaradas
para o ano de 1896: “A primeira tem laboratorio regular,
mas não tem frequencia; a segunda não tem laboratorio,
não tem frequencia, não tem doentes.”
O celebrado cientista pretendeu demonstrar nas suas
memórias que o ensino médico oficial no Brasil, não obstante
existir há quase uma centúria, ainda não tinha vida própria.
Concluiu apresentando as condições fundamentais para o
ensino moderno, que dependia, segundo ele, de locais
adequados, material suficiente e pessoal idôneo e capacitado,
que promovesse a investigação experimental, fixando o
trabalho do professor no seu laboratório de pesquisas, que
tivesse a capacidade de contagiar a teoria em seus discípulos
através da demonstração experimental de maneira que os
alunos pudessem, um dia, assumir o cargo de professor(19).
A polêmica e corajosa Memória Histórica da lavra do
imortal Nina Rodrigues, ante os melindres e
suscetibilidades dos seus pares da corporação de lentes,
sofreria a censura dos tíbios e intolerantes. Não lho
permitiram a sua publicação. Mas a verdade histórica não
sucumbiu aos néscios e incapazes e os enunciados da
notável Memória foram reverberados e ouvidos anos afora,
até os nossos dias. Todavia, a egrégia Congregação da
Faculdade de Medicina da Bahia, da Universidade Federal
da Bahia, em histórica sessão de 23 de abril de 1975,
acolhendo o douto e judicioso parecer de seu relator, o
77
Prof. Dr. Estácio de Lima, aprovou a publicação da
celebrada Memória Histórica na edição memorável de
relançamento da respeitável e veneranda Gazeta Médica
da Bahia, fundada a 10 de julho de 1866.
Não poupou esforços o Professor Nina Rodrigues,
coadjuvado pelo diretor Alfredo Britto, até os últimos
momentos de vida de levar a efeito o seu ideal de instalar um
modelar ensino teórico e prático de Medicina Legal, não
obstante ter, no alvor do seu sacerdócio de Hipócrates,
entrado na seara da Medicina preventiva, higiene e clínica
médica, avançando na antropologia geral e criminal,
preocupando-se sobremaneira com a científica análise
“sobre a diferença das respostas do meio ambiente às
agressões ao somático e ao psíquico,” sendo, por
conseguinte, precursor dos estudos dos problemas
nacionais relacionados à antropologia(16).
O epílogo deste trabalho, determinado pelos limites da
quantidade de páginas impressas na Gazeta Médica da
Bahia, infere que o moço Raymundo Nina Rodrigues, ao
matricular-se no 1.º ano do curso médico da Faculdade de
Medicina da Bahia, no largo do Terreiro de Jesus, a 10 de
Março de 1882, teve a história do seu tirocínio estudantil
envolto em misterioso e obscuro reposteiro, em virtude
dos óbices em localizar os documentos relativos ao seu
desempenho como estudante de Medicina nas Faculdades
de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro.
Exibe este artigo a precariedade da estrutura do edifício
da Faculdade de Medicina da Bahia, com seus pavilhões
acanhados, mal divididos, mal arejados, com iluminação
deficiente e anti-higiênicos durante os anos de 1882, 1884,
1885, 1891, 1902 e 1903.
São apresentadas informações do diretor da Faculdade
no ano de 1905 dando conta da rapidez com que foram
reparados os prejuízos provocados pelo incêndio de 2 de
março daquele ano, evoluindo os trabalhos de reconstrução
em observância ao projeto elaborado e consentido pelo
governo federal, com a ampliação do espaço deixado pela
demolição de 13 prédios e reportando-se às obras de
recuperação e alargamento dos laboratórios danificados,
ajardinamento, edificação de amplo anfiteatro, projeção
da Morgue, biotérios, novo almoxarifado e amplos
pavilhões de cimento armado, além da instalação definitiva
do salão nobre, museu, panteão, sala das congregações, a
dos lentes, as da secretaria e diretoria etc.
São oferecidas sinopses de textos da lição de abertura
do curso de Medicina Legal, em 1901,versando sobre os
progressos da Medicina Legal no Brasil no século XIX, e
de relatório como substituto da 5.ª Seção, em 15 de março
de 1892, relativo ao ano de 1891 e encaminhado ao Dr. Luiz
Anselmo da Fonseca, Lente Catedrático de Física Médica
e ex-adjunto de Higiene e História da Medicina; relatório
da Cadeira de Medicina Legal, datado de 30 de novembro
de 1892; sumário da Memória Histórica apresentada pelo
78
Antonio Carlos Nogueira Britto
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
professor Raymundo Nina Rodrigues á Congregação da
Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia, em 29 de
março de 1897, concernente ao ano letivo de 1896, quando
são mostradas sintéticas abordagens em ambos os
documentos respeitantes ao ensino prático da Faculdade,
mormente da disciplina de Medicina Legal nos anos de
1891 e 1896.
Desditosamente, torna a dar-se a epopéia dramática
das diferentes fases e particularidades de ações penosas
e árduas na azáfama da diretoria da Faculdade de antanho,
que era carregada de sentimento veemente pela
restauração, ampliação, modernização e conveniente
utilização dos velhos, acanhados, escuros, mal arejados e
anti-higiênicos pavilhões e gabinetes do edifício da Faculdade
de Medicina da Bahia. A História se repete. Em tempos
passados, a desídia de alguns e a luta desigual de muitos,
impregnada de amor filial e zelo acendrado da maioria dos
diretores, ombreados com ilustrados pares da Congregação
de lentes da anciana Faculdade de Medicina da Bahia em
prol dos melhoramentos do prédio do estabelecimento de
ensino médico; aqueles que entraram na liça depararam-se
com os obstáculos criados pela insuficiência de verba e pelo
molesto farisaísmo, má vontade e óbices burocráticos dos
governos do Império e da República. Hoje, a incúria dos
iconoclastas, que abandonaram o prédio venerável da
Faculdade, ameaçado de profligar e derruir os vigamentos e
abater a parte exterior da cobertura do edifício, a despeito da
pugna sobre-humana, da mesma maneira desproporcional,
de passadas Diretorias e da atual Diretoria, da egrégia
Congregação e da Universidade Federal da Bahia, ao lado de
médicos e associações da classe médica, pela restauração e
revitalização da provecta e em outro tempo, magnificente e,
agora, assaz desamparada Faculdade de Medicina da Bahia,
ao Terreiro de Jesus.
A celebração do bicentenário da instituição primaz do
ensino médico nacional, a 18 de fevereiro de 2008, não será
um aparato solene e infecundo e sim uma projeção de
resplandecente fulgor com a qual, pela história da
Medicina, tornaremos redivivos o pretérito; será um olhar
para o passado, dirigido para a origem de ensinos das
ciências médicas e para o fundamento das transmissões
de conhecimento e prática das gerações finadas, que
revitalizaram o legado que herdaram e aproveitaram as
lições edificantes.
Destarte, se toda a Bahia médica tiver a dita de
contemplar no expressivo bicentenário da criação do ensino
médico e da instrução superior nacional, no ano de 2008,
o venerando edifício da Faculdade de Medicina da Bahia
plenamente restaurado, observando fielmente seu
belíssimo e portentoso estilo arquitetônico de outrora,
fortalecerá, seguramente, crenças, animará adesões ao
conjunto de transformações hodiernas ocorridas no
ensino médico por meio dos cursos de pós-graduação,
pelo funcionamento do programa de Educação Médica
Continuada e cursos e atividades de pesquisa e extensão
e agremiará simpatias e incitará entusiasmos. Será a
ocasião oportuna em que todos terão consciência da
extraordinária herança legada pelos seus fundadores e
da heróica peleja pelo desenvolvimento da Faculdade de
Medicina da Bahia, narrada pela epopéia grandiosa e
heróica da sua História.
ARQUIVOS
Fontes historiográficas primárias manuscritas e originais
1. Arquivo Público do Estado da Bahia - Seção Republicano.
“Commissariado” de Policia do Porto – Livro de Entrada de
Passageiros n.º.03 – data: 09 de março de 1882.
2. Faculdade de Medicina da Bahia, no largo do Terreiro de Jesus.
Arquivo do Memorial da Medicina Brasileira.- Universidade
Federal da Bahia. Maço contendo os documentos manuscritos
originais e inéditos exigidos para a matrícula do preparatoriano
Raymundo Nina Rodrigues, em 10 de março de 1882, na 1.ª
série do curso médico na Faculdade de Medicina da Bahia.
3. Faculdade de Medicina da Bahia, ao Terreiro de Jesus, da
Universidade Federal da Bahia. Biblioteca e Arquivo do
Memorial da Medicina Brasileira. Livro de “actas” da
Congregação – 1898-1903 – p. 152-161v
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes historiográficas primárias e secundárias impressas
4. Aragão GMS. Memória histórica da Faculdade de Medicina da
Bahia. Concernente ao ano de 1924. Universidade Federal da
Bahia: Salvador, p.191-196, 1940.
5. Bomfim A. Faculdade de Medicina da Bahia. Diário Oficial do
Estado da Bahia. Edição Especial do Centenário. 1923.
Salvador, p. 470, 1923.
6. Britto ACN. O falecimento do professor doutor Raymundo Nina
Rodrigues, em Paris, a 17 de julho de 1906 e a narrativa da
chegada do cadáver ao porto desta capital, no dia 10 de agosto do
mesmo ano. A exposição minudenciosa das exéquias do célebre
cientista brasileiro. Documento capturado em 8 de maio de 2006
na “home page” http://www.medicina.ufba.br/história, 2006.
7. Britto ACN. A medicina baiana nas brumas do passado. 1.ª edição,
Contexto & Arte Editorial: Salvador, p. 311-322, 2002.
8. Britto A. O ensino na Faculdade de Medicina da Bahia. Revista
dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia para o ano de
1903. 1.ª edição, Typografia Bahiana: Bahia, p. 234-239, 1904.
9. Britto A. Desenvolvimento do ensino em 1905. Revista dos
Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia para o ano de 1905
– Typografia Bahiana: Bahia, p. 267-272, 1906.
10. Carvalho AA. Memória histórica da Faculdade de Medicina da
Bahia. Concernente ao ano de 1884. Universidade Federal da
Bahia: Salvador, p. 25, 1885. In: Oliveira ES. Memória histórica
da Faculdade de Medicina da Bahia. Concernente ao ano de
1942. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p.94, 1992.
11. Filho JEFC. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia.
Concernente aos anos de 1909 - 1910. Universidade Federal
da Bahia: Salvador, p. 54, 1913.
12. Fonseca LA. Memória histórica da Faculdade de Medicina da
Bahia. Concernente ao ano de 1891. Universidade Federal da
Bahia: Salvador, p.54-73, 1893.
13. Fonseca LA. Memória histórica da Faculdade de Medicina da
Bahia. Concernente ao ano de 1891. Universidade Federal da
Bahia: Salvador. Anexo. p.XXVIII-XXXV, 1893.
Gaz. méd. Bahia 2006;76:Suplemento 2:S63-S79
A Faculdade de Medicina da Bahia e Nina Rodrigues
14. Fonseca LA. Memória histórica da Faculdade de Medicina da
Bahia. Concernente ao ano de 1891. Universidade Federal da
Bahia: Salvador. Anexo. p.LXIV-LXV, 1893.
15. Lima LA. Roteiro de Nina Rodrigues. 2.ª edição. UFBA, Centro
de Estudos Afro-Orientais, Salvador: p.9, 1984.
16. Pacheco MTM. Raymundo Nina Rodrigues. Sinopse Informativa. Órgão
da Diretoria da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade
Federal da Bahia. Gráfica Universitária: Salvador, p.269, 1978.
17. Pereira AP. Memória histórica da Faculdade de Medicina da
Bahia. Concernente ao ano de 1882. Universidade Federal da
Bahia: Salvador, p..36-38, (o exemplar consultado não regista
o ano da publicação).
79
18. Rodrigues RN. Os progressos da Medicina Legal no Brasil no
século XIX. Lição de abertura do curso de Medicina Legal
na Faculdade da Bahia, pronunciada em abril de 1901. Revista
dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia para o ano de
1902. Imprensa Nacional: Rio de Janeiro, p. 11- 50.
19. Rodrigues RN Memória histórica da Faculdade de Medicina da
Bahia. Concernente ao ano de 1896. Universidade Federal
da Bahia. Gazeta Médica da Bahia. 1.ª edição. Salvador: p
17-25, 1976
20. Saraiva MJ. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia.
Concernente ao ano de 1885. Universidade Federal da Bahia:
Salvador, p. 34-38, 1986.
NORMAS PPARA
ARA PUBLICAÇÃO
1. Informações Gerais
A Gazeta Médica da Bahia (GMBahia), fundada em 10 de julho de 1866, teve circulação regular de 1866 a
1934 e de 1966 a 1972, e outro número avulso em 1976. A GMBahia é órgão oficial da Faculdade de Medicina
da Bahia da Universidade Federal da Bahia e tem periodicidade semestral, mas a partir de 2008 será trimestral.
Os trabalhos submetidos à Gazeta Médica da Bahia serão encaminhados aos membros do Conselho Editorial, que
decidirão sobre sua aceitação (com ou sem revisão) ou recusa, sem conhecimento de sua autoria (“blind review”).
A revista tem como linha editorial publicações científicas e trabalhos técnicos e de extensão vinculados,
estritamente, à área médica em temas de interesse da saúde coletiva, epidemiologia, clínica, terapêutica, diagnóstico
ou da reabilitação, ou de áreas correlatas.
Aceitam-se trabalhos escritos em português, espanhol ou inglês, com título, resumo e palavras-chaves no
idioma original e em inglês. Serão aceitos exclusivamente em língua portuguesa se for editorial, resenha bibliográfica,
noticiário ou carta ao Editor. As demais formas de publicação devem conter resumo e “abstract”: artigo original;
artigo de revisão (esse só será aceito de autor convidado pelo Conselho Editorial); artigo de opinião (“Ponto de
vista”); discussão de caso na área da Bioética ou Ética Médica; conferência; comunicação (“Nota prévia”);
relato de caso; informe técnico; resumo e “abstract” de Monografia; Dissertação ou Tese; relatório de atividade
de extensão; opinião de estudante de Medicina; nota sobre História da Medicina; e projetos e atividades na área
da Educação Médica. Outro tipo de abordagem deverá, previamente à apresentação, receber autorização do
Conselho Editorial da GMBahia.
A publicação submetida em língua estrangeira deve vir acompanhada de resumo em língua portuguesa.
2 Considerações Éticas e Bioéticas
Todos os trabalhos submetidos, envolvendo a participação de seres humanos, devem observar as
recomendações da Declaração de Helsinki de 1975 (revisada em 1983) e aquelas da Resolução nº 196, de 10
de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. No trabalho deve ser citado qual
o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) aprovou o projeto de pesquisa que originou a publicação, informando
também o número/ano do Parecer (e.g., ... aprovado pelo Parecer nº 24/2004 (ou assinale a data, se não houver
número), do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário ... [cidade, Estado] ...”.
A citação de medicamento deve fazer referência ao nome genérico. Quando for estritamente necessária a
citação do nome da marca, inserir nota de rodapé informando a razão e o nome genérico, outras medicações
similares e/ou de marca. Também, a Gazeta Médica da Bahia não aceita divulgação de produtos de indústria
farmacêutica e de produtos médico-hospitalares.
3. Formato Geral do Trabalho a Ser Submetido
3.1 todo o trabalho deve ser compatível com o processador de texto “WORD for WINDOWS”â, em qualquer
das versões do “software” e desde que assinale na etiqueta do CD (vide item 3.18);
3.2 ao digitar o texto, o comando de retorno da linha “enter” só deve ser utilizado no final de cada parágrafo;
em nenhuma hipótese será aceito trabalho que ao final de cada linha conste um “enter”, pois só é cabível ao final
do parágrafo;
3.3 também não utilizar “tab” para recuo da primeira linha ou centralização de título ou capítulo;
3.4 não utilizar espaço (“enter”) adicional entre os parágrafos;
3.5 margens esquerda e direita com 3,0cm, e a superior e inferior de 2,5cm;
3.6 as margens direita e esquerda devem ser alinhadas (justificadas);
3.7 todas as páginas devem ser numeradas, inclusive a primeira, com números arábicos e no canto superior
direito;
3.8 o espaçamento de todo o texto deve ser duplo (exceto no título e “corpo” das tabelas, gráficos, figuras,
etc.);
3.9 o tamanho da fonte (letra), de todo o texto, deve ser 12, inclusive o título do trabalho;
3.10 todos os trabalhos devem ter título em língua portuguesa e inglesa (exceto se for editorial, resenha
bibliográfica, noticiário ou carta ao Editor), sendo o primeiro na mesma língua empregada no texto. O primeiro
título deve ficar em negrito e com fonte no formato “times new roman” e, o segundo, sem negrito e com fontes
em “arial” e em itálico.
Exemplos (extraídos da RSBMT 34 (2), 2001):
Facial nerve palsy associated with leptospirosis
Paralisia facial associada à leptospirose
ou
Mudanças no controle da leishmaniose visceral no Brasil
Changes in the control program of visceral leishmaniasis in Brazil
3.11 todo o texto deve ser redigido no formato de fonte “times new roman”, exceto o segundo título (vide
acima) ou quando houver outra indicação técnica;
3.12 não citar abreviaturas (sem antes a expressão completa) ou referência bibliográfica no resumo ou no
“abstract”;
3.13 no texto (exceto do resumo ou no “abstract”) as referências devem ser citadas da seguinte forma:
ƒ
se o(s) autor(es) é (são) sujeito(s) do período ou da sentença. Exemplo:
... Carmo et al.(5) (no caso de três ou mais autores, sendo o (5) sobrescrito
correspondente ao número da referência bibliográfica) e Bittencourt & Moreira(3)
(no caso de dois autores, com o “&” comercial entre os mesmos, sendo o (3)
sobrescrito também correspondente ao número da referência bibliográfica) reviram,
recentemente, a literatura e assinalaram ...
ƒ
a(s) referência(s) bibliográfica(s) é(são) citada(s) conforme o número da referência bibliográfica.
Exemplo:
... Em revisões recentes(3 5), foi assinalado a dispersão de pessoas com história
da infecção, não obstante outros autores (2 4 11-16 25) avaliam isso como efeito da
migração de pessoas ... (no caso, todos trabalhos foram citados pelo número da
referência bibliográfica correspondente)
3.14 quando o formato do trabalho couber capítulo (e.g., artigo, conferência) não “quebrar a página” entre um
capítulo e o seguinte. O texto deve ser contínuo;
3.15 figuras, gráficos, quadros, tabelas, etc., cada um destes elementos deve ficar em arquivo (CD) à
parte e encaminhado, nas cópias impressas, na ordem de citação e após o capítulo referências
bibliográficas. A GMBahia não aceita para publicação elementos coloridos (figuras, gráficos, etc.),
mas, se houver indicação técnica, o autor deverá ressarcir as despesas adicionais com fotolitos e
impressão;
3.16 figuras, gráficos, quadros, tabelas, etc., só serão aceitos se digitados ou reproduzidos nos seguintes
formatos: BMP, TIFF, PICT, GIF, ou outro de fácil compatibilidade;
3.17 além das cópias impressas o autor responsável pela correspondência deve anexar CD, obrigatoriamente,
com etiqueta especificando o conteúdo e o sobrenome do primeiro autor em destaque;
3.18 na etiqueta do CD, os arquivos devem ser nomeados da seguinte forma:
9
arquivo com o texto: sobrenome do primeiro autor[texto]
9
anexo(s):
sobrenome do primeiro autor[tabela1]
sobrenome do primeiro autor[tabela2]
sobrenome do primeiro autor[quadro1]
3.19 antes de encaminhar as 4 (quatro) cópias impressas, exclua do CD todos os arquivos não relacionados ao
trabalho encaminhado;
3.20 em todo o conteúdo, se for em língua portuguesa, os números decimais devem ser separados por vírgula
(13,3%) e os milhares por ponto (1.000.504 pessoas), mas, se for em língua inglesa a mesma situação é
inversa, respectivamente: 13.3% ou 1,000,504.
4. Itens de Cada Tipo de Trabalho
4.1 primeira página: títulos (em língua portuguesa e inglesa, ou vice-versa); nomes dos autores (com número
sobrescrito
para a correspondência institucional na nota de rodapé), resumo (na linha seguinte: palavras-chave) e
“abstract” (na linha seguinte“key-words”). O número de palavras-chave (ou de “key-words”) deve ser no mínimo
de três (3) e no máximo seis (6). Ainda na primeira página, citar um “short title” com até 40 toques (incluindo os
espaços entre as palavras), em língua portuguesa ou, caso se aplique, espanhola e em inglesa. Primeiro o resumo,
se o texto for em língua portuguesa, ou abstract, se na língua inglesa. Os nomes dos autores devem ser registrados,
preferencialmente: prenome e último sobrenome, abreviando ou excluindo os nomes intermediários, exceto Filho,
Neto, Sobrinho, etc. (e.g., Demétrio C. V. Tourinho Filho ou Demétrio Tourinho Filho);
4.2 nota de rodapé da primeira página:
1ª linha: vinculação institucional principal do(s) autor(es), antecedida pelo número de registro,
citado sobrescrito após o nome de cada autor; cidade, abreviatura do Estado [e.g., 1.
Faculdade de Medicina da Bahia da UFBA, Salvador, BA; 2. Hospital Geral do Estado
(SESAB), Salvador, BA]. Não citar titulação, ocupação, cargo ou função;
linha seguinte: Fonte (ou fontes) de financiamento, se houver;
linha seguinte: Endereço para correspondência (em negrito e itálico): nome do autor
responsável pela correspondência, endereço, CEP cidade, País. Telefone e/ou FAX.
Exemplo: Dra. Magda Villanova, R. das Ciências 890 (Apto. 12), 40845-900 Salvador,
BA, Brasil. Tel.: 55 71 789-0906; FAX: 55 71 789-6564;
linha seguinte: endereço eletrônico (campo obrigatório, e com fontes de cor preta);
linha seguinte: registrar a expressão: “Recebido para publicação em” (a data será registrada
pela Secretaria da Revista);
4.3 o resumo e o “abstract” (correspondendo à tradução do primeiro), na primeira página, devem ter até 250
palavras, ou até 100 palavras se for comunicação, informe técnico ou outros formatos. O formato do resumo
deve ser o narrativo, destacando objetivo(s), material(is) e método(s), local e população de estudo, principais
resultados e conclusões (considerando os objetivos do trabalho). O resumo e “abstract” não devem conter
citações bibliográficas ou abreviaturas (exceto se citar previamente) o nome ou expressão por extenso;
4.4 os artigos e as comunicações devem ter, respectivamente, até 20 (vinte) e dez (10) páginas impressas,
incluindo as páginas correspondentes às figuras, tabelas, etc.;
4.5 os artigos têm os seguintes elementos:
4.5.1 primeira página, vide acima;
4.5.2 as páginas seguintes (no máximo três), correspondendo ao capítulo introdução (a
palavra “introdução” não deve ser registrada), devem conter a delimitação da pergunta a
ser estudada e as justificativas de forma objetiva;
4.5.3 capítulo subseqüente, MATERIAL E MÉTODOS, escritos de forma que o leitor
tenha a exata compreensão de toda a metodologia e população estudada. Quando se
aplicar (vide item 2), citar Comissão de Ética em Pesquisa (CEP) e número do Parecer
que aprovou o projeto de pesquisa de onde se originou o artigo. As técnicas e métodos, já
estabelecidos na literatura, devem ser descritos pela citação bibliográfica afim. Apenas se
for estritamente necessário, este capítulo pode conter figura ou mapa, gráfico, quadro,
tabela, etc. Caso se aplique, de forma objetiva, deve ser citado o plano da análise estatística;
4.5.4 capítulo subseqüente, RESULTADOS, escritos de forma clara e objetiva, sem
interpretação de nenhum deles. O número de Tabelas, Figuras, Quadros, etc., deve ser o
mais restrito possível e citados no texto pelo número arábico correspondente, da seguinte
forma: “... na Tabela 2 as principais as alterações eletrocardiográficas foram associadas
ao tipo de saída hospitalar do paciente ...” ou As principais alterações eletrocardiográficas
foram associadas ao tipo de saída hospitalar do paciente (Tabela 2) ...”;
4.5.5 capítulo subseqüente, DISCUSSÃO, baseada na interpretação dos resultados
observados (sem repeti-los em detalhes e sem a citação de tabelas, figuras, etc.),
comparando-os com a bibliografia pertinente. As especulações, sugestões ou hipóteses
devem ter como fundamentação os resultados observados;
4.5.6 capítulo, se couber, de AGRADECIMENTOS - citando, sumariamente, o nome
completo da pessoa (instituição) e qual a real contribuição ao trabalho;
4.5.7. capítulo final, das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (as mesmas normas
são aplicadas aos demais formatos de trabalhos). Não usar outros termos aparentemente
equivalentes (Bibliografia, Referências, etc.). Devem ser ordenadas em rigorosa ordem
alfabética, numeradas consecutivamente, e citando todos os co-autores – exceto se houver
25 ou mais co-autores, nesse caso cite os 24 primeiros seguidos da expressão latina et al.
No texto (exceto se sujeito da sentença), tabelas e em legendas de ilustrações, as referências
bibliográficas devem ser citadas por numerais arábicos e entre parênteses (1) ou (2 14 23). Só
a letra primeira letra do sobrenome de cada autor deve ficar em maiúscula e as demais
abreviaturas não devem ser seguidas por ponto ou ponto e vírgula entre os autores. Se
houver mais de um trabalho do(s) mesmo(s) autor(es), a ordem dever ser cronológica,
começando pelo mais antigo;
4.6 ainda sobre as Referências bibliográficas, use o estilo dos exemplos adiante descritos e que observam os formatos
usados pela “National Library of Medicine” (NLM) no Index Medicus. Os títulos das revistas ou periódicos devem
ser abreviados de acordo com a formatação oficial estabelecida no Index Medicus. Em caso de dúvida, consulte
a Lista de Revistas Indexadas no Index Medicus (“List of Journals Indexed in Index Medicus”), publicada
anualmente pela NLM em separado e também no número de janeiro de cada ano do Index Medicus, a qual pode
ser obtida no endereço eletrônico http://www.nlm.nih.gov (ou mais especificamente no: http://www.nlm.nih.gov/
tsd/serials/terms_cond.html; depois “clique” sobre o formato de impressão desejado [“available formats”]);
4.6.1 o estilo dos requisitos uniformes (o estilo de Vancouver) baseia-se, amplamente, no
estilo-padrão ANSI adaptado pela NLM para seus bancos de dados (e.g., MEDLINE).
Nas modalidades de referências, nota foi incluída quando o estilo Vancouver difere do
atualmente usado pela NLM;
4.6.2 modalidades de trabalhos a serem citados (alguns exemplos são fictícios):
Artigo
Almeida BS, Tavanni GHT, Silva YHU, Caldas HFT, Almeida Neto BS. Níveis de
aminotransferases em escolares de Mendonça (SE), soronegativos para os vírus das
hepatites B e C. Rev Soc Bras Med Trop 56: 34-39, 2001. Não citar número da revista
ou periódico, só o volume.
Tese, Dissertação, Monografia ou assemelhando
Britto Netto AF. Distribuição espacial dos casos de sarampo no Nordeste brasileiro, de
1960 a 2002 [tese de Livre-Docência]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2003.
Livro
Carmo HF, Fonseca Filho TG, Melo-Silva TT. Antropologia médica: estudos afrobrasileiros. 5ª edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 302p., 2001.
Capítulo de livro:
Vinhais C. Conduta e tratamento: hipertensão arterial. In: Sardinha GTR, Romero MC
(ed), Terapêutica clínica. 1ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 123-129, 2001.
Resumo de trabalho científico apresentado em Evento Científico
Araújo JS, Carneiro JN, Almeida BS, Tavanni GHT, Silva YHU, Caldas HFT, Almeida
Neto BS. Esquistossomose mansônica na cidade do Salvador, Bahia. In: Resumos do
XXII Simpósio Internacional de Medicina Tropical, 20 a 27 de setembro, Rio Branco, p.
87, 1999.
Patente
Larsen CE, Trip R, Johnson CR, inventors; Novoste Corporation, assignee. Methods for
procedures related to the electrophysiology of the heart. US patent 5,529,067. Jun 25, 1995.
Publicação extraído de período ou jornal popular
Marconi TQ. Novo caso de raiva humana em Salvador. Jornal Clarin, Salvador, junho 21;
Sect. A:3 (col. 5), 1999.
Publicação audiovisual [videocassete] [DVD], [CD-ROM] etc.
HIV+/AIDS: the facts and the future [videocassete]. St. Louis: Mosby-Year Book, 1995.
Mapa (não parte de alguma publicação específica)
Estado da Bahia. Distribuição dos casos de calazar [mapa demográfico]. Salvador:
Secretaria de Estado de Saúde, Departamento de Epidemiologia, 2001.
4.6.2.1 publicação sem número ou volume: ... Curr Opin Gen Surg 32533, 1993.
4.6.2.2 paginação em numerais romanos: ... Hematol Oncol Clin North Am
9: xi-xii, 1995.
4.6.2.3 se carta (letter) ou resumo (abstract) em publicação periódica: Clement J, Fischer PA. Metronome in Parkinson’s disease [letter]. Lancet 347:
1337, 1996. Ou seja, colocar entre colchetes letter ou abstract.
4.6.2.4 publicação de erratum: Hamlin JA, Kahn AM. Herniography in
symptomatic patients following inguinal hérnia repair [published erratum
appears in West J Med 162: 278, 1995]. West J Med 162: 28-31, 1995.
4.6.2.5 publicação contendo retratação: Garey CE, Schwarzman AL, Rise
ML, Seyfried TN. Ceruloplasmin gene ... [retraction of Garey CE,
Schwarzman AL, Rise ML, Seyfried TN. In: Nat Genet 6: 426-31, 1994].
Nat Genet 11: 104, 1995.
4.6.2.6 publicação retratada: Liou GI, …, Matragoon S. Precocious IRBP
gene ... [retracted in Invest Ophthalmol Vis Sci 35: 3127, 1994]. Invest
Ophthalmol Vis Sci 35: 1083-8, 1994.
4.7 não incluir entre as referências bibliográficas: trabalhos submetidos e ainda não-aprovados; dados nãopublicados ou comunicação pessoal. Essas informações devem citadas no texto, do seguinte modo: “... foi
observado em 44,5% dos casos a mesma lesão [Almeida Neto & Souza R em 20/11/2004: dados nãopublicados]” ou em caso de comunicação pessoal: “... o ajuste do aparelho X® (nome do fabricante, cidade)
para a temperatura ambiente de 25°C, foi realizado do seguinte modo ... [Silva-Araújo J (FAMEB/UFBA),
comunicação pessoal em 07/10/2003]”;
4.8 os quadros (fechados com linhas verticais nas laterais), figuras, gráficos e ou tabelas (sem linhas verticais)
devem ter título objetivo, numeração com algarismo arábico e título [e.g. Tabela 4. Indicadores demográficos
da população de Cavunge, Ipecaetá, Bahia (2001)]. A compreensão desses elementos deve independer da
leitura do texto. Em caso de figura, deve ser numerada no verso e o título encaminhado em folha à parte. Caso
a(s) figura(s) ou outro(s) elementos seja(m) colorido(s), o autor principal deve informar ao Editor da GMBahia
a fonte de custeio dessa despesa;
5. Submissão do Trabalho
Na carta ao Editor da GMBahia deve constar a assinatura de todos os autores do trabalho, mas, se isso não
for possível anexar à correspondência cópia de FAX ou de mensagem eletrônica autorizando o(a) autor(a)
responsável a apresentar o trabalho para publicação. Na correspondência devem constar as seguintes informações:
título do trabalho; seção da GMBahia ou tipo de trabalho (se artigo, conferência, comunicação, ou outro tipo de
apresentação); declaração que o trabalho está sendo submetido apenas à GMBahia; e a concordância de cessão
dos direitos autorais para a GMBahia.
Caso haja a utilização de figura, tabela, etc. publicada em outra fonte, deve-se anexar documento que ateste
a permissão para seu uso em publicação cientifica. Nesse caso, o documento probatório deve constar nome,
endereço, e-mail, telefone e fax do autor responsável ou do Editor da publicação original.
Antes de submeter o trabalho, uma a uma das exigências deve ser revista pelo autor responsável para evitar
a devolução ou a rejeição do trabalho pela Secretaria da GMBahia.
Caso o trabalho seja entregue pessoalmente por um dos autores na Secretaria da GMBahia, o autor responsável
deve trazer uma segunda via da carta de submissão para o devido registro de recebimento pela Secretaria. Não
será aceito nenhum trabalho entregue por terceiros ou em locais não autorizados. O trabalho deve ser encaminhado,
preferencialmente, através de correspondência registrada para o seguinte endereço:
Gazeta Médica da Bahia
Faculdade de Medicina da Bahia (UFBA)
Largo do Terreiro de Jesus, Centro Histórico de Salvador
40025-010 Salvador, Bahia, Brasil
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Suplemento 2, vol. 76 - Faculdade de Medicina da Bahia