Muito esquecido,
progressivamente
menos lido, Carlos
de Oliveira foi um
dos mais marcantes
escritores portugueses do século XX, autor de uma obra em
prosa e poesia especialmente cuidada
e mais do que importante na renovação
de um novo realismo
literário, moderno,
sensível, dramático
e extraordinariamente bem escrito.
Cumprem-se em
2013, setenta já quase muito demorados
anos da publicação,
em 1943, do seu primeiro romance,
Casa na Duna, a que
é obrigatório somar
os sessenta anos da
edição dessa verdadeira obra-prima
do romance contemporâneo português
que continua a ser
Uma Abelha na Chuva. Um livro de 1953
que se transformaria mais tarde, em
1972, em imperdível filme dirigido
exemplar e criativamente por Fernando
Lopes: uma película a preto-e-branco
que recria uma obra
literária singular
em que se revisita
passando por metáforas inteligentes e
amores de perdição
esse Portugal arcano que, entre imobilismo e repressão,
recorda um regime
fechado, vigiado e
velhaco que parece
continuar teimosamente a manifestar-se
por aqui e por ali em insistentes manias e mentalidades sociais que resistem à modernidade e à plena democracia.
Carlos de Oliveira nasceu longe, a 10 de
Agosto de 1921, em Belém do Pará, nesse
Brasil que continuava a atrair a muita
lusofonias
nº 19 | 11 de Novembro de 2013
Este suplemento é parte integrante
do Jornal Tribuna de Macau e não
pode ser vendido separadamente
COORDENAÇÃO:
Ivo Carneiro de Sousa
TEXTOS:
• Casa na Duna
• Uma Abelha na Chuva (1953)
• A outra Uma Abelha na Chuva:
o filme de Fernando Lopes (1972)
• Prosfácio: um autor
e uma obra a redescobrir
com urgência
• Uma Abelha na Chuva (1953)
I • II • III
Dia 18 de Novembro:
Guiné-Bissau, Macau
e a China: muitas histórias,
pouco desenvolvimento
APOIO:
Carlos
de Oliveira
Casa na Duna (1943)
a
Uma Abelha na Chuva
da
(1953)
CARLOS DE OLIVEIRA, DA CASA NA DUNA (1943)
A UMA ABELHA NA CHUVA (1953):
O novo romance português do século XX
Ivo Carneiro de Sousa
M
uito esquecido, progressivamente menos lido,
Carlos de Oliveira foi um dos mais marcantes
escritores portugueses do século XX, autor de uma
obra em prosa e poesia especialmente cuidada e
mais do que importante na renovação de um novo
realismo literário, moderno, sensível, dramático e
extraordinariamente bem escrito.
Cumprem-se em 2013, setenta já quase muito demorados anos da publicação, em 1943, do seu primeiro romance, Casa na Duna, a que é obrigatório
somar os sessenta anos da edição dessa verdadeira
obra-prima do romance contemporâneo português
que continua a ser Uma Abelha na Chuva. Um livro
de 1953 que se transformaria mais tarde, em 1972,
em imperdível filme dirigido exemplar e criativamente por Fernando Lopes: uma película a preto-e-branco que recria uma obra literária singular em
que se revisita passando por metáforas inteligentes
e amores de perdição esse Portugal arcano que,
entre imobilismo e repressão, recorda um regime
fechado, vigiado e velhaco que parece continuar
teimosamente a manifestar-se por aqui e por ali
em insistentes manias e mentalidades sociais que
resistem à modernidade e à plena democracia.
Carlos de Oliveira nasceu longe, a 10 de Agosto
de 1921, em Belém do Pará, nesse Brasil que continuava a atrair a muita emigração portuguesa, mas
viajou depressa aos dois anos para se fixar primeiro
na aldeia de Camarneira e, mais demoradamente, na vila de Febres, no concelho de Cantanhede,
acompanhando o seu pai que aceitara uma posição
de médico municipal. Na sua belíssima colectânea
de crónicas e textos editada em 1971, intitulada O
Aprendiz de Feiticeiro, o nosso escritor recordava
esta infância passada nessa região pobre da Gândara que, entalada entre Aveiro e a Figueira da Foz,
perdida nas fronteiras da Bairrada e dos arrabaldes
de Coimbra, marcada por essas muitas dunas que se
vão estendendo até ao litoral, era terra tão esquecida como mais do que pobre: “Meu pai era médico
de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa Senhora
das Febres. Lagoas pantanosas, desolação, calcário, areia. Cresci cercado pela grande pobreza dos
camponeses, por uma mortalidade infantil enorme,
uma emigração espantosa. Natural, portanto, que
tudo isso me tenha tocado (melhor, tatuado). O
lado social e o outro, porque há outro também, as
minhas narrativas ou poemas publicados (quatro romances juvenis e alguns livros de poesia) nasceram
desse ambiente quase lunar habitado por homens e
visto, aqui para nós, com pouca distanciação..., o
que não quer dizer evidentemente que tenha desaproveitado experiências diferentes (ou parecidas)
que a vida e a cultura me proporcionaram depois.”
Aos doze anos, por 1933, Carlos de Oliveira
instala-se em Coimbra para frequentar o ensino
liceal que, terminado, o convidou a matricular-se,
em 1941, na Faculdade de Letras da academia
coimbrã para concluir em seis anos um curso de
Ciências Histórico-Filosóficos que pouco aproveitou na sua vida profissional e literária.
Muito mais proveito intelectual lhe viria do convívio e amizade com personagens cultas, assumi-
damente opositores ao regime salazarista, livres
e democratas, como eram Joaquim Barradas de
Carvalho, João Cochofel, Rui Feijó, Joaquim Namorado e Fernando Namora.
Com este último, seu amigo de infância, concretizou as suas literárias estreias: em 1937, ainda
jovem liceal, publica juntamente com Namora e
Artur Varela um curto livro a que emprestou três
contos e um poema a que chamaram Cabeças de
Barro. Em 1942, ainda no primeiro ano da Faculdade, Carlos de Oliveira edita com esmerados desenhos também de Fernando Namora o seu primeiro
livro de poemas, Turismo, volume dos dez que ofereciam um Novo Cancioneiro em que muitos continuam a ver marco fundamental do chamado neo-realismo (um neo que Mário Dionísio detestava e
o meu velho mestre, Óscar Lopes, achava mesmo
dever ser erradicado das histórias da literatura
portuguesa...). Descobre-se uma obra quase estranha com as suas paisagens poéticas divididas
em três capítulos intitulados Infância, Amazônia
e Gândara, poesia talvez por isso sucessivamente
reescrita e apurada por Carlos de Oliveira.
Tinha apenas 22 anos quando, em 1943, publicou o seu primeiro romance, Casa na Duna, com a
prestigiada chancela da Coimbra Editora, segundo
volume de uma referencial colecção de Novos Prosadores. Logo no ano seguinte surge novo romance, Alcateia, proibido e apreendido pelo regime,
o que não impediu a segunda edição de Casa na
Duna. Em 1945 edita novo livro de poemas, Mãe
Pobre, no preciso ano em que colabora na renovação da revista Vértice e continua a escrever para
a inevitável Seara Nova. Segue-se em 1948 o seu
terceiro romance, Pequenos Burgueses, mais novo
volume de poesias, Colheita Perdida, logo seguido
em 1949 por outro livro de poemas, Descida aos
Infernos. Entretanto, em 1950, muda-se e fixa-se
definitivamente em Lisboa, sendo pouco tempo
professor, depois arquivista de jornal e redactor
de revista, já entre 1963 e 1972.
Pela capital, vai alargando o seu círculo de con-
tactos literários, influenciando e convivendo, entre vários outros, com Manuel da Fonseca, Augusto
Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, Herberto Helder, José Cardoso Pires, Alexandre Pinheiro Torres,
Helder Macedo ou João César Monteiro.
É neste ano de instalação na capital que volta
a publicar renovado livro de poemas, Terra de
Harmonia. Depois, data de 1953 essa obra-prima
do romance português contemporâneo que continua a ser Uma Abelha na Chuva. Quatro anos mais
tarde, em 1957, associa-se com felicidade a José
Gomes Ferreira para editar os Contos Tradicionais
Portugueses, depois adaptados ao cinema por João
César Monteiro. Em 1960, a sua poesia refina-se e
torna-se ainda mais complexa quando edita Cantata. Em 1968 publica dois novos livros de soberba
poesia, Sobre o Lado Esquerdo, o Lado do Coração
e Micropaisagem. Começa também nesta altura a
sua demorada colaboração com Fernando Lopes
na adaptação e recriação cinematográficas de
Uma Abelha na Chuva. Em 1971, para além do já
referido O Aprendiz de Feiticeiro, edita nova obra
poética, Entre Duas Memórias, livro galardoado
com o Prémio Casa da Imprensa. Em 1976, reúne
toda a sua poesia em dois volumes, sob o título de
Trabalho Poético, juntando aos seus poemas anteriores, os inéditos que formaram Pastoral, obra
publicada em 1977.
Sobre este período mais fértil e continuado da
sua produção literária, nas suas crónicas do Aprendiz de Feiticeiro escreveu simplesmente isto sobre
si próprio: “Pensando bem não tenho biografia.
Melhor, todo o escritor português marginalizado
sofre biograficamente do que posso denominar
complexo do icebergue: um terço visível, dois
terços debaixo de água. A parte submersa pelas
circunstâncias que nos impediram de exprimir o
que pensamos, de participar na vida pública, é um
peso (quase morto) que dia a dia nos puxa para o
fundo. Entretanto a linha de flutuação vai subindo
e a parte que se vê diminui proporcionalmente”.
O seu último romance, Finisterra, editado em
1978 e Prémio Cidade de Lisboa, chega-nos com
um subtítulo quase de tese académica: “Paisagem e povoamento”. É uma sorte de demorado
posfácio de toda a sua obra sobre gentes tão pobres e perdidas como as suas rurais paisagens da
Gândara constantemente encravadas na sua poesia, contos, crónicas e romances singulares: fim
do mundo, finisterra, era mesmo esse Portugal de
ancien régime que todos fomos pensando (talvez
com exagerado optimismo...) ter desaparecido
para sempre nas suas dominações, vaidades, invejas, calúnias, estreita estratificação social e muito
corporativismo dos mais que poderosos com essa
Revolução do 25 de Abril de 1974 que Carlos de
Oliveira viveu intensamente como decisivo prenúncio de liberdade também criativa e intelectual. Morreria cedo, com 60 incompletos anos, a 1
de Julho de 1981, esse homem avesso a públicos e
mediáticos palcos, reservado que, quase secreto,
foi um dos maiores vultos da literatura portuguesa
de sempre. A descobrir ou a voltar a ler agora.
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II
Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS
lusofonias
na
P
Duna (1943)
ublicado
faz
exactamente setenta anos, Casa na
Duna é um livro genial, uma pedrada no
charco e uma reinvenção de um novo
realismo literário.
Uma obra verdadeiramente admirável
em todos os seus diversos cambiantes:
na qualidade e acessibilidade de uma escrita extraordinariamente equilibrada,
na profundidade social e psicológica do
temário romanesco,
na
caracterização
cuidada e cúmplice
das principais personagens e na mobilização singular da paisagem natural e cultural. Na verdade,
a aldeia focal do romance, Corrocovo, comparece como
imagem poderosa de um país provinciano, atávico, zelosamente fechado e vigiado, uma sorte de enorme cárcere
rural marcado por uma asfixiante claustrofobia intelectual
onde “há homens a viver como os bichos”. O romance cruza admiravelmente, por isso, esse forte empenhamento social que marcaria o dito neo-realismo português, mas em
que se insere um naturalismo do mais fino gosto que é condição duplamente de lugar da memória e de fascínio pela
paisagem única de Portugal (ou dos muitos retalhos com
que se cerziu historicamente Portugal...): “Hilário gostava
do Inverno à solta. Céus a desabar, casebres submersos, pinhais vergados ao peso das bátegas, água e vento contra a
janela. Passava as noites acordado enquanto o ar de roldão
devastava tudo. Ocorriam-lhe histórias nebulosas da infância. Bruxas, lobisomens, botas de sete léguas”.
Casa na Duna é uma obra também marcante pela sua renovada técnica literária e estratégias estilísticas em que
se reeencontra a influência tanto de Hemingway como do
novo romance brasileiro edificado a partir do Nordeste pelas obras de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de
Queirós e, sobretudo pela sua enorme ressonância internacional, Jorge Amado.
Adoptando uma escrita cinematográfica, relembrando o
primeiro modernismo literário do Brasil, Carlos de Oliveira
frequenta em analepses diversos tempos, muda e transfere formas verbais, salta de sujeito narrativo, privilegiando
também o parágrafo curto e claro. Não se visita nesta obra
singular da literatura portuguesa do século XX uma palavra
deslocada, um adjectivo a mais ou desnecessários exercícios de estilo. Por isso, Casa na Duna começa simplesmente por esta frase simples, “na Gândara há aldeolas ermas
esquecidas entre pinhais, no fim do mundo,” depois oferecendo uma narrativa orbitando em torno das desgraças de
Mariano Paulo, senhor de uma quinta antiga, no alto de uma
duna, incapaz de modernizar uma agricultura quase feudal, perdido também em pouco sucedidos negócios. O seu
filho, Hilário, jovem difícil e perturbado, desinteressado
de lavouras, vai vivendo das recordações da falecida mãe,
acabando por morrer, assim simbolizando a dissolução de
todo um modo de vida antigo. O romance descreve admiravelmente a pobre e dura vida do miserável campesinato
português, a exploração desenfreada dos jornaleiros, mais
a imóvel vida social dessa espécie de perdidos velhos fidalgos fundiários. O romance impressiona ainda pelo silêncio
quase arrasador com que se escreve a aridez, a desolação e
a miséria da Gândara, imagem e universo literários evidentes de um país adormecido, pobre e amordaçado.
lusofonias
Uma Abelha
na Chuva (1953)
Casa
R
omance maior da literatura em língua
portuguesa, Uma Abelha na Chuva passa-se rápido em três breves dias: entre as
cinco horas de uma quinta-feira de Outubro
e a manhã do dia seguinte correm 15 capítulos; a sexta-feira que se segue precipita-se entre os capítulos 16 e 26; o sábado até
ao amanhecer de domingo leva o romance
ao seu trágico epílogo no capítulo 35. A intriga quase minimalista parece toda contida
numa belíssima imagem depois de lidas as
páginas iniciais: “primeiro, a fonte brotou
tenuamente, muito ao longe, na infância,
depois, a água mansa turvou-se ao longo do
caminho, do tempo, com lixo que lhe foram
atirando das margens; e agora é cachoante,
escura, desesperada”.
Romance de perdição, densamente psicológico, tenso nos seus muito conseguidos
diálogos, passeando como toda a sua obra
pelas misérias da Gândara, em Montouro,
freguesia de S. Caetano, concelho de Corgos, orbitando em torno do ainda mais miserável matrimónio entre Álvaro Silvestre,
de família de prósperos burgueses rurais, e
a sua quase comprada esposa, D. Maria dos
Prazeres Pessoa de Alva Sancho (o apelido
Silvestre era acrescentado com alguma hesitação e muito sarcasmo pela própria...),
filha de arruinada família fidalga que pelo
seu casamento procurou resgatar dívidas
muitas, mobílias vendidas, jóias perdidas e,
assim, assegurar algum desesperado desafogo económico. A estes senhores da casa,
perdidos em ódios cada vez mais recalcados, opõe-se e cruza-se o par formado por
Clara, a criada, e Jacinto, o ruivo cocheiro,
aquela apaixonada por este que excitava
também as secretas paixões de Maria dos
Prazeres que, por sua vez, amava longinquamente Leopoldino, o irmão de Álvaro
que havia emigrado para a África e de quem
recebia algumas esparsas cartas, as últimas
anunciando o seu retorno à metrópole.
A intriga, quase linear, mas cortada por recorrentes incursões memoriais e exercícios
de enredada psicanálise, sumaria-se com
brevidade: numa madrugada perturbada,
mais uma vez impedido de dormir no leito
pouco conjugal, Álvaro Silvestre decide passear pelos seus campos, surpreendendo num
palheiro as juras de amor entre o cocheiro
Jacinto e a criada Clara, entretanto grávida.
O ruivo cocheiro comentava também com
algum másculo orgulho a forma provocadora como a sua patroa, Maria dos Prazeres,
o fitava convidadamente. Furioso, Álvaro
conta a gravidez escondida ao pai de Clara que decide matar Jacinto, trama depois
provocando um motim popular. A filha, entretanto, decide denunciar o pai à guarda,
depois acabando por se suicidar, atirando-se
mortalmente a um poço.
Por esta intriga de perdição passam ainda outras personagens menores em que se
representam tipos sociais característicos: o
Padre Abel e a sua irmã (e também amante...) D. Violante, João Medeiros, o ponderado Dr. Neto, mestre António e a sua filha
Ana, Mariana, Marcelo, João Dias, assim se
representando essas fechadas comunidades
rurais de meados do século XX português
em que a colectiva miséria instigava as mais
abjectas das pequenas invejas, rumores,
traições e vinganças entre fidalguia perdida,
pequena burguesia sem educação, falsos
moralistas e fiéis, camponeses dominados e
submissos apesar de algumas revoltas equívocas e logo reprimidas.
E, no entanto, Uma Abelha na Chuva é
tudo menos um desses muito normativos romances sociais e quase de classe com que,
seguindo o afrontamento fatal entre exploradores e explorados, se foi fazendo um certo realismo muito mais apenas ideológico do
que muito pouco literário.
O romance sublime de Carlos de Oliveira
é muito mais do que a história da miséria
e exploração sociais (que também lá está),
mergulhando nesse ontológico oceano das
contradições do ser, da paixão, do amor, da
condição humana, da frustração individual e
das mentalidades colectivas dominantes em
tempos de pequenos e grandes tiranetes.
Um romance que é mesmo o assumido fim
literário desse chamado neo-realismo português como o compreendeu mais do que
sabiamente logo em texto de 1955 Jorge
de Sena: “Hoje o equívoco literário do Neo-Realismo está morto, até pela evolução da
maior parte dos que nele intervieram [...]
quer porque um Carlos de Oliveira passou
a produzir pessoalmente, numa linguagem
que perpassa uma consciência autêntica da
problemática profissional do escritor, uma
experiência humana da sociedade imobilizada que é a nossa”.
Felizmente para as nossas curiosidades
culturais de hoje, generosamente alimentadas pelos muitos arquivos da memória
dos mais variados sites, blogs e redes, Uma
Abelha na Chuva pode tanto voltar a ler-se
e a admirar-se na sua genial escrita, como
também a ver-se no filme único com que
Fernando Lopes recriou e ampliou o impacto singular de um romance absolutamente
único. Neste caso, a procurar e a ver.
LUSOFONIAS • Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013
III
o
A outra Uma Abelha na Chuva:
filme de Fernando Lopes (1972)
R
odado com muitas dificuldades ao longo de 1968 e
1969, depois cuidadosamente montado com demora, totalmente financiado pelo bolso do seu realizador,
Fernando Lopes, e alguns solidários amigos, Uma Abelha
na Chuva tornou-se finalmente filme acabado e estreado em 1972. Muito mais do que uma mera adaptação
do romance de Carlos de Oliveira (e da assumida inspiração da sua poesia na cinematografia do realizador),
descobre-se uma obra deslumbrante por ela própria,
do vanguardismo das imagens ao pendor fotográfico, da
música de Verdi ao teatro popular. Na verdade, do romance original, Fernando Lopes manteve recriadamente o confronto entre Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre, mais os amores perdidos, mas também folclóricos,
de Clara e Jacinto, fazendo desaparecer grande parte
das outras personagens presentes na narrativa textual
de Carlos Oliveira, do incestuoso par Padre Abel e D.
Violante ao sensato Dr. Neto.
Um filme que, quando se revisita, parece só poder funcionar rigorosamente no seu exacto preto-e-branco com
que se destaca um contexto frio, cinzento, tenso que se
vaza em ambiente indefinido, quase impreciso. Leitura
cinematográfica de um grande romance em que se visitam as influências epocais conhecidas do novo cinema
francês – a famosa nouvelle vague –, mas também uma
reconstrução de mitos profundos da cultura portuguesa, assim produzindo um filme fragmentário e indeciso,
experimental na narrativa descontínua e quase vanguardista ao adoptar uma estética em que se repetem cenas sem diálogo e em que o som propositadamente não
acompanha a imagem. O realizador afasta-se mesmo da
geografia física e social constante na obra literária de
Carlos de Oliveira, preferindo o espaço indefinido de um
mundo em que ecoam os conflitos, as frustrações e até
a provinciana falta de gosto desse Portugal do Estado
Novo: imagens repetidas, imóveis, sem graça.
Mais ainda, de forma magistral, Fernando Lopes acrescenta uma terceira história de amor de perdição (será
mesmo a original?), convocando transformadamente o
homónimo romance de Camilo Castelo Branco em frag-
Posfáci
a re
mentária peça teatral popular filmada através da representação de um grupo de província. Nestas imagens,
apenas se recorda do camiliano clássico a cena em que
Simão Botelho vai ao encontro de Teresa no convento de
Monchique, no Porto (“Ó Teresa, Teresa, assim nos vão
separar, quem sabe, para sempre!”), mais o mortal episódio central em que aquele dispara sobre Baltazar, tudo
melodraticamente acompanhado como convém pela famosa Força do Destino de Giuseppe Verdi. No filme de
Fernando Lopes, a estes excertos teatrais assistem os
pares do romance original de Carlos de Oliveira, Silvestre-Maria dos Prazeres e Clara-Jacinto, os primeiros bem
instalados em camarote de senhores. A cena fatal do disparo contra Baltazar motiva ainda mais a vingança que
Álvaro Silvestre decide tecer para liquidar Jacinto.
Aproveitando recriadamente este casamento ficcional
entre os romances de Camilo e Carlos de Oliveira, a figura de Simão Botelho é interpretada na peça representada no filme pelo próprio Jacinto que Maria dos Prazeres, do alto do seu camarote, observa passionalmente
traindo o seu libidinoso desejo com uma carícia no braço
apercebida por Álvaro, esse marido que detesta e constantemente expulsa do seu quarto, mas também mirada
por Clara que olha da plateia com inquietação a sua perturbada senhora.
Na madrugada que antecede o crime central de Uma
Abelha na Chuva, Álvaro Silvestre recorda pormenorizadamente o tiro mortal de Simão Botelho em Baltazar,
primo e prometido de Teresa, enquanto Clara se encontra nas cavalariças da casa do patrão com Jacinto,
senta-se na charrete no lugar da fidalga para se deliciar
privadamente com a representação dramática que o seu
amado cocheiro faz da perdida figura camiliana.
A encerrar este filme deslumbrante, depois da frustrada revolta popular que acompanha a denúncia das
tramóias de Silvestre, a comunidade e as suas gentes
regressam como convinha à mais sossegada das normalidades desse país de brandos costumes, mas dos mais
pungentes fados de amores de perdição. Não tinha acontecido nada.
A ABELHA
NA CHUVA
O FILME
“Muito
mais do que
uma mera adaptação do
romance de
Oliveira (e
Carlos
de
da assumida
inspiração da sua poesia
na cinematografia
do realizador),
descobre-se uma
obra deslumbrante
por ela própria, do
vanguardismo das
imagens ao pendor
fotográfico, da música
de
Verdi
ao teatro
popular
IV
Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS
C
arlos de Oliveira deixou-nos infeli
uma obra de ficção lamentavelmen
ta, com apenas cinco títulos editados
anos, mas de qualidade tão indiscutíve
essa sua produção poética um pouc
abundante, mas constantemente reescr
verdade, apesar de todos os seus títulos
rismo a Finisterra, mobilizarem esse u
opressivo infantil da lunar paisagem d
dara, os seus textos são uma procura c
xa de uma sabedoria do mundo num P
pobre e atrasado que rejeita profunda
procurando, por isso, em intelectual c
te, depurar e reescrever constantement
obra. Cantata é em 1960 um livro de po
intensamente rasurada, repensada, ree
As suas Poesias, em 1962, reeditam com
cepção de Turismo toda a sua obra poét
terior para corrigir alguns dos seus poem
1976, Trabalho Poético volta a publica
os seus livros de poesia, incluindo o p
Turismo, agora muito profundamente r
to. Entre aquelas Poesias e este Trabalh
tico exluem-se e fundem-se poemas, d
recem estrofes, modificam-se frases,
palavras, pontuação.
Uma espécie de insatisfação literária
-crítica exigência intelectual que Carlos
veira não limitou à continuada recriação
poesia, mas que estendeu também à su
única. Assim, em 1964, sai refundido o s
meiro romance Casa na Duna. Em 1970,
uma renovadas versão de Pequenos Bur
Mesmo Uma Abelha na Chuva vai mobi
I
Pelas cinco horas duma tarde invern
viajante entrou em Corgos, a pé, de
que o trouxera da aldeia do Montouro
ao pavimento calcetado e seguro da v
baixo, de passo molengão; samarra
chapéu escuro, de aba larga, ao velh
tada, sem gravata, não desfazia no e
tudo, das mãos limpas à barba bem e
que as botas de meio cano vinham de
via-se que não era hábito do viajante
preocupava-o a terriça, batia os pé
empedrado. Tinha o seu quê de invu
roliço arqueava-lhe as pernas, faziapatos: dava a impressão de aluir a ca
alterosa dificultava-lhe a marcha. M
duas léguas de barrancos, lama, inv
o trouxera decerto, penando nos at
aquele tempo desabrido.
Havia sobre a vila, ao redor de todo
de luz branca que parecia o rebordo
escurecendo gradualmente para o ce
num côncavo alto e tempestuoso. Am
to ia descoalhando as nuvens e abria
vada que a tarde esperava.
O homem cruzou a praça devagar,
tico e sacudiu as botas com cuidado
Sentou-se, pediu um brandy e engoli
lentidão natural era a única coisa q
pressa. Encostava o cálice à boca bem
-o um momento e de seguida, num g
lusofo
io: um autor e uma obra
edescobrir com urgência
izmente
nte curem 35
el como
co mais
rita. Na
s, de Tuuniverso
da GâncomplePortugal
amente,
contraste a sua
oesia já
escrita.
m a extica anmas. Em
ar todos
primeiro
reescriho Poédesapaversos,
e autos de Olio da sua
ua prosa
seu pripublica
rgueses.
ilizando
recorrentes modificações nas suas várias reedições. E, nos últimos anos da sua vida, o escritor
já firmado trabalhava intensamente numa nova
redacção de Alcateia, que sempre se recusara
a reeditar. Neste contexto, em 1978, Finisterra comparece como um romance perturbador,
magnífico e belíssimo, em que se projecta esta
depuração constante de uma rara escrita poética que se projecta no romance para gerar o
que alguns chamaram – e bem... – um dos mais
convulsivos e deslumbrantes romances-poemas
de toda a literatura portuguesa.
E, no entanto, a ficção e a poética de Carlos
de Oliveira perseguem assumidamente a cumplicidade entre literatura e realidade social, princípio explicado em texto que se encontra nessa
colectânea de O Aprendiz de Feiticeiro: “o meu
ponto de partida, como romancista e poeta, é
a realidade que me cerca; não concebo uma literatura intemporal nem fora de certo espaço
geográfico, social, linguístico... O livro, qualquer
livro, é uma proposta feita à sensibilidade, à inteligência do leitor: são elas que em última instância o escrevem. Quanto mais depurada for a
proposta (dentro de certos limites, claro está),
maior a sua margem de silêncio, maior a sua
inesperada carga explosiva. A proposta, a pequena bomba de relógio, é entregue ao leitor. Se a
explosão se der ouve-se melhor no silêncio”.
Poeta entre os maiores da língua portuguesa,
romancista genial, homem culto, reservado,
empenhado, democrata e inteligente, Carlos
de Oliveira é autor de uma obra a cultivar, ensinar e reler constantemente. Entre amor da
Uma Abelha
nosa de Outubro, certo
epois da árdua jornada
o, por maus caminhos,
vila: um homem gordo,
com gola de raposa;
ho uso; a camisa apersmero geral visível em
escanhoada; é verdade
todo enlameadas, mas
e andar por barrocais;
és com impaciência no
lgar: o peso do tronco
-o bambolear como os
ada passo. A respiração
Mesmo assim, galgara
vernia. Grave assunto
talhos gandareses, por
o o horizonte, um halo
o duma grande concha
entro até se condensar
meaçava chover. O vencaminho à grossa chu-
entrou no café Atlânno capacho de arame.
iu-o dum trago. Na sua
que fazia com alguma
m aberta, imobilizavagolpe brusco, atirava o
onias
escrita e o silêncio da verdadeira inteligência
que não se promove mediaticamente, não se
ufana, mercantiliza ou se verga aos enfadonhos (falta de...) gostos do muito politicamente correcto com que agora se pensa curto, sem
fundamento e sem paixão. Personagem tão
exigente, crítica como saudavelmente contraditória, tinha talvez a premonição clarividente de que a memória do Portugal de hoje não
é, afinal, muito diferente da pouca memória
na
Chuva
desses tempos outros que marginalizaram Camões ou Jorge de Sena, exilaram, perseguiram
e caluniaram quem pensava bem e diferente,
escrevia melhor e sonhava com um país educado, culto e livre. Nas páginas so seu primeiro
romance, Casa na Duna, o nosso quase esquecido Carlos de Oliveira escreveu: “Basta que
a memória ceda apenas um momento para os
mortos estarem perdidos”. Até por isso, é urgente lembrá-lo. E lê-lo.
(1953)
brandy à garganta. Repetiu a operação segunda e terceira
vez. Pagou e saiu. Atravessou de novo a praça, batendo
pausadamente o tacão das botas, deixando cair os últimos
pingos de lama, e dirigiu-se à redacção da Comarca de Corgos, sempre no mesmo passo oscilante e pesado, como se
o levasse a custo o vento que arrastava no chão as folhas
quase podres dos plátanos.
II
O escritório do Medeiros, director da Comarca, era escuro e desconfortável; uma vulgar secretária de pinho, dois
ou três cadeirões com almofadas de palha, um quebra-luz
de missanga na lâmpada do tecto e montes de jornais aos
cantos; cheirava a pó como num caminho de estio.
-Sente-se, faz favor.
O visitante sentou-se e, abrindo a carteira, tirou uma
folha de papel cuidadosamente dobrada:
-Para sair no próximo número do jornal, se puder ser.
Pago o que for preciso.
O Medeiros desdobrou o papel, desfez-lhe os vincos um a
um com a unha enorme do polegar, a unha da viola, e pôs-se a ler. Daí a nada, erguia os olhos assombrado:
-E quer o senhor que eu lhe estampe uma coisa destas na
Comarca? O outro baixou o rosto inexpressivo:
— Exactamente.
Afastou a papelada da secretária para os lados como se
lhe faltasse o ar, afeiçoou melhor os óculos ao nariz afilado, e na esperança de ter confundido as coisas começou
a ler o documento outra vez. Mas não. Ali estava de facto
exarada a tinta verde, numa caligrafia de mão pouco segura, a confissão pasmosa:
Eu, Álvaro Rodrigues Silvestre, comerciante e lavrador
no Montouro, Freguesia de S. Caetano, concelho de Corgos,
juro por minha honra que tenho passado a vida a roubar os
homens na terra e a Deus no céu, porque até quando fui
mordomo da senhora do Montouro sobrou um milho das esmolas dos festeiros que despejei nas minhas tulhas.
Para alguma salvaguarda juro também que foi a instigações de D. Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho Silvestre, minha mulher, que andei de roubo em roubo, ao
balcão, nas feiras, na soldada dos trabalhadores e na legítima de meu irmão Leopoldino, de quem sou procurador,
vendendo-lhe os pinhais sem conhecimento do próprio, e
agora aí vem ele de África para minha vergonha, que não
lhe posso dar contas fiéis.
A remissão começa por esta confissão ao mundo. Pelo Padre, pelo Filho, pelo Espírito Santo, seja eu perdoado e por
quem mais mo puder fazer.
Saiu da segunda leitura como da primeira. De boca aberta. Que um sujeito arredondasse um tanto os preços de
balcão, percebia; que descesse a extorquir uns alqueires
de milho aos sobejos dum santo, percebia também; que
enfim, dando o real valor a uma procuração, vendesse meia
dúzia de pinhais alheios, porque é que não havia de perceber se as tentações, com mil demónios, são tentações para
isso mesmo? Mas lá vir confessá-lo em público, na primeira página dum jornal, francamente, entender semelhante
coisa era para o Medeiros como teimar com a cabeça numa
aresta de granito.
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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013
V
< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR
Encarou de novo o rosto gordo do lavrador
do Montouro. Feições paradas, sonolentas.
Havia porém um ar de seriedade naqueles
olhos pouco ágeis, na linha branda da boca,
no beiço levemente caído, na cinza das têmporas, que impedia o jornalista de concluir
no íntimo, decisivamente: é um imbecil; e
contudo seria difícil avaliar o caso de outro
ângulo; claro que não ia imprimir a declaração sem mais nem menos: a coisa tem a
sua gravidade, envolve terceiros, o homem é
capaz de ser de facto parvo e pode a família
aparecer-me depois com exigências, desmentidos, trapalhadas.
-Calculo que tenciona fazer um acto público de contrição.
-Tenciono. Na primeira página, letra bastante gorda, se for possível.
-E pode saber-se por quê? Ajeitou-se no cadeirão. Tinha pousado o chapéu nos joelhos
e afagava-o com os dedos brancos, grossos:
-É preciso ter em dia as contas com Deus
e com os homens. Sobretudo com Deus. —
Nem mais. E preciso ter isso em ordem. E
depois?
— Depois é o Diabo andar com estas
coisas cá dentro. A pesar, a moer.
O director da Comarca tirou os óculos, enfiou-os lentamente no estojo de prata:
-Eu, no seu lugar, sabe o que fazia? Procurava um padre e desabafava. A confissão...
-Estou confessado, mas não chega. Pensei
bastante no assunto e o padre Abel não chega.
-Em todo o caso, a confissão é um grande
alívio, sem escândalos, sem nada. Aninhou as
mãos de cera na copa do chapéu:
-Deus escreve direito por linhas tortas. Talvez seja o escândalo que Ele quer. E acrescentou, quase sem transição:
-Podemos assentar no seguinte: próximo
número da Comarca, primeira página, letra
redonda dos anúncios. Quanto me leva por
isso?
O jornalista não desistia:
-E um arranjo em família? Indemnizar o seu
irmão, por exemplo. Depois, uma palavra do
padre Abel para acertar as contas com a santa. E tirar daí o sentido.
Dos lábios de Álvaro Silvestre caiu sobre a
insistência do outro a mesma pergunta de há
momentos:
-Quanto me leva afinal?
As palavras rolaram nítidas, desamparadas.
O Medeiros sentiu-lhes o peso e admitiu que
estava a cuspir contra o vento, mas disse ainda, por dizer:
-E a sua mulher, que pensa ela disto?
Soergueu-se no cadeirão. A face imóvel,
animou-lha um jogo complicado de tiques,
rugas, olhadelas furtivas. Parecia assustado.
No entanto, o Medeiros viu-o recostar-se outra vez com o ar aliviado de quem conseguiu
afastar a sombra de uma ideia desagradável:
-Deus me livre que ela soubesse disto.
-Há-de sabê-lo quando o jornal sair. Encolheu os ombros e sorriu pela primeira vez:
-Nessa altura é-me indiferente, claro.
Como dizia o outro: burro morto, cevada ao
rabo.
Teve ainda um breve sobressalto:
-Se ela o soubesse agora e me impedisse a
confissão é que era um entalanço. Mas apressou-se a bater o nó dos dedos na secretária
do Medeiros:
-O Diabo seja surdo. Surdo e cego.
III
Antes da chuvada estalar no pavimento, en-
VI
Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS
trou pela vila a toda a brida uma charrete de
rodado silencioso; a água castanha espumava
entre os varais; o cocheiro, alto e ruivo, fez
estacar o animal em frente do café Atlântico e saltou da boleia para receber as ordens
da dona da charrete, uma senhora pálida,
de meia idade, agasalhada num xaile de lã e
com a manta de viagem enrolada nas pernas:
-Pergunta no café se o viram.
O ruivo voltou daí a nada com indicações
precisas:
-Esteve no café e há coisa de um quarto de
hora foi para o jornal.
-Para o jornal?
-Sim, senhora.
-Vamos lá ao jornal, disse ela brevemente
numa ponta de rouquidão.
A charrete rodeou a praça, parou diante da
Comarca. A senhora sacudiu a manta de viagem e o cocheiro ajudou-a a apear-se.
-Leva a égua a beber. Não te demores. Enquanto o ruivo tornava a subir para a boleia,
empurrou ela a porta do jornal; rompeu pela
saleta de espera, indagou do empregado do
Medeiros se tinha estado ali um sujeito gordo, baixo, de samarra; e como o rapaz lhe
apontasse o escritório, entrou.
O Medeiros levantou-se, um tanto surpreendido. Álvaro Silvestre rodou o pescoço
maciço penosamente, mas reconhecendo-a
precipitou-se com uma energia desconhecida
sobre a secretária do jornalista, agarrou o
papel em que escrevera a confissão, amarfanhou-o com a rapidez que pôde e sumiu-o no
bolso da samarra. A sucessão brusca de movimentos atarantou-o, o chapéu rolou-lhe para
o chão, hesitou entre apanhá-lo e dizer qualquer coisa, as pernas tropeçaram-lhe uma na
outra e recaiu no cadeirão, desamparado. A
mulher sorriu:
-Incomodei-os ao que vejo. Não me apresentas, Álvaro?
Mas o marido era uma concha
de silêncio pasmado e ela própria se apresentou:
-Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho... Silvestre.
Destacou com ironia o sobrenome do marido. O Medeiros gaguejou.
-Mui... muito... prazer. E indicou-lhe
um cadeirão.
-É então o senhor quem dirige a Comarca?
Examinava os móveis pobres do escritório.
Continuava a sorrir. O vestido de veludo escuro afagava-lhe o pescoço numa gargantilha
rendada e branca, como um leve colar de espuma; as mangas enfunadas vinham morrer
aos pulsos na mesma alvura breve e nítida,
donde a mão nervosa emergia longamente.
Um pouco antiquado tudo aquilo, mas ficava-lhe bem, adelgaçando-a; e havia um toque
excitante no contraste que faziam o vestido
sombrio e a palidez das feições. Malares salientes, os cabelos negros, aconchegados num
novelo espesso e entrançados sobre a nuca;
a boca de lábios túmidos; os olhos grandes,
vivos, quase ansiosos; caído pelos ombros,
o xaile de lã clara, cinza-pérola, punha no
conjunto uma nota de intimidade inesperada. Todavia qualquer coisa naquela mulher
esplêndida gelava o jornalista: o franzir irônico da boca, a avidez do olhar, o tom escarninho da voz gelada?; não sabia ao certo
e avaliava-a com prudência: uma mulher de
mão cheia, sim senhor, mas dura de roer.
E em voz alta, um pouco mais sereno:
-João Medeiros, às ordens de V. Exª. Entretanto D. Maria dos Prazeres sentara-se e
apontava as botas enlameadas do marido:
-As tuas botas, homem!
Fez um esforço baldado para esconder os
pés debaixo do cadeirão. E já ela se espantava outra vez:
-Nem sequer trouxeste gravata!
Levou a mão ao peitilho da camisa, mas
suspendeu a meio o gesto de temor quase infantil; e ficou com a mão no ar, hesitante,
vexado.
-Imagine o senhor que veio do Montouro a
pé com este tempo. Com charrete em casa,
cavalos e cocheiro. Uma criança de cinquenta anos. Não sei o que o trouxe aqui. Seja lá
o que for. O certo é que anda doente, com
ideias estranhas, e tem de se lhe dar o devido desconto. O que ele diz não é nenhuma
Bíblia, compreende?
Baixou-se para apanhar o chapéu que lhe
caíra à chegada da mulher e gemeu, humilhado:
-Basta, Maria.
-O médico aconselhou-lhe o abandono dos
negócios, das terras – prosseguiu ela imperturbável. Repouso e distracções. Pois o repouso, as distracções, foram hoje duas léguas de lama, a corta-mato, na iminência do
temporal.
Lá fora, a chuvada despenhou-se por fim.
Sentiram-na retinir nas vidraças. O jornalista aproveitou para mudar de conversa:
-Forte aguaceiro. Estala. Álvaro Silvestre
anuiu logo:
-Boa bátega, sim senhor.
Só ela preferiu continuar a bater no mesmo
prego:
-A boa bátega que te podia ter apanhado no
caminho. Já pensaste nisso?
Fechou os olhos, de puro desalento: cala-te, Maria, cala-te. O Medeiros levantou-se,
foi à janela espreitar as cordas de água fumegante: mas que dois.
lusofonias
Economias...
Reúne
estudos e análises sobre o desenvolvimento económico dos
CHINA | Brasil vende
1750 milhões de USD em milho
O
Brasil vai
vender à
China
milho
no valor de
1750 milhões
de dólares, nos
termos de um
acordo de exportação quarta-feira assinado em Cantão
no decurso da
sessão plenária
da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban). “O protocolo que assinámos amplia o leque
de produtos de alta qualidade e de preço competitivo que o
Brasil pode fornecer à China”, disse o vice-presidente brasileiro, Michel Temer, citado pela imprensa brasileira. Ido de Macau,
onde participou na 4ª Conferência Ministerial entre a China e
os países de língua portuguesa, para Cantão, para a reunião da
Cosban, Michel Temer disse ainda ter ficado acordado com as
autoridades chinesas o levantamento do embargo à carne bovina brasileira. “Por isso, acordámos com as autoridades chinesas
a mais rápida realização de visitas técnicas, tendo igualmente
em vista a homologação de mais empresas exportadoras de carnes bovina, suína e de aves”, disse o vice-presidente, citado
pela imprensa brasileira. Michel Temer adiantou que o Brasil
está aberto a investimentos por parte das empresas chinesas,
em especial nos sectores ferroviário, portuário e aeroportuário
e rodoviário. A China é desde 2009 o maior parceiro comercial
do Brasil e um dos principais países de origem do investimento
directo estrangeiro no país, tendo as trocas comerciais bilaterais somado 75,4 mil milhões de dólares em 2012, com exportações brasileiras de 41,2 mil milhões de dólares e importações de
34,2 mil milhões de dólares.
JTM/Macauhub
Língua Portuguesa
e a sua cooperação com a
República Popular
da
China
A
Daewoo Shipbuilding and Marine Engineering
da Coreia do Sul está a construir duas plataformas de exploração petrolífera para a Sociedade
Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangol),
disse quinta-feira em Luanda um quadro da estatal angolana. “As plataformas poderão operar em
Angola e em qualquer ponto do mundo em que
a Sonangol tenha interesses”, disse o engenheiro
Paulo Fernandes, ao usar da palavra numa conferência sobre petróleo realizada na capital angolana, de acordo com a Bloomberg. Paulo Fernandes disse ainda que a Sonangol está a analisar
a construção de uma base logística no sul de Angola, possivelmente no Lobito, onde está a ser
construída uma refinaria com uma capacidade de processamento de 200 mil barris de petróleo
por dia. Foi anunciado, por outro lado, que o governo de Luanda vai aumentar o controlo sobre
os investimentos públicos, condicionando a sua execução à apresentação de mapas trimestrais e
obrigando à obtenção de financiamento antes do início das obras, de acordo com o disposto na
proposta de lei de Orçamento de Estado para 2014. No relatório que acompanha o Orçamento
para 2014, afirma-se que a execução dos novos projectos fica sujeita a “disporem do financiamento assegurado na fonte orçamentada, terem os projectos executivos elaborados, terem os
contratos assinados e homologados nos níveis correspondentes e terem elaborados os mapas de
execução física e financeira.” Para além deste “aperto” nas regras que norteiam os projectos
de investimento público, Luanda quer também proceder à “revisão do sistema de subsídios às
empresas públicas, nomeadamente as prestadoras de serviço de água e electricidade, com vista
à sua redução, com a promoção da sua eficiência” e rever o sistema de preços dos combustíveis
derivados do petróleo bruto. O Orçamento de Angola para 2014 prevê uma taxa de crescimento
do PIB de 8%, quase 2 pontos percentuais acima do estimado pelo Fundo Monetário Internacional
num relatório divulgado em Outubro passado (6,3%). De acordo com o cenário macro-económico
subjacente ao OGT 2014, a economia angolana deve crescer, em termos reais, 8% no próximo
ano, acelerando para 8,8% em 2015, um cenário mais optimista do que o antecipado pelo FMI,
que no World Economic Outlook, divulgado a 8 de Outubro, previa um crescimento de 6,3%, revendo em baixa de um ponto percentual a previsão anterior, que datava de Abril.
JTM/MacauHub
Governo de Timor-Leste anunciou, em comunicado, que decidiu atribuir
o contrato de construção do aeroporto do Suai, na costa sul do país, à
empresa pública indonésia Waskita Karya. “Após uma análise dos resultados
dos concursos para projectos relativos à costa sul (Tasi Mane), apresentados
pela Comissão Nacional de Aprovisionamento (CNA), o Conselho de Ministros
aprovou a recomendação da CNA, de atribuir o contrato de construção do Aeroporto do Suai à empresa PT. Waskita Karya”, refere o documento, relativo
à reunião de Conselho de Ministros de terça-feira. A empresa pública indonésia, estabelecida em 1961, é responsável no seu país pela construção de uma
série de infraestruturas, nomeadamente pontes, autoestradas, estradas,
portos, aeroportos e fábricas. No documento, o Governo refere também que
foram pré-qualificadas cinco empresas para o ‘design’ e construção da base
de apoio logístico do Suai. “As empresas selecionadas são a Essar Projects
(India) Ltd, Afcons Infrastructure Ltd., o consórcio HDEC-HEC-AMCO, o consórcio BAM International-Van Oord Dredging-Marine Contractor-Wijaya Karya
e o consórcio Construtora San Jose S.A.-Tecnicas Reunidas S.A.”, refere o
documento. O projeto Tasi Mane tem como principal objetivo desenvolver a
costa sul de Timor-Leste e fornecer dividendos económicos diretos através de
actividades relacionadas com a indústria petrolífera. O Tasi Mane, projecto
liderado pela empresa petrolífera timorense Timor Gap, prevê a construção
de polos industriais na costa sul e inclui a plataforma de abastecimento do
Suai, o agrupamento da refinaria e indústria petroquímica de
Betano e o agrupamento da instalação de GPL (através do gasoduto que as autoridades pretendem ver construído a partir
do Greater Sunrise) de Beaço.
Na costa sul, vai ser também
construída uma autoestrada, a
primeira do país, a ligar as três
localidades, para apoiar o negócio da indústria petrolífera.
lusofonias
de
ANGOLA
Novas plataformas para Sonangol
TIMOR-LESTE | Indonésios
constroem aeroporto em Suai
O
Países
MOÇAMBIQUE | Agricultura
beneficia do
Fundo de Cooperação
A
empresa chinesa Wanbao Grains & Oils Co.
vai aplicar 10 milhões de
dólares do Fundo de Cooperação para o Desenvolvimento entre a China e os
Países de Língua Portuguesa num projecto agrícola
em Moçambique, nos termos de um acordo assinado
em Macau pelo presidente
do Fundo de Cooperação, Chi Jianxi e o presidente da Wanbao Grains & Oils
(Hubei) e da Wanbao (Africa) Agricultural Development (Moçambique), Chai
Shungong. Aquele valor irá ser aplicado pela empresa num projecto agrícola
na região do Baixo Limpopo, província meridional de Gaza, cujo desenvolvimento tem um custo estimado em 200 milhões de dólares. Este projecto,
que poderá tirar Moçambique da lista de importadores do arroz, compreende
duas fases, sendo a segunda a que proporcionará maior valor acrescentado
através do processamento e transformação do cereal colhido. Moçambique é
assim o primeiro país de língua portuguesa a beneficiar do Fundo de Cooperação, que foi financiado em mil milhões de dólares pelo governo da China.
Foi entretanto anunciado que a empresa britânica Ncondezi Energy procedeu
já à pré-selecção de empresas para a construção de uma central térmica
alimentada a carvão em Moçambique. De acordo com o comunicado, divulgado em Londres, a lista de pré-selecção contém sete empresas, uma das
quais obterá a adjudicação para construir a primeira fase da central, que
terá uma capacidade de produção de 300 megawatts de energia eléctrica. A
central, cuja construção será um projecto chave-na-mão, utilizará o carvão a
ser extraído na vizinha mina Ncondezi, cuja exploração precederá a entrada
em funcionamento da central a fim de se proceder ao armazenamento de
matéria-prima. O projecto Ncondezi contempla a exploração de uma mina
com carvão térmico para abastecer a central, indo ser desenvolvido por fases
de 300 megawatts cada até se atingir 1800 megawatts, estando a entrada em
funcionamento prevista para o primeiro semestre de 2018. JTM/Macauhub
LUSOFONIAS • Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013
VII
DIREITO à Vida
Publica
textos de estudo e opinião
sobre a diversidade cultural
das Lusofonias
Ideias
Luís Inácio Lula
da Silva*
“Quem, em sã consciência,
deixará de lutar pelo melhor
tratamento para a doença
de seu pai, de sua mãe, do
seu cônjuge ou do seu filho,
especialmente se ela traz
grande sofrimento e risco de
vida? Trata-se de um problema
tão grave e de tamanho
impacto na vida - ou na morte
- de milhões de pessoas, que
deveria merecer uma atenção
especial dos governos e dos
órgãos internacionais e não
só dos seus seguros de saúde.
Não pode, na minha opinião,
continuar a ser tratado
apenas como uma questão
técnica ou de mercado.
Devemos transformá-lo numa
verdadeira questão política,
mobilizando as melhores
energias dos sectores
envolvidos e de outros atores
sociais e económicos para o
equacionar de um modo novo,
que seja ao mesmo tempo
viável para quem produz os
medicamentos e acessível
para todos os que precisam de
os usar.”
VIII
Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS
E
m todo o mundo, seja nos países ricos, em
desenvolvimento ou pobres, o acesso a tratamentos médicos mais avançados está cada vez
mais desafiador. Muitos dos doentes não conseguem beneficiar dos medicamentos que poderiam
curá-los ou pelo menos prolongar as suas vidas.
A questão não é mais se existe cura para uma
doença - porque em muitos casos ela existe -,
mas saber se é possível para o paciente pagar a
conta do tratamento. Milhões de pessoas encontram-se hoje nessa situação dramática, desesperante: sabem que há um remédio capaz de as salvar e aliviar o seu sofrimento mas não conseguem
utilizá-lo devido ao seu custo proibitivo.
Há uma frustrante e desumana contradição entre admiráveis descobertas científicas e o seu uso
restritivo e excludente.
De um lado, temos as empresas farmacêuticas,
que desenvolvem novas drogas, com investimentos elevados e testes sofisticados e onerosos. Do
outro, temos aqueles que financiam os tratamentos médicos: os governos nos sistemas públicos e
as empresas de planos de saúde na área privada.
No centro de tudo, o paciente, lutando pela vida
com todas as suas forças, mas que não tem condições para pagar para sobreviver.
Nos Estados Unidos, o Presidente Barack Obama trava há anos uma batalha com a oposição
conservadora para estender a cobertura de saúde a milhões de pessoas. Na Europa, mesmo em
países ricos, o sistema público muitas vezes não
consegue garantir o pleno acesso aos novos medicamentos. No Brasil, cada vez mais o Governo
precisa de recursos para os medicamentos que
compra e fornece gratuitamente, inclusive alguns de nova geração. E na África, o VIH atinge
contingentes enormes da população, ao mesmo
tempo que doenças tropicais como a malária,
perfeitamente evitáveis, continuam a causar
muitas mortes e deixaram de ser prioridade pelas
pesquisas dos grandes laboratórios.
Um vídeo que circula na internet, feito por
uma companhia de telemóveis, tem emocionado
o mundo ao mostrar os dramas entrelaçados de
um garoto pobre da Tailândia que tem de roubar
para obter remédios para a sua mãe, e o de uma
jovem tendo de lidar com as contas astronómicas
do hospital para salvar o pai.
Conheço o drama de ter entes queridos sem um
tratamento de saúde digno. Em 1970, perdi a minha primeira esposa e o meu primeiro filho numa
cirurgia de parto, devido ao mau atendimento
hospitalar. Os anos que se seguiram, de luto e
dor, foram dos mais difíceis da minha vida.
Por outro lado, em 2011, já como ex-presidente, enfrentei e superei um cancro graças aos modernos recursos de um hospital de excelência,
cobertos pelo meu plano privado de saúde. O tratamento foi longo e doloroso, mas a competência
e atenção dos médicos e o uso de medicamentos
de ponta permitiram-me vencer o tumor. É fácil
ver as empresas farmacêuticas como as vilãs desse processo, mas isso não resolve a questão. Quase sempre são empresas de capital aberto, que
se financiam principalmente através de ações
nas Bolsas de Valores, competindo entre si e com
outras empresas de diversos setores económicos
para financiar os custos crescentes de pesquisas
e testes com novas drogas. O principal atractivo
que oferecem aos investidores é a lucratividade,
mesmo que essa choque com as necessidades dos
doentes. Para dar o retorno pretendido, antes
que a patente expire, a nova droga é vendida a
preços absolutamente fora do alcance da maioria
das pessoas. Há tratamentos contra o cancro, por
exemplo, que chegam a custar 40 mil dólares por
cada aplicação. E ao contrário do que se poderia
imaginar a concorrência não está a favorecer a
redução gradativa dos preços, que são cada vez
mais altos a cada nova droga que é produzida.
Sem falar desse modelo guiado pelo lucro leva as
empresas farmacêuticas a privilegiar as pesquisas
sobre doenças que dão mais retorno financeiro.
O alto custo desses tratamentos tem feito que
planos privados muitas vezes busquem justificações para não lhes dar acesso, e que gestores de
sistemas públicos de saúde se vejam, em função
dos recursos finitos de que dispõem, frente a um
dilema: melhorar o sistema de saúde como um
todo, baseado em padrões médios de qualidade,
ou priorizar o acesso aos tratamentos de ponta,
que muitas vezes são justamente os que podem
salvar vidas?
O preço absurdo dos novos medicamentos tem
impedido a chamada economia de escala: em vez
de poucos pagarem muito, os remédios pagar-se-iam - e seriam muito mais úteis - se fossem
acessíveis a mais pessoas.
A solução, obviamente, não é fácil, mas não podemos conformar-nos com o atual estado das coisas. Até porque ele tende a agravar-se na medida em que mais e mais pessoas reivindicam, com
toda a razão, a democratização do acesso aos
novos medicamentos. Quem, em sã consciência,
deixará de lutar pelo melhor tratamento para a
doença de seu pai, de sua mãe, do seu cônjuge
ou do seu filho, especialmente se ela traz grande
sofrimento e risco de vida?
Trata-se de um problema tão grave e de tamanho impacto na vida - ou na morte - de milhões
de pessoas, que deveria merecer uma atenção
especial dos governos e dos órgãos internacionais
e não só dos seus seguros de saúde. Não pode,
na minha opinião, continuar a ser tratado apenas como uma questão técnica ou de mercado.
Devemos transformá-lo numa verdadeira questão
política, mobilizando as melhores energias dos
sectores envolvidos e de outros atores sociais e
económicos para o equacionar de um modo novo,
que seja ao mesmo tempo viável para quem produz os medicamentos e acessível para todos os
que precisam de os usar.
Não exerço hoje nenhuma função pública, falo
apenas como um cidadão preocupado com o sofrimento desnecessário de tantas pessoas, mas
acho que um desafio político e moral dessa importância deveria ser objecto de uma conferência internacional convocada pela Organização
Mundial de Saúde, com urgência, na qual os
vários segmentos interessados discutam francamente como compartilhar os custos da pesquisa
científica e industrial com o objetivo de reduzir
o preço do produto final, colocando-o ao alcance
de todos os que necessitam dele.
Não há dúvida de que todos os sectores vinculados à medicina avançada devem ter os seus
interesses levados em conta. Mas a decisão entre
a vida e a morte não pode depender do preço.
Exclusivo DN/New York Times
*Ex-presidente do Brasil. Trabalha
em iniciativas globais no Instituto Lula
lusofonias
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a Uma Abelha na Chuva (1953)