ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA Os apontamentos que aqui se apresentam são uma tradução-resumo-adaptação a partir do texto de Alejandro MARTÍNEZ SIERRA, Antropología teológica fundamental, BAC, Madrid, 2002. Não estão elaborados com rigor para poderem ser divulgados, e são disponibilizados apenas para o estudo dos alunos de Antropologia Teológica do Centro de Formação e Cultura da Diocese de Leiria-Fátima no ano de 2013-2014. José Henrique Pedrosa I – A DOUTRINA DA CRIAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 1. Relação criação – salvação Qual a relação entre a ideia da criação e da aliança? Qual a importância da criação na reflexão teológica do Antigo Testamento? Duas correntes: a) (von RAD) A criação é o pressuposto da aliança. Israel conhece Yahvé na sua história; não vai das coisas criadas ao Criador, mas dos acontecimentos da história, do que realiza na história do povo, ao Autor dessa acção b) (Westermann) A ideia da criação e da aliança são independentes. Não só não se chega à criação a partir da aliança, mas a própria ideia da criação é anterior. A fé na criação não depende da aliança, mas é a aliança que se inscreve como num marco da criação: o domínio de Deus sobre todos os povos a partir do qual se explica a predilecção por Israel. Criação e aliança são duas manifestações do amor de Deus para com os homens. Podem justapor-se porque nas duas Deus manifesta a sua força e o seu amor aos homens. Uma e outra revelam a vontade salvífica de Deus. Criação e aliança são duas 1 noções distintas que expressam a acção de Deus. Na criação começa a relação de amor de Deus como mundo que se vai “aperfeiçoar” na aliança. Será o Novo Testamento, com a ideia da criação em Cristo e para Cristo que irá aclarar esta relação. 2. Relatos da criação Capítulos 1 e 2 do livro dos Génesis. São 2 relatos que pertencem a fontes literárias distintas. 1ª: Gen 1, 1 – 2, 4a. Atribuída ao códice sacerdotal (P), redacção do tempo do desterro na Babilónia (séc. VI-V a.C.), onde se recolhem tradições anteriores. 2ª: Gen 2, 4b-25. Atribuída à tradição javista (J), calcula-se que tenha sido escrita a partir dos séc. X-IX a.C. Também recolhe tradições anteriores. Género literário: etiologia histórica. Etiologia (estudo das causas) é a tentativa de explicar um fenómeno presente através de um facto do passado. Pode ser histórica, quando o facto existiu, ou mítica, quando o facto é uma lenda. Não há uniformidade entre os especialistas quando se trata de dizer o que realmente aconteceu… Sem dúvida, aconteceu: a criação do mundo por Deus, a criação especial do homem, a igualdade de todos os homens, a unidade do género humano no sentido que todos entram no mesmo projecto criador e salvador de Deus. Por serem de origem distinta, são também muito diferentes nas suas características concretas: P: mais didáctico, teológico, transcendente, solene, abstracto, bem estruturado. J: mais simples na linguagem, mais colorido e dramático, com um Deus mais próximo, com uma visão cósmica mais reduzida, preocupado com o problema do mal. Nos relatos descobrem-se restos das mitologias orientais. Alguns motivos mitológicos: a origem aquática do mundo, as trevas que cobrem o oceano primordial, a separação do céu e da terra, a reunião das águas no firmamento, a formação do homem do pó da terra, a inspiração nasal da vida, a costela de que é formada Eva, a árvore da vida… A interpretação da Escritura como palavra de Deus requer antes de mais compreender o que o autor nos quer ensinar. 2 Dei Verbum, 12: «Como Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras». Depois de ter sido interpretado de uma forma literal, toda a revolução científica, de Corpénico a Darwin, e todas as ciências cosmológicas posteriores, tornaram inviável esse tipo de leitura destes relatos… Mas não se trata aqui de fazer uma outra leitura apenas porque a outra já não possível, mas sim de procurar, de facto, perceber o que o autor sagrado quer transmitir, partindo da análise do próprio texto. Duas atitudes a distinguir no autor sagrado: a. Está consciente, ao escolher um género literário (por exemplo: os sete dias da criação) que isso não é verdade, mas a estrutura de que se serve para comunicar um ensinamento. Um artifício literário. b. Quanto às categorias culturais, o autor crê nelas e afirma-as, mas não são o conteúdo do seu ensinamento (o autor acreditava na cosmologia presente no cap. 1 dos Génesis, na qual sustenta o seu relato, mas essa cosmologia não é o conteúdo do ensinamento, não pertence à verdade revelada). Tanto os artifícios literários como as categorias culturais não são conteúdos da fé mas meios, conscientes ou inconscientes, de expressão. Mesmo que algo semelhantes às mitologias dos povos vizinhos, estas narrações não podem enquadrar-se no género das mitologias… Algumas marcas fazem distinguir: o Deus dos Génesis não tem origem; está nela a origem de tudo, nem luta contra outras divindades para se constituir como Senhor absoluto, a sua forma de criar indica o senhorio sobre todas as coisas. Não é intenção do autor sagrada fazer uma história das origens ou afirmar a ordem da criação… Basta uma leitura atenta dos dois relatos para perceber muitas diferenças entre ambos… Se estão juntos, isso significa que o redactor final tem uma intenção que vai para além do contar o «como» das origens, tem uma intencionalidade diferente. Há um denominador comum nas duas narrações: toda a criação depende única e exclusivamente da força omnipotente de Deus. Um Deus que aparece na sua majestade e transcendência, totalmente distinto da matéria, mas que também não se 3 desentende da criação: em J Deus exprime uma solicitude pelo homem que está no centro da criação… Uma vez que a finalidade do autor sagrado é dar a conhecer a história da aliança de Deus com o povo de Israel, a criação, no princípio dessa história, indica que o autor a considera como um facto que já pertence à História da Salvação, que abarca todos os povos. 3. Génesis 1, 1 – 2, 4a (P – Sacerdotal) a. Estrutura do relato Harmonia no relato, marcada pela semana criadora que ordena a acção de Deus. Os 3 primeiros dias põem em ordem o caos inicial, criando o espaço onde vão ser colocadas as criaturas: 1º dia: Separação da luz das trevas. Corresponde ao 4º dia: sol, lua e estrelas. 2º dia: Com o firmamento, separa as águas superiores das inferiores. Corresponde o 5º dia: aves e os peixes. Anomalia no 3º dia: à separação do mar e da terra, junta-se a criação das plantas. Fica para o 6º dia a criação dos animais terrestres e do homem. Fica livre o 7º dia para introduzir o descanso sabático na criação. Consagra-se desta forma o dia do Senhor. A visão cosmológica em que se apoia a narração é a própria da época: - a terra como uma superfície plana - a abóbada do céu era uma sólida cúpula que retinha as águas superiores - a terra como uma massa sólida e impermeável - os astros que são pensados como luzeiros do dia e da noite. A narração é fruto do estudo da forma de pensar da época. b. Doutrina • Deus criador de tudo Não existe o conceito de criação a partir do nada, mas exprime-se com outros termos: 4 - Bará: é um verbo que exprime apenas uma acção divina, e o seu resultado é algo de totalmente novo. A noção metafísica de criação ex nihilo só será formulada em 2Mc 7, 28. Mas o texto afirma que o mundo teve um princípio: a criação não é um mito atemporal, ela está integrada numa história de que é o princípio absoluto. - Os céus e a terra: com esta expressão os hebreus falavam o universo, a totalidade das coisas criadas. Nos versículos que se seguem, o autor vai enumerar essa totalidade a partir daquilo que é o seu campo de análise. Alia à criação das criaturas a fecundidade, ou seja, as virtualidades próprias das criaturas também têm a sua origem em Deus. - O caos inicial: este talvez seja um resíduo mais notório das mitologias orientais, mas tratado a partir da fé no único Deus transcendente e anterior ao mundo. O caos era o início das cosmologias pagãs: dele surgiam os deuses num primeiro momento, e depois as criaturas. Frequentemente, os deuses entravam em batalhas entre si para estabelecer o domínio sobre as criaturas. O Deus de Israel não tem origem no caos, mas precede-o e domina-o. Para alguns autores, este caos é a representação plástica do nada absoluto. - No princípio: admite duas traduções, como princípio absoluto ou relativo. O texto parece sugerir-nos que o autor não pensa numa matéria eterna, que numa tradução de um princípio relativo poderia soar assim: «no princípio da criação de Yahvé…». Expressaria um dualismo totalmente estranho à mentalidade do povo de Israel. • Criação pela palavra A palavra é um atributo da pessoa. Deus que cria pela palavra é um ser pessoal, espiritual, distinto do mundo. Esta forma de criar indica a ausência total de toda a coação interior e exterior no criador: Yahvé é livre em todas as suas acções. Nem imanentismo nem determinismo estão presentes na perspectiva do autor. A palavra brota livremente do ser inteligente que a profere. Destaca-se a omnipotência de Deus que cria sem esforço nem resistência por parte do mundo. As coisas surgem conforme a ordem da sua palavra. E a palavra vai realizando um plano pré-estabelecido. A relação aliança – criação faz-se notar no próprio acto criador. O mesmo Deus que tem um plano de aliança para o povo e que o vai realizando ao manifestar a sua 5 palavra, é o mesmo que desde o início cria pela palavra. A mesma palavra que rege o mundo é a que o criou. • Criação estruturada As criaturas vão sendo escalonadas de um menos para um mais no processo criador. As plantas brotam da terra, os animais recebem uma bênção especial, em relação com a terra… no culminar deste processo, aparece o homem, fruto de um esforço especial de Deus, e a quem é confiado o domínio sobre a terra. • A bondade da criação Os israelitas acreditam que o mundo no seu início corresponde plenamente aos planos de Deus. Em cada dia Deus vê que é bom o que criou… Assim tinha de ser, porque Deus fez tudo o que queria e como queria. Nada resistiu à sua palavra. Não há nenhum poder adverso que faça frente à vontade criadora de Deus. • Significado do descanso sabático Não há uniformidade na forma de interpretar este sétimo dia. Não é um tema original, uma vez que algumas mitologias orientais falam também do descanso dos deuses… Alguns acreditam que o descanso sabático que o mundo está terminado e que Deus o confia às mãos do homem. Outros apontam para o facto de se estar a inculcar a santificação do sábado no regresso do exílio, pelo que o autor se serve do descanso de Deus para santificar e consagrar o descanso semanal. Para esta última interpretação, ver Ex 20, 8-11. 4. Génesis 2, 4b-25 (Javista) a. Esquema da Aliança Muitos autores reconhecem no esquema javista a estrutura de um texto de aliança. A aliança com Yahvé concebeu-se no estilo dos antigos pactos de vassalagem. Alguns elementos característicos desses pactos: 1. Auto-apresentação do rei com os seus títulos; 2. Narração dos factos realizados em favor do vassalo; 3. Obrigações 6 4. Ameaças com a invocação dos deuses Este esquema pode ver-se em parte em Ex 19, 4-6, mas sobretudo em Jos 24. Gen 2-3 parece seguir um esquema deste género: pacto, pecado, castigo, esperança para o futuro. Israel, liberto do Egipto, é posto na terra prometida, e deverá cumprir uma série de obrigações que advêm da aliança… Como Adão, criado fora do paraíso, é colocado no paraíso onde deve ser fiel a Deus representado na árvore do fruto proibido. O paralelismo remete-nos para um contexto de aliança que o autor deve ter sempre como base… b. Finalidade da narração Não se trata de desenvolver com maior detalhe a cena da criação descrita no capítulo anterior. Aí já se afirmou que tudo depende de Deus. Também o homem, criado à sua imagem e semelhança. Se o cap. 1 se centra na criação cósmica, o cap. 2 começa a contar a vida do homem sobre a terra. A razão de introduzir a narração do paraíso é a explicação do mal no mundo. c. Antropocentrismo Todo o cap. está orientado para o homem, que desde o primeiro momento ocupa o centro da narração. Deus preocupa-se com ele e quer a sua felicidade. O homem aparece como um interlocutor de Deus e é objecto do amor providente desse mesmo Deus, o que se manifesta na preparação de um lugar para ele viver e no estabelecer de uma relação amigável entre o criador e a criatura. d. Conclusão Os dois relatos coincidem nas seguintes afirmações como conteúdo teológico da sua reflexão: 1) Deus não tem princípio 2) Deus é um ser pessoal 3) Deus é o criador de tudo o que existe 4) O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é o cume e o centro de toda a criação 5) Homem e mulher são feitos um para o outro 6) A criação na sua origem corresponde ao plano de Deus 7 Não se diz nada acerca do modo como aparecem os seres, de como se originou o mundo. As ciências têm à sua frente um vasto campo de investigação. É evidente que os autores sagrados não conheciam o evolucionismo e que a sua mentalidade era fixista, mas a sua forma de pensar não é vinculante pelo facto de ser inspirado... Deus revela a sua verdade salvífica, não a natural ou histórica. Já o dizia Santo Agostinho: «Deus não quis elucidar-nos acerca da estrutura íntima das coisas e do universo, pois não quer fazer de nós matemáticos ou físicos, mas que proclamemos uma boa nova». 5. O anúncio profético Os profetas recorrem frequentemente ao tema de Deus criador para a fé do povo no Deus salvador. Isaías 51: Descreve o pessimismo do povo deportado e oprimido; o profeta convida à esperança recordando a história de predilecção ao mesmo tempo que invoca o poder de Deus criador. Ver versículos 12-14. Jer 1, 5: Esta mesma esperança é invocada na vocação do profeta Jeremias. Ezequiel 32, 3ss: A vitória de Yahvé sobre o Faraó apresenta Deus como o senhor da história e com domínio sobre todas as coisas. Amós 4: manifesta a relação entre Deus criador e com domínio sobre todas as coisas com o Deus que julga e castiga. (Isaías 27: Deus criador e consumador actua para libertar o povo.) Insiste-se também nas consequências éticas que derivam na fé na criação: cf. Am 5, 4ss, Mal 2, 10ss, Is 5, 12. É frequente da pregação profética celebrar Deus criador com imagens tiradas das mitologias babilónicas ou fenícias. Cf. Am 4, 13; Is 40, 12; Jer 5, 22. Mas o monoteísmo livra de todo o perigo de idolatria ou politeísmo. 8 6. Os salmos A fé em Deus criador está patente na espiritualidade israelita. São diversos os sentimentos que manifestam os salmistas na contemplação da criação. Um exemplo é o Salmo 8: o mistério do homem pela sua grandeza diante de todas as coisas criadas. Salmo 146 (145), 5-6: A fé na criação é fundamento da esperança... Salmo 136 (135): as obras maravilhosas de Deus na criação (4-9) unem-se aos seus gestos de salvação em favor do povo (10-25). Ambas são sinal do amor de Deus. Salmo 104 (103): o salmista não canta apenas a obra criadora de Deus, mas fixa-se de uma maneira especial na dependência que cada criatura tem do criador. Aponta-se para a criação continuada e o amor de Deus por casa coisa (ver sobretudo v. 29-30) 7. Literatura sapiencial Na literatura sapiencial encontra-se uma concepção da criação mais racional e menos dominada pela história da salvação. A influência helenista faz-se notar... O mundo é um cosmos perfeitamente estruturado, pois foi presidido na sua origem pela Sabedoria, como canta o cap. 8 de Provérbios (sobretudo v. 22ss). Há uma ordem no universo que leva quem a contempla ao conhecimento do seu autor. O mundo é caminho para Deus. Por isso, são culpados os que não conhecem Deus: Sabedoria 13, 1-9. Perante o problema do sofrimento, que os profetas interpretaram como castigo de Deus pelo afastamento do cumprimento da aliança, Job invoca a ordem na criação para fazer compreender a transcendência de Deus e o insondável que são os seus desígnios. A referência religiosa desta literatura está no chamamento a seguir a Sabedoria, que se manifesta sobretudo na grandeza da criação. Cf. Prov 2, 5-8; 8, 35; Job 28, 28; Eclo (Ben Sirá) 16, 24; Sab 6, 1-21. É também específico desta literatura sapiencial a personificação da Sabedoria como co-princípio de Yahvé na obra da criação: Prov 8, 22ss; Eclo 24, 1-22; Sab 7, 21-8,1. Esta concepção será retomada no Novo Testamento para a teologia do cristocentrismo da criação. 9 8. 2Mac 7, 22-29 No tempo da perseguição de Antíoco Epífanes, no ano 168 a.C. A mãe dos macabeus exorta os filhos a preferirem a morte a quebrarem a aliança. A afirmação da mãe é uma afirmação clara e contundente da criação do mundo e de cada homem por Deus. Esta fé é usada como motivo e fundamento da esperança diante da morte. Deus devolverá a vida aos que se dão com generosidade ao martírio: ver 2Mac 7, 28s. É frequente admitir na exegese moderna a tradução «Deus o criou do nada» (v. 28), que no original seria algo como «não os fez de seres existentes»: seria um equivalente ao que a teologia posterior chamará «criação do nada». 10 II – A DOUTRINA DA CRIAÇÃO NO NOVO TESTAMENTO 1. Continuidade e novidade O NT é herdeiro da fé na criação do AT, completando alguns aspectos. O Deus do NT é sobretudo o Pai de Jesus Cristo. Isto não impede que nas páginas do NT continue a estar claramente presente a fé em Deus criador e dominador de todas as coisas. Alguns pontos mais marcantes: a) Deus criador de tudo Mt 11, 25 «Eu te bendigo ó Pai...»: evoca o senhorio de Deus num clima de oração e louvor. Act 4, 24: é agora a comunidade primitiva que na sua oração evoca o Deus criador de todas as coisas. Act 7, 49-50: Estêvão diante do tribunal faz a profissão de fé de Is 66, 1-4. Act 14, 15: Paulo e Barnabé recusam em Listra as ofertas cultuais, e professam a sua fé no Deus criador. Act 17, 22-28: Paulo, no areópago, professa a sua fé no Deus criador, da forma tradicional, mas ao mesmo tempo afirma a transcendência e a imanência de Deus. Ef 3, 9: ao falar do mistério de Cristo, escondido desde toda a eternidade em Deus, São Paulo não se esquece de afirmar que esse Deus é o criador de todas as coisas. 1Tim 6, 13: na primeira carta a Timóteo, Paulo recomenda-lhe, «na presença de Deus, que dá a vida a todas as coisas», que conserve o mandato que recebeu. Ap 10, 6: também o autor do Apocalipse expressa a sua fé em Deus criador da forma tradicional. b) Deus, arquitecto do mundo Katabolé kosmou: «criação do mundo» ou «fundação do mundo», em Lc 11, 50, Jo 17, 5. 24; Ef 1, 4, marca a distinção entre o que está antes e o que está depois da criação. Antes existe a eternidade de Deus, e nela a glória do Verbo preexistente e a nossa eleição em Cristo. Depois vem toda a história dos homens. 11 c) Deus cria pela palavra e é dono absoluto A passagem de Rom 4, 17 é interpretada por muitos autores como uma referência à criação pela palavra: «chamar à existência». A Jesus Cristo foi dado «todo o poder no Céu e na terra» (Mt 28, 18, cf. 2Cor 4, 6; Heb 1, 3; 2Ped 3, 5). d) Providência A confiança na providência de Deus supõe o domínio próprio do criador que continua a actuar no mundo (Lc 12, 24). Afirmação que faz recordar o Salmo 146, 6ss e o Salmo 104 (cf. Job 38-39). e) Da criação ao Criador A ideia da Sabedoria, de que as coisas criadas são um caminho para descobrir a existência de Deus está presente em Rom 1, 19 ss. 3. Cristo, centro da criação A grande novidade do NT é a visão cristocêntrica da criação. a) 1Cor 8, 6 São Paulo responde neste texto à pergunta que lhe haviam colocado sobre a participação nas comidas e nas carnes oferecidas em sacrifício aos ídolos. Este tema dá a oportunidade do Apóstolo fazer uma profissão de fé em Deus Pai único criador de todas as coisas e na mediação criadora de Cristo. Um texto breve, que talvez seja uma fórmula primitiva da fé da comunidade. Fica patente que Deus Pai é a fonte donde brota toda a criação. Tanto no plano material como do espiritual, tudo procede d’Ele. E é Ele também o fim de toda a criação. O círculo, para São Paulo, é claro: tudo vem do Pai, por Cristo, até nós (cf. 1Cor 3, 22-23) e tudo volta de nós por Cristo ao Pai. Neste processo tem grande importância a mediação de Cristo, que é o Senhor e, como tal, mediador da criação. Cristo, ao ser o mediador da salvação tem de o ser também da criação. Se a aliança, no AT, é a razão de ser da criação, o NT substitui a aliança por Cristo, em quem 12 acontece a nova aliança, e Ele converte-se na razão de ser da criação. Afirma-se implicitamente a preexistência de Cristo. Da criação de Cristo nada se diz. Partícula dia – referente a Cristo implica a sua mediação. Partícula ex e eis referem-se ao Pai, indicam a procedência e o fim das criaturas. b) Colossenses 1, 15-20 Admite-se que é um hino litúrgico cristológico anterior à redacção da carta. Está inspirado na doutrina da Sabedoria dos livros sapienciais, nomeadamente: Prov 8, 2231; Ben Sirá (Eclo) 24; Sab 1, 7; 7, 21-30; 9, 1-4. Pode falar-se de duas partes. Na primeira (15-18a) canta-se a primazia se Cristo na criação. A segunda (18b-20) realça a primazia de Cristo na nova criação, ou seja, como redentor. O hino coloca-nos diante de Cristo glorioso, Senhor ressuscitado, por meio de quem se revela o verdadeiro mistério do plano salvador e do plano criador de Deus. • Primeira parte (15-17) Imagem de Deus… (v. 15) O pano de fundo deste versículo é a Sabedoria (Sab 7, 26), cujas qualidades aplica a Cristo. Estas qualidades da Sabedoria são: - criada antes de todas as coisas (Eclo 1, 4-9; 24, 9); - primícia dos seus desígnios (Prov 8, 22); - imagem de Deus (Sab 7, 26); - mediadora da criação (Prov 3, 19; Sab 9, 1).; Cristo preside à criação, é imagem de Deus e por Ele foram feitas todas as coisas. Cristo ressuscitado e glorioso é a revelação de Deus invisível, porque n’Ele podem os homens conhecer o Pai (cf. 2Cor 4, 4). A semelhança de Cristo com o Pai supera a imagem das criaturas: Ele é imagem perfeita, porque n’Ele habita a plenitude da divindade (v. 19). Cristo é a imagem visível de Deus invisível (cf. Jo 14, 9; Mt 11, 27; Lc 10, 22). Talvez o pensamento de Paulo, nesta afirmação, encerre o tema de Cristo como novo Adão, que leva à perfeição a imagem de Deus esculpida no homem criado à imagem e semelhança de Deus. 13 Primogénito… (v. 15) Os arianos1 apoiaram-se neste texto para falar da criação do Verbo. Na controvérsia com os arianos ficou claro que não seria esse o sentido do texto, pois estaria em contradição com o que se afirma nos vers. 16-17. A sua primazia está em existir antes de tudo, como a Sabedoria. Foi nele que todas as coisas foram criadas... (v. 16) Toda a criação depende de Cristo. Esta é a ideia central dos vers. 16-17. Se em 1Cor 8, 6 se afirmava a mediação de Cristo na criação, aqui Ele é apresentado também como o fim da mesma criação. O genérico ta panta (todas as coisas) é especificado ao longo do vers. 16. Cristo aparece como aquele que dá coesão a toda a criação e, nesse sentido, preside ao acto criador. Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele... (v. 16) Isto não se afirma da Sabedoria. O próprio São Paulo reserva esta particularidade ao Pai em 1Cor 8, 6 e Rom 11, 36. Aqui o apóstolo vai mais além da Sabedoria. Enquanto que nos livros sapienciais, a Sabedoria é uma propriedade de Deus, Cristo é uma pessoa subsistente e, por isso, pode dizer d’Ele: tudo foi criado para Cristo. Ele é a coroa da criação, o centro de unidade e reconciliação universal (cf. Ef 1, 10; 1Cor 15, 28; Ap 1, 18; 2, 8; 21, 6). São Paulo reconhece a Cristo a mesmas divindade do Pai e, como consequência, a sua participação na criação como único mediador e como telos (fim) para o qual caminha toda a criação. Ele é anterior a todas as coisas... (v. 17) Cristo é anterior a tudo, mas ao mesmo tempo aquele que dá coesão a toda a criação: «todas elas subsistem nele». É uma alusão à Sabedoria como poder de coesão do universo (Sab 1, 7). O pensamento de São Paulo move-se numa esfera religiosa. Na pessoa de Cristo actua o criador, o salvador, o Deus da história da salvação. É neste sentido que se entendem as expressões «foi nele», «por Ele», «para Ele». • Segunda parte (18-20) Também na nova criação (na redenção, a nova aliança), Cristo tem a primazia. 1 O arianismo foi uma heresia propagada por Ario, presbítero líbio da Igreja de Alexandria, que negava a divindade de Cristo, reduzindo-O a simples enviado do Pai. Esta heresia, que se difundiu no séc. IV por toda a cristandade, foi refutada por S. Atanásio e outros padres da Igreja contemporâneos e formalmente condenada no primeiro concílio ecuménico, o de Niceia (325). Manifestou-se depois com várias cambiantes. 14 Cabeça (v. 18) Nas cartas paulinas, este termo significa autoridade e supremacia. Nas cartas de cativeiro tem também o significado do influxo vital da cabeça nos membros. Princípio (v. 18) Cristo é o começo da nova humanidade, fonte perene da nova economia da salvação (Gal 6, 15; 2Cor 5, 17). Por isso os cristãos são, em Cristo, nova criatura. Para São Paulo esta expressão da «nova criatura» tem o sentido da ruptura com o mundo, de ser reconciliado e de ter recebido a vida do Espírito, que incorpora o cristão em Cristo e lhe permite chamar a Deus Pai (Rom 8, 14-17). O cristão é nova criatura por que a sua conduta de vida manifesta essa vida recebida do Espírito. A nova criação é o fim e o cume da primeira: na morte de Cristo morre o mundo velho e começa o novo anunciado pelos profetas (cf. Is 43, 18-19; 65, 17-25). O cristão faz parte desse mundo novo a partir da sua incorporação em Cristo. A existência do cristão é nova, e essa novidade consiste em viver segundo Cristo e não segundo o mundo. Nesta nova criação, Cristo é o argué (princípio). Primogénito de entre os mortos (v. 18) A ressurreição de Jesus Cristo não é apenas um facto isolado e pessoal. É sobretudo o princípio da ressurreição da humanidade. Para São Paulo, negar a ressurreição dos mortos é também negar a ressurreição de Cristo (1Cor 15). Para ser Ele o primeiro em tudo (v. 18) O Pai quer que todo o universo criado tenha a sua razão de ser em Cristo. Ele é o Filho amado do Pai, o primeiro no amor e na intenção de criar o mundo. Por isso mantém a sua primazia no universo, na Igreja, em toda a criação material e espiritual. Foi nele que aprove a Deus fazer habitar toda a plenitude (v. 19) Em Col 2, 8, São Paulo previne os cristãos para que não se deixem enredar em filosofias enganadoras fundadas nas tradições humanas... Os hereges de Colossos negavam a primazia de Cristo e adoravam os elementos do mundo... Nega-se aqui a divinização dos elementos naturais. No v. 20, afirma-se que a reordenação de todo o mundo se realiza pelo sangue de Cristo. Nele se reúne o que estava disperso: a morte e ressurreição de Cristo devolve o mundo organizado (cosmos e não caos) ao Pai. 15 c) Hebreus 1,2ss Ao estilo de São João no seu Evangelho, o autor da carta aos Hebreus começa com um prólogo em que professa a divindade de Jesus, usando títulos que parecem fazer parte de um hino usado na liturgia da Igreja primitiva. Nesta «espécie» de hino a Jesus Cristo misturam-se títulos divinos e salvíficos com os cosmológicos. Afirma-se a sua mediação criadora, ao estilo de Colossenses e de João, inspirados na Sabedoria, e diz-se também que «tudo sustenta», que governa o mundo com a sua «palavra poderosa». Da Sabedoria já se tinha afirmado que «ela estende-se com vigor de uma extremidade à outra e tudo governa com bondade» (Sab 8, 1). Ao mesmo tempo, Deus constitui Jesus Cristo como «herdeiro de todas as coisas». Ou seja, Ele é também o fim para o qual se dirige o mundo. Em resumo (teologia paulina): 1. Paulo considera a criação como uma história concreta, na qual estão presentes: a) a divinização do homem como final da sua existência; b) o pecado de que é liberto o homem para ser divinizado; c) a encarnação redentora pela qual o homem se torna filho de Deus. 2. Para São Paulo existe uma conexão íntima entre as coisas criadas e o homem, como se pode ver em Rom 8, 18-22 e 1Cor 3, 22. O pecado colocou toda a criatura numa situação de escravidão e também elas esperam ser libertadas. Assim, o homem apresenta-se como o centro da criação e arrasta todas as criaturas nas suas opções. 3. No mistério da encarnação redentora, o apóstolo descobre o sentido da criação do mundo. Cristo, como salvador universal, revela a verdadeira intenção do Pai, em que tem origem a salvação (cf. 2Cor 5, 18; 1Tim 2, 4). 4. A intenção de Deus antes da criação é fazer uma humanidade unida no Filho, participando, mediante esta união, na filiação divina (cf. Ef 1, 3ss; Rom 8, 29). 5. Por isso, na intenção de Deus Pai, a criação está subordinada à realização dessa filiação, que é a suprema autocomunicação de Deus ao homem e, no homem, a toda a criação. 6. Esta autocomunicação de Deus aos homens, que os torna seus filhos, é possível a partir da encarnação. Cristo é quem possibilita o acesso dos homens ao Pai. Por isso, Cristo é também o centro, a razão de ser do 16 universo. Na sua encarnação o mundo adquire uma explicação para a sua existência. Sem Cristo, tudo deixaria de ter sentido, e é Ele quem tem a primazia em tudo. 7. Paulo vê esta filiação como superação de um estado de pecado, que desregrou toda a criação: Cristo é quem realiza a sua reunificação. 8. Esta reunificação realiza-se no sangue de Cristo, donde brota a nova humanidade: a Igreja, na qual Cristo é a cabeça e o primogénito de entre os mortos. 9. Por isso, n’Ele, por Ele e para Ele todas as coisas foram criadas, e tudo se mantém n’Ele. Sem Cristo a criação seria ininteligível. 10. E tudo foi criado para Ele, porque n’Ele Deus se comunica à criatura da forma mais perfeita da criação (a humanidade de Cristo) e a criatura (o homem) participa da divindade, finalidade da sua existência. d) João 1, 1-4 João começa o seu Evangelho afirmando a divindade da Palavra (Logos). Existia desde o princípio e estava junto de Deus e era Deus. É a preexistência da Palavra. Depois professa-se a mediação da Palavra na criação com expressões semelhantes às da literatura paulina. Ao afirmar o papel mediador da Palavra, afirma-se implicitamente a acção do Pai como criador. A relação entre criação e salvação deduz-se da apresentação da Palavra como vida e luz dos homens, conceitos que em João definem tanto o próprio Jesus como a sua obra salvífica. Há uma transição natural da função do Pai no campo cósmico para o plano salvífico. Todo o prólogo de João aponta para Cristo como luz e plenitude de vida, Ele que se vem situar no meio dos homens para que estes participem da sua vida divina (v. 10 e 16). e) Conclusão NT A fé cristã na criação, na sua origem e no seu fim, compreende-se a partir do mistério da encarnação. Cristo é quem revela o mistério do mundo e da história. Criação e nova aliança, ou salvação, não só não se contrapõem, mas estão intimamente relacionadas entre si. A criação em si mesma caminha para Cristo. A salvação é a finalidade da criação. 17 Para expor esta teologia, os autores do NT serviram-se da doutrina sobre a Sabedoria dos autores do AT. É possível que tenha também algumas influências da doutrina de Filon sobre o Logos. O cristocentrismo da criação permite-nos afirmar que como fundo de todos os valores humanos está uma dimensão crística: uma orientação para Cristo como plenitude e sublimação. Por isso, os valores cristãos não se podem opor aos valores humanos: antes, são a sua plenitude. Por isso, diz o Concílio Vaticano II: «Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime» (GS, 22). Sem entrar no tema do motivo da encarnação de Cristo (para São Tomás a encarnação é motivada pelo pecado: Cristo encarna para nos libertar do pecado; para Escoto a razão de ser da encarnação é a glória de Cristo...), afirma-se aqui apenas que, para a teologia do NT, na criação histórica Cristo é o seu centro. 18 III - A DOUTRINA DA CRIAÇÃO NA FÉ DA IGREJA 1. Símbolos e profissões de fé Nas obras dos primeiros autores cristãos são abundantes e coincidentes os textos que, ao professar a fé dos cristãos, na linha do que se verificou nos textos do Novo Testamento, afirmam a criação feita pelo Pai com a intervenção do Filho como mediador. A fé expressa no início da Didaqué (1, 1-2), ao apresentar o caminho da vida: Há dois caminhos: um da vida e outro da morte. A diferença entre ambos é grande. O caminho da vida é, pois, o seguinte: primeiro amarás a Deus que te criou; depois a teu próximo como a ti mesmo. E tudo o que não queres que seja feito a ti, não o faças a outro. N’ O Pastor de Hermas (1º Mandamento, cap. 26): Antes de tudo, crê que existe um só Deus, que criou e organizou o universo, fazendo passar todas as coisas do não-ser para o ser, que contém tudo e ele próprio não é contido por nada. Crê nele e teme-o, e temendo-o, sê continente. Observa isso e afasta de ti todo mal, para que sejas revestido de toda virtude de justiça, e viverás para Deus, se observares esse mandamento. São Justino, na Primeira Apologia, 13: Que não somos ateus, quem estiver em são juízo não o dirá, pois prestamos culto ao Criador deste universo, do qual dizemos, conforme nos ensinaram, que não tem necessidade de sangue, libações ou incenso. Em lugar de todas as ofertas, nós o louvamos conforme nossas forças, com palavras de oração e acção de graças. Aprendemos que o único louvor digno dele não é queimar no fogo o que por ele foi criado para nosso alimento, mas oferecê-lo para nós mesmos e para os necessitados. Depois, mostrando-nos a ele agradecidos, dirigir-lhe por nossa palavra louvores e hinos por ter-nos criado, por todos os 19 meios de saúde, pela variedade das espécies e mudanças das estações, ao mesmo tempo que lhe suplicamos que nos conceda de novo a incorruptibilidade pela fé que nele temos. Em seguida, demonstramos que, com razão, honramos também Jesus Cristo, que foi nosso Mestre nessas coisas e para isso nasceu, o mesmo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, procurador na Judeia no tempo de Tibério César. Aprendemos que ele é o Filho do próprio Deus verdadeiro, e o colocamos em segundo lugar, assim como o Espírito profético, que pomos no terceiro. De fato, consideram-nos loucos, dizendo que damos o segundo lugar a um homem crucificado, depois do Deus imutável, aquele que existe desde sempre e criou o universo. É que ignoram o mistério que existe nisso e, por isso, vos exortamos que presteis atenção quando o expomos. Outros textos de Santo Ireneu, das Actas dos mártires, de Tertuliano… podiam ser também referidos, nesta mesma linha. Uma referência apenas para a confissão de fé típica dos candidatos ao baptismo. Aos catecúmenos é pedido que professem a sua fé, normalmente em forma de pergunta, como acontece na Tradição Apostólica de Hipólito de Roma: «Credes em Deus Pai omnipotente (pantocrator)?» Na forma afirmativa, esta confissão em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, surge por exemplo nas Catequeses de Cirilo de Jerusalém: «Cremos em um só Deus, Pai omnipotente (pantocrator), que fez o céu e a terra, tudo o que é visível e invisível». 2. Orações litúrgicas As orações litúrgicas antigas estão impregnadas de um profundo sentido teológico. O culto é em si mesmo uma profissão de fé pelo seu conteúdo dogmático. O que é regra de fé torna-se oração e louvor. Na Didaqué (10): «Tu, Senhor omnipotente (despotes), criaste todas as coisas, para louvor do teu nome, e deste alimento e bebida aos homens para deleite, para que te sejam agradecidos…» Outras orações litúrgicas antigas vão na mesma linha: Anáfora dos Apóstolos, a missa clementina, anáfora de São Basílio, de São Marcos de Alexandria… começam pela evocação das maravilhas da criação e a relação com o mistério pascal de Cristo na Eucaristia. 20 3. Catequeses baptismais Segundo a peregrina Etéria (séc. IV), em Jerusalém a catequese baptismal começava pelo livro dos Génesis, que o bispo comentava durante 40 dias. Disso dá testemunho também Santo Agostinho. Depois explicava o Credo. Nas catequeses tanto de Cirilo de Jerusalém como de Teodoro de Mopsuestia, sobressaem três notas características: a) Começam por Cristo, cujo Pai é o criador, e a criação se realiza nele e por ele; b) Esta criação inclui-se numa história que, pela presença de Cristo, se converte em história sagrada, de salvação; c) A criação faz descobrir ao homem a sua relação com Deus, que quer ser seu Pai. A fé introduz o homem na família de Deus. Uma pequena amostra desta instrução catequética é o texto de São João Crisóstomo (Catequese 5, 20): É pois obrigatório que quem se alista nesta particular milícia, a espiritual, creia no Deus do universo, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, causa de todas as coisas, o inefável, o incompreensível, o que não pode ser explicado com a palavra nem com a mente, o que criou todas as coisas por amor do homem e por bondade. 4. Teologia patrística Os Padres Apostólicos abordam o tema da criação reflectindo o pensamento bíblico, centrando-se em Cristo. Os Padres Apologéticos lutam contra as ideias que os gregos tinham da criação e dos seus deuses. A sua ideia é fazer ver que a verdade estava na fé professada no cristianismo. Combatem todas as ideias dualistas da mentalidade helenista do Logos reduzido a um papel meramente cosmológico como intermediário da criação. A afirmação da transcendência de Deus e da não indigência do mundo levou-os a admitir que o mundo foi criado para o homem. Defendem a criação do nada como consequência do monoteísmo. Contra o gnosticismo, com os seus dois princípios, um bom e um mau, Santo Ireneu defende a unidade de Deus na sua natureza e no seu agir, identidade entre Deus do AT e do NT. Existe um plano na criação. Deus é o dominador de tudo, porque tudo criou do nada. Deus cria livremente para manifestar o seu poder, sabedoria, amor e para ter a quem comunicar a sua própria bondade. Cristo recapitulou em si todas as coisas. A criação é uma obra continuada de Deus, submetida a um devir até que o homem atinja a visão de Deus depois de um tempo de maturação. 21 Tertuliano, na linha de Ireneu, defende contra os gnósticos, a identidade entre Deus criador e Deus bom. Deus cria todas as coisas por meio do Verbo. Não existe uma matéria eterna. Perdendo o gnosticismo a sua força, o séc. IV e V a controvérsia é sobretudo com os arianos. Nas disputas surge sobretudo a questão da função do Verbo na criação. Para os arianos ele era a primeira criatura, que o Pai tinha à sua disposição para levar a cabo toda a restante obra da criação. Três pontos são irrefutáveis para os Padres nesta discussão: a) Deus é o criador de tudo b) A criação do nada c) Absoluta liberdade de Deus ao criar Santo Agostinho procurou harmonizar a filosofia grega com a fé cristã. Para ele, existe um só Deus, o Pai de Jesus Cristo, que criou todas as coisas do nada. Não são admissíveis nem o dualismo nem o imanentismo. Deus criou primeiro a matéria informe e a partir dela todos os seres. O acto criador é totalmente livre, instantâneo e feito por amor. Com ele, Deus deposita nas coisas as potencialidades para que possam desenvolver-se. Mais que criadas no tempo, deve dizer-se que o tempo, como propriedade das coisas, é criado com elas. O mal é um tema que preocupou Santo Agostinho. Para ele, o mal não é um ser, nem substância, mas a carência do bem. Não salienta o aspecto histórico-salvífico da criação. Como conclusão. Para os Padres a criação é uma verdade herdade do AT. Não há mais que um Deus que criou todas as coisas do nada, no tempo e com o tempo. Com frequência consideram a criação como a primeira revelação, que manifesta os desígnios de Deus, imutáveis apesar do pecado do homem. A criação chega à sua plenitude em Cristo, que lhe dá a sua verdadeira luz. Cristo é a chave para entender a história do mundo. A obra de Cristo não é simplesmente o regresso à criação primitiva, mas a realização definitiva e vitoriosa do único desígnio da salvação que preside à criação. 5. Magistério da Igreja Concílio de Niceia (325). É o primeiro concílio ecumé nico convocado contra o arianismo. Na sua profissão de fé recolhem-se duas afirmações tradicionais. O primeiro artigo diz: «Cremos em um só Deus, Pai omnipotente (pantocrator), criador de todas 22 as coisa visíveis e invisíveis». Explicita-se que nada poderá ter outra origem senão em Deus. No segundo artigo, referido ao Filho, professa a sua consustancialidade com o Pai, ponto de controvérsia com os arianos, afirma-se claramente que «tudo se fez por meio dele, o que está no céu e o que está na terra». Constantinopla I (381). O símbolo da fé explicita algo mais o sentido de Deus criador no primeiro artigo: «Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis». Acrescenta-se ao símbolo de Niceia: «do céu e da terra». No segundo artigo, ao falar da mediação criadora do Filho, é mais parco. Diz apenas: «por Ele todas as coisas foram feitas». Constantinopla II (553). Acrescenta uma novidade, a da relação das três pessoas divinas com a criação: «Um só Deus e Pai, do qual tudo; um só Senhor Jesus Cristo, pelo qual tudo; e um só Espírito Santo, no qual tudo». Uma referência ao Concílio provincial de Braga (563). Contra as ideias da heresia priscilianista, afirma que as almas humanas e os anjos não provêm da substância divina; as almas humanas não pecaram no céu e como castigo foram encarceradas nos corpos; o demónio foi primeiro um anjo bom, criado por Deus, a sua natureza foi obra de Deus, não surgiu do caos ou das trevas, tem um criador e não é ele o princípio ou substância do mal; o diabo não fez nenhuma criatura do mundo, os relâmpagos, as tempestades e as secas não as fez o diabo; a criação da carne é obra de Deus e não de espíritos malignos. Latrão IV (1215). É o primeiro concílio que define a criação do nada. São estes os pontos objecto de definição: a) a unidade do princípio criador b) que essa criação foi feita a partir do nada c) enumeração das coisas criadas d) carácter temporal da criação e) origem do mal por vontade criada Vaticano II (1962-1965). O tema da criação não foi objecto da consideração explícita no Concílio, mas aparece frequentemente nos diversos documentos promulgados. Herdeiro das conquistas da renovação teológica realizada na primeira metade do séc. XX, recupera a perspectiva bíblica da relação entre a criação e a salvação e expõe a doutrina católica da criação em diálogo aberto com as diversas concepções filosóficas modernas sobre a origem do mundo. 23 Deus é o criador de todas as coisas (LG 2, 16, 17; GS 34). O acto criador faz parte do projecto divino de salvação no qual Deus chamou o homem a participar da sua vida divina. É um acto plenamente livre e feito por amor (LG 2; GS 2). Deus é Senhor e criador da história (GS 41). Este senhorio de Deus não priva as coisas da sua autonomia. Tanto as coisas como a sociedade humana têm as suas leis, que os homens devem reconhecer e respeitar, porque isso corresponde à vontade de Deus. Quem, com a metodologia da sua própria ciência e em conformidade com as normas morais, busca a verdade, não encontrará oposição com a fé. Autonomia da ordem temporal não supõe independência do Criador. A criatura sem o Criador desaparece (GS 36). O concílio recuperou também o cristocentrismo da criação. Seguindo de perto a teologia do NT, afirma que Cristo é o verdadeiro mediador da criação (DV 3). Tudo foi criado por Cristo (GS 7), Ele é o herdeiro de todas as coisas (AG 2), a Ele está tudo submetido (LG 36). Cristo leva o mundo e o homem à sua plenitude «quando chegar o tempo da restauração de todas as coisas» (LG 48). Entre as coisas criadas, o homem ocupa um posto singular. «Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo» (GS 12). O homem foi criado à imagem de Deus e destinado a participar da vida divina. Nesta vocação está a raiz mais profunda da dignidade humana. Cristo é a imagem perfeita de Deus. Apenas em Jesus o homem conhece o seu ser e a sublimidade da sua vocação (GS 22). Com o seu trabalho, mesmo em coisas pequenas, o homem continua a obra do Criador e contribui de modo especial para o cumprimento dos desígnios de Deus na história (GS 34). 6. Conclusão O magistério da Igreja foi fiel, ao longo da história, da doutrina herdada da Escritura. Frente a todo o sistema dualista defendeu e proclamou a unidade de Deus criador, a exclusão de toda a matéria pré-existente, a distinção entre Deus e o mundo, a absoluta liberdade de Deus ao criar. Condenou todo o monismo, determinismo, panteísmo. 24 IV – CRIAÇÃO: REFLEXÃO TEOLÓGICA 1. Criação livre a. Apresentação da questão Deus, nos seus actos ad intra (internos) actua necessariamente. O Pai necessariamente tem de gerar o Filho, e com a mesma necessidade tem de proceder do amor do Pai e do Filho o Espírito Santo. As processões em Deus são eternas, de tal maneira que sem elas não pode existir. A fé da Igreja defende que Deus criou o mundo por amor à sua própria bondade e que ama necessariamente desde toda a eternidade. Deduz-se daqui que Deus ama e cria o mundo necessariamente desde toda a eternidade? O tema tem grande importância para compreender a natureza do mundo, o seu sentido e a relação de Deus com as realidades criadas. Na hipótese de uma criação necessária as coisas continuariam contingentes, porque continuariam dependentes no seu ser do Criador. Mas menos contingentes, porque necessariamente teriam de existir e a transcendência de Deus ficaria como que rebaixada, já que Deus não poderia existir sem criação. Por outro lado, se o acto criador é necessário, são-no também todas as acções da criação, inclusivamente as dos homens, pelo que se teria de atribuir o pecado ao mesmo Deus. Também a acção imoral brotaria necessariamente do homem. Segundo esta hipótese, desapareceria a gratuidade da criação e, consequentemente da própria ordem sobrenatural... b. Liberdade do acto criador na Escritura As narrações do Génesis nada afirmam explicitamente da liberdade de Deus ao criar, mas apresentam Deus no princípio de tudo. Não se descreve a sua origem. Cria com a sua voz poderosa a partir de uma distância majestosa, que acentua desde o princípio a separação de Deus e do mundo. Toda a emanação e todo o panteísmo ficam descartados desde o princípio. A imagem de Deus criador é a de um Senhor absoluto, que faz o que quer. A criação pela palavra indica uma liberdade absoluta de Deus e, ao mesmo tempo, a sua transcendência e a autonomia do mundo. A palavra de Deus não é uma força da 25 natureza, mas um poder histórico, não é algo físico, mas intencional: uma manifestação livre, pessoal, soberana. A criação, o mundo e sobretudo o homem são obra desta palavra de Deus, são palavra de Deus e resposta a essa palavra. Na mesma direcção da liberdade do Criador apontam os textos que afirmam que a criação se ajusta a um plano da sabedoria divina. Onde há um plano há uma inteligência e vontade que o projectam e executam livremente. Na exaltação do único Deus verdadeiro frente aos deuses dos gentios, o autor do salmo 115 afirma: «o nosso Deus está nos céus, e tudo o que quer o realiza» (v. 3). Repete este mesmo sentimento o autor do salmo 135... O fundamento da espiritualidade do povo de Israel é a consciência que tem de terem sido escolhidos gratuita e livremente por Deus. Se a criação tivesse sido um acto necessário de Deus, todas as acções consequentes também o seriam, e já não se podia falar de uma predilecção de Deus pelo povo. O autor do livro da Sabedoria chega mesmo a afirmar que tudo o que existe se deve ao amor de Deus que lhe deu existência e o mantém na existência (Sab 11, 24-25). Esta liberdade com que a vontade divina pode dispor de tudo, indica que não está condicionada por nenhum atributo interno. São Paulo, na carta aos romanos exprime com os mesmos termos o chamamento à salvação (Rom 8, 30) e o chamamento do mundo à existência (Rom 4, 17). O Apóstolo identifica a vontade criadora com a vontade salvífica. c. Os Padres Confessam a liberdade de Deus na criação, quando afirmam que Deus fez tudo quanto quis e que pode destruí-lo com o seu poder. Ao defender a criação do nada frente a todo o dualismo da época, negavam também toda a coacção exterior em Deus, pois apenas Ele existia antes do mundo. A discussão com o arianismo ajudou a clarificar o conceito da liberdade de Deus. O Verbo não é criado, mas gerado desde toda a eternidade. O Pai não pode senão gerálo. O mundo é criado. A acção ad intra é necessária. A acção ad extra é livre. Pode não a realizar. O mundo existe porque Deus quer. O Verbo não pode não existir. Santo Atanásio afirma contra os arianos que quando Deus quer criar o que não existia delibera antes, mas quando gera o Verbo da sua própria natureza não faz antes nenhuma deliberação. A afirmação da liberdade de Deus ao criar, tanto de toda a coacção externa quer de toda a necessidade interna, foi repetida frequentemente na teologia dos Padres. 26 d. O Magistério Segue a mesma linha na defesa da liberdade de Deus ao criar. Uma referência para a Constituição dogmática Dei Filius do Concílio Vaticano I: afirma que Deus criou liberrimo consilio (com libérrimo desígnio) todas as coisas. E condena quem disser que Deus criou o mundo com a mesma necessidade com que se ama a si mesmo. e. Significado teológico Quando afirmamos que Deus é totalmente livre ao criar, afirmamos a dupla liberdade: a interior e a exterior. Quer dizer, nada existe fora de Deus que possa coagir à criação. Admitida a criação a partir do nada, é evidente que nada existe fora de Deus que o possa coagir. Nem mesmo a necessidade de se amar a si mesmo exige o acto criador. A criação livre é uma afirmação da transcendência de Deus. Aparece mais clara a distinção ente Deus e o mundo, o absoluto domínio por parte de Deus da matéria. Porque a criação é livre, é evidente que Deus não necessita deste mundo para nada. Ele basta-se a si mesmo. A sua ânsia de conhecer satisfaz-se em si mesmo, nas relações intra-trinitárias. A distinção entre Deus e o mundo, que flúi da criação livre, dessacraliza o mundo criado, mas não o desliga de Deus. As coisas receberam uma finalidade e uma existência concreta que lhes dá a sua própria autonomia como apresenta a GS. Para o cristão, acreditar na criação livre é acreditar no amor. É colocar no princípio da existência o amor infinito de Deus e, desse modo, o mundo inteiro fica imerso no amor. Todo o mundo é um dom. O mistério do mundo tem uma chave de interpretação que é o amor. O dogma da criação tem uma conexão de começo e plenitude com o dogma da nova criação. Deus cria por iniciativa própria, escolhe um povo em Abraão e recapitula-o em Cristo. A partir do amor da redenção, para o qual se encaminha a criação, se adivinha e entende o amor que preside a toda a obra da criação. Por isso, acreditar na criação livre é adoptar uma postura optimista no mundo. O cristão sabe-se amado, porque a criação é auto-doação de Deus no amor. A criação pede uma resposta ao crente. A aceitação alegre da vida como dom de Deus, e abandono na Providência, como entrega total de si mesmo. Confiar e acreditar, entregando-se ao amor. E ao mesmo tempo generosa colaboração no plano salvador de Deus. 27 2. Criação do nada a) Escritura Aparece mais explicitamente apenas no texto de 2Mac 7, 28. A criação do nada deriva da ideia da soberania absoluta de Deus, do conceito monoteísta, da liberdade do acto criador, do lugar que Cristo ocupa na criação. O povo de Israel compreende o domínio absoluto de Deus quando se olha como escolhido. Deus é o Senhor absoluto, todo-poderoso... e tudo neste contexto se percebe apenas com um Deus que não depende de nada, que cria do nada tudo o que existe. b) Tradição A fé da Igreja é constante e uniforme na profissão da criação ex nihilo. É um dado de fé. Deus não seria dono absoluto de tudo se não tivesse criado tudo do nada. O primeiro a dar testemunho desta fé é Hermas n’O Pastor: Antes de tudo, crê que existe um só Deus, que criou e organizou o universo, fazendo passar todas as coisas do nãoser para o ser (1, 1). Esta é a posição marcada da Tradição, mesmo que se reconheça em alguns Padres algumas expressões que parecem admitir a matéria eterna... de facto, alguns Apologetas, procurando conciliar a doutrina cristã com as filosofias da época, não deram conta da contradição entre o Deus criador de tudo e a matéria eterna. Isto acontece por exemplo em Justino que reflecte se a matéria informe foi criada por Deus... c) Magistério A criação do nada foi objecto de definição no IVº Concílio de Latrão e no Vaticano I (secudum totam suam substantiam). d) Conteúdo teológico Afirmar a criação do nada é afirmar que não há nenhuma matéria que seja anterior ao acto criador. Isto não quer dizer que a criação inteira, na sua forma actual, tenha brotado das mãos de Deus. A negação de qualquer substracto anterior refere-se ao ser das coisas, não à sua forma. Nada há que tenha a categoria de ser no mundo que não tenha sido criado por Deus. Mas não exclui a criação evolutiva: segundo a teoria evolucionista, as coisas vão aparecendo pelo aperfeiçoamento das inferiores às 28 superiores. Isto não significa aumento no ser, mas mudança de estrutura e forma. A criação evolutiva não se opõe à criação do nada, porque na evolução não aumenta o ser do mundo mas a sua perfeição. O conteúdo fundamental da criação ex nihilo ou secudum totam suam substantiam implica que tudo depende de Deus. Não dá lugar a nenhum dualismo. Como tudo provém de Deus, a criação é fundamentalmente boa, porque tudo responde ao projecto divino: é o refrão da narração sacerdotal: «E Deus viu que era bom». Também não há lugar para o monismo. A criação do nada leva a separar Deus do mundo, sem o desligar por completo. Nem Deus é o mundo, nem o mundo é Deus. Espírito e matéria não são Deus mas criação sua. A criação do nada, pela diferença que supõe entre criador e criatura, situa-nos perante o problema da imanência e transcendência de Deus. Deus está acima do mundo, mas ao mesmo tempo dentro dele. Não há nada no mundo criado que se escape à sua presença e acção. O mundo está em Deus. Deus é o ser supramundano que cria do nada e com plena liberdade. Mas, ao mesmo tempo, é o mais íntimo a todas as coisas que dele saíram... Criação do nada implica dependência total e absoluta de Deus. É este Deus que os salmistas descobriram, o Deus do discurso de Paulo no areópago, o Deus em quem Jesus nos convida a confiar. O Deus da contemplação mística que sustenta as criaturas e nelas opera. 3. A criação no tempo a) O problema O mundo, criado do nada e livremente por Deus, teve um começo ou existe desde toda a eternidade? Uma criação ab aeterno também seria contingente, porque continuaria a ter toda a sua razão de ser em Deus; do nada porque brotaria totalmente de Deus; e livre porque se deveria a uma determinação da vontade divina... b) Escritura São muitos os textos da Escritura que apontam para uma criação temporal. Houve um começo, um início absoluto deste mundo. Assim o sugere o texto de P (Gen 1, 1 berechit) com a ideia de um princípio absoluto, com a sua estrutura de uma criação de um menos para um mais que termina no descanso sabático: criação temporal e progressiva. Na mesma linha vão textos como Prov 8, 22 («antes que criasse coisa 29 alguma»), ou do salmo 90, 2 («Antes de surgirem as montanhas,antes de nascerem a terra e o mundo, desde sempre e para sempre Tu és Deus»). No NT, a expressão «Antes da constituição do mundo» (Ef 1, 4; Jo 17, 24), distingue notoriamente entre a eternidade de Deus e o mundo temporal. Jesus é anterior a Abraão (Jo 8, 58), a sua encarnação marca a plenitude dos tempos (Gal 4, 4), que terá um fim presidido pelo Filho do homem (Mt 24, 30), porque Ele é o alfa e o ómega, o primeiro e o último, princípio e fim (Ap 23, 13). A concepção linear da história, própria do NT, não se concebe com uma criação ab aeterno: a história é um caminho que termina com a apoteose do Ressuscitado e dos que com Ele lutaram até ao fim. c) Magistério Expressou-se solenemente sobre o assunto em duas ocasiões. Latrão IV (1215) e Vaticano I, onde se declara que a criação foi feita por Deus ab inicio temporis. No pressuposto que a criação é o primeiro acto na história da salvação, é impossível admitir uma matéria eterna. A criação é o começo de uma acção salvadora que se desenrola no tempo, numa história concreta que se dirige para Cristo, que é o novo e o último. Não haveria nada novo e último se o tempo fosse eterno. Na história da salvação há tempos de criação, pecado, redenção, da Igreja. Deus salva os homens numa sucessão de tempo que atinge a plenitude na encarnação. Nesta perspectiva histórico-salvífica parece existir um começo temporal. d) Possibilidade de uma matéria criada «ab aeterno» A filosofia pode demonstrar uma preferência pela criação temporal, mas as suas razões não vão além de provar a sua conveniência, não a sua necessidade. A ciência não resolve o problema. Os cientistas inclinam-se para assinalar a idade do mundo a partir de uma explosão inicial (big bang) que se deu num tempo impossível de fixar com precisão, entre 15.000 e 18.000 milhões de anos atrás. Mas, para a ciência é ainda impossível determinar o surgir da matéria... a ciência não tem resposta para a pergunta sobre o quando surgiu a matéria... Em teologia, continua de pé a questão. A criação ab aeterno não se opõe ao caracter contigente do criado. Também nessa hipótese, Deus seria o Senhor absoluto de tudo, porque tudo dependeria dele. A criatura seria eterna, mas uma eternidade distinta da de Deus: Deus é eterno na sua própria essência, a criatura o seria pela dependência de Deus. A fé fala do começo temporal deste mundo concreto, mas nada diz sobre a possibilidade de uma criação ab aeterno. 30 e) Como conceber a criação no tempo Temos sempre uma grande dificuldade em harmonizar a eternidade e o tempo... por exemplo, como é que Deus conhece o futuro, sobretudo no que depende da liberdade do homem, a relação entre graça e liberdade... O actuar de Deus não é análogo ao das criaturas e por isso é para nós mistério... Como conceber que num «momento» da eternidade, comece a existir o mundo? Esta dificuldade tem a sua origem no falso conceito ou imagem que re presenta a eternidade como um vazio onde se coloca o tempo real... Santo Agostinho afirma que o mundo não foi criado no tempo mas com o tempo. Criação no tempo significa que o mundo tem um determinado número de anos, mas não que Deus criou o mundo passado um determinado número de anos. O mundo não existiu sempre, mas tem uma duração determinada e concreta. Deus pode ter criado um outro mundo anterior a este. Nesse caso, não seria o nosso mundo, mas outro, diferente, com um tempo diferente. O nosso mundo tem um tempo real, que é uma sua propriedade intrínseca. Que o mundo tenha sido criado no tempo significa que não é infinito, eterno e imutável. Afirma-se simplesmente isto: o criado não é divino, mas mundano. f) Teologia do tempo O tempo para o cristão não é um círculo fechado, um eterno retorno, nem apenas a medida do movimento dos seres materiais... é a duração em que Deus se revela e comunica ao não-divino. Numa direcção linear e progressiva, o tempo revela o plano salvador escondido desde toda a eternidade no coração de Deus (DV 2ss). Mas, nem todas as partes do tempo têm o mesmo valor. Há momentos de especial importância: criação, escolha de Abraão, encarnação, morte e ressurreição de Cristo... Vivemos agora no tempo da Igreja, que é ao mesmo tempo de plenitude e de maturação. De já e ainda não. Plenitude, porque a encarnação de Cristo comunicou aos homens o definitivo, a possibilidade de participar na vida divina, que o cristão já possui em gérmen, mas em que espera a sua consumação plena. A vida do cristão é de esperança e de trabalho. Caminha para um ditoso futuro, que para ele se fez já presente na sua regeneração baptismal. O tempo é o âmbito em que a Igreja deve cristificar o mundo. Por isso, o nosso tempo é de misericórdia e de graça. Ao cristão compete um trabalho de transformação do mundo. Se para as pessoas profanas, o tempo é dinheiro, para o crente é eternidade. 31 A caducidade do tempo não cria no crente um sentimento de angústia ou desilusão: a figura deste mundo que passa desperta o seu espírito e aperfeiçoar o seu amor na esperança da transfiguração definitiva. 4. Criação continuada A criação de Deus não é pontual. O mundo não está criado de uma vez para sempre. A absoluta dependência da criatura em relação ao criador requer, da parte deste, uma continuação da acção inicial... a isto chamamos criação continuada. Nesta questão abarcam-se três conceitos tradicionais: conservação, concurso natural e providência. O primeiro refere-se à acção divina que mantém as coisas na existência. O segundo a colaboração de Deus nas operações das criaturas. O terceiro significa o plano salvífico de Deus que orienta os destinos do mundo. a) Conservação A criação do nada faz compreender a contingência do mundo criado, que não deixa de o ser quando começa a existir. Se a contingência, no começo, exige a acção criadora de Deus, que explique o salto do não ser para o ser, também a contingência no existir exige o influxo de Deus para que o que não tem razão de ser em si mesmo, encontre o apoio que o mantenha e não desapareça no nada. A criação será, portanto, acção conservadora ou criação continuada. São muitas as passagens da Escritura que falam desta acção conservadora de Deus. Recorde-se o Salmo 104, 29: «Se deles escondes o rosto, ficam perturbados;se lhes tiras o alento, morrem e voltam ao pó donde saíram». Também Sab 11, 24-26: «Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado. E como subsistiria uma coisa, se Tu a não quisesses? Ou como se conservaria, se não tivesse sido chamada por ti? Mas Tu poupas a todos, porque todos são teus, ó Senhor, que amas a vida!» O amor de Deus é actualidade que se manifesta e se revela em acção. A permanência das criaturas na existência é a prova mais palpável deste amor em acção. Tudo quanto existe, pelo simples facto de subsistir, evoca a acção criadora de Deus que o chamou à existência porque o quis, porque o amou... O NT chega a afirmar a consistência do mundo em Cristo (Heb 1, 3: «Este Filho, que é resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância e que tudo sustenta com a sua palavra poderosa, depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se à direita da Majestade nas alturas»). 32 A tradição primitiva da Igreja fez-se eco desta ideia incorporando-a nos símbolos da fé, ao expressar a fé no domínio absoluto de Deus. Deus pantocrator, que surge na tradução latina como omnitenens = o que mantém ou conserva todas as coisas... Deus que segura na sua mão o peso de todo o universo. b) Conservação activa ou concurso natural Seria um erro pensar a conservação apenas como algo que sustém o mundo. Deus conserva actuando juntamente com as coisas. Ele é o autor de todos os fenómenos da natureza... é um tema frequente na oração dos israelitas. Jesus partilha desta espiritualidade e a ela convida os seus discípulos (Mt 6, 25-34; Lc 12, 22-31). João justifica a cura ao Sábado feita por Jesus dizendo: «O meu Pai continua a realizar obras até agora, e Eu também continuo!» (Jo 5, 17). Os Padres concebem muitas vezes a criação como um processo continuado. Esta participação activa de Deus nas acções das criaturas é o que é chamado na teologia o concurso natural divino. Não é um tema fácil... não se trata de duas causas que concorrem num mesmo plano, com uma acção comum, para produzir um determinado efeito. Deus e a criatura não concorrem. Deus é a causa transcendente, a criatura a causa categorial, finita e limitada. Deus dá à criatura o ser e esta pode operar. A criatura opera com personalidade própria, em virtude da autonomia e das qualidades que lhe dá e sustenta o criador. No caso das acções livres, também a acção é toda de Deus e da criatura. Não se perde a liberdade por causa da presença actuante de Deus. É Ele que dá ao homem a liberdade de actuar livremente e ajuda, para que, conservando a sua independência, possa operar com plena responsabilidade. A liberdade divina é a causa transcendente que possibilita a liberdade da criatura. A visão evolucionista da criação vê-se complementada e clarificada com a ideia da criação continuada. Por sua vez, a teologia da criação recebe nova luz da concepção evolucionista do mundo, promovida pelas ciências, para compreender o sentido permanente da presença de Deus no ser e operar das coisas criadas. c) Providência A partir da experiência pessoal e colectiva do Deus fiel à aliança, os israelitas compreenderam a fidelidade de Deus a toda a criação. A ideia da conservação é uma 33 consequência da experiência da fidelidade de Deus. Por esse mesmo caminho descobre a teologia da providência: tudo é regido por Deus conforme os seus desígnios de salvação. Com esta certeza, o Povo sente-se protegido por Deus. O NT considera toda a criação a caminho para Cristo como centro do mundo e da história. A nossa eleição e recapitulação em Cristo é o fim do desígnio de salvação, escondido desde toda a eternidade em Deus e manifestado agora na plenitude dos tempos. Preside ao acto da criação e para ele se dirige toda a história. A primeira teologia cristã dá uma grande importância à providência, assim como o Magistério. Jesus sintetiza a teologia da providência nas seguintes palavras de Mt 6, 25-34 (v. 33: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo»). A providência, presente no já da história, tem uma projecção de futuro. É a dimensão escatológica da providência, factor que deve estar sempre presente no julgar da história e seus acontecimentos, sobretudo nos mais dolorosos da vida... Olhando para o futuro, duas verdades da nossa fé devem ajudar a avaliá-lo: 1) O cristão sabe que o Pai providente, pelo grande amor que tem, lhe concederá o que mais lhe convém. 2) Mas, ao mesmo tempo, desconhece os caminhos que conduzirão a esse fim. Caminhar na sombra e descobrir Deus no que aos nossos olhos não faz sentido, é a atitude do crente que caminha no claro – escuro da fé. Na teologia paulina, também os males entram na providência de Deus como meios que podem levar ao fim pretendido por Deus. E para atingir este fim, e isto é o mais importante, requere-se uma atitude de fé e confiança. Apenas quando há fé, que é aceitação desse destino enigmático, tudo, o bom e o mau, confluem para o bem salvífico de cada um dos homens. A providência não é uma segurança intra-mundanda ou intra-histórica, mas a certeza de que se cumprirá o plano salvador de Deus. Nesta perspectiva é também uma tarefa para o homem. Deus não faz tudo. Toda a apatia ou confiança excessiva, que leve à inactividade, é contraditória à providência. É o homem, com a sua inteligência, coração e mãos que tem de buscar o reino de Deus e torná-lo presente no mundo. A certeza na providência, que brotará da fé, dá-lhe segurança e ânimo para esta tarefa. A providência é intra-terrena, mas aponta para o além. 34 Também o mal entra na criação continuada. Porquê o mal moral? Na busca da resposta, estabelecem-se alguns princípios: 1) Deus não é o autor do mal moral. O concurso de Deus nas acções livres do homem não afecta o pecado como tal. O pecado é carência de ordenação recta ou privação do bem devido. Esta privação, que converte em pecado a acção material, não depende de Deus, mas da desordem que o homem introduz nas suas acções. 2) Deus tira dos males bem, pelo menos no sentido de que as infidelidades dos homens não são capazes de impedir que se realize o plano salvífico de Deus. Deus cumpre a sua promessa. O mal moral, o pecado, é uma manifestação da seriedade com que Deus toma a liberdade das suas criaturas. O pecado é um obstáculo ao dinamismo da criação, que se dirige à glória de Deus. Mas, ao mesmo tempo, o pecado é ocasião para manifestar a omnipotência e o amor infinito de Deus, que sabe superá-lo e convertê-lo em ocasião de revelação do seu amor pelos homens. O mal converte-se em tensão de perfeição, de vigilância, de impotência e de ardente súplica. O pecado, dimensão do homem histórico, revela o amor insondável do Criador que, fiel a si mesmo, salva o homem. 5. A finalidade da criação a) Estado da questão Conhecemos melhor uma coisa sabendo a sua finalidade... Deus é um ser livre e inteligente que age em virtude de alguma finalidade. Deus cria por amor a algum bem. Qual é esse bem por cujo amor Deus cria o mundo? b) Magistério Deste tema ocupou-se o concílio Vaticano I. A expressão «para manifestar a sua perfeição pelos bens que reparte com as criaturas» significa que Deus cria para comunicar a sua própria bondade. Na criação a manifestação da bondade divina realiza-se pela comunicação dessa mesma bondade. O mundo foi criado para manifestar a perfeição divina e comunicar a bondade divina às criaturas. O Concílio afirma que Deus não necessita do mundo. A criação é um acto do amor de Deus, que O leva a comunicar desinteressadamente a sua própria bondade 35 às criaturas e assim manifesta a sua perfeição divina. Por isso, o mundo é a manifestação da glória de Deus que se reflecte nas criaturas. O fim do acto criador é dar parte no amor de Deus e na sua glória. O fim do mundo é tomar parte nesse mesmo amor e glória. c) Escritura Com frequência os salmistas convidam a cantar a glória de Deus manifestada nas criaturas. A história está toda ela cheia da glória de Deus. Essa glória comunica-se ao homem... Os homens devem dar glória a Deus que conhecem pelas criaturas. Israel é o Povo escolhido para dar glória a Deus guardando os seus mandamentos. O NT faz eco destes ensinamentos. Mas a expressão «glória de Deus» adquire uma forte conotação cristológica: nele se revela a glória de Deus, que revela o Pai e realiza a salvação. Existe uma relação entre a glória de Deus como finalidade da criação e o cristocentrismo da mesma: tudo conduz a Cristo. Cristo é a suprema manifestação da glória de Deus porque é a suprema comunicação da bondade divina ao criado na natureza humana de Jesus, parte deste mundo. Ao mesmo tempo, Cristo é a suprema participação do criado no ser de Deus através da união hipostática. Em Cristo – Deus e homem – dá-se a suprema comunicação de Deus e a suprema participação da criatura. d) Reflexão final Há dois pontos que convém clarificar de princípio: 1. O mundo não tem a sua finalidade em si mesmo, mas em Deus, porque se Deus, ao criar, pretende como fim último o bem da criatura, faz-se de certo modo dependente dela, o que está em contradição com a transcendência de Deus. 2. Deus não beneficia em nada da criação, nem procura nada nela. A sua infinidade e felicidade intrínseca não permitem supor que busque alguma coisa fora de si mesmo. Quando se afirma que Deus cria para sua glória, não se deve entender a expressão como se Deus buscasse algo no não-divino que, de alguma forma, contribuísse para a sua perfeição. O problema da finalidade do mundo deve compreender-se a partir do cristocentrismo da criação. Deus, em si mesmo, é essencialmente diálogo de comunicação entre as três pessoas divinas. Essa mesma forma de ser, impulsiona-O 36 a sair de si mesmo para se comunicar ao não divino, ao mundo. Por isso, a criação inteira é autocomunicação de Deus, em virtude do seu amor. Deus comunica a sua bondade e, ao comunicá-la, manifesta-a. Um único amor: Deus ama-se a si mesmo e às coisas criadas por Ele. O amor a si mesmo não é um amor de contemplação narcisista, e o amor ao mundo não está motivado por qualquer interesse. Deus que ama o mundo com amor não de eros (que busca a própria felicidade no outro), mas de ágape (que comunica ao outro a própria felicidade, para o fazer feliz, sem procurar nada em troca). Neste processo de auto-comunicação, o homem ocupa um lugar excepcional entre todas as criaturas. Ele é o espaço de inteligência no mundo, é o espaço em que o amor comunicativo de Deus por ser acolhido mediante uma resposta livre. O homem é o ser que pode devolver a Deus a glória. Por isso é o centro e ápice da criação. A suprema auto-comunicação de Deus realiza-se na encarnação. Toda a vida de Jesus se converte em revelação e glorificação de Deus. E Cristo glorioso, ressuscitado, é o lugar do encontro do homem com Deus. Em Cristo torna-se possível a comunicação sobrenatural do amor de Deus ao homem e a participação deste no amor do Pai. Pela fé e pelo baptismo, o homem incorporado em Cristo, recebe a auto-comunicação sobrenatural de Deus e o próprio homem torna-se manifestação da glória de Deus. A glória de Deus é que o homem participe, pela graça, no ser de Deus. E isto é o que constitui também a felicidade do homem. Deste modo, coincidem a glória de Deus e o bem da criatura. A finalidade da criação não é algo distinto do ser de Deus, mas Deus não é mais feliz nem mais perfeito pelo facto do homem viver ou não da graça. O homem é que atinge a sua maturidade com essa participação de Deus em Cristo. Dizer que o mundo foi criado para glória de Deus, que caminha para Cristo e que a finalidade do homem é a salvação, coincide com a expressão de que Deus cria por amor a si mesmo para comunicar-se ao homem, sem buscar a sua própria felicidade. A salvação do homem é participar da vida divina comunicada em Cristo. O homem dá glória a Deus fazendo da sua vida um seguimento de Cristo. O pecado não é resposta ao amor comunicativo de Deus, mas busca egoísta de si mesmo, é privação da glória de Deus. Por isso, a criação se sente escravizada pelo pecado e anseia a sua libertação... A santidade cristã é o ponto de confluência no homem da glória de Deus e da felicidade ou perfeição da criatura. 37 V – O HOMEM – SAGRADA ESCRITURA 1. Antigo Testamento a. Vocabulário Para conhecer a antropologia dos livros do AT é preciso analisar os seguintes termos: nefes, basar, ruah, leb. Nefes Tem um múltiplo significado. Para compreender o significado de uma palavra hebraica é sempre preciso ter em conta o contexto. Segundo o contexto, significa boca (Is 5, 14), pescoço (Sal 105, 18), garganta (Prov 23, 2), alma (Ex 23, 9), vida (Prov 8, 35), pessoa (Prov 3, 22), pronome, ou seja, a pessoa concreta nos contextos citados, fazendo o papel de pronome pessoal (Gen 12, 13). Com este termo assinala-se o homem como ser necessitado, ansioso de vida. Pode equivaler a «homem necessitado». Basar Nunca se aplica esta palavra a Deus, mas aplica-se também aos animais. Indica claramente o que o homem tem de comum com eles. Significa: carne (Is 22, 13; Gen 2, 21); corpo (Num 8, 7), indicando toda a parte visível do homem; parentesco (Gen 2, 23; 37, 27), porque é aquilo que une os homens; debilidade (Sal 56, 5), caracteriza a vida humana como débil, caduca em si mesma. Significa não só a falta de força da criatura mortal, mas também a sua debilidade. Equivale a «homem efémero». Ruah Designa uma força natural, o vento, e atribui-se mais a Deus que aos homens e animais. Significa: vento como instrumento nas mãos de Deus (Ex 10, 13); alento: é o vento que dá vida (Zac 12, 1); força vital que potencia o homem com os dons de Deus (Is 11, 2); espírito como ser independente e invisível, diferente do ruah de Deus, mas submetido a Ele (2Re 19, 7); ânimo, ou disposição anímica do indivíduo (Prov 18, 14); força de vontade dada por Deus para empreende alguma tarefa (Jer 51, 11; Sal 51, 12.14). Equivale a «homem fortalecido». 38 Leb Traduz-se normalmente por coração e é o conceito antropológico mais frequente. Indica: coração como órgão corporal (1Sam 25, 37); sentimento: o coração é a sede dos sentimentos (Sal 13, 6); desejo (Sal 21, 3); razão: também lhe são atribuídas funções racionais (Prov 8, 5; 16, 23), tudo o que atribuímos à cabeça e ao cérebro; decisão, lugar das decisões (2Sam 7, 27; Prov 6, 18). Equivale a «homem capaz de razão». Estes termos não nos dão uma definição de homem. Assinalam diversos aspectos do seu ser. Neles compreendemos o homem na sua relação com o cosmos (basar), na sua abertura ao alto (nefes), na sua relação com Deus (ruah) e nas suas capacidades de decisão, racional e livre (leb). b. Relatos criacionistas P (sacerdotal): Gen 1, 26 – 2, 4a 1, 26. A primeira coisa que chama a tenção neste versículo é a ruptura do ritmo da narração. Aqui Deus parece entrar numa espécie de deliberação antes de criar... e é significativo o plural: «façamos»: resíduos mitológicos (deuses...), uma alusão à trindade, um plural majestático ou deliberativo?... Certamente que se trata de um realce: o homem é uma criatura especial. Isto mesmo se realça nas palavras: «imagem e semelhança». Com esta expressão se estabelece uma relação entre Deus e o homem que não fora estabelecido com as restantes criaturas. Ao afirmar que o homem é imagem de Deus destaca-se a relação essencial do ser humano com o Deus transcendente, porque é essencial à imagem a relação com o que representa: se se rompe essa relação, a imagem deixa de existir. Em que consiste essa imagem é um tema que levanta algumas divergências. No sentido literal, parece óbvio pelo que indicam as palavras que se lhe seguem: «para que domine...». o homem é imagem porque é que ocupa o lugar de Deus na criação. 1, 27. O verbo criar aparece repetido três vezes. Talvez para indicar a singularidade deste acto criador e a dignidade do homem. Fala-se também de duas formas de ser homem, e as duas são imagem de Deus: homem e mulher, masculino e feminino. Uma igualdade fundamental dos géneros nos quais Deus deposita o grande mistério da reprodução da vida humana. 39 1, 28. Dois aspectos são dignos de realce. Por um lado, a bênção de Deus que diz respeito à fecundidade depositada no casal: a eles se confia o papel de ser cooperadores de Deus na transmissão da vida. A sexualidade humana recebe a sua grandeza e dignidade neste mandato do Criador. A segunda parte do versículo acentua o domínio sobre todas as coisas. Este domínio relaciona-se com a ideia de imagem do versículo anterior. Aqui se fundamenta a atitude do homem como motor da transformação do mundo. Ele é o criador criado, que exerce o seu domínio pelo trabalho. 1, 29-31. Instaura-se um regime vegetariano, para homens e animais. Segundo alguns, imagem de uma «idade de ouro» em que homens e animais vivem em paz alimentando-se das plantas. A aprovação final por parte de Deus é mais completa que as anteriores. J (javista): Gen 2, 4b -25 A intenção do autor não é fazer uma repetição da criação do homem. A sua preocupação não é propriamente a criação mas o mal na criação. Como se explica o mal, procedendo tudo de Deus, omnipotente e bom? O sentido do texto é religioso, não é científico. Usa duas imagens para descrever a criação do homem no v. 7: modelação do corpo com pó da terra e o insuflar do sopro vital. Quanto ao pó, o certo é que o autor afirma que o homem é criatura de Deus feito com matéria frágil... O alento vital é, para os israelitas, o princípio da vida. A morte consiste no desaparecer deste alento: é de notar que não se fala dele na criação dos animais... seria algo exclusivo do homem, mas também não se pode afirmar que se possa identificar com a alma racional. A superioridade do homem em relação aos animais realça-se na narração: os animais são criados só da terra e estão ao serviço do homem; o homem domina-os e conheceos: dá-lhes o nome. O homem é amigo de deu, seu interlocutor, responsável pelas suas acções. O homem é, neste relato, um ser pessoal, com uma vocação e destino que não compartilha em absoluto com as demais criaturas. Elas são um marco da sua própria realização. Tudo é para o homem, menos o fruto da árvore proibida. 2, 18-25. A criação da mulher é precedida da dos animais. As duas narrações entrelaçam-se no tema da solidão de Adão. Deus cria Eva porque não é bom que o homem esteja só. 40 O sono de Adão indica uma acção misteriosa de Deus, que está para além daquilo que o homem pode conhecer: o mistério da vida é um mistério para o homem... A costela é carne e osso, de que é composto o homem. Por isso pode o homem reconhecer Eva como sua semelhante: mulher, tirada do homem. A criação da mulher é um hino aos direitos da mulher e da dignidade da pessoa humana. Toda esta narração tem como objectivo estabelecer a igualdade pessoal entre os sexos. Um tema que é representado na solidão de Adão: a sua tristeza e solidão desaparecem com Eva. Porque Eva é da mesma natureza de Adão, a sua presença desperta nele um amor tão grande que será capaz de abandonar pai e mãe para unir-se a ela num laço tão forte que formam uma só carne. Assim se cria o espaço vital para que Deus, mediante o matrimónio dos esposos, continue criando outros seres humanos. O matrimónio, união dos sexos no amor, é o santuário da vida humana. Resumindo: 1) Com estilos diferentes, e usando tradições antigas, ambas as narrações deixam claro que o homem é uma criatura de Deus, objecto de uma criação especial, da qual não participam as restantes criaturas. 2) Porque é criatura de Deus, tem para com ele uma relação especial de subordinação e dependência, porque é imagem e semelhança do seu criador. Esta dependência é acentuada no relato javista quando é colocado dentro do jardim, para que o cuide e cultive, respeitando a árvore da vida. 3) A sua posição, no final de P e como centro de tudo em J, revela que o homem é superior a todas as restantes criaturas, sem se pode dizer que seja dono delas: o Criador é o único dono, e o homem aquele que é colocado como seu representante no meio das criaturas. 4) Homem e mulher recebem de Deus o encargo de multiplicar-se e o amor mútuo constitui a fonte da vida humana. 5) A segunda narração destaca o aspecto dialogal do homem com Deus e com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que a providência e carinho especial de Deus para com ele. A proibição supõe um ser pessoal, responsável, capaz de fazer decisões importantes. 6) A dignidade da mulher e a sua igualdade com o homem são salientadas nas duas narrações, de uma maneira especial na segunda. 7) Não faz parte da intenção do autor descrever a matéria de que é feito o homem, nem o como dessa criação. O redactor final usou duas tradições anteriores que justapôs para expressar os seus ensinamentos. É claro que não 41 acolheu nenhuma como histórica, o que se compreende facilmente pelas discordâncias internas do texto final... 2. Novo Testamento Não é uma preocupação dos autores do NT a questão do homem em si mesmo, mas a sua relação com Deus. O pecado distanciou o homem do seu destino, e Cristo, com a sua morte e ressurreição, criou a nova situação na qual o homem, ajudado pela graça, pode sair do seu pecado e alcançar a felicidade eterna. O NT fala sobretudo do homem pecador salvo por Cristo. Para anunciar esta mensagem, os hagiógrafos usam termos que oferecem um caminho para a compreensão do homem. a. Escritos não paulinos Kardia Coração, designa o profundo do homem donde partem as decisões: Lc 6, 45. Ao coração se atribui a dureza em que se fecham os fariseus diante dos milagres de Jesus (Mc 3, 15), ou, no mesmo sentido, de todo o povo (Mt 13, 15). Psyché É frequente o uso deste vocábulo. O seu significado é muito variado, embora seja frequente traduzi-lo por “alma”. O seu significado mais próprio será “vida”. São claros neste aspecto os textos que se fala em ganhar ou perder a vida (Mt 10, 39). Em Ap 6, 9 é usado para falar a situação dos que morreram. É também designada como a sede dos sentimentos humanos, como em Jo 12, 27: «Agora a minha alma (psyché) está perturbada...». Cria um problema de interpretação o texto de Mt 10, 28: «Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena o corpo e a alma». Para alguns autores, este texto apresenta a composição dicotómica do homem própria do helenismo: alma e corpo contrapostos. Nesta interpretação, psyché seria a parte espiritual, oposta à parte material, soma. Nem todos aceitam esta interpretação: para alguns trata-se apenas da oposição entre o poder de Deus e o dos homens – Deus pode tirar ao homem a vida enviando-o para a morte eterna; o homem pode tirar a existência terrena. Sarx-pneuma O binómio frequente sarx-pneuma significa a contraposição entre a debilidade humana (sarx) e a força que Deus lhe concede pelo espírito (pneuma). Assim o adverte 42 Jesus no horto: «Vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é débil» (Mt 26, 41). Ao pneuma são atribuídas as atitudes do homem ou o seu princípio vital. b. Escritos paulinos A Paulo não lhe interessa fazer uma antropologia filosófica. O seu interesse está também, fundamentalmente, na relação do homem com Deus. O homem histórico é um ser necessitado de redenção. Por isso, a sua antropologia mais do que dizer o homem em si mesmo, procura apresentar as suas diversas relações com Deus. Os termos usados não indicam partes do homem, mas manifestam aspectos do homem completo, considerado a partir de diversas perspectivas. Soma Há indícios muito sérios de que nos escritos paulinos se encontra uma concepção dualista, ou seja, do homem composto de dois elementos: cf. 1Cor 5, 3, 7, 34; 2Cor 12, 2-3. com a palavra soma parece indicar o elemento exterior, sensível, tangível, constituído por membros, carne e osso: Rom 12, 4-5; 1Cor 12, 12-26; Gal 1, 16... Mas esta palavra indica muito mais: o homem total como organismo unificado, complexo e vivo, inclusivamente como pessoa, especialmente quando é o sujeito a quem acontece alguma coisa, ou é o objecto da sua própria acção: 1Cor 9, 27; Rom 6, 12-13; 8, 13; 12, 1. Sarx No sentido mais tipicamente paulino, designa o homem todo na sua existência natural, física, visível, débil, ligado à terra. Expressa a ideia da criatura natural, abandonada a si mesma. Sarx designa o homem inteiro dominado pelas tendências naturais e terrestres. Na antítese sarx – pneuma, sarx é o homem por contraposição a Deus, sujeito a tudo o que o separa de Deus: 1Cor 1, 29; Gal 5, 19-21. 43 VI – NATUREZA DO HOMEM: UNITÁRIA OU DUALISTA? Introdução A partir da sua própria experiência, o homem reconheceu em si mesmo uma dupla dimensão: a corporal, pela qual se une ao mundo que o rodeia e através do qual comunica com o mundo e com os outros homens, e a dimensão intelectual ou espiritual, pela qual se reconhece como algo distinto dessa função física e biológica. São as dimensões que formam a complexidade humana. Como conceber essas duas dimensões, e como explicar a sua relação para constituir o indivíduo humano como pessoa? Também a antropologia teológica aborda este tema do ponto de vista da fé. 1. Concepção hebraica do homem Na concepção hebraica do homem predomina uma visão sintética e totalitária. Concebe-se o homem como uma unidade muito próxima. Os semitas não distinguiam entre alma e corpo, como o fazia Platão, mas compreendiam-no numa unidade físicapsíquica. Por isso as afirmações antropológicas podem fazer-se de todo o homem ou de alguma das suas partes, abarcando a partir de uma das suas facetas a totalidade do homem, como se verificou na análise anterior dos termos utilizados. Discute-se se a concepção helenista não se faz presente em alguns dos últimos livros do AT, nomeadamente o livro da Sabedoria. Sab 8, 19-20; 9, 15 parecem indicar uma concepção dualista do homem. Os textos referentes à imortalidade do homem poderiam ser uma confirmação desta suspeita (2, 22; 3, 1-10; 4, 7 – 5, 23). Para alguns autores, estes textos poderiam reflectir a seguinte visão antropológica: a) o homem composto de corpo e alma; b) a alma imortal é perturbada pelo corpo; c) esta oposição soluciona-se com a morte e sobrevivência da alma; d) desconhece-se a fé na ressurreição. Para outros autores, estes textos não indicam uma concepção helenista, mas um ensaio de aproximação da mentalidade semita aos leitores helenistas. Mas a marca 44 seria fundamentalmente semita. Concluem que a antropologia deste livro é marcada por: a) uma concepção unitária do homem; b) a imortalidade é graça; c) esperança escatológica no juízo final e ressurreição; d) uma descrição obscura do estado posterior à morte. A antropologia dos autores do NT, como se conclui da terminologia analisada, segue a marca do AT. 2. Concepção grega do homem Ao falar da compreensão grega do homem centramo-nos na pitagórica-platónica, pela importância que teve na teologia. Predomina a visão dicotómica. As almas são preexistentes ao corpo e são introduzidas nele como castigo por terem cometido alguma falta. O corpo é uma prisão, e a redenção consiste em sair dele para voltar ao mundo da preexistência. Alma e corpo unem-se como a barca e o barqueiro. São duas substâncias distintas. A essência do homem está na alma espiritual, que é a sua parte mais importante. O corpo é a fonte do erro e do pecado. É discutível se esta visão penetrou nos livros mais tardios do AT, como vimos em relação a Sabedoria. Também o judaísmo se deixou influenciar por este pensamento que está presente no livro de Henoch, no livro dos Jubileus, no quarto dos Macabeus. Este pensamento chegou mesmo a penetrar nos círculos de Qumrán. 3. Tradição A concepção antropológica na teologia não foi uniforme ao longo dos séculos, uma vez que os teólogos foram sofrendo a influência das diversas correntes de pensamento com as quais foram dialogando. O início da história da Igreja está marcado pela luta com os gnósticos. Os Padres Apologetas partem da noção do homem como imagem e semelhança de Deus e realçam o valor do corpo humano, frente à visão depreciativa do gnosticismo. Na configuração do corpo, e não da alma, radica o específico humano. A carne, e não a alma, é que está destinada à vida no Espírito. O plano de Deus é essencialmente deificar o corpo, aquilo pelo qual o homem é homem. Justino afirma que Deus, criador de tudo, formou o homem do pó da terra e nele insuflou a alma, que não é mortal por sua natureza mas por desígnio divino: se Deus retirasse o espírito da alma esta deixaria de existir. O mistério e o valor do homem está 45 não seu corpo formado por Deus mas no elemento que vivifica a alma, a que Justino chama pneuma ou logos. O homem, além de corpo e alma, é constituído por uma participação do Logos-Espírito que o capacita para o caminho de divinização. O homem formado à imagem de Deus é o carnal. Cristo é modelo para o homem, que se deverá assemelhar paulatinamente a Deus, porque o destino do humilde pó é a convivência com Deus, mediante o exercício da liberdade que permite ao homem inserir-se no plano salvador de Deus. Para Justino, as almas não vão para o céu senão na ressurreição da carne. Ireneo aprova a definição do homem como composto de alma e corpo. O corpo foi formado pelas mãos de Deus que são o Filho e o Espírito. Não bastam o corpo e a alma para ter o homem perfeito, mas deve acrescentar-se o Espírito que é opera a salvação da carne: «São três as realidades que constam do homem perfeito: a carne, a alma e o Espírito. Uma delas é a que salva e configura, que é o Espírito; outra é a que é unida e conformada, que é a carne; e a que há entre estas duas, que é a alma; a qual, algumas vezes, quando segue o Espírito, é elevada por ele, mas algumas vezes, quando está de acordo com a carne, cai nos desejos terrenos» (Adv. Haer. V, 8, 2). O homem criado à imagem de Deus é o homem carnal. A sua imagem é o Verbo incarnado. Por isso, até aparecer o Verbo feito carne, não se podia compreender como era a imagem a cuja semelhança o homem tinha sido criado. Tertuliano admite que o homem é composto de alma e corpo. O específico é o corpo, que foi a primeira coisa a ser criada por Deus, e pelo qual se diferencia dos anjos. Nos autores do século II predomina uma antropologia baseada na Escritura. As reflexões baseiam-se na palavra revelada, e não em conceitos filosóficos. Encontra-se uma forte oposição aos gnósticos, por isso se insiste no corpo e na ressurreição da carne. A salvação do corpo demonstra a grandeza e a omnipotência de Deus. Entre os Padres alexandrinos torna-se presente a concepção dualista do homem. Para Clemente, a alma tem mais dignidade que o corpo. O homem é semelhança de Deus no nous, na parte racional, a que Clemente chama «o homem interior». A alma é o que constitui propriamente o homem: «A alma é considerada o melhor do homem, o corpo o pior, mas nem a alma é por natureza o bom, nem o corpo o mal». O divino no homem é o Espírito que Deus concede aos que acreditam em Cristo. Na linha de Clemente, Orígenes afirma que a alma, dotada de liberdade, é o núcleo e a essência do homem. As almas são criadas anteriormente e infundidas no corpo. Por causa do seu pecado, são castigadas e encerradas na matéria. A alma tem de ser 46 libertada do corpo para ser feliz. Para Orígenes, o pecado original consiste no pecado que as almas contraem antes de entrar no corpo. Lactâncio defende que a alma procede directamente de Deus. O corpo apenas indirectamente. Por isso a alma é superior ao corpo. Cada alma individual é criada imediatamente por Deus no momento da concepção do indivíduo humano. Por isso, ele é considerado o pai do criacionismo. Sem deixar completamente de lado as ideias do maniqueísmo, Santo Agostinho segue também a concepção dualista do homem. A alma é a parte principal pela sua maior proximidade com Deus, capaz de contemplar a Deus, enquanto o corpo é a fonte do pecado. A unidade do corpo e da alma é mais funcional que substancial. A tarefa da alma é dominar o corpo e usá-lo como instrumento. Esta concepção neoplatónica agostiniana continuou no seu essencial na escolástica primitiva. Esta concepção só viria a sofrer um golpe com São Tomás de Aquino, que redescobre o pensamento filosófico de Aristóteles. Aristóteles distinguia entre espírito (nous), a capacidade reflexiva e alma ou princípio de vida. O Espírito é divino, vem de fora e não mostra nenhuma conexão com o homem na sua actividade. São Tomás concebeu a alma individual e pessoal como a única forma do corpo. Ou seja: a) unidade radical e íntima do composto humano formado de alma e corpo; b) o corpo não é inferior à alma e pior que ela, não é uma prisão ou um instrumento dela; c) da corporalidade surge a dimensão social e histórica do homem. Pelo corpo, cada homem se individualiza e ao mesmo tempo relaciona-se com os outros. Esta solução de São Tomás será aceite pela Igreja no concílio de Vienne (1311-1312). Esta passagem pela história mostra a variedade de concepções antropológicas de que a teologia se serviu para pensar e transmitir a mensagem da fé. Todas são válidas desde que não sejam contrárias à verdade professada pela Igreja, como por exemplo a teoria de Orígenes da preexistência das almas... Demonstra que o caminho é longo e feito em diálogo com o pensamento e culturas circundantes... 4. Magistério São muitas as intervenções do Magistério sobre estas questões ao longo da história. Foram condenados os erros de Orígenes, o concílio provincial de Braga (561) condena que a alma seja parte da essência divina, o IV concílio de Latrão afirma a composição do homem em corpo e espírito. Afirma-se que a alma é individual, uma para cada 47 homem, única, não várias em cada indivíduo, forma única do corpo, espiritual, simples, substancial e imortal. Que a alma é criada imediatamente por Deus. Tem especial relevo a doutrina do concílio de Vienne (França - 1311-1312) que afirma a união perfeita entre o espírito e a matéria. Mas vamos centrar-nos apenas no Concílio Vaticano II. O Concílio Vaticano II dedica o cap. I da 1ª parte da constituição Gaudium et Spes a explicar a «dignidade da pessoa humana». Seguindo de perto a Escritura, começa por afirmar que o homem é o «centro e o termo» de tudo quanto existe sobre a terra. Criado à imagem de Deus, é o «senhor de todas as criaturas terrenas», e pela sua natureza é um ser social que tem necessariamente de se relacionar com outros para o seu próprio desenvolvimento pessoal (12). O pecado produz uma divisão interna no homem que converte a sua vida numa luta entre o bem e o mal da qual nos liberta Cristo (13). Pela sua união de corpo e alma, é a síntese do universo material, que alcança o seu termo no homem. O homem deve honrar o seu corpo, superior ao universo material. Afirmar a espiritualidade e imortalidade da alma é tocar a verdade mais profunda da realidade (14). É a sua inteligência que o situa acima do universo material (15), a sua consciência moral (16) e a sua liberdade (17). A maior razão da dignidade humana consiste na sua vocação à união com Deus (19). Este grande mistério do homem só se pode esclarecer no mistério do Verbo incarnado, porque Cristo «revela o homem a si mesmo e descobrelhe a sua vocação sublime» (22). No Catecismo da Igreja Católica, este tema é apresentado nos números 355-366. o homem criado à imagem e semelhança de Deus, é chamado a participar pelo conhecimento e pelo amor na vida de Deus (355-356). É uma pessoa capaz de entrar em comunhão com outras pessoas e estabelecer uma aliança com Deus (357). Tudo foi criado para o homem (358). O seu mistério só se esclarece no mistério do Verbo incarnado (359). O género humano forma uma unidade pela sua comunidade de origem, que o leva à solidariedade e fraternidade (360-361). A pessoa humana é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual (362). A alma designa o princípio espiritual no homem (363). Também o corpo participa na dignidade da «imagem de Deus» (364). “A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como «forma» do corpo; quer dizer, é graças à alma espiritual que o corpo, constituído de matéria, é um corpo humano e vivo. No homem, o espírito e a matéria não são duas naturezas unidas, mas a sua união forma uma única natureza” (365). Cada alma 48 espiritual, criada imediatamente por Deus, é imortal e não morre quando se separa do corpo pela morte (366). O Catecismo recolhe a tradição da Igreja e incorpora a antropologia do Vaticano II. 5. Conclusão Descobre-se um fio condutor que parte das Escrituras e chega aos nossos dias. O homem, criado por Deus, é senhor, mesmo que não absoluto, de toda a criação. Na sua dupla dimensão, material e espiritual, constitui uma união tão íntima que a alma é considerada como forma do corpo. A alma espiritual sobrevive à morte. O homem é um ser pessoal, capaz de se relacionar com os outros e estabelecer uma aliança com Deus. Ao expor esta doutrina sobre o homem, o Magistério expressou-se em termos claramente de sabor hilemorfista, fundada na filosofia aristotélica da matéria e forma. Não significa que se assuma a filosofia que está subjacente... O homem não “tem” uma alma e um corpo, mas “é” alma e corpo. E, na medida em que ambos são corpo e alma do homem, ele é uno; essa unidade é o aspecto principal. Apenas a partir desta unidade é possível a distinção entre as duas dimensões, momentos, nunca partes, do seu ser. O homem é corpo, ou seja, existe no espaço e no tempo, é parte deste cosmos, encaminha-se para a morte; é alma, isto é, transcende os condicionalismos deste mundo, é imortal, e, em última análise, tudo isto tem sentido porque o homem é ser para Deus, é radicalmente relacionado a Ele. 49 VII – O HOMEM, IMAGEM DE DEUS Com o ser imagem de Deus não se expressa nenhuma qualidade do homem, afirma-se mais que isso a determinação estrutural do homem. 1. Antigo Testamento a) Gen 1, 26 A singular criação do homem de P – sacerdotal, apresenta o homem como a única criatura criada à «imagem e semelhança» de Deus. Muitas interpretações têm sido feitas deste binómio: postura erecta do homem, a sua alma espiritual, a intersubjectividade, que se manifesta na sexualidade, o domínio sobre a criação, a totalidade do ser humano... No contexto imediato, parece estabelecer uma relação entre a imagem e semelhança e o domínio que o homem tem de exercer sobre toda a terra. Era costume, no oriente, que o soberano mandasse construir imagens suas nas várias províncias do seu império como sinal da sua presença e soberania sobre todos os habitantes... assim o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, que recebe o encargo de dominar a terra. A expressão indica uma clara distinção entre o homem e Deus, ao mesmo tempo que exprime a semelhança. O homem não é Deus. Uma coisa é a imagem, outra aquilo de que é imagem, o real que é representado. Por outro lado, o homem tem uma parecença com Deus que mais nenhuma criatura tem. Ao afirmar esta imagem e semelhança, afirma-se quer a transcendência quer a imanência de Deus na existência humana. João Paulo II comenta o texto J a partir do tema do homem como imagem de Deus: “A narrativa da criação do homem, no capítulo primeiro afirma, desde o princípio e directamente, que o homem foi criado à imagem de Deus enquanto macho e fêmea. A narrativa do capítulo segundo, pelo contrário, não fala da «imagem de Deus»; mas revela, do modo que lhe é próprio, que a completa e definitiva criação do «homem» (submetido primeiramente à experiência da solidão original) se exprime em dar vida àquela «communio personarum» que o homem e a mulher formam. Deste modo, a narrativa javista adapta-se ao 50 conteúdo da primeira narrativa. Se, vice-versa, queremos tirar também da narrativa do texto javista o conceito de «imagem de Deus», podemos então deduzir que o homem se tornou «imagem e semelhança» de Deus não só mediante a própria humanidade, mas ainda mediante a comunhão das pessoas, que o homem e a mulher formam desde o princípio. A função da imagem está em espelhar aquele que é o modelo, reproduzir o seu protótipo. O homem torna-se imagem de Deus não tanto no momento da solidão quanto no momento da comunhão. Ele, de facto, é desde «o princípio» não só imagem em que se espelha a solidão duma Pessoa que governa o mundo, mas também e essencialmente, imagem duma imperscrutável comunhão divina de Pessoas.” JOÃO PAULO II, Mediante a comunhão das pessoas o homem torna-se imagem de Deus, Audiência geral de Quarta-feira, 14 de Novembro de 1979, nº 3 b) Sir 17, 1-12 O autor do Eclesiástico (Ben Sira) vê no homem, criado da terra à imagem de Deus, como o representante (substituto) que tem domínio sobre todas as coisas, poder concedido pelo próprio Criador, dotado de inteligência e língua, olhos, ouvidos e coração para pensar, com um saber e inteligência capaz de conhecer o bem e o mal. Neste comentário a Gen une-se a dimensão histórica e ontológica da imagem: o agir do homem na criação e as qualidades essenciais do homem que, como ser pessoal, fazem dele o reflexo do ser pessoal de Deus. c) Sab 2, 23 Também o autor do livro da Sabedoria usa o tema da imagem, no sentido da imortalidade: o homem foi criado para a imortalidade, e por isso Deus o fez à sua imagem. 2. Novo Testamento a) 1 Cor 11, 7; Tiago 3, 9 Um primeiro conjunto de textos refere-se ao homem enquanto imagem de Deus na ordem natural. O NT insiste mais na afirmação da imagem sobrenatural pela incorporação do homem em Cristo. São Paulo é quem mais trata deste tema. 51 b) Col 1, 15; 2 Cor 4, 4; Heb 1, 3 Um segundo grupo de textos apresenta Cristo como a imagem perfeita de Deus. Ele é a autêntica imagem numa unidade perfeita da natureza com o Pai. O destino do cristão é reproduzir esta imagem de Deus (Rom 8, 29). O pecado deteriorou esta imagem, e Cristo restitui-lha com novo esplendor. Nele voltamos a encontrar o verdadeiro rosto de Deus. Contemplando Cristo e seguindo o seu exemplo, o homem pode chegar à meta da sua vida: ser imagem do Filho. Para que tal aconteça, terá de despir-se do homem velho e seguir a Cristo com fidelidade (2Cor 3, 18; Col 3, 9-10; Ef 4, 20-24). A imagem de Deus não se recebe de Deus de uma vez para sempre, de tal maneira que permaneça no homem perfeita e intocável, nem na primeira, nem na segunda criação, pelo baptismo. Esta imagem pode ser aperfeiçoada cada dia. E o último retoque, recebe-o na parusía. Para isso o cristão tem a fé em Cristo que o leva a purificar cada dia o espelho da sua alma para que nele brilhe o esplendor da glória de Deus, com a maior perfeição possível. À luz do NT, a expressão de Génesis adquire um significado mais profundo. O homem foi criado à imagem de Deus. Cristo torna visível a imagem do Pai, porque ele é a sua imagem mais perfeita. Por isso, Cristo explica o sentido mais profundo da afirmação do Génesis: a partir do NT pode afirmar-se que o homem foi criado à imagem de Cristo. Também se pode acrescentar, a partir da teologia paulina, que ser imagem de Deus é não apenas a qualidade mais importante do ser humano, mas também uma tarefa. Porque fomos destinados a reproduzir a imagem de Cristo. Neste sentido, Cristo revela ao homem a sua própria dignidade e converte-se em caminho para todo o homem que quer atingir o seu próprio destino (GS 22). 3. Padres O tema da imagem foi muito frequente na reflexão teológica dos Padres, sobretudo ao comentar o texto de Gen 1, 26. Nesta época a reflexão teológica está muito influenciada pela filosofia de Platão e do filósofo judeu Fílon, também este de influência platónica. Para Platão, as ideias são modelos divinos, cuja realização e cópia são as coisas materiais. A alma humana pertence ao mundo das ideias. Com a reflexão filosófica, o homem adquire a consciência da sua origem divina e actua em consequência disso, ou seja, inspirando-se no mundo das ideias, e assim recupera a sua semelhança com Deus e a sua felicidade. 52 Para Fílon, a imagem de Deus está na alma, não no corpo. A alma é imagem do Logos na sua invisibilidade, incompreensibilidade e familiaridade com o mundo. A semelhança impressa na alma com a criação não se perdeu com o pecado. Apenas cessou a familiaridade com o mundo. Sinal dessa permanência da imagem é o domínio do homem sobre o mundo. Clemente de Alexandria Distingue três classes de imagens de Deus: o Verbo, o cristão e o homem. O homem é imagem enquanto faz o bem e exercita o domínio sobre as coisas. O cristão é imagem mais perfeita no conhecimento e no amor. Orígenes O homem é a sua alma, dotada de liberdade, porque apenas ela pode ser imagem de Deus. Distingue as duas criações: Gen 1, 26 narra a criação do homem ideal, criado à imagem e semelhança de Deus; Gen 2, 7 narra a criação do homem caído. Para ele, a nossa principal substância foi-nos dada enquanto criados à imagem de Deus, não aquela que nos vem da caída pelo corpo que recebemos, formado do pó da terra. A imagem foi dada ao homem na criação; a semelhança tem de se conseguir pela imitação de Deus. Dentro da alma, é na mente (nous) que se realiza a imagem de Deus. A imagem e semelhança da qual o homem foi criado foi de Jesus Cristo: por isso, na imitação de Cristo está o caminho para chegar à perfeição da imagem. Ireneu Imagem de Deus é o Filho. O homem é imagem da imagem de Deus. Frente aos gnósticos que depreciam a matéria, paras Ireneu a imagem de Deus está também no corpo. Todo o homem é imagem de Deus. Cristo é a imagem perfeita do homem. O modelo é a carne gloriosa de Cristo. A imagem é dada ao homem na criação; a semelhança tem de se adquirir através de uma assimilação progressiva. Agostinho Vê em todas as coisas semelhanças de Deus, com a sua metafísica da participação e exemplaridade segundo a qual tudo está feito conforme a um modelo supremo que é Deus. Mas nem todas as coisas são imagens. O que constitui essencialmente a imagem é a alma e, mais concretamente, a mente. Distingue dois aspectos da mente: inferior, ou seja, a mente que se dirige às coisas deste mundo e guia o homem nas decisões mais práticas; e a superior, que se dirige a Deus. A imagem está na segunda, porque apenas ela é incorruptível, conhece a Deus, invoca-O, ama-O, está em comunicação 53 com Ele. Esta imagem de Deus ficou deformada pelo pecado, mas Deus tornou possível a sua restauração por Cristo. Esta breve passagem por alguns dos Padres da Igreja deixa entender a importância e o conteúdo antropológico essencial que, na teologia dos primeiros séculos, se encerrava na consideração do homem como imagem de Deus. O comentário ao livro dos Génesis era a ocasião mais propícia para abordar esta questão. Os caminhos traçados pelos Padres foram continuados pelos teólogos posteriores... Damos um salto até à doutrina do Concílio Vaticano II. Concílio Vaticano II Não trata directamente o tema, mas faz eco dele na Gaudium et Spes. O homem é imagem de Deus enquanto é capaz de conhecer e amar a Deus, e no seu domínio sobre o mundo (12). A ele compete, por ser imagem, construir o mundo em colaboração com o Criador (34). Nesta característica fundamental do homem está o fundamento da dignidade humana, sem distinção de raças e povos. Todo o homem, por ser imagem de Deus é objecto de direitos e deveres, que devem ser tidos em conta por todos os seus semelhantes. O homem aparece diante dos seus semelhantes como algo sagrado (34). Esta imagem foi afectada pelo pecado. Ficou diminuída. Cristo, imagem perfeita do Pai e do homem, restaurou o que tinha sido apagado ou debilitado pelo pecado (22). 4. Reflexão final A condição humana de ser imagem de Deus é considerada como o centro de toda a antropologia cristã. A partir dela se podem estruturar todas as verdades que a teologia afirma sobre o homem, quer na dimensão vertical do homem, na sua relação com Deus, quer na sua dimensão horizontal, nas sua relação com os outros homens e com o mundo. A perfeição da imagem, no seguimento de Cristo, revela a dimensão histórica do homem, na qual cada um tem de realizar a grande tarefa da sua vida. Ser imagem de Deus é, no homem, mais que uma qualidade, a sua determinação estrutural. Todo o homem, enquanto pessoa, é imagem de Deus. Tem, desde o mais profundo do seu ser, uma referência a Deus como fundamento e figura da sua existência. Aberto ao mundo e ao Absoluto, o homem tem uma predisposição radical para estabelecer o diálogo com esse Absoluto, que se lhe revela na própria criação. A sua capacidade de resposta a essa palavra de Deus na criação, faz do homem um «tu» frente a Deus, a quem o próprio Deus se quer comunicar e fazer feliz. 54 A semelhança do homem com Deus aponta para essa plenitude de vida e de imagem que lhe é comunicada por Cristo. O Verbo é quem está diante do Pai e, por isso, é imagem perfeita, ao dar-lhe a resposta completa nele se reflecte a essência divina no seu próprio ser. Como homem Jesus declara-se como o obediente, que se volta para o Pai e cumpre em tudo a sua vontade (Jo 4, 34). Por isso, Cristo revela a grandeza do homem e é o caminho para chegar a esse mesma grandeza. No seu conhecimento e seguimento consegue-se que o reflexo de Deus seja o mais perfeito possível em cada um dos homens. 55 VIII – O HOMEM COMO P ESSOA E SER SOCIAL 1. O homem como pessoa A pessoa é um ser tão complexo que se torna praticamente impossível defini-lo. Apesar das muitas tentativas da filosofia e da teologia, não se conseguiu ainda uma definição aceite por todos. «A pessoa é o mistério mais profundo, pois escapa a toda a compreensão: quando nos aproximamos dela com a intenção de a objectivar e contemplar, desaparece da nossa vista. Quando a queremos tomá-la como objecto, deixa precisamente de ser pessoa. A pessoa nunca se entenderá isolada, mas em comunicação criadora e amorosa com outras pessoas» (Schtz-R. Sarach) Sem procurar uma definição, centramo-nos na apresentação de algumas características que aparecem como elementos constitutivos da pessoa. A noção de pessoa nasce como auxílio nas disputas teológicas sobre a Trindade e a Cristologia. Tendo sido posto de parte o modelo de Sabélio (segundo o qual a única divisão que havia da Trindade era de actividade ou modos – mas teria uma só substância e uma só pessoa, que se manifesta de formas diversas consoante as necessidades), e sendo afirmada a consubstancialidade do Verbo, era necessário explicar como podia manter-se o único Deus com a trindade de pessoas realmente distintas entre si. A solução passou pela distinção de dois termos que, na sua origem, teriam significados semelhantes: ousía e hypóstasis. Hipóstasis começa a ser usado em linguagem trinitária com o sentido de persona, e foi depois traduzido por este termo latino, para designar cada um dos três que são um único Deus. A fórmula era: mia ousía, treis hypostáseis, uma natureza, três pessoas. Não há nos Padres uma noção de pessoa. Teremos de esperar pela Idade Média para encontrar a primeira definição. Boécio (480-524) é o seu autor: «naturae rationalis individua substantia» - substância individual de natureza racional. Afirma o substancial da pessoa, mas não a sua comunicabilidade. As pessoas divinas constituem-se precisamente pela relação que existe entre elas. A relação é um elemento constitutivo da pessoa. Foi nessa perspectiva de abrir a definição de Boécio à comunicabilidade que surgiram muitas outras definições... 56 Uma consequência de todos estes debates é que, na pessoa, se têm de incluir dois aspectos: uma realidade ontológica que se possui a si mesma, e que ao mesmo tempo entre em diálogo com outros seres e se comunica com eles. Dar-se e receber são características da pessoa. Há pessoas unicamente onde o ser disponha de si mesmo, não seja possuído por nenhuma outra instância, mas se pertença a si mesmo. E nessa pertença, capaz de relação. A filosofia procurou, ao longo dos tempos, criar uma definição de pessoa consoante a linha de pensamento... o problema continua em aberto. A Escritura não possui uma definição de pessoa, nem fala do homem a partir deste conceito. Mas apresenta-o como o ser que se distingue de todos os outros seres que estão à sua volta, pela posse de algumas características que constituem a pessoa humana. O homem do Javista é um ser responsável pelos seus actos numa tríplice relação: de dependência perante Deus, em igualdade perante os outros homens, de domínio diante do mundo e das coisas criadas. Toda a história da Salvação caminha sobre duas linhas: o pecado do homem e o empenho de Deus para salvá-lo. Mas a salvação não é nunca uma imposição divina, mas oferta ou chamamento, que o homem deve aceitar livremente para que se atinja o projecto salvador de Deus. Se por pessoa entendemos o ser inteligente que pode dispor de si mesmo, é evidente que o ser humano deve considerar-se como pessoa, e como tal foi reconhecido na revelação cristã. 2. O homem como ser social O homem como pessoa aparece já na sua dimensão social. A dependência do homem do seu contexto é manifesta. Tanto pelo seu corpo como pelo seu espírito está tão intrinsecamente relacionado com o mundo que não poderia subsistir sem essa relação. O seu corpo é fruto de uma longa gestação no seio materno. Depois, continua dependente dos cuidados maternos, e ao longo da sua vida continua a necessitar das coisas criadas para o seu des envolvimento biológico. A sua dimensão espiritual necessita da sociedade como de um novo seio materno para a formação da sua personalidade. É na sociedade que o homem participa da cultura do seu tempo, mediante a qual entra nos dinamismos da história. A cultura é crucial para 57 a formação da sua personalidade. Como por osmose, todo o ser humano recebe uma rica herança dos que o precederam. Torna seus os avanços da ciência, beneficia das aquisições do pensamento e goza das manifestações artísticas criadas no passado. Na ordem sobrenatural, o homem está dentro de uma história da salvação, idealizada por Deus desde toda a eternidade. A relação de Deus com cada homem é pessoal e comunitária. A fé é a resposta pessoal do homem ao chamamento de Deus. Deus relaciona-se com cada homem, mas dentro de uma comunidade. O destino do homem é participar da mesma vida de Deus em comunhão com os seus semelhantes. A Escritura reflecte este aspecto social do homem de forma abundante. O Javista sublinha fortemente a relação do homem com Deus, com os semelhantes e com o mundo. A solidão de Adão, no meio da exuberância do jardim, é uma bela expressão da sociabilidade. A eleição do povo como sinal do amor gratuito de Deus e a pertença a Ele como garantia de salvação são manifestações eloquentes da solidariedade humana no plano de salvação. Há um conceito no AT que expressa intensamente a solidariedade entre os homens: a personalidade corporativa. A união entre os membros que formam o grupo é tão estreita que o pecado ou o mérito de um deles tem repercussões para o bem ou para o mal de todos os outros. No NT não estão ausentes estas ideias do AT. Pecado e salvação são incompreensíveis sem esta solidariedade entre Adão e Cristo. Cristo não seria salvador se os homens não tivessem uma comunhão com Ele. A Igreja, sacramento universal de salvação, é o novo Israel, a comunhão dos filhos de Deus, no qual fica incorporado o crente pelo baptismo. A união entre os seus membros é tão perfeita que São Paulo lhe chama o Corpo Místico de Cristo (Rom 12, 5; 1 Cor 12, 27) O Vaticano II recolhe a doutrina tradicional e fá-la sua. Na LG 9 declara: «aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente». E na GS 12 interpreta a criação de Adão e Eva como sinas desta sociabilidade: «Deus, porém, não criou o homem sozinho: desde o princípio criou-os «varão e mulher (Gén. 1,27); e a sua união constitui a primeira forma de comunhão 58 entre pessoas. Pois o homem, por sua própria natureza, é um ser social, que não pode viver nem desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os outros». A vocação do homem é formar uma só família, em que os homens se tratem por irmãos. Por isso, o mandamento do amor é o mais importante. Esta é a aspiração que está no mais profundo do coração humano... A união entre os homens deve assemelhar-se àquela que mantém entre si as pessoas divinas (GS 24). O desenvolvimento da pessoa e o desenvolvimento da sociedade estão intimamente relacionados. Não existe um sem o outro: «A natureza social do homem torna claro que o progresso da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade estão em mútua dependência. Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício ao homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria vocação, graças ao contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo com seus irmãos» (GS 25) Esta interdependência entre indivíduos e comunidade traz consigo o empenho por procurar o bem comum e a construção de uma sociedade na qual cada pessoa tenha os meios necessários para realizar a sua própria vocação (GS 27). O Concílio sublinha de seguida as consequências práticas que derivam da solidariedade: amor pelos adversários, igualdade entre os homens, superação da ética individualista, responsabilidade e participação. Encerra o capítulo com o recordar do sentido social da vocação humana, que se aperfeiçoa e consuma na obra de Jesus Cristo: «Primogénito entre muitos irmãos, estabeleceu, depois da sua morte e ressurreição, com o dom do seu Espírito, uma nova comunhão fraterna entre todos os que O recebem com fé e caridade, a saber, na Igreja, que é o seu corpo, no qual todos, membros uns dos outros, se prestam mutuamente serviço segundo os diversos dons a cada um concedidos» (GS 32). Não é nova a doutrina do Concílio: «Dado, porém, que recentes documentos do magistério eclesiástico expuseram a doutrina cristã acerca da sociedade humana, o Concílio limita-se a recordar algumas verdades mais importantes e a expor o seu fundamento à luz da revelação. Insiste, seguidamente, em algumas consequências de maior importância para o nosso tempo» (GS 23). De tudo o que ficou dito, deduz-se que o ser com os outros e para os outros pertence ao núcleo central da existência humana. Existe uma relação muito profunda entre o indivíduo e a sociedade. 59 Deve contornar-se os perigos desta relação: o indivíduo não pode diluir-se na sociedade. Mas o indivíduo também não pode cair num solipsismo esterilizante, que seria a sua própria morte. A relação autêntica destrói o egoísmo alienante e abre as portas do amor. O homem tem de viver num duplo movimento: o de se dar e o de receber. Este é o único caminho para chegar à realização plena da sua personalidade. «Há uma interdependência e reciprocidade entre as pessoas e a sociedade: tudo o que se realiza a favor da pessoa é também um serviço à sociedade, e tudo o que se fax em favor da sociedade é também um benefício à pessoa (...) E a expressão primeira e original da dimensão social da pessoa é o matrimónio e a família» (Gevaert). Por isso se pode afirmar, sem qualquer dúvida, que a família é a célula fundamental da sociedade, nela se forma o homem e experimenta a sua sociabilidade desde o primeiro momento da sua vida. 60 IX – O HOMEM, CRIADOR CRIADO Introdução No meio do ritmo, da pressão e das necessidades consumistas da sociedade actual, o trabalho é muitas vezes compreendido como um meio de escravização, que quase não deixa tempo para o encontro com Deus, com as pessoas, na família, consigo mesmo... Ideologias de tipo marxista tornaram o trabalho um campo de conflitos, de lutas entre o capital e os operários, com tensões e por vezes confrontos violentos... Outras perspectivas tornam-no fonte de desilusões. Para alguns, porque a escassez de trabalho os coloca numa situação em que dificilmente conseguirão adquirir aquilo que vêem perto mas que sempre lhes foge... Outros, partindo de ideias pessimistas ou nihilistas, não encontram sentido no trabalho e consideram-no como um meio de vida necessário mas vivido sem gosto nem qualquer perspectiva... É preciso descobrir o verdadeiro sentido do trabalho num mundo criado por Deus, bom para o homem, seu filho. 1. A actividade humana À luz da revelação, o homem não é um espectador do mundo, mas colaborador de Deus na obra da criação. Deus entregou ao homem, no último dia da criação, a tarefa de desenvolver as forças que se encerram na natureza. Esta é a indicação que surge na narração da criação de Gen 1, 28: “Abençoando-os, Deus disse-lhes: «Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra.»” Pelo domínio sobre a terra, o homem cumpre a sua condição essencial de ser imagem de Deus. Também a narração do Javista apresenta a mesma ideia: “O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar” (Gen 2, 15). Deus descansou, mas entregou ao homem as ferramentas de trabalho: inteligência, coração, capacidade criativa, força, mãos, desejo de trabalhar... tudo o que move o homem e o estimula a realizar as ideias que brotam da sua alma. «O trabalho responde ao desígnio e à vontade de Deus. As primeiras páginas dos Génesis apresentam-nos a criação como obra de Deus, o trabalho de Deus. Por isso, Deus 61 chama o homem a trabalhar para se assemelhar a Ele. O trabalho não constitui, por isso, um facto acessório, e muito menos uma maldição do céu. É, pelo contrário, uma bênção primordial do Criador, uma actividade que permite ao indivíduo realizar-se e oferecer um serviço à sociedade. E para além disso terá um prémio, superior, porque não é inútil no Senhor! (1Cor 15, 58) (João Paulo II). Cada trabalho deve ser visto, deste modo, no conjunto do desenvolvimento evolutivo. Todos, trabalhando, contribuímos com os nossos esforços na obra da criação. Todos somos colaboradores de Deus, porque também Ele hoje continua a trabalhar com o homem, respeitando a sua autonomia. «Isto aplica-se também às actividades de todos os dias. Assim, os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias, de tal modo exercem a própria actividade que prestam conveniente serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história» (GS, 34). Pelo trabalho, o homem exerce o seu domínio sobre o mundo. Na nossa época, assistimos a novas invenções, progressos técnicos e científicos, pelos quais o homem domina a natureza e conquista espaço... estas realizações, que passam pelos meios de comunicação, aos voos espaciais, às descobertas científicas, o homem domina a natureza que Deus colocou à sua frente como meta de conquista. Com o trabalho aperfeiçoa-se a criação. Os variados meios de conforto e de bem-estar, conseguidos pelo talento humano, não são, em última análise, novas criações, mas aperfeiçoamento da natureza. Mesmo as criações artísticas, as mais parecidas à de Deus, têm o seu ponto de partida no mundo criado... Ao mesmo tempo, o trabalho aperfeiçoa o homem que o realiza. «A actividade humana, do mesmo modo que procede do homem, assim para ele se ordena. De facto, quando age, o homem não transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a si mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as próprias faculdades, sai de si e elevase sobre si mesmo. Este desenvolvimento, bem compreendido, vale mais do que os bens externos que se possam conseguir. O homem vale mais por aquilo que é do que por aquilo que tem. Do mesmo modo, tudo o que o homem faz para conseguir mais justiça, mais fraternidade, uma organização mais humana das relações sociais, vale mais do que os progressos técnicos. Pois tais progressos podem proporcionar a base material para a promoção humana, mas, por si sós, são incapazes de a realizar» (GS 35). Daqui procede que a norma da actividade humana seja criar aquelas condições 62 que permitam ao homem viver plenamente a sua própria vocação de acordo com o plano divino. Para que o trabalho chegue à sua plenitude, é necessário que nele o homem seja imagem de Deus. Deus é aquele que, ao trabalhar, se dá e se comunica, dá do que é. A criação inteira, é obra da comunicação que Deus faz da sua própria bondade ao nãodivino. Por isso, o trabalho de Deus é uma manifestação do seu amor e uma comunicação do mesmo. Também o homem deve ser, no seu trabalho, comunicação da sua própria bondade. O trabalho é a ponte pela qual o homem se comunica à realidade que o envolve, e o caminho que o leva ao encontro com os seus semelhantes. Se o trabalhador se dá a si mesmo e pelo trabalho põe em comum e ao serviço de todos as suas próprias qualidades, a sua vida será uma manifestação de amor, e o trabalho uma entrega aos homens. Considerado assim o trabalho e realizado em sentido cristão e humano, converte-se num campo de relações humanas, que unem os homens numa tarefa comum: construir o mundo do futuro. No trabalho se deveria conseguir atingir a verdadeira comunidade humana, em que todos os homens se sentem irmãos, superando os antagonismos que ameaçam cada dia a paz na sociedade. «O trabalho tem em si uma força que pode dar vida a uma comunidade: a solidariedade. A solidariedade do trabalho, que se desenvolve espontaneamente entre os que repartem o mesmos tipo de actividade ou profissão, para abraçar com os interesses dos indivíduos ou dos grupos o bem comum de toda a sociedade 2. Preocupação ecológica Ao analisar os aspectos positivos do mundo actual, não podemos deixar de salientar a preocupação ecológica. Os bens da criação foram entregues ao homem por Deus, como o canta com profunda admiração o Salmo 8... Há quem meta precisamente nesta imagem a culpar da actual crise ecológica... Mas a imagem dos Génesis fala sobretudo do homem como um jardineiro... Tanto a Escritura como o ensinamento constante da Igreja afirmam sempre que o homem não é dono absoluto da criação, mas apenas administrador. Os abusos criam sérios problemas cujas consequências podem ser catastróficas. Para evitar esses possíveis males, João Paulo II apresenta algumas considerações na Sollicitudo rei socialis, 34: 63 «O carácter moral do desenvolvimento também não pode prescindir do respeito pelos seres que formam a natureza visível, a que os Gregos, aludindo precisamente à ordem que a distingue, chamavam o «cosmos». Também estas realidades exigem respeito, em virtude de três considerações sobre as quais convém reflectir atentamente. A primeira refere-se às vantagens de tomar ainda mais consciência de que não pode fazer-se impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados — animais, plantas e elementos naturais — como se quiser, em função das próprias exigências económicas. Pelo contrário, é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado, qual é exactamente o cosmos. A segunda consideração funda-se, por sua vez, na convicção, dir-se-ia mais premente, da limitação dos recursos naturais, alguns dos quais não são renováveis, como se diz. Usá-los como se fossem inexauríveis, com absoluto domínio, põe em perigo seriamente a sua disponibilidade, não só para a geração presente, mas sobretudo para as gerações futuras. A terceira consideração relaciona-se directamente com as consequências que tem um certo tipo de desenvolvimento, quanto à qualidade da vida nas zonas industrializadas. Todos sabemos que, como resultado directo ou indirecto da industrialização, se dá, cada vez com maior frequência, a contaminação do ambiente, com graves consequências para a saúde da população. Torna-se evidente, uma vez mais, que o desenvolvimento e a vontade de planificação que o orienta, assim como o uso dos recursos e a maneira de os utilizar, não podem ser separados do respeito das exigências morais. Uma destas impõe limites, sem dúvida, ao uso da natureza visível. O domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de «usar e abusar», ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de «comer o fruto da árvore» (cf. Gen 2, 16 17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas.» 3. Cristo e o trabalho A encarnação descobre novas facetas no valor do trabalho. Nela, Deus faz-se irmão dos homens para partilhar do mesmo destino da humanidade. Jesus de Nazaré, Deus e homem verdadeiro, torna possível que o próprio Deus partilhe da mesma tarefa dada 64 por Ele mesmo ao homem. Em Jesus de Nazaré, Deus trabalha de uma maneira diferente daquela que fez ao criar o mundo. Como afirma João Paulo II (aos operário de Terni, 19 de Março de 1981): «O Evangelho do trabalho foi escrito sobretudo pelo facto que o Filho de Deus, da mesma substância do Pai, tornando-se homem trabalhou com as próprias mãos. Melhor, o seu trabalho, que foi verdadeiro trabalho físico, ocupou a maior parte da sua vida nesta terra, e entrou assim na obra da, redenção do homem e do mundo, por ele realizada com a sua própria vida terrena. [...] O trabalho, de resto, tem o seu início em Deus mesmo. Se abrirmos a Bíblia, encontramos logo no princípio do Livro do Génesis a narrativa da criação do mundo. Pois bem, embora tratando-se de uma descrição figurativa e fantasiosa, a obra da criação é apresentada segundo o esquema de uma semana de trabalho: Deus-Eloim realiza o seu trabalho durante seis dias, para "repousar" depois no sétimo dia. Deste modo é dada ao homem a indicação de ligar o trabalho com o descanso. De facto, entre o trabalho e o repouso existe um condicionamento recíproco.» Um dos aspectos difíceis do trabalho não nasce da sua própria essência mas das circunstâncias em que é realizado. Os egoísmos, as injustiças, a falta de respeito pelo homem, a incoerência e tantos outros problemas afectam profundamente o homem que necessariamente tem de trabalhar. Cristo com o seu trabalho participa do nosso suor. O trabalho de Jesus não é um passatempo, mas uma necessidade. Trabalhar para comer, movido pelas mesmas necessidades vitais pertencentes ao homem. Sobre Ele cai o mesmo mandato divino de Gen 3, 19: «comerás o pão com o suor do teu rosto». Jesus participou das angústias do homem que procura trabalho, dos contratos e dos salários... A sua ocupação permite-nos vislumbrar que Ele sentiu as nossas fomes e sofreu as nossas necessidades... Durante a vida pública, arrancou espigas com os discípulos para matar a fome... (Lc 6, 1 ss). Também as nossas alegrias foram partilhadas por Ele. As bodas de Caná não serão um momento isolado da sua vida. Com frequência O encontramos em banquetes. Os seus inimigos consideram-no mesmo indigno por comer com pecador, um ébrio... Nada do que é verdadeiramente humano foi indigno de si: a convivência com os homens é uma convivência plena. 65 Sem dúvida que o mais importante trabalho de Jesus foi a lição sublime da transcendência. Durante cerca de 30 anos trabalhou de forma anónima, vulgar, desconhecida... Nada do que fez Jesus durante esse tempo nos chegou até hoje, enquanto que se continua a admirar tantas obras de outras pessoas mesmo anteriores a Ele... O «escondimento» de Jesus é um mistério que projecta uma luz potente nas tarefas humanas: no que, por ser vulgar, não merece ser conservado, Jesus realiza a obra mais maravilhosa de Deus, a redenção dos homens. Mais que o exterior, o que importa aos olhos de Deus é o que o trabalhador põe de si mesmo na obra realizada, no concreto do seu amor naquilo que faz. Desta forma, o trabalho de Cristo insere-se no eterno, no divino, e abre o caminho à transcendência de todo o trabalho humano. Depois de Jesus, é possível introduzir na esfera do divino os actos do homem. Para Ele não é necessária a inteligência do génio, nem a perfeição externa da obra... basta o amor do trabalhador. O céu é equidistante de todos os pontos da terra como de todos os trabalhos, por mais insignificantes que sejam. Como Cristo, todo o homem, unido a Ele, pode realizar o mesmo amor a Deus e o mesmo amor aos homens. O importante é fazer o vulgar de uma maneira extraordinária. 4. A dor do trabalho Normalmente o trabalho vai acompanhado de fadiga e dor... Nesta dor actual do trabalho há uma parte eu se tem de atribuir ao pecado. O pecado rompeu o equilíbrio interno do homem e, consequentemente, da sociedade. Além disso, fruto do pecado é a falta de fé, aquela que é capaz de abrir horizontes de luz no futuro que dá uma nova visão às dificuldades da vida... Mas seria um erro acreditar que a única causa da dureza do trabalho é o pecado. Por si mesmo, o domínio do mundo comporta o esforço por parte do homem, esforço que resulta penoso e fatigante. O pecado e o domínio do mundo envolvem ambas o trabalho na sua atmosfera de dor. Actualmente, no plano salvífico, o trabalho na sua dimensão de dor, torna exequível para o crente a sua participação na cruz de Jesus Cristo. Ele que disse: «Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-me» (Lc 9, 23). Mediante a dor, necessária para a vida, o homem pode integrar a sua vida, sem procurar outros campos, no grande mistério de salvação de Cristo. Com Ele, estamos pregados na cruz quando assumimos a dor de cada dia resultante do trabalho. «O suor e a fadiga, que o trabalho comporta necessariamente na presente condição da humanidade, proporcionam aos cristãos e a todo o homem, dado que todos são 66 chamados para seguir a Cristo, a possibilidade de participar no amor à obra que o mesmo Cristo veio realizar. Esta obra de salvação foi realizada por meio do sofrimento e da morte de cruz. Suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora, de algum modo, com o Filho de Deus na redenção da humanidade. Mostrar-se-á como verdadeiro discípulo de Jesus, levando também ele a cruz de cada dia nas actividades que é chamado a realizar» (João Paulo II, Larorem exercens, 27). A dor é, e sempre foi, um contra-senso na vida do homem, criado para ser feliz. Cristo talvez não tenha desvelado de todo o mistério da dor, sobretudo daquela que brota das injustiças humanas, mas indicou, com a sua dor, fruto das mesmas injustiças, que o sofrimento, assumido no amor ao Pai e aos homens, se converte no altar do próprio sacrifício, que dá glória a Deus e frutifica em favor de toda a humanidade. Deve recordar-se que a cruz de Cristo não é o fim, mas caminho para a vida, para a glorificação. Não é um pau seco, mas uma árvore que regada com o sangue de Cristo, floresce na manhã de Páscoa. Toda a cruz, unida à de Cristo, participa também desta vitalidade gloriosa. A dor do trabalho é sementeira de glória na Páscoa gozosa de cada crente. 5. A autonomia da realidade terrena Diante do temos que a estreita relação entre actividade humana e religião faça diminuir ou desaparecer a autonomia do homem, da sociedade ou da ciência, o Concílio Vaticano II, na GS 36, faz as seguintes anotações: a) As coisas criadas e a sociedade têm leis e valores que o homem deve descobrir, utilizar e ordenar. Esta legítima autonomia corresponde à vontade de Deus. As realidades profanas e as da fé têm uma origem comum. Por isso, a investigação, autenticamente científica e feita em conformidade com as normas morais, não é contrária á fé. Mais ainda, quem com humildade e perseverança entra nos segredos da realidade é como que conduzido pela mão de Deus. b) A realidade não é independente do Criador. A criatura, sem o Criador, desaparece. Os homens não podem usá-la sem referência ao Criador. Uma autonomia que saia desta referência não é admissível. 67 A revelação afirma desde o princípio que o homem não é proprietário da realidade terrena, mas mero administrador. Isso mesmo o dá a conhecer Deus a Adão quando, ao colocá-lo no jardim, lhe impõe as condições da sua presença ali: «E o Senhor Deus deu esta ordem ao homem: «Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás» (Gen 2, 16-17). 68 X – A ORIGEM DO HOMEM 1. História da questão Até ao momento em que surgiram as teorias evolucionistas, a origem do homem explicava-se com uma leitura historicista das narrações do livro dos Génesis. Dominava um pensamento fixista da criação, onde o homem surgia como a última criatura saída integral e directamente das mãos de Deus. Com a chegada do evolucionismo, transformaram-se as formas de colocar e responder a esta questão da origem do homem, não apenas no campo das ciências mas também na teologia. Darwin (1809-1882) é quem marca de forma definitiva a revolução na compreensão da origem do homem. A primeira reacção de muitos teólogos é de rejeição. No concílio provincial de Colónia (1862), que tem uma autoridade muito restrita, mas não deixa de expressar o sentir de muitos crentes, declara-se contrário a toda a espécie de transformação: «Os primeiros pais foram criados imediatamente por Deus. Portanto, declaramos como totalmente contrário à Sagrada Escritura e à fé da Igreja as interpretações daqueles que se atrevem a afirmar que o homem, no que se refere ao corpo, surgiu de uma espontânea mutação de uma natureza imperfeita que melhorou continuamente até chegar à natureza humana actual». O Concílio Vaticano I (1869-1870) não se declara oficialmente contrário ao evolucionismo. Condena o materialismo em geral e repete a doutrina tradicional, de Deus criador do homem na alma e no corpo. O Discurso de Pio XII à Academia Pontifícia das Ciências, em 1941, é a primeira intervenção eclesiástica que marca a postura a adoptar pelos católicos a respeito do evolucionismo. Nele se estabelece que o homem supera o reino animal pela sua alma espiritual, e que o progenitor do homem não pode ser um animal. Na encíclica Humani generis, publicada em 1950, o Papa Pio XII fala aos teólogos sobre a forma de abordar os temas que, embora científicos, têm relação com a verdade revelada. O Papa distingue entre factos demonstrados e hipóteses. Os primeiros devem ser admitidos, mas quanto às hipóteses deve haver mais calma... No que respeita ao evolucionismo, lança os seguintes princípios: 1) a investigação deve ser feita no campo científico e teológico por pessoas competentes; 2) apenas sobre o corpo: se provem ou não de matéria orgânica preexistente; 3) a fé católica manda-nos 69 sustentar que as almas são criadas imediatamente por Deus; 4) as razões de ambas as partes devem ser examinadas com imparcialidade; 5) todos devem estar prontos para aceitar a posição da Igreja. Portanto, fica aberta uma porta à investigação sobre a origem do corpo do primeiro homem. Mas a encíclica chama a atenção para a prudência... João Paulo II exprime-se deste modo sobre esta questão: «Portanto pode dizer-se que, do ponto de vista da doutrina da fé, não se vê dificuldade em explicar a origem do homem, quanto ao corpo, pela hipótese do evolucionismo. De facto, há que acrescentar que a hipótese propõe apenas uma probabilidade, não uma certeza científica. A doutrina da fé, pelo contrário, afirma invariavelmente que a alma espiritual do homem foi criada directamente por Deus. Quer dizer, segundo a hipótese a que aludimos, é possível que o corpo humano, seguindo a ordem impressa pelo Criador nas energias da vida, tenha sido gradualmente preparado em formas de seres vivos anteriores. No entanto na alma humana, da qual depende definitivamente a humanidade do homem, por ser espiritual, não pode brotar da matéria» (João Paulo II, Audiência geral de 16 de Abril de 1986). O Catecismo da Igreja Católica, afirma no n.º 366: «A Igreja ensina que cada alma espiritual é directamente criada por Deus e não produzida pelos pais; e que é imortal». Conclusão Encontramos um certo processo evolutivo na doutrina da Igreja acerca do evolucionismo relativamente ao homem. Perante os temores do início, quando nem entre os evolucionistas as coisas estavam muito claras, a Igreja mostrou-se cautelosa, com medo de estar a adulterar alguma verdade de fé... o caminho foi-se desbravando progressivamente até ao momento actual em que as coisas parecem estar bastante claras e se podem resumir do seguinte modo: 1) O corpo humano pode vir por evolução, sem que seja necessário admitir nenhuma acção especial por parte de Deus para o humanizar; 2) A alma não pode vir por evolução. Todas as almas, de todos os homens, são criadas imediatamente por Deus. 3) A razão pela qual a alma não pode ser produzida pela evolução é que a evolução é material e a natureza das almas é espiritual. 70 2. Explicação teológica da origem do homem a. Os dados da questão Durante muito tempo o aparecimento do homem sobre a terra interpretava-se à luz de uma leitura histórica dos relatos bíblicos. O homem saíra integralmente das mãos de Deus por uma acção directa e imediata sobre a totalidade do composto humano, entendido como corpo e alma. Ambos eram produzidos por Deus. A concepção evolucionista impôs-se cada vez com mais força. Para muitos cientistas, o homem é o produto da evolução genética do mundo animal. Visão que não é plenamente partilhada por filósofos e teólogos, dadas as características especiais do composto humano. Os cientistas consideram que o primeiro homem é pouco superior ao animal, do qual procede, na sua morfologia e no seu psiquismo. Com a paleontologia, descobre os passos graduais do animal até ao homem e estabelece, com estas premissas, que a evolução explica suficientemente o aparecimento do primeiro homem. O filósofo e o teólogo não se contentam com estes dados que, no seu parecer, não explicam de forma satisfatória o aparecimento do «novo» ser. Fundamentalmente, o problema é o seguinte: admitindo que o homem apareça através da evolução genética surge a pergunta: a natureza humana não se reduz, pela sua dimensão intelectual à espécie animal que é puramente sensitiva. Donde e como lhe é «acrescentada» esta nova dimensão? A resposta foi dada, durante algum tempo, dividindo o homem em duas partes: corpo e alma. A alma é criada imediatamente por Deus e infundida no corpo. Este procede pela evolução, mas é preparado por uma acção especial de Deus para que possa receber a alma espiritual. Na origem do homem distinguem-se duas acções de Deus, além do concurso natural da evolução: a criação da alma espiritual e a humanização do corpo. Este caminho foi abandonado. A criação da alma e a sua infusão no corpo não se coaduna com a actual concepção do homem como uma unidade tão íntima, que a sua criação terá de ser o termo de uma acção plenamente única. Não pode haver um corpo humanizado sem uma alma espiritual, nem alma (que é «forma» do corpo) sem um corpo de que seja forma. Como responder a estas interrogação dentro da nova antropologia unitária e a visão evolutiva do mundo? 71 b. Pressupostos teológicos O teólogo, ao perguntar-se sobre a origem do homem, deve ter diante de si os dados certos que lhe oferece a sua fé: 1) Unidade do homem, conforme o testemunho da Escritura e do Magistério. O homem é um corpo inundado pelo espírito e o espírito é a forma do corpo. 2) A dualidade de realidades na essência do homem. Realidades que não derivam uma da outra, nem são reduzíveis uma à outra. 3) A alma é a forma do corpo, espiritual, simples, imortal, substancial, racional. Só pode ter origem num acto criador de Deus que, nesse momento, produz algo de novo. De nenhuma maneira pode ser mero produto do que lhe precede. A alma não existe fora do corpo, mas começa a existir como forma do corpo. c. A essencial diferença do homem Deve ser tido muito em conta, em todo o processo evolutivo, a irredutibilidade do homem, pela sua dimensão intelectiva, ao reino dos animais, dotados apenas de dimensões sensitivas materiais. O homem, em relação a tudo o que procede da evolução, é algo verdadeiramente novo. Esta novidade está sobretudo na sua inteligência. A capacidade intelectiva pode ser definida como o poder que o homem possui de apreender as coisas como realidades e não como meros estímulos. A capacidade de abstracção é a forma mais perfeita de manifestação da inteligência. Mas, tal como a criança é inteligente antes de ter o uso da razão, também é possível que tenha existido homens inteligentes sem uso dessa razão, em que pela imaturidade evolutiva a inteligência não tinha ainda a capacidade de abstrair… A diferença entre o homem e o animal não é meramente gradual, mas essencial, que não consiste num mais em quantidade de estruturas, mas um mais qualitativamente distinto, que não é fruto de uma simples soma. Entre o primeiro homem e o animal seu antecessor há um hiato, uma separação, que não é explicado apenas pelas forças da matéria em evolução. d. Evolução determinante O facto de que o homem não possa ser explicado pelas forças da matéria em evolução não deve ser entendido como um corte na árvore da evolução, mas como uma continuidade descontínua. 72 Morfologicamente, o homem procede do reino animal. Os paleontólogos descobriram, ainda que com alguma lacunas, o que pode ser a escala de evolução dos primatas aos hominídeos, e deste ao homo sapiens. As semelhanças morfológicas e psíquicas, progressivamente mais complexas, levam à conclusão que não se trata de uma mera evolução, mas de uma verdadeira evolução genética desde o reino animal até ao homem. Se se estuda a formação do tipo humano ou o problema da tipificação humana, feita a humanização, descobre-se um progresso genético entre os diversos tipos de seres humanos até chegar ao homo sapiens. Voltando ao problema do aparecimento do primeiro homem, surge a pergunta: será a hominização evolução? Para responder convém distinguir entre evolução e mecanismos evolutivos. Não são o mesmo. Uma coisa é evolução e outra as causas que o motivam. Evolução é um processo genético, no qual se vão produzindo formas psicossomáticas especificamente novas a partir de outras anteriores, em função intrínseca e determinante da transformação destas. O novo ser conserva as formas do anterior, mas transformadas. A hominização é a evolução dos hominídeos pré-humanos ao hominídeo humanizado, através do processo genético, determinado pela transformação das estruturas morfológicas pré-humanas. Apenas nesta nova estrutura floresce um psiquismo que não poderia ter florescido numa ave ou num equinodermo. Se chamamos a este novo psiquismo psique inlelectiva, deve dizer-se que esta floresce intrinsecamente a partir das estruturas psicossomáticas de um hominídeo pré-humano e em função determinante e transformante destas. e. O mecanismo evolutivo O facto da evolução deixa intacta a questão do mecanismo evolutivo. É aqui que a problemática se complica, ao determinar as causas que influenciam a evolução. Há causa de ordem física, coimo o ambiente; causas de ordem psíquica, como o modo de vida, a competição. Todos os factores que compõem o mecanismo da evolução têm de produzir uma alteração nos genes para que possa perdurar de forma hereditária, no código genético. Nos animais, a evolução produz integralmente as formas e a psique do novo animal. Não é assim com o homem. A sua capacidade intelectiva marca uma descontinuidade com o processo anterior. A dimensão espiritual não pode ser produzida apenas pela matéria, com o concurso ordinário de Deus, mas requer uma acção distinta do Criador que explique o qualitativamente novo, essencialmente distinto de todo a anterior, que é o psiquismo humano. Por essa razão, o aparecimento do homem, na sua totalidade, 73 está determinada pela transformação do hominídeo, mas não é efectuada ou causada por ela, como estava a do animal. Pode dizer-se que a nova psique, do homem, é efeito de uma criação ex nihilo. Ali, onde surge algo inédito, qualitativamente distinto, maior e melhor que o anterior, ali está a surgir algo que, por hipótese, supera a capacidade operativa do já existente e, por conseguinte, requer outro factor causal, além do empiricamente detectável, ali está a acção criadora de Deus. f. Criação da psique humana Como entender esta criação do nada em conformidade com o que foi dito da determinação das estruturas genéticas. Algumas linhas de interpretação: 1) A criação do nada da psique intelectiva humana não é uma mera adição. Sucede na evolução o que sucede na origem do ser humano actual. As células germinais, na sua estrutura bioquímica, têm em si mesmas a exigência de uma psique humana. Da mesma maneira as alterações germinais do imediato predecessor do primeiro homem são a causa biológica exigível da criação da psique humana. 2) Nem é uma criação ab extrínseco, de fora. A psique intelectiva está criada a partir das estruturas biológicas, brota de dentro. A acção criadora faz que floresça a partir de dentro naturalmente uma psique humana no acto geracional. Isto acontece em todos os indivíduos humanos e, por tanto, também nos hominídeos hominizados a partir dos antepassados infra-humanos. Na alteração germinal, que produz a hominização das estruturas somáticas, floresce intrinsecamente a partir delas, surge naturalmente, por uma acção criadora intrínseca, uma psique intelectiva. Mais que fazer as coisas, Deus faz que se façam… A acção criadora pertence ao mecanismo da evolução. É o cumprimento intrínseco da exigência da transformação germinal. Por isso, a acção criadora não apenas não interrompe o processo de evolução, mas mais, leva-o ao seu termo. Uma espécie que tivesse as estruturas somáticas que o hominídeo hominizado possui mas não tivesse a psique intectiva, não poderia ter subsistido biologicamente… g. Conclusão O espírito não aparece como um epifenómeno da matéria, mas como um florescer da mesma. Não é um epifenómeno porque não é produzido apenas por ela. A matéria, em virtude da evolução, chega a produzir no psiquismo do hominídeo pré-humano, imediatamente anterior ao primeiro homem, uma configuração morfológica e uma 74 psique sensitiva que exige, para poder subsistir, o complemento da psique intelectiva. Por isso a criação da alma não é uma mera adição externa. É um florescer das forças da matéria, porque a acção do Criador não é exterior, mas interior à acção das criaturas. A psique intelectiva é criada a partir das estruturas biológicas, brota do fundo da própria vida. Por essa razão, a psique intelectiva aparece como complemento da evolução. Os mecanismos evolutivos são causa determinante do espírito, exigem-no, mas não o produzem. Chamamos a este processo uma continuidade descontínua porque o homem nasce em virtude da evolução anterior (continuidade) mas sob a influência especial do concurso criativo (por isso descontinuidade). 3. Origem do indivíduo humano a. Soluções ao longo da história A dimensão espiritual do homem exige que a sua causa seja superior às forças bioquímicas que constituem o acto de gerar. O indivíduo humano, por ser pessoa, não é produzido como os animais inferiores a ele. A novidade que supõe o aparecimento de uma pessoa foi explicado de diversas maneiras ao longo da história: O emanentismo é património de todos os sistemas panteístas, e faz derivar a alma da mesma substância de Deus. Nesta teoria estão os estóicos, maniqueos, pricilianos... Contra esta teoria, a Igreja sempre afirmou a distinção entre a alma e a substância divina. O pré-existencialismo afirma que a alma existe antes da sua união com o corpo. Há duas correntes nesta teoria. Por um lado os que afirmam que a alma é encarcerada no corpo como castigo por uma falta cometida numa vida anterior (gnósticos, Orígenes), por outro lado os que afirmam que, sem culpa anterior, a alma se une ao corpo. Também esta teoria foi condenada pela Igreja. O generacionismo defende que a alma da criança tem a sua origem nos pais. Numa corrente materialista, a teoria diz que a alma é gerada como o corpo no acto de geração. Numa linha espiritual, a alma tem origem na alma dos pais, como defende Tertuliano. Santo Agostinho contrapôs-se ao generacionismo material, mas ficou indeciso perante o espiritual. A Igreja também condenou esta corrente. Frohschammer defendeu que a alma é gerada pela força dos pais, que é criadora em virtude de um poder comunicado por Deus nas origens. A geração é acção criadora do 75 nada em virtude de um poder secundário dado por Deus à humanidade. A sua obra foi também condenada pela Igreja. Rosmini, afirmou que os pais geram a alma sensitiva, que se vai aperfeiçoando até se converter em alma espiritual. Também ele foi condenado. O criacionismo, que se impôs na teologia desde a alta Escolástica, defende que todas as almas são criadas imediatamente por Deus. Funda-se sobretudo na impossibilidade da emanação da alma a partir do ser de Deus, e em que o material não pode produzir o espiritual. Nem sequer o espiritual pode gerar, porque seria ou parte do mesmo ou plena comunicação, e o espiritual nem se reparte, nem a alma dos filhos é a alma dos pais. Com a Humani generis de Pio XII, a Igreja afirma que a fé católica sustém que as almas são criadas imediatamente por Deus. b. Algumas pontualizações ao criacionismo 1) Deus não cria primeiro a alma para a infundir no corpo. Infusão e criação são simultâneas. 2) Deus não actua a partir de fora. Deus, causa transcendente, actua a partir de dentro da própria acção do homem. Quando os pais geram um filho, ser pessoal, acontece algo de novo que requer uma explicação. A acção geradora não pode produzir por si mesma esse novo ser na sua totalidade. O efeito é superior à causa. Deus colabora com a causa secundária, que a transcende e eleva, fazendo com que ela se auto-supere. Deus não actua ao lado dos pais mas juntamente com eles. Não actua a partir de fora, mas dentro da própria acção geradora. Por isso, os pais produzem todo o homem e Deus também, mas cada um na esfera de acção que lhe é própria. Deus no plano transcendente, os pais no plano categorial. Nesta explicação salva-se a unidade do homem, a sua singularidade acima do reino animal, e a peculiaridade do agir de Deus dentro da relação normal entre Deus e o mundo natural. 4. Monogenismo e poligenismo Admitido o processo evolutivo para a origem do homem, surge a pergunta do mogenismo ou poligenismo. Ou seja, a humanidade actual procede de um casal inicial ou de vários casais que terão aparecido em diferentes locais da terra e em tempos diversos? Esta questão implica com a questão da unidade da raça humana e com a teologia do pecado original e da redenção. 76 Até ao aparecimento do evolucionismo o pensamento teológico, e científico, era essencialmente monogenético. Actualmente, a interpretação dos próprios textos do livro dos Génesis do primeiro relato não encontra neles fundamento para o monogenismo: o Adão de Génesis não é um indivíduo concreto, mas a humanidade na qual estão englobados todos os homens, não havendo qualquer preocupação por parte do autor sagrada por identificar um homem singular. O Adão do segundo relato parece ser um indivíduo concreto, mas não pode tomar-se o relato como uma afirmação directa da sua criação imediata por Deus: todo o texto está revestido de uma forma literária que pretende sobretudo afirmar a questão da entrada do pecado no mundo. Assim, não se pode deduzir dos relatos da criação que o monogenismo seja uma verdade revelada. É evidente que o autor tinha esse pensamento, mas não é uma verdade de fé pois se trata de uma categoria cultural de que o autor se serve para expor um ensinamento. Outros textos bíblicos parecem apontar para o monogenismo: Act 17, 26 ou Rom 5, 12. A doutrina exposta pela Igreja tem sido sobretudo na linha monogenista. Mas o campo de investigação teológica continua em aberto, sobretudo na questão da conciliação da doutrina acerca do pecado original e a hipótese poligenista. Actualmente não é dada muita importância a esta questão entre os teólogos. É a ciência que deve clarificar a origem monogenética ou poligenética da humanidade. 77