ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA
Os apontamentos que aqui se apresentam são uma tradução-resumo-adaptação a
partir do texto de Alejandro MARTÍNEZ SIERRA, Antropología teológica fundamental,
BAC, Madrid, 2002. Não estão elaborados com rigor para poderem ser divulgados, e
são disponibilizados apenas para o estudo dos alunos de Antropologia Teológica do
Centro de Formação e Cultura da Diocese de Leiria-Fátima no ano de 2013-2014.
José Henrique Pedrosa
I – A DOUTRINA DA CRIAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO
1. Relação criação – salvação
Qual a relação entre a ideia da criação e da aliança? Qual a importância da criação na
reflexão teológica do Antigo Testamento? Duas correntes:
a) (von RAD) A criação é o pressuposto da aliança. Israel conhece Yahvé na
sua história; não vai das coisas criadas ao Criador, mas dos
acontecimentos da história, do que realiza na história do povo, ao Autor
dessa acção
b) (Westermann) A ideia da criação e da aliança são independentes. Não
só não se chega à criação a partir da aliança, mas a própria ideia da
criação é anterior. A fé na criação não depende da aliança, mas é a
aliança que se inscreve como num marco da criação: o domínio de Deus
sobre todos os povos a partir do qual se explica a predilecção por Israel.
Criação e aliança são duas manifestações do amor de Deus para com os homens.
Podem justapor-se porque nas duas Deus manifesta a sua força e o seu amor aos
homens. Uma e outra revelam a vontade salvífica de Deus. Criação e aliança são duas
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noções distintas que expressam a acção de Deus. Na criação começa a relação de
amor de Deus como mundo que se vai “aperfeiçoar” na aliança. Será o Novo
Testamento, com a ideia da criação em Cristo e para Cristo que irá aclarar esta
relação.
2. Relatos da criação
Capítulos 1 e 2 do livro dos Génesis. São 2 relatos que pertencem a fontes literárias
distintas.
1ª: Gen 1, 1 – 2, 4a. Atribuída ao códice sacerdotal (P), redacção do tempo do
desterro na Babilónia (séc. VI-V a.C.), onde se recolhem tradições anteriores.
2ª: Gen 2, 4b-25. Atribuída à tradição javista (J), calcula-se que tenha sido escrita a
partir dos séc. X-IX a.C. Também recolhe tradições anteriores.
Género literário: etiologia histórica. Etiologia (estudo das causas) é a tentativa de
explicar um fenómeno presente através de um facto do passado. Pode ser histórica,
quando o facto existiu, ou mítica, quando o facto é uma lenda.
Não há uniformidade entre os especialistas quando se trata de dizer o que realmente
aconteceu… Sem dúvida, aconteceu: a criação do mundo por Deus, a criação especial
do homem, a igualdade de todos os homens, a unidade do género humano no sentido
que todos entram no mesmo projecto criador e salvador de Deus.
Por serem de origem distinta, são também muito diferentes nas suas características
concretas:
P: mais didáctico, teológico, transcendente, solene, abstracto, bem estruturado.
J: mais simples na linguagem, mais colorido e dramático, com um Deus mais próximo,
com uma visão cósmica mais reduzida, preocupado com o problema do mal.
Nos relatos descobrem-se restos das mitologias orientais. Alguns motivos mitológicos:
a origem aquática do mundo, as trevas que cobrem o oceano primordial, a separação
do céu e da terra, a reunião das águas no firmamento, a formação do homem do pó
da terra, a inspiração nasal da vida, a costela de que é formada Eva, a árvore da vida…
A interpretação da Escritura como palavra de Deus requer antes de mais
compreender o que o autor nos quer ensinar.
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Dei Verbum, 12: «Como Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à
maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis
comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente
quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras».
Depois de ter sido interpretado de uma forma literal, toda a revolução científica, de
Corpénico a Darwin, e todas as ciências cosmológicas posteriores, tornaram inviável
esse tipo de leitura destes relatos… Mas não se trata aqui de fazer uma outra leitura
apenas porque a outra já não possível, mas sim de procurar, de facto, perceber o que
o autor sagrado quer transmitir, partindo da análise do próprio texto.
Duas atitudes a distinguir no autor sagrado:
a. Está consciente, ao escolher um género literário (por exemplo: os sete dias da
criação) que isso não é verdade, mas a estrutura de que se serve para
comunicar um ensinamento. Um artifício literário.
b. Quanto às categorias culturais, o autor crê nelas e afirma-as, mas não são o
conteúdo do seu ensinamento (o autor acreditava na cosmologia presente no
cap. 1 dos Génesis, na qual sustenta o seu relato, mas essa cosmologia não é
o conteúdo do ensinamento, não pertence à verdade revelada).
Tanto os artifícios literários como as categorias culturais não são conteúdos da fé mas
meios, conscientes ou inconscientes, de expressão.
Mesmo que algo semelhantes às mitologias dos povos vizinhos, estas narrações não
podem enquadrar-se no género das mitologias… Algumas marcas fazem distinguir: o
Deus dos Génesis não tem origem; está nela a origem de tudo, nem luta contra outras
divindades para se constituir como Senhor absoluto, a sua forma de criar indica o
senhorio sobre todas as coisas.
Não é intenção do autor sagrada fazer uma história das origens ou afirmar a ordem da
criação… Basta uma leitura atenta dos dois relatos para perceber muitas diferenças
entre ambos… Se estão juntos, isso significa que o redactor final tem uma intenção
que vai para além do contar o «como» das origens, tem uma intencionalidade
diferente.
Há um denominador comum nas duas narrações: toda a criação depende única e
exclusivamente da força omnipotente de Deus. Um Deus que aparece na sua
majestade e transcendência, totalmente distinto da matéria, mas que também não se
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desentende da criação: em J Deus exprime uma solicitude pelo homem que está no
centro da criação…
Uma vez que a finalidade do autor sagrado é dar a conhecer a história da aliança de
Deus com o povo de Israel, a criação, no princípio dessa história, indica que o autor a
considera como um facto que já pertence à História da Salvação, que abarca todos os
povos.
3. Génesis 1, 1 – 2, 4a (P – Sacerdotal)
a. Estrutura do relato
Harmonia no relato, marcada pela semana criadora que ordena a acção de Deus.
Os 3 primeiros dias põem em ordem o caos inicial, criando o espaço onde vão ser
colocadas as criaturas:
1º dia:
Separação da luz das trevas.
Corresponde ao 4º dia:
sol, lua e estrelas.
2º dia:
Com o firmamento, separa as águas superiores das inferiores.
Corresponde o 5º dia:
aves e os peixes.
Anomalia no 3º dia: à separação do mar e da terra, junta-se a criação das plantas.
Fica para o 6º dia a criação dos animais terrestres e do homem.
Fica livre o 7º dia para introduzir o descanso sabático na criação. Consagra-se desta
forma o dia do Senhor.
A visão cosmológica em que se apoia a narração é a própria da época:
- a terra como uma superfície plana
- a abóbada do céu era uma sólida cúpula que retinha as águas superiores
- a terra como uma massa sólida e impermeável
- os astros que são pensados como luzeiros do dia e da noite.
A narração é fruto do estudo da forma de pensar da época.
b. Doutrina
•
Deus criador de tudo
Não existe o conceito de criação a partir do nada, mas exprime-se com outros termos:
4
- Bará: é um verbo que exprime apenas uma acção divina, e o seu resultado é algo de
totalmente novo. A noção metafísica de criação ex nihilo só será formulada em 2Mc 7,
28. Mas o texto afirma que o mundo teve um princípio: a criação não é um mito
atemporal, ela está integrada numa história de que é o princípio absoluto.
- Os céus e a terra: com esta expressão os hebreus falavam o universo, a totalidade
das coisas criadas. Nos versículos que se seguem, o autor vai enumerar essa
totalidade a partir daquilo que é o seu campo de análise. Alia à criação das criaturas a
fecundidade, ou seja, as virtualidades próprias das criaturas também têm a sua
origem em Deus.
- O caos inicial: este talvez seja um resíduo mais notório das mitologias orientais, mas
tratado a partir da fé no único Deus transcendente e anterior ao mundo. O caos era o
início das cosmologias pagãs: dele surgiam os deuses num primeiro momento, e
depois as criaturas. Frequentemente, os deuses entravam em batalhas entre si para
estabelecer o domínio sobre as criaturas. O Deus de Israel não tem origem no caos,
mas precede-o e domina-o. Para alguns autores, este caos é a representação plástica
do nada absoluto.
- No princípio: admite duas traduções, como princípio absoluto ou relativo. O texto
parece sugerir-nos que o autor não pensa numa matéria eterna, que numa tradução
de um princípio relativo poderia soar assim: «no princípio da criação de Yahvé…».
Expressaria um dualismo totalmente estranho à mentalidade do povo de Israel.
•
Criação pela palavra
A palavra é um atributo da pessoa. Deus que cria pela palavra é um ser pessoal,
espiritual, distinto do mundo. Esta forma de criar indica a ausência total de toda a
coação interior e exterior no criador: Yahvé é livre em todas as suas acções. Nem
imanentismo nem determinismo estão presentes na perspectiva do autor. A palavra
brota livremente do ser inteligente que a profere.
Destaca-se a omnipotência de Deus que cria sem esforço nem resistência por parte do
mundo. As coisas surgem conforme a ordem da sua palavra. E a palavra vai realizando
um plano pré-estabelecido.
A relação aliança – criação faz-se notar no próprio acto criador. O mesmo Deus que
tem um plano de aliança para o povo e que o vai realizando ao manifestar a sua
5
palavra, é o mesmo que desde o início cria pela palavra. A mesma palavra que rege o
mundo é a que o criou.
•
Criação estruturada
As criaturas vão sendo escalonadas de um menos para um mais no processo criador.
As plantas brotam da terra, os animais recebem uma bênção especial, em relação
com a terra… no culminar deste processo, aparece o homem, fruto de um esforço
especial de Deus, e a quem é confiado o domínio sobre a terra.
•
A bondade da criação
Os israelitas acreditam que o mundo no seu início corresponde plenamente aos
planos de Deus. Em cada dia Deus vê que é bom o que criou… Assim tinha de ser,
porque Deus fez tudo o que queria e como queria. Nada resistiu à sua palavra. Não há
nenhum poder adverso que faça frente à vontade criadora de Deus.
•
Significado do descanso sabático
Não há uniformidade na forma de interpretar este sétimo dia. Não é um tema
original, uma vez que algumas mitologias orientais falam também do descanso dos
deuses…
Alguns acreditam que o descanso sabático que o mundo está terminado e que Deus o
confia às mãos do homem. Outros apontam para o facto de se estar a inculcar a
santificação do sábado no regresso do exílio, pelo que o autor se serve do descanso
de Deus para santificar e consagrar o descanso semanal. Para esta última
interpretação, ver Ex 20, 8-11.
4. Génesis 2, 4b-25 (Javista)
a. Esquema da Aliança
Muitos autores reconhecem no esquema javista a estrutura de um texto de aliança. A
aliança com Yahvé concebeu-se no estilo dos antigos pactos de vassalagem. Alguns
elementos característicos desses pactos:
1. Auto-apresentação do rei com os seus títulos;
2. Narração dos factos realizados em favor do vassalo;
3. Obrigações
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4. Ameaças com a invocação dos deuses
Este esquema pode ver-se em parte em Ex 19, 4-6, mas sobretudo em Jos 24.
Gen 2-3 parece seguir um esquema deste género: pacto, pecado, castigo, esperança
para o futuro. Israel, liberto do Egipto, é posto na terra prometida, e deverá cumprir
uma série de obrigações que advêm da aliança… Como Adão, criado fora do paraíso, é
colocado no paraíso onde deve ser fiel a Deus representado na árvore do fruto
proibido. O paralelismo remete-nos para um contexto de aliança que o autor deve ter
sempre como base…
b. Finalidade da narração
Não se trata de desenvolver com maior detalhe a cena da criação descrita no capítulo
anterior. Aí já se afirmou que tudo depende de Deus. Também o homem, criado à sua
imagem e semelhança. Se o cap. 1 se centra na criação cósmica, o cap. 2 começa a
contar a vida do homem sobre a terra. A razão de introduzir a narração do paraíso é a
explicação do mal no mundo.
c. Antropocentrismo
Todo o cap. está orientado para o homem, que desde o primeiro momento ocupa o
centro da narração. Deus preocupa-se com ele e quer a sua felicidade. O homem
aparece como um interlocutor de Deus e é objecto do amor providente desse mesmo
Deus, o que se manifesta na preparação de um lugar para ele viver e no estabelecer
de uma relação amigável entre o criador e a criatura.
d. Conclusão
Os dois relatos coincidem nas seguintes afirmações como conteúdo teológico da sua
reflexão:
1) Deus não tem princípio
2) Deus é um ser pessoal
3) Deus é o criador de tudo o que existe
4) O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é o cume e o
centro de toda a criação
5) Homem e mulher são feitos um para o outro
6) A criação na sua origem corresponde ao plano de Deus
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Não se diz nada acerca do modo como aparecem os seres, de como se originou o
mundo. As ciências têm à sua frente um vasto campo de investigação. É evidente que
os autores sagrados não conheciam o evolucionismo e que a sua mentalidade era
fixista, mas a sua forma de pensar não é vinculante pelo facto de ser inspirado... Deus
revela a sua verdade salvífica, não a natural ou histórica.
Já o dizia Santo Agostinho: «Deus não quis elucidar-nos acerca da estrutura íntima das
coisas e do universo, pois não quer fazer de nós matemáticos ou físicos, mas que
proclamemos uma boa nova».
5. O anúncio profético
Os profetas recorrem frequentemente ao tema de Deus criador para a fé do povo no
Deus salvador.
Isaías 51: Descreve o pessimismo do povo deportado e oprimido; o profeta convida à
esperança recordando a história de predilecção ao mesmo tempo que invoca o poder
de Deus criador. Ver versículos 12-14.
Jer 1, 5: Esta mesma esperança é invocada na vocação do profeta Jeremias.
Ezequiel 32, 3ss: A vitória de Yahvé sobre o Faraó apresenta Deus como o senhor da
história e com domínio sobre todas as coisas.
Amós 4: manifesta a relação entre Deus criador e com domínio sobre todas as coisas
com o Deus que julga e castiga.
(Isaías 27: Deus criador e consumador actua para libertar o povo.)
Insiste-se também nas consequências éticas que derivam na fé na criação: cf. Am 5,
4ss, Mal 2, 10ss, Is 5, 12.
É frequente da pregação profética celebrar Deus criador com imagens tiradas das
mitologias babilónicas ou fenícias. Cf. Am 4, 13; Is 40, 12; Jer 5, 22. Mas o
monoteísmo livra de todo o perigo de idolatria ou politeísmo.
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6. Os salmos
A fé em Deus criador está patente na espiritualidade israelita. São diversos os
sentimentos que manifestam os salmistas na contemplação da criação. Um exemplo é
o Salmo 8: o mistério do homem pela sua grandeza diante de todas as coisas criadas.
Salmo 146 (145), 5-6: A fé na criação é fundamento da esperança...
Salmo 136 (135): as obras maravilhosas de Deus na criação (4-9) unem-se aos seus
gestos de salvação em favor do povo (10-25). Ambas são sinal do amor de Deus.
Salmo 104 (103): o salmista não canta apenas a obra criadora de Deus, mas fixa-se de
uma maneira especial na dependência que cada criatura tem do criador. Aponta-se
para a criação continuada e o amor de Deus por casa coisa (ver sobretudo v. 29-30)
7. Literatura sapiencial
Na literatura sapiencial encontra-se uma concepção da criação mais racional e menos
dominada pela história da salvação. A influência helenista faz-se notar... O mundo é
um cosmos perfeitamente estruturado, pois foi presidido na sua origem pela
Sabedoria, como canta o cap. 8 de Provérbios (sobretudo v. 22ss). Há uma ordem no
universo que leva quem a contempla ao conhecimento do seu autor. O mundo é
caminho para Deus. Por isso, são culpados os que não conhecem Deus: Sabedoria 13,
1-9.
Perante o problema do sofrimento, que os profetas interpretaram como castigo de
Deus pelo afastamento do cumprimento da aliança, Job invoca a ordem na criação
para fazer compreender a transcendência de Deus e o insondável que são os seus
desígnios.
A referência religiosa desta literatura está no chamamento a seguir a Sabedoria, que
se manifesta sobretudo na grandeza da criação. Cf. Prov 2, 5-8; 8, 35; Job 28, 28; Eclo
(Ben Sirá) 16, 24; Sab 6, 1-21.
É também específico desta literatura sapiencial a personificação da Sabedoria como
co-princípio de Yahvé na obra da criação: Prov 8, 22ss; Eclo 24, 1-22; Sab 7, 21-8,1.
Esta concepção será retomada no Novo Testamento para a teologia do
cristocentrismo da criação.
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8. 2Mac 7, 22-29
No tempo da perseguição de Antíoco Epífanes, no ano 168 a.C. A mãe dos macabeus
exorta os filhos a preferirem a morte a quebrarem a aliança. A afirmação da mãe é
uma afirmação clara e contundente da criação do mundo e de cada homem por Deus.
Esta fé é usada como motivo e fundamento da esperança diante da morte. Deus
devolverá a vida aos que se dão com generosidade ao martírio: ver 2Mac 7, 28s.
É frequente admitir na exegese moderna a tradução «Deus o criou do nada» (v. 28),
que no original seria algo como «não os fez de seres existentes»: seria um equivalente
ao que a teologia posterior chamará «criação do nada».
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II – A DOUTRINA DA CRIAÇÃO NO NOVO TESTAMENTO
1. Continuidade e novidade
O NT é herdeiro da fé na criação do AT, completando alguns aspectos. O Deus do NT é
sobretudo o Pai de Jesus Cristo. Isto não impede que nas páginas do NT continue a
estar claramente presente a fé em Deus criador e dominador de todas as coisas.
Alguns pontos mais marcantes:
a) Deus criador de tudo
Mt 11, 25 «Eu te bendigo ó Pai...»: evoca o senhorio de Deus num clima de oração e
louvor.
Act 4, 24: é agora a comunidade primitiva que na sua oração evoca o Deus criador de
todas as coisas.
Act 7, 49-50: Estêvão diante do tribunal faz a profissão de fé de Is 66, 1-4.
Act 14, 15: Paulo e Barnabé recusam em Listra as ofertas cultuais, e professam a sua
fé no Deus criador.
Act 17, 22-28: Paulo, no areópago, professa a sua fé no Deus criador, da forma
tradicional, mas ao mesmo tempo afirma a transcendência e a imanência de Deus.
Ef 3, 9: ao falar do mistério de Cristo, escondido desde toda a eternidade em Deus,
São Paulo não se esquece de afirmar que esse Deus é o criador de todas as coisas.
1Tim 6, 13: na primeira carta a Timóteo, Paulo recomenda-lhe, «na presença de Deus,
que dá a vida a todas as coisas», que conserve o mandato que recebeu.
Ap 10, 6: também o autor do Apocalipse expressa a sua fé em Deus criador da forma
tradicional.
b) Deus, arquitecto do mundo
Katabolé kosmou: «criação do mundo» ou «fundação do mundo», em Lc 11, 50, Jo 17,
5. 24; Ef 1, 4, marca a distinção entre o que está antes e o que está depois da criação.
Antes existe a eternidade de Deus, e nela a glória do Verbo preexistente e a nossa
eleição em Cristo. Depois vem toda a história dos homens.
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c) Deus cria pela palavra e é dono absoluto
A passagem de Rom 4, 17 é interpretada por muitos autores como uma referência à
criação pela palavra: «chamar à existência».
A Jesus Cristo foi dado «todo o poder no Céu e na terra» (Mt 28, 18, cf. 2Cor 4, 6; Heb
1, 3; 2Ped 3, 5).
d) Providência
A confiança na providência de Deus supõe o domínio próprio do criador que continua
a actuar no mundo (Lc 12, 24). Afirmação que faz recordar o Salmo 146, 6ss e o Salmo
104 (cf. Job 38-39).
e) Da criação ao Criador
A ideia da Sabedoria, de que as coisas criadas são um caminho para descobrir a
existência de Deus está presente em Rom 1, 19 ss.
3. Cristo, centro da criação
A grande novidade do NT é a visão cristocêntrica da criação.
a) 1Cor 8, 6
São Paulo responde neste texto à pergunta que lhe haviam colocado sobre a
participação nas comidas e nas carnes oferecidas em sacrifício aos ídolos. Este tema
dá a oportunidade do Apóstolo fazer uma profissão de fé em Deus Pai único criador
de todas as coisas e na mediação criadora de Cristo. Um texto breve, que talvez seja
uma fórmula primitiva da fé da comunidade.
Fica patente que Deus Pai é a fonte donde brota toda a criação. Tanto no plano
material como do espiritual, tudo procede d’Ele. E é Ele também o fim de toda a
criação. O círculo, para São Paulo, é claro: tudo vem do Pai, por Cristo, até nós (cf.
1Cor 3, 22-23) e tudo volta de nós por Cristo ao Pai. Neste processo tem grande
importância a mediação de Cristo, que é o Senhor e, como tal, mediador da criação.
Cristo, ao ser o mediador da salvação tem de o ser também da criação. Se a aliança,
no AT, é a razão de ser da criação, o NT substitui a aliança por Cristo, em quem
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acontece a nova aliança, e Ele converte-se na razão de ser da criação. Afirma-se
implicitamente a preexistência de Cristo. Da criação de Cristo nada se diz.
Partícula dia – referente a Cristo implica a sua mediação.
Partícula ex e eis referem-se ao Pai, indicam a procedência e o fim das criaturas.
b) Colossenses 1, 15-20
Admite-se que é um hino litúrgico cristológico anterior à redacção da carta. Está
inspirado na doutrina da Sabedoria dos livros sapienciais, nomeadamente: Prov 8, 2231; Ben Sirá (Eclo) 24; Sab 1, 7; 7, 21-30; 9, 1-4.
Pode falar-se de duas partes. Na primeira (15-18a) canta-se a primazia se Cristo na
criação. A segunda (18b-20) realça a primazia de Cristo na nova criação, ou seja, como
redentor. O hino coloca-nos diante de Cristo glorioso, Senhor ressuscitado, por meio
de quem se revela o verdadeiro mistério do plano salvador e do plano criador de
Deus.
•
Primeira parte (15-17)
Imagem de Deus… (v. 15)
O pano de fundo deste versículo é a Sabedoria (Sab 7, 26), cujas qualidades aplica a
Cristo. Estas qualidades da Sabedoria são:
- criada antes de todas as coisas (Eclo 1, 4-9; 24, 9);
- primícia dos seus desígnios (Prov 8, 22);
- imagem de Deus (Sab 7, 26);
- mediadora da criação (Prov 3, 19; Sab 9, 1).;
Cristo preside à criação, é imagem de Deus e por Ele foram feitas todas as coisas.
Cristo ressuscitado e glorioso é a revelação de Deus invisível, porque n’Ele podem os
homens conhecer o Pai (cf. 2Cor 4, 4). A semelhança de Cristo com o Pai supera a
imagem das criaturas: Ele é imagem perfeita, porque n’Ele habita a plenitude da
divindade (v. 19). Cristo é a imagem visível de Deus invisível (cf. Jo 14, 9; Mt 11, 27; Lc
10, 22).
Talvez o pensamento de Paulo, nesta afirmação, encerre o tema de Cristo como novo
Adão, que leva à perfeição a imagem de Deus esculpida no homem criado à imagem e
semelhança de Deus.
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Primogénito… (v. 15)
Os arianos1 apoiaram-se neste texto para falar da criação do Verbo. Na controvérsia
com os arianos ficou claro que não seria esse o sentido do texto, pois estaria em
contradição com o que se afirma nos vers. 16-17. A sua primazia está em existir antes
de tudo, como a Sabedoria.
Foi nele que todas as coisas foram criadas... (v. 16)
Toda a criação depende de Cristo. Esta é a ideia central dos vers. 16-17. Se em 1Cor 8,
6 se afirmava a mediação de Cristo na criação, aqui Ele é apresentado também como
o fim da mesma criação. O genérico ta panta (todas as coisas) é especificado ao longo
do vers. 16. Cristo aparece como aquele que dá coesão a toda a criação e, nesse
sentido, preside ao acto criador.
Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele... (v. 16)
Isto não se afirma da Sabedoria. O próprio São Paulo reserva esta particularidade ao
Pai em 1Cor 8, 6 e Rom 11, 36. Aqui o apóstolo vai mais além da Sabedoria. Enquanto
que nos livros sapienciais, a Sabedoria é uma propriedade de Deus, Cristo é uma
pessoa subsistente e, por isso, pode dizer d’Ele: tudo foi criado para Cristo. Ele é a
coroa da criação, o centro de unidade e reconciliação universal (cf. Ef 1, 10; 1Cor 15,
28; Ap 1, 18; 2, 8; 21, 6). São Paulo reconhece a Cristo a mesmas divindade do Pai e,
como consequência, a sua participação na criação como único mediador e como telos
(fim) para o qual caminha toda a criação.
Ele é anterior a todas as coisas... (v. 17)
Cristo é anterior a tudo, mas ao mesmo tempo aquele que dá coesão a toda a criação:
«todas elas subsistem nele». É uma alusão à Sabedoria como poder de coesão do
universo (Sab 1, 7).
O pensamento de São Paulo move-se numa esfera religiosa. Na pessoa de Cristo actua
o criador, o salvador, o Deus da história da salvação. É neste sentido que se entendem
as expressões «foi nele», «por Ele», «para Ele».
•
Segunda parte (18-20)
Também na nova criação (na redenção, a nova aliança), Cristo tem a primazia.
1
O arianismo foi uma heresia propagada por Ario, presbítero líbio da Igreja de Alexandria, que negava a
divindade de Cristo, reduzindo-O a simples enviado do Pai. Esta heresia, que se difundiu no séc. IV por
toda a cristandade, foi refutada por S. Atanásio e outros padres da Igreja contemporâneos e
formalmente condenada no primeiro concílio ecuménico, o de Niceia (325). Manifestou-se depois com
várias cambiantes.
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Cabeça (v. 18)
Nas cartas paulinas, este termo significa autoridade e supremacia. Nas cartas de
cativeiro tem também o significado do influxo vital da cabeça nos membros.
Princípio (v. 18)
Cristo é o começo da nova humanidade, fonte perene da nova economia da salvação
(Gal 6, 15; 2Cor 5, 17). Por isso os cristãos são, em Cristo, nova criatura. Para São
Paulo esta expressão da «nova criatura» tem o sentido da ruptura com o mundo, de
ser reconciliado e de ter recebido a vida do Espírito, que incorpora o cristão em Cristo
e lhe permite chamar a Deus Pai (Rom 8, 14-17). O cristão é nova criatura por que a
sua conduta de vida manifesta essa vida recebida do Espírito. A nova criação é o fim e
o cume da primeira: na morte de Cristo morre o mundo velho e começa o novo
anunciado pelos profetas (cf. Is 43, 18-19; 65, 17-25). O cristão faz parte desse mundo
novo a partir da sua incorporação em Cristo. A existência do cristão é nova, e essa
novidade consiste em viver segundo Cristo e não segundo o mundo. Nesta nova
criação, Cristo é o argué (princípio).
Primogénito de entre os mortos (v. 18)
A ressurreição de Jesus Cristo não é apenas um facto isolado e pessoal. É sobretudo o
princípio da ressurreição da humanidade. Para São Paulo, negar a ressurreição dos
mortos é também negar a ressurreição de Cristo (1Cor 15).
Para ser Ele o primeiro em tudo (v. 18)
O Pai quer que todo o universo criado tenha a sua razão de ser em Cristo. Ele é o Filho
amado do Pai, o primeiro no amor e na intenção de criar o mundo. Por isso mantém a
sua primazia no universo, na Igreja, em toda a criação material e espiritual.
Foi nele que aprove a Deus fazer habitar toda a plenitude (v. 19)
Em Col 2, 8, São Paulo previne os cristãos para que não se deixem enredar em
filosofias enganadoras fundadas nas tradições humanas... Os hereges de Colossos
negavam a primazia de Cristo e adoravam os elementos do mundo... Nega-se aqui a
divinização dos elementos naturais.
No v. 20, afirma-se que a reordenação de todo o mundo se realiza pelo sangue de
Cristo. Nele se reúne o que estava disperso: a morte e ressurreição de Cristo devolve
o mundo organizado (cosmos e não caos) ao Pai.
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c) Hebreus 1,2ss
Ao estilo de São João no seu Evangelho, o autor da carta aos Hebreus começa com um
prólogo em que professa a divindade de Jesus, usando títulos que parecem fazer
parte de um hino usado na liturgia da Igreja primitiva.
Nesta «espécie» de hino a Jesus Cristo misturam-se títulos divinos e salvíficos com os
cosmológicos. Afirma-se a sua mediação criadora, ao estilo de Colossenses e de João,
inspirados na Sabedoria, e diz-se também que «tudo sustenta», que governa o mundo
com a sua «palavra poderosa». Da Sabedoria já se tinha afirmado que «ela estende-se
com vigor de uma extremidade à outra e tudo governa com bondade» (Sab 8, 1).
Ao mesmo tempo, Deus constitui Jesus Cristo como «herdeiro de todas as coisas». Ou
seja, Ele é também o fim para o qual se dirige o mundo.
Em resumo (teologia paulina):
1. Paulo considera a criação como uma história concreta, na qual estão
presentes: a) a divinização do homem como final da sua existência; b) o
pecado de que é liberto o homem para ser divinizado; c) a encarnação
redentora pela qual o homem se torna filho de Deus.
2. Para São Paulo existe uma conexão íntima entre as coisas criadas e o
homem, como se pode ver em Rom 8, 18-22 e 1Cor 3, 22. O pecado colocou
toda a criatura numa situação de escravidão e também elas esperam ser
libertadas. Assim, o homem apresenta-se como o centro da criação e arrasta
todas as criaturas nas suas opções.
3. No mistério da encarnação redentora, o apóstolo descobre o sentido da
criação do mundo. Cristo, como salvador universal, revela a verdadeira
intenção do Pai, em que tem origem a salvação (cf. 2Cor 5, 18; 1Tim 2, 4).
4. A intenção de Deus antes da criação é fazer uma humanidade unida no Filho,
participando, mediante esta união, na filiação divina (cf. Ef 1, 3ss; Rom 8,
29).
5. Por isso, na intenção de Deus Pai, a criação está subordinada à realização
dessa filiação, que é a suprema autocomunicação de Deus ao homem e, no
homem, a toda a criação.
6. Esta autocomunicação de Deus aos homens, que os torna seus filhos, é
possível a partir da encarnação. Cristo é quem possibilita o acesso dos
homens ao Pai. Por isso, Cristo é também o centro, a razão de ser do
16
universo. Na sua encarnação o mundo adquire uma explicação para a sua
existência. Sem Cristo, tudo deixaria de ter sentido, e é Ele quem tem a
primazia em tudo.
7. Paulo vê esta filiação como superação de um estado de pecado, que
desregrou toda a criação: Cristo é quem realiza a sua reunificação.
8. Esta reunificação realiza-se no sangue de Cristo, donde brota a nova
humanidade: a Igreja, na qual Cristo é a cabeça e o primogénito de entre os
mortos.
9. Por isso, n’Ele, por Ele e para Ele todas as coisas foram criadas, e tudo se
mantém n’Ele. Sem Cristo a criação seria ininteligível.
10. E tudo foi criado para Ele, porque n’Ele Deus se comunica à criatura da
forma mais perfeita da criação (a humanidade de Cristo) e a criatura (o
homem) participa da divindade, finalidade da sua existência.
d) João 1, 1-4
João começa o seu Evangelho afirmando a divindade da Palavra (Logos). Existia desde
o princípio e estava junto de Deus e era Deus. É a preexistência da Palavra. Depois
professa-se a mediação da Palavra na criação com expressões semelhantes às da
literatura paulina. Ao afirmar o papel mediador da Palavra, afirma-se implicitamente a
acção do Pai como criador.
A relação entre criação e salvação deduz-se da apresentação da Palavra como vida e
luz dos homens, conceitos que em João definem tanto o próprio Jesus como a sua
obra salvífica. Há uma transição natural da função do Pai no campo cósmico para o
plano salvífico. Todo o prólogo de João aponta para Cristo como luz e plenitude de
vida, Ele que se vem situar no meio dos homens para que estes participem da sua vida
divina (v. 10 e 16).
e) Conclusão NT
A fé cristã na criação, na sua origem e no seu fim, compreende-se a partir do mistério
da encarnação. Cristo é quem revela o mistério do mundo e da história. Criação e
nova aliança, ou salvação, não só não se contrapõem, mas estão intimamente
relacionadas entre si. A criação em si mesma caminha para Cristo. A salvação é a
finalidade da criação.
17
Para expor esta teologia, os autores do NT serviram-se da doutrina sobre a Sabedoria
dos autores do AT. É possível que tenha também algumas influências da doutrina de
Filon sobre o Logos.
O cristocentrismo da criação permite-nos afirmar que como fundo de todos os valores
humanos está uma dimensão crística: uma orientação para Cristo como plenitude e
sublimação. Por isso, os valores cristãos não se podem opor aos valores humanos:
antes, são a sua plenitude. Por isso, diz o Concílio Vaticano II: «Na realidade, o mistério
do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o
primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo,
novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a
si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime» (GS, 22).
Sem entrar no tema do motivo da encarnação de Cristo (para São Tomás a encarnação
é motivada pelo pecado: Cristo encarna para nos libertar do pecado; para Escoto a
razão de ser da encarnação é a glória de Cristo...), afirma-se aqui apenas que, para a
teologia do NT, na criação histórica Cristo é o seu centro.
18
III - A DOUTRINA DA CRIAÇÃO NA FÉ DA IGREJA
1. Símbolos e profissões de fé
Nas obras dos primeiros autores cristãos são abundantes e coincidentes os textos que,
ao professar a fé dos cristãos, na linha do que se verificou nos textos do Novo
Testamento, afirmam a criação feita pelo Pai com a intervenção do Filho como
mediador.
A fé expressa no início da Didaqué (1, 1-2), ao apresentar o caminho da vida:
Há dois caminhos: um da vida e outro da morte. A diferença entre ambos é
grande. O caminho da vida é, pois, o seguinte: primeiro amarás a Deus que te
criou; depois a teu próximo como a ti mesmo. E tudo o que não queres que seja
feito a ti, não o faças a outro.
N’ O Pastor de Hermas (1º Mandamento, cap. 26):
Antes de tudo, crê que existe um só Deus, que criou e organizou o universo,
fazendo passar todas as coisas do não-ser para o ser, que contém tudo e ele
próprio não é contido por nada. Crê nele e teme-o, e temendo-o, sê continente.
Observa isso e afasta de ti todo mal, para que sejas revestido de toda virtude de
justiça, e viverás para Deus, se observares esse mandamento.
São Justino, na Primeira Apologia, 13:
Que não somos ateus, quem estiver em são juízo não o dirá, pois prestamos
culto ao Criador deste universo, do qual dizemos, conforme nos ensinaram, que
não tem necessidade de sangue, libações ou incenso. Em lugar de todas as
ofertas, nós o louvamos conforme nossas forças, com palavras de oração e
acção de graças. Aprendemos que o único louvor digno dele não é queimar no
fogo o que por ele foi criado para nosso alimento, mas oferecê-lo para nós
mesmos e para os necessitados. Depois, mostrando-nos a ele agradecidos,
dirigir-lhe por nossa palavra louvores e hinos por ter-nos criado, por todos os
19
meios de saúde, pela variedade das espécies e mudanças das estações, ao
mesmo tempo que lhe suplicamos que nos conceda de novo a incorruptibilidade
pela fé que nele temos. Em seguida, demonstramos que, com razão, honramos
também Jesus Cristo, que foi nosso Mestre nessas coisas e para isso nasceu, o
mesmo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, procurador na Judeia no tempo
de Tibério César. Aprendemos que ele é o Filho do próprio Deus verdadeiro, e o
colocamos em segundo lugar, assim como o Espírito profético, que pomos no
terceiro. De fato, consideram-nos loucos, dizendo que damos o segundo lugar a
um homem crucificado, depois do Deus imutável, aquele que existe desde
sempre e criou o universo. É que ignoram o mistério que existe nisso e, por isso,
vos exortamos que presteis atenção quando o expomos.
Outros textos de Santo Ireneu, das Actas dos mártires, de Tertuliano… podiam ser
também referidos, nesta mesma linha. Uma referência apenas para a confissão de fé
típica dos candidatos ao baptismo. Aos catecúmenos é pedido que professem a sua fé,
normalmente em forma de pergunta, como acontece na Tradição Apostólica de
Hipólito de Roma: «Credes em Deus Pai omnipotente (pantocrator)?»
Na forma afirmativa, esta confissão em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da
terra, surge por exemplo nas Catequeses de Cirilo de Jerusalém: «Cremos em um só
Deus, Pai omnipotente (pantocrator), que fez o céu e a terra, tudo o que é visível e
invisível».
2. Orações litúrgicas
As orações litúrgicas antigas estão impregnadas de um profundo sentido teológico. O
culto é em si mesmo uma profissão de fé pelo seu conteúdo dogmático. O que é regra
de fé torna-se oração e louvor.
Na Didaqué (10): «Tu, Senhor omnipotente (despotes), criaste todas as coisas, para
louvor do teu nome, e deste alimento e bebida aos homens para deleite, para que te
sejam agradecidos…»
Outras orações litúrgicas antigas vão na mesma linha: Anáfora dos Apóstolos, a missa
clementina, anáfora de São Basílio, de São Marcos de Alexandria… começam pela
evocação das maravilhas da criação e a relação com o mistério pascal de Cristo na
Eucaristia.
20
3. Catequeses baptismais
Segundo a peregrina Etéria (séc. IV), em Jerusalém a catequese baptismal começava
pelo livro dos Génesis, que o bispo comentava durante 40 dias. Disso dá testemunho
também Santo Agostinho. Depois explicava o Credo. Nas catequeses tanto de Cirilo de
Jerusalém como de Teodoro de Mopsuestia, sobressaem três notas características:
a) Começam por Cristo, cujo Pai é o criador, e a criação se realiza nele e por ele;
b) Esta criação inclui-se numa história que, pela presença de Cristo, se converte
em história sagrada, de salvação;
c) A criação faz descobrir ao homem a sua relação com Deus, que quer ser seu
Pai. A fé introduz o homem na família de Deus.
Uma pequena amostra desta instrução catequética é o texto de São João Crisóstomo
(Catequese 5, 20):
É pois obrigatório que quem se alista nesta particular milícia, a espiritual, creia
no Deus do universo, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, causa de todas as
coisas, o inefável, o incompreensível, o que não pode ser explicado com a
palavra nem com a mente, o que criou todas as coisas por amor do homem e
por bondade.
4. Teologia patrística
Os Padres Apostólicos abordam o tema da criação reflectindo o pensamento bíblico,
centrando-se em Cristo. Os Padres Apologéticos lutam contra as ideias que os gregos
tinham da criação e dos seus deuses. A sua ideia é fazer ver que a verdade estava na fé
professada no cristianismo. Combatem todas as ideias dualistas da mentalidade
helenista do Logos reduzido a um papel meramente cosmológico como intermediário
da criação. A afirmação da transcendência de Deus e da não indigência do mundo
levou-os a admitir que o mundo foi criado para o homem. Defendem a criação do nada
como consequência do monoteísmo. Contra o gnosticismo, com os seus dois
princípios, um bom e um mau, Santo Ireneu defende a unidade de Deus na sua
natureza e no seu agir, identidade entre Deus do AT e do NT. Existe um plano na
criação. Deus é o dominador de tudo, porque tudo criou do nada. Deus cria livremente
para manifestar o seu poder, sabedoria, amor e para ter a quem comunicar a sua
própria bondade. Cristo recapitulou em si todas as coisas. A criação é uma obra
continuada de Deus, submetida a um devir até que o homem atinja a visão de Deus
depois de um tempo de maturação.
21
Tertuliano, na linha de Ireneu, defende contra os gnósticos, a identidade entre Deus
criador e Deus bom. Deus cria todas as coisas por meio do Verbo. Não existe uma
matéria eterna.
Perdendo o gnosticismo a sua força, o séc. IV e V a controvérsia é sobretudo com os
arianos. Nas disputas surge sobretudo a questão da função do Verbo na criação. Para
os arianos ele era a primeira criatura, que o Pai tinha à sua disposição para levar a
cabo toda a restante obra da criação. Três pontos são irrefutáveis para os Padres nesta
discussão:
a) Deus é o criador de tudo
b) A criação do nada
c) Absoluta liberdade de Deus ao criar
Santo Agostinho procurou harmonizar a filosofia grega com a fé cristã. Para ele, existe
um só Deus, o Pai de Jesus Cristo, que criou todas as coisas do nada. Não são
admissíveis nem o dualismo nem o imanentismo. Deus criou primeiro a matéria
informe e a partir dela todos os seres. O acto criador é totalmente livre, instantâneo e
feito por amor. Com ele, Deus deposita nas coisas as potencialidades para que possam
desenvolver-se. Mais que criadas no tempo, deve dizer-se que o tempo, como
propriedade das coisas, é criado com elas. O mal é um tema que preocupou Santo
Agostinho. Para ele, o mal não é um ser, nem substância, mas a carência do bem. Não
salienta o aspecto histórico-salvífico da criação.
Como conclusão. Para os Padres a criação é uma verdade herdade do AT. Não há mais
que um Deus que criou todas as coisas do nada, no tempo e com o tempo. Com
frequência consideram a criação como a primeira revelação, que manifesta os
desígnios de Deus, imutáveis apesar do pecado do homem.
A criação chega à sua plenitude em Cristo, que lhe dá a sua verdadeira luz. Cristo é a
chave para entender a história do mundo. A obra de Cristo não é simplesmente o
regresso à criação primitiva, mas a realização definitiva e vitoriosa do único desígnio da
salvação que preside à criação.
5. Magistério da Igreja
Concílio de Niceia (325). É o primeiro concílio ecumé nico convocado contra o
arianismo. Na sua profissão de fé recolhem-se duas afirmações tradicionais. O primeiro
artigo diz: «Cremos em um só Deus, Pai omnipotente (pantocrator), criador de todas
22
as coisa visíveis e invisíveis». Explicita-se que nada poderá ter outra origem senão em
Deus. No segundo artigo, referido ao Filho, professa a sua consustancialidade com o
Pai, ponto de controvérsia com os arianos, afirma-se claramente que «tudo se fez por
meio dele, o que está no céu e o que está na terra».
Constantinopla I (381). O símbolo da fé explicita algo mais o sentido de Deus criador no
primeiro artigo: «Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da
terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis». Acrescenta-se ao símbolo de Niceia: «do
céu e da terra». No segundo artigo, ao falar da mediação criadora do Filho, é mais
parco. Diz apenas: «por Ele todas as coisas foram feitas».
Constantinopla II (553). Acrescenta uma novidade, a da relação das três pessoas
divinas com a criação: «Um só Deus e Pai, do qual tudo; um só Senhor Jesus Cristo,
pelo qual tudo; e um só Espírito Santo, no qual tudo».
Uma referência ao Concílio provincial de Braga (563). Contra as ideias da heresia
priscilianista, afirma que as almas humanas e os anjos não provêm da substância
divina; as almas humanas não pecaram no céu e como castigo foram encarceradas nos
corpos; o demónio foi primeiro um anjo bom, criado por Deus, a sua natureza foi obra
de Deus, não surgiu do caos ou das trevas, tem um criador e não é ele o princípio ou
substância do mal; o diabo não fez nenhuma criatura do mundo, os relâmpagos, as
tempestades e as secas não as fez o diabo; a criação da carne é obra de Deus e não de
espíritos malignos.
Latrão IV (1215). É o primeiro concílio que define a criação do nada. São estes os
pontos objecto de definição:
a) a unidade do princípio criador
b) que essa criação foi feita a partir do nada
c) enumeração das coisas criadas
d) carácter temporal da criação
e) origem do mal por vontade criada
Vaticano II (1962-1965). O tema da criação não foi objecto da consideração explícita
no Concílio, mas aparece frequentemente nos diversos documentos promulgados.
Herdeiro das conquistas da renovação teológica realizada na primeira metade do séc.
XX, recupera a perspectiva bíblica da relação entre a criação e a salvação e expõe a
doutrina católica da criação em diálogo aberto com as diversas concepções filosóficas
modernas sobre a origem do mundo.
23
Deus é o criador de todas as coisas (LG 2, 16, 17; GS 34). O acto criador faz parte do
projecto divino de salvação no qual Deus chamou o homem a participar da sua vida
divina. É um acto plenamente livre e feito por amor (LG 2; GS 2). Deus é Senhor e
criador da história (GS 41).
Este senhorio de Deus não priva as coisas da sua autonomia. Tanto as coisas como a
sociedade humana têm as suas leis, que os homens devem reconhecer e respeitar,
porque isso corresponde à vontade de Deus. Quem, com a metodologia da sua própria
ciência e em conformidade com as normas morais, busca a verdade, não encontrará
oposição com a fé. Autonomia da ordem temporal não supõe independência do
Criador. A criatura sem o Criador desaparece (GS 36).
O concílio recuperou também o cristocentrismo da criação. Seguindo de perto a
teologia do NT, afirma que Cristo é o verdadeiro mediador da criação (DV 3). Tudo foi
criado por Cristo (GS 7), Ele é o herdeiro de todas as coisas (AG 2), a Ele está tudo
submetido (LG 36). Cristo leva o mundo e o homem à sua plenitude «quando chegar o
tempo da restauração de todas as coisas» (LG 48).
Entre as coisas criadas, o homem ocupa um posto singular. «Tudo quanto existe sobre
a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo» (GS
12). O homem foi criado à imagem de Deus e destinado a participar da vida divina.
Nesta vocação está a raiz mais profunda da dignidade humana. Cristo é a imagem
perfeita de Deus. Apenas em Jesus o homem conhece o seu ser e a sublimidade da sua
vocação (GS 22). Com o seu trabalho, mesmo em coisas pequenas, o homem continua
a obra do Criador e contribui de modo especial para o cumprimento dos desígnios de
Deus na história (GS 34).
6. Conclusão
O magistério da Igreja foi fiel, ao longo da história, da doutrina herdada da Escritura.
Frente a todo o sistema dualista defendeu e proclamou a unidade de Deus criador, a
exclusão de toda a matéria pré-existente, a distinção entre Deus e o mundo, a absoluta
liberdade de Deus ao criar. Condenou todo o monismo, determinismo, panteísmo.
24
IV – CRIAÇÃO: REFLEXÃO TEOLÓGICA
1. Criação livre
a. Apresentação da questão
Deus, nos seus actos ad intra (internos) actua necessariamente. O Pai necessariamente
tem de gerar o Filho, e com a mesma necessidade tem de proceder do amor do Pai e
do Filho o Espírito Santo. As processões em Deus são eternas, de tal maneira que sem
elas não pode existir. A fé da Igreja defende que Deus criou o mundo por amor à sua
própria bondade e que ama necessariamente desde toda a eternidade. Deduz-se daqui
que Deus ama e cria o mundo necessariamente desde toda a eternidade?
O tema tem grande importância para compreender a natureza do mundo, o seu
sentido e a relação de Deus com as realidades criadas. Na hipótese de uma criação
necessária as coisas continuariam contingentes, porque continuariam dependentes no
seu ser do Criador. Mas menos contingentes, porque necessariamente teriam de
existir e a transcendência de Deus ficaria como que rebaixada, já que Deus não poderia
existir sem criação. Por outro lado, se o acto criador é necessário, são-no também
todas as acções da criação, inclusivamente as dos homens, pelo que se teria de atribuir
o pecado ao mesmo Deus. Também a acção imoral brotaria necessariamente do
homem.
Segundo esta hipótese, desapareceria a gratuidade da criação e, consequentemente
da própria ordem sobrenatural...
b. Liberdade do acto criador na Escritura
As narrações do Génesis nada afirmam explicitamente da liberdade de Deus ao criar,
mas apresentam Deus no princípio de tudo. Não se descreve a sua origem. Cria com a
sua voz poderosa a partir de uma distância majestosa, que acentua desde o princípio a
separação de Deus e do mundo. Toda a emanação e todo o panteísmo ficam
descartados desde o princípio. A imagem de Deus criador é a de um Senhor absoluto,
que faz o que quer.
A criação pela palavra indica uma liberdade absoluta de Deus e, ao mesmo tempo, a
sua transcendência e a autonomia do mundo. A palavra de Deus não é uma força da
25
natureza, mas um poder histórico, não é algo físico, mas intencional: uma
manifestação livre, pessoal, soberana. A criação, o mundo e sobretudo o homem são
obra desta palavra de Deus, são palavra de Deus e resposta a essa palavra.
Na mesma direcção da liberdade do Criador apontam os textos que afirmam que a
criação se ajusta a um plano da sabedoria divina. Onde há um plano há uma
inteligência e vontade que o projectam e executam livremente.
Na exaltação do único Deus verdadeiro frente aos deuses dos gentios, o autor do
salmo 115 afirma: «o nosso Deus está nos céus, e tudo o que quer o realiza» (v. 3).
Repete este mesmo sentimento o autor do salmo 135...
O fundamento da espiritualidade do povo de Israel é a consciência que tem de terem
sido escolhidos gratuita e livremente por Deus. Se a criação tivesse sido um acto
necessário de Deus, todas as acções consequentes também o seriam, e já não se podia
falar de uma predilecção de Deus pelo povo.
O autor do livro da Sabedoria chega mesmo a afirmar que tudo o que existe se deve ao
amor de Deus que lhe deu existência e o mantém na existência (Sab 11, 24-25). Esta
liberdade com que a vontade divina pode dispor de tudo, indica que não está
condicionada por nenhum atributo interno.
São Paulo, na carta aos romanos exprime com os mesmos termos o chamamento à
salvação (Rom 8, 30) e o chamamento do mundo à existência (Rom 4, 17). O Apóstolo
identifica a vontade criadora com a vontade salvífica.
c. Os Padres
Confessam a liberdade de Deus na criação, quando afirmam que Deus fez tudo quanto
quis e que pode destruí-lo com o seu poder. Ao defender a criação do nada frente a
todo o dualismo da época, negavam também toda a coacção exterior em Deus, pois
apenas Ele existia antes do mundo.
A discussão com o arianismo ajudou a clarificar o conceito da liberdade de Deus. O
Verbo não é criado, mas gerado desde toda a eternidade. O Pai não pode senão gerálo. O mundo é criado. A acção ad intra é necessária. A acção ad extra é livre. Pode não
a realizar. O mundo existe porque Deus quer. O Verbo não pode não existir. Santo
Atanásio afirma contra os arianos que quando Deus quer criar o que não existia
delibera antes, mas quando gera o Verbo da sua própria natureza não faz antes
nenhuma deliberação.
A afirmação da liberdade de Deus ao criar, tanto de toda a coacção externa quer de
toda a necessidade interna, foi repetida frequentemente na teologia dos Padres.
26
d. O Magistério
Segue a mesma linha na defesa da liberdade de Deus ao criar. Uma referência para a
Constituição dogmática Dei Filius do Concílio Vaticano I: afirma que Deus criou
liberrimo consilio (com libérrimo desígnio) todas as coisas. E condena quem disser que
Deus criou o mundo com a mesma necessidade com que se ama a si mesmo.
e. Significado teológico
Quando afirmamos que Deus é totalmente livre ao criar, afirmamos a dupla liberdade:
a interior e a exterior. Quer dizer, nada existe fora de Deus que possa coagir à criação.
Admitida a criação a partir do nada, é evidente que nada existe fora de Deus que o
possa coagir. Nem mesmo a necessidade de se amar a si mesmo exige o acto criador.
A criação livre é uma afirmação da transcendência de Deus. Aparece mais clara a
distinção ente Deus e o mundo, o absoluto domínio por parte de Deus da matéria.
Porque a criação é livre, é evidente que Deus não necessita deste mundo para nada.
Ele basta-se a si mesmo. A sua ânsia de conhecer satisfaz-se em si mesmo, nas relações
intra-trinitárias.
A distinção entre Deus e o mundo, que flúi da criação livre, dessacraliza o mundo
criado, mas não o desliga de Deus. As coisas receberam uma finalidade e uma
existência concreta que lhes dá a sua própria autonomia como apresenta a GS.
Para o cristão, acreditar na criação livre é acreditar no amor. É colocar no princípio da
existência o amor infinito de Deus e, desse modo, o mundo inteiro fica imerso no
amor. Todo o mundo é um dom. O mistério do mundo tem uma chave de
interpretação que é o amor.
O dogma da criação tem uma conexão de começo e plenitude com o dogma da nova
criação. Deus cria por iniciativa própria, escolhe um povo em Abraão e recapitula-o em
Cristo. A partir do amor da redenção, para o qual se encaminha a criação, se adivinha e
entende o amor que preside a toda a obra da criação. Por isso, acreditar na criação
livre é adoptar uma postura optimista no mundo. O cristão sabe-se amado, porque a
criação é auto-doação de Deus no amor.
A criação pede uma resposta ao crente. A aceitação alegre da vida como dom de Deus,
e abandono na Providência, como entrega total de si mesmo. Confiar e acreditar,
entregando-se ao amor. E ao mesmo tempo generosa colaboração no plano salvador
de Deus.
27
2. Criação do nada
a) Escritura
Aparece mais explicitamente apenas no texto de 2Mac 7, 28. A criação do nada deriva
da ideia da soberania absoluta de Deus, do conceito monoteísta, da liberdade do acto
criador, do lugar que Cristo ocupa na criação.
O povo de Israel compreende o domínio absoluto de Deus quando se olha como
escolhido. Deus é o Senhor absoluto, todo-poderoso... e tudo neste contexto se
percebe apenas com um Deus que não depende de nada, que cria do nada tudo o que
existe.
b) Tradição
A fé da Igreja é constante e uniforme na profissão da criação ex nihilo. É um dado de
fé. Deus não seria dono absoluto de tudo se não tivesse criado tudo do nada. O
primeiro a dar testemunho desta fé é Hermas n’O Pastor: Antes de tudo, crê que existe
um só Deus, que criou e organizou o universo, fazendo passar todas as coisas do nãoser para o ser (1, 1). Esta é a posição marcada da Tradição, mesmo que se reconheça
em alguns Padres algumas expressões que parecem admitir a matéria eterna... de
facto, alguns Apologetas, procurando conciliar a doutrina cristã com as filosofias da
época, não deram conta da contradição entre o Deus criador de tudo e a matéria
eterna. Isto acontece por exemplo em Justino que reflecte se a matéria informe foi
criada por Deus...
c) Magistério
A criação do nada foi objecto de definição no IVº Concílio de Latrão e no Vaticano I
(secudum totam suam substantiam).
d) Conteúdo teológico
Afirmar a criação do nada é afirmar que não há nenhuma matéria que seja anterior ao
acto criador. Isto não quer dizer que a criação inteira, na sua forma actual, tenha
brotado das mãos de Deus. A negação de qualquer substracto anterior refere-se ao ser
das coisas, não à sua forma. Nada há que tenha a categoria de ser no mundo que não
tenha sido criado por Deus. Mas não exclui a criação evolutiva: segundo a teoria
evolucionista, as coisas vão aparecendo pelo aperfeiçoamento das inferiores às
28
superiores. Isto não significa aumento no ser, mas mudança de estrutura e forma. A
criação evolutiva não se opõe à criação do nada, porque na evolução não aumenta o
ser do mundo mas a sua perfeição.
O conteúdo fundamental da criação ex nihilo ou secudum totam suam substantiam
implica que tudo depende de Deus. Não dá lugar a nenhum dualismo. Como tudo
provém de Deus, a criação é fundamentalmente boa, porque tudo responde ao
projecto divino: é o refrão da narração sacerdotal: «E Deus viu que era bom».
Também não há lugar para o monismo. A criação do nada leva a separar Deus do
mundo, sem o desligar por completo. Nem Deus é o mundo, nem o mundo é Deus.
Espírito e matéria não são Deus mas criação sua.
A criação do nada, pela diferença que supõe entre criador e criatura, situa-nos perante
o problema da imanência e transcendência de Deus. Deus está acima do mundo, mas
ao mesmo tempo dentro dele. Não há nada no mundo criado que se escape à sua
presença e acção. O mundo está em Deus. Deus é o ser supramundano que cria do
nada e com plena liberdade. Mas, ao mesmo tempo, é o mais íntimo a todas as coisas
que dele saíram...
Criação do nada implica dependência total e absoluta de Deus. É este Deus que os
salmistas descobriram, o Deus do discurso de Paulo no areópago, o Deus em quem
Jesus nos convida a confiar. O Deus da contemplação mística que sustenta as criaturas
e nelas opera.
3. A criação no tempo
a) O problema
O mundo, criado do nada e livremente por Deus, teve um começo ou existe desde toda
a eternidade? Uma criação ab aeterno também seria contingente, porque continuaria
a ter toda a sua razão de ser em Deus; do nada porque brotaria totalmente de Deus; e
livre porque se deveria a uma determinação da vontade divina...
b) Escritura
São muitos os textos da Escritura que apontam para uma criação temporal. Houve um
começo, um início absoluto deste mundo. Assim o sugere o texto de P (Gen 1, 1 berechit) com a ideia de um princípio absoluto, com a sua estrutura de uma criação de
um menos para um mais que termina no descanso sabático: criação temporal e
progressiva. Na mesma linha vão textos como Prov 8, 22 («antes que criasse coisa
29
alguma»), ou do salmo 90, 2 («Antes de surgirem as montanhas,antes de nascerem a
terra e o mundo, desde sempre e para sempre Tu és Deus»).
No NT, a expressão «Antes da constituição do mundo» (Ef 1, 4; Jo 17, 24), distingue
notoriamente entre a eternidade de Deus e o mundo temporal. Jesus é anterior a
Abraão (Jo 8, 58), a sua encarnação marca a plenitude dos tempos (Gal 4, 4), que terá
um fim presidido pelo Filho do homem (Mt 24, 30), porque Ele é o alfa e o ómega, o
primeiro e o último, princípio e fim (Ap 23, 13). A concepção linear da história, própria
do NT, não se concebe com uma criação ab aeterno: a história é um caminho que
termina com a apoteose do Ressuscitado e dos que com Ele lutaram até ao fim.
c) Magistério
Expressou-se solenemente sobre o assunto em duas ocasiões. Latrão IV (1215) e
Vaticano I, onde se declara que a criação foi feita por Deus ab inicio temporis. No
pressuposto que a criação é o primeiro acto na história da salvação, é impossível
admitir uma matéria eterna. A criação é o começo de uma acção salvadora que se
desenrola no tempo, numa história concreta que se dirige para Cristo, que é o novo e o
último. Não haveria nada novo e último se o tempo fosse eterno. Na história da
salvação há tempos de criação, pecado, redenção, da Igreja. Deus salva os homens
numa sucessão de tempo que atinge a plenitude na encarnação. Nesta perspectiva
histórico-salvífica parece existir um começo temporal.
d) Possibilidade de uma matéria criada «ab aeterno»
A filosofia pode demonstrar uma preferência pela criação temporal, mas as suas
razões não vão além de provar a sua conveniência, não a sua necessidade.
A ciência não resolve o problema. Os cientistas inclinam-se para assinalar a idade do
mundo a partir de uma explosão inicial (big bang) que se deu num tempo impossível
de fixar com precisão, entre 15.000 e 18.000 milhões de anos atrás. Mas, para a ciência
é ainda impossível determinar o surgir da matéria... a ciência não tem resposta para a
pergunta sobre o quando surgiu a matéria...
Em teologia, continua de pé a questão. A criação ab aeterno não se opõe ao caracter
contigente do criado. Também nessa hipótese, Deus seria o Senhor absoluto de tudo,
porque tudo dependeria dele. A criatura seria eterna, mas uma eternidade distinta da
de Deus: Deus é eterno na sua própria essência, a criatura o seria pela dependência de
Deus. A fé fala do começo temporal deste mundo concreto, mas nada diz sobre a
possibilidade de uma criação ab aeterno.
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e) Como conceber a criação no tempo
Temos sempre uma grande dificuldade em harmonizar a eternidade e o tempo... por
exemplo, como é que Deus conhece o futuro, sobretudo no que depende da liberdade
do homem, a relação entre graça e liberdade... O actuar de Deus não é análogo ao das
criaturas e por isso é para nós mistério...
Como conceber que num «momento» da eternidade, comece a existir o mundo? Esta
dificuldade tem a sua origem no falso conceito ou imagem que re presenta a
eternidade como um vazio onde se coloca o tempo real... Santo Agostinho afirma que
o mundo não foi criado no tempo mas com o tempo. Criação no tempo significa que o
mundo tem um determinado número de anos, mas não que Deus criou o mundo
passado um determinado número de anos. O mundo não existiu sempre, mas tem
uma duração determinada e concreta. Deus pode ter criado um outro mundo anterior
a este. Nesse caso, não seria o nosso mundo, mas outro, diferente, com um tempo
diferente. O nosso mundo tem um tempo real, que é uma sua propriedade intrínseca.
Que o mundo tenha sido criado no tempo significa que não é infinito, eterno e
imutável. Afirma-se simplesmente isto: o criado não é divino, mas mundano.
f) Teologia do tempo
O tempo para o cristão não é um círculo fechado, um eterno retorno, nem apenas a
medida do movimento dos seres materiais... é a duração em que Deus se revela e
comunica ao não-divino. Numa direcção linear e progressiva, o tempo revela o plano
salvador escondido desde toda a eternidade no coração de Deus (DV 2ss).
Mas, nem todas as partes do tempo têm o mesmo valor. Há momentos de especial
importância: criação, escolha de Abraão, encarnação, morte e ressurreição de Cristo...
Vivemos agora no tempo da Igreja, que é ao mesmo tempo de plenitude e de
maturação. De já e ainda não. Plenitude, porque a encarnação de Cristo comunicou
aos homens o definitivo, a possibilidade de participar na vida divina, que o cristão já
possui em gérmen, mas em que espera a sua consumação plena. A vida do cristão é de
esperança e de trabalho. Caminha para um ditoso futuro, que para ele se fez já
presente na sua regeneração baptismal.
O tempo é o âmbito em que a Igreja deve cristificar o mundo. Por isso, o nosso tempo
é de misericórdia e de graça. Ao cristão compete um trabalho de transformação do
mundo. Se para as pessoas profanas, o tempo é dinheiro, para o crente é eternidade.
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A caducidade do tempo não cria no crente um sentimento de angústia ou desilusão: a
figura deste mundo que passa desperta o seu espírito e aperfeiçoar o seu amor na
esperança da transfiguração definitiva.
4. Criação continuada
A criação de Deus não é pontual. O mundo não está criado de uma vez para sempre. A
absoluta dependência da criatura em relação ao criador requer, da parte deste, uma
continuação da acção inicial... a isto chamamos criação continuada. Nesta questão
abarcam-se três conceitos tradicionais: conservação, concurso natural e providência. O
primeiro refere-se à acção divina que mantém as coisas na existência. O segundo a
colaboração de Deus nas operações das criaturas. O terceiro significa o plano salvífico
de Deus que orienta os destinos do mundo.
a) Conservação
A criação do nada faz compreender a contingência do mundo criado, que não deixa de
o ser quando começa a existir. Se a contingência, no começo, exige a acção criadora de
Deus, que explique o salto do não ser para o ser, também a contingência no existir
exige o influxo de Deus para que o que não tem razão de ser em si mesmo, encontre o
apoio que o mantenha e não desapareça no nada. A criação será, portanto, acção
conservadora ou criação continuada.
São muitas as passagens da Escritura que falam desta acção conservadora de Deus.
Recorde-se o Salmo 104, 29: «Se deles escondes o rosto, ficam perturbados;se lhes
tiras o alento, morrem e voltam ao pó donde saíram». Também Sab 11, 24-26: «Tu
amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma
coisa, não a terias criado. E como subsistiria uma coisa, se Tu a não quisesses? Ou
como se conservaria, se não tivesse sido chamada por ti? Mas Tu poupas a todos,
porque todos são teus, ó Senhor, que amas a vida!»
O amor de Deus é actualidade que se manifesta e se revela em acção. A permanência
das criaturas na existência é a prova mais palpável deste amor em acção. Tudo quanto
existe, pelo simples facto de subsistir, evoca a acção criadora de Deus que o chamou à
existência porque o quis, porque o amou...
O NT chega a afirmar a consistência do mundo em Cristo (Heb 1, 3: «Este Filho, que é
resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância e que tudo sustenta com a
sua palavra poderosa, depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se à
direita da Majestade nas alturas»).
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A tradição primitiva da Igreja fez-se eco desta ideia incorporando-a nos símbolos da fé,
ao expressar a fé no domínio absoluto de Deus. Deus pantocrator, que surge na
tradução latina como omnitenens = o que mantém ou conserva todas as coisas... Deus
que segura na sua mão o peso de todo o universo.
b) Conservação activa ou concurso natural
Seria um erro pensar a conservação apenas como algo que sustém o mundo. Deus
conserva actuando juntamente com as coisas. Ele é o autor de todos os fenómenos da
natureza... é um tema frequente na oração dos israelitas.
Jesus partilha desta espiritualidade e a ela convida os seus discípulos (Mt 6, 25-34; Lc
12, 22-31). João justifica a cura ao Sábado feita por Jesus dizendo: «O meu Pai
continua a realizar obras até agora, e Eu também continuo!» (Jo 5, 17).
Os Padres concebem muitas vezes a criação como um processo continuado. Esta
participação activa de Deus nas acções das criaturas é o que é chamado na teologia o
concurso natural divino. Não é um tema fácil... não se trata de duas causas que
concorrem num mesmo plano, com uma acção comum, para produzir um determinado
efeito. Deus e a criatura não concorrem. Deus é a causa transcendente, a criatura a
causa categorial, finita e limitada. Deus dá à criatura o ser e esta pode operar. A
criatura opera com personalidade própria, em virtude da autonomia e das qualidades
que lhe dá e sustenta o criador.
No caso das acções livres, também a acção é toda de Deus e da criatura. Não se perde
a liberdade por causa da presença actuante de Deus. É Ele que dá ao homem a
liberdade de actuar livremente e ajuda, para que, conservando a sua independência,
possa operar com plena responsabilidade. A liberdade divina é a causa transcendente
que possibilita a liberdade da criatura.
A visão evolucionista da criação vê-se complementada e clarificada com a ideia da
criação continuada. Por sua vez, a teologia da criação recebe nova luz da concepção
evolucionista do mundo, promovida pelas ciências, para compreender o sentido
permanente da presença de Deus no ser e operar das coisas criadas.
c) Providência
A partir da experiência pessoal e colectiva do Deus fiel à aliança, os israelitas
compreenderam a fidelidade de Deus a toda a criação. A ideia da conservação é uma
33
consequência da experiência da fidelidade de Deus. Por esse mesmo caminho
descobre a teologia da providência: tudo é regido por Deus conforme os seus desígnios
de salvação. Com esta certeza, o Povo sente-se protegido por Deus.
O NT considera toda a criação a caminho para Cristo como centro do mundo e da
história. A nossa eleição e recapitulação em Cristo é o fim do desígnio de salvação,
escondido desde toda a eternidade em Deus e manifestado agora na plenitude dos
tempos. Preside ao acto da criação e para ele se dirige toda a história.
A primeira teologia cristã dá uma grande importância à providência, assim como o
Magistério.
Jesus sintetiza a teologia da providência nas seguintes palavras de Mt 6, 25-34 (v. 33:
«Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por
acréscimo»).
A providência, presente no já da história, tem uma projecção de futuro. É a dimensão
escatológica da providência, factor que deve estar sempre presente no julgar da
história e seus acontecimentos, sobretudo nos mais dolorosos da vida...
Olhando para o futuro, duas verdades da nossa fé devem ajudar a avaliá-lo: 1) O
cristão sabe que o Pai providente, pelo grande amor que tem, lhe concederá o que
mais lhe convém. 2) Mas, ao mesmo tempo, desconhece os caminhos que conduzirão
a esse fim. Caminhar na sombra e descobrir Deus no que aos nossos olhos não faz
sentido, é a atitude do crente que caminha no claro – escuro da fé.
Na teologia paulina, também os males entram na providência de Deus como meios que
podem levar ao fim pretendido por Deus. E para atingir este fim, e isto é o mais
importante, requere-se uma atitude de fé e confiança. Apenas quando há fé, que é
aceitação desse destino enigmático, tudo, o bom e o mau, confluem para o bem
salvífico de cada um dos homens.
A providência não é uma segurança intra-mundanda ou intra-histórica, mas a certeza
de que se cumprirá o plano salvador de Deus. Nesta perspectiva é também uma tarefa
para o homem. Deus não faz tudo. Toda a apatia ou confiança excessiva, que leve à
inactividade, é contraditória à providência. É o homem, com a sua inteligência, coração
e mãos que tem de buscar o reino de Deus e torná-lo presente no mundo. A certeza na
providência, que brotará da fé, dá-lhe segurança e ânimo para esta tarefa.
A providência é intra-terrena, mas aponta para o além.
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Também o mal entra na criação continuada. Porquê o mal moral?
Na busca da resposta, estabelecem-se alguns princípios:
1) Deus não é o autor do mal moral. O concurso de Deus nas acções livres do
homem não afecta o pecado como tal. O pecado é carência de ordenação recta
ou privação do bem devido. Esta privação, que converte em pecado a acção
material, não depende de Deus, mas da desordem que o homem introduz nas
suas acções.
2) Deus tira dos males bem, pelo menos no sentido de que as infidelidades dos
homens não são capazes de impedir que se realize o plano salvífico de Deus.
Deus cumpre a sua promessa.
O mal moral, o pecado, é uma manifestação da seriedade com que Deus toma a
liberdade das suas criaturas. O pecado é um obstáculo ao dinamismo da criação, que
se dirige à glória de Deus. Mas, ao mesmo tempo, o pecado é ocasião para manifestar
a omnipotência e o amor infinito de Deus, que sabe superá-lo e convertê-lo em
ocasião de revelação do seu amor pelos homens.
O mal converte-se em tensão de perfeição, de vigilância, de impotência e de ardente
súplica. O pecado, dimensão do homem histórico, revela o amor insondável do Criador
que, fiel a si mesmo, salva o homem.
5. A finalidade da criação
a) Estado da questão
Conhecemos melhor uma coisa sabendo a sua finalidade... Deus é um ser livre e
inteligente que age em virtude de alguma finalidade. Deus cria por amor a algum bem.
Qual é esse bem por cujo amor Deus cria o mundo?
b) Magistério
Deste tema ocupou-se o concílio Vaticano I. A expressão «para manifestar a sua
perfeição pelos bens que reparte com as criaturas» significa que Deus cria para
comunicar a sua própria bondade. Na criação a manifestação da bondade divina
realiza-se pela comunicação dessa mesma bondade.
O mundo foi criado para manifestar a perfeição divina e comunicar a bondade divina
às criaturas. O Concílio afirma que Deus não necessita do mundo. A criação é um acto
do amor de Deus, que O leva a comunicar desinteressadamente a sua própria bondade
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às criaturas e assim manifesta a sua perfeição divina. Por isso, o mundo é a
manifestação da glória de Deus que se reflecte nas criaturas. O fim do acto criador é
dar parte no amor de Deus e na sua glória. O fim do mundo é tomar parte nesse
mesmo amor e glória.
c) Escritura
Com frequência os salmistas convidam a cantar a glória de Deus manifestada nas
criaturas. A história está toda ela cheia da glória de Deus. Essa glória comunica-se ao
homem... Os homens devem dar glória a Deus que conhecem pelas criaturas. Israel é o
Povo escolhido para dar glória a Deus guardando os seus mandamentos.
O NT faz eco destes ensinamentos. Mas a expressão «glória de Deus» adquire uma
forte conotação cristológica: nele se revela a glória de Deus, que revela o Pai e realiza a
salvação. Existe uma relação entre a glória de Deus como finalidade da criação e o
cristocentrismo da mesma: tudo conduz a Cristo. Cristo é a suprema manifestação da
glória de Deus porque é a suprema comunicação da bondade divina ao criado na
natureza humana de Jesus, parte deste mundo. Ao mesmo tempo, Cristo é a suprema
participação do criado no ser de Deus através da união hipostática. Em Cristo – Deus e
homem – dá-se a suprema comunicação de Deus e a suprema participação da criatura.
d) Reflexão final
Há dois pontos que convém clarificar de princípio:
1. O mundo não tem a sua finalidade em si mesmo, mas em Deus, porque
se Deus, ao criar, pretende como fim último o bem da criatura, faz-se
de certo modo dependente dela, o que está em contradição com a
transcendência de Deus.
2. Deus não beneficia em nada da criação, nem procura nada nela. A sua
infinidade e felicidade intrínseca não permitem supor que busque
alguma coisa fora de si mesmo. Quando se afirma que Deus cria para
sua glória, não se deve entender a expressão como se Deus buscasse
algo no não-divino que, de alguma forma, contribuísse para a sua
perfeição.
O problema da finalidade do mundo deve compreender-se a partir do
cristocentrismo da criação. Deus, em si mesmo, é essencialmente diálogo de
comunicação entre as três pessoas divinas. Essa mesma forma de ser, impulsiona-O
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a sair de si mesmo para se comunicar ao não divino, ao mundo. Por isso, a criação
inteira é autocomunicação de Deus, em virtude do seu amor. Deus comunica a sua
bondade e, ao comunicá-la, manifesta-a.
Um único amor: Deus ama-se a si mesmo e às coisas criadas por Ele. O amor a si
mesmo não é um amor de contemplação narcisista, e o amor ao mundo não está
motivado por qualquer interesse. Deus que ama o mundo com amor não de eros
(que busca a própria felicidade no outro), mas de ágape (que comunica ao outro a
própria felicidade, para o fazer feliz, sem procurar nada em troca).
Neste processo de auto-comunicação, o homem ocupa um lugar excepcional entre
todas as criaturas. Ele é o espaço de inteligência no mundo, é o espaço em que o
amor comunicativo de Deus por ser acolhido mediante uma resposta livre. O
homem é o ser que pode devolver a Deus a glória. Por isso é o centro e ápice da
criação.
A suprema auto-comunicação de Deus realiza-se na encarnação. Toda a vida de
Jesus se converte em revelação e glorificação de Deus. E Cristo glorioso,
ressuscitado, é o lugar do encontro do homem com Deus. Em Cristo torna-se
possível a comunicação sobrenatural do amor de Deus ao homem e a participação
deste no amor do Pai. Pela fé e pelo baptismo, o homem incorporado em Cristo,
recebe a auto-comunicação sobrenatural de Deus e o próprio homem torna-se
manifestação da glória de Deus.
A glória de Deus é que o homem participe, pela graça, no ser de Deus. E isto é o
que constitui também a felicidade do homem. Deste modo, coincidem a glória de
Deus e o bem da criatura. A finalidade da criação não é algo distinto do ser de
Deus, mas Deus não é mais feliz nem mais perfeito pelo facto do homem viver ou
não da graça. O homem é que atinge a sua maturidade com essa participação de
Deus em Cristo.
Dizer que o mundo foi criado para glória de Deus, que caminha para Cristo e que a
finalidade do homem é a salvação, coincide com a expressão de que Deus cria por
amor a si mesmo para comunicar-se ao homem, sem buscar a sua própria
felicidade. A salvação do homem é participar da vida divina comunicada em Cristo.
O homem dá glória a Deus fazendo da sua vida um seguimento de Cristo. O pecado
não é resposta ao amor comunicativo de Deus, mas busca egoísta de si mesmo, é
privação da glória de Deus. Por isso, a criação se sente escravizada pelo pecado e
anseia a sua libertação...
A santidade cristã é o ponto de confluência no homem da glória de Deus e da
felicidade ou perfeição da criatura.
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V – O HOMEM – SAGRADA ESCRITURA
1. Antigo Testamento
a. Vocabulário
Para conhecer a antropologia dos livros do AT é preciso analisar os seguintes termos:
nefes, basar, ruah, leb.
Nefes
Tem um múltiplo significado. Para compreender o significado de uma palavra hebraica
é sempre preciso ter em conta o contexto. Segundo o contexto, significa boca (Is 5,
14), pescoço (Sal 105, 18), garganta (Prov 23, 2), alma (Ex 23, 9), vida (Prov 8, 35),
pessoa (Prov 3, 22), pronome, ou seja, a pessoa concreta nos contextos citados,
fazendo o papel de pronome pessoal (Gen 12, 13). Com este termo assinala-se o
homem como ser necessitado, ansioso de vida. Pode equivaler a «homem
necessitado».
Basar
Nunca se aplica esta palavra a Deus, mas aplica-se também aos animais. Indica
claramente o que o homem tem de comum com eles. Significa: carne (Is 22, 13; Gen 2,
21); corpo (Num 8, 7), indicando toda a parte visível do homem; parentesco (Gen 2, 23;
37, 27), porque é aquilo que une os homens; debilidade (Sal 56, 5), caracteriza a vida
humana como débil, caduca em si mesma. Significa não só a falta de força da criatura
mortal, mas também a sua debilidade. Equivale a «homem efémero».
Ruah
Designa uma força natural, o vento, e atribui-se mais a Deus que aos homens e
animais. Significa: vento como instrumento nas mãos de Deus (Ex 10, 13); alento: é o
vento que dá vida (Zac 12, 1); força vital que potencia o homem com os dons de Deus
(Is 11, 2); espírito como ser independente e invisível, diferente do ruah de Deus, mas
submetido a Ele (2Re 19, 7); ânimo, ou disposição anímica do indivíduo (Prov 18, 14);
força de vontade dada por Deus para empreende alguma tarefa (Jer 51, 11; Sal 51,
12.14). Equivale a «homem fortalecido».
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Leb
Traduz-se normalmente por coração e é o conceito antropológico mais frequente.
Indica: coração como órgão corporal (1Sam 25, 37); sentimento: o coração é a sede
dos sentimentos (Sal 13, 6); desejo (Sal 21, 3); razão: também lhe são atribuídas
funções racionais (Prov 8, 5; 16, 23), tudo o que atribuímos à cabeça e ao cérebro;
decisão, lugar das decisões (2Sam 7, 27; Prov 6, 18). Equivale a «homem capaz de
razão».
Estes termos não nos dão uma definição de homem. Assinalam diversos aspectos do
seu ser. Neles compreendemos o homem na sua relação com o cosmos (basar), na sua
abertura ao alto (nefes), na sua relação com Deus (ruah) e nas suas capacidades de
decisão, racional e livre (leb).
b. Relatos criacionistas
P (sacerdotal): Gen 1, 26 – 2, 4a
1, 26. A primeira coisa que chama a tenção neste versículo é a ruptura do ritmo da
narração. Aqui Deus parece entrar numa espécie de deliberação antes de criar... e é
significativo o plural: «façamos»: resíduos mitológicos (deuses...), uma alusão à
trindade, um plural majestático ou deliberativo?... Certamente que se trata de um
realce: o homem é uma criatura especial.
Isto mesmo se realça nas palavras: «imagem e semelhança». Com esta expressão se
estabelece uma relação entre Deus e o homem que não fora estabelecido com as
restantes criaturas. Ao afirmar que o homem é imagem de Deus destaca-se a relação
essencial do ser humano com o Deus transcendente, porque é essencial à imagem a
relação com o que representa: se se rompe essa relação, a imagem deixa de existir.
Em que consiste essa imagem é um tema que levanta algumas divergências. No
sentido literal, parece óbvio pelo que indicam as palavras que se lhe seguem: «para
que domine...». o homem é imagem porque é que ocupa o lugar de Deus na criação.
1, 27. O verbo criar aparece repetido três vezes. Talvez para indicar a singularidade
deste acto criador e a dignidade do homem. Fala-se também de duas formas de ser
homem, e as duas são imagem de Deus: homem e mulher, masculino e feminino. Uma
igualdade fundamental dos géneros nos quais Deus deposita o grande mistério da
reprodução da vida humana.
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1, 28. Dois aspectos são dignos de realce. Por um lado, a bênção de Deus que diz
respeito à fecundidade depositada no casal: a eles se confia o papel de ser
cooperadores de Deus na transmissão da vida. A sexualidade humana recebe a sua
grandeza e dignidade neste mandato do Criador.
A segunda parte do versículo acentua o domínio sobre todas as coisas. Este domínio
relaciona-se com a ideia de imagem do versículo anterior. Aqui se fundamenta a
atitude do homem como motor da transformação do mundo. Ele é o criador criado,
que exerce o seu domínio pelo trabalho.
1, 29-31. Instaura-se um regime vegetariano, para homens e animais. Segundo alguns,
imagem de uma «idade de ouro» em que homens e animais vivem em paz
alimentando-se das plantas. A aprovação final por parte de Deus é mais completa que
as anteriores.
J (javista): Gen 2, 4b -25
A intenção do autor não é fazer uma repetição da criação do homem. A sua
preocupação não é propriamente a criação mas o mal na criação. Como se explica o
mal, procedendo tudo de Deus, omnipotente e bom? O sentido do texto é religioso,
não é científico.
Usa duas imagens para descrever a criação do homem no v. 7: modelação do corpo
com pó da terra e o insuflar do sopro vital.
Quanto ao pó, o certo é que o autor afirma que o homem é criatura de Deus feito com
matéria frágil... O alento vital é, para os israelitas, o princípio da vida. A morte consiste
no desaparecer deste alento: é de notar que não se fala dele na criação dos animais...
seria algo exclusivo do homem, mas também não se pode afirmar que se possa
identificar com a alma racional.
A superioridade do homem em relação aos animais realça-se na narração: os animais
são criados só da terra e estão ao serviço do homem; o homem domina-os e conheceos: dá-lhes o nome. O homem é amigo de deu, seu interlocutor, responsável pelas suas
acções.
O homem é, neste relato, um ser pessoal, com uma vocação e destino que não
compartilha em absoluto com as demais criaturas. Elas são um marco da sua própria
realização. Tudo é para o homem, menos o fruto da árvore proibida.
2, 18-25. A criação da mulher é precedida da dos animais. As duas narrações
entrelaçam-se no tema da solidão de Adão. Deus cria Eva porque não é bom que o
homem esteja só.
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O sono de Adão indica uma acção misteriosa de Deus, que está para além daquilo que
o homem pode conhecer: o mistério da vida é um mistério para o homem... A costela é
carne e osso, de que é composto o homem. Por isso pode o homem reconhecer Eva
como sua semelhante: mulher, tirada do homem.
A criação da mulher é um hino aos direitos da mulher e da dignidade da pessoa
humana. Toda esta narração tem como objectivo estabelecer a igualdade pessoal
entre os sexos. Um tema que é representado na solidão de Adão: a sua tristeza e
solidão desaparecem com Eva.
Porque Eva é da mesma natureza de Adão, a sua presença desperta nele um amor tão
grande que será capaz de abandonar pai e mãe para unir-se a ela num laço tão forte
que formam uma só carne. Assim se cria o espaço vital para que Deus, mediante o
matrimónio dos esposos, continue criando outros seres humanos. O matrimónio,
união dos sexos no amor, é o santuário da vida humana.
Resumindo:
1) Com estilos diferentes, e usando tradições antigas, ambas as narrações deixam
claro que o homem é uma criatura de Deus, objecto de uma criação especial,
da qual não participam as restantes criaturas.
2) Porque é criatura de Deus, tem para com ele uma relação especial de
subordinação e dependência, porque é imagem e semelhança do seu criador.
Esta dependência é acentuada no relato javista quando é colocado dentro do
jardim, para que o cuide e cultive, respeitando a árvore da vida.
3) A sua posição, no final de P e como centro de tudo em J, revela que o homem é
superior a todas as restantes criaturas, sem se pode dizer que seja dono delas:
o Criador é o único dono, e o homem aquele que é colocado como seu
representante no meio das criaturas.
4) Homem e mulher recebem de Deus o encargo de multiplicar-se e o amor
mútuo constitui a fonte da vida humana.
5) A segunda narração destaca o aspecto dialogal do homem com Deus e com os
seus semelhantes, ao mesmo tempo que a providência e carinho especial de
Deus para com ele. A proibição supõe um ser pessoal, responsável, capaz de
fazer decisões importantes.
6) A dignidade da mulher e a sua igualdade com o homem são salientadas nas
duas narrações, de uma maneira especial na segunda.
7) Não faz parte da intenção do autor descrever a matéria de que é feito o
homem, nem o como dessa criação. O redactor final usou duas tradições
anteriores que justapôs para expressar os seus ensinamentos. É claro que não
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acolheu nenhuma como histórica, o que se compreende facilmente pelas
discordâncias internas do texto final...
2. Novo Testamento
Não é uma preocupação dos autores do NT a questão do homem em si mesmo, mas a
sua relação com Deus. O pecado distanciou o homem do seu destino, e Cristo, com a
sua morte e ressurreição, criou a nova situação na qual o homem, ajudado pela graça,
pode sair do seu pecado e alcançar a felicidade eterna. O NT fala sobretudo do homem
pecador salvo por Cristo. Para anunciar esta mensagem, os hagiógrafos usam termos
que oferecem um caminho para a compreensão do homem.
a. Escritos não paulinos
Kardia
Coração, designa o profundo do homem donde partem as decisões: Lc 6, 45. Ao
coração se atribui a dureza em que se fecham os fariseus diante dos milagres de Jesus
(Mc 3, 15), ou, no mesmo sentido, de todo o povo (Mt 13, 15).
Psyché
É frequente o uso deste vocábulo. O seu significado é muito variado, embora seja
frequente traduzi-lo por “alma”. O seu significado mais próprio será “vida”. São claros
neste aspecto os textos que se fala em ganhar ou perder a vida (Mt 10, 39).
Em Ap 6, 9 é usado para falar a situação dos que morreram. É também designada
como a sede dos sentimentos humanos, como em Jo 12, 27: «Agora a minha alma
(psyché) está perturbada...».
Cria um problema de interpretação o texto de Mt 10, 28: «Não temais os que matam o
corpo e não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode fazer perecer na
Geena o corpo e a alma». Para alguns autores, este texto apresenta a composição
dicotómica do homem própria do helenismo: alma e corpo contrapostos. Nesta
interpretação, psyché seria a parte espiritual, oposta à parte material, soma. Nem
todos aceitam esta interpretação: para alguns trata-se apenas da oposição entre o
poder de Deus e o dos homens – Deus pode tirar ao homem a vida enviando-o para a
morte eterna; o homem pode tirar a existência terrena.
Sarx-pneuma
O binómio frequente sarx-pneuma significa a contraposição entre a debilidade
humana (sarx) e a força que Deus lhe concede pelo espírito (pneuma). Assim o adverte
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Jesus no horto: «Vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O espírito está pronto,
mas a carne é débil» (Mt 26, 41). Ao pneuma são atribuídas as atitudes do homem ou
o seu princípio vital.
b. Escritos paulinos
A Paulo não lhe interessa fazer uma antropologia filosófica. O seu interesse está
também, fundamentalmente, na relação do homem com Deus. O homem histórico é
um ser necessitado de redenção. Por isso, a sua antropologia mais do que dizer o
homem em si mesmo, procura apresentar as suas diversas relações com Deus. Os
termos usados não indicam partes do homem, mas manifestam aspectos do homem
completo, considerado a partir de diversas perspectivas.
Soma
Há indícios muito sérios de que nos escritos paulinos se encontra uma concepção
dualista, ou seja, do homem composto de dois elementos: cf. 1Cor 5, 3, 7, 34; 2Cor 12,
2-3. com a palavra soma parece indicar o elemento exterior, sensível, tangível,
constituído por membros, carne e osso: Rom 12, 4-5; 1Cor 12, 12-26; Gal 1, 16... Mas
esta palavra indica muito mais: o homem total como organismo unificado, complexo e
vivo, inclusivamente como pessoa, especialmente quando é o sujeito a quem acontece
alguma coisa, ou é o objecto da sua própria acção: 1Cor 9, 27; Rom 6, 12-13; 8, 13; 12,
1.
Sarx
No sentido mais tipicamente paulino, designa o homem todo na sua existência natural,
física, visível, débil, ligado à terra. Expressa a ideia da criatura natural, abandonada a si
mesma. Sarx designa o homem inteiro dominado pelas tendências naturais e
terrestres. Na antítese sarx – pneuma, sarx é o homem por contraposição a Deus,
sujeito a tudo o que o separa de Deus: 1Cor 1, 29; Gal 5, 19-21.
43
VI – NATUREZA DO HOMEM: UNITÁRIA OU DUALISTA?
Introdução
A partir da sua própria experiência, o homem reconheceu em si mesmo uma dupla
dimensão: a corporal, pela qual se une ao mundo que o rodeia e através do qual
comunica com o mundo e com os outros homens, e a dimensão intelectual ou
espiritual, pela qual se reconhece como algo distinto dessa função física e biológica.
São as dimensões que formam a complexidade humana.
Como conceber essas duas dimensões, e como explicar a sua relação para constituir o
indivíduo humano como pessoa? Também a antropologia teológica aborda este tema
do ponto de vista da fé.
1. Concepção hebraica do homem
Na concepção hebraica do homem predomina uma visão sintética e totalitária.
Concebe-se o homem como uma unidade muito próxima. Os semitas não distinguiam
entre alma e corpo, como o fazia Platão, mas compreendiam-no numa unidade físicapsíquica. Por isso as afirmações antropológicas podem fazer-se de todo o homem ou
de alguma das suas partes, abarcando a partir de uma das suas facetas a totalidade do
homem, como se verificou na análise anterior dos termos utilizados.
Discute-se se a concepção helenista não se faz presente em alguns dos últimos livros
do AT, nomeadamente o livro da Sabedoria.
Sab 8, 19-20; 9, 15 parecem indicar uma concepção dualista do homem. Os textos
referentes à imortalidade do homem poderiam ser uma confirmação desta suspeita (2,
22; 3, 1-10; 4, 7 – 5, 23). Para alguns autores, estes textos poderiam reflectir a seguinte
visão antropológica: a) o homem composto de corpo e alma; b) a alma imortal é
perturbada pelo corpo; c) esta oposição soluciona-se com a morte e sobrevivência da
alma; d) desconhece-se a fé na ressurreição.
Para outros autores, estes textos não indicam uma concepção helenista, mas um
ensaio de aproximação da mentalidade semita aos leitores helenistas. Mas a marca
44
seria fundamentalmente semita. Concluem que a antropologia deste livro é marcada
por: a) uma concepção unitária do homem; b) a imortalidade é graça; c) esperança
escatológica no juízo final e ressurreição; d) uma descrição obscura do estado
posterior à morte.
A antropologia dos autores do NT, como se conclui da terminologia analisada, segue a
marca do AT.
2. Concepção grega do homem
Ao falar da compreensão grega do homem centramo-nos na pitagórica-platónica, pela
importância que teve na teologia. Predomina a visão dicotómica. As almas são
preexistentes ao corpo e são introduzidas nele como castigo por terem cometido
alguma falta. O corpo é uma prisão, e a redenção consiste em sair dele para voltar ao
mundo da preexistência. Alma e corpo unem-se como a barca e o barqueiro. São duas
substâncias distintas. A essência do homem está na alma espiritual, que é a sua parte
mais importante. O corpo é a fonte do erro e do pecado.
É discutível se esta visão penetrou nos livros mais tardios do AT, como vimos em
relação a Sabedoria. Também o judaísmo se deixou influenciar por este pensamento
que está presente no livro de Henoch, no livro dos Jubileus, no quarto dos Macabeus.
Este pensamento chegou mesmo a penetrar nos círculos de Qumrán.
3. Tradição
A concepção antropológica na teologia não foi uniforme ao longo dos séculos, uma vez
que os teólogos foram sofrendo a influência das diversas correntes de pensamento
com as quais foram dialogando.
O início da história da Igreja está marcado pela luta com os gnósticos. Os Padres
Apologetas partem da noção do homem como imagem e semelhança de Deus e
realçam o valor do corpo humano, frente à visão depreciativa do gnosticismo. Na
configuração do corpo, e não da alma, radica o específico humano. A carne, e não a
alma, é que está destinada à vida no Espírito. O plano de Deus é essencialmente
deificar o corpo, aquilo pelo qual o homem é homem.
Justino afirma que Deus, criador de tudo, formou o homem do pó da terra e nele
insuflou a alma, que não é mortal por sua natureza mas por desígnio divino: se Deus
retirasse o espírito da alma esta deixaria de existir. O mistério e o valor do homem está
45
não seu corpo formado por Deus mas no elemento que vivifica a alma, a que Justino
chama pneuma ou logos. O homem, além de corpo e alma, é constituído por uma
participação do Logos-Espírito que o capacita para o caminho de divinização.
O homem formado à imagem de Deus é o carnal. Cristo é modelo para o homem, que
se deverá assemelhar paulatinamente a Deus, porque o destino do humilde pó é a
convivência com Deus, mediante o exercício da liberdade que permite ao homem
inserir-se no plano salvador de Deus. Para Justino, as almas não vão para o céu senão
na ressurreição da carne.
Ireneo aprova a definição do homem como composto de alma e corpo. O corpo foi
formado pelas mãos de Deus que são o Filho e o Espírito. Não bastam o corpo e a alma
para ter o homem perfeito, mas deve acrescentar-se o Espírito que é opera a salvação
da carne: «São três as realidades que constam do homem perfeito: a carne, a alma e o
Espírito. Uma delas é a que salva e configura, que é o Espírito; outra é a que é unida e
conformada, que é a carne; e a que há entre estas duas, que é a alma; a qual, algumas
vezes, quando segue o Espírito, é elevada por ele, mas algumas vezes, quando está de
acordo com a carne, cai nos desejos terrenos» (Adv. Haer. V, 8, 2).
O homem criado à imagem de Deus é o homem carnal. A sua imagem é o Verbo
incarnado. Por isso, até aparecer o Verbo feito carne, não se podia compreender como
era a imagem a cuja semelhança o homem tinha sido criado.
Tertuliano admite que o homem é composto de alma e corpo. O específico é o corpo,
que foi a primeira coisa a ser criada por Deus, e pelo qual se diferencia dos anjos.
Nos autores do século II predomina uma antropologia baseada na Escritura. As
reflexões baseiam-se na palavra revelada, e não em conceitos filosóficos. Encontra-se
uma forte oposição aos gnósticos, por isso se insiste no corpo e na ressurreição da
carne. A salvação do corpo demonstra a grandeza e a omnipotência de Deus.
Entre os Padres alexandrinos torna-se presente a concepção dualista do homem. Para
Clemente, a alma tem mais dignidade que o corpo. O homem é semelhança de Deus no
nous, na parte racional, a que Clemente chama «o homem interior». A alma é o que
constitui propriamente o homem: «A alma é considerada o melhor do homem, o corpo
o pior, mas nem a alma é por natureza o bom, nem o corpo o mal». O divino no
homem é o Espírito que Deus concede aos que acreditam em Cristo.
Na linha de Clemente, Orígenes afirma que a alma, dotada de liberdade, é o núcleo e a
essência do homem. As almas são criadas anteriormente e infundidas no corpo. Por
causa do seu pecado, são castigadas e encerradas na matéria. A alma tem de ser
46
libertada do corpo para ser feliz. Para Orígenes, o pecado original consiste no pecado
que as almas contraem antes de entrar no corpo.
Lactâncio defende que a alma procede directamente de Deus. O corpo apenas
indirectamente. Por isso a alma é superior ao corpo. Cada alma individual é criada
imediatamente por Deus no momento da concepção do indivíduo humano. Por isso,
ele é considerado o pai do criacionismo.
Sem deixar completamente de lado as ideias do maniqueísmo, Santo Agostinho segue
também a concepção dualista do homem. A alma é a parte principal pela sua maior
proximidade com Deus, capaz de contemplar a Deus, enquanto o corpo é a fonte do
pecado. A unidade do corpo e da alma é mais funcional que substancial. A tarefa da
alma é dominar o corpo e usá-lo como instrumento.
Esta concepção neoplatónica agostiniana continuou no seu essencial na escolástica
primitiva. Esta concepção só viria a sofrer um golpe com São Tomás de Aquino, que
redescobre o pensamento filosófico de Aristóteles. Aristóteles distinguia entre espírito
(nous), a capacidade reflexiva e alma ou princípio de vida. O Espírito é divino, vem de
fora e não mostra nenhuma conexão com o homem na sua actividade. São Tomás
concebeu a alma individual e pessoal como a única forma do corpo. Ou seja: a)
unidade radical e íntima do composto humano formado de alma e corpo; b) o corpo
não é inferior à alma e pior que ela, não é uma prisão ou um instrumento dela; c) da
corporalidade surge a dimensão social e histórica do homem. Pelo corpo, cada homem
se individualiza e ao mesmo tempo relaciona-se com os outros. Esta solução de São
Tomás será aceite pela Igreja no concílio de Vienne (1311-1312).
Esta passagem pela história mostra a variedade de concepções antropológicas de que
a teologia se serviu para pensar e transmitir a mensagem da fé. Todas são válidas
desde que não sejam contrárias à verdade professada pela Igreja, como por exemplo a
teoria de Orígenes da preexistência das almas... Demonstra que o caminho é longo e
feito em diálogo com o pensamento e culturas circundantes...
4. Magistério
São muitas as intervenções do Magistério sobre estas questões ao longo da história.
Foram condenados os erros de Orígenes, o concílio provincial de Braga (561) condena
que a alma seja parte da essência divina, o IV concílio de Latrão afirma a composição
do homem em corpo e espírito. Afirma-se que a alma é individual, uma para cada
47
homem, única, não várias em cada indivíduo, forma única do corpo, espiritual, simples,
substancial e imortal. Que a alma é criada imediatamente por Deus.
Tem especial relevo a doutrina do concílio de Vienne (França - 1311-1312) que afirma
a união perfeita entre o espírito e a matéria. Mas vamos centrar-nos apenas no
Concílio Vaticano II.
O Concílio Vaticano II dedica o cap. I da 1ª parte da constituição Gaudium et Spes a
explicar a «dignidade da pessoa humana». Seguindo de perto a Escritura, começa por
afirmar que o homem é o «centro e o termo» de tudo quanto existe sobre a terra.
Criado à imagem de Deus, é o «senhor de todas as criaturas terrenas», e pela sua
natureza é um ser social que tem necessariamente de se relacionar com outros para o
seu próprio desenvolvimento pessoal (12).
O pecado produz uma divisão interna no homem que converte a sua vida numa luta
entre o bem e o mal da qual nos liberta Cristo (13). Pela sua união de corpo e alma, é a
síntese do universo material, que alcança o seu termo no homem. O homem deve
honrar o seu corpo, superior ao universo material. Afirmar a espiritualidade e
imortalidade da alma é tocar a verdade mais profunda da realidade (14). É a sua
inteligência que o situa acima do universo material (15), a sua consciência moral (16) e
a sua liberdade (17). A maior razão da dignidade humana consiste na sua vocação à
união com Deus (19). Este grande mistério do homem só se pode esclarecer no
mistério do Verbo incarnado, porque Cristo «revela o homem a si mesmo e descobrelhe a sua vocação sublime» (22).
No Catecismo da Igreja Católica, este tema é apresentado nos números 355-366. o
homem criado à imagem e semelhança de Deus, é chamado a participar pelo
conhecimento e pelo amor na vida de Deus (355-356). É uma pessoa capaz de entrar
em comunhão com outras pessoas e estabelecer uma aliança com Deus (357). Tudo foi
criado para o homem (358). O seu mistério só se esclarece no mistério do Verbo
incarnado (359). O género humano forma uma unidade pela sua comunidade de
origem, que o leva à solidariedade e fraternidade (360-361). A pessoa humana é um
ser ao mesmo tempo corporal e espiritual (362). A alma designa o princípio espiritual
no homem (363). Também o corpo participa na dignidade da «imagem de Deus» (364).
“A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como
«forma» do corpo; quer dizer, é graças à alma espiritual que o corpo, constituído de
matéria, é um corpo humano e vivo. No homem, o espírito e a matéria não são duas
naturezas unidas, mas a sua união forma uma única natureza” (365). Cada alma
48
espiritual, criada imediatamente por Deus, é imortal e não morre quando se separa do
corpo pela morte (366).
O Catecismo recolhe a tradição da Igreja e incorpora a antropologia do Vaticano II.
5. Conclusão
Descobre-se um fio condutor que parte das Escrituras e chega aos nossos dias. O
homem, criado por Deus, é senhor, mesmo que não absoluto, de toda a criação. Na
sua dupla dimensão, material e espiritual, constitui uma união tão íntima que a alma é
considerada como forma do corpo. A alma espiritual sobrevive à morte. O homem é
um ser pessoal, capaz de se relacionar com os outros e estabelecer uma aliança com
Deus.
Ao expor esta doutrina sobre o homem, o Magistério expressou-se em termos
claramente de sabor hilemorfista, fundada na filosofia aristotélica da matéria e forma.
Não significa que se assuma a filosofia que está subjacente...
O homem não “tem” uma alma e um corpo, mas “é” alma e corpo. E, na medida em
que ambos são corpo e alma do homem, ele é uno; essa unidade é o aspecto principal.
Apenas a partir desta unidade é possível a distinção entre as duas dimensões,
momentos, nunca partes, do seu ser. O homem é corpo, ou seja, existe no espaço e no
tempo, é parte deste cosmos, encaminha-se para a morte; é alma, isto é, transcende
os condicionalismos deste mundo, é imortal, e, em última análise, tudo isto tem
sentido porque o homem é ser para Deus, é radicalmente relacionado a Ele.
49
VII – O HOMEM, IMAGEM DE DEUS
Com o ser imagem de Deus não se expressa nenhuma qualidade do homem, afirma-se
mais que isso a determinação estrutural do homem.
1. Antigo Testamento
a) Gen 1, 26
A singular criação do homem de P – sacerdotal, apresenta o homem como a única
criatura criada à «imagem e semelhança» de Deus. Muitas interpretações têm sido
feitas deste binómio: postura erecta do homem, a sua alma espiritual, a
intersubjectividade, que se manifesta na sexualidade, o domínio sobre a criação, a
totalidade do ser humano...
No contexto imediato, parece estabelecer uma relação entre a imagem e semelhança
e o domínio que o homem tem de exercer sobre toda a terra. Era costume, no oriente,
que o soberano mandasse construir imagens suas nas várias províncias do seu império
como sinal da sua presença e soberania sobre todos os habitantes... assim o homem,
criado à imagem e semelhança de Deus, que recebe o encargo de dominar a terra.
A expressão indica uma clara distinção entre o homem e Deus, ao mesmo tempo que
exprime a semelhança. O homem não é Deus. Uma coisa é a imagem, outra aquilo de
que é imagem, o real que é representado. Por outro lado, o homem tem uma
parecença com Deus que mais nenhuma criatura tem. Ao afirmar esta imagem e
semelhança, afirma-se quer a transcendência quer a imanência de Deus na existência
humana.
João Paulo II comenta o texto J a partir do tema do homem como imagem de Deus:
“A narrativa da criação do homem, no capítulo primeiro afirma, desde o
princípio e directamente, que o homem foi criado à imagem de Deus enquanto
macho e fêmea. A narrativa do capítulo segundo, pelo contrário, não fala da
«imagem de Deus»; mas revela, do modo que lhe é próprio, que a completa e
definitiva criação do «homem» (submetido primeiramente à experiência da
solidão original) se exprime em dar vida àquela «communio personarum» que o
homem e a mulher formam. Deste modo, a narrativa javista adapta-se ao
50
conteúdo da primeira narrativa. Se, vice-versa, queremos tirar também da
narrativa do texto javista o conceito de «imagem de Deus», podemos então
deduzir que o homem se tornou «imagem e semelhança» de Deus não só
mediante a própria humanidade, mas ainda mediante a comunhão das pessoas,
que o homem e a mulher formam desde o princípio. A função da imagem está
em espelhar aquele que é o modelo, reproduzir o seu protótipo. O homem
torna-se imagem de Deus não tanto no momento da solidão quanto no
momento da comunhão. Ele, de facto, é desde «o princípio» não só imagem em
que se espelha a solidão duma Pessoa que governa o mundo, mas também e
essencialmente, imagem duma imperscrutável comunhão divina de Pessoas.”
JOÃO PAULO II, Mediante a comunhão das pessoas o homem torna-se imagem de
Deus, Audiência geral de Quarta-feira, 14 de Novembro de 1979, nº 3
b) Sir 17, 1-12
O autor do Eclesiástico (Ben Sira) vê no homem, criado da terra à imagem de Deus,
como o representante (substituto) que tem domínio sobre todas as coisas, poder
concedido pelo próprio Criador, dotado de inteligência e língua, olhos, ouvidos e
coração para pensar, com um saber e inteligência capaz de conhecer o bem e o mal.
Neste comentário a Gen une-se a dimensão histórica e ontológica da imagem: o agir
do homem na criação e as qualidades essenciais do homem que, como ser pessoal,
fazem dele o reflexo do ser pessoal de Deus.
c) Sab 2, 23
Também o autor do livro da Sabedoria usa o tema da imagem, no sentido da
imortalidade: o homem foi criado para a imortalidade, e por isso Deus o fez à sua
imagem.
2. Novo Testamento
a) 1 Cor 11, 7; Tiago 3, 9
Um primeiro conjunto de textos refere-se ao homem enquanto imagem de Deus na
ordem natural. O NT insiste mais na afirmação da imagem sobrenatural pela
incorporação do homem em Cristo. São Paulo é quem mais trata deste tema.
51
b) Col 1, 15; 2 Cor 4, 4; Heb 1, 3
Um segundo grupo de textos apresenta Cristo como a imagem perfeita de Deus. Ele é a
autêntica imagem numa unidade perfeita da natureza com o Pai. O destino do cristão
é reproduzir esta imagem de Deus (Rom 8, 29). O pecado deteriorou esta imagem, e
Cristo restitui-lha com novo esplendor. Nele voltamos a encontrar o verdadeiro rosto
de Deus. Contemplando Cristo e seguindo o seu exemplo, o homem pode chegar à
meta da sua vida: ser imagem do Filho. Para que tal aconteça, terá de despir-se do
homem velho e seguir a Cristo com fidelidade (2Cor 3, 18; Col 3, 9-10; Ef 4, 20-24).
A imagem de Deus não se recebe de Deus de uma vez para sempre, de tal maneira que
permaneça no homem perfeita e intocável, nem na primeira, nem na segunda criação,
pelo baptismo. Esta imagem pode ser aperfeiçoada cada dia. E o último retoque,
recebe-o na parusía. Para isso o cristão tem a fé em Cristo que o leva a purificar cada
dia o espelho da sua alma para que nele brilhe o esplendor da glória de Deus, com a
maior perfeição possível.
À luz do NT, a expressão de Génesis adquire um significado mais profundo. O homem
foi criado à imagem de Deus. Cristo torna visível a imagem do Pai, porque ele é a sua
imagem mais perfeita. Por isso, Cristo explica o sentido mais profundo da afirmação do
Génesis: a partir do NT pode afirmar-se que o homem foi criado à imagem de Cristo.
Também se pode acrescentar, a partir da teologia paulina, que ser imagem de Deus é
não apenas a qualidade mais importante do ser humano, mas também uma tarefa.
Porque fomos destinados a reproduzir a imagem de Cristo. Neste sentido, Cristo revela
ao homem a sua própria dignidade e converte-se em caminho para todo o homem que
quer atingir o seu próprio destino (GS 22).
3. Padres
O tema da imagem foi muito frequente na reflexão teológica dos Padres, sobretudo ao
comentar o texto de Gen 1, 26. Nesta época a reflexão teológica está muito
influenciada pela filosofia de Platão e do filósofo judeu Fílon, também este de
influência platónica.
Para Platão, as ideias são modelos divinos, cuja realização e cópia são as coisas
materiais. A alma humana pertence ao mundo das ideias. Com a reflexão filosófica, o
homem adquire a consciência da sua origem divina e actua em consequência disso, ou
seja, inspirando-se no mundo das ideias, e assim recupera a sua semelhança com Deus
e a sua felicidade.
52
Para Fílon, a imagem de Deus está na alma, não no corpo. A alma é imagem do Logos
na sua invisibilidade, incompreensibilidade e familiaridade com o mundo. A
semelhança impressa na alma com a criação não se perdeu com o pecado. Apenas
cessou a familiaridade com o mundo. Sinal dessa permanência da imagem é o domínio
do homem sobre o mundo.
Clemente de Alexandria
Distingue três classes de imagens de Deus: o Verbo, o cristão e o homem. O homem é
imagem enquanto faz o bem e exercita o domínio sobre as coisas. O cristão é imagem
mais perfeita no conhecimento e no amor.
Orígenes
O homem é a sua alma, dotada de liberdade, porque apenas ela pode ser imagem de
Deus. Distingue as duas criações: Gen 1, 26 narra a criação do homem ideal, criado à
imagem e semelhança de Deus; Gen 2, 7 narra a criação do homem caído. Para ele, a
nossa principal substância foi-nos dada enquanto criados à imagem de Deus, não
aquela que nos vem da caída pelo corpo que recebemos, formado do pó da terra. A
imagem foi dada ao homem na criação; a semelhança tem de se conseguir pela
imitação de Deus. Dentro da alma, é na mente (nous) que se realiza a imagem de Deus.
A imagem e semelhança da qual o homem foi criado foi de Jesus Cristo: por isso, na
imitação de Cristo está o caminho para chegar à perfeição da imagem.
Ireneu
Imagem de Deus é o Filho. O homem é imagem da imagem de Deus. Frente aos
gnósticos que depreciam a matéria, paras Ireneu a imagem de Deus está também no
corpo. Todo o homem é imagem de Deus. Cristo é a imagem perfeita do homem. O
modelo é a carne gloriosa de Cristo. A imagem é dada ao homem na criação; a
semelhança tem de se adquirir através de uma assimilação progressiva.
Agostinho
Vê em todas as coisas semelhanças de Deus, com a sua metafísica da participação e
exemplaridade segundo a qual tudo está feito conforme a um modelo supremo que é
Deus. Mas nem todas as coisas são imagens. O que constitui essencialmente a imagem
é a alma e, mais concretamente, a mente. Distingue dois aspectos da mente: inferior,
ou seja, a mente que se dirige às coisas deste mundo e guia o homem nas decisões
mais práticas; e a superior, que se dirige a Deus. A imagem está na segunda, porque
apenas ela é incorruptível, conhece a Deus, invoca-O, ama-O, está em comunicação
53
com Ele. Esta imagem de Deus ficou deformada pelo pecado, mas Deus tornou possível
a sua restauração por Cristo.
Esta breve passagem por alguns dos Padres da Igreja deixa entender a importância e o
conteúdo antropológico essencial que, na teologia dos primeiros séculos, se encerrava
na consideração do homem como imagem de Deus. O comentário ao livro dos Génesis
era a ocasião mais propícia para abordar esta questão. Os caminhos traçados pelos
Padres foram continuados pelos teólogos posteriores...
Damos um salto até à doutrina do Concílio Vaticano II.
Concílio Vaticano II
Não trata directamente o tema, mas faz eco dele na Gaudium et Spes. O homem é
imagem de Deus enquanto é capaz de conhecer e amar a Deus, e no seu domínio
sobre o mundo (12). A ele compete, por ser imagem, construir o mundo em
colaboração com o Criador (34).
Nesta característica fundamental do homem está o fundamento da dignidade humana,
sem distinção de raças e povos. Todo o homem, por ser imagem de Deus é objecto de
direitos e deveres, que devem ser tidos em conta por todos os seus semelhantes. O
homem aparece diante dos seus semelhantes como algo sagrado (34).
Esta imagem foi afectada pelo pecado. Ficou diminuída. Cristo, imagem perfeita do Pai
e do homem, restaurou o que tinha sido apagado ou debilitado pelo pecado (22).
4. Reflexão final
A condição humana de ser imagem de Deus é considerada como o centro de toda a
antropologia cristã. A partir dela se podem estruturar todas as verdades que a teologia
afirma sobre o homem, quer na dimensão vertical do homem, na sua relação com
Deus, quer na sua dimensão horizontal, nas sua relação com os outros homens e com
o mundo. A perfeição da imagem, no seguimento de Cristo, revela a dimensão
histórica do homem, na qual cada um tem de realizar a grande tarefa da sua vida.
Ser imagem de Deus é, no homem, mais que uma qualidade, a sua determinação
estrutural. Todo o homem, enquanto pessoa, é imagem de Deus. Tem, desde o mais
profundo do seu ser, uma referência a Deus como fundamento e figura da sua
existência. Aberto ao mundo e ao Absoluto, o homem tem uma predisposição radical
para estabelecer o diálogo com esse Absoluto, que se lhe revela na própria criação. A
sua capacidade de resposta a essa palavra de Deus na criação, faz do homem um «tu»
frente a Deus, a quem o próprio Deus se quer comunicar e fazer feliz.
54
A semelhança do homem com Deus aponta para essa plenitude de vida e de imagem
que lhe é comunicada por Cristo. O Verbo é quem está diante do Pai e, por isso, é
imagem perfeita, ao dar-lhe a resposta completa nele se reflecte a essência divina no
seu próprio ser. Como homem Jesus declara-se como o obediente, que se volta para o
Pai e cumpre em tudo a sua vontade (Jo 4, 34).
Por isso, Cristo revela a grandeza do homem e é o caminho para chegar a esse mesma
grandeza. No seu conhecimento e seguimento consegue-se que o reflexo de Deus seja
o mais perfeito possível em cada um dos homens.
55
VIII – O HOMEM COMO P ESSOA E SER SOCIAL
1. O homem como pessoa
A pessoa é um ser tão complexo que se torna praticamente impossível defini-lo.
Apesar das muitas tentativas da filosofia e da teologia, não se conseguiu ainda uma
definição aceite por todos. «A pessoa é o mistério mais profundo, pois escapa a toda a
compreensão: quando nos aproximamos dela com a intenção de a objectivar e
contemplar, desaparece da nossa vista. Quando a queremos tomá-la como objecto,
deixa precisamente de ser pessoa. A pessoa nunca se entenderá isolada, mas em
comunicação criadora e amorosa com outras pessoas» (Schtz-R. Sarach)
Sem procurar uma definição, centramo-nos na apresentação de algumas
características que aparecem como elementos constitutivos da pessoa.
A noção de pessoa nasce como auxílio nas disputas teológicas sobre a Trindade e a
Cristologia. Tendo sido posto de parte o modelo de Sabélio (segundo o qual a única
divisão que havia da Trindade era de actividade ou modos – mas teria uma só
substância e uma só pessoa, que se manifesta de formas diversas consoante as
necessidades), e sendo afirmada a consubstancialidade do Verbo, era necessário
explicar como podia manter-se o único Deus com a trindade de pessoas realmente
distintas entre si. A solução passou pela distinção de dois termos que, na sua origem,
teriam significados semelhantes: ousía e hypóstasis. Hipóstasis começa a ser usado em
linguagem trinitária com o sentido de persona, e foi depois traduzido por este termo
latino, para designar cada um dos três que são um único Deus. A fórmula era: mia
ousía, treis hypostáseis, uma natureza, três pessoas.
Não há nos Padres uma noção de pessoa. Teremos de esperar pela Idade Média para
encontrar a primeira definição. Boécio (480-524) é o seu autor: «naturae rationalis
individua substantia» - substância individual de natureza racional. Afirma o substancial
da pessoa, mas não a sua comunicabilidade. As pessoas divinas constituem-se
precisamente pela relação que existe entre elas. A relação é um elemento constitutivo
da pessoa. Foi nessa perspectiva de abrir a definição de Boécio à comunicabilidade que
surgiram muitas outras definições...
56
Uma consequência de todos estes debates é que, na pessoa, se têm de incluir dois
aspectos: uma realidade ontológica que se possui a si mesma, e que ao mesmo tempo
entre em diálogo com outros seres e se comunica com eles. Dar-se e receber são
características da pessoa. Há pessoas unicamente onde o ser disponha de si mesmo,
não seja possuído por nenhuma outra instância, mas se pertença a si mesmo. E nessa
pertença, capaz de relação.
A filosofia procurou, ao longo dos tempos, criar uma definição de pessoa consoante a
linha de pensamento... o problema continua em aberto.
A Escritura não possui uma definição de pessoa, nem fala do homem a partir deste
conceito. Mas apresenta-o como o ser que se distingue de todos os outros seres que
estão à sua volta, pela posse de algumas características que constituem a pessoa
humana. O homem do Javista é um ser responsável pelos seus actos numa tríplice
relação: de dependência perante Deus, em igualdade perante os outros homens, de
domínio diante do mundo e das coisas criadas.
Toda a história da Salvação caminha sobre duas linhas: o pecado do homem e o
empenho de Deus para salvá-lo. Mas a salvação não é nunca uma imposição divina,
mas oferta ou chamamento, que o homem deve aceitar livremente para que se atinja
o projecto salvador de Deus.
Se por pessoa entendemos o ser inteligente que pode dispor de si mesmo, é evidente
que o ser humano deve considerar-se como pessoa, e como tal foi reconhecido na
revelação cristã.
2. O homem como ser social
O homem como pessoa aparece já na sua dimensão social. A dependência do homem
do seu contexto é manifesta. Tanto pelo seu corpo como pelo seu espírito está tão
intrinsecamente relacionado com o mundo que não poderia subsistir sem essa relação.
O seu corpo é fruto de uma longa gestação no seio materno. Depois, continua
dependente dos cuidados maternos, e ao longo da sua vida continua a necessitar das
coisas criadas para o seu des envolvimento biológico.
A sua dimensão espiritual necessita da sociedade como de um novo seio materno para
a formação da sua personalidade. É na sociedade que o homem participa da cultura do
seu tempo, mediante a qual entra nos dinamismos da história. A cultura é crucial para
57
a formação da sua personalidade. Como por osmose, todo o ser humano recebe uma
rica herança dos que o precederam. Torna seus os avanços da ciência, beneficia das
aquisições do pensamento e goza das manifestações artísticas criadas no passado.
Na ordem sobrenatural, o homem está dentro de uma história da salvação, idealizada
por Deus desde toda a eternidade. A relação de Deus com cada homem é pessoal e
comunitária. A fé é a resposta pessoal do homem ao chamamento de Deus. Deus
relaciona-se com cada homem, mas dentro de uma comunidade. O destino do homem
é participar da mesma vida de Deus em comunhão com os seus semelhantes.
A Escritura reflecte este aspecto social do homem de forma abundante. O Javista
sublinha fortemente a relação do homem com Deus, com os semelhantes e com o
mundo. A solidão de Adão, no meio da exuberância do jardim, é uma bela expressão
da sociabilidade.
A eleição do povo como sinal do amor gratuito de Deus e a pertença a Ele como
garantia de salvação são manifestações eloquentes da solidariedade humana no plano
de salvação.
Há um conceito no AT que expressa intensamente a solidariedade entre os homens: a
personalidade corporativa. A união entre os membros que formam o grupo é tão
estreita que o pecado ou o mérito de um deles tem repercussões para o bem ou para o
mal de todos os outros.
No NT não estão ausentes estas ideias do AT. Pecado e salvação são incompreensíveis
sem esta solidariedade entre Adão e Cristo. Cristo não seria salvador se os homens não
tivessem uma comunhão com Ele.
A Igreja, sacramento universal de salvação, é o novo Israel, a comunhão dos filhos de
Deus, no qual fica incorporado o crente pelo baptismo. A união entre os seus membros
é tão perfeita que São Paulo lhe chama o Corpo Místico de Cristo (Rom 12, 5; 1 Cor 12,
27)
O Vaticano II recolhe a doutrina tradicional e fá-la sua. Na LG 9 declara: «aprouve a
Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação
entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse
santamente». E na GS 12 interpreta a criação de Adão e Eva como sinas desta
sociabilidade: «Deus, porém, não criou o homem sozinho: desde o princípio criou-os
«varão e mulher (Gén. 1,27); e a sua união constitui a primeira forma de comunhão
58
entre pessoas. Pois o homem, por sua própria natureza, é um ser social, que não pode
viver nem desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os outros».
A vocação do homem é formar uma só família, em que os homens se tratem por
irmãos. Por isso, o mandamento do amor é o mais importante. Esta é a aspiração que
está no mais profundo do coração humano...
A união entre os homens deve assemelhar-se àquela que mantém entre si as pessoas
divinas (GS 24).
O desenvolvimento da pessoa e o desenvolvimento da sociedade estão intimamente
relacionados. Não existe um sem o outro: «A natureza social do homem torna claro
que o progresso da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade estão
em mútua dependência. Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por sua natureza,
necessita absolutamente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de
todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício ao
homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à
própria vocação, graças ao contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo
com seus irmãos» (GS 25)
Esta interdependência entre indivíduos e comunidade traz consigo o empenho por
procurar o bem comum e a construção de uma sociedade na qual cada pessoa tenha
os meios necessários para realizar a sua própria vocação (GS 27).
O Concílio sublinha de seguida as consequências práticas que derivam da
solidariedade: amor pelos adversários, igualdade entre os homens, superação da ética
individualista, responsabilidade e participação. Encerra o capítulo com o recordar do
sentido social da vocação humana, que se aperfeiçoa e consuma na obra de Jesus
Cristo: «Primogénito entre muitos irmãos, estabeleceu, depois da sua morte e
ressurreição, com o dom do seu Espírito, uma nova comunhão fraterna entre todos os
que O recebem com fé e caridade, a saber, na Igreja, que é o seu corpo, no qual todos,
membros uns dos outros, se prestam mutuamente serviço segundo os diversos dons a
cada um concedidos» (GS 32).
Não é nova a doutrina do Concílio: «Dado, porém, que recentes documentos do
magistério eclesiástico expuseram a doutrina cristã acerca da sociedade humana, o
Concílio limita-se a recordar algumas verdades mais importantes e a expor o seu
fundamento à luz da revelação. Insiste, seguidamente, em algumas consequências de
maior importância para o nosso tempo» (GS 23).
De tudo o que ficou dito, deduz-se que o ser com os outros e para os outros pertence
ao núcleo central da existência humana. Existe uma relação muito profunda entre o
indivíduo e a sociedade.
59
Deve contornar-se os perigos desta relação: o indivíduo não pode diluir-se na
sociedade. Mas o indivíduo também não pode cair num solipsismo esterilizante, que
seria a sua própria morte. A relação autêntica destrói o egoísmo alienante e abre as
portas do amor. O homem tem de viver num duplo movimento: o de se dar e o de
receber. Este é o único caminho para chegar à realização plena da sua personalidade.
«Há uma interdependência e reciprocidade entre as pessoas e a sociedade: tudo o que
se realiza a favor da pessoa é também um serviço à sociedade, e tudo o que se fax em
favor da sociedade é também um benefício à pessoa (...) E a expressão primeira e
original da dimensão social da pessoa é o matrimónio e a família» (Gevaert). Por isso
se pode afirmar, sem qualquer dúvida, que a família é a célula fundamental da
sociedade, nela se forma o homem e experimenta a sua sociabilidade desde o primeiro
momento da sua vida.
60
IX – O HOMEM, CRIADOR CRIADO
Introdução
No meio do ritmo, da pressão e das necessidades consumistas da sociedade actual, o
trabalho é muitas vezes compreendido como um meio de escravização, que quase não
deixa tempo para o encontro com Deus, com as pessoas, na família, consigo mesmo...
Ideologias de tipo marxista tornaram o trabalho um campo de conflitos, de lutas entre
o capital e os operários, com tensões e por vezes confrontos violentos...
Outras perspectivas tornam-no fonte de desilusões. Para alguns, porque a escassez de
trabalho os coloca numa situação em que dificilmente conseguirão adquirir aquilo que
vêem perto mas que sempre lhes foge... Outros, partindo de ideias pessimistas ou
nihilistas, não encontram sentido no trabalho e consideram-no como um meio de vida
necessário mas vivido sem gosto nem qualquer perspectiva...
É preciso descobrir o verdadeiro sentido do trabalho num mundo criado por Deus,
bom para o homem, seu filho.
1. A actividade humana
À luz da revelação, o homem não é um espectador do mundo, mas colaborador de
Deus na obra da criação. Deus entregou ao homem, no último dia da criação, a tarefa
de desenvolver as forças que se encerram na natureza. Esta é a indicação que surge na
narração da criação de Gen 1, 28: “Abençoando-os, Deus disse-lhes: «Crescei e
multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as
aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra.»” Pelo domínio sobre
a terra, o homem cumpre a sua condição essencial de ser imagem de Deus.
Também a narração do Javista apresenta a mesma ideia: “O Senhor Deus levou o
homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar”
(Gen 2, 15). Deus descansou, mas entregou ao homem as ferramentas de trabalho:
inteligência, coração, capacidade criativa, força, mãos, desejo de trabalhar... tudo o
que move o homem e o estimula a realizar as ideias que brotam da sua alma. «O
trabalho responde ao desígnio e à vontade de Deus. As primeiras páginas dos Génesis
apresentam-nos a criação como obra de Deus, o trabalho de Deus. Por isso, Deus
61
chama o homem a trabalhar para se assemelhar a Ele. O trabalho não constitui, por
isso, um facto acessório, e muito menos uma maldição do céu. É, pelo contrário, uma
bênção primordial do Criador, uma actividade que permite ao indivíduo realizar-se e
oferecer um serviço à sociedade. E para além disso terá um prémio, superior, porque
não é inútil no Senhor! (1Cor 15, 58) (João Paulo II).
Cada trabalho deve ser visto, deste modo, no conjunto do desenvolvimento evolutivo.
Todos, trabalhando, contribuímos com os nossos esforços na obra da criação. Todos
somos colaboradores de Deus, porque também Ele hoje continua a trabalhar com o
homem, respeitando a sua autonomia. «Isto aplica-se também às actividades de todos
os dias. Assim, os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas
famílias, de tal modo exercem a própria actividade que prestam conveniente serviço à
sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do
Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos
desígnios de Deus na história» (GS, 34).
Pelo trabalho, o homem exerce o seu domínio sobre o mundo. Na nossa época,
assistimos a novas invenções, progressos técnicos e científicos, pelos quais o homem
domina a natureza e conquista espaço... estas realizações, que passam pelos meios de
comunicação, aos voos espaciais, às descobertas científicas, o homem domina a
natureza que Deus colocou à sua frente como meta de conquista.
Com o trabalho aperfeiçoa-se a criação. Os variados meios de conforto e de bem-estar,
conseguidos pelo talento humano, não são, em última análise, novas criações, mas
aperfeiçoamento da natureza. Mesmo as criações artísticas, as mais parecidas à de
Deus, têm o seu ponto de partida no mundo criado...
Ao mesmo tempo, o trabalho aperfeiçoa o homem que o realiza. «A actividade
humana, do mesmo modo que procede do homem, assim para ele se ordena. De facto,
quando age, o homem não transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a
si mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as próprias faculdades, sai de si e elevase sobre si mesmo. Este desenvolvimento, bem compreendido, vale mais do que os
bens externos que se possam conseguir. O homem vale mais por aquilo que é do que
por aquilo que tem. Do mesmo modo, tudo o que o homem faz para conseguir mais
justiça, mais fraternidade, uma organização mais humana das relações sociais, vale
mais do que os progressos técnicos. Pois tais progressos podem proporcionar a base
material para a promoção humana, mas, por si sós, são incapazes de a realizar» (GS
35). Daqui procede que a norma da actividade humana seja criar aquelas condições
62
que permitam ao homem viver plenamente a sua própria vocação de acordo com o
plano divino.
Para que o trabalho chegue à sua plenitude, é necessário que nele o homem seja
imagem de Deus. Deus é aquele que, ao trabalhar, se dá e se comunica, dá do que é. A
criação inteira, é obra da comunicação que Deus faz da sua própria bondade ao nãodivino. Por isso, o trabalho de Deus é uma manifestação do seu amor e uma
comunicação do mesmo.
Também o homem deve ser, no seu trabalho, comunicação da sua própria bondade. O
trabalho é a ponte pela qual o homem se comunica à realidade que o envolve, e o
caminho que o leva ao encontro com os seus semelhantes. Se o trabalhador se dá a si
mesmo e pelo trabalho põe em comum e ao serviço de todos as suas próprias
qualidades, a sua vida será uma manifestação de amor, e o trabalho uma entrega aos
homens.
Considerado assim o trabalho e realizado em sentido cristão e humano, converte-se
num campo de relações humanas, que unem os homens numa tarefa comum:
construir o mundo do futuro. No trabalho se deveria conseguir atingir a verdadeira
comunidade humana, em que todos os homens se sentem irmãos, superando os
antagonismos que ameaçam cada dia a paz na sociedade. «O trabalho tem em si uma
força que pode dar vida a uma comunidade: a solidariedade. A solidariedade do
trabalho, que se desenvolve espontaneamente entre os que repartem o mesmos tipo
de actividade ou profissão, para abraçar com os interesses dos indivíduos ou dos
grupos o bem comum de toda a sociedade
2. Preocupação ecológica
Ao analisar os aspectos positivos do mundo actual, não podemos deixar de salientar a
preocupação ecológica.
Os bens da criação foram entregues ao homem por Deus, como o canta com profunda
admiração o Salmo 8... Há quem meta precisamente nesta imagem a culpar da actual
crise ecológica... Mas a imagem dos Génesis fala sobretudo do homem como um
jardineiro... Tanto a Escritura como o ensinamento constante da Igreja afirmam
sempre que o homem não é dono absoluto da criação, mas apenas administrador. Os
abusos criam sérios problemas cujas consequências podem ser catastróficas. Para
evitar esses possíveis males, João Paulo II apresenta algumas considerações na
Sollicitudo rei socialis, 34:
63
«O carácter moral do desenvolvimento também não pode prescindir do
respeito pelos seres que formam a natureza visível, a que os Gregos, aludindo
precisamente à ordem que a distingue, chamavam o «cosmos». Também estas
realidades exigem respeito, em virtude de três considerações sobre as quais
convém reflectir atentamente.
A primeira refere-se às vantagens de tomar ainda mais consciência de que não
pode fazer-se impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou
inanimados — animais, plantas e elementos naturais — como se quiser, em
função das próprias exigências económicas. Pelo contrário, é preciso ter em
conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema
ordenado, qual é exactamente o cosmos.
A segunda consideração funda-se, por sua vez, na convicção, dir-se-ia mais
premente, da limitação dos recursos naturais, alguns dos quais não são
renováveis, como se diz. Usá-los como se fossem inexauríveis, com absoluto
domínio, põe em perigo seriamente a sua disponibilidade, não só para a
geração presente, mas sobretudo para as gerações futuras.
A terceira consideração relaciona-se directamente com as consequências que
tem um certo tipo de desenvolvimento, quanto à qualidade da vida nas zonas
industrializadas. Todos sabemos que, como resultado directo ou indirecto da
industrialização, se dá, cada vez com maior frequência, a contaminação do
ambiente, com graves consequências para a saúde da população.
Torna-se evidente, uma vez mais, que o desenvolvimento e a vontade de
planificação que o orienta, assim como o uso dos recursos e a maneira de os
utilizar, não podem ser separados do respeito das exigências morais. Uma
destas impõe limites, sem dúvida, ao uso da natureza visível. O domínio
conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar
de liberdade de «usar e abusar», ou de dispor das coisas como melhor agrade.
A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa
simbolicamente com a proibição de «comer o fruto da árvore» (cf. Gen 2, 16 17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós
estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não
podem impunemente ser transgredidas.»
3. Cristo e o trabalho
A encarnação descobre novas facetas no valor do trabalho. Nela, Deus faz-se irmão dos
homens para partilhar do mesmo destino da humanidade. Jesus de Nazaré, Deus e
homem verdadeiro, torna possível que o próprio Deus partilhe da mesma tarefa dada
64
por Ele mesmo ao homem. Em Jesus de Nazaré, Deus trabalha de uma maneira
diferente daquela que fez ao criar o mundo.
Como afirma João Paulo II (aos operário de Terni, 19 de Março de 1981):
«O Evangelho do trabalho foi escrito sobretudo pelo facto que o Filho de Deus,
da mesma substância do Pai, tornando-se homem trabalhou com as próprias
mãos. Melhor, o seu trabalho, que foi verdadeiro trabalho físico, ocupou a
maior parte da sua vida nesta terra, e entrou assim na obra da, redenção do
homem e do mundo, por ele realizada com a sua própria vida terrena. [...] O
trabalho, de resto, tem o seu início em Deus mesmo. Se abrirmos a Bíblia,
encontramos logo no princípio do Livro do Génesis a narrativa da criação do
mundo. Pois bem, embora tratando-se de uma descrição figurativa e
fantasiosa, a obra da criação é apresentada segundo o esquema de uma
semana de trabalho: Deus-Eloim realiza o seu trabalho durante seis dias, para
"repousar" depois no sétimo dia. Deste modo é dada ao homem a indicação de
ligar o trabalho com o descanso. De facto, entre o trabalho e o repouso existe
um condicionamento recíproco.»
Um dos aspectos difíceis do trabalho não nasce da sua própria essência mas das
circunstâncias em que é realizado. Os egoísmos, as injustiças, a falta de respeito pelo
homem, a incoerência e tantos outros problemas afectam profundamente o homem
que necessariamente tem de trabalhar.
Cristo com o seu trabalho participa do nosso suor. O trabalho de Jesus não é um
passatempo, mas uma necessidade. Trabalhar para comer, movido pelas mesmas
necessidades vitais pertencentes ao homem. Sobre Ele cai o mesmo mandato divino
de Gen 3, 19: «comerás o pão com o suor do teu rosto». Jesus participou das angústias
do homem que procura trabalho, dos contratos e dos salários...
A sua ocupação permite-nos vislumbrar que Ele sentiu as nossas fomes e sofreu as
nossas necessidades... Durante a vida pública, arrancou espigas com os discípulos para
matar a fome... (Lc 6, 1 ss).
Também as nossas alegrias foram partilhadas por Ele. As bodas de Caná não serão um
momento isolado da sua vida. Com frequência O encontramos em banquetes. Os seus
inimigos consideram-no mesmo indigno por comer com pecador, um ébrio... Nada do
que é verdadeiramente humano foi indigno de si: a convivência com os homens é uma
convivência plena.
65
Sem dúvida que o mais importante trabalho de Jesus foi a lição sublime da
transcendência. Durante cerca de 30 anos trabalhou de forma anónima, vulgar,
desconhecida... Nada do que fez Jesus durante esse tempo nos chegou até hoje,
enquanto que se continua a admirar tantas obras de outras pessoas mesmo anteriores
a Ele... O «escondimento» de Jesus é um mistério que projecta uma luz potente nas
tarefas humanas: no que, por ser vulgar, não merece ser conservado, Jesus realiza a
obra mais maravilhosa de Deus, a redenção dos homens. Mais que o exterior, o que
importa aos olhos de Deus é o que o trabalhador põe de si mesmo na obra realizada,
no concreto do seu amor naquilo que faz.
Desta forma, o trabalho de Cristo insere-se no eterno, no divino, e abre o caminho à
transcendência de todo o trabalho humano. Depois de Jesus, é possível introduzir na
esfera do divino os actos do homem. Para Ele não é necessária a inteligência do génio,
nem a perfeição externa da obra... basta o amor do trabalhador. O céu é equidistante
de todos os pontos da terra como de todos os trabalhos, por mais insignificantes que
sejam. Como Cristo, todo o homem, unido a Ele, pode realizar o mesmo amor a Deus e
o mesmo amor aos homens. O importante é fazer o vulgar de uma maneira
extraordinária.
4. A dor do trabalho
Normalmente o trabalho vai acompanhado de fadiga e dor... Nesta dor actual do
trabalho há uma parte eu se tem de atribuir ao pecado. O pecado rompeu o equilíbrio
interno do homem e, consequentemente, da sociedade. Além disso, fruto do pecado é
a falta de fé, aquela que é capaz de abrir horizontes de luz no futuro que dá uma nova
visão às dificuldades da vida...
Mas seria um erro acreditar que a única causa da dureza do trabalho é o pecado. Por si
mesmo, o domínio do mundo comporta o esforço por parte do homem, esforço que
resulta penoso e fatigante. O pecado e o domínio do mundo envolvem ambas o
trabalho na sua atmosfera de dor.
Actualmente, no plano salvífico, o trabalho na sua dimensão de dor, torna exequível
para o crente a sua participação na cruz de Jesus Cristo. Ele que disse: «Se alguém
quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-me» (Lc
9, 23). Mediante a dor, necessária para a vida, o homem pode integrar a sua vida, sem
procurar outros campos, no grande mistério de salvação de Cristo. Com Ele, estamos
pregados na cruz quando assumimos a dor de cada dia resultante do trabalho. «O suor
e a fadiga, que o trabalho comporta necessariamente na presente condição da
humanidade, proporcionam aos cristãos e a todo o homem, dado que todos são
66
chamados para seguir a Cristo, a possibilidade de participar no amor à obra que o
mesmo Cristo veio realizar. Esta obra de salvação foi realizada por meio do sofrimento
e da morte de cruz. Suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo
crucificado por nós, o homem colabora, de algum modo, com o Filho de Deus na
redenção da humanidade. Mostrar-se-á como verdadeiro discípulo de Jesus, levando
também ele a cruz de cada dia nas actividades que é chamado a realizar» (João Paulo
II, Larorem exercens, 27).
A dor é, e sempre foi, um contra-senso na vida do homem, criado para ser feliz. Cristo
talvez não tenha desvelado de todo o mistério da dor, sobretudo daquela que brota
das injustiças humanas, mas indicou, com a sua dor, fruto das mesmas injustiças, que o
sofrimento, assumido no amor ao Pai e aos homens, se converte no altar do próprio
sacrifício, que dá glória a Deus e frutifica em favor de toda a humanidade.
Deve recordar-se que a cruz de Cristo não é o fim, mas caminho para a vida, para a
glorificação. Não é um pau seco, mas uma árvore que regada com o sangue de Cristo,
floresce na manhã de Páscoa. Toda a cruz, unida à de Cristo, participa também desta
vitalidade gloriosa. A dor do trabalho é sementeira de glória na Páscoa gozosa de cada
crente.
5. A autonomia da realidade terrena
Diante do temos que a estreita relação entre actividade humana e religião faça
diminuir ou desaparecer a autonomia do homem, da sociedade ou da ciência, o
Concílio Vaticano II, na GS 36, faz as seguintes anotações:
a) As coisas criadas e a sociedade têm leis e valores que o homem deve
descobrir, utilizar e ordenar. Esta legítima autonomia corresponde à
vontade de Deus. As realidades profanas e as da fé têm uma origem
comum. Por isso, a investigação, autenticamente científica e feita em
conformidade com as normas morais, não é contrária á fé. Mais ainda,
quem com humildade e perseverança entra nos segredos da realidade é
como que conduzido pela mão de Deus.
b) A realidade não é independente do Criador. A criatura, sem o Criador,
desaparece. Os homens não podem usá-la sem referência ao Criador. Uma
autonomia que saia desta referência não é admissível.
67
A revelação afirma desde o princípio que o homem não é proprietário da realidade
terrena, mas mero administrador. Isso mesmo o dá a conhecer Deus a Adão quando,
ao colocá-lo no jardim, lhe impõe as condições da sua presença ali: «E o Senhor Deus
deu esta ordem ao homem: «Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas
não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o
comeres, certamente morrerás» (Gen 2, 16-17).
68
X – A ORIGEM DO HOMEM
1. História da questão
Até ao momento em que surgiram as teorias evolucionistas, a origem do homem
explicava-se com uma leitura historicista das narrações do livro dos Génesis. Dominava
um pensamento fixista da criação, onde o homem surgia como a última criatura saída
integral e directamente das mãos de Deus. Com a chegada do evolucionismo,
transformaram-se as formas de colocar e responder a esta questão da origem do
homem, não apenas no campo das ciências mas também na teologia.
Darwin (1809-1882) é quem marca de forma definitiva a revolução na compreensão da
origem do homem. A primeira reacção de muitos teólogos é de rejeição. No concílio
provincial de Colónia (1862), que tem uma autoridade muito restrita, mas não deixa de
expressar o sentir de muitos crentes, declara-se contrário a toda a espécie de
transformação: «Os primeiros pais foram criados imediatamente por Deus. Portanto,
declaramos como totalmente contrário à Sagrada Escritura e à fé da Igreja as
interpretações daqueles que se atrevem a afirmar que o homem, no que se refere ao
corpo, surgiu de uma espontânea mutação de uma natureza imperfeita que melhorou
continuamente até chegar à natureza humana actual».
O Concílio Vaticano I (1869-1870) não se declara oficialmente contrário ao
evolucionismo. Condena o materialismo em geral e repete a doutrina tradicional, de
Deus criador do homem na alma e no corpo.
O Discurso de Pio XII à Academia Pontifícia das Ciências, em 1941, é a primeira
intervenção eclesiástica que marca a postura a adoptar pelos católicos a respeito do
evolucionismo. Nele se estabelece que o homem supera o reino animal pela sua alma
espiritual, e que o progenitor do homem não pode ser um animal.
Na encíclica Humani generis, publicada em 1950, o Papa Pio XII fala aos teólogos sobre
a forma de abordar os temas que, embora científicos, têm relação com a verdade
revelada. O Papa distingue entre factos demonstrados e hipóteses. Os primeiros
devem ser admitidos, mas quanto às hipóteses deve haver mais calma... No que
respeita ao evolucionismo, lança os seguintes princípios: 1) a investigação deve ser
feita no campo científico e teológico por pessoas competentes; 2) apenas sobre o
corpo: se provem ou não de matéria orgânica preexistente; 3) a fé católica manda-nos
69
sustentar que as almas são criadas imediatamente por Deus; 4) as razões de ambas as
partes devem ser examinadas com imparcialidade; 5) todos devem estar prontos para
aceitar a posição da Igreja. Portanto, fica aberta uma porta à investigação sobre a
origem do corpo do primeiro homem. Mas a encíclica chama a atenção para a
prudência...
João Paulo II exprime-se deste modo sobre esta questão: «Portanto pode dizer-se que,
do ponto de vista da doutrina da fé, não se vê dificuldade em explicar a origem do
homem, quanto ao corpo, pela hipótese do evolucionismo. De facto, há que
acrescentar que a hipótese propõe apenas uma probabilidade, não uma certeza
científica. A doutrina da fé, pelo contrário, afirma invariavelmente que a alma
espiritual do homem foi criada directamente por Deus. Quer dizer, segundo a hipótese
a que aludimos, é possível que o corpo humano, seguindo a ordem impressa pelo
Criador nas energias da vida, tenha sido gradualmente preparado em formas de seres
vivos anteriores. No entanto na alma humana, da qual depende definitivamente a
humanidade do homem, por ser espiritual, não pode brotar da matéria» (João Paulo II,
Audiência geral de 16 de Abril de 1986).
O Catecismo da Igreja Católica, afirma no n.º 366: «A Igreja ensina que cada alma
espiritual é directamente criada por Deus e não produzida pelos pais; e que é imortal».
Conclusão
Encontramos um certo processo evolutivo na doutrina da Igreja acerca do
evolucionismo relativamente ao homem. Perante os temores do início, quando nem
entre os evolucionistas as coisas estavam muito claras, a Igreja mostrou-se cautelosa,
com medo de estar a adulterar alguma verdade de fé... o caminho foi-se desbravando
progressivamente até ao momento actual em que as coisas parecem estar bastante
claras e se podem resumir do seguinte modo:
1) O corpo humano pode vir por evolução, sem que seja necessário admitir
nenhuma acção especial por parte de Deus para o humanizar;
2) A alma não pode vir por evolução. Todas as almas, de todos os homens, são
criadas imediatamente por Deus.
3) A razão pela qual a alma não pode ser produzida pela evolução é que a
evolução é material e a natureza das almas é espiritual.
70
2. Explicação teológica da origem do homem
a. Os dados da questão
Durante muito tempo o aparecimento do homem sobre a terra interpretava-se à luz
de uma leitura histórica dos relatos bíblicos. O homem saíra integralmente das mãos
de Deus por uma acção directa e imediata sobre a totalidade do composto humano,
entendido como corpo e alma. Ambos eram produzidos por Deus.
A concepção evolucionista impôs-se cada vez com mais força. Para muitos cientistas, o
homem é o produto da evolução genética do mundo animal. Visão que não é
plenamente partilhada por filósofos e teólogos, dadas as características especiais do
composto humano. Os cientistas consideram que o primeiro homem é pouco superior
ao animal, do qual procede, na sua morfologia e no seu psiquismo. Com a
paleontologia, descobre os passos graduais do animal até ao homem e estabelece,
com estas premissas, que a evolução explica suficientemente o aparecimento do
primeiro homem.
O filósofo e o teólogo não se contentam com estes dados que, no seu parecer, não
explicam de forma satisfatória o aparecimento do «novo» ser. Fundamentalmente, o
problema é o seguinte: admitindo que o homem apareça através da evolução genética
surge a pergunta: a natureza humana não se reduz, pela sua dimensão intelectual à
espécie animal que é puramente sensitiva. Donde e como lhe é «acrescentada» esta
nova dimensão?
A resposta foi dada, durante algum tempo, dividindo o homem em duas partes: corpo
e alma. A alma é criada imediatamente por Deus e infundida no corpo. Este procede
pela evolução, mas é preparado por uma acção especial de Deus para que possa
receber a alma espiritual. Na origem do homem distinguem-se duas acções de Deus,
além do concurso natural da evolução: a criação da alma espiritual e a humanização do
corpo.
Este caminho foi abandonado. A criação da alma e a sua infusão no corpo não se
coaduna com a actual concepção do homem como uma unidade tão íntima, que a sua
criação terá de ser o termo de uma acção plenamente única. Não pode haver um
corpo humanizado sem uma alma espiritual, nem alma (que é «forma» do corpo) sem
um corpo de que seja forma.
Como responder a estas interrogação dentro da nova antropologia unitária e a visão
evolutiva do mundo?
71
b. Pressupostos teológicos
O teólogo, ao perguntar-se sobre a origem do homem, deve ter diante de si os dados
certos que lhe oferece a sua fé:
1) Unidade do homem, conforme o testemunho da Escritura e do Magistério. O
homem é um corpo inundado pelo espírito e o espírito é a forma do corpo.
2) A dualidade de realidades na essência do homem. Realidades que não derivam uma
da outra, nem são reduzíveis uma à outra.
3) A alma é a forma do corpo, espiritual, simples, imortal, substancial, racional. Só
pode ter origem num acto criador de Deus que, nesse momento, produz algo de novo.
De nenhuma maneira pode ser mero produto do que lhe precede. A alma não existe
fora do corpo, mas começa a existir como forma do corpo.
c. A essencial diferença do homem
Deve ser tido muito em conta, em todo o processo evolutivo, a irredutibilidade do
homem, pela sua dimensão intelectiva, ao reino dos animais, dotados apenas de
dimensões sensitivas materiais. O homem, em relação a tudo o que procede da
evolução, é algo verdadeiramente novo. Esta novidade está sobretudo na sua
inteligência.
A capacidade intelectiva pode ser definida como o poder que o homem possui de
apreender as coisas como realidades e não como meros estímulos. A capacidade de
abstracção é a forma mais perfeita de manifestação da inteligência. Mas, tal como a
criança é inteligente antes de ter o uso da razão, também é possível que tenha existido
homens inteligentes sem uso dessa razão, em que pela imaturidade evolutiva a
inteligência não tinha ainda a capacidade de abstrair…
A diferença entre o homem e o animal não é meramente gradual, mas essencial, que
não consiste num mais em quantidade de estruturas, mas um mais qualitativamente
distinto, que não é fruto de uma simples soma. Entre o primeiro homem e o animal
seu antecessor há um hiato, uma separação, que não é explicado apenas pelas forças
da matéria em evolução.
d. Evolução determinante
O facto de que o homem não possa ser explicado pelas forças da matéria em evolução
não deve ser entendido como um corte na árvore da evolução, mas como uma
continuidade descontínua.
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Morfologicamente, o homem procede do reino animal. Os paleontólogos descobriram,
ainda que com alguma lacunas, o que pode ser a escala de evolução dos primatas aos
hominídeos, e deste ao homo sapiens. As semelhanças morfológicas e psíquicas,
progressivamente mais complexas, levam à conclusão que não se trata de uma mera
evolução, mas de uma verdadeira evolução genética desde o reino animal até ao
homem.
Se se estuda a formação do tipo humano ou o problema da tipificação humana, feita a
humanização, descobre-se um progresso genético entre os diversos tipos de seres
humanos até chegar ao homo sapiens.
Voltando ao problema do aparecimento do primeiro homem, surge a pergunta: será a
hominização evolução? Para responder convém distinguir entre evolução e
mecanismos evolutivos. Não são o mesmo. Uma coisa é evolução e outra as causas
que o motivam. Evolução é um processo genético, no qual se vão produzindo formas
psicossomáticas especificamente novas a partir de outras anteriores, em função
intrínseca e determinante da transformação destas. O novo ser conserva as formas do
anterior, mas transformadas.
A hominização é a evolução dos hominídeos pré-humanos ao hominídeo humanizado,
através do processo genético, determinado pela transformação das estruturas
morfológicas pré-humanas. Apenas nesta nova estrutura floresce um psiquismo que
não poderia ter florescido numa ave ou num equinodermo. Se chamamos a este novo
psiquismo psique inlelectiva, deve dizer-se que esta floresce intrinsecamente a partir
das estruturas psicossomáticas de um hominídeo pré-humano e em função
determinante e transformante destas.
e. O mecanismo evolutivo
O facto da evolução deixa intacta a questão do mecanismo evolutivo. É aqui que a
problemática se complica, ao determinar as causas que influenciam a evolução. Há
causa de ordem física, coimo o ambiente; causas de ordem psíquica, como o modo de
vida, a competição. Todos os factores que compõem o mecanismo da evolução têm de
produzir uma alteração nos genes para que possa perdurar de forma hereditária, no
código genético.
Nos animais, a evolução produz integralmente as formas e a psique do novo animal.
Não é assim com o homem. A sua capacidade intelectiva marca uma descontinuidade
com o processo anterior. A dimensão espiritual não pode ser produzida apenas pela
matéria, com o concurso ordinário de Deus, mas requer uma acção distinta do Criador
que explique o qualitativamente novo, essencialmente distinto de todo a anterior, que
é o psiquismo humano. Por essa razão, o aparecimento do homem, na sua totalidade,
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está determinada pela transformação do hominídeo, mas não é efectuada ou causada
por ela, como estava a do animal. Pode dizer-se que a nova psique, do homem, é
efeito de uma criação ex nihilo. Ali, onde surge algo inédito, qualitativamente distinto,
maior e melhor que o anterior, ali está a surgir algo que, por hipótese, supera a
capacidade operativa do já existente e, por conseguinte, requer outro factor causal,
além do empiricamente detectável, ali está a acção criadora de Deus.
f. Criação da psique humana
Como entender esta criação do nada em conformidade com o que foi dito da
determinação das estruturas genéticas. Algumas linhas de interpretação:
1) A criação do nada da psique intelectiva humana não é uma mera adição. Sucede na
evolução o que sucede na origem do ser humano actual. As células germinais, na sua
estrutura bioquímica, têm em si mesmas a exigência de uma psique humana. Da
mesma maneira as alterações germinais do imediato predecessor do primeiro homem
são a causa biológica exigível da criação da psique humana.
2) Nem é uma criação ab extrínseco, de fora. A psique intelectiva está criada a partir
das estruturas biológicas, brota de dentro. A acção criadora faz que floresça a partir de
dentro naturalmente uma psique humana no acto geracional. Isto acontece em todos
os indivíduos humanos e, por tanto, também nos hominídeos hominizados a partir dos
antepassados infra-humanos. Na alteração germinal, que produz a hominização das
estruturas somáticas, floresce intrinsecamente a partir delas, surge naturalmente, por
uma acção criadora intrínseca, uma psique intelectiva. Mais que fazer as coisas, Deus
faz que se façam…
A acção criadora pertence ao mecanismo da evolução. É o cumprimento intrínseco da
exigência da transformação germinal. Por isso, a acção criadora não apenas não
interrompe o processo de evolução, mas mais, leva-o ao seu termo. Uma espécie que
tivesse as estruturas somáticas que o hominídeo hominizado possui mas não tivesse a
psique intectiva, não poderia ter subsistido biologicamente…
g. Conclusão
O espírito não aparece como um epifenómeno da matéria, mas como um florescer da
mesma.
Não é um epifenómeno porque não é produzido apenas por ela. A matéria, em virtude
da evolução, chega a produzir no psiquismo do hominídeo pré-humano,
imediatamente anterior ao primeiro homem, uma configuração morfológica e uma
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psique sensitiva que exige, para poder subsistir, o complemento da psique intelectiva.
Por isso a criação da alma não é uma mera adição externa.
É um florescer das forças da matéria, porque a acção do Criador não é exterior, mas
interior à acção das criaturas. A psique intelectiva é criada a partir das estruturas
biológicas, brota do fundo da própria vida. Por essa razão, a psique intelectiva aparece
como complemento da evolução. Os mecanismos evolutivos são causa determinante
do espírito, exigem-no, mas não o produzem.
Chamamos a este processo uma continuidade descontínua porque o homem nasce em
virtude da evolução anterior (continuidade) mas sob a influência especial do concurso
criativo (por isso descontinuidade).
3. Origem do indivíduo humano
a. Soluções ao longo da história
A dimensão espiritual do homem exige que a sua causa seja superior às forças
bioquímicas que constituem o acto de gerar. O indivíduo humano, por ser pessoa, não
é produzido como os animais inferiores a ele.
A novidade que supõe o aparecimento de uma pessoa foi explicado de diversas
maneiras ao longo da história:
O emanentismo é património de todos os sistemas panteístas, e faz derivar a alma da
mesma substância de Deus. Nesta teoria estão os estóicos, maniqueos, pricilianos...
Contra esta teoria, a Igreja sempre afirmou a distinção entre a alma e a substância
divina.
O pré-existencialismo afirma que a alma existe antes da sua união com o corpo. Há
duas correntes nesta teoria. Por um lado os que afirmam que a alma é encarcerada no
corpo como castigo por uma falta cometida numa vida anterior (gnósticos, Orígenes),
por outro lado os que afirmam que, sem culpa anterior, a alma se une ao corpo.
Também esta teoria foi condenada pela Igreja.
O generacionismo defende que a alma da criança tem a sua origem nos pais. Numa
corrente materialista, a teoria diz que a alma é gerada como o corpo no acto de
geração. Numa linha espiritual, a alma tem origem na alma dos pais, como defende
Tertuliano. Santo Agostinho contrapôs-se ao generacionismo material, mas ficou
indeciso perante o espiritual. A Igreja também condenou esta corrente.
Frohschammer defendeu que a alma é gerada pela força dos pais, que é criadora em
virtude de um poder comunicado por Deus nas origens. A geração é acção criadora do
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nada em virtude de um poder secundário dado por Deus à humanidade. A sua obra foi
também condenada pela Igreja.
Rosmini, afirmou que os pais geram a alma sensitiva, que se vai aperfeiçoando até se
converter em alma espiritual. Também ele foi condenado.
O criacionismo, que se impôs na teologia desde a alta Escolástica, defende que todas
as almas são criadas imediatamente por Deus. Funda-se sobretudo na impossibilidade
da emanação da alma a partir do ser de Deus, e em que o material não pode produzir
o espiritual. Nem sequer o espiritual pode gerar, porque seria ou parte do mesmo ou
plena comunicação, e o espiritual nem se reparte, nem a alma dos filhos é a alma dos
pais.
Com a Humani generis de Pio XII, a Igreja afirma que a fé católica sustém que as almas
são criadas imediatamente por Deus.
b. Algumas pontualizações ao criacionismo
1) Deus não cria primeiro a alma para a infundir no corpo. Infusão e criação são
simultâneas.
2) Deus não actua a partir de fora. Deus, causa transcendente, actua a partir de dentro
da própria acção do homem.
Quando os pais geram um filho, ser pessoal, acontece algo de novo que requer uma
explicação. A acção geradora não pode produzir por si mesma esse novo ser na sua
totalidade. O efeito é superior à causa. Deus colabora com a causa secundária, que a
transcende e eleva, fazendo com que ela se auto-supere. Deus não actua ao lado dos
pais mas juntamente com eles. Não actua a partir de fora, mas dentro da própria acção
geradora. Por isso, os pais produzem todo o homem e Deus também, mas cada um na
esfera de acção que lhe é própria. Deus no plano transcendente, os pais no plano
categorial.
Nesta explicação salva-se a unidade do homem, a sua singularidade acima do reino
animal, e a peculiaridade do agir de Deus dentro da relação normal entre Deus e o
mundo natural.
4. Monogenismo e poligenismo
Admitido o processo evolutivo para a origem do homem, surge a pergunta do
mogenismo ou poligenismo. Ou seja, a humanidade actual procede de um casal inicial
ou de vários casais que terão aparecido em diferentes locais da terra e em tempos
diversos? Esta questão implica com a questão da unidade da raça humana e com a
teologia do pecado original e da redenção.
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Até ao aparecimento do evolucionismo o pensamento teológico, e científico, era
essencialmente monogenético. Actualmente, a interpretação dos próprios textos do
livro dos Génesis do primeiro relato não encontra neles fundamento para o
monogenismo: o Adão de Génesis não é um indivíduo concreto, mas a humanidade na
qual estão englobados todos os homens, não havendo qualquer preocupação por
parte do autor sagrada por identificar um homem singular. O Adão do segundo relato
parece ser um indivíduo concreto, mas não pode tomar-se o relato como uma
afirmação directa da sua criação imediata por Deus: todo o texto está revestido de
uma forma literária que pretende sobretudo afirmar a questão da entrada do pecado
no mundo.
Assim, não se pode deduzir dos relatos da criação que o monogenismo seja uma
verdade revelada. É evidente que o autor tinha esse pensamento, mas não é uma
verdade de fé pois se trata de uma categoria cultural de que o autor se serve para
expor um ensinamento.
Outros textos bíblicos parecem apontar para o monogenismo: Act 17, 26 ou Rom 5, 12.
A doutrina exposta pela Igreja tem sido sobretudo na linha monogenista. Mas o campo
de investigação teológica continua em aberto, sobretudo na questão da conciliação da
doutrina acerca do pecado original e a hipótese poligenista. Actualmente não é dada
muita importância a esta questão entre os teólogos. É a ciência que deve clarificar a
origem monogenética ou poligenética da humanidade.
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antropologia teológica - Centro de Cultura e Formação Cristã