CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS
Mestrado em Estudos de Linguagens
CRISTIANE MOREIRA VENTURA
TOPOGRAFIA DA MEMÓRIA:
REMINISCÊNCIAS POÉTICAS EM DIÁRIO DE SINTRA
Belo Horizonte
2014
2
CRISTIANE MOREIRA VENTURA
TOPOGRAFIA DA MEMÓRIA:
REMINISCÊNCIAS POÉTICAS EM DIÁRIO DE SINTRA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Estudos de Linguagens, do Programa de PósGraduação Stricto Sensu do Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG,
como requisito parcial à obtenção do título de Mestre.
Área de Concentração: Literatura Comparada
Orientador: Prof. Dr. Roniere Menezes
Belo Horizonte
2014
3
Cristiane Moreira Ventura
TOPOGRAFIA DA MEMÓRIA:
Reminiscências poéticas em Diário de Sintra
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Estudos de Linguagem do
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG, em 10 de fevereiro
de 2014, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem,
aprovada pela Banca Examinadora constituída pelos professores:
____________________________________________________
Prof. Dr. Roniere Silva Menezes - CEFET/MG-Orientador
____________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Said- UFMG
____________________________________________________
Profa. Dra. Olga Valeska Soares Coelho- CEFET/MG
____________________________________________________
Profa. Dra. Cláudia Mesquita - UFMG
DEDICATÓRIA
À minha filha Mariana Ventura.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço meus pais, Maria Sther Moreira e Fernando Ventura, pelo incentivo a
este trabalho.
Às amigas Arquiolinda Machado, Fabiana Bruna, Maria Alice Palha e Renata
Oliveira, que me acompanharam em mais uma etapa de minha vida, pela paciência em ouvir,
pelos diálogos, livros, conselhos e pela confiança.
À Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES), e à Diretoria de
Pesquisa e Pós-Gradução do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG) pela bolsa de estudos de Mestrado.
Ao Prof. Dr. Roniere Menezes, por ter orientado, mediado e acompanhado com
dedicação o meu processo de aprendizagem.
Aos professores André Brasil e Olga Valeska,e à pesquisadora Ana Lígia Aguiar,
pelas contribuições para esta pesquisa.
Na trajetória desses anos de estudo, várias pessoas contribuíram de alguma forma
para este trabalho. A todos com quem dialoguei e troquei informações, o meu muito obrigado.
6
“Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! —
só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de
chegada. [...] o real não está na saída nem na chegada: ele se
dispõe para a gente é no meio da travessia...”
João Guimarães Rosa (1986, p.261)
7
RESUMO
A presente pesquisa dedica-se a analisar a relação entre memória, espaço e arquivo no
documentário autorreferencialDiário de Sintra (2007), dirigidopor Paula Gaitán.Uma vez que
o corpus trata-se de um ensaio sobre a memória, verificaremos através desse estudo que a
estrutura do filme apresenta-se de modo descontínuo e lacunar, conforme as noções referentes
ao ato reminiscente.No filme, a diretora realiza uma viagem a Sintra (Portugal), no ano de
2007, em busca de recordações relacionadas ao período vivido neste mesmo espaço 25 anos
antes, juntamente com sua família. Gaitán enfatiza a recordação dos últimos momentos de
vida de seu marido, o cineasta Glauber Rocha, que realizava naquele momento um autoexílio.
Desse modo, o trabalho percorre biografias, memórias e estudos relacionados à trajetória de
vida de Glauber Rocha, a fim verificar as motivações de sua partida para Portugal. A partir
disso, é possível analisar também como Diário de Sintra apresenta as diferentes “imagens de
si” do cineasta em seu caráter multifacetado.
Palavras-chave:memória; material de arquivo; documentário; autorreferencialidade; espaço.
8
Résumé
Cette recherche porte sur l’analyse du rapport entre la mémoire, l'espace et le fichier dans
documentaire auto-référentiel Diário de Sintra (2007) réalisé par Paula Gaitán.Une fois que le
corpusconstitue un essai sur la mémoire, il peut être constaté à travers plusieurs études que la
structure du film se présente de manière discontinue et lacunaire en conformité avec les
notions concernant l’acte reminiscent.Dans le film, le réalisateur fait un voyage à Sintra
(Portugal) à la recherche de ses souvenirs, liés à la période vécue dans cet espace il y a 25 ans
avec sa famille, tout en soulignant le souvenir des derniers moments vécus avec son mari, le
cinéaste Glauber Rocha qui s’est imposé à cette époque là un exil volontaire. Ainsi, le travail
parcourt des biographies et des études relationées à la trajectoire de vie de Glauber Rocha,
afin de vérifier les motivations de son départ pour le Portugal, d’où il est également possible
d’analyser la manière dont le Diário de Sintra présente les différentes "images de soi" du
cinéaste dans son caractère multiforme .
Mots-clés: mémoire; matériel d'archive; documentaire; auto-référentialité; espace.
9
LISTA DE FIGURAS
Capítulo 2:
FIGURA 1 - Capas de obras: “Glauber encadernado” .................................................. 47
FIGURA 2 - Cartaz de exposição Glauber por Glauber ............................................... 49
Capítulo 3:
FIGURA 1 - Senhora observando a rua ........................................................................ 63
FIGURA 2 - Bandeiras e roupas estendidas na sacada das casas .................................. 63
FIGURA 3 - Registros em Super-8 (material de arquivo de Gaitán) ............................ 67
FIGURA 4 e 5 - Glauber em casa com os filhos (imagem gravada em vídeo)..............72
FIGURA 6 - Caminhos, passagens e limiares................................................................75
FIGURA 7 - Avião sobrevoando o céu de Lisboa..........................................................75
FIGURA 8 – Peixaria ..................................................................................................... 75
FIGURA 9- Foto de Glauber ......................................................................................... 76
FIGURA 10 - Estação ferroviária de Sintra ................................................................... 76
FIGURA 11 - Pintura de uma porta ............................................................................... 76
FIGURA 12 - Olhos de um senhor anônimo.................................................................
76FIGURA 13 - Árvore com fotografias ...........................................................................81
FIGURA 14 - Foto de Glauber presa em um galho....................................................... 81
FIGURA 15-Foto de Glauber nas águas ....................................................................... 83
FIGURA 16 - Palavras sob uma tigela com água .......................................................... 84
FIGURA 17 -Paula Gaitán e Glauber Rocha ................................................................ 88
FIGURA 18 - Árvore florida.........................................................................................88
FIGURA 19 -Anotações................................................................................................91
FIGURA 20 - Foto de Glauber junto ao livro Mito......................................................91
FIGURA 21 - Foto de Glauber no portão da casa ......................................................... 95
FIGURA 22 - A casa em 1981 ...................................................................................... 96
FIGURA 23 - Glauber entrando em casa com os filhos ............................................... 96
FIGURA 24 - A casa em 2007......................................................................................96
FIGURA 25 -Entradada casa em 2007........................................................................ 96
10
FIGURA 26 -Paula Gaitán na janela da casa em 2007 ................................................... 97
FIGURA 27 - Glauber na janela da casa 1981 ................................................................ 97
FIGURA 28- Reflexo das águas revelando as ruínas..................................................... 98
FIGURA 29 - A casa entre neblina .................................................................................. 99
FIGURA 30 - Passagem pelo túnel .................................................................................. 99
FIGURA 31 - Neblina e grandes rochas........................................................................... 100
FIGURA 32 - Neblina e fotos na paisagem rochosa......................................................... 100
FIGURA 33 - Glauber doente no avião............................................................................ 101
Capítulo 4:
FIGURA 1 e 2 - Mulheres do mercado vendo fotos de Glauber Rocha ......................... 112
FIGURA 3- Roupas estendidas na sacada em 2007 .......................................................112
FIGURA 4 - Roupas no varal em 1981. (Super-8) ......................................................... 112
FIGURA 5 e 6 - Pinturas e madeiras de portas e janelas desgastadas ........................... 118
FIGURA 7 e 8 -Imagens de 2007, de Diário de Sintra (em 16mm, a imagem apresenta-se
ruidosa) ........................................................................................................................... 118
FIGURA 9 - Cabo da Roca ............................................................................................. 120
FIGURA 10- João Cristino da Silva - Cinco artistas em Sintra (1855) ......................... 121
FIGURA11 - João Cristino da Silva - Paisagem (1876) ................................................ 121
11
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS............................................................................... 13
Capítulo 1–FICÇÕES DO REAL.......................................................................... 15
1.1– A Autobiografia e os gêneros vizinhos............................................ 17
1.2 – Documentário: um gênero aberto .................................................. 24
1.3 – Memória, arquivo e espaço ........................................................... 28
Capítulo 2 – BIOGRAFIA DA AUSÊNCIA ........................................................... 37
2.1 – Glauber Rocha: Uma breve biografia .............................................37
2.2 – Os Enquadramentos do personagem glauberiano ..........................44
2.2.1 – Glauber Rocha por Glauber Rocha.............................................49
2.2.2 – Glauber Rocha pelos amigos e pesquisadores ............................ 56
Capítulo 3 – DIÁRIO DE SINTRA: MEMÓRIA E OS TOPOS...............................61
3.1 – Cartografia da memória e os diferentes registros
de Diário de Sintra .................................................................................. 62
3.1.1 – Tempo Passado: registros de 1981 .............................................. 66
3.1.2 – Tempo Presente: a ação de busca ............................................... 73
3.1.3 – Tempo Futuro: Imagens poéticas ................................................. 78
3.1.4 – Imagens de Glauber (do público ao privado)
em Diário de Sintra................................................................................. 86
3.2 – Topografia da memória: confluência de tempos e imagens ............. 92
3.2.1 – Sequência do trem: o caminho para Sintra .................................... 93
3.2.2 – Sequência da casa .......................................................................... 95
3.2.3 – Sequência final ............................................................................... 99
Capítulo 4 –VESTÍGIOS PELOS ESPAÇOS: SINTRA COMO DISPOSITIVO103
4.1 – Espaço: Uma breve abordagem ........................................................ 103
4.1.1 – O espaço público urbano ............................................................... 107
4.1.2 – O espaço privado: A intimidade da casa ....................................... 109
4.2 – Sintra: O dispositivo espacial ........................................................... 110
4.2.1 – O espaço fílmico em Diário De Sintra.......................................... 113
4.2.2 – O espaço privado em Diário De Sintra: A casa.............................. 115
12
4.2.3 – O espaço público em Diário De Sintra: Heterotopia da crise........ 119
4.3 –“Mapa”: O poema e uma cartografia biográfica ............................... 124
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 133
ANEXOS ..................................................................................................................... 141
Anexo 1 – Catálogo Da Exposição Memória Da Memória......................................... 142
Anexo 2 – Lista De Documentários Sobre Glauber Rocha.......................................... 162
Anexo 3 – Poema “Mapa” de Murilo Mendes.............................................................. 168
13
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Dentro do atual cenário da produção de documentários é possível perceber uma tendência em
se trabalhar com a autorreferencialidade. Os filmes produzidos sob essa tendência têm como
proposição a enunciação em primeira pessoa, e muitos têm como dispositivo a busca por
assuntos pessoais ou familiares, o que leva o diretor, muitas vezes, a recorrer a materiais de
arquivo, como álbuns e filmes de família.A partir dessa premissa, tomaremos para análise o
documentário Diário de Sintra (2007), dirigido por Paula Gaitán. A diretora realiza uma
viagem a Sintra (Portugal) em busca de suas recordações referentes aos momentos vividos
naquele espaço há 25 anos. Podemos compreender que tal reencontro com Sintra visa trazer à
memória o período em que lá vivera com sua família, enfatizando a recordação dos últimos
momentos de vida de seu marido, o cineasta Glauber Rocha. Assim, a presente pesquisa
empreende analisar como Paula Gaitán transpõe suas memórias e “performa” 1 sua busca
reminiscente por meio da linguagem cinematográfica, construindo, dessa forma, um ensaio
sobre a memória; analisaremos também como a diretora apresenta as diferentes “imagens de
si” 2 de Glauber Rocha. No entanto,não nos deteremos na análise de cada “imagem” de
Glauber (seria complexo separar sua vida privada da pública), mas traremos observações que
auxiliam na compreensão da multiplicidade do personagem glauberiano.Assim, verificaremos
como a diretora reúne os estilhaços das diversas imagens de Glauber.
Ao definirmos o título,Topografia da memória: reminiscências poéticas emDiário de
Sintra,tivemos em vista as noções acerca da memória e sua relação com o espaço. Desse
modo, teremos como referência os estudos relacionados a memória e espaço, de Gilles
Deleuze e Gaston Bachelard, entre outros autores, que possibilitam um percurso
metodológico que pretende analisar a dimensão poética contida nas reminiscências
“performadas” e representadas no corpus da pesquisa.
1
Neologismo derivado da palavra inglesa performance, designa desempenho. Tal termo passou a ser utilizado
nas artes visuais, a partir da década de 1960, na tentativa de classificar ou definir trabalhos realizados através da
própria experiência corporal do artista, transgredindo a relação entre artista, obra e público. Assim, utilizamos
essa expressão para indicar que a diretora, por meio de sua própria vivência, realiza sua obra audiovisual.
2Conforme Ruth Amossy, em Imagens de si no Discurso: a construção do ethos: “Todo ato de tomar a palavra
implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu autorretrato,
detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e
enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa.”
(AMOSSY, 2005, p. 9) Assim tomaremos esse termo, mais utilizado na retórica, para abordar questões
referentes à imagem criada em torno da personalidade de Glauber Rocha.
14
No primeiro capítulo, introduziremos questões referentes aos relatos de vida,
enfatizando a “escrita de si”, conceito alterado ao longo do tempo (tanto a produção como a
recepção). Apresentaremos algumas noções acerca do documentário e veremos que o
documentário performativose aproxima do discurso autobiográfico. Também trabalharemos
com as relações entre memória, espaço e arquivo, apontando, através de um breve histórico,
como a memória, desde o período clássico até os dias atuais, relaciona-se a uma ação de
espacialização, sendo esta própria espacialização um mecanismo para abrigar a memória.
No segundo capítulo,percorreremos rapidamente a biografia do cineasta e
comentaremos o processo de construção de uma “imagem de si”, realizado tanto pelo próprio
Glauber como por terceiros. Tal estudo se faz necessário uma vez que o filme de Gaitán tem
como ponto de partida trazer as recordações dos últimos meses de vida de Glauber Rocha, que,
naquele momento,realizava um autoexílio.
No terceiro capítulo, verificaremos como Diário de Sintra apresenta em sua estrutura e
conteúdo a relação entre memória e espaço. A estratégia metodológica de análise do
documentário consiste em estabelecer um gesto cartográfico ao percorrer os diferentes tempos
dispostos no filme, a fim de identificar elementos característicos de cada linha temporal.
Posteriormente, analisaremos como esses diferentes tempos são agenciados no trabalho de
montagem do filme, em três sequências. Assim, realizaremos uma analogia com o trabalho de
um topógrafo e o processo de montagem do documentário. Verificaremos, também, como as
diferentes imagens de Glauber Rocha se fazem presentes no filme.
Já no quarto capítulo, realizaremos o caminho inverso ao feito no terceiro, onde
tratamos da espacialização da memória;partiremos, então, do espaço e apontaremos como ele
abriga em si a memória ou como ele se torna um dispositivo que ativa a memória.
Discutiremos como as diferentes noções de espaço tornam-se interessantes para a
compreensão do documentário, não apenas o caráter afetivo e subjetivo pode ser percebido
nos registros desses espaços, mas também o caráter sociocultural aparece e influencia a
constituição do olhar de Gaitán. Por último, pensando na ideia cartográfica, que tanto
permeou o trabalho e a vida de Glauber Rocha, realizaremos uma análise comparativa entre o
poema “Mapa”, de Murilo Mendes, e a trajetória de Glauber.Buscaremos demonstrar como o
eu-lírico, que se autodescreve em seu caráter múltiplo, fluído e desarticulado, relaciona-seao
anedotário galuberiano e ao filme de Gaitán.
15
1- FICÇÕES DO REAL 3
Ao ter em vista o corpus do presente estudo, o documentário Diário de Sintra (2007),
dirigido por Paula Gaitán, elegemos o termo “autorreferencial” para classificá-lo, e, por tal
viés,será analisada a construção de uma realidade fílmica baseada na memória de
Gaitán.Aeleição de tal termo é devida ao argumento do filme: registrar a experiência pessoal
da diretora em busca de suas memórias relacionadas aos últimos meses de vida de Glauber
Rocha, passados em Sintra (Portugal), em uma espécie de autoexílio. Gaitán não realiza uma
biografia de Glauber, tampouco uma autobiografia (pensando aqui a “grafia” como forma de
registro sonoro ou imagético) de sua experiência vivida em 1981.No entanto, realiza uma
espécie de “topografia da memória”, que se dá no processo de montagem do filme, ao
estratificar os diferentes tempos de registro apresentados.
Diário de Sintra é um filme autoral, ou seja, a diretora se expressa numa linguagem
cinematográfica que lhe é própria. Paula Gaitán, nascida em 1954, em Paris, é filha do poeta e
escritor colombiano Jorge Gaitán Duran com a escritora e dramaturga brasileira, Dina
Moscovici. Cresceu entre Colômbia, Brasil e Europa. Fez graduação em Artes Visuais e
Filosofia pela Universidad de Los Andes de Bogotá. Atua na área cinematográfica e das artes
visuais desde 1977. Sua carreira autoral inclui trabalhos como: Lygiapape (1994), Arquitetura
de uma viagem (1995), Presencia Ausencia (1995), Uaká (1998), Vida (2008), Monsanto
(2008), Kogi (2009), Memória da Memória (2013) e o longa-metragem mais recente Exilados
do Vulcão (2013), ganhador do prêmio de melhor longa de ficção no 46o Festival de Brasília
do Cinema Brasileiro. Seus filmes são marcados por uma plasticidade que lhe é própria,pois
utiliza o objeto fotográfico como recurso estético e elemento afetivo. Em uma entrevista sobre
Diário de Sintra, Gaitán declara:
Trata-se de um filme em primeira pessoa, uma viagem de reminiscências,
uma viagem física até Portugal, país ao qual eu não tinha voltado desde
[19]81, e em paralelo uma viagem da memória. Trata-se de um filme
sensorial, afetivo, pessoal, um filme de amor, sobre a perda, um ensaio sobre
eu mesma, sobre minha família, sobre Glauber, meu companheiro. Passado,
presente e futuro, tudo está incluído nesse Tempo – tempos paralelos que se
mesclam e dialogam, o presente dialoga com o passado numa interpelação
de tempos. (GAITÁN, 2007). 4
3
Tal título referencia-se à pesquisa de monografia Ficções do real: a poética do arquivo, (de minha autoria,
orientada pelo Prof. Dr. Roberto Said) defendida na Faculdade de Letras da UFMG, em dezembro de 2010.A
pesquisa analisava a construção do caráter ficcional em vídeos autorrefenciais de Carlos Magno Rodrigues, ao
abordar as imprecisas fronteiras entre “real” e “ficcional” engendradas em seu trabalho, verificando as
estratégias das quais o documentarista se vale no uso de imagens do seu arquivo pessoal para a construção de
universos ficcionais.
4
Entrevista realizada pela assessora de imprensa Regina Cintra com Paula Gaitán. Disponível em:
16
No trabalho memorialista e autorreferencial construído por Gaitán, é possível notar
como os registros presentes no documentário apresentam uma atmosfera desse prenúncio da
morte de Glauber, que diz em uma gravação “Sintra é um belo lugar para morrer”. O cineasta
é retratadoem sua angústia, em um momento de isolamento voluntário. Paula Gaitán se
autorrepresenta enquanto sujeito que sofre a perda e vivencia essa ausência do companheiro.
A fim de compreendermos o que motivou o autoexílio e os sentimentos envolvidos nessa
situação, tanto os do próprio Glauber como os de sua companheira, testemunha ocular
daquele período de recolhimento, traçaremos um esboço biográfico, ou um “biografema” 5 de
Glauber Rocha. Para tanto, apresentaremos uma breve genealogia do gênero autobiográfico,
discutindo termos “vizinhos” seus, que algumas vezes se confluem, tornando-se maleáveis a
ponto de não permanecerem circunscritos a uma categorização específica.
<http://www.tw7.com.br/documentos/000000/Press_Book_Diario_de_Sintra.pdf> Acesso em 13 de out. 2013.
5
Tal neologismo criado por Roland Barthes aparece primeiramente em Sade, Fourier, Loiola (1971):“[...] Se
fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e
desenvolto biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, em que
a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos
voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!; em suma, uma vida com espaços vazios, como
Proust soube escrever a sua, ou então um filme, à moda antiga, onde não há palavras e em que o fluxo da
imagens (esse flumenorationis, em que talvez consista a ‘porcaria’ da escrita) é entrecortado, como salutares
soluços, pelo rápido escrito negro do intertítulo, a irrupção desenvolta de um outro significante [...]. (BARTHES,
1979, p.14-15) Grafado entre aspas, o neologismo ‘biografema’ passou a fazer parte da teoria literária, inserindose na crítica como aquele significante que, tomando um fato da vida civil do biografado, corpus da pesquisa ou
do texto literário, transforma-o em signo, fecundo em significações, e reconstitui o gênero autobiográfico através
de um conceito construtor da imagem fragmentária do sujeito, impossível de ser capturado pelo estereótipo de
uma totalidade. Mais tarde, em 1980, o semiólogo francês define, em A câmara clara, seu novo neologismo:
‘(...) Gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias;
chamei esses traços de ‘biografemas’; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a
biografia’ (BARTHES, 1984, p. 51). O biografema será, pois, um fragmento que ilumina detalhes, prenhes de
um ‘infra-saber’, carregado de, barthesianamente falando, certo fetichismo, que vem a imprimir novas
significações no texto, seja ele narrativo, crítico, ensaístico, biográfico, autobiográfico, no texto, enfim, que é a
vida, onde se criam e se recriam, o tempo todo, ‘pontes metafóricas entre realidade e ficção’.” (SOUZA, 2000, p.
em
:
9-16)Disponível
<http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=154&Itemid=2>. Acesso em
16 de nov.2013.
17
1.1 -A autobiografia e os gêneros vizinhos
Nos últimos anos, tem-se acompanhado uma crescente produção literária,
cinematográfica e de artes visuais concebida pela perspectiva do “eu” ou da primeira pessoa
do discurso (singular ou plural). Essa tendência em utilizar as próprias experiências de vida,
memórias, poderia ser resultado de uma prática advinda da web 2.0, que se tornou recorrente
no cotidiano: utilizar redes virtuais de sociabilidade, blogs, “fotologs”, “videologs”, que
funcionam como uma vitrine do eu ou de uma simples autoexibição. Um dos sintomas desse
movimento é a expansão do consumo de máquinas fotográficas digitais e aparelhos de
celulares com câmera. Os álbuns de família e os porta-retratos de estantes deram lugar aos
álbuns virtuais; a necessidade do registro parece aumentar graças a um renovado e insaciável
desejo de autoexibição ou de autoarquivação. 6
Para compreendermos os diferentes modos dessa inserção do “eu” em produtos
artístico-literários, bem como nos meios midiáticos, faz-se necessário distinguir como a
autorreferencialidade é tratada enquanto gênero literário (autobiografia) e enquanto gênero
discursivo (autobiográfico, compreendido como adjetivo). Walter Mignolo faz a seguinte
observação:
[...] a distinção comum em nossos dias entre autobiografia (como gênero) e
o autobiográfico (como inserção do pessoal em outros gêneros discursivos)
pode também ser tomada como um sintoma da desintegração do gênero e a
configuração de novas formas de discursos que nascem de seus restos. Na
medida em que o pessoal (como resto da desintegração autobiográfica)
ingressa em diversas formas discursivas e também no discurso crítico a
imagem do si mesmo como “ser alguém”, celebração do indivíduo que
ajudou a fundar a modernidade e se fundou nela, a autobiografia começa a
converter-se em um gênero desnecessário (MIGNOLO apud FONSECA,
2000, p.13).
No entanto, não acreditamos que a
autobiografia venha a se tornar um gênero
desnecessário, embora por muitos anos tenha sido tratada como subgênero ou gênero menore
até os dias atuais permaneça fora do cânone. 7 Entretanto, acompanhamos hoje um boom
6
Compreendido como intenção autobiográfica, conforme Philippe Artières em seu artigo Arquivar a própria
vida.
7
Na apresentação de O pacto autobiográfico há o seguinte relato de Lejeune: “quando comecei inocentemente a
estudar e defender meu gênero preferido, fiquei impressionado de ver, pouco a pouco, que entrava em uma
espécie de guerra civil, na minha ação defensiva levantava as frentes de batalha” (LEJEUNE, 2008, p.7). Existe
uma preponderância valorativa do gênero ficcional, pois a ideia de ficção relaciona-se a um trabalho criativo, a
uma ideia de elaboração estilística para gerar contemplação, fruição e prazer estético. No entanto tal pensamento
soa equivocado e preconceituoso, pois tais elementos de elaboração e de criação são encontrados também em
biografias e autobiografias.
18
editorial e a popularização de obras autobiográficas e biográficas, que atestam a vitalidade do
gênero cada vez mais discutido e estudado. Nesse universo de obras que se valem do
biográfico, do vivido, do “experienciado”, há diferentes terminologias para classificar as
diferentes formas de se expressar o eu. Obras consideradas autoficcionais – Fils (1977), de
Doubrovsky e Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos – têm grande
reconhecimento no meio literário justamente pela presença do caráter ficcional. Diana
Klinger, em sua tese Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa
latino-americana
contemporânea
analisa:
“sendo
ao
mesmo
tempo
ficcionais
e
(auto)referenciais, estes romances problematizam a ideia de referência e assim incitam a
abandonar os rígidos binarismos entre ‘fato’ e ‘ficção’” (KLINGER, 2006, p.11). Discussões
que se fundamentam na identificação do caráter factual e ficcional de uma obra, e, até na
necessidade ou não dessa classificação, parecem pouco relevantes na atualidade. Assim,
“ignoraros limites entre os dois pólos da realidade e da ficção [e] Viver a ficção como
realidade, assim como se comportou Dom Quixote” (SOUZA, 2002, p.126), poderia ser uma
perspectiva crítica mais flexível, fluida, visto o caráter híbrido dos gêneros que se valem do
eu. Sobre essa fusão ou confluência entre real e ficcional, a pesquisadora e professora Eneida
Maria de Souza, em seu ensaio “Madame Bovary somos nós”, analisa que:
O encanto quixotesco pelos livros e o bovarismo recebem até hoje
tratamento paradoxal, ressaltando-se ora a ameaça da ficção sobre o real, ora
aceitando o inevitável contágio dessa ficção no universo dos mortais. De um
lado encontra-se a ação sempre presente da censura, que escolhe, a cada
momento, o mediador responsável pelo mal causado pelos delírios da
imaginação; de outro, a ilusão romanesca, que percorre os discursos e
penetra na realidade do cotidiano, não havendo um campo próprio para a
ficção, para o literário. Os movimentos de vanguarda do princípio do século
já pregavam a estetização da existência, projeto que pretendia desfazer,
especificamente, a distância entre a arte de elite, legitimada pelos meios
institucionais [...]. O espaço público torna-se o lugar mais indicado para a
exteriorização de subjetividade, para a ruptura com a ideologia da
interioridade como reduto da propriedade artística (Ibidem, p.127-8).
A crítica biográfica se potencializa ao ter em vista uma rede transdisciplinar de
estudos que envolvem Teoria da Literatura, Psicanálise, História, Semiologia, Antropologia,
entre outras disciplinas, ampliando assim a visão analítica sobre um objeto. Ainda segundo
Souza, a própria atividade crítica perpassa uma subjetividade própria do crítico. Para o
escritor argentino Ricardo Piglia:
O crítico é aquele que reconstrói sua vida no interior dos textos que lê. A
crítica é uma forma pós-freudiana de autobiografia. Uma autobiografia
ideológica, teórica, política, cultural. E digo autobiografia porque toda
19
crítica se escreve a partir de um lugar preciso e de uma posição concreta
(PIGLIA apud SOUZA, 2002, p.128).
Assim compreendemos que a noção da imparcialidade é utópica; não só o trabalho
artístico é autoral, o crítico também o é. Jacques Aumont, em O autor, discute o trabalho
autoral no cinema, e acreditamos que sua proposta se aplica aos demais sujeitos envolvidos no
ato de criação: “se o artista, porém, é a fonte da arte, o objetivo da arte e sua justificação
filosófica última devem ser buscados na vida (ou no real). A arte visa ao mundo, a arte
exprime a visão do mundo do artista, é um enunciado a respeito do mundo.”(AUMONT,
2004, p.151).
Porém, a autorreferencialidade, entendida como uma modalidade da“escrita de si”, não
é um fenômeno da atualidade. Foucault, em sua pesquisa arqueológica sobre a “estética da
existência”, verifica que, desde o período clássico, na cultura greco-romana dos primeiros
impérios, existia um “exercício do eu”, apresentado sob dois modos principais: as
correspondências e os hypomnémata. Esse último era constituído de relatos de pensamentos,
citações, ações testemunhadas ou narradas, era um conjunto de subjetividades. Os gregos
dificilmente utilizavam a primeira pessoa do singular, geralmente diziam nós e o verbo “ser”
(em grego einai), 8 quedenotava uma ideia de continuidade, de um ser vivendo, de uma ação
continua e inacabada. Nos hypomnémata, não se poderia criar uma noção de identidade ou
depersonalidade (essa noção surge apenas no século XIX), 9 portanto as anotações ou
“exercícios do eu” tinham como objetivo ensinar o sujeito a governar a si mesmo, a tomar
conta de si mesmo, o que Foucault chama de “cuidado de si”.
Com o surgimento e a expansão do cristianismo, bem como dos princípios monásticos
da espiritualidade cristã, os “exercícios do eu” se alteraram. Na prática cristã, existiria o
princípio da negação de si mesmo e da realidade, renúncia que visava à ascensão a outro nível
de realidade: pura, asséptica, divina. A obra Confissões (Confisiones), de Santo Agostinho,
escrita entre 397d.C. e 398 d.C., é considerada, em algumas historiografias, como a primeira
manifestação do gênero autobiográfico. Agostinho descreve sua vida desde a concepção,
passando pelo início de sua relação com Deus, e termina com um longo discurso sobre o livro
8
Disponível em: <http://www.filoinfo.bem-vindo.net/filosofia/modules/wordbook/entry.php?entryID=6855>.
Acesso em 5 de jun. 2013.
9Em relação ao surgimento da noção de identidade, Miranda aponta alguns elementos responsáveis por esse
processo: “[...] o fim da hegemoniaocidental e do colonialismo anteriores, que propunham uma imagem
inconteste do Outro, logo do eu; a descrença no cientificismo positivista do século XIX, que prometia reduzir o
universo à mercê do controle do homem; a deteriorização da integridade do eu provocada pela fragmentação
inerente à estrutura dos meios audiovisuais; e o freudismo, mediante o realce que dá ao embate das forças do
consciente e do inconsciente, do desejo com sua realização” (MIRANDA, 1992, p. 26).
20
do Gênesis, no qual ele demonstra como interpretar a Bíblia. Além de relatar a própria vida,
Santo Agostinho inaugura um pensamento filosófico cristão que consiste em atingir a
intimidade pessoal através da confissão, o interior de si, onde é encontrada a “verdade”. Podese verificar tal pensamento na seguinte passagem:
[...] Senhor, tu me conheces. Já te disse com que escopo me vou confessando
a ti. Faço esta confissão não com palavras e vozes do corpo, mas com as
palavras da alma e o brado da inteligência, que teus ouvidos conhecem.
Quando sou mau, confessar-me ai [sic] é o mesmo que desprezar a mim
próprio; quando sou bom, é apenas nada atribuir a mim mesmo. Porque
tu, Senhor, abençoas o justo, mas antes tornas justo ao pecador. Assim, meu
Deus, a confissão que faço em tua presença, é e não é silenciosa; a boca se
cala, mas meu coração clama. Tudo o que digo aos homens de verdadeiro já
tinhas ouvido de mim, e nem ouves nada de mim que antes não me tivesses
dito. (Confissões, Livro X, parte II – grifos nossos).
Nota-se que a confissão carrega em si o desejo de absolvição. Assim, Derrida, em O
animal que logo sou(2002), analisa que o homem seria um “animal autobiográfico”, e que
esta autobiografia estaria vinculada a um gesto confessional no sentido eclesiástico, em que a
anulação do mal-estar derivado do pecado original se dá através do reconhecimento deste erro
inaugural. Dessa forma, ao tratar da culpa herdada, o homem realiza um gesto autobiográfico,
apresenta um testemunho a respeito de sua condição de pecador.
A autobiografia, entendida como ficcionalização do eu, embora menos corrente na
Idade Média, era utilizada pelos trovadores, que se valiam desta estratégia discursiva para
declarar seus sentimentos às jovens pastoras, em suas “cantigas de amigo”. Já em As
Confissões (Les Confessions), de Rousseau, escrita entre 1764 e 1770 (publicada apenas em
1782), outro precursor do gênero, o autor-narrador-personagem delineia explicitamente uma
relação de verdade com seu relato de vida.Rousseau inicia As Confissõeschamando a atenção
para o pioneirismo de seu manuscrito: “Je forme une entreprise qui n’eut jamais d’exemple, et
dont l’exécution n’aura point d’imitateur. Je veux montrer à mes semblables un homme dans
tout la vérité de la nature; et ce sera moi.” 10 (ROUSSEAU, 1954, p.4)
É interessante observar como a visão sobre a memória em Santo Agostinho e
Rousseau, bem como nos filósofos clássicos, apresentava-se como algo passível de ser
resgatado através de uma viagem na corrente do tempo, e “a memória surgiria como uma
imagem interina, intacta e fiel do vivido”(MENEZES, 2000, p.105).
Segundo Lejeune (2008), As Confissões, seria a certidão nascimento da autobiografia.
Ainda que Rousseau tenha declarado que sua escrita autobiográfica abrigaria “toda verdade”,
10
“Dou começo a uma empreitada de que não há exemplos, e cuja execução não terá imitadores. Quero mostrar
aos meus semelhantes um homem em toda verdade de sua natureza; eu serei esse homem” (tradução nossa).
21
e que jamais teria sucessores, hoje o gênero autobiográfico é moeda corrente na cultura
ocidental. Ademais, após o surgimento da psicanálise e dos estudos historiográficos e
literários, vemos como a autobiografia se desenvolve com o pressuposto de que não se trata
de um texto exclusivamente factual — debate já presente no período platônico:
(Re)Inventar-se em outros é uma estratégia ficcional tão antiga que levou
Platão a expulsar os poetas da Cidade Ideal, mas mesmo um
procedimento tão antigo pode ter renovado seu estatuto uma vez
consideradas as circunstâncias de seu (re)aparecimento. Assim,
entendemos que a incorporação do autobiográfico é uma estratégia para
eludir a própria autobiografia e tornar híbridas as fronteiras entre o real e
o ficcional, colocando no centro das discussões novamente a
possibilidade do retorno do autor, não mais como referência fundamental
para performar a própria imagem de si (AZEVEDO, 2008, p. 33-34).
Com a ascensão da burguesia no mundo moderno, o individualismo encontrou “na
autobiografia um dos meios mais adequados de manifestação”(Ibidem, p.33).Nesse mesmo
período, a modernidade seria um solo fértil para a autobiografia se tornar mais recorrente.
Mas quais foram os motivos e os processos que levaram à individualização do sujeito
moderno? Conforme os estudos genealógicos e arqueológicos de Michel Foucault acerca da
“hermenêutica do sujeito” 11 é possível verificar a formação do indivíduo moderno 12 que é
compreendido como um “objeto dócil e útil”. O indivíduo é “modelado” pelos mecanismos de
controle das instituições e espaços da sociedade moderna, como escolas, hospitais, fábricas,
prisões; o indivíduo se torna produto de um poder disciplinar e de uma vigilância realizada de
forma difusa e anônima.Tais formas de controle estão espalhadas em nosso cotidiano sob a
forma de câmeras de vigilância, monitoramento de comunicação virtual e telefônica, cartões
de acesso, entre outras. Dessa forma, o indivíduo moderno seria esse sujeito já habituado às
práticas de arquivamento, sendo o arquivamento de si não apenas um gesto de guardar
recordações de determinados momentos da vida, mas, também, uma forma de controle e de
garantir nossos direitos sociais: guardamos nossos documentos, contas, comprovantes,
registros e assim por diante.
Por meio dessa sucinta genealogia da autobiografia, verificamos que os modos de
fazê-la e sua recepção foram se modificando ao longo do tempo. Pesquisas relacionadas à
autobiografia têm ganhado espaço no meio acadêmico. Estudiosos como Philippe Lejeune;
Georges May, autor de L’ autobiographie (1979); Leonor Arfuch, autora de O
11
Referindo-se aqui à obra A hermenêutica do sujeito,oriunda do curso ministrado por Foucault no Collège
deFrance, em 1982.
12
Na obraMichel Foucault:Un parcours philosophique au-delà de l’objectivité et de la sunjectivité, de Hubert
Dreyfus e Paul Rabinow, os autores traçam uma genealogia do indivíduo moderno como sujeito a partir dos
estudos de Foucault que tratam do bio-poder e do controle da sociedade.
22
espaçobiográfico (2002); entre outros, contribuíram para a formação de um estatuto teórico
referente à autobiografia.
Lejeune,em O pacto autobiográfico (2008), procura definir a autobiografia e, ao fazêlo, depara-se com algumas relações entre biografia e autobiografia, e entre romance e
autobiografia. Em uma resumida definição, o autor caracteriza a autobiografia da seguinte
maneira: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,
quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade.”
(LEJEUNE, 2008, p.14) O autor fixa quatro condições fundamentais do gênero
autobiográfico, são elas:
1. Forma da linguagem
a) Narrativa;
b) em prosa.
2.
Assunto tratado:vida individual, história de uma personalidade.
3.
Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma
pessoa real) e do narrador.
4.
Posição do narrador:
a) identidade do narrador e do personagem principal;
b) perspectiva retrospectiva da narrativa.
(Ibidem)
Lejeune afirma que caso a obra não preencha todas as condições acima, ela pode ser
considerada um gênero vizinho da autobiografia como: “memória (2); biografia (4a), romance
pessoal (3), poema autobiográfico (1b), diário (4b), autorretrato ou ensaio (1a e 4b)” (Idem).
Posteriormente, Lejeune assinala que esse parâmetro seria muito rigoroso e que poderia haver
algumas exceções. Portanto, para analisar o corpus da presente pesquisa será utilizado o
termo autorrefencialidade, uma vez que o documentário de Gaitán não obedece às
categorizações propostas por Lejeune. Logo, a análise neste estudo partirá do pressuposto de
um filme autorrefencial que trabalha com a memória individual. O autor aborda também a
relação entre autobiografia e cinema enquanto forma de autorrepresentação em seu livro
Cinema e autobiografia: problemas de vocabulário, 13 e realiza os seguintes questionamentos:
“Será que o eu é capaz de se expressar no cinema? E um filme pode ser autobiográfico? [...]
Seria possível deslocar assim o vocabulário genérico de um meio de comunicação para o
13
Tal texto fora publicado em 1987, no periódico Revue Belge du Cinéma, n.14; em 2001 foi reeditado pelo autor
e incluso na versão de O pacto biográfico, 25 anos depois.
23
outro?” (LEJEUNE, 2008, p.221). No contexto da produção de tal texto (1987), filmes
autorreferenciais, autoetnográficos (ou etnografias de si), não eram muito comuns tal como
hoje. Assim, Lejeune comenta: “Até bem recentemente, não tinha visto filmes que fossem
comparáveis a obras como A idade viril, de Michel Leiris ou As palavras, de Sartre” (Idem).
Veremos adiante que esse modo de representação do eu associa-se ao subgênero do
documentário classificado como performativo (NICHOLS, 2012), surgido a partir da década
de 1980. O autor comenta, ainda, que os filmes autorreferenciais eram pouco conhecidos,
difíceis de serem vistos fora do circuito de mostras e festivais, que estes apresentavam caráter
experimental e amador, e propõe que para resolver certa confusão teórica derivada dessa
efervescência de um “novo gênero” seria necessário demarcar um território e “construir a ele
um passado” (LEJEUNE, 2008, p.232). O autor levanta uma série de questionamentos que
envolvem a comparação entre o gênero literário autobiográfico e o eu expresso por meio da
linguagem cinematográfica, e conclui que ainda estaria longe de resolver o problema do
vocabulário para autobiografia no cinema.
[...] eis-me bem longe dos problemas de vocabulário, em plenaa realidade de
um novo gênero. Reivindicando o nome de ‘autobiografia’, ele impõe a
comparação com uma tradição literária à qual parece se referir. Essa
comparação tem seus limites, como a problemática da ‘adaptação’ de obras
literárias para o cinema. Mas é interessante, na medida em que leva a refletir
sobre as relações do eu e da ficção (LEJEUNE, 2008, p.236).
Vista a problemática envolvida no emprego do termo “autobiografia” para filmes
construídos pela perspectiva da primeira pessoa, analisaremos como os estudos acerca da
linguagem cinematográfica acompanham tal tendência.
24
1.2 - Documentário: um gênero aberto
Uma vez que o corpus da presente pesquisa trata-se de documentário audiovisual,
iremos introduzir algumas noções referentes a tal gênero cinematográfico. É interessante
observar que o gênero documentário e seu argumento a ser desenvolvido por meio da
linguagem cinematográfica se relacionam ao factual, ao vivido. Como visto anteriormente,
tanto a elaboração como a recepção de obras que se valem da vida sofreram transformações
ao longo do tempo, conforme ocorre com o gênero documentário.
Bill Nichols, em Introdução ao documentário, afirma que o gênero não foi
“inventado” por alguém ou “ninguém teve a intenção de construir uma tradição do
documentário” (NICHOLS, 2012, p.116). As obras que se poderia considerar como “origem”
do documentário teriam a característica de desempenhar uma função de documento, pela
capacidade registrar, de indexar um acontecimento. A combinação entre a paixão pelo registro
real e por um instrumento que fosse capaz de capturar o acontecimento com grande fidelidade
e eficácia fez com que surgisse o ato da filmagem documental, que resultou em uma “fé na
imagem”; 14 ou seja, esse tipo de filme guarda a ilusão de uma pureza documental como se a
câmera fosse testemunha ocular dos fatos. Entretanto ainda mais crível que o registro feito
pelo olho humano e sua memória fraturada, visto que o acontecimento filmado pode ser
reproduzido “infinitamente”, exatamente como pela primeira vez. Os pequenos filmes feitos
no final do século XIX pelos irmãos Lumière poderiam ser considerados como documentais,
como, por exemplo, A saída dos trabalhadores das fábricas Lumière (1895), porque
passavam uma ilusão de indexação do acontecimento ao suporte fílmico, em seus fotogramas.
Em uma revisão histórica do documentário, Nichols aponta que Robert Flaherty seria
o “pai” do gênero por realizar Nanook, o esquimó (1922). No entanto, Dziga Vertov já havia
realizado Kino Nedelia (1918); A Semana no Cinema (1919);Aniversário da Revolução
(1919) e História da Guerra Civil (1922), portadores de caráter documental. É interessante
mencionar, também, que o produtor John Grierson estabeleceu uma base institucional muito
forte no final da década de 1920: “Grierson impulsionou o patrocínio governamental da
produção de documentários na Inglaterra dos anos 30” (NICHOLS, 2012, p. 119).
Poderíamos pensar o documentário como filme de não-ficção, no entanto tal definição
seria muito vaga. Para Nichols, a definição de documentário seria relativa e comparativa,
visto que o campo de prática de tal gênero seria “uma arena onde as coisas mudam.
14
Termo utilizado pelo crítico francês André Bazin, em “O que é o cinema” (NICHOLS, 2012, p.118).
25
Abordagens alternativas são constantemente tentadas e, em seguida, adotadas por outros
cineastas ou abandonadas” (Ibidem, p.48). Dessa forma, a concepção de o que seria um
documentário é constantemente atualizada, ela modifica-se “conforme muda a ideia dos
documentaristas quanto ao que fazem”(Ibidem, p.53). Ao longo da história da produção de
documentários, Fernão Ramos (2008) observa que:
[...] alguns traços estruturais são recorrentes, formando períodos [...] No
documentário clássico, até o final dos anos 1950, predomina a locução forade-campo (a voz over ou voz de Deus) [...] A partir dos anos 1960, com o
aparecimento da estilística do cinema direto/verdade, o documentário mais
autoral passa a enunciar por asserções ideológicas [...] A tendência mais
participativa do cinema direto/verdade introduz no documentário uma nova
maneira de enunciar: a entrevista ou o depoimento. As asserções continuam
ideológicas, mas são provocadas pelo cineasta. No documentário
contemporâneo mais criativo, há uma forte tendênciaem se trabalhar com a
enunciação em primeira pessoa(RAMOS, 2008, p. 23).
Tais modificações ocorreram (e ocorrem) confrome os processos socioculturais de
determinado contexto, gerando “movimentos” e “períodos”. Os movimentos surgem de um
certo “grupo de filmes feitos por indivíduos que compartilham o mesmo ponto de vista”
(NICHOLS, 2012, p.60). Os diferentes movimentos relacionam-se também a determinados
pressupostos ideológicos, representando, assim, uma defesa de causa social ou
cinematográfica; por exemplo, o Free Cinema defendia “um cinema livre da necessidade de
propoaganda do governo, do dinheiro do patrocinador e das convenções estabelecidas do
gênero” (Ibidem). É comum que manisfestos e declarações sejam realizados visando
estabelecer os pressupostos éticos, estéticos e políticos a serem defendidos por determinado
movimento. Os períodos, no documentário, podem ser uma forma utilizada para caracterizar e
diferenciar trabalhos num conjunto referente a uma determinada época; entretanto,
contemplamos documentários visionários que influenciariam um novo modo crítico e novas
formas de se analisar tais obras. Com isso, seria complexo acertar as causas e as datas precisas
de tais transformações. É possível, ainda, verificar que a tecnologia e seus avanços também
atuariam como fatores importantes na transformação da linguagem documental. A exemplo
disso temos o surgimento da captação de “som direto”, que proporcionou uma veracidade
maior aos registros fílmicos. Conforme Ramos (2004): “O aparecimento do som direto
conquista um aspecto do mundo (o som sincrônico ao movimento) que os limites tecnológicos
haviam, até então, negado ao documentário.” (RAMOS, 2004, p.81-82) Surge nesse contexto
o “cinema direto”, em que o cineasta adota uma postura mais observacional, não interventiva.
Os acontecimentos são registrados diante da câmera sem interferência do diretor. Já o
26
“cinema verdade”, onde o diretor assume uma postura mais ativa, utiliza entrevistas com
pessoas comuns, sendo isso tanto um recurso estético como um mecanismo ético de dar voz
ao povo ou ao outro.
Além desses movimentos e períodos, é importante ressaltar que dentro do gênero
documentário existem diferentes modos de produzir, determinando certa afiliação e o modo
como o diretor apresenta seu olhar. Nichols aponta a existência de seis tipos de subgêneros,
são eles: poético, expositivo, participativo, observativo, reflexivo e performativo. Tal ordem
segue uma cronologia referente ao surgimento de cada modo, mas essa ordenação não é
significa uma forma evolução. Compreendemos, também, que o surgimento de um
determinado modo não implica o abandono de outro já existente, estes podem, muitas vezes,
misturar-se entre si. Em uma descrição resumida desses modos, vemos que o poético (anos de
1920) dá ênfase às “associações visuais, qualidades tonais ou rítmicas” (NICHOLS, 2012,
p.62), sendo um modo “próximo ao cinema experimental, pessoal ou de vanguarda.”
(Ibidem); o expositivo (anos de 1920) “enfatiza o comentário verbal e uma lógica
argumentativa” (Ibidem); o observativo (anos de 1960) “enfatiza o engajamento direto no
cotidiano das pessoas que representam o tema do cineasta” (Ibidem), a câmera observa de um
modo discreto e não interventivo; o participativo (anos de 1960) tem como premissa a
interação entre o diretor e o tema, existe uma preocupação em dar voz ao outro por meio de
entrevistas; o reflexivo (anos de 1980) “chama a atenção para as hipóteses e convenções que
regem o cinema documentário” (Ibidem, p.63), promovendo uma participação do espectador
na reflexão sobre as questões referentes à representação; o performativo (anos de 1980)
“enfatiza o aspecto subjetivo ou expressivo do próprio engajamento do cineasta” (Ibidem). Os
filmes de tal modo dão mais “ênfase às características subjetivas da experiência e da memória
que se afastam do relato objetivo.” (Ibidem, p.170). 15
Assim como o desenvolvimento tecnológico possibilitou a captação do som direto nas
câmeras em 1962, o áudio passou a ser gravado em uma pista sonora da película fílmica,
transformando o modo de produzir documentários. Ressalta-se também o desenvolvimento
das câmeras de vídeo na década de 1970 e com sua popularização a patrir da década de 1980,
fato que proporcionou mudanças na produção dos filmes documentais. Dessa forma, podemos
15
Tais classificações realizadas por Nichols se faz útil no sentido de identificar ou distinguir os subgêneros do
documentário e suas fronteiras. Tais considerações estariam mais fundados no âmbito estruturalista, visto que
tais categorizações não propõem um modo de como “ler” ou analisar os documentários para além de sua forma e
estrutura. Acreditamos que a análise crítica de um filme deveria aprofundar-se também no conteúdo do som e
das imagens, no sentido de discutir mais o tema abordado por determinado documentário.
27
afirmar que vídeos (e também filmes) caseiros, amadores, realizados em câmeras portáteis,
semi-profissionais contribuiram para o entedimento do que Nichols classifica como modo
performativo.
Ao ter em vista essa categorização dos subgêneros ou modos do documentário, é
possível verificar que Diário de Sintra poderia se enquadradar dentro do modo performativo,
mas também possui características do poético. No que se refere ao modo poético, notamos
características como: estrutura descontínua e fragmentária, preocupação plástica com as
imagens e sons. Já os traços que se circunscrevem ao performativo são: o tom autobiográfico,
a abordagem mais subjetiva sobre a memória e a experiência pessoal da diretora Paula Gaitán.
Podemos notar que os modospoético e performativo, conforme a classificação proposta por
Nichols, possuem características bem próximas.
Notamos que atualmente esses subgêneros continuam coexistindo e que muitos
documentários transitam entre eles. É possível verificar como a primeira pessoa ou a história
de um indivíduo, conhecido ou não, tornaram-se bastante recorrentes nas recentes obras
cinematográficas. 16 Há uma recente tendência 17 de se realizar documentários com viés
pessoal, mais particular, menos objetivo, que não propõe a busca pela “verdade”, mas sim por
uma relação com a memória e suas ruínas. Os documentários performativos seriam, talvez,
uma representação também dos “modos de ser” e da cultura contemporânea, marcada por um
individualismo típico da pós-modernidade.
16
A realização de documentários com essa perspectiva da primeira pessoa tornou-se expressiva no Brasil nos
últimos quinze anos; a exemplo disso encontramos os seguintes filmes: Um passaporte húngaro (2003), de
Sandra Kogut;33 (2003), de Kiko Goifman;Santiago (2005), de João Moreira Salles;Person (2006) de Marina
Person;Clarita (2007), de Thereza Jessouroun;Diário de Sintra (2007), de Paula Gaitán;Álbum de Família
(2009), de Wallace Nogueira;Canoa Quebrada (2010), de Guile Martins; Diário de uma busca (2011), de Flávia
Castro; Elena (2012), de Petra Costa;Otto (2012), de Cao Guimarães;Marighella (2012), de Isa
Grinspum;Mataram meu irmão (2013,) de Cristiano Burlan;Em busca de Iara (2013), de Flávio Frederico;Os
dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar; entre outros.
28
1.3 -Memória, arquivo e espaço
O documentário Diário de Sintra poderia ser compreendido como um ensaio sobre o
gesto reminiscente, uma vez que a diretora vivencia uma busca por sua memória nos espaços
de Sintra, apoiando-se em arquivos pessoais para resgatar as lembranças de um determinado
período (de fevereiro a agosto de 1981). Com o objetivo de verificar como filme de Gaitán
adquire traços de um filme-ensaio sobre tal temática, realizaremos sucintamente um esboço
dos conceitos de memória, arquivo e suas relações com o espaço. E também, a fim de
circunscrevero filme à esta análise, utilizaremos os referenciais conceituais empregados pela
diretora em seu trabalho.
A origem da noção de memória está relacionada aomito daMnemósine (Mnemosýne),
presente na obraTeogonia, de Hesíodo, em que senarraque Zeus, após ter vencido os titãs
(deuses do Olimpo, filhos de Urano), foi solicitado a criar divindades capazes de cantar e
perpetuar sua vitória. Zeus partilha, então, o leito com a deusa Mnemósine, que seria a
personificação da memória, durante nove noites consecutivas, e, após um ano, esta dá à luz as
nove Musas. Hesíodo afirma que:
Nesta comunidade agrícola e pastoril anterior à constituição da pólis e à
adoção do alfabeto, o aedo (i.e. o poeta-cantor) representa o máximo poder
da tecnologia de comunicação. Toda a visão de mundo e consciência de sua
própria história (sagrada e/ou exemplar) é, para este grupo social,
conservada e transmitida pelo canto do poeta. É através da audição deste
canto que o homem comum podia romper os restritos limites de suas
possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras
geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis,
e entrar em contacto e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do
canto se tornam audíveis, visíveis e presentes. O poeta, portanto, tem na
palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e
distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela
Memória (Mnemosýne) através das palavras cantadas (musas) (TORRANO
In: HESÍODO, 2007, p.16).
Nesse sentido, o olhar do poeta seria dotado de um poder capaz de redimensionar o tempo e
reinventar o mundo a partir de seu canto. O poeta, possuído pela Mnemosýne, adquiria a
capacidade de vidência, que o aproximava dos profetas e estabelecia uma junção entre os
tempos passado, presente e futuro. Imbuído pela memória, o poeta ou o narrador teria trânsito
livre nos domínios de Mnemosýne, onde o tempo perde o caráter cronológico e ganha fluidez
psicológica ao reorganizar os fatos narrados de maneira não linear (Cf. MENEZES, 2000,
p.94-95).
29
Muito do que se comenta a respeito das Musas, refere-se à sua capacidade de possuir o
poeta, fazendo que este anuncie só coisas verdadeiras.Entretanto as Musas não anunciam
apenas verdades, conforme o artigo As musas ensinam a mentir, de Jacyntho Lins Brandão. O
autor aponta, no início de seu estudo, os seguintes versos da Teogonia:
As Musas olimpíades, filhas de Zeus que tem a égide:
Pastores agrestes, maus opróbios, ventres só,
Sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autênticas
E sabemos, quando queremos, verdades proclamar
Nesses versos, é possível notar que nem sempre as Musas dizem a verdade, e esta
aparece quando lhes convém. Além disso, as Musas representam a união de Zeus e
Mnemosýne. Elas não seriam simplesmente filhas da “memória pura, mas de uma memória
mesclada (migeîsa) com Zeus. Consequência primeira: elas não são só memória”
(BRANDÃO, 2000, p.17). Esta noção de que a memória não é inteiramente verdadeira
repercute nos dias atuais.
Aristóteles, em De memoria et Reminiscentia, realiza a distinção entre duas faculdades
memoriais: a mnéme e a anámenesis. A primeira simplesmente conservaria o passado
(memória) e a segunda seria o seu chamado, ou sua ativação (reevocação). Conforme
Aristóteles, a memória precederia cronologicamente a reminiscência. Esses dois termos,
memória e recordação, parecem sinônimos. No entanto, a memória estaria associada à
naturalização do passado, num vetor que, do passado ao presente, fixa identidades e
representações. Já a anámenesis, por sua vez, estaria associada à possibilidade de recriação da
vida a partir de fluxos contemporâneos (que transita mais livremente entre passado e
presente). Os fatos passam a ser considerados secundários em relação ao procedimento de
selecioná-los e articulá-los.
Ainda sobre a origem da mnemotécnica, Frances A. Yates (2007), em A arte da
memóriaretoma a crônica tratada por Cícero, cuja narrativa conta que o poeta Simônides de
Ceos foi chamado pelo nobre Scopas de Tesália para recitar uma ode em louvor de seu
anfitrião. Porém, durante seu recitar, incluiu passagens dos hinos de Castor e Póulox (filhos
de Júpiter). Ressentido, Scopas diz ao poeta quelhe pagaria apenas a metade combinada e que
o restante fosse cobrado dos deuses gêmeos, aos quais havia dedicado a metade do poema.
Pouco tempo depois, um servo avisa a Simônides que duas pessoas o aguardavam do lado de
fora. O poeta retira-se do banquete, e quando sai da casa, não encontra ninguém. Durante sua
saída, a casa desmorona, matando todos que lá estavam. Os mortos ficaram tão deformados
30
que o reconhecimento das vítimas por seus familiares pareceu impossível, mas o poeta
recordou-se da posição dos convidados no banquete e dessa forma conseguiu identificá-los
para que seus parentes fizessem cumprir os funerais. Cícero, ao tratar dessa história, comenta
que aqueles que desejassem treinar a memória deveriam realizar o seguinte exercício:
“selecionar lugares e formar imagens mentais das coisas que querem lembrar, e guardar essas
imagens nesses lugares, de modo que a ordem dos lugares preserve a ordem das coisas, e as
imagens das coisas denotem as próprias coisas” (CÍCERO apud YATES, 2007, p.18). Esse
episódio demonstra como as noções de memória relacionadas à viagem e as noções de
recordação relacionadas aopercurso são muito antigas. Diário de Sintra enquadra-se nessa
lógica, poispor meio do percurso espacial em Sintra, Paula Gaitán ativará sua memória,
revisitando locais onde algumas recordações suas emergem em meio a tantas outras.
Outra obra que aborda a memória dentro dos estudos da retórica romana é Ad
Herennium, mantida como anônima, atribuída a Cícero devido à grande importância de sua
obra De oratore. Em Ad Herennium,o autor afirma que a memória artificial 18 “fundamenta-se
em lugares e imagens (Constat igitur artificiosa memoria ex locis et imaginibus) [...] Um
locus é um lugar facilmente apreendido pela memória, como uma casa, um intercolúnio, um
canto, um arco, etc.” (YATES, 2007, p. 23). Assim, transformamos imagens, signos e formas
em algo de que desejamos lembrar, estabelecendo para essa imagem, um referente, um local.
Segundo os procedimentos da retórica, a memória artificial funcionaria como uma espécie de
escrita interior. Os que conhecem as letras desse alfabeto seriam capazes de dominar a leitura
e a escrita do conteúdo fugidio que se abriga na memória.
No início da Idade Média, Agostinho desenvolve reflexões acerca da memória, e é
interessante observar como algumas descrições feitas por este tratam do exame da consciência
e estão próximas aos preceitos da psicanálise:
Grande é o poder da memória [...] uma profunda e infinita multiplicidade;
[...] Eis-me nas planícies da minha memória, nos antros e cavernas
inumeráveis e inumeravelmente cheios das espécies de inumeráveis coisas,
quer por imagens, como as de todos os corpos, quer pela presença, como a
das artes, quer por não sei que noções e observações [...] Percorro todas estas
coisas, esvoaço por aqui e por ali, e também entro nela até o fundo quanto
posso, e em parte alguma está o limite [sic] (Confissões, Livro X, 17.26).
Podemos notar que Agostinho relaciona a memória às noções espaciais. A memória se
assemelharia às superfícies de um relevo, assim como na geografia, seria ela moldada por
18
Conforme Yates, existem dois tipos de memória: uma natural contínua, que nasce ao mesmo tempo que o
pensamento; outra artificial, aquela que é reforçada e disciplinada pelo treinamento.
31
meio de ações endógenas ou exógenas. Assim, a memória estaria constantemente sujeita a
mudanças.
Os estudos da arte da memória ressurgem com grande importância entre a Idade
Média e o Renascimento. A obra Phoenix sive artificiosa memoria (1491), de Pietro de
Ravena foi largamente difundida e traduzida em diversas línguas. Teatro da memória,do
veneziano Giulio Camillo, publicada em 1550 (após sua morte) como Idea del teatro seria
uma releitura renascentista da mnemotécnica. Conforme Jacques Le Goff, em História e
memória, a obra de Camillo seria “uma representação do universo que se desenvolve a partir
das causas primeiras, passando pelas diversas fases da criação. As suas bases são os planetas,
os signos do zodíaco e os supostos tratados de Hermes Trismegisto.” (LE GOFF, 1996,
p.458). Também dentro dessa perspectiva renascentista neoplatônica, Johannes Romberch, em
seu Congestorium Artificiosae Memoriae (1520), trabalha com a ideia de um “armazém
mental do retórico como um lugar físico, objetivo, interpessoal.” (COLOMBO, 1991, p.34).
Romberch definiu um sistema de lugares para as imagens composto por três tipos de loci:o
primeiro era constituído pelo cosmo (tal lugar estava no domínio dos “lugares imaginários”
ou ficta loca, relacionava-se à ideia de Paraíso, Purgatório e Inferno); outro sistema de lugar
era a utilização dos signos do zodíaco; e o terceiro tipo de sistema era a memorizaçãode
lugares reais em construção. Romberch cria, ainda, um alfabeto formado por imagens
semelhantes às formas das letras; outro método desse alfabeto consistia em utilizar a primeira
letra do nome de um animal. Tal alfabeto possibilitou criação da Gramática de Romberch;
com esse método a memória poderia ser ilustrada — um dos raros casos dentro da arte da
memória. (Cf. YATES, 2007, p. 153-59). Outro filósofo que deu grandes contribuições à arte
da memória, durante o Renascimento, foi Giordano Bruno. Este criticou a convencionalidade
dos lugares, criou a noção de labirinto e individualizou conexões objetivas entre locus (do
latim, “lugar”) e imago (do latim, imagem). Uma vez que filósofo cria dois conjuntos de trinta
proposições, que seriam as intentiones (intenções) das sombras e os conceitos das ideias,
esses conjuntos eram ilustrados por rodas nas quais estavam inscritas trinta letras. Dessa
forma, seu sistema da memória, baseado no número trinta, agrupava, coordenava e unificava a
multiplicidade do fenômeno da memória. Assim, a “utopia bruniana gira em torno do curtocircuito entre informação e lembrança, entre dado armazenado e dado descoberto”
(COLOMBO, 1991, p.37-38). Bruno propunha que “o objetivo do sistema de memória é
estabelecer internamente, na psique, o retorno do intelecto à unidade, graças à organização de
imagens significativas.” (YATES, 2007, p.288).
32
Muitos filósofos e estudiosos deixaram grandes contribuições para essa vasta área
conceitual sobre a memória. Além dos que foram mencionados aqui, existem tantos outros de
significativa importância (São Tomás de Aquino, Paolo Rossi, Cesare Vasoli, Freud, Piaget,
Henri Bergson), cujos estudos envolvem diferentes disciplinas, como Psicologia, Filosofia,
História, entre outras. A escolha em destacar alguns filósofos dentro desse breve histórico se
justifica pela abordagem mais focada na relação entre memória e espaço. Talvez a
necessidade dese preservar a memória elevar algum fato ou informação para o futuro fez com
que os registros fossem cada vez mais aprimorados. Assim, Fausto Colombo, em Os arquivos
imperfeitos, trabalha com a ideia de evolução da mnemotécnica, analisando os estudiosos da
memória que tão bem foram retratados em A arte da memória,de Yates. Esta autora, no
prefácio de A arte da memória, afirma que “essa arte busca a memorização por meio de uma
técnica de imprimir lugares e imagens na memória” (YATES, 2007, p.11).
Colombo analisa a tradição da mnemotécnica retórica como o autêntico precursor da
lógica do arquivamento, pois os sistemas de memorização contemporâneos ligados às
tecnologias eletrônicas trabalham com a noção de espaço e de memória:
A espacialização da memória dentro da qual se faz o arquivamento, [...] deve
ser entendida em sentido mais literal: o termo pretende indicar tanto a
localização dos dados dentro das memórias de massa (unidade de discos,
unidade de fitas, mainframes e assim por diante), quanto a própria lógica de
programação do computador, que funciona atribuindo a cada dado variável
que é – exatamente – um “espaço” de memória. (COLOMBO, 1991, p. 28).
A diferença entre um usuário que busca a “memória” (compreendida como uma
informação) em um computador e um retórico que se valia da mnemotécnica é a apresentação
dessa informação: para o primeiro, a informação permanecevisível na tela do computador, em
forma de listas, ícones ou imagens; já para o segundo, a informação estaria em um lugar
imaginado, criado por sua mente, seguindo algum dos modelos dos estudiosos apresentados
anteriormente. Fausto Colombo afirma que “o usuário de um arquivo é um viajante sui
generis, que atravessa um espaço não fisicamente, mas graças a uma nova capacidade, que
consiste em fazer o dado deslocar-se na sua direção”(COLOMBO, 1991, p.30). O autor
explica, ainda, que cada arquivo, mesmo que computadorizado, demandaria uma ação de
chamar a informação, e aponta que esse ato de chamar determinada informação estaria para
além da competência do usuário; ou seja, tanto na retórica como na busca por arquivos
eletrônicos exigiria uma palavra-chave (ligada a uma técnica de busca) que daria acesso à
informação desejada. A “espacialização armazenadora” seria a solução parauma grande
33
quantidade de dados, conforme apontado por Colombo, bem como uma possível alternativa
ao esquecimento. 19
A arte da memória, ou mnemotécnica, se fez muito importante para os estudos
retóricos — e para a cultura da Antiguidade,devido à ausência da imprensa, e o aparecimento
desta revolucionou não apenas a memória coletiva, como a individual que passa a ser
progressivamente exteriorizada. Jacques Le Goff observa esse declínio da mnemotécnica.
a teoria clássica da memória formada na Antiguidade greco-romana é
modificada pela escolástica, que tivera um lugar central na vida escolar
literária e artística na Idade Média, desaparecendo quase completamente no
movimento humanista (LE GOFF, 1996, p. 458)
Entretanto, poderíamos compreender que o acumulo de documentos escritos e a técnica
arquivística seria uma evolução da arte da memória. Nessa lógica, a figura do mnemon
(magistrado que guarda a lembrança do passado para fins jurídicos), enquanto um ser de
“memórias vivas” transforma-se em arquivista (Cf. LE GOFF, 1996, p. 436).Assim, o arquivo
designa “domicílio, endereço dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que
comandavam” (DERRIDA, 2001, p. 12), e a partir desse princípio de autoridade que o
arquivo abriga em si, passa-se a instituir limites nas relações entre público e o privado, secreto
e não secreto, de publicação ou de reprodução, etc.
Nos dias atuais, existe um registro massivo de nossas ações ao longo do dia. Haveria ainda
alguma importância da “arte da memória” na contemporaneidade? Com tantos registros, o que
memorizamos de fato? O desejo de memorizar algo tem sido transferido para a ação de
registro e arquivamento? A memória parece tornar-se cada vez mais falha em meio a tantas
tecnologias que servem de suporte a ela. “Memória e arquivo parecem ser dois conceitos
chaves nesses tempos” (KLINGER, 2007, p. 170). Conforme Andreas Huyssen, em Seduzidos
pela memória, vivemos a cultura e a globalização da memória:
[...] o boom das modas retrô e dos utensílios reprô [sic] a comercialização
em massa da nostalgia, a obsessiva automusealização através da câmera de
vídeo, a literatura memorialística e confessional, o crescimento dos
romances autobiográficos e históricos pós-modernos (com as suas difíceis
negociações entre fato e ficção), a difusão das práticas memorialísticas nas
artes visuais, geralmente usando a fotografia como suporte, e o aumento do
número de documentários na televisão (HUYSSEN, 2000, p.14).
19
O esquecimento, tão necessário quanto a memória, faz com que possamos viver o presente e pensá-lo. Um
exemplo que ilustra a importância da memória e do esquecimento é o conto “Funes, o memorioso”, escrito por
Jorge Luís Borges. No conto, o protagonistauruguaio Irineu Funes possuía uma implacável memória, não se
esquecia de nada: “o presente era quase intolerável e tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e
mais triviais”. Funes era “quase incapaz de ideias gerais, platônicas”, “não pensava, pois pensar é esquecer as
diferenças, é generalizar, abstrair” (Borges, Funes, o Memorioso, In: Ficções, 1995).
34
Com o avanço tecnológico e a disseminação das câmeras digitais em seus diferentes
suportes, dados e fatos passam a ser registrados e arquivados. Materiais de arquivos, registros
pessoais e familiares se tornam base de montagens autobiográficas que dão nova dimensão ao
trabalho de reconstrução do real. Muitos desses arquivos, hoje ficam armazenados em uma
“nuvem virtual”, a fim de facilitar o compartilhamento desses arquivos. Essa “nuvem”
facilitaria o acesso do usuário aos arquivos, pois este acesso poderia ocorrer a partir de
diferentes máquinas e em diferentes lugares, sem a necessidade de uma mídia (CD, DVD,
pen-drive, HD). Além da possibilidade de mantê-los como privados ou públicos, pode-se
também compartilhar arquivos pessoais em uma espécie de vitrine pública, como as redes
sociais. Essa explosão da utilização dos recursos midiáticos e seu compartilhamento é fruto de
um fenômeno vivenciado atualmente e nomeado “revolução da Web 2.0”. Essa denominação
foi cunhada em 2004, em um debate do qual participavam vários
representantes da cibercultura, executivos e empresários do Vale do Silício.
A intenção era batizar uma nova etapa de desenvolvimento da internet, após
a decepção gerada pelo fracasso das companhias pontocom: enquanto a
primeira geração de empresas on-line procurava “vender as coisas”, a Web
2.0 “confia nos usuários como co-desenvolvedores” (SIBILIA, 2008, p.14).
Porém, a web 2.0 tornou-se sinônimo de uma grande rede de sociabilidade virtual, e,
por meio desta, muita informação passa a ser disseminada fora das grandes mídias. Hoje é
comum que significativa parte das pessoas tenha um perfil virtual em sites de sociabilidade e
que nestes se exponham a cada vez mais, seja por meio da expressão de suas opiniões sobre
determinado acontecimento, relatando algo que lhe passa naquele momento, seja por fotos e
vídeos pessoais. As recordações dos álbuns de família e os porta-retratos de estante deram
lugar aos álbuns virtuais; a necessidade do registro parece aumentar graças a um renovado e
insaciável desejo de autoexibição.O evento experimentado não se completa antes dos rituais
de autoexibição, a vivência de algo parece não ter sentido antes disso, pois como observa
Sibilia:
no compasso de uma cultura que se ancora crescentemente em imagens,
desmonta-se o velho império da palavra e proliferam fenômenos como os aqui
examinados, nos quais a lógica da visibilidade e o mercado das aparências
desempenham papéis primordiais na construção de si e da própria vida como
um relato(SIBILIA, 2008, p.48).
35
No entanto, os registros de cenas “reais”, por mais naturais e espontâneos que sejam,
não deixam de ser fabricados ou posados. 20 Tais imagens são escolhidas visando à seleção da
melhor imagem para a construção de um “eu-midiático”. Muitas dessas fotografias realizadas
e utilizadas nos gadgets 21 chegam a passar por um processo de recorte e tratamentos préfabricados como, por exemplo, o uso dos filtros do aplicativo instagram, 22 que se popularizou
muito nos últimos anos.
Conforme Philippe Artières, quando tornamos alguns de nossos objetos em arquivos,
realizamos um processo de triagem, ou seja, escolhemos alguns que precisam ou merecem ser
guardados e outros são dispensados, indo para o lixo ou para mãos de terceiros. Esses
arquivos, caixas, gavetas sempre são revistos, e, nessas revisões, arrumações ou mudanças
nos fazem realizar um novo critério de seleção. As intenções do arquivamento de tal objeto
podem ser modificadas ao longo do tempo. Contudo, “não arquivamos nossas vidas, não
pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; [...] fazemos um acordo com a
realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos
destaques a certas passagens” (ARTIÈRES, 1998, p. 11). Assim, esse processo de
arquivamento de si torna-se um modo de autoficcinalização ou mesmoa criação de uma
“imagem de si”. Essa organização dos arquivos pessoais estender-se-ia também aos arquivos
de algum familiar ou pessoa muito próxima, deixados após a morte. Conforme Ana Lígia
Aguiar, em sua tese Glauber em crítica e autocrítica: “Organizar um trecho da vida de um
morto é tentar organizar a vida presente, recontando a história de uma forma que ela possa ser
recordada sempre” (AGUIAR, 2010, p. 76). Seguindo tais pressupostos, Paula Gaitán, em
Diário de Sintra, revisita seu arquivo pessoal em busca de materiais referentes aos últimos
meses de vida junto a Glauber Rocha. Ao rever e organizar esse material, a diretora realiza
uma ação que estaria relacionada à noção de “cuidados de si”, 23 trabalhada por Foucault.
Também, o ato de Gaitán revisitar os lugares de Sintra, registrando os movimentos de seu
corpo, percorrendo esses espaços outrora vivenciados junto de Glauber, seria uma “técnica de
si” e um “exercício de si”; compreendidos como facetas desse “cuidado de si”. Uma vez que a
20
Barthes, em A câmara clara, observa: “Ora a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda:
ponho-me a posar, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em
imagem” (BARTHES, 1984, p. 22).
21
Equipamentos eletrônicos portáteis, como: smartphones, celulares, tablets, etc.
22
Rede social mais conhecida atualmente para compartilhar fotos. Para utilizá-la é necessário possuir um celular
android e instalar o aplicativo no aparelho.
23
Judith Revel, em MichelFoucault: conceitos essenciais, sintetiza a noção do “cuidado de si” da seguinte forma:
“o conjunto das experiências e das técnicas que o sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si
mesmo” (REVEL, 2005, 33).
36
câmera registra a vivência da própria diretora, assim como o aparato da escrita pode fazê-lo,
torna-se possível reler esses gestos e empreender uma autoanálise, como na escrita de um
diário.
37
2-BIOGRAFIA DA AUSÊNCIA
Para analisar como ocorreu a “mitificação” e a construção da “imagem de si” de
Glauber Rocha ao longo de sua trajetória de vida, faz-se necessário, antes, registrar um breve
perfil biográfico do cineasta baiano. Isso será realizado com um mosaico composto por
trechos de cartas, entrevistas, filmes, biografias, entre outras referências, a partir de pesquisa
bibliográfica estruturada de modo cronológico a fim de apontar acontecimentos e realizações
relevantes para esse trabalho. Também através desse estudo acerca do personagem
glauberiano, será possível verificar como o conceito de “biografemas” torna-se necessário
para nossas investigações. Mais adiante, indicaremos como a complexa imagem do cineasta é
apresentada em Diário de Sintra.Em seu documentário, Gaitán figura a ausência de seu
companheiro, retratando seus últimos momentos juntos. Assim, para compreendermos as
motivações que levaram Glauber se autoexiliar, como tambémo estado emocional que ele
apresentava naquele período, percorremos diversos estudos já realizados sobre o cineasta.
2.1-Glauber Rocha: uma breve biografia
O cineasta brasileiro Glauber de Andrade Rocha nasceu em Vitória da Conquista,
Bahia, em 14 de março de 1939. Glauber é filho de Lúcia Mendes de Andrade e Adamastor
Bráulio Silva Rocha. Seu nome foi escolhido pela mãequando esta leu uma coleção de
biografias de grandes nomes da Física e da Química e um desses nomes lhe chamou atenção:
Johann Rudolf Glauber, o descobridor do sulfato de sódio ou “sal de Glauber”. 24 Aos nove
anos, o futuro cineasta mudou-se com a família para Salvador; dos doze aos quatorze anos se
aprofundou em assuntos bíblicos, em sua adolescência lia muita literatura brasileira e filosofia.
Estudou no Colégio Estadual da Bahia, onde ingressou em 1954, e fez alguns amigos que
vieram a constituir o grupo “Geração Mapa”, formado em 1957. O grupo criou a revista Mapa
e realizou uma série de espetáculos conhecidos como As jorgalescas. Em 1959, Glauber foi
admitido na Faculdade de Direito da Bahia e realizou seus primeiros curtas: Pátio e Cruz na
praça. No mesmo ano, casou-se com a atriz Helena Ignês, com a qual teve a filha Paloma de
Mello e Silva Rocha. Em 1961, abandonou o curso de Direito e passou a dedicar-se
exclusivamente ao cinema. Realizou, em 1962, Barravento; em 1963, dirigiu Deus e o diabo
na terra do sol, (lançado em 1964), que pode ser considerado como um dos principais do
24
Conforme consta na biografia Glauber Rocha, esse vulcão, de João Carlos Teixeira Gomes.
38
CinemaNovo ou, conforme Ismail Xavier, o “filme-chave” 25 do Cinema Novo. Tal filme
concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1964. Em 1965, Glauber participou da
criação da Mapa Filmes junto com Walter Lima Jr. e outros. Em 1966, realizou os
documentários: Amazonas, Amazonas e Maranhão 66; no ano seguinte lançou seu filme mais
instigante e talvez o que mais obteve destaque em sua filmografia: Terra em transe. Em 1967,
Glauber e sua segunda esposa, Rosa Maria de Oliveira (unidos em 1962), passam nove meses
viajando pela Europa, a maior parte desse período, na França. A partir de Terra em transe, a
linguagem fílmica glauberiana torna-se cada vez mais experimental e autoral. Em 1969,
recebeu o prêmio de melhor direção, em Cannes, pelo filme O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro.Ganhou notoriedade por ser um dos responsáveis pelo surgimento do
Cinema Novo; chegou a dizer algumas vezes que “O Cinema Novo sou eu. Quando algum
canalha diz que o Cinema Novo morreu quer dizer que Glauber Rocha morreu.” 26 Nelson
Pereira dos Santos também dizia que o movimento, na verdade, não existia: “O Cinema Novo
só existe quando o Glauber está no Rio.”27
A partir de 1969, Glauber fez uma série de viagens. Realizou, na Espanha, Cabeças
Cortadas (1970); no Congo, filmou O leão de sete cabeças (1970); na Itália, foi convidado a
participar do filme Vent d'Est, por Jean-Luc Godard; no mesmo ano, Médici assume a
presidência e é criada a Embrafilme – a situação de Glauber no Brasil se torna complicada
devido à intensificação da censura em um regime político ditatorial. O cineasta temia que
fosse sequestrado e assassinado, como aconteceu com o jornalista Vladmir Herzog, por isso
parte para um autoexílio. Viaja aos EUA, ao Chile e, em novembro de 1971, a Cuba, onde
permanece até dezembro de 1972. Ainda em 1972, viaja por diversos países da América
Latina e conhece Paula Gaitán (ainda adolescente) em Bogotá; iria reencontrá-la no Brasil em
1976 e conviveria com ela até seus últimos dias de vida. Em 1973, Glauber vive entre Roma e
Paris, sentindo “a ‘nostalgia do exilado’, um sentimento que somente alguém que tenha
passado por experiência congênere pode descrever, misto de saudade, angústia e desejo
incessante de regresso, carência permanente do ambiente familiar e do círculo de amigos [...]”
(GOMES, 1997, p. 265).
Em 1974, Glauber apaixona-se pela atriz francesa Juliet Berto e, com ela, filma Claro
(1975),rodado em Roma. Ainda em 1974, envia a polêmica carta ao amigoZuenir Ventura,
25
Expressão utilizada no capítulo “Deus e o Diabo na terra do sol: as figuras da revolução”, no livro Sertão Mar.
(XAVIER, 2007, p.142).
26
Disponível em: <http://www.omartelo.com/omartelo22/materia1.html>. Acesso em 08 de mai. 2013.
27
Idem.
39
causando sérias repercussões à sua imagem. A carta foi publicada na revista Visão. Nela
Glauber escreveu:
Querido Zus: eu acho que Geisel tem tudo na mão para fazer do Brasil um
país forte, justo, livre. Estou certo inclusive que os militares são legítimos
representantes do povo. Chegou a hora de reconhecer sem mistificações,
moralismos bobocas, a evidência: Costa era quente, frias eram as
consciências em transe que não viram pintar as contradições no espelho da
História. Em 68 eu era albuquerquista, pode publicar se quiser [...] Para
surpresa geral, li, entendi e acho o General Golbery um gênio — o mais alto
da raça ao lado do professor Darcy. Que Celso Furtado é a metáfora do
terceiro mundo dragado pela Wall Street Scout. Que Fernando Henrique é o
príncipe de nossa Sociologia. Que leio e curto a revista Argumento. Que
Chico Buarque é o nosso Errol Flynn. Que entre a burguesia
nacioalinternacional [sic] e o militarismo nacionalista, eu fico, sem outra
possibilidade de papo com o segundo. [...] sou um homem do povo,
intermediário do cujo, e a serviço. Força total pra Embrafilme. Ordem e
Progresso (BENTES, 1997, p. 482 e 483, grifos nossos).
Na época em que o jornalista Zuenir Ventura publicou esta carta de Glauber, em
março de 1974, o fato gerou uma grande polêmica por colocar lado a lado o General Golbery
(uns dos grandes responsáveis pelo Golpe Militar de 1964) e o antropólogo e escritor Darcy
Ribeiro. Aos olhos dos intelectuais e da classe artística,isso tudo era uma grande “heresia”. 28
O filme Cabeças cortadas (1970), dirigido por Glauber na Espanha, ficou proibido de ser
exibido no Brasil até 1979. Em uma entrevista a Miguel Pereira, Glauber Rocha comentou sua
situação marginal naquele contexto:
a esquerda brasileira resolveu me perseguir e fazer silêncio sobre a proibição
do filme, me acusando de ter aderido ao General Geisel, porque eu, em
1974, declarei que o General Geisel ia abrir o Brasil. Hoje eu leio nos jornais
o Paulo Francis dizendo a mesma coisa, anos depois. O Francis concordou
comigo. Então, quer dizer, por eu ter dito a verdade histórica, as forças
retrógradas da esquerda e da direita me picharam (PEREIRA, 2006, p.14).
Em 1975, Glauber deixa a Europa e vai para o México com o desejo de fazer um novo
filme (A Idade da Terra), porém foi proibido de realizá-lo no México. No ano seguinte
(1976), retorna ao Brasil, e em outubro o pintor e amigo Di Cavalcanti falece; Glauber filma o
28
Tais colocações soavam de modo contraditório e equivocado, pois comparavam o militarismo e o
intelectualismo burguês, refletindo sobre qual desses grupos seria o “legítimo” representante do povo. Estas
colocações de Glauber, no entanto, podem ser compreendidas como uma ironia, assim como a contraditória
lógica político-social brasileira, impregnada por dualidades, por barroquismo (num sentido artístico-filosófico).
Luciano Miranda, no artigo “A problemática da ‘comunicação’, a retórica da ‘revolução’ e a relação entre
cineastas e militares à regulação político-cultural na década de 1970” (2009), analisa essa comunicação dialética
de Glauber como uma estratégia política a fim de possibilitar recursos para realização de filmes, fomentando
assim o cenário cinematográfico de então.
40
velório, resultando no curta chamado Di, interditado pela justiça, proibido de ser exibido e
distribuído.
Em 1977, falece a atriz Anecy Rocha, irmã de Glauber, ao cair num poço de elevador;
Glauber fica muito abalado, interrompe a escrita de seu romance Riverão Sussuarana e
posteriormente incorporar a tragédia ao texto do livro.
Em janeiro de 1978, nasce Eryk Rocha, filho do cineasta; em dezembro, Glauber
inicia as filmagens de A Idade da Terra, que duram até março do ano seguinte, no mesmo
mês em que nasce sua filha Ava Rocha. Em 1979, é convidado pela extinta TV Tupi para
fazer um quadro no programa “Abertura”. Ainda em 1979, desiludido com a pouca
receptividade naquele momento e com a falta de apoio da classe cinematográfica, Glauber
sente-se estigmatizado, como se pode observar em sua fala na entrevista cedida a Miguel
Pereira, em 10 de junho de 1979:
Todos querem matar Glauber Rocha. Eles não me perdoam por ter feito
Deus e o diabo na terra do sol aos 23 anos. Isso é uma loucura. Quer dizer, a
gente não pode existir. Então você faz um negócio e a coisa não cresce. Eu
sempre pensei coletivamente em termos de todo o cinema brasileiro e eles
pensaram em me matar. Eu descobri que estava sendo tocaiado, como numa
peça de Shakespeare. Então ficou uma loucura (PEREIRA, 2006, p.21).
Em junho de 1980, falece o pai do cineasta. E em setembro, Glauber parte para o
festival de Veneza, onde seu filme A Idade da Terra é mal recebido e sofre duras críticas.
Glauber também gera polêmica ao criticar a premiação feita pelo júri do festival. Em uma
entrevista cedida ao jornalista Pedro del Picchia, Glauber desabafou:
Saí de Veneza vomitando. Passei dois dias em Florença com uma febre alta.
Estou doente em Roma. Roma está fedendo, a cidade está cheia de
marginais, está suja [...] Minha relação com o cinema acabou em Veneza.
Aproveito para dar um adeus definitivo à vida cultural brasileira. Vocês não
me verão mais. Nunca. 29
Desesperançado com a falta de receptividade e sentindo-se abandonado por seus
amigos do Brasil, Glauber decide permanecer longe de seu país. Em dezembro de 1980, viaja
para Paris e lá permanece até o começo de 1981; em fevereiro, parte para Portugal. Além de
ter em vista a produção de outros filmes, fora do Brasil realiza uma espécie de autoexílio,
busca um momento de descanso e de renovação física e psíquica. Em entrevista a Maria
Angélica de Carvalho, publicada no livro Revolução do Cinema Novo, de autoria do próprio
cineasta, Glauber declara: “Eu sou muito dividido. Passei dez anos da minha vida fora do
29
ROCHA, Glauber. Entrevistado por Pedro del Piccha,
<http://www.tempoglauber.com.br/b_08.html>. Acesso em 5 de mai. 2013.
em
1980.
Disponível
em:
41
Brasil. Claro, adoro o Brasil, mas fico aqui doente, sou perseguido, tenho que ir embora.
Tenho que passar sempre três anos fora e três aqui, para dar um descanso. Até que eu possa
ser aceito” (ROCHA, 2004, p.381).
Pode-se fazer uma leitura de que Glauber, de alguma forma, “personificava” essa crise
do povo brasileiro durante o processo de abertura política: ele acreditava na abertura política,
mas, ao mesmo tempo, temia que a ditadura não terminasse. Glauber, leitor de Fernando
Pessoa e de Camões, de Os lusíadas,era também aficionado pelo sebastianismo. 30 Desejando
construir uma visão crítica do Brasil a partir de Portugal, em uma entrevista, declarou:
Quero ir ao Algarve. Tenho um encontro marcado com o Infante Dom
Henrique, em Sagres, onde Camões enxergou para além do mar e recitou
para o infinito. Eu estou esperando que o sol nasça, quando o sol estiver bem
alto, eu quero — não com uma câmera nem com um telescópio, mas a olho
nu — procurar exatamente o ponto onde o infante Dom Henrique enxergou o
momento da descoberta, o momento mágico (ROCHA apudFONSECA,
2000, p. 333).
Já estabelecido em território português, dizia: “Me sinto reprojetado nas origens”
(Ibidem). Talvez quisesse ter essa visão que Camões descreve em sua epopeia, a fim de
compreender a experiência da “descoberta” dentro da perspectiva do colonizador. Em abril de
1981, em um longo depoimento gravado em vídeo pelo ator Patrick Bauchau, que filmava O
estado das coisas, de Wim Wenders, em Portugal, Glauber declara: “Sintra é um belo lugar
para morrer”. Sente sua saúde bastante debilitada nos últimos meses. Passa 18 dias internado
em Lisboa. Em 21 de agosto, desembarca no aeroporto Galeão e é conduzido em uma
ambulância para a Clínica Bambina. Amigos como Cacá Diegues, Luís Carlos Barreto e sua
esposa Lucy visitaram-no, preocupados com a sua situação, e ouviram-no dizer: “Desta vez
eu vou mesmo”. Morre aos 42 anos, no dia 22 de agosto de 1981. “O atestado de óbito,
assinado pelo Dr. Pedro Henrique Paiva, acusou: septicemia; choque bacteriano; broncopneumonia; embolias pulmonares múltiplas” (GOMES, 1997, p.506). Glauber profetizava que
sua morte seria aos 42 anos de idade. Ele dizia ter uma relação com Castro Alves, poeta
baiano que morreu aos 24 anos, e que ele morreria aos 42, isso é dito por alguns de seus
amigos no documentário Glauber, o filme – Labirinto do Brasil (2004). Seu velório foi
30
Mito luso-brasileiro do retorno do Rei Dom Sebastião (1564-1578) à vida. O jovem rei morrera em batalha em
agosto de 1578, em Alcácer Quibir, no Marrocos. Os portugueses acreditavam que D. Sebastião não havia
morrido, que estava escondido para retornar em momento oportuno e salvar Portugal das mãos dos espanhóis.
Tal mito do ganhou força em revoltas como Guerra de Canudos e Guerra do Contestado. Euclides da Cunha, em
Os Sertões,retrata em uma cantiga a presença dessa crença: D. Sebastião já chegou/ E traz muito regimento
/Acabando com o civil /E fazendo o casamento! /O Anti-Christo nasceu / Para o Brasil governar /Mas ahi está o
Conselheiro/ Para delle nos livrar /Visita nos vem fazer / Nosso rei D. Sebastião /Coitado daquele pobre / Que
estiver na lei do cão! (CUNHA, 1982, p. 154). Glauber, leitor de Euclides da Cunha, e conhecedor da cultura
popular soube agenciar esses elementos e crenças presentes em alguns personagens de seus filmes.
42
realizado no Parque Lage, Rio de Janeiro, no mesmo espaço em que foram realizadas partes
das filmagens de Terra em transe. “Quando a notícia da morte de Glauber foi liberada, os
meios jornalísticos e intelectuais do Rio e de todo Brasil a receberam como se houvessem
sofrido o impacto de um terremoto” (Ibidem, p.511). Seu velório e enterro tornaram-se uma
espécie de espetáculo catch. 31 Filmados por Sílvio Tendler, assim como Glauber filmou o
enterro do Di Cavalcanti. A divulgação do material de seu enterro também não fora permitido
por sua mãe. Vinte anos depois da morte de Glauber, Tendler consegue permissão para
utilização das imagens em seu o documentário Glauber, o filme – Labirinto do Brasil (2004).
Tanto nesse documentário quanto em biografias e matérias jornalísticas, o enterro de Glauber
configura-se como uma despedida de um grande personagem da cultura brasileira, onde não
faltaram manifestações de homenagem, gritos de indignação, cantos, discursos. Dentre eles, o
de seu amigo Darcy Ribeiro:
Uma vez, eu não vou esquecer nunca, Glauber passou a manhã abraçado
com um livro chorando, chorando, chorando convulsivamente. Eu custei
entender, ninguém entendia, que Glauber chorava a dor que nós devíamos
chorar, a dor de todos brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome,
o Glauber chorava esse país que não deu certo, o Glauber chorava a
brutalidade, o Glauber chorava estupidez, a mediocridade, a tortura, não
suportava, chorava, chorava, chorava. Os filmes do Glauber são isso. É um
lamento, é um grito, é um berro(Transcrição de da fala de Darcy Ribeiro em
Glauber, o filme – Labirinto do Brasil, Sílvio Tendler, 2004).
O discurso de despedida é importante para que a memória da amizade continue viva,
e, por ser um momento único, pode trazer à tona a memória enterrada de uma existência
fragmentada:
Separação derradeira, o adeus anuncia-se depois da vida, como o momento
em que se emaranharam a morte vivida, a morte sofrida, a morte celebrada e
a memória da morte [...] dizer adeus ao amigo morto, podeser [...] para o
sobrevivente entregar a Deus a alma do morto a fim de que, para além da
morte a memória da amizade viva eternamente (ROUDINESCO, 2007,
p.220, grifos nossos).
Assim, a despedida, o enterro de Glauber Rocha produziu uma série de discursos de
uma vida já encerrada, fazendo surgir daí por diante outra história, uma história póstuma que
sobrevive a partir dos comentários, narrações e anedotas daqueles que o conheceram, segundo
31
Conforme Barthes, em Mitologias, catch seria uma espécie de espetáculo excessivo. “Existe nele uma ênfase
que deveria ser a dos espetáculos antigos. Aliás, o catch é um espetáculo de ar livre, pois o que constitui o
essencial do circo ou da arena não é o céu (valor romântico reservado às festas mundanas) […] O catch
apresenta a dor do homem com todo o exagero das máscaras trágicas — o lutador que sofre sob o efeito de um
golpe considerado cruel (um braço torcido, uma perna esmagada) ostenta a expressão excessiva do sofrimento;
mostra o rosto exageradamente deformado por uma angústia intolerável, tal como uma Pietà primitiva.”
(BARTHES, 2009, p.15-20).
43
a expressão popular: “morre o ídolo, nasce o mito”. Com a morte do cineasta, também são
produzidos sentidos que visam abarcar uma “totalidade” de sua trajetória de vida ou uma
unidade narrativa. Ana Lígia Leite e Aguiar, em sua tese Glauber Crítica e autocrítica
(2010), analisa esse processo de mitificação: “Nasce, assim, o Glauber arquivado, e, esse
arquivo cumpriria múltiplas funções para diversos sujeitos. Sua mãe daria continuidade a uma
longa odisseia na captura de qualquer material acerca de sua obra” (AGUIAR, 2010, p.76).
Lúcia Rocha, com o intuito de resguardar o acervo de filmes e textos do filho, além de
preservar a memória da história de Glauber, cria, em 1983, com apoio de amigos como Darcy
Ribeiro e do Governo do Estado do Rio de Janeiro, o Tempo Glauber.
Lúcia Rocha declara no documentário Uma Rocha em Botafogo que “Glauber morreu
de Brasil”, o diplomata Arnaldo Carrilho afirma que Glauber morreu de “brasilite” e comenta:
“O Brasil machucava-nos, com seu desafio permanente [...] O país parecia um bicho
devorador, um Pindorama destroçado por seus próprios filhos” (GOMES, 1997, p.525). A
partir desses discursos mitificadores, Glauber torna-se uma espécie de personagem
messiânico, que se sacrificara ou que fora sacrificado em prol da cultura brasileira.
Em uma entrevista cedida a Reali Junior, do jornal Folha de São Paulo, Glauber,ao
responder a uma pergunta relativa às críticas que os intelectuais estavam fazendo aos críticos
brasileiros, comenta: “Os críticos de cinema têm sido profundamente desonestos comigo.
Existe um verdadeiro júri para condenar Glauber Rocha à crucificação.” (ROCHA, 2004, p.
498).
Pode-se dizer que Glauber sofria de “mal de pátria” ou “paixão de pátria”. Essa
angústia que sofria pelo Brasil não só afetava seu lado psicoemocional como também o seu
corpo. Glauber, já cansado, esgotado, fragmentado como ele mesmo diz ao ator Patrick
Bauchau, numa entrevista cedida entre abril e maio de 1981 — gravada em vídeo, que
resultou no documentário Sintra is a beautiful place to die—declara:
Meu corpo se fragmenta como a Guernica de Picasso. Fui ao médico e vi in my body
14 mil glóbulos brancos, o normal é 4 mil: quero dizer que, se eu morro agora, eu
posso dizer que vivi bem a vida [...] Morrer do coração por causa de uma vida
agitada, mas revolucionária, não é tão mal. Che Guevara morreu aos 38 anos. Eu
tenho 42. Vinte e sete é a idade média do homem latino-americano.
Ao seguir a lógica do conceito foucaultiano de biopolítica (em Nascimento da
Biopolítica,de 1979), vê-se que a morte é o limite do poder do soberano sobre o sujeito que
sofre algum tipo de controle. No caso de Glauber Rocha, pode-se entender que o seu corpo
sofria com os males da repressão da época em que viveu. Mesmo que não tenha sido torturado
fisicamente como tantos outros,seu corpo era também o meio de viver sua revolução, sua
44
“guerrilha particular” 32 (AGUIAR, 2010, p.123), seus excessos, seu modo de vida frenético e
visceral. Ele queria estar sempre produzindo, escrevendo, realizando revisões e intervenções
em seus textos e livros até último instante possível.
2.2 -Os enquadramentos do personagem glauberiano
Tendo em vista pesquisas, 33 estudos, biografias, acervos de matérias (reunidos no
Tempo Glauber) e a própria produção cinematográfica de Glauber Rocha, é possível constatar
as várias “biografemas” do cineasta, bem como a construção de uma “imagem de si”
decorrente de suaimagem pública.
Existem algumas biografias sobre o cineasta baiano, dentre elas, destacam-se: Glauber
Rocha, de Sylvie Pierre, lançada na França em 1987 e traduzida e lançada no Brasil em 1996;
Glauber: A conquista de um sonho, os anos verdes (1995), de Ayêska Paula Freitas e Júlio
César Lobo; Glauber Rocha, esse vulcão (1997), de João Carlos Teixeira Gomes; Glauber
Rocha: Mais fortes são os poderes do povo (2003), de Alexei Bueno; a mais recente e
criticada por muitos: A primavera do dragão (2011), de Nelson Motta. Também existem
várias obras que analisam suas produções, depoimentos, correspondências e entrevistas,
como: O mito da civilização atlântica (1982), de Raquel Gerber; Ideário de Glauber Rocha
(1986), de Sidney Rezende; Glauber Pátria Rocha Livre (2001), de Gilberto Felisberto
Vasconcellos; Glauber Rocha (2002), de José Carlos Avellar; Glauber: Cartas ao Mundo,
organizado por Ivana Bentes (1997); A poética polytica de Glauber Rocha (2000), de Tereza
Ventura, entre outras.
Existem também vários documentários feitos sobre a vida e a obra de Glauber Rocha,
como: Que viva Glauber (1991), de Aurélio Michiles; Memória de Deus e o Diabo em Monte
Santo e Cocorobó (1984), de Agnaldo Siri Azevedo; De Glauber para Jirges (2005), de
André Ristum; Glauber Rocha — Quando o cinema virou samba (s/d), de José Roberto
Torero; No Tempo de Glauber (1986), de Roque Araújo e Glauber Rocha; A voz do morto
(1993), de Sérgio Zeigler e Vítor Angelo; A degola fatal (2004), de Clóvis Molinari Junior e
Ricardo Favilla; Depois do Transe (2003), de Paloma Rocha e Joel Pizzini; Retrato da Terra
(s/d), de Paloma Rocha e Joel Pizzini; Glauber Rocha em defesa do cinema (s/d), de Roque
32
Em referência ao título do terceiro capítulo “A guerrilha pessoal de Glauber”.
Numa busca no banco de teses da Capes (realizada em 04/05/2013), encontramos 27 teses de doutorado com o
assunto “Glauber Rocha” e 59 dissertações de mestrado com o mesmo.
33
45
Araújo; Abry(2003)deJoel Pizzini e Paloma Rocha, Rocha que voa (2002) de Eryk Rocha;
Glauber, o filme: Labirinto do Brasil (2004), de Silvio Tendler; Àmeia-noite com Glauber
(1997), de Ivan Cardoso; Uma Rocha em Botafogo(s/d),sobre a mãe de Glauber e oTempo
Glauber,de Rodrigo Calmanowitz; Diário de Sintra (2007), de Paula Gaitán; Anabazys
(2009), de Paloma Rocha e Joel Pizzini.
Além de suas produções fílmicas, Glauber Rocha escreveu os livros: Revisão Crítica
do Cinema Brasileiro; Revolução do Cinema Novo; O Século do Cinema (reeditados
pelaCosac Naify em 2004);o romance Riverão Sussuarana (1977) e Roteiros do Terceyro
Mundo (lançado em 1985). Seus textos críticos são marcados por um tom pessoal, a todo o
momento Glauber se torna presente em seus comentários, defende sua opinião, realiza
autocrítica, revisa e reformula seu modo de pensar, mostrando-se, algumas vezes,
“contraditório” e em outras mostrando que realmente havia mudado de ideia.
Todo esse material acerca da vida e obra de Glauber Rocha fez com que ele se
transformasse em um personagem de si mesmo, o personagem glauberiano, polêmico, caótico,
dentre outros adjetivos que refletem uma imagem de algo em ebulição. Gomes, no prefácio de
Glauber Rocha, esse vulcão, afirma: “O mito Glauber vive no imaginário das pessoas, acima
do tempo e do espaço, do bem e do mal, das pobres contingências humanas e das suas
misérias. Mas o mito não me interessa, porque representa um universo fechado: a ele nada é
mais possível acrescentar”(GOMES, 1997, p. XXVII).Ainda nesse prefácio, Gomes faz uma
referência ao livro Ideário Glauber Rocha, de Sidney Rezende, em que o autor enumera uma
série de adjetivos para descrever Glauber: “terno, intempestivo, polêmico, excêntrico,
inovador, tumultuário, generoso, orgíaco, vulcânico, passional, violento, agressivo, trágico,
frenético, angelical, explosivo” (Ibidem, p. XX), dentre outros que enchem quase duas
páginas. Os adjetivos listados apresentam Glauber em sua complexidade, em que terno,
generoso e angelical convivem no mesmo ser agressivo, explosivo e frenético. Um adjetivo
não anularia o outro, não se trata de uma descrição maniqueísta, de ser isso ou ser aquilo, mas
sim de ser isso e aquilo ao mesmo tempo.
Seria equivocado afirmar que Glauber Rocha se tornou um mito do cinema brasileiro?
E que esse vasto discurso acerca de sua vida e obra contribuíram para esse processo de
mitificação? Etimologicamente, mito, mythós, 34 palavra de origem grega, designadiscurso,
mensagem, palavra, assunto, invenção, lenda, relato imaginário. Para Roland Barthes, em
Mitologias (2009), o mito seria uma fala:
34
MITOS, Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/palavras/mito/>. Acesso em 20 de mai. 2013.
46
Pode se conceber que haja mitos antiquíssimos, mas não eternos; pois é a
História que transforma o real em discurso; é ela e só ela que comanda a
vida da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um
fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela História:
não poderia de modo algum surgir da “natureza” das coisas [...] o discurso
escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os
espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica. O
mito não pode se definir pelo seu objeto nem pela sua matéria, pois qualquer
matéria pode ser arbitrariamente dotada de significação: a flecha apresentada
para significar uma provocação é também uma fala (BARTHES, 2009,
p.200).
Mais adiante, Barthes indaga: “Qual é a função específica do mito? Transformar um
sentido em forma. Isto é, o mito é sempre um roubo de linguagem” (Ibidem, p.223). Desse
modo, o roubo de linguagem (falas, imagens, entre outros), realizado pelos “saqueadores” 35
de Glauber é que seriam responsáveis por torná-lo nesse ser de linguagem, nessa espécie de
personagem mito.É importante ressaltar que a imagem do mito não coincide com a imagem
real. Conforme Barthes “O mito é uma fala roubada e restituída” (Ibidem, p.217), no entanto,
essa fala não é colocada em seu devido lugar e com isso deforma e desloca sua imagem. Há
um esvaziamento constante desse personagem real que é suplantado por outro “ser de
linguagem” e ficcionado: “o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, caso se
prefira, uma evaporação; em suma, uma ausência perceptível” (Ibidem, p.34).Como citado
anteriormente, várias obras foram criadas a partir da vida e obra de Glauber Rocha, e através
delas, o cineasta passaria a ser um “símbolo” de uma estética do cinema brasileiro, mais
especificamente, o Cinema Novo.Toda essa volumosa produção acerca do cineasta baiano fez
surgir no meio crítico uma expressão pejorativa para os porta-vozes ou defensores de
Glauber: "viúvas de Glauber"; é possível encontrá-la em diversos textos críticos. No artigo
“Glaubermania”, 36 Ruy Gardnier, na Revista de Cinema Contracampo, aborda essa grande
“proliferação” de materiais sobre Glauber.
35
Aguiar utiliza essa expressão para denominar biógrafos e pesquisadores que se apossaram das falas de Glauber
para transformá-lo nesse personagem mitificado.
36
Disponível em<http://www.contracampo.com.br/74/glaubermania.htm>. Acesso em 08 de mai. 2013.
47
FIGURA 1 - Capas de obras: “Glauber encadernado”
48
Fonte: Autoria própria e Tempo Glauber (site)
Trouxemos aqui imagens de alguns livros acerca da vida e obra de Glauber Rocha. Em
uma breve análise desse conjunto de imagens, podemos observar como os elementos
pictóricos, gráficos e as fotografias utilizadas sugestionam o perfil glauberiano. Em algumas
capas, vemos o caráter fragmentário: imagens de quebra-cabeça (em Anabasis Glauber); um
mosaico com diversas imagens (em A épica eletrônica de Glauber). As fotografias
apresentam gestos que revelam a abertura de sua visão, audição e voz. Elas demonstram um
traço impetuoso, que não se omite, que se propõe a ver, ouvir e falar (ou gritar). A cor
vermelha, presente em algumas capas, é a cor que prevalece no conjunto das imagens. Tal cor
está associada à paixão, ao coração, à violência. Esta cor remete à característica
revolucionária do cineasta baiano.
Talvez fosse possível abordar e analisar os vários “enquadramentos” de Glauber
Rocha, porser ele um personagem múltiplo e por ter desempenhado diversas atividades como
crítico, cineasta, escritor, agitador, pai, assim por diante. Mas, seria complexo separar essas
diversas “máscaras” de Glauber, pois elas se entrecruzam, confluem-se, de modo que,
optamos nesta pesquisa por analisar tanto o “autorretrato” que ele constrói de si, como o
ethos 37construído pelo olhar terceiros — amigos, estudiosos e críticos.
37
Termo de origem grega, muito utilizado na retórica. Geralmente, quando se pensa no ethos de uma pessoa,
cria-se uma imagem mental dela, porém esta estaria relacionada ao caráter ou ao tipo de postura moral em que
ela possui.
49
2.2.1-Glauber Rocha por Glauber Rocha
FIGURA 2 - Cartaz de exposição Glauber por Glauber
Fonte: GOMES, 1997.
O título desta sessão tem como referência a obra Roland Barthes por RolandBarthes.
Tal obra — formada por uma série de fragmentos, alguns são reflexões e revisões sobre seus
textos, vida, lembranças, e outros como um trabalho ficcional, narrativo e imaginativo, em
que alternam-se pessoas, “eu”, “você” “ele”— não é considerada biografia ou autobiografia
do semiólogo. Pode-se verificar no seguinte trecho como o autor foge aos modelos das
escritas de si:
Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno
do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas;
no centro, o quê? [...] Não somente o fragmento é cortado de seus vizinhos,
mas ainda no interior de cada fragmento reina a parataxe [...] Gostando de
encontrar, de escrever começos, ele tende a multiplicar esse prazer: eis por
que ele escreve fragmentos: tantos fragmentos, tantos começos, tantos
prazeres [...] (BARTHES, 2003, p.108-9).
Assim, por meio de um “universo de migalhas”, nesta subseção da pesquisa,
buscaremos apresentar as imagens que Glauber produziu de si. O cineasta não chegou a
realizar
um
trabalho
declaradamente
autobiográfico,
mas
existe
uma
“intenção
50
autobiográfica” 38 e Glauber sempre teve consciência de seus dizeres enquanto pessoa pública
e sempre procurou preservar seus escritos, artigos, cartas, documentos e entrevistas. Essa
preocupação em preservar e colecionar seus documentos poderia ser um gesto de organizar
sua própria vida, ou, comoa ideia fragmentária de Barthes, segundo a qual o sujeito
confronta-se com essa coleção de fragmentos na intenção de enxergar nela uma imagem de si.
Glauber guardava, colecionava seus textos, críticas, entrevistas, talvez não só para republicálos, como fez em 1980 com o livro Revolução do Cinema Novo, mas também com a intensão
que Walter Benjamin descreve em “Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o
colecionador”:
Tenho a intenção de dar uma ideia sobre o relacionamento de um
colecionador com os seus pertences, uma ideia sobre o ato de colecionar
mais do que sobre a coleção em si [...] a existência do colecionador é uma
tensão dialética entre os polos da ordem e da desordem [...] O maior fascínio
do colecionador é encerrar cada peça num círculo mágico, onde ela se fixa
[...] Tudo que é recordado, pensado, conscientizado, torna-se alicerce,
moldura, pedestal, fecho de seus pertences(BENJAMIN, 2012, p. 233-234,
grifos nossos).
Assim, por meio da organização de seus textos, Glauber recorda e revisita sua vida,
realizando a citada tensão dialética. Por meio desses textos, que possuem um tom muito
pessoal (marcado pela primeira pessoa do singular em muitos artigos), é possível observar as
mudanças e transformações em sua produção fílmica e crítica.
Para verificar a visão que Glauber tinha sobre si próprio, este estudo se deterá a
depoimentos, cartas e entrevistas em que Glauber Rocha fala sobre si de forma direta ou
indireta (ao se colocar como integrante de uma classe, falar de sua origem ou mesmo de si
como membro do Cinema Novo).
Glauber escrevia cartas incessantemente, era um correspondente compulsivo. Em
Glauber Rocha: Cartas ao Mundo,Ivana Bentes reúne 265 cartas de Glauber e para Glauber.
Essa imensa quantidade de correspondências deixadas pelo cineasta baiano configura-se em
uma das modalidades das “escritas de si”, pois as cartas, além de serem um modo de
comunicação, permitiria realizar uma “inspeção de si mesmo”, conforme análise de Wander
Melo Miranda em Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago:
38
Conforme Philippe Artières, em Arquivar a própria vida: “Dessas práticas de arquivamento do eu se destaca o
que poderíamos chamar de uma intenção autobiográfica. Em outras palavras, o caráter normativo e o processo de
objetivação e de sujeição que poderiam aparecer a princípio, cedem na verdade o lugar a um movimento de
subjetivação. Escrever um diário, guardar papéis, assim como escrever uma autobiografia são práticas que
participam mais daquilo que Foucault chamava a preocupação com o eu. Arquivar a própria vida é se pôr no
espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma
prática de construção de si mesmo e de resistência” (ARTIÈRES, 1998, p.11).
51
Escrever é mostrar-se, fazer-se ver e fazer aparecer a própria face diante do
outro: a carta é, ao mesmo tempo, um olhar que se lança ao destinatário e
uma maneira de se dar ao seu olhar. A reciprocidade estabelecida pela
correspondência implica uma “introspecção”, entendida como abertura para
[sic] que o emissor oferece [sic] ao outro para que ele o enxergue na
intimidade(MIRANDA,1992, p.28).
Além das inúmeras correspondências organizadas por Bentes, existe também Ideário
de Glauber Rocha, organizado por Sidney Nolasco de Rezende, uma coletânea de fragmentos
de entrevistas e depoimentos dados por Glauber Rocha ao longo de sua vida. Neste livro, há
um capítulo intitulado “Glauber vê Glauber”em que o autor apresenta uma série de trechos de
entrevistas em que o cineasta fala sobre si mesmo. Alguns desses fragmentos serãotratados
nesta pesquisa.
Precoce, aos 5 anos de idade Glauber Rocha já começava a ler, lia desde gibis até
jornais. Cria gosto pela leitura e passa a conhecer muito de literatura brasileira, estrangeira e
filosofia. Em uma carta de 15 de janeiro de 1953, então aos 13 anos de idade, escreve a seu tio
Wilson: “Só tenho que discordar, ou melhor, explicar-te, acerca d’alguns pormenores sobre
minha personalidade [...] Não quero que penses que sou criança, não!” (BENTES, 1997,
p.79). Mais adiante, fala sobre sua pretensão em seguir uma carreira literária: “Tio, se algum
dia tornar-me escritor fique certo de que escreverei sobre minha terra. Saiba também que
prefiro os escritores brasileiros aos europeus” (Ibidem). Na mesma carta, revela a seu tio um
pouco de sua personalidade, compara-se ao personagem Eugênio, de Olhai os lírios dos
campos, de Érico Veríssimo: “Quero confessar-te uma coisa: às vezes pareço-me com
Eugênio, às vezes sinto o irrefreável complexo de inferioridade” (Ibidem). Expressa que
pretende reler o livro “para sentir novamente a tragédia íntima de Eugênio e pensar na
existência”(Ibidem). Mais à frente, revela: “Não sei como, mas tenho algo de impetuoso em
meu espírito, tenho raiva das coisas fáceis, idolatrando as que para consegui-las, arranquemnos suor da face” (Ibidem, p.80). Podemos notar que Glauber imprime traços trágicos em
alguns personagens de seus filmes, por exemplo o poeta Paulo Martins (encenado por Jardel
Filho), protagonista de Terra em transe, um militante político frustrado que leva às últimas
consequências sua vida. Na sequência final do filme, a personagem Sara pergunta a ele: “O
que prova a sua morte? O quê?” e Paulo responde: “O triunfo da beleza e da justiça”. Paulo
Martins sacrifica-se de modo delirante, com total descrença na política; tem uma morte
emblemática: seu corpo cambaleando sobre dunas em meio às névoas, como um guerrilheiro,
empunhando uma arma automática. Pode-se inferir que Glauber se identificava com essa
figura do revolucionário, os filmes que fez apresentavam não só uma linguagem
52
revolucionária, inovadora, como também tratavam de assuntos como opressão, colonização,
libertação de um povo. Isso é bem evidenciado, por exemplo, em seu filme Antônio das
Mortes (também conhecido como O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro de 1969).
Essa identificação de si como revolucionário fica evidente em uma carta destinada a Paulo
César Saraceni (entre março e maio de 1961):
Este meu entusiasmo é uma batalha, pois no fundo o meu desespero
permanece o mesmo [...] Escrevi um artigo negando o cinema. Não acredito
no cinema, mas não posso viver sem o cinema. Acho que devemos fazer
revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às ruas, me deixou sem
dormir[...] Cuba é o máximo [...] Estão fazendo um cinema novo, possuem
uma grande revista, vários filmes longos e curtos. Estou articulando com
eles um congresso de cinema independente. Vamos agir em bloco, fazendo
política. Agora, neste momento, não acredito nada à palavra arte neste país
subdesenvolvido. Precisamos quebrar tudo. Do contrário eu me suicido
(Ibidem, p.151, grifos nossos).
Ainda dentro dessa perspectiva do revolucionário, do que “organiza o movimento”,
Glauber, em 1965, escreve a famosa tese-manifesto“Estética da Fome” (em uma revisão desse
texto, em 1978, para a publicação de Revolução do Cinema Novo, Glauber adota uma forma
de escrita em que troca o “s” pelo “z”, o “i” pelo “y” e o “c” pelo “k” – o texto passa a se
chamar Eztetyka da Fome), nela, o cineasta tenta fazer uma definição de seus principais
compromissos, objetivos e propostas:
Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não
entende [sic]. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o
brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de
dizer isto; e, sobretudo não sabe de onde vem essa fome. Sabemos nós – que
fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde
nem sempre a razão falou mais alto [sic] (ROCHA, 2004, p.65-66).
É possível observar como o autor se coloca no texto tanto pelo uso dos pronomes e
verbos em 1a pessoa do plural (a exemplo de seu manifesto “Estética da fome”), enquanto
porta-voz de um grupo — o Cinema Novo. Nesse discurso sobre a proposta estético-política
do cinema que vinha sendo feito no Brasil em meados dos anos de 1960, Glauber se coloca
como um autor consciente da situação político-social do país, apresentando-se como engajado
e comprometido com problemas sociais naquele contexto. Seus filmes apresentavam as
“alegorias do subdesenvolvimento”.
39
Os povos “menores” e desfavorecidos eram
personagens centrais ou tinham destaque em suas narrativas fílmicas. Filmes como
Barravento, Deus e o Diabo na terra no sol e O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro
representavam as condições de vida, bem como o ambiente precário dos pescadores,
39
Em referência a Alegorias do subdesenvolvimento - cinema novo, tropicalismo, cinema marginal (1993), de
Ismail Xavier.
53
sertanejos, retirantes do nordeste brasileiro. Não apenas seus filmes discursavam sobre um
“devir revolucionário”, 40 mas também alguns de seus textos tratavam desse futuro, desse
devir em que o povo, através da consciência de si, e de suas condições de vida, é que
promoveria uma emancipação cultural, social e econômica. Em “Revolução é uma estética”
(1967), Glauber afirma que: “O autoconhecimento total deve provocar em seguida uma
atitude anticolonial, isto é, negação da cultura colonial e do elemento inconsciente da cultura
nacional, erradamente considerados valores pela tradição nacionalista.” (ROCHA, 2004,
p.99). Ainda sobre esse “devir revolucionário” em Glauber, encontramos em “Estética da
fome”(1965) a afirmativa de que o cinema novo seria uma espécie de legado para os futuros
cineastas:
[...] o cinema novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma
entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a
verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí
haverá um germe vivo do cinema novo. Onde houver um cineasta disposto a
enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí
haverá um germe do cinema novo. Onde houver um cineasta, de qualquer
idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a
serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do cinema
novo (ROCHA, 2004, p.67).
Na reedição deRevolução do Cinema Novo,de Glauber Rocha, Ismail Xavier, no
prefácio do livro, comenta sobre o autorretrato do artista como a figura do injustiçado. Ainda
em Revolução do Cinema Novo,no artigo “Estão confundindo minha loucura com minha
lucidez”, entrevista dada a Reali Júnior, em 1980, para jornal O Estado de São Paulo,declara
que: “No Brasil, o gênio é tão perseguido que é obrigado a se proclamar gênio. Daí para
diante[,] ele passa a ser chamado de cabotino e [,] em seguida[,] de louco. [E,] nessa
condição[,] ele acaba ficando desempregado, é perseguido e abandonado.” (ROCHA, 2004, p.
496).
Em entrevista concedida a Frederico de Cárdenas e René Capriles, em 1969, nota-se
que Glauber Rocha se coloca como uma grande figura da cultura brasileira, revelando como o
seu trabalho influenciou novas estéticas no teatro e na música:
Fiz Terra em Transe com a aspiração de que fosse uma bomba. Lançada
com toda intenção. Atacando os preconceitos de uma esquerda acadêmica,
conservadora, a que reagiu contra o filme de uma forma neurótica, e isto foi
40
Conforme a tese A missa bárbara rezada por Glauber Rocha num tempo em que era proibido proibir (2011), a
autora Anna Lee Rosa de Freitas comenta: “O cinema glauberiano não se presta a representar a ‘revolução’, mas
a provocar um surgimento de um público que possa realizá-la ou, como afirma Deleuze, de um ‘povo que falta’
que é um ‘devir’. Ao falar de um ‘imprevisto na razão dominadora’, Glauber está se referindo a um ‘devir
revolucionário’ e não à ‘revolução’.” (FREITAS, 2011, p. 51) Mais adiante, Freitas explica que a expressão
“devir revolucionário” fora utilizada por Deleuze para referir-se aos acontecimentos do Maio de 1968.
54
positivo. No Brasil o filme foi lançado em meio a uma grande polêmica, foi
proibido pela censura sob acusação de ser um filme altamente subversivo e
imoral, atacando-o do ponto de vista político, moral, sexual, etc [...] E
provocou muitas coisas no Brasil: determinou uma influência muito grande
no teatro, porque em seguida houve um grupo que montou O rei da vela,
peça que me foi dedicada e que tem Oswald de Andrade como autor [...] A
partir de Terra em Transe, Caetano Veloso iniciou o movimento musical
tropicalista. Toda uma nova discussão sobre cultura brasileira, especialmente
aquela comprometida, ou melhor ligada (não me agrada o outro termo, por
demagógico) ao sociopolítico, foi recolocada. Se exponho isto, não é por
mera vaidade, mas apenas para explicar e demonstrar uma ideia válida: que a
intolerância em matéria de arte é o pior crime que existe(ROCHA, 2004,
p.171, grifos nossos).
Glauber, ao se assumir como um dos responsáveis pela grande efervescência cultural
que eclodiu no final dos anos de 1960, provocou discordâncias entre alguns artistas; por
exemplo, Caetano Veloso, para quem o Tropicalismo seria resultado de uma série de
influências. Em Verdade Tropical, Veloso narra a origem do disco Tropicália (1968) e sua
relação com Glauber Rocha naquele contexto, descrevendo-o como sujeito paternalista:
Desde a primeira audição do meu disco, tivemos diversos encontros, e, até o
fim, ele se mostrou interessado em minhas atividades. Mas o diálogo entre
nós nunca foi fácil. Nem sequer chegou-se estabelecer um verdadeiro
diálogo. Eu o admirava havia muito tempo, e ele, impressionado com que eu
estava fazendo, esperava de mim uma descontração que sei que seu próprio
tom impedia [...] Todos os meus encontros com Glauber foram ilustrativos
para mim, e também divertidos. Mas ele me dizia sentir-se pouco à vontade
em minha presença. Sem dúvida havia, por parte dele, o desejo de orientar
paternalmente – e de respeitar. Mas não ao ponto de confirmar a crítica
jesuítica – que ele adivinhava em mim – aos seus aspectos de mistificador e
charlatão. Eu, por meu turno, via-o, desde a Bahia, onde ele era um mito
para todos nós, como uma força liberadora e estimulante, mas não podia
deixar de esfriar diante de certas falsidades, as quais, no entanto, eu sabia
serem necessárias à composição de sua personalidade deflagradora.
Reconhecimento, por parte dele, dessa espécie de perdão só fazia nosso
diálogo mais tenso (VELOSO, 1997, p. 190-191).
Glauber Rocha, naquele contexto, representava, juntamente com seus filmes, essa
“revolução” cultural no final da década de 1960, e dizia: “o Cinema Novo sou eu”. Após ter
causado uma confusão ideológica ao criticar tanto a “esquerda acadêmica” como a direita
conservadora, temeroso em função da ditadura (preso em 1965, teve seu apartamento revirado
pela polícia no mesmo ano), parte para o exílio no início de 1971 e realiza alguns filmes no
exterior. Em entrevista, Glauber declara: “Terminou o Cinema Novo, a época em que eu
representava o cavaleiro da esperança, o profeta de uma revolução malograda, a bandeira de
uma revolução em revolta.” (REZENDE, 1986, p.105).
55
Assim, também, conforme mencionado anteriormente, Nelson Pereira dos Santos disse
que: “O Cinema Novo só existe quando o Glauber está no Rio”. 41 Verificamos, através deste
estudo, como Glauber se colocava enquanto grande líder de um movimento, e que esse não
existiria mais devido a sua ausência no Brasil. Também a partir dos anos de 1970, o diretor
começa a se tornar uma figura polêmica, devido às suas declarações e críticas ao que estava
sendo feito no Brasil no momento de seu exílio. Já consciente do que sua pessoa pública
passara a representar, declara em uma entrevista que não queria se tornar um personagem
mitificado pela mídia:
[...] Eu não estou a fim de ser mitificado, porque no fundo os meus filmes e
as minhas críticas de cinema compõem um discurso filosófico antimitificante, e anticolonialista, antipatriarcalista e antidivínista.O meu cinema
é a resposta de um camponês de Vitória da Conquista, que ficou louco na
infância, vendo filmes produzidos por Hollywood (REZENDE, 1986, p.
106).
Glauber, em alguns momentos, contradizia a si mesmo aose colocar como esse grande
personagem mítico, polêmico:
[...] Sempre tive esse dom de fascinar a imprensa, talvez porque sou uma
espécie de jornalista transformado em cineasta, porque sempre vi o mundo
através de uma sala de redação de jornal... exerci todas as funções de
redação em um jornal: paginação, revisão, secretaria de redação, tudo. Vejo
a imprensa brasileira e fico escandalizado... ignorância e burrice (Montagem
de diferentes entrevistas de 1979 e 1980, em Brasília e em Roma. In:
PIERRE, 1996, p.113).
O cineasta tinha consciência de suas contradições, como se pode notar em uma
entrevista ao Jornal da Bahia, em 17 de julho 1977: “Sou um artista, e portanto meu processo
é um processo entre o fluxo inconsciente e minha razão é dialética. Assim, posso mudar a
qualquer momento.” (REZENDE, 1986, p.106). Conforme Aguiar (2010): “É possível
encontrar em vários instantes esse Glauber oferecendo a cara à tapa, na medida em que suas
revisões críticas escancaram os bastidores desse processo de reformulação.” (AGUIAR, 2010,
p.78) Algumas vezes é possível notar que o próprio Glauber tinha consciência a respeito dessa
imagem de personagem polêmico. A exemplo disso, temos uma referência em que Glauber
realiza uma autoanálise no seguinte trecho de uma entrevista dada à City News, em 1980:
Eu tenho consciência de que tudo isso me transformou numa espécie de
monstro estranho a mim mesmo. Sabe de uma coisa? Jamais tive cacife para
bancar o jogo que faço até hoje. Para desempenhar o Glauber Rocha nasceu
o ator. Atualmente, um tanto cansado para sustentar o espetáculo
(REZENDE, 1986, p. 83).
41
Disponível em: <http://www.omartelo.com/omartelo22/materia1.html>. Acesso em08 de mai. 2013.
56
Nos últimos anos de sua vida, Glauber se vê angustiado, marginalizado e mal quisto
pelo meio cinematográfico brasileiro. A respeito desse sentimento, declara:
[...] Mas eu me sinto marginal dentro da minha própria tribo, quer dizer, se
não me absorvem me matam, fica nisso. Eu sempre que penso no Brasil eu
penso na minha morte e quando penso no exterior penso na minha vida. Eu
partirei em busca de uma relação onde eu possa me desenvolver, porque eu
não sou mártir, eu não curto ser crucificado, o meu Cristo é a ressurreição,
não é a cruz, eu não curto mártir ideológico, eu não curto esse tipo de
sacrifício [...] Eu assumo o meu discurso com todas as misérias dele,
misérias e virtudes, eu assumo o meu fluxo. Eu falo inclusive de uma forma
inconsciente, procurando que minha razão intervenha sob formas
maravilhosas ou grotescas, você entende? É uma forma de você soltar Deus
e o Diabo ao mesmo tempo, porque se falo coisas divinas ou diabólicas eu
me liberto. Se saem palavras divinas os ouvintes ficam contentes, as palavras
diabólicas provocam choque, mas o problema é que o Diabo sai de mim pra
cima do mundo, eu não quero que ele habite em mim. E cada pessoa que
mate os demônios interiores e seus deuses também (REZENDE, 1986,
p.114-115).
Desse modo, Glauber, sentindo-se rejeitado dentro de seu país, parte para um
autoexílio, como já foi exposto, a fim reconstruir, talvez, uma outra imagem, renovar seu
processo de criação. Nos últimos meses de vida, Glauber se via como Orfeu, como um poeta
que buscava ser um antinarciso (conforme áudio de Diário de Sintra). É possível notar
também essa sua ambiguidade por, ao mesmo tempo, o cineasta querer morrer ou acreditar
que estava morrendo e querer continuar a produzir, pois tinha vários planos e roteiros para a
realização de novos filmes.
2.2.2 - Glauber Rocha pelos amigos e pesquisadores
Ana Lígia Leite e Aguiar, em sua tese de doutorado intitulada Glauber em crítica e
autocritica, analisa a trajetória biográfica e política, bem como a atuação enquanto crítico
cinematográfico de Glauber Rocha. A pesquisadora revisita os diversos escritos sobre o
cineasta baiano e também as próprias “escritas de si” de Glauber, que tanto se autobiografou
em diferentes meios (cartas, entrevistas, filmes, críticas). Há muitas obras que foram
produzidas por amigos e familiares de Glauber, tratando de sua vida e obra. Aguiar observa
em seu trabalho que: “A lógica da amizade é praticamente uma constante nos estudos sobre
Glauber, e é possível inferir [...] que a construção de uma fortuna crítica é quase sempre
impulsionada por um olho amigo” (AGUIAR, 2010, p.77). Assim, nesta sessão, algumas
dessas formas de “ver” Glauber Rocha serão tratadas a fim de verificar como esses diferentes
57
olhares corroboram ou não na sustentação do personagem mitificado. Talvez seja complexo e
demasiado extenso separar o “olhar” dos amigos e do “olhar” fixado pelos pesquisadores,
investigar se existiria, entre esses últimos, uma “visão” mais imparcial sobre Glauber, visto
que a relação entre sua vida e obra está muito imbricada.
Entre as pesquisas acadêmicas sobre Glauber Rocha ressalta-se o trabalho realizado
por Raquel Gerber, amiga do cineasta; seus filmes foram objeto de estudo na dissertação de
mestrado defendida pela pesquisadora em 1978. Quatro anos adiante (1982), Gerber lança O
mito da civilização atlântica: Glauber Rocha, Cinema, Política e a Estética do Inconsciente,
uma leitura do cinema glauberiano. A pesquisa de Gerber analisa o caráter nacional popular a
partir do que Glauber chamava de estética do inconsciente, estabelecendo uma ligação com a
psicanálise.
Em Glauber Rocha (1996), biografia escrita por Sylvie Pierre (crítica atuante na
revista Chaiers du Cinéma), a autora declara: “Se eu não tivesse sido amiga de Glauber
Rocha, e amiga de seus amigos, jamais teria tido forças para empreender as longas pesquisas
a seu respeito.” (PIERRE, 1996, p.14). Mais adiante continua:
A própria vida de Glauber Rocha é um texto, e sua morte provavelmente, um
dos discursos que, pelo menos no Brasil, produziu maior impacto [...] Este é
um livro de história [...] A vida de Glauber é o episódio principal. É uma
verdadeira vida de cinema: um romance [...] A aventura pessoal de Glauber
Rocha, eterno viajante, reflete-se, mais do que qualquer outra, na aventura
brasileira coletiva na busca de uma identidade nacional, cultural e política,
onde o olhar em direção ao outro ou do outro sobre si são uma parte
essencial do percurso(Ibidem, p. 16-17).
Uma das constantes observações que se pode encontrar nos escritos sobre Glauber
seria a visão de que ele era um autor que buscava realizar seus trabalhos valendo-se da cultura
brasileira, que é uma cultura permeada por diversas influências, assim como a vida do
cineasta não apresentava delimitações muito claras ou marcadas. Pierre ainda diria: “A vida
de Glauber Rocha parece com seus filmes: é muito difícil contá-la, seja por extenso, na forma
de sinopse ou como uma narrativa clássica.” (Idem, p.34).Sobre essa característica
descontínua, pode-se encontrar em depoimento dado por Carlos Diegues na obra de Sylvie
Pierre, que no final de seu livro, elege “os irmãos” de Glauber Rocha, e Carlos Diegues é
eleito como um deles:
A coisa mais fascinante em Glauber é que ele era um todo. Em sua cabeça,
em seu comportamento, não havia territórios, nem limites entre a política e o
sentimental, entre a revolução e paixão por uma mulher, entre o que não
pertencia ao cinema e o que só pertencia ao afeto [...] Glauber foi uma das
pessoas mais afetuosas que já conheci. Quando falava com alguém, sempre
tinha que tocar, agradava, beijava... Adorava estar na companhia de 200
58
pessoas de uma vez só. Fazia almoços intermináveis... Era um organizador.
(Idem, p. 218).
Outro exemplo é o caso da biografia Glauber Rocha, esse vulcão,de João Carlos
Teixeira Gomes, amigo do cineasta desde aos 14 anos, que logo na apresentação do livro
declara: “não é fato corriqueiro o privilégio da convivência com uma pessoa tão instigante
como foi Glauber Rocha, dotado de qualidades que se harmonizaram para dar-lhe a dimensão
de uma genialidade artística rara em nosso meio.” (GOMES, 1997, p. XIX). Mais adiante,
Gomes comenta sobre seu desejo de abordar Glauber não como mito, mas como um homem
comum “nas suas iniciativas, no seu quotidiano, hábitos pessoais, grandezas e fragilidades. E
não vacilaria em dizer que a vida de Glauber daria um movimentado filme [...].” (Idem, p.
XXVII). Assim, dentro dessa perspectiva da intimidade, Gomes não visa apenas construir um
discurso panegírico, ele tenta trazer para próximo do leitor uma visão sem idealizações desse
personagem que fora “mitificado”.
Em outra pesquisa, realizada por Fátima Lisboa, tese intitulada Un Artiste Intelectuel:
Glauber Rocha et L’utopie du Cinema Novo,defendida em dezembro de 2000, na
universidade de Toulouse II, a pesquisadora apresenta uma entrevista feita com o filósofo
Leandro Konder. Nela, este fala sobre a personalidade de Glauber Rocha, sem ter o ponto de
vista de um amigo ou alguém próximo ao cineasta:
Antes de tudo eu quero esclarecer algumas coisas sobre o Glauber. Eu não
fui amigo dele, não convivi com ele em período algum de minha vida. E os
meus contatos com ele foram esporádicos, acidentais e casuais, não tiveram
seguimento. Mas ele me parecia uma pessoa muito simpática, porque as
características de “porralouquisse” que ele indubitavelmente tinha, me
pareciam sempre resultado de uma opção consciente [...]. Tinha competência
para ler, pensar, formular teorias, mas essa competência era subordinada à
intuição. Fundamentalmente, o que ele lia, ele usava intuitivamente, sempre
a serviço da intuição. Ele era sobretudo um artista, criador, quer dizer, o
teórico estava a serviço do artista. A partir do momento em que percebi isso
o dialogo com ele ficou mais fácil. Também evidentemente nós tínhamos
divergências políticas. Eu era todo ao contrário, nunca confiei muito nas
minhas intuições. Quando usava a intuição, eu me enganava muito. Então eu
me baseava muito nas racionalizações, nas formulações teóricas, nas
explicações construídas racionalmente. Sempre à luz de uma experiência de
militante comunista que eu era. 42
Tal depoimento de Konder demonstra como a imagem desse personagem polêmico
não se limitava ao ciclo de amigos, fala sobre o modo como se expressava em seus filmes e
como se comunicava publicamente, conforme o próprio Glauber se via: “Eu sempre fui uma
42
Disponível
em:<http://www.intellectus.uerj.br/Textos/Ano5n1/Texto%20de%20Fatima%20Sebastiana%20Lisboa.pdf>.
Acesso em 12 de jun. 2013.
59
figura polêmica, desde que fiz meu primeiro filme” (ROCHA, 2004, p.496). As declarações
de Glauber pareciam influenciar na aceitação e recepção de seu trabalho. O cineasta comenta,
ainda, sobre o reflexo de sua postura no meio da crítica cinematográfica: “dependendo de
humores particulares e mesmo de interesses escusos, criticam pessoas e não obras de arte,
usando métodos errados de crítica, confundindo o público, contra-informando [sic] e pintando
imagens desastrosas” (Ibidem, p.498).
Aguiar, ainda em sua tese, ao listar Glauber Rocha como um dos intérpretes do Brasil,
constrói um interessante raciocínio: relaciona os sobrenomes dos poetas modernistas Mário de
Andrade, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade e suas propostas de
representação do país aliadas à utopia antropofágica:
Em 1939, quando os escritores modernistas brasileiros Oswald de Andrade,
Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade se encontravam em
processo de revisão crítica de suas obras e das condutas que teriam
reinventado o Brasil literária e imaginariamente, nascia aquele que viria a ser
o 4º Andrade, Glauber de Andrade Rocha, o nosso Andrade que, também
sem o saber, seria um dos intérpretes do Brasil (AGUIAR, 2010, p.131).
Assim como esses autores, que tanto imprimiram a cultura popular brasileira em suas
obras, Glauber segue a lógica antropofágica, bem como os princípios modernistas. A partir de
tal leitura, percebemos que os personagens e alegorias dos filmes de Glauber pretendiam
traduzir a brasilidade daquele determinado contexto geopolítico, de um país de terceiro
mundo, com todas suas contradições. Não nos deteremos em analisar como as representações
do imaginário nacional popular se fazem presente nos filmes de Glauber, mas como o cineasta
traz em seu discurso tais questões. Em uma entrevista relativa ao lançamento de seu último
filme, A Idade de Terra (1980), Glauber faz a seguinte explanação:
A Idade da Terra é desintegração da sequência narrativa sem a perda do
discurso infra-estrutural [sic] que vai materializar os signos mais
representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças
negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo
revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a
rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, as santas
em revolucionárias. Tudo isso está no filme dentro do grande cenário da
História do Brasil. [...] A colocação do filme é uma só: é o meu retrato junto
ao retrato do Brasil (ROCHA, 2004, p. 497-8).
É possível perceber que a “face” mais destacada nas diversas pesquisas, entrevistas,
depoimentos, documentários relativos à vida e à obra de Glauber Rocha é a do homem
comprometido com as questões políticas e culturais de seu país.
Todas essas falas e descrições de Glauber transformam-no em mito ou numa espécie
de personagem folclórico do cinema brasileiro, conforme descreve Gilberto Felisberto
60
Vasconcellos no primeiro parágrafo de seu livro Glauber Pátria Rocha Livre:“Não sou
cinéfilo nem crítico cinematográfico, mas confesso que tive vontade de tirar Glauber Rocha
do cinema e colocá-lo no folclore...” (VASCONCELLOS, 2001, p.7). Afirmações como essa
demonstram que a imagem pública de Glauber,muitas vezes, parece destacar-se mais que seu
trabalho,que seus filmes e textos. Tal situação ocorre também com outros cineastas, poetas,
cantores, atores, políticos, entre outras profissões que tornam pública a imagem e a vida de
uma pessoa. O reflexo dessa imagem pública afeta não apenas a vida íntima, mas também a
recepção do trabalho artístico, à qual se agrega a “aura” do artista (polêmico, irônico,
amoroso, entre outros adjetivos). Entretanto, para a construção de um pensamento crítico
sobre determinado filme é necessário buscar imparcialidade e distanciamento, por exemplo,
das falas, entrevistas e dos depoimentos do artista. Quando alguém fala em público ou em
uma entrevista, mesmo que o discurso seja previamente preparado, a pessoa que o profere está
imbuída de um pathos,
43
ou seja, de emoção, paixão, sentimento, e transmite esses
sentimentos ao outro, ao público. Já o trabalho do artista, mesmo que dotado de uma paixão
inicial, passa por uma racionalização em seu processo de produção e construção. Por exemplo,
o último filme de Glauber, A Idade da Terra, demorou alguns anos para ser concretizado,
houve um período de elaboração do roteiro, um de filmagens, um de montagem e de
finalização do trabalho. Ao fim, pode ocorrer de todo esse trabalho ficar submetido à análise
de alguns críticos que previamente associam o produto final apenas àquele que o criou. A
imagemdesse artista conhecido cria, antecipadamente, uma expectativa sobre seu trabalho.
Vemos, por exemplo,como Glauber trata arecepção crítica acerca de A Idade da Terra no
Festival de Veneza: nas entrevistas, notamos que suas falas estão carregadas por um
sentimento de desapontamento e de desilusão, e como essas falasrepercutiram mais do que o
próprio filme. Há muito que se refletir sobre a postura dos críticos e dosjornalistas, que
algumas vezes parecem fomentar mais uma discussão com caráter de “fofoca”, gerando
intrigas num determinado meio artístico e na sociedade. Acreditamos que o posicionamento
crítico deva evitar a influênciapredominante dopathos do artista ou de sua obra, mas que
realize um pensamento que considere um conjunto de pontuações mais relevante e pertinente
para a compreensão da obra num determinado contexto.
43
O vocábulo pathos vem do grego, com o significado de sentimento, de sofrimento. Na Retórica, os afetos são
designados justamente sob o termo bastante genérico de pathos. Para Aristóteles, encaixavam-se nessa rubrica de
emoções fortes negativas ou positivas.
61
3 -DIÁRIO DE SINTRA: A MEMÓRIA E OS TOPOS
Anteriormente,verificamos que o documentário Diário de Sintra se enquadraria no
modo performativo, possuindo também características do modo poético. O filme pode ser
compreendido como um ensaio sobre o gesto memorativo, uma vez que a diretora vivencia
uma busca por sua memória nosespaços de Sintra, apoiando-se em arquivos pessoais para
resgatar as lembranças de um determinado período (de fevereiro a agosto de 1981). Neste
capítulo, iremos analisarmemória, arquivo e espaço enquanto mecanismos utilizados por
Gaitán em Diário de Sintra para representar sua ação memorativa, e também verificaremos
como estes recursos se relacionam comdiferentes imagens acerca do personagem glauberiano.
Para abordarmos como a memória é apresentada e representada em Diário de Sintra,
iremos tratar a estrutura fílmica ou a montagem do filme como uma carta topográfica. Desse
modo, os deslocamentos espaciais realizados por Gaitán em Sintra, tanto em busca de suas
lembranças (em 2007) como no registro em Super-8 (1981), podem ser comparados ao
trabalho de um cartógrafo; ou seja, a diretora desenha ou delimita esses diferentes registros
espaço-temporais. Em seguida, iremos comparar a montagem do filme ao trabalho do
topógrafo (pois na medida em que a diretora monta o filme, as sobreposições e junções dos
tempos, tornam-se visíveis).
3.1- Cartografia da memória e os diferentes registros em Diário de Sintra
62
Partindo do princípio de que Diário de Sintra é um documentário performativo, ou seja,
em que a própria diretora “performa” a busca 44 por suas memórias afetivas junto a Glauber e
seus filhos em Sintra, tomaremos a cartografia como um caminho metodológico. Conforme
Gilles Deleuze e Felix Guattari em Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia(volume I), a
cartografia é proposta enquanto método vista a possibilidade de se acompanhar o processo, o
movimento e as modificações de um determinado corpus que tem sua “experimentação
ancorada no real” (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 22). Assim, a análise do filme terá
como referência a estratégia cartográfica, percorrendo os territórios memoriais transpostos em
sons e imagens por Gaitán, e, também, verificando o gesto cartográfico empreendido pela
diretora na realização do documentário. Sobre o trabalho do cartógrafo, Suely Rolnik, em
Cartografia sentimental, faz as seguintes considerações:
Paisagens psicossociais também são cartografáveis [...] Sendo tarefa do
cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera
basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que
atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos
possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O
cartógrafo é antes de tudo um antropófago (ROLNIK, 1989, p.15-16).
Essa “tarefa do cartógrafo” de transformar os afetos em linguagem é realizada por
Paula Gaitán em Diário de Sintra.
Por meio de sons e imagens, torna-se possível
contemplarmos sentimentos relacionados à falta, à perda, à ausência de um tempo perdido que
se materializa em um tempo presente. Tais sentimentos e afetos expressos no filme se tornam
concretos na medida em que Gaitán percorre os diversos espaços de Sintra. Tendo como
referência a relação entre memória e percurso, verificamos que Deleuze, em Crítica e clínica,
faz os seguintes apontamentos:
O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um
meio, mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete
naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade entre percurso e
percorrido. Confunde-se com seu objeto quando o próprio objeto é
movimentado. (DELEUZE, 1997, p.73).
44
Em referência à expressão “documentário de busca”, proposta por Jean-Claude Bernardet, em seu ensaio
“Documentário de busca: 33 e Passaporte húngaro” (2005). Segundo Bernardet, os “documentários de busca”
seriam projetos fundados em buscas pessoais, em que as categorias pessoa, personagem e observador se fundem.
Tais filmes também estariam “sob o risco do real” (conforme Comolli), uma vez que o filme é construído a partir
do processo de busca, ou seja, “a filmagem tende a se tornar a documentação do processo” (BERNARDET,
2005, p. 144).
63
Nesse sentido, a ideia de se deslocar em um espaço impregnado tanto pelas memórias
de quem percorre como também por algumas particularidades deste lugar resulta num olhar
híbrido, que oscila entre a dimensão particular e a coletiva. Em alguns trechos do mencionado
filme (FIG. 1), vemos pequenos gestos e hábitos de seus habitantes: estender roupas nas
sacadas das casas, um senhor podando plantas, os trajes em cores mais escuras, entre outros.
A diretora observa as ruas, os campos, o mar, o mercado de peixes, e essa observação, trazida
pelos registros dos diferentes espaços de Lisboa e Sintra, influenciaria nos “modos de ver” 45
de Gaitán, consequentemente, na composição do documentário.
FIGURA 1 - Senhora observando a rua.FIGURA 2 - Bandeiras estendidas na sacada das casas.
Fonte:Diário de Sintra (2007).
Fonte:Diário de Sintra (2007).
Uma possível metodologia de análise dessa espacialização da memória ou da busca
por ela em Diário de Sintra seria considerar a duração do filme como uma espécie de
demarcação: sua medida seriam os minutos, ou seja, teríamos um espaço fílmico de oitenta e
quatro minutos, que é a duração do documentário (excetuando-se os créditos). Essa
espacialização do material fílmico é mais facilmente compreensível e visível dentro de um
programa de edição. Nele, existe a ferramenta essencial, que é a time-line, é por meio dela que
localizamos determinada sequência, e é com ela que o montador visualiza a coordenação dos
planos e suas sobreposições. Em Diário de Sintra, as sobreposições de imagens não são
frequentes conforme ocorre com a banda sonora do filme (trabalharemos esta questão mais
adiante). Retomando a ideia do mapa, os contornos que o filme adquire são resultado dos
movimentos descontínuos da memória de Gaitán. Nesse território fílmico desenhado pela
diretora, as fronteiras e os relevos seriam constituídos pelos diferentes planos temporais,
45
Em Modos de ver, de John Berger, o autor afirma que “o ato de ver que estabelece nosso lugar no mundo
circundante [...]. Olhar é um ato de escolha. Como resultado dessa escolha, aquilo que vemos é trazido para
âmbito do nosso alcance, ainda que não necessariamente ao alcance da mão. [...] O modo de ver do fotógrafo é
reconstituído pelas marcas que ele faz na tela ou no papel embora toda imagem incorpore uma maneira de ver,
nossa percepção ou apreciação de uma imagem depende também do nosso modo de ver.” (BERGER, 1999, p.912).
64
representados por registros realizados em 2007 (período que corresponde ao tempo “presente”
da ação de busca) e pelo material de arquivo (registros de som e imagem realizados em
1981).A linha condutora seria a voz e a memória de Gaitán, pois em vários momentos a vozover 46 da diretora entra no filme realizando uma costura, tecendo as relações entre passado e
presente. Entretanto, poderíamos constatar, ainda, uma camada que estaria junto a essas duas
dimensões (passado e presente): o sonho, o imaginário. Essa camada, no filme, pode ser
representada por imagens simbólicas, iconográficas e estéticas, como as árvores, as paisagens
de Sintra, entre outras; é composta pelo imaginário e pelas subjetividades da diretora, e faria,
em alguns momentos, uma espécie de borrão entre essas linhas fronteiriças, misturando ou
achatando as dimensões do “real” (passado e presente) e de seu imaginário. Sobre essa
estrutura do mapa e suas camadas, Deleuze afirma que:
[...] a superposição das camadas é necessariamente atravessada por uma
flecha que vai de cima para baixo, e trata-se sempre de afundar-se. Os
mapas, ao contrário, se superpõem de tal maneira que cada um encontra no
seguinte um remanejamento, em vez de encontrar nos precedentes uma
origem: de um mapa a outro, não se trata da busca de uma origem, mas de
uma avaliação dos deslocamentos. Cada mapa é uma redistribuição de
impasse e aberturas, de limiares e clausuras, que necessariamente vai de
baixo para cima (DELEUZE, 1997, p.73, grifos nossos).
Um modo de visualizarmos como ocorrem as divisões, sobreposições e/ou junções
desse “mapa fílmico” seria pensar na funcionalidade de um atlas, que permite representar a
partir de um mesmo mapa, um mesmo desenho, temas diversos, como clima, vegetação e
população. Assim sendo, a partir da ausência de Glauber Rocha, Gaitán busca os vestígios de
sua presença e do tempo vivido em 1981. De forma que é possível extrair diferentes
enquadramentos do personagem glauberiano no registro de tal busca.
As diferentes divisões que propomos não pretendem delimitar onde começam ou terminam
passado, presente e imaginário, mas sim verificar os limiares e passagens entre esses lugares,
e, ainda, como esses se intercalam e ecoam de uma cena a outra na medida em que a diretora
constrói a estrutura fílmica. Tal estrutura se assemelha a uma arquitetura memorial, com suas
frestas, lugares mais iluminados, outros obscuros, e outros mais ornamentados pela poética. 47
Assim como os retóricos fixavam determinado assunto em uma estrutura espacial, Paula
Gaitán encontra sua memória nas estruturas espaciais de Sintra: a casa e seus cômodos
46
Mais comumente conhecida como locução off, o termo técnico mais preciso seria, voz over, que designa a fala
inserida sobre as imagens, e não apenas as falas que estão fora do campovisual, ou seja, a voz offseria uma voz
in, pertencente a cena, no entanto não vemos o personagem que a profere.
47
A poética entendida, aqui, conforme a noção de mimesis proposta por Aristóteles.
65
abrigariam a memória da intimidade, bem como a praia e o parque revelariam momentos
fugazes da felicidade familiar. Além disso, há um outro desdobramento dessa ideia de
arquitetura espacial da memória, compreendida na forma como Gaitán organiza a própria
lembrança na montagem do filme. É possível associarmos esse método de especializar a
memória às estruturas mentais descontinuas, fragmentadas, sobrepostas, assim como é a
montagem.
O trabalho realizado por Gaitán para tratar de sua memória se dá por meio da
metalinguagem, em duas instâncias: a primeira seria textual, ao aludir às noções de memória
conforme a abordagem de autores como Proust, Bachelard, Deleuze; em uma segunda
instância estas noções seriam materializadas através de sons e imagens. A exemplo da
utilização dessas referências, temos a sequência do trem, em que Gaitán parafraseia termos
comuns às obras de tais autores; em voz-over, profere o seguinte texto: “tempo perdido,
tempo redescoberto, redescoberto. Linhas fugazes, linhas que se entrecruzam, fluxo do tempo,
é um tempo remoto, é um tempo presente, tempo que está separado de um outro tempo, mas
que se faz presente.” (trecho transcrito de Diário de Sintra, 2007). Dessa forma, as expressões
“tempo perdido” e “tempo redescoberto” remetem à obra proustiana Em busca do tempo
perdido (1913-1927), que tem seu último volume (VII) intitulado O tempo redescoberto. Esta
obra de Proust não se enquadra numa determinada corrente literária, oscila entre romance
ficcional, autobiografia, ensaio e memórias. Proust, aficionado pelas questões relativas ao
tempo, observa a transformação das ideias, das coisas, dos corpos, revelando a finitude até do
que parecia ser resistente à ação temporal. Proust, na busca de algo que pudesse recuperar um
tempo perdido, passado, encontra na memória involuntária um mecanismo de reviver, de certa
forma, um tempo “que não existe mais em nós, mas continua a viver oculto num sabor, numa
flor, numa árvore, num calçamento irregular”. 48 Já as expressões “linhas fugazes” e “fluxo do
tempo” remetem aos conceitos deleuzianos sobre a memória enquanto mapa desmontável,
cujos limites são fluidos e mutáveis. Já a segunda instância é onde podemos visualizar o
emprego dessas noções de memória na estrutura do filme. Paula Gaitán busca recuperar algo
de um “tempo perdido”, revisitando lugares que abrigariam o potencial de acionamento de
uma memória específica. Além disso, o filme apresenta em sua estrutura a noção de “fluxo do
tempo”, de modo que a diretora torna notável a impossibilidade de acesso a uma memória
48
Conforme Fernando Py, tradutor de Em busca do tempo perdido(na edição de 2001), no prefácio desta mesma
obra.
66
integral, cristalizada, ao sobrepor fragmentos de diferentes épocas na montagem fílmica em
si.
Assim, acompanhando essa diferenciação de fontes temporais, verificaremos também a
apresentação de diferentes “imagens de si” de Glauber Rocha. Conforme visto no segundo
capítulo, o cineasta era esse homem que transitava do público ao privado, 49 sua vida particular
influía em sua vida pública e vice-versa. É importante identificar, então, os diferentes
enquadramentos de Glauber (pai, marido, cineasta, crítico), para posteriormente analisarmos a
confluência dessas imagens dentro de uma mesma sequência. Detalharemos a forma como
esse processo se dá mais adiante.
3.1.1 - Tempo passado: registros de 1981
Conforme visto no segundo capítulo, Glauber Rocha, durante a Mostra Internacional de
Cinema de Veneza, em setembro de 1980, declara: “Aproveito para dar um adeus definitivo à
vida cultural brasileira. Vocês não me verão mais. Nunca.” (GOMES, 1997, p.33). Em
dezembro de 1980, o cineasta viaja a Paris e lá permanece até o fim de janeiro de 1981.
Mediante sua situação de “desorientação emocional”, 50 realiza um autoexílio e resolve
permanecer fora de seu país. Em uma carta destinada a Celso Amorim, datada de 30 de
dezembro de 1980, escreve: “Não quero, não posso, não devo voltar ao Brazyl [sic] antes de 2
anos.” (BENTES, 1997, p. 678). Em fevereiro de 1981, parte para Portugal, e antes dessa
partida, Paula Gaitán compra, em Paris, uma câmera Super-8, com a qual realiza diversos
exercícios de filmagem e registros familiares. Em uma entrevista cedida a Rodrigo de
Oliveira, em Diário de Sinta – Reflexões sobre o filme de Paula Gaitán, a diretora declara:
49
Essa característica de oscilar entre o público e o privado de Glauber Rocha, fazia-se presente também nos
quadros do programa televisivo Abertura. Conforme analisa Stella Senra: “A intervenção de Glauber punha
abaixo essa clássica separação redação/rua [...] Sem diferenciar um do outro, o diretor fazia ainda um uso
perturbador do espaço fechado, ignorando as suas coordenadas de modo a torná-lo às vezes até irreconhecível –
muitas vezes não sabemos se estamos no lugar “público” da redação, ou no espaço “privado” de (sua?) casa.
Quando leva em conta as referências espaciais, é para mostrar um lugar inusitado para um programa de
televisão: a sala de uma casa (a do entrevistado?), por exemplo, ainda por cima com personagens que não
costumam aparecer em tais circunstâncias: a babá com seu filho, a esposa...” (SENRA in: MIGLIORIN, 2010, p.
105)
50
Conforme João Carlos Teixeira Gomes, em Glauber Rocha, esse vulcão:“suadesorientação emocional decorria
de causas concretas: ele havia sido abandonado por quase todos amigos. Não se sobe tão alto impunemente:
havia muita gente nos meios cinematográficos que torcia pela sua queda, para saboreá-la com o tempero da
inveja. Falar mal dele e dizer que “estava louco tornou-se moda” (GOMES, 1997, p.495).
67
Para oferecer dados bem históricos: essa câmera eu comprei em Paris, e eu
tinha uma câmera fotográfica também, por isso que os registros não são da
França, são a partir de Portugal [...] Existem uns setenta rolos de Super-8.
Setenta rolos são 3 minutos cada um; talvez se eu for juntar todo material do
Glauber não passa de cinco, seis, sete minutos, entendeu? Além do
adestramento com a câmera e dessa relação com os objetos, com a natureza e
tudo, meu foco principal não era o Glauber —também era, porque ele fazia
parte daquela natureza, éramos todos objetos no meio dela, de Sintra
(OLIVEIRA, 2009, p.136-137).
As imagens captadas em Super-8 são planos curtos que registram acontecimentos
familiares e domésticos. Sequências que mostram a intimidade familiar: Glauber e Paula
brincando com os filhos na praia em um momento de lazer e descanso; Glauber com os filhos
em um parque, balançando sua filha em uma gangorra, ajudando os filhos a descerem num
escorregador; Glauber em casa lendo, olhando pela janela (imagens típicas do cotidiano);
registro dos objetos dessa casa tais como livros, máquina de escrever, roupas em cabides,
organizadas em um armário. Todas estas imagens retratam como era o ambiente doméstico,
privado, a casa e os espaços de Sintra habitados por essa família.
Essesarquivos de sons e imagens (estática ou em movimento) produzidos em 1981, desenham
os traços desse território temporal vividos em exílio, e que identificamos aqui como “tempo
passado”. As filmagens em Super-8 são realizadas por PaulaGaitán em sua maioria, mas
também há a “mão” de Glauber nesses registros.
As figuras a seguir são frames extraídos de Diário de Sintra para a visualização das
descrições dos registros em Super-8 citados anteriormente.
FIGURA 3 - Registros em Super-8 (material de arquivo de Gaitán).
.
68
Fonte: Diário de Sintra (2007).
69
Existem alguns aspectos interessantes a serem apontados sobre esse material fílmico
produzido e arquivado por Paula Gaitán durante 25 anos. Estes registros podem ser
considerados como “filme de família” enquanto gênero cinematográfico. Helmut Kleinsorgen,
em sua dissertação intitulada Etnografias de si: a emergência dos filmes pessoais, aponta que:
O próprio filme de família (descendente direto da fotografia de família) era
considerado há bem pouco tempo como o não-gênero, caracterizado assim
por cineastas profissionais, críticos e acadêmicos como uma produção aestética e extremamente subjetiva, posicionada vários degraus abaixo na
escada hierárquica dos objetos de estudo legítimos (KLEINSORGEN,
2006, p.23).
Os estudos que envolvem o “filme de família”, organizados por Roger Odin, em Le
film de famille: Usage privé, usage public, seguem os pressupostos da semiopragmática, 51analisando, assim, o “filme de família” dentro do seu contexto de produção e
recepção. Odin classifica o “filme de família” como “aquele que é realizado pelo membro de
uma família a propósito de seus personagens, acontecimentos ou objetos relacionados de uma
forma ou outra à história desta família e ao uso privilegiado dos membros desta família.”
(ODIN, 1995, p. 27).
No primeiro artigo do livro citado acima, Aux origenes du cinema: le film de famille,
de Eric de Kuyper, o autor afirma que o “filme de família” estaria relacionado à origem do
cinema, vista sua característica experimental, amadora, além de ser um registro de práticas ou
situações cotidianas, assim como fizeram os irmãos Lumière.
52
Kuyper aponta três
abordagens para tratar o filme de família. A primeira seria a relação estabelecida entre o
sujeito-câmera e o sujeito registrado. Geralmente, esse sujeito-câmera seria alguém da família
(pessoas próximas, íntimas), um amador que realiza o registro de modo mais livre, fugindo às
convenções técnicas do cinema profissional. O autor analisa que a imagem captada seria
diferente do registro fotográfico posado,53 pois o registro do corpo em movimento permite a
51
A semio-pragmática é uma teoria proposta por Roger Odin para abordar o cinema. Nela, o autor leva em
consideração a formação (ou bagagem) do espectador e da experiência cinematográfica, ou seja, seu contexto de
projeção, a instituição na qual o filme foi projetado. Odin não rejeita a teoria semiológica, assim como fizeram
Metz e Deleuze (conforme o capítulo “Recapitulação das imagens e dos signos”,em seu livro A imagem-tempo).
Para Odin, a produção de sentidos é regida por limitações externas ao filme, como por exemplo, o conhecimento
de uma língua, eventos históricos, assim como a instituição a qual o filme é vinculado e também a que exibe ou
discute o filme, classificando-o como “filme de ficção”; “filme experimental”; “filme de família”, ente outros.
52
Considerados como inventores da sétima arte por criarem o cinematógrafo (máquina que filmava e projetava),
realizaram seus primeiros filmes como um experimento da nova máquina. O primeiro foi o registro da saída dos
operários de uma fábrica no final do dia (La sortie des Usines Lumière, 1895).
53
Conforme Barthes, em A câmara clara, o sujeito se modificaria no instante do ato de posar para uma
fotografia: “Ora a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a posar, fabricome instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem.” (BARTHES, 1984, p.
22) Mais adiante continua: “Eu queria, em suma , que minha imagem, móbil, sacudida, entre mil fotos variáveis,
ao sabor das situações, das idades, coincidisse com meu “eu” (Idem, p. 26).
70
expressão de trejeitos provavelmente ocultos na imagem estática, embora seja possível,
também, “performar-se” enquanto se é filmado. Em tempos recentes, um exemplo de como
ocorre essa alteração de postura quando alguém se percebe filmado, mesmo por um familiar, é
o documentário Elena (2102), de Petra Costa. Este documentário segue estratégias
semelhantes às utilizadas em Diário de Sintra. Trata-se de um filme de busca, em que Petra
realiza uma viagem a Nova York à procura das memórias relativas às vivências
compartilhadas com sua irmã, Elena. O filme é repleto de vídeos caseiros e registros
familiares; em um desses registros, a mãe de Elena indaga a filha sobre a alteração que o
comportamento desta apresenta ao perceber que está sendo filmada.
54
Essa ação de
“performar-se” também se torna visível em alguns registros de Diário de Sintra, em que
Glauber Rocha está sendo filmado com seus filhos em sua casa, e diz: “se prepara para o
filme”, “olha para o filme”.
A segunda abordagem de Kuyper propõe que os “filmes de família” sejam, geralmente,
registros do efêmero, momentos de felicidade e alegria. Estes registros não têm
necessariamente um começo e um fim, eles são descontínuos e fragmentados: “Car de quoi
s´agit-il, inlassablement, dans ces petits bouts de films, sinon du bonheur? Quel en est le sujet
inlassablement, ressassé et répété, sinon le désir de capter les moments fugitifs du
bonheur?” 55 (KUYPER, 1995, p.15). É possível notar essa característica fragmentária nos
registros realizados em Super-8 por Paula Gaitán. Para compreender as imagens de arquivo
inseridas no documentário não é necessário saber, por exemplo, como começou o passeio na
praia ou como terminou o passeio no parque. O que sobressai nesses filmes são pequenos
acontecimentos e gestos efêmeros, momentos que figuram uma passagem da vida, assim
como nos álbuns de família. Eric de Kuyper trata desse gesto de arquivação:
Les films de famille sont par nature “anonymes”. Mais ils ne l’étaient pas
pour leur utilisateur: tout au contraire, on sait que trouvait derrière la
caméra, et ceux qui se bousculent devant l’objectif sont dûment només(au
moyen du commentaire rétroactif): “ça c’était tante Éloïse, juste avant sa
mort; voilà Bernard, faisant ses premiers pas; et tante Adèle, et puis moi...
comme toujours derriére la caméra!” Une fois les acteurs disparus ou
morts, ces films de famille retombent dans l’anonymat. Ils n’ont de valeur
que pour leur utilisateur directs, les héritiers ne savent pas quoi enfaire,
54
Transcrição do diálogo desta sequência: “Não tem jeito de filmar sem você ficar sabendo, Elena?”, a filha
responde: “Porque você quer filmar eu...”, a mãe: “Sem você perceber”. Uma terceira pessoa que está junto
neste momento fala: “Natural”. A mãe de Elena continua: “é porque quando você percebe, você muda”, Elena
indaga: “Mudo?”, a mãe responde: “quando está filmando muda, quando não está filmando você é diferente.” A
filha pergunta: “Como que eu sou?”, a mãe lhe responde: “Mais natural”.
55
“Pois, do que se trata, incansavelmente, nestes pequenos trechos de filmes, senão da felicidade? Qual é o
assunto incansavelmente, reavivado e repetido, senão o desejo de capturar os momentos fugazes de felicidade?”
(Tradução nossa).
71
n’en connaissent pas l’usage
remords 56(KUYPER, 1995, p.13).
et
s’endéfont
sans
trop
de
Assim, os “filmes de família”, além de terem a intenção primeira de registrar um
fragmento do cotidiano familiar, tornam-se também objeto de certo culto, de recordação. Pois
os álbuns e filmes de família abrigam em si uma ideia não apenas de um passado encerrado,
mas também a ideia de um porvir, de um futuro, para que mais tarde seja possível recordar as
feições de entes queridos. Dessa forma, revisitar materiais de arquivo próprios (filmes,
fotografias, cartas, anotações) seria um encontro ou reencontro consigo mesmo. No momento
em que Paula Gaitán realiza a montagem do filme, revisita seu arquivo pessoal e familiar,
passados 25 anos da captação daquelas imagens. Munida do distanciamento necessário para
que seus registros atingissem uma dimensão poética 57 (descompromissada com a realidade
objetiva, empírica), Gaitán produz um material que extrapola o caráter documental comum
aos “filmes de família”. Os arquivos, então, são compreendidos dentro dessa ambivalência
entre público e privado, uma vez que Glauber era uma pessoa pública representada dentro de
um universo privado.
A terceira abordagem de Kuyper aponta que o público, ao assistir um registro familiar,
altera-se de espectador para testemunha, visto que observa uma relação física entre quem está
em frente à câmera e quem está por traz dela. Desse modo, ao assistirmos esses pequenos
fragmentos dos registros realizados por Gaitán, estaríamos testemunhando momentos
efêmeros de alegria e imagens da vida privada daquela família.
Além dos registros em Super-8 feitos por Paula Gaitán, há outros registros desse
“tempo passado”, realizado por terceiros, como vídeo Sintra is a beautiful place to die. 58 O
que sobressai desse material são os depoimentos que Glauber Rocha dá sobre sua vida, seu
56
“Os filmesfamiliares são anônimos pornatureza. Mas elesnãoforam assimpara os seus realizadores, pelo
contrário, sabemos que quem estava por trás dacâmera, e aqueles que migram para frente da câmera, sabem
devidamente seus nomes (usandoo comentárioretroativo): ‘Foi a tiaEloisepouco antes da morte,como aqui:
Bernardcambaleando em seus primeiros passos, e a tiaAdele,e então eu...como semprepor trás da câmera!’ Uma
vez os atoresdesaparecidosoumortos, estes filmes de família tendem a cairno anonimato. Elessão
importantespara o seuusuáriodireto, e os herdeiros sem saber o que fazer,e sem saber que uso dá-los, sedesfezem
delessem muitoremorso.” (Tradução nossa).
57
Para Maurício Lissovsky, o arquivo possui cinco dimensões: a primeira seria a historiográfica (que tem como
premissa proteger os documentos da ação entrópica do tempo que tudo arruína); a segunda, a republicana (que
resolve as tensões de apropriação do arquivo entre público e privado); a terceira, a cartorial (que está a serviço da
verdade, protegendo o arquivo da falsificação); a quarta, a cultual (o arquivo como um mecanismo contra o
esquecimento); e a quinta, a que interessa diretamente a esta pesquisa, é a dimensão poética, a qual está
relacionada ao perfume da madeleine de Marcel Proust e à fugacidade da passante no soneto de Charles
Baudelaire. (Maurício Lissovsky, Quatro + uma dimensões do arquivo, 2004).
58
Vídeo-documentário caseiro, de Patrick Bauchau, com 90 minutos de duração, contendo as últimas imagens de
Glauber Rocha, feitoem abril ou maio de 1981, durante um almoço na sua casa. Parte desse material também
está presente no documentário Glauber o filme, labirinto do Brasil (2004), de Silvio Tendler.
72
estado de saúde e ânimo. Paula Gaitán utiliza mais o áudio desse material em Diário de
Sintra. As poucas imagens utilizadas demostram momentos em que Glauber está junto aos
filhos (FIG. 4 e 5). Mais adiante, abordaremos como esse áudio do “tempo passado” alia-se às
imagens do “tempo presente” e do “tempo futuro” (relacionado ao instante de quem assiste ao
filme).
FIGURA 4 e 5 - Glauber em casa com os filhos (imagem gravada em vídeo)
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Poderíamos discorrer mais amplamente sobre as questões do “filme de família”,
propostas por Odin e demais estudiosos do assunto. No entanto, cabe salientar que Diário de
Sintra não se restringe a este gênero. A maioria das sequências do documentário não é
composta por materiais de arquivo, estes pontuam momentos de recordação, como lampejos
da memória de Gaitán, extrapolando assim a noção de “filme de família”. Além dos arquivos
da diretora possuírem aspecto testemunhal, são, também, suplementados por um caráter
orgânico, uma vez que o trabalho imaginário de Gaitán se apresenta de forma descontínua,
sendo cada imagem desprendida da seguinte. Segundo Deleuze “imagens desse tipo se
atualizarão na consciência, em função das necessidades do atual presente ou das crises do
real” (DELEUZE, 1990, p.156). Assim, as imagens captadas em um “tempo passado” (1981)
se desprendem parcialmente da lógica temporal linear, do contorno referencial, tornando-se
algo que pode ser chamado de “imagem-tempo”, um tempo que alude ao devir.
73
3.1.2 -Tempo “presente”: a ação de busca
Diário de Sintra foi realizado por meio do edital “Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 20062007” junto com quatro outros documentários — Margem (2007), de Maya Da-Rin; Histórias
de morar e demolições (2007), de André Costa; Eu vou de volta (2007), de Camilo
Cavalcante e Cláudio Assis; e Procura-se Janaína (2007), de Miriam Chnaiderman. Cada um
com duração de 54 minutos, resultando no material Cinco sobre Cinco documentários.
Conforme o texto de apresentação do encarte dos DVDs do material:
Fade in. No entrelaçamento do fluxo eletrônico surge uma imagem. Um
rosto, uma paisagem e uma história a ser contada. Pessoas, geografias,
asfalto, terra e o horizonte de um lugar. Em busca de um personagem ideal e
dos planos que melhor se identificam com a ideia proposta, para a frente e
acelerada, aventura de representar a realidade por meio do documentário
mais uma vez é assumida pelos realizadores premiados no “Rumos Itaú
Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007” [...] Nesta edição foi concedido um
prêmio especial ao projeto Diário de Sintra, de Paula Gaitán, documentário
que se estrutura com base em registros pessoais do cotidiano do cineasta
Glauber Rocha na cidade portuguesa onde morou com sua esposa Paula
Gaitán e seus dois filhos Eryk Rocha e Ava Rocha no ano de 1981, período
muito próximo à sua morte (INSTITUTO ITAÚ CULTURAL, 2007).
O prêmio especial cedido a Diário de Sintra, era a realização de um longa-metragem,
tal como fora concebido em seu projeto inicial, mas, dentro da versão produzida pelo
“Rumos”, sofreu alguns cortes e ficou com 54 minutos de duração. Esse prêmio especial
contemplou, ainda, uma exposição com fotografias e vídeos de Paula Gaitán. A exposição
intitulada Imagem da Imagem
59
aconteceu entre os dias 3 e 23 de setembro de 2007, no Itaú
Cultural em São Paulo. A versão de 84 minutos percorreu festivais e salas de cinema, sendo
esta a versão sobre a qual se debruça a presente pesquisa.
A partir dessas informações, sabemos que um projeto foi elaborado para a execução do
documentário, houve um planejamento e uma equipe que atuou na produção e finalização do
filme. Assim, verificamos que o registro realizado em 2007 é bem diferente daquele realizado
em 1981. As gravações de 2007 são captadas em digital e 16mm. Há uma equipe de produção
(com direção de fotografia, captação de som, direção de produção) guiada sob a direção de
Gaitán. As filmagens não foram feitas ao acaso, algumas até podem ter sido, mas já havia um
trajeto a ser seguido. A proposta era percorrer determinados locais, registrar a casa onde a
diretora vivera com sua família há 25 anos e buscar nesses espaços as reminiscências afetivas
e os “belos fósseis de duração” (BACHELARD, 1989, p.203).
59
Vide anexo 1 – Catálogo da exposição Imagem da Imagem (2008), de Paula Gaitán.
74
O que caracterizaria as imagens do plano temporal de 2007 seria o olhar de buscada diretora,
que poucas vezes se coloca diante da câmera, e quando o faz, está de costas, olhando para o
que está diante dela, contemplando uma vista, um horizonte, um caminho. Gaitán,
compreendida então como “sujeito-da-câmera”, 60 percorre os diferentes espaços de Sintra,
“performa” e compartilha ao público sua busca memorial. 61
As imagens a seguir (FIG. 6) são frames extraídos de Diário de Sintra e representam o
que abordamos aqui como “tempo presente”. Este registro estaria mais relacionado ao espaçotempo factual, pois é sabido que o filme se pauta na viagem feita à Sintra, em 2007. Nesta
viagem, a diretora retrata a paisagem e as pessoas que ali habitam, sob um olhar que oscila
entre o etnográfico e a poética da vivência, ou seja, emerge numa mesma imagem tanto a
figuração de alteridade como a fruição do “sujeito-da-câmera”, que observa em uma
disposição de “deixar-se levar”, de não apenas absorver, mas deixar-se ser absorvido pelo
olhar do outro.
FIGURA 6 - Caminhos, passagens e limiares.
60
Conforme Fernão Ramos (2008), o “sujeito-da-câmera” está para além da compreensão enquanto um sujeito
que sustenta a câmera ou como o “conjunto da equipe que está por trás da câmera no momento da tomada [é
aquele que] não existe em si, mas somente quando é aberto (encorpado) pelo lançamento do olhar e da audição
do espectador para o endereço da tomada. O sujeito-da-câmera é esse olhar em sua forma de ser percebido na
tomada (...) [E] é assim que o espectador consegue atravessar a figura na imagem e tocar a circunstância da
tomada.” (RAMOS, 2008, p.83-84).
61
Poderíamos comparar essa ação de busca de Paula Gaitán ao desejo, em Proust, de ressuscitar o passado.
Blanchot analisa essa estratégia de Proust “o fenômeno de reminiscência, a metamorfose que ele anuncia
(transmutação do passado em presente), o sentimento de que há ali uma porta aberta para o território da
imaginação, enfim a resolução de escrever à luz de tais instantes e para os trazer à luz” (BLANCHOT, 2005,
p.25).
75
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Imagens de caminhos, passagens e limiares são recorrentes neste registro realizado em
2007. São por essas passagens que Paula Gaitán percorre e por elas atravessa para recuperar
algo de uma vivência, de um tempo passado; tal ação seria uma estratégia de presentificar a
ausência de seu marido, que outrora estivera junto àqueles espaços. Esse trajeto, essa
movimentação, revela o estado de algo em processo, em constante transformação, em
desenvolvimento, algo inacabado que é a memória.O “tempo presente” (do filme) abrigaria
em si a coexistência dos diferentes planos temporais – que tratamos aqui de “tempo passado”
e o “tempo futuro” – assim, o presente passa a ser compreendido conforme a noção de
duração bergsoniana. 62 Tal noção possui o caráter de multiplicidade, assim “o presente que
dura se divide a cada instante em duas direções, uma orientada e dilatada em direção ao
passado, a outra contraída, contraindo-se em direção ao futuro”. (DELEUZE, 1999, p.39) O
“tempo presente”, compreendido como experiência psicológica, seria o tempo em que se
realiza e se constrói a memória.
FIGURA 7 – Avião sobrevoando o céu de Lisboa. FIGURA 8 –Peixaria.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
62
Domenico Hur, em Memória e tempo em Deleuze: multiplicidade e duração, analisa: “A duração se aproxima
do tempo subjetivo, ao invés do ‘tempo objetivo’ (Cronos – cronológico). É o tempo das vivências, das
intensidades, dos devires, é o tempo que não está sob a égide de Cronos e sim de Aion.” (HUR, 2013, p. 180).
76
FIGURA 9- Foto de Glauber.
FIGURA 10 –Estação ferroviária de Sintra.
FIGURA 11 – Pintura de uma porta.
FIGURA 12 – Olhos de um senhor anônimo.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
É interessante que além do gesto que expressa um movimento de percorrer esses lugares,
podemos constatar que os sujeitos e objetos retratados nesse “tempo persente” revelam
também a coexistência do passado e do presente. É possível verificarmos esta ideia nas duas
últimas figuras (11 e 12). Tais imagens em plano-detalhe contém em si a ideia de tempo: os
olhos de um senhor com idade avançada, com sua pele marcada pelo tempo, assim como a
pintura já gasta, quase se perdendo na superfície da madeira são um retrato da finitude da vida
e das coisas. Aqui veremos, como mencionado anteriormente, que o deslocamento de Gaitán
não carrega apenas as lembranças da própria diretora, mas também da subjetividade coletiva e
anedótica daquela comunidade. Retomando as palavras de Deleuze: “O trajeto se confunde
não só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio
meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem” (DELEUZE, 1997, p.73).
Mediante isso, uma gama de subjetividades impregnadas na superfície de uma velha porta de
madeira — assim como as várias imagens vistas e transformadas em lembranças por esses
olhos cansados do senhor anônimo — estaria atuando no modo de ver e vivenciar esse meio
em que o “sujeito-da-câmera” transita. Essas imagens conectam de algum modo as
reminiscências de um passado, mesmo que não seja um passado em comum daqueles agentes
envolvidos neste registro, mas que teriam o meio espacial em comum, no caso, Sintra.
77
Ainda segundo a perspectiva deleuziana, a noção de espaço que podemos abordar,
sobre os registros do “tempo presente”, relacionam-se ao “espaço hodológico”:
[...] o esquema sensório-motor se manifesta concretamente num “espaço
hodológico” (Kurt Lewin), que se define por um campo de forças, oposições
e tensões entre essas forças, resoluções das tensões de acordo com a
distribuição dos objetivos, obstáculos, meios desvios (DELEUZE, 1990,
p.157).
O termo hodológico (de origem grega hodós significa “via, caminho”) designa estudo
do caminho ou do percurso. Tal conceito foi desenvolvido a partir da análise do
comportamento humano nas atividades de deslocamento pelas estradas, a pé ou em veículo.
No registro do percurso realizado por Paula Gaitán é possível perceber algumas modificações
espaciais (como na arquitetura e paisagem) sofridas entre 1981 e 2007. Mesmo que tombada
como Patrimônio Mundial, Sintra, que é uma “cidade viva” e não deixa de ter sua paisagem
alterada pelo tempo. Neste sentido, as alterações poderiam atuar como “obstáculos”, pois
dificultariam o reconhecimento imediato de determinados lugares, dificultariam o acesso ao
que Gaitán objetivava: recordações de um tempo distante. De fato, quando nos ausentamos
por muito tempo de determinado local, torna-se mais difícil reconhecer determinadas
passagens ao retornarmos. Trataremos mais desta questão espacial no próximo capítulo,
analisando como o próprio espaço compreende em si a memória, e como ele se torna um
dispositivo memorial.
78
3.1.3 -Tempo futuro: imagens poéticas
“As imagens foram a princípio feitas para evocar as aparências de algo ausente.”
(John Berger, Modos de ver, p. 12)
Nesta sessão, buscamos salientar um tempo em que o registro das imagens não possui
referentes evidentes de espaço e de tempo factual, conforme possuíam nas sessões anteriores
(tempo passadoe tempo presente). Tampouco as imagens de que trataremos aqui evidenciam
conexão com referências factuais de tempo e espaço, 63 o que fazem é suscitar leituras
diversas, e, por isso, chamamo-nas de “imagens poéticas”. Tomaremos como referência para a
análise alguns pressupostos da filosofia da criação artística e estudos sobre o cinema (atendonos mais ao gênero documentário). Dito isso, cabe indagar: se a expressão “tempo futuro” não
se refere a um tempo-espaço factual, refere-se a que? Ao tempo do espectador, no instante da
exibição em que este lança o olhar sobre a tela. A fim de compreendermos a atividade desse
olhar, seguiremos a noção do “espectador emancipado”, proposta por Jacques Rancière. 64
Começaremos, então, com pontuações acerca dos estudos do cinema documental, seguidas de
outras acerca das “imagens poéticas”, e, por fim, analisarmos algumas sequências de Diário
de Sintra que se enquadrariam dentro de tais perspectivas.
Bill Nichols, em Introdução ao documentário, aponta alguns modos de se produzir
documentários. Dentre esses, o modo poético é o que mais se adequa a esta parte de nosso
estudo. O autor o descreve da seguinte maneira:
O modo poético sacrifica as convenções da montagem em continuidade, e a
ideia de localização muito específica no tempo e no espaço derivada dela,
para explorar associações e padrões que envolvem rítmos temporais e
justaposições espaciais. [...] Esse modo enfatiza mais o estado de ânimo, o
tom e o afeto do que as demonstrações de conhecimento ou ações
persuasivas (NICHOLS, 2012, p.138).
63
Em A imagem-tempo, Deleuze apresenta algumas noções de espaço. Dentre eles, destacamos o espaço
“riemaniano” (que está relacionado à noção de tempo-espaço, conforme a teoria da relatividade, onde existem
quatro dimensões e um campo gravitacional). Poderíamos dizer que se trata de um “espaço desconectado,
puramente ótico, sonoro ou mesmo táctil” (DELEUZE, 1990, p. 159). Assim, trataremos as “imagens poéticas”
dentro dessa perspectiva de desconexão com factual.
64
Conforme Jacques Rancière em seu artigo “O espectador emancipado”: “A emancipação parte do princípio
oposto, o princípio da igualdade. Ela começa quando dispensamos a oposição entre olhar e agir e entendemos
que a distribuição do próprio visível faz parte da configuração de dominação e sujeição. Ela começa quando
damos conta de que olhar também é uma ação que confirma ou modifica tal distribuição, e que “interpretar o
mundo” já é uma forma transformá-lo, de reconfigurá-lo. O espectador é ativo, assim como o aluno ou o
cientista. Ele observa, ele seleciona, ele compara, ele interpreta. Ele conecta oque ele observa com muitas outras
coisas que ele observou em outros palcos, em outros tipos de espaços. Ele faz o seu poema com o poema que é
feito diante dele. Ele participa do espetáculo se for capaz de contar a sua própria história a respeito da história
que está diante dele.” (RANCIÈRE, 2007).
79
Nichols analisa esse modo a partir do ponto de vista de uma montagem de caráter mais
descontínuo e fragmentário, e da enunciação, por ser esta mais pessoal e/ou subjetiva. Fernão
Ramos, em Mas afinal... O que é mesmo documentário?, retoma as colocações de Nichols
acerca do documentário poético e relaciona-o com os filmes mais recentes com essa tendência
autorrefencial:
No cinema contemporâneo, a partir principalmente dos anos 1990, a voz
lírica e a fragmentação formal retornam como traços estilísticos presentes no
documentário de vanguarda. Se não podemos dizer que sejam a forma de
expressão predominante [...], sua presença é bastante significativa no
documentário de recorte mais autoral. O documentário contemporâneo
possui a novidade formal da enunciação em primeira pessoa, mas nem
sempre enunciar em primeira pessoa carrega experiências limítrofes líricas
na forma narrativa. [...] O documentário poético em primeira pessoa costuma
ter figuração do eu que enuncia diluída, estourando a subjetividade em uma
multiplicidade de vozes que se sobrepõem. (RAMOS, 2008, p.69).
É possível notar essas características do modo poético apontadas por Nichols e Ramos
no documentário de Paula Gaitán. As considerações desses autores auxiliam na análise
formal. No entanto, para além de identificar e distinguir os subgêneros do documentário e
suas fronteiras, qual seria a metodologia adequada para analisar as “imagens poéticas”? Seria
o pensamento hermenêutico? Primeiramente, faz-se necessário notar que toda interpretação
singular é apenas uma das possibilidades de análise, uma apropriação limitada do sentido
simbólico reduzida a uma definição oriunda de determinada grade de leitura ou de estudos
que lhes são próprios. Importa ressaltar que reduzir não significa anular todo potencial de um
símbolo, mas delimitá-lo a um ponto de vista para manter a coerência da leitura proposta.
Assim, toda interpretação seria uma leitura limitada e coerente no interior da sua própria
perspectiva, o que pressupõe conceitos operatórios fundamentais:
[...] se a coerência de toda a interpretação exige uma certa suspensão do
conflito que a suscita, isto é, uma redução da polissemia inicial do símbolo,
pela sua tradução para um determinado contexto, esse facto não implica que
o conflito tenha sido anulado. Apenas foi perspectivado de acordo com uma
determinada opção (CEIA, 2010).
Desse modo, refletimos e buscamos por uma perspectiva “ideal” para abordar possíveis
leituras das “imagens poéticas” de filmes e documentários considerados como experimentais.
Jairo Ferreira, em Cinema de Invenção, propõe um modo, ao associar a montagem e as
imagens de tais filmes à construção poética, como também ao trabalho do crítico literário:
Se os sistemas analíticos não satisfazem, subsídios ao processo criativo é o
que não faltam. Nesse sentido a didática poundiana continua insuperável,
esclarecedora e reveladora. A questão na verdade é intersemiológica e os
80
preceitos de Ezra Pound passam a ser um manual do autor experimental em
nosso cinema. Basta entender cinema onde Pound escreve literatura e/ou
poesia (FERREIRA, 2000, p.42).
No entanto, discordamos de algumas considerações do discurso poundiano, quando
este identifica o que seria “a grande literatura” segundo determinada valoração estética. Seu
método talvez seja bastante objetivo e prático, porém demasiado rígido para a análise do
filme. Desse modo, levamos em consideração uma análise fenomenológica, tendo como
referência os estudos de Bachelard acerca da “imagem literária”, 65 que complementaria a
condição renovadora das imagens poéticas. Vale ressaltar que esse tipo de leitura
fenomenológica das imagens poéticas não está relacionado a uma leitura fechada, em que um
gesto seria compreendido como uma intenção 66 da diretora ou como o que ela quis “dizer”
utilizando imagens e textos. A leitura fenomenológica estaria, então, relacionada ao modo
crítico literário. Conforme as observações de Maria Esther Maciel, em Poesia à flor da tela:
[...] o “poético” reveste-se de uma aura lírica de “revelação”, associando-se
ao poder transfigurador do “olhar da câmera” que através de recursos como a
velocidade ou a lentidão, as proximidades íntimas dos primeiros planos, as
variações de luminosidade, etc... busca trazer na tela aquele “algo” que
subjaz à realidade visível das coisas” (MACIEL, 2004, p.209, grifos da
autora).
Maciel aponta como alguns recursos da técnica cinematográfica atuam enquanto
mecanismo de uma construção sintática própria de cada autor ou como uma estilística que cria
um “poder de síntese imaginativa”, assim como a escrita ideogramática oriental.
Tomaremos duas sequências de Diário de Sintra para ilustrar o que chamamos aqui de
“imagens poéticas”, a primeira será a sequência das imagens da árvore seca com fotografias
dependuradas, e a segunda, a sequência em que uma fotografia de Glauber é levada pela
correnteza das águas. Indicaremos algumas leituras dessas imagens, não com o objetivo de
revelar ou desvendar seus significados (o que poderia encerrar as diversas outras leituras
65
Conforme Bachelard, em O ar e os sonhos: “Uma imagem literária é um sentido em estado nascente; a palavra
— a velha palavra — recebe aqui um novo significado.Mas isso ainda não basta: a imagem literária deve se
enriquecer de um onirismo novo. [...] A imagem literária não vem revestir uma imagem nua, não vem dar a
palavra a uma imagem muda. A imaginação, em nós, fala, nossos pensamentos falam. Toda atividade humana
deseja falar. Quando essa palavra toma consciência de si, então a atividade humana deseja escrever, isto é,
agenciar os sonhos e os pensamentos.” (BACHELARD, 1990, p.257, grifos do autor).
66
“A intenção do autor é o critério pedagógico ou acadêmico tradicional para estabelecer-se o sentido literário
[...] Segundo o preconceito corrente, o sentido de um texto é o que o autor desse texto quis dizer [...] A
explicação pela intenção torna, pois, a crítica literária inútil.” (COMPAGNON, 2010, p. 49). Mais adiante, o
autor ainda comenta: “A intenção do autor não é, certamente, a única forma possível para a leitura dos textos [...]
e não há leitura literária que não atualize também as significações de uma obra, que não se aproprie da obra, que
até mesmo a traia de maneira fecunda (o que é próprio de uma obra literária é significar fora de seu contexto
inicial).” (Idem, p. 91).
81
conforme a bagagem do espectador e as considerações feitas anteriormente sobre o
“espectador emancipado” e a semio-pragmática de Odin), mas de apontar leituras possíveis
em diferentes instâncias de conhecimento e disciplinas.
Há várias leituras cabíveis para tais imagens. Podemos recorrer a elementos internos do
filme, realizando uma leitura mais circunscrita, como também uma leitura que traz referências
extrafilme (como conhecimentos prévios sobre o assunto, por parte do espectador). Talvez,
seria mais apropriado analisá-las aproximando o “sujeito-da-câmera” do sujeito poético ou de
um “eu-lírico” que Paula Gaitán cria em suas imagens poéticas.
FIGURA 13 - Árvores com fotografias.FIGURA 14 - Foto de Glauber presa em um galho.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
As figuras acima são frames da sequência inicial do filme—tratando-se de imagens,
pois o início é composto apenas por camadas sonoras e uma tela preta, essa sequência sonora
se estende até o minuto 1´40´´. Logo em seguida, surgem o título e as primeiras imagens (com
a câmera em contra-plongée), 67 visualizamos o céu claro, com poucas nuvens, e a câmera
desce lentamente, rodeando uma árvore seca. A câmera se aproxima dos galhos dessa árvore,
e, a partir desse instante, a mesma árvore seca ressurge com diversas fotografias afixadas em
seus galhos com pregadores de roupa. Em planos mais fechados, a câmera percorre entre
esses galhos, e observamos diversas fotografias: de árvores, de Glauber Rocha e seus filhos.
Um pouco antes do final dessa sequência há um plano aberto em que é possível visualizar, em
close,a queda lenta de uma das fotografias, como uma folha seca que cai. Essa sequência dura
três minutos.
A imagem desta árvore poderia ser tomada como uma representação da ausência de Glauber
Rocha, pois a afixação de fotografias (de imagens de vida) em uma árvore de aparência
mortificada revelaria uma tentativa de vivificação, de reprodução artificial da vida. Além
67
Enquadramento em que a câmera filma o objeto de baixo para cima, causando um efeito de “engrandecimento”
do que é filmado.
82
disso, a tal imagem poderia representar a própria memória, ramificada e fragmentada como os
diversos galhos que se renovam constantemente; as fotos estão postas nos galhos mais finos,
mais frágeis e suscetíveis às mudanças. A instalação poderia revelar, ainda, os diferentes
enquadramentos de Glauber Rocha (como pai, marido, cineasta), uma vez que há fotos do
diretor com a esposa, com os filhos e sozinho. Podemos, também, relacionar esta imagem ao
ciclo natural da vida e sua noção de transitoriedade ou a uma espécie de árvore genealógica,
onde as referências familiares são evidenciadas. Outra leitura possível é relacionar essa
sequência ao poema Viúva, de Sylvia Plath, que a diretora declama e exibe o poema em
determinado momento do filme, trazemos aqui um trecho:
[...] Viúva, curvam-se as compassivas árvores,
Árvores de solidão, árvores de luto.
Sustém-se como sombras ao longo da paisagem verde –
Ou então como buracos negros nela recortados.
A viúva assemelha-se-lhes, a sombra de uma coisa.
Mãos sobre mãos e no meio nada.
Uma alma sem corpo poderia passar por outra alma
Neste claro ar e não notá-la –
Uma alma passa por outra, efêmera como fumo
E ignorando por absoluto o caminho que tomou.
(PLATH, 2011)
Essas “árvores de solidão, árvores de luto”, poderiam ser relacionadas imageticamente
às imagens realizadas pelo
“sujeito-da-câmera” em Diário de Sintra. A árvore dessa
sequência assemelha-se a uma “árvore de luto” ou a uma “árvore de solidão”, pois quando
vemos a árvore em plano aberto, percebemos que naquele espaço, naquele horizonte, aquela
árvore encontra-se sozinha, não em um conjunto de árvores, há um campo aberto e seco.
Desse modo, a leitura dessas imagens se dá de forma a circunscrever-se dentro das próprias
referências trazidas no filme, sem que seja preciso buscar informações externas a ele. Assim,
tais imagens poderiam ser interpretadas no interior da narrativa de Diário de Sintra.
83
FIGURA 15-Foto de Glauber nas águas.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
As imagens acima (FIG. 15) são frames da sequência em que um retrato de Glauber Rocha
emerge das areias, as águas em movimento levam essas areias, torna-se possível, aos poucos,
visualizarmos o rosto de Glauber. A fotografia percorre por essas águas até alcançar o mar,
que está próximo. A imagem de Glauber Rocha surge ali e parece integrar-se ao meio, à
natureza de Sintra. Podemos compreender essa ação como uma purificação: água clara e
limpa, em um movimento que conduz simbolicamente a uma passagem, a uma travessia,
desprendendo-se do continente firme rumo à fluidez do mar. Conforme o Dicionário de
símbolos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994), a água poderia se reduzir a três temas
dominantes: força da vida, meio de purificação ecentro regeneração.
S´immerge dans les eaux pour en ressortir sans s´y dissoudre totalement
sauf par une mort symbolique, c´est retourner aux sources, se ressourcer
dans un immense réservoir de pontetiel et y puiser une force nouvelle: phase
passagère de régression et de désintégration conditionant une phase
84
progressive de réintegration
CHEERBRANT, 1994, p. 374). 68
et
de
régénérescence(CHEVALIER,
O objeto fotográfico simboliza ou materializa de forma poética uma renovação, seja a
renovação sobre a imagem de Glauber, seja uma nova forma de lidar com a memória. A
fotografia surge ali como uma memória queemerge em meio a tantas outras, mas é preciso
deixa-la, e assim, épossível visualizar seu movimento rumo à dissolução e posterior
integração ao “todo” marítimo:seria um gesto semelhante à aceitação da morte envolvida no
cumprimento do luto. Podemos também interpretar essa sequência à luz de dados presentes no
interior do filme. Em determinado momento, Paula Gaitán faz referência à Odisseia, de
Homero, conforme o frame abaixo extraído do documentário:
FIGURA 16 -Palavras sob uma tigela com água.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Assim, poderíamos também comparar o gesto de entregar a fotografia de Glauber
Rocha ao mar, rumo ao indefinido, como a viagem de Ulisses na obra homérica. Poderíamos
associar a imagem de Glauber Rocha ao protagonista daOdisseia, de Homero, cujo
protagonista errantesente-se esperançoso de que um dia sua pátria possaacolhê-lo novamente.
Essas referências mitológicas estiveram muito presentes no imaginário e nas obras de Rocha.
Como, por exemplo, em determinado momento de Diário de Sintra, o cineasta se diz
partidário de Orfeu e contrário a Narciso. Assim, a imagem fugidia de Glauber, é levada pela
correnteza como um ato de contestação do gesto autocontemplativo narcísico, uma vez que
esta imagem não é um reflexo de uma água parada; não se forma um espelho nessas águas em
movimento, sua imagem surge nas águas e não a partir de sua presença refletida, mas como
imagem de sua ausência.
68
“Submerge nas águas, para delas sair, sem se dissolver completamente, exceto por uma morte simbólica, como
retornar as raízes, é se renovar na fonte de um imenso reservatório de potencial e saciar-se com uma força nova:
fase passageira de regressão e de desintegração que condiciona a uma fase de reintegração e de regeneração”
(tradução nossa).
85
As duas sequências citadas possuem, também, um caráter icônico que torna possível
realizar uma leitura de análise desses elementos simbólicos — a água e a árvore — dentro de
uma perspectiva imaginativa, ou em devaneios, conforme os estudos de Gaston Bachelard em
O ar e os sonhos (Ensaio sobre a imaginação do movimento) e A água e os sonhos (Ensaio
sobre a imaginação da matéria). 69
Em relação à simbologia da árvore, Bachelard afirma que “A árvore ereta é uma força
evidente que conduz uma vida terrestre ao céu azul” (BACHELARD, 1990, p. 208). A árvore
cresce quando possui raízes profundas, conduzindo o que está no subterrâneo ao nível mais
elevado, exposto à luz do sol. A água, por sua vez, é tida como substância de vida e também
de morte, num devaneio ambivalente (Cf. BACHELARD, 1997, p.75). O autor comenta, em
A água e os sonhos, sobre a analogia comum entre a viagem (ou partida) e a morte:
A morte é uma viagem e a viagem é uma morte. “Partir é morrer um pouco”.
Morrer é verdadeiramente partir, e só se parte bem, corajosamente,
nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio. Todos
os rios desembocam no Rio dos mortos. Apenas essa morte é fabulosa.
Apenas essa morte é fabulosa. Apenas essa partida é uma aventura
(BACHELARD, 1997, p. 77).
Bachelard recorre, ainda, aos estudos de C. G. Jung, apresentados na obra
Métamorphoses et symboles de la libido (1927), e afirma que árvore e água são símbolos
maternais. Jung analisa o Todtenbaum ou “a árvore do morto”, prática dos ritos fúnebres
celtas: “ao nascer o homem era consagrado ao vegetal, tinha sua própria árvore pessoal [e ao
morrer, o morto era colocado] no seio da árvore” (BACHELARD, 1997, p.74-75). Em sua
análise, Jung aponta a relação dessa prática ritual com a maternidade: “o morto é devolvido à
mãe para ser re-parido” (JUNG apud BACHELARD, 1997, p.75). O filme, por meio da
simbologia da árvore e das águas,trata a morte de modo simbólico. A diretora não fala
diretamente sobre a morte de seu marido ou como foi essa experiência. Assim, as duas
sequências poderiam evocar a transcendência, bem como simbolizar a passagem de Glauber
Rocha para o mundo dos mortos. 70 A abordagem desse assunto ocorre por meio de uma
expressão artística, de forma indireta, subjetiva e contemplativa.
Como podemos ver as imagens desse “tempo futuro” são imagens em mobilidade, evasivas, e
que se multiplicam em diversas leituras, como um poema. O espectador encontra-se livre para
69
Conforme Bachelard, em O novo espírito científico, a pesquisa científica contemporânea mostra a
descontinuidade entre o objeto do senso comum e um objeto científico. O autor trabalha com o conceito de
metodologia consciente, desse modo, tendo em vista o caráter descontínuo e poético do corpus aqui proposto,
seria mais conveniente utilizar tais formas de pensamento para análise de das “imagens poéticas”.
70
Poderíamos associar tal passagem à “inevitável viagem” realizada no rio Aqueronte, o principal rio dos mortos,
conforme a mitologia grega, embora as águas mostradasem Diário deSintra sejam claras e correntes. O rio
Aqueronte, no qual a barca de Caronte navega, é um rio de águas turvas e paradas.
86
ver e interpretar tais imagens de acordo com o seu conhecimento e suas experiências, como
também pode compreender essas “imagens poéticas” dentro da composição geral do filme.
Essas duasformas de “ler” o filme não são como uma oposição binária, ou seja, uma forma
não elimina a outra. As leituras se coadunam, se renovam a cada exibição.
3.1.4 - Imagens de Glauber (do privado ao público) em Diário de Sintra
Seria possível cartografar os diferentes biografemas de Glauber presentes em Diário
de Sintra? Existem diversos fragmentos desse caráter multifacetado do cineasta no corpus
aqui estudado. Percorreremos as diferentes imagens que retratam Glauber como pai,
companheiro, homem público e como exilado são vistas (e ouvidas) no documentário de
Gaitán.
Glauber Rocha teve quatro filhos (Paloma, Pedro Paulo, Eryk e Ava). Conforme dados
biográficos, pouco havia, até então, sido explorado a respeito dessa imagem de pai em
documentários acerca de sua pessoa. Tal imagem de pai é apresentada no documentário
Diário de Sintra e em algumas das cartas que foram publicadas no livro: Glauber Rocha:
Cartas ao mundo, organizado por Ivana Bentes. Nesses textos, é possível notar as
preocupações de Glauber, o zelo e o carinho que tinha pelos os filhos. Paloma e Eryk Rocha
realizaram documentários sobre seu pai, não pela perspectiva de filhos, mas direcionando ao
cineasta, de tamanha projeção, com um olhar mais impessoal. Eryk Rocha, em seu
documentário Rocha que voa (2002), aborda o tempo em que seu pai esteve em Cuba. Tal
filme foi realizado a partir de entrevistas de Glauber encontradas nos arquivos do ICAIC
(Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos). Já Paloma Rocha, juntamente com
Joel Pizzini, realizou os documentários Abry (2003); Retrato da terra (2004); Depois do
Transe (2005) e Anabazys (2007). 71 A abordagem de tais documentários não trata de focalizar
Glauber dentro da perspectiva da intimidade ou pela perspectiva familiar. Grande parte dos
documentários 72 sobre o cineasta, realizados por amigos ou pesquisadores também não tratam
muito dessa imagem de Glauber como pai, abordam-no mais como cineasta, os seus processos
71
O documentário Depois do Transe percorre todo o processo de criação do filme Terra em Transe; Retrato da
terra é narrado em primeira pessoa pelo cineasta Glauber Rocha. O documentário aborda sua defesa da
expressão audiovisual e faz uma reflexão política a partir dos diálogos dos personagens de seus filmes; Anabazys
traz materiais no período de realização do último filme de Glauber - A Idade da Terra (1979). Já o filme Abry
traz Dona Lúcia (mãe de Glauber) relatando as suas memórias no leito de um hospital, onde acaba de se
submeter a uma cirurgia de ponte de safena.
72
Vide anexo 2 – Documentários realizados acerca de Glauber Rocha.
87
de criação, uma imagem já bastante explorada desse personagem notório, inquieto, polêmico,
provocador, pensador.
Em Diário de Sintra há imagens e sons que retratam a característica do pai carinhoso
que foi Glauber Rocha, imagem bastante evidente nos “filmes de família” realizados por
Paula Gaitán, em 1981. Esses registros que mostram alguns momentos em que Glauber brinca
com os filhos e cuida deles foram apresentados na sessão “Tempo passado: registros de
1981”. Em uma sequência captada em vídeo pelo ator Patrick Bauchau, Glauber fala:
Deixa de besteira, bota aí Ava. Bota isso aqui pro filme. Aruac coloque o
bigode para o filme. Olha o Aruac quer... Que isso... Não chora não. [beija a
filha] Não chora não neném. Chegou o chapéu de Aruac [...] Olha a
mamadeira.
Glauber coloca um chapéu de palha no filho e continua: “Aruac, bota o chapéu, bota.
Olha, a Ava botou olha. [brinca]: Senhorita. How are you? Senhorita. Rapariga.” A forma
como o pai fala com seus filhos mostra como era afetuoso com eles. Há outros momentos em
que ensina seus filhos a cantar, o cineasta canta notas de uma escala musical. Os filhos tentam
acompanhar o pai no canto, demostram momentos de intimidade, do universo privado,
particular. Conforme já dito, poucos documentários e biografias abordam esse viés de Glauber
no ambiente familiar. Talvez, para um estudo posterior, seria interessante realizar uma análise
comparativa desses biografemas de Glauber Rocha nos diversos e numerosos documentários
realizados sobre ele.
No entanto, a presente pesquisa se detém às imagens de Glauber
presentes em Diário de Sintra e em dados biográficos que possam colaborar para a
compreensão destas.
Na biografia Glauber Rocha: esse vulcão, de João Carlos Teixeira Gomes, o autor
aborda a questão afetiva do biografado no capítulo “Glauber e as mulheres”. Nele, destaca
como o cineasta vivenciava suas relações amorosas e como lidava com elas:
Não podia viver longe delas, porque mergulhava num estado de carência que
se beirava do desespero, quando não da depressão pura e simples. Glauber
precisava ter uma mulher ao seu lado para estabilizar as reações do seu eu
tumultuário [...] Era um homem permanentemente apaixonado [...] Longe
estava de ser um libertino [...] buscou ser fiel a todas às quais se uniu,
enquanto permanecesse viva a relação. Era, inclusive, um obstinado
guardião da entrosagem conjugal dos amigos [...] A propósito, Odete Lara,
em suas memórias, deixou-nos importante depoimento. Escreveu: “[...] Em
sua vida privada, ele é bastante normal, bem mais do que a maioria. É
apegado aos familiares e à mulher, e não é dado a conquistas, coisa comum
em qualquer um em sua posição.” (GOMES, 1997, p.202-204).
88
Tal característica também é observada por Ivana Bentes, que, na introdução de
Cartas ao Mundo,aponta o caráter afetivo das correspondências de Glauber: “Nas cartas
selecionadas, não faltam, entretanto, inúmeros fragmentos desse discurso amoroso, citações às
mulheres, análise de cada relação, declarações e derramamentos” (BENTES, 1997, p.14). Em
Diário de Sintra, também encontramos imagens da relação amorosa de Glauber e Paula;
mesmo sendo apresentada de forma sutil, a cumplicidade entre os dois é percebida tanto
diante da câmera, como nos áudios e na relação entre a câmera e aquele que se deixa ser
registrado. Além dos registros do “tempo passado” (1981), as “imagens do tempo futuro”
também remetem a esse relacionamento amoroso: a imagem de árvores secas alude à aridez
decorrente da ausência da pessoa amada, à situação de viuvez; a imagem de árvores floridas,
por sua vez, remete aos momentos felizes compartilhados outrora. Além disso, há um registro
sonoro em que Glauber fala de Paula como que apresentando-a algum amigo (a/s), dizendo
que a conhecera há oito anos, e fazendo elogios ao trabalho artístico de sua esposa.
FIGURA 17 -Paula Gaitán e Glauber Rocha.
FIGURA 18 - Árvore florida.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Outro biografema de Glauber presente em Diário de Sintra seria decorrente de suas
falas, que em alguns momentos transitam entre o poético e o profético. Maurice Blanchot
(2005), em “A palavra profética”, de O livro por vir, ressalta como a linguagem poética se
apropria (ou assemelha) à linguagem profética:
Palavra que ocupa todo o espaço e que é, no entanto, essencialmente não
fixada (daí a necessidade da aliança, sempre rompida, jamais interrompida).
Esse assédio, esse assalto pelo movimento, essa rapidez de ataque, esse
sobressalto infatigável, é o que as traduções, mesmo quando fiéis, têm tanta
dificuldade de pressentir. Devemos muito, portanto ao poeta cuja poesia,
traduzida dos profetas, soube transmitir o essencial: essa precipitação inicial,
essa pressa, essa recusa de se demorar e de se apegar (BLANCHOT, 2005,
p.124).
89
Desse modo, as falas de Glauber que possuem esse tom poético e profético não estão
circunscritas em um universo do público ou do privado, do factual ou da ficção, da razão ou
do devaneio. São falas que estão entres esses lugares. Segundo José Miguel Wisnik, em
Iluminações profanas, a aproximação entre poetas, profetas e drogados está relacionada ao
olhar visionário, deslocado no tempo “que não se deixa fixar” (WISNIK, 1988, p.283).
Wisnik ressalta, ainda: “desde épocas remotas essa área [...] está entre a poesia e a profecia,
campos que não poucas vezes se confundiram” (Ibidem, p.284).
Uma sequência que mostra tal imagem de poeta é aquela em que vemos um castelo
em Sintra. A câmera que registra a paisagem e a arquitetura também registra Glauber nela
como um visitante, um estrangeiro, e ouvimos sua voz (em voz-over)dizendo, em francês:
“Eu sou anarquista, não monarquista. Eu penso que o narcisismo é uma ideologia fascista. Eu
sou órfico e não narcisista.”. Glauber se identifica com a imagem do poeta, e Paula Gaitán
reafirma isto ao trazer essa fala ao documentário. Paula fala em voz-over com efeito de eco:
“Orfeu, Orfê, Orfius”; Glauber diz: “Orfius. Quer dizer que sou partidário de Orfeu e não de
Narciso. Orfeu, o poeta”. Suas falas poético-proféticas refletem questões políticas e
individuais, que envolvem seus problemas particulares. Também podemos compreender que
tal analogia realizada por Glauber teria também, dentro do contexto do documentário, uma
relação com a morte e com a liberdade, conforme Blanchot:
O olhar de Orfeu é, assim, o momento extremo da liberdade, momento em
que ele se liberta de si mesmo e, evento ainda mais importante, liberta a obra
de sua preocupação, liberta o sagrado contido na obra, dá o sagrado a si
mesmo, à liberdade de sua essência, à sua essência que é liberdade
(BLANCHOT, 1987, p. 176).
Muitos críticos e teóricos tinham Glauber como um poeta do cinema; amigos e
conhecidos tinham-no como profeta, por anunciar que morreria aos 42 anos de idade. Tal
imagem de profeta se faz presente também em Diário de Sintra, visto que Paula Gaitán utiliza
os seguintes dizeres de Glauber: “Eu não quero morrer porque tenho só 42 anos (...) Eu tenho
medo da morte estúpida. Mas morrer do coração, por causa de uma vida agitada e
revolucionária como a minha não será perturbador. Morrer num processo revolucionário não
tem problema”. Tal fala em tom profético não remete a algo que está por vir, mas reflete a
inconstância e a instabilidade do tempo presente de sua fala, conforme Blanchot: “Quando a
palavra se torna profética, não é o futuro que é dado, é o presente que é retirado, e toda
possibilidade de uma presença firme, estável e durável” (BLANCHOT, 2005, p.114).
90
Podemos notar esse caráter que oscila entre o poético e o profético de Glauber
também na sequência em que Gaitán revisita a casa onde viveram em 1981. Ao realizar essa
visita, parece surgir de sua memória, representada pela tela, vários fragmentos de som e
imagem do cineasta. Por volta do minuto 59´30´´, vemos imagens do rosto de Glauber
fragmentado aparecendo em meio à escuridão, e escutamos sua voz-over falando, em francês:
“Muitos desejos, desejos. Uma multiplicidade de desejos. Meu corpo se fragmenta como a
Guernica de Picasso”. Nesta sequência, Glauber, em alguns momentos, mistura as línguas
inglesa, francesa e portuguesa. Vemos a imagem de alguém folheando um livro de arte e o
quadro de Guernica é mostrado. Glauber continua: “Meu coração está quebrado, então estou à
beira da morte”. A fala é interrompida. Essa sequência é permeada por imagens de patas de
cavalos correndo, e pelos sons desse correr. Rocha continua: “Inexplicável como a morte.
Ninguém nunca voltou do reino dos mortos”. Novamente a interrupção com as imagens e
sons de cavalos. “Eu não gosto mais de filmes”. Vemos no escuro uma parte de uma
fotografia de Glauber, seu rosto aparece, a foto é iluminada. “Está tudo acabado, sabe? É
preciso mudar para novos filmes. Novos movimentos. Movimentos”. Glauber, nesse
emaranhado de idiomas, ao falar a palavra movie (filme em inglês), alude à ideia e à
sonoridade da palavra “movimento”. Tanto a maneira performática de Glauber se expressar
como o conteúdo de sua fala são carregados de poeticidade, existe uma repetição de palavras
“Muitos desejos, desejos. Uma multiplicidade de desejos”. Ao falar de sua saúde, de seu
estado físico e emocional, ele se compara à imagem do quadro Guernica. A montagem dessa
sequência segue uma lógica poética, fragmentada e descontínua, assim como a referida
pintura de Picasso. Torna-se interessante notar, também, que o modo como as fotos, os
desenhos e as anotações (ou Glauber em registros) surgem em meio à escuridão, sendo
iluminados por pequenos feixes de luz, assemelham-se ao ato reminiscente. Através de
pequenos lampejos que se acendem nesse porão escuro do esquecimento, torna-se possível
visualizar alguns fragmentos que saltam da nebulosa massa memorial. No momento da
ausência e da solidão, passa-se a compreender o passado e esse outro ausente. É como montar
um quebra cabeças de uma paisagem arenosa ou tentar reconstruir uma imagem estilhaçada.
A foto de o cineasta junto ao livro Mito(FIG. 20) torna claro como a imagem de Glauber
mitificado também se faz presente em Diário de Sintra. No entanto, compreendemos que
Paula Gaitán traz um olhar renovador sobre a imagem de Glauber Rocha, tratando-o em sua
multiplicidade e descontinuidade. Ora o vemos como pai, como marido, ora como escritor,
poeta/profeta, e assim por diante. O documentário retrata, através de sua forma, a
91
impossibilidade de separar esse personagem público do personagem privado (íntimo), visto
que sua vida privada ecoa na sua vida pública e vice-versa.
FIGURA 19 -Anotações.
FIGURA 20 - Foto de Glauber junto de livro Mito.
Fonte:Diário de Sintra (2007).
92
3.2 - Topografia da memória: confluência de tempos e imagens
Na sessão anterior, “Cartografias da memória”, apresentamos os diferentes registros de
planos temporais presentes em Diário de Sintra eenfatizamos mais o conteúdo desses
diferentes registros. Já nesta sessão,analisaremos como esse material justaposto influencia em
uma leitura geral de uma sequência e do filme como um todo. Assim,será possível verificar
como essas imagens, realizadas em diferentes suportes e temposse estratificam na montagem
do filme.Elegemos três sequências 73 com a finalidade de analisar como se dá a confluência
destes diferentes registros temporais e biografemas (ou também enquadramentos) de Glauber
Rocha. Ao traçamos uma analogia com o “olhar topográfico”,propomos algo como a
observação por meio de um teodolito,74 desse modo, seria possível visualizar a posição das
diferentes superfícies sedimentadas (como o princípio geológico de sobreposição de camadas)
pelo processo de formação e armazenamento da memória, impressas em imagens no
documentário.Para tanto, faz-se necessário, primeiramente, trazer algumas considerações a
respeito da montagem cinematográfica formulada por Sergei Eisenstein. Os estudos do
cineasta russo extrapolam o campo cinematográfico e podem ser aplicadostambém
paraanalisar outras linguagens artísticas. Em seu ensaio “Palavra e Imagem”, publicado em O
sentido do filme (2002a), sintetiza a propriedade essencial da noção de montagem:
[...] dois pedaços de filme de qualquer tipo, colocados juntos,
inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da
justaposição. Esta não é, de modo algum, uma característica peculiar do
cinema, mas um fenômeno encontrado sempre que lidamos com a
justaposição de dois fatos, dois fenômenos, dois objetos. (EISENSTEIN,
2002a, p.14 – grifos do autor)
Mais adiante, o autor destaca as palavras-valise, criadas por escritores como Lewis
Carroll, James Joyce e comenta que para cada idioma haveriao seu “profissional de
portmanteau”(no Brasil temos o exemplo de João Guimarães Rosa). 75Eisenstein explica que
analisar uma montagem não seria simplesmente verificar a justaposição dos planos isolados, e
sim o resultado, o produto, que seria um terceiro objeto. Partindo dessa lógica, o autor salienta
que haveria um aspecto importante a ser investigado, que seria o princípio unificador,
73
Conforme Pudovkin: “O filme não é simplesmente uma coleção de cenas diferentes. Da mesma forma em que
esses pedaços ou planos, são trabalhados de maneira a dotar as cenas de uma ação que as interligue, as cenas são
separadas e agrupadas de forma a criar sequências inteiras. A sequência é construída (montada) a partir das
cenas” (PUDOVKIN, 2008, p. 61).
74
Um dos instrumentos mais utilizados para realizar um levantamento topográfico, tal instrumento permite a
medição de ângulos verticais e horizontais, bem como distância, elevação e direção de acidentes geográficos.
75
Rosa, em sua literatura, criou diversas palavras-valise ou portmanteau, como por exemplo, no conto
“Tresaventuras”, do livro Tutaméia – Terceiras Estórias, encontramos palavras como “direitidão”,
“neblinuvens”, “tremeter-se”.
93
retratado como: “princípio que deveria determinar tanto no conteúdo do plano, quanto o
conteúdo revelado por uma determinada justaposição desses planos” (Ibidem, p.17).Eisenstein
observa que o pesquisador que desejasse realizar uma análise valendo-se desse princípio
unificadordeveria levar em conta casos em que o resultado final não fosse apenas previsto,
mas que surgisse de modo inesperado. Desse modo, o “todo” de um filme seria determinado
tanto pela montagem como pelo conteúdo dos planos, atingindo uma relação mútua (Cf.
EISENSTEIN, 2002a, p.18). Tendo em vista tal critério, é possível compreender que Diário
de Sintrafigura uma ação de reminiscência realizada pela diretora. Assim, Gaitán não retrata
apenas o presente e o passado, apresentados em diferentes fragmentos e suportes fílmicos,
mas é através da montagem que podemos visualizar essa representação da memória e da
ausência.
3.2.1 - Sequência do trem: o caminho para Sintra
Essa sequência encontra-se próxima ao princípio do filme (entre o minuto 13´20´´e
o 17´14´´) e se inicia com imagens realizadas dentro de um trem em movimento, com a
câmera posicionada em uma janela a registrar a aproximação da plataforma ferroviária onde
há outros trens, transeuntes etc. Tal material captado em Super-8 fora realizado em 1981.
Escutamos a voz-over (ou narração em off) de Paula Gaitán com um tom hipnótico, sendo
uma espécie de convite a embarcar nessa viagem espaço-temporal:
Caminhos que levam a Sintra, ou talvez a lugar nenhum. Imagens que
ultrapassam a memória e comunicam apenas uma parte de seu segredo.
Tempo perdido, tempo redescoberto. Redescoberto. Linhas fugazes, linhas
que se entrecruzam. Fluxo do tempo. É um tempo remoto, é um tempo
presente, tempo que está separado de outro tempo, mas que se torna
presente. A paisagem não é habitada, é vivida, ela é vista por alguém que se
encontra em exílio. Em exílio(GAITÁN, Diário de Sintra, 2007).
É possível notar que a diretora se coloca no filme por meio de sua própria voz, é ela que
profere o discurso reflexivo-poético. No entanto, a enunciação desse texto apresenta uma
impessoalidade. Apesar de se tratar de uma narrativa pessoal, Gaitán não narra de forma
direta ou descreve sua viagem em busca das recordações de um tempo passado. Dessa forma,
a diretora abre espaço ao espectador, compartilha seu olhar sobre sua viagem. A montagem
dessa sequência é composta por imagens de arquivo de 1981 (realizadas em Super-8). O texto
94
que Paula Gaitán fala em voz-over está relacionado ao “tempo presente” (2007). A forma
como o áudio se dispõe nesta sequência carrega uma potência poética, ou seja, a construção
dessa fala está em camadas, as palavras ecoam, expandem-se multiplicadas no espaço (através
da edição sonora que utiliza o efeito de eco). Assim, o modo como o áudio é montado reflete
tanto o conteúdo do texto como o ato de rememorar, de trazer essas lembranças que se
misturam, que se emaranham, que não são lineares, nem precisas. O fluxo entre diferentes
tempos é algo bastante recorrente no cinema. Conforme Hugo Munsterberg:
“[...] o cinema pode fazer a ponte para o futuro ou para o passado, inserindo
entre um minuto e o próximo um dia daí a vinte anos. Em resumo, o cinema
pode agir de forma análoga à imaginação: ele possui a mobilidade das ideias,
que não estão subordinadas às exigências concretas dos acontecimentos
externos, mas às leis psicológicas da associação de ideias. Dentro da mente,
o passado e o futuro se entrelaçam com o presente.” (MUNSTERBERG,
2008, p. 38).
Desse modo, poderíamos comparar a montagem de Diário de Sintra ao mecanismo de
rememoração de Gaitán, visto que “o cinema é capaz de dar corpo a esta divisão interna, a
esta consciência das situações contrastantes, a este intercâmbio de experiências divergentes do
espírito” (Ibidem, p.43).
Após essa fala de Gaitán, há também imagens realizadas em digital, em 2007. Vemos
o reflexo, no vidro do trem, da jovem Maíra Senise (filha de Paula Gaitán com o artista
plástico Daniel Senise). Essas imagens são intercaladas com os registros feitos em 1981. Tal
sequência conflui o “tempo presente”, o “tempo passado” e o “tempo futuro” (imagens
poéticas) em um espaço móvel, e de modo vertiginoso representado pelo trem.
O fato desta sequência encontrar-se mais no início do filme cria uma relação em que
tais imagens seriam o ponto de partida dessa viagem (física e memorial) empreendida pela
diretora. Compreendemos também que é a partir dessa sequência que a diretora convida o
espectador a embarcar no enredo memorial vinculado à história vivida naquele espaço em um
tempo passado.
95
3.2.2 - Sequência da Casa
“[...] não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao
passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente.”
(GAGNEBIN, 2006, p.55)
O que consideramos aqui como sequência da casa (do minuto 48´50´´ ao 62´33´´),
encontra-se próximo ao meio (ou ao centro) do filme, é a parte em que o filme se aprofunda
no passado,e onde passado e presente estão mais imbricados. Podemos descrevê-la da
seguinte forma:primeiro, o “sujeito-da-câmera” (com imagens captadas digitalmente em
2007) caminha por uma rua até chegar ao portão de uma casa, a casa onde morara a família
Rocha em 1981. Enquanto a câmera registra esse trajeto, escutamos, em voz-over, Glauber
dizer: “Paula é uma poeta da Colômbia.” (em alguns momentos Glauber mistura as línguas
inglesa, francesa, espanhola). Continua: “Uma grande poeta. Eu a conheci na Colômbia há 8
anos. Ela agora tem 27 anos.” Paula corrige dizendo que teria 24 anos. Alguém interrompe e
pergunta: “Quando você a conheceu ela tinha 19?” Glauber responde que sim, e acrescenta:
“ela é uma artista plástica”. Nesse trecho, temos uma sobreposição, ou junção de tempos. O
registro da imagem é de 2007, captado em digital, e o registro sonoro é de 1981. O “sujeitoda-câmera” chega diante da casa, e, no portão, há uma foto de Glauber. Essa imagem de
Glauber materializa sua ausência naquele espaço, torna-se um indício de algo, criando uma
relação entre aquele lugar com a imagem fotográfica do cineasta.
FIGURA 21 - Foto de Glauber no portão da casa.
Fonte:Diário de Sintra (2007).
O plano seguinte (com imagens de 1981), mostra a chegada das crianças e de Glauber e
por aquele mesmo portão. Desse modo, a montagem também é realizada no momento da
96
filmagem, pois ao filmar tal fotografia de Glauber, cria-se uma ligação com a imagem de
arquivo em Super-8 que será mostrada posteriormente. Vemos esse registro de 1981
eouvimos (em outro registro diferente) Glauber dizer: “Canta alguma coisa pro filme aí,
canta”. As crianças tentam entoar as notas musicais que o pai ensina. Paula Gaitán (naquele
contexto) entoa “fui na fonte do Itororó”, Glauber continua: “...beber água não achei. Canta:
Dó, ré, mi”. As crianças tentam acompanhar: “Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si dó...”. Glauber incita
os filhos a cantarem para o filme e, como em outros momentos, não trata as filmagens de
Paula como um registro familiar, mas sim como um filme. Conforme observa Rodrigo de
Oliveira, em uma entrevista com Paula Gaitán: “ele nunca diz para as crianças: ‘Ah, olha ali
pra mamãe’ ou então ‘olha ali para câmera’. Não, é sempre: ‘olha pro filme’, ‘se prepara para
o filme’” (OLIVEIRA, 2009, p.135). Essa fala de Glauber revela sua consciência enquanto
esse personagem midiático, que tinha consciência de que as imagens de sua pessoa tornam-se
ou convertem-se em arquivo passível de publicação, assim como seus textos, entrevistas e
cartas. Tal fala aponta para o futuro desse material, é um gesto de abrigar nesse material o
momento familiar que posteriormente teria algum uso cultual e/ou contextualizado em uma
narrativa fílmica, assim como a diretora realizou.
FIGURA 22-A casa em 1981.
FIGURA 24 - A casa em 2007.
FIGURA 23- Glauber entrando em casa com os filhos.
FIGURA 25 -Entradada casa em 2007.
Fonte: Diário de Sintra(2007).
97
Nesse trecho da sequência da casa, a montagem é paralela, 76 ora vemos imagens atuais
da casa abandonada (em 2007), cheia de plantas e folhas secas, ora “voltamos” ao tempo
passado (1981) e vemos imagens dessa casa habitada, viva, conforme os frames acima (FIG.
22 a 25). No instante em que entramos nessa casa (pelo olhar do “sujeito-da-câmera”), a
banda sonora se intensifica; a câmera percorre a casa escura, desabitada, em ruínas, e sobe as
escadas. Então, ouvimos sobreposiçõesde falas em voz-over de Glauber, que trata da poesia,
da filosofia e da arte:
A poesia é metáfora e símbolo e também pintura. A ciência não exclui a
poesia. Tudo na vida, a música, tudo é uma manifestação metafórica. A
arquitetura não existe sem o pedreiro. Sem o obreiro que coloca as pedras.
Então da mesma forma que o operário executa o projeto do arquiteto, o
arquiteto só tem o seu projeto executado graças ao pedreiro. Não há
possibilidade de revisão do marxismo. Porque é uma filosofia poderosa que
explica o homem. Um conhecimento profundo do marxismo se aproximará
cada vez mais da compreensão do Homem. O marxismo está baseado no
método dialético que proporciona mobilidade do pensamento em direção a
todas as formas de conhecimento. O conceito de arte feia ou bonita é um
conceito de estética burguesa, de origem hegeleiana, é completamente
abstrato.
Nesse momento da sequência da casa, há confluências entre o “tempo passado”
(representado pelas falas de Glauber), o “tempo presente” (representado pelo registro das
imagens dessa casa desabitada) e nos aponta o “tempo futuro”, por meio da montagem e das
camadas sonoras, sendo um tempo em devir, a ser completado pelo espectador, que deverá
associar esses elementos dentro de sua leitura.
FIGURA 26 - Paula Gaitán na janela da casa em 2007.FIGURA 27 - Glauber na janela da casa 1981.
Fonte: Diário de Sintra(2007).
Podemos verificar que o paralelismo construído nessa sequência reforça a ausência de
Glauber Rocha naquele espaço, bem como a distância temporal entre os dois registros (1981 e
76
A montagem paralela (também conhecida como montagem dialética ou montagem intelectual) consiste num
dos tipos de montagem usados desde os tempos do pré-cinema. Esta montagem pretende, através da alternância
entre planos de duas sequências, formar um novo significado implícito, interpretado pelo espectador.
98
2007). Isso se dá ao vermos como a casa foi e como a casa está naquele tempo. Essa
representação da ausência torna-se evidente com a montagem paralela, como no trecho em
que vemos, primeiramente, Paula Gaitán (em 2007) abrindo a janela do quarto vazio, de
costas para a câmera, olhando a vista que está adiante. A janela que Gaitán abre poderia ser
entendida também como o gesto simbólico de abrir a janela de sua memória. Nesse instante,
surgem imagens de arquivo e vozes de Glauber num castelo de Sintra. Depois vemos Glauber
Rocha (registrado em Super-8 por Gaitán em 1981), abrindo essa mesma janela e olhando a
paisagem que está diante de si (FIG. 26 e 27).
FIGURA 28- Reflexo das águas revelando as ruínas.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Também podemos notar nessa sequência, a existência de planos que identificamos aqui
como “tempo futuro” ou imagens poéticas: o momento em que a câmera registra uma casa em
ruínas e vemos, pelo reflexo das águas no chão, o extraplano do teto danificado, permeado por
sons de goteiras; as imagens de uma árvore florida, que poderia representar aqueles momentos
felizes vividos em família em 1981. Tal imagem não fora realizada na casa em que viveram
Glauber, Paula e os filhos (conforme informações dadas pela diretora), ela é inserida nesta
sequência e assim passa-se a compreendê-la nessa representação das ruínas da casa
abandonada em Sintra, desse passado distante.
99
3.2.3 - Sequência final
O que consideramos aqui como sequência final é contado a partir do minuto 70´ até
aproximadamente o minuto 83´, e seria uma espécie de despedida da casa, dos espaços de
Sintra. O “sujeito-da-câmera” observa a casa por dentro de um carro até sua imagem se esvair
entre os vapores que embaçam o vidro do veículo, conforme podemos ver na figura abaixo:
FIGURA 29 - A casa entre neblina.
FIGURA 30- Passagem pelo túnel.
.
Fonte: Diário de Sintra (2007)
O “sujeito-da-câmera” entra em movimento e percorre uma estrada, atravessa um
túnel dentro desse automóvel. Tal imagem remete a uma ideia de transição de planos
simbólicos, como a passagem da noite para o dia ou da vida para a morte, assim como Orfeu,
que vai ao mundo dos mortos para buscar Eurídice e guiar a sombra de sua amada à luz, ao
mundo dos vivos. A condição imposta por Hades para o sucesso desse retorno era que poeta
não olhasse para trás até chegar ao final do sombrio túnel; no entanto, quase ao final do túnel,
Orfeu olhou para se certificar de que Eurídice o estaria acompanhando e, portanto, perde-a
definitivamente. Conforme visto em Diário de Sintra, Glauber se colocava nessa condição de
Orfeu, o poeta que se sacrifica. Blanchot, em “O olhar de Orfeu”, presente no livro O espaço
literário, compreende Eurídice como “o extremo que a arte pode atingir” (BLANCHOT,
1987, p.171). Mais adiante, o autor continua:
A obra é tudo para Orfeu, com exceção desse olhar desejado onde ela se
perde, de modo que também é somente nesse olhar que ela pode superar-se,
unir-se à sua origem e consagra-se na impossibilidade. O olhar de Orfeu é o
dom último de Orfeu à obra, dom em que ele a recusa, onde ele se sacrifica,
transportando-se, pelo movimento exorbitante do desejo, para a origem, e
onde se transporta ainda, sem o saber, para a obra, para a origem da obra
(Ibidem, p. 174-176).
100
A partir de tais considerações de Blanchot, podemos inferir que a relação entre as falas
de Glauber sobre a morte e Orfeu refletem o desejo de retorno à origem, e de recusa
darealizaçãodessa obra “perfeita”. Podemos notar tal afirmação em alguns de seus
depoimentos presentes em Diário de Sintra, bem como em trechos de entrevistas e cartas,
trazidas aqui anteriormente, que revelam sua visão sobre a morte eseu descontentamento com
a área cinematográfica. As imagens e os sons utilizados por Gaitán podem ser vistos dentro
dessa relação traçada por Blanchot. A diretora agencia as imagens e os sons, representando a
relação entre a morte, Orfeu, e o trabalho artístico. Cenas como a da passagem pelo túnel
(elemento típico de representação do citado mito) e falas de Glauber dizendo que era
partidário do Orfeu e antinarcísico demonstram a despreocupação com a perfeição ou a
renúncia de sua “guerrilha particular” (como seus conflitos políticos e com a classe
cinematográfica).
Nessas últimas sequências do filme, vemos a diretora caminhar por entre neblinas e
rochedos de Sintra. Essa sequência também é marcada pela mobilidade. O som que permeia
essa sequência é de uma respiração dificultosa, lenta e profunda. Seria possível também
associar tais sons aos problemas pulmonares de Glauber, vistos seu o diagnóstico médico e a
causa de sua morte: “bronco-pneumonia; embolias pulmonares múltiplas” (GOMES, 1997,
p.504), bem como à perda de fôlego ocasionada pelo longo e doloroso percurso metafórico
empreendido pela diretora em busca de suas memórias afetivas. Mas, ainda é necessário
guardar o fôlego para um último mergulho ao passado, relacionado ao momento da morte do
companheiro. A maioria das imagens que compõem esta sequência foi realizada em 2007, aos
poucos o passado é deixado para trás.
FIGURA 31 –Neblina e grandes rochas.
FIGURA 32 –Neblina e fotos na paisagem rochosa.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Ainda nessa sequência, a câmera faz uma panorâmica por esse espaço rochoso, vemos
Gaitán passar por entre grandes rochas na Serra de Sintra. O “sujeito-câmera” caminha por
101
essa paisagem e surgem fotos de Glauber espalhadas entre pedras (FIG. 31 e 32). Em
determinado momento, Gaitán fala em voz-over: “Sinto-me agora como se estivesse
construindo uma parte delicada e intricada na noite silenciosa, cruzando as trevas de uma
tumba a outra enquanto o gigante dorme”. Poderíamos novamente relacionar esse trecho à
passagem de Orfeu ao mundo dos mortos. Vemos Paula Gaitán diante da câmera, entrando
numa trilha entre rochas grandes cobertas pela neblina; seu corpo segue nesta direção e sai do
campo de visão rumo ao indefinido. O som da respiração se faz presente novamente, o
“sujeito-da-câmera”, no alto da Serra de Sintra, observa a paisagem rochosa coberta de névoa
e realiza movimentos diversos: para cima, para baixo, e gira em torno de um eixo.
Sequencialmente, aparecem imagens em preto e branco com granulações, provavelmente
feitas em 16mm, ocorre a transição para as imagens em Super-8, realizadas no interior de um
avião. Daí, vemos o céu com nuvens através da janela, a turbina da aeronave. O som da
respiração continua, a câmera se volta para o interior do avião e vemos Glauber doente, com
os braços em cima da cabeça. Parece estar dormindo ou com o olhar apagado. 77
FIGURA 33 - Glauber doente no avião.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Nesse momento, diversas imagens são inseridas e sobrepostas de modo vertiginoso,
vemos a casa, os filhos, o sol, a lua, e assim por diante. A textura ruidosa destas imagens de
arquivo juntamente com o som ruidoso composto também por vozes de Glauber em eco
tornam-se um turbilhão de sonoro e imagético. Assim, tal passagem concentra os diferentes
planos temporais. A montagem deste trecho reflete o ato memorativo, bem como os
momentos agonizantes que precedem a morte.
As últimas imagens desta sequência são arquivos com a qualidade bem comprometida,
ruidosos, chiados. Não há como identificar claramente as pessoas que estão ali, mas vemos
77
“Na tarde do dia 19, alarmada, Paula Gaitán notara em Glauber ‘um olhar apagado, como se ele não estivesse
vendo’. Os médicos disseram-lhe: trata-se apenas de ‘prostração’.” (GOMES, 1997, p. 502).
102
alguém deitado em uma cama ou maca de hospital (provavelmente Glauber Rocha ou uma
imagem que o represente nesse estado hospitalizado), alguém que se encontra junto a ele, com
a mão em seu peito e em seu rosto, acariciando-o. Depois, vemos um ponto de luz vermelha e
uma linha vermelha. Escutamos um som agudo e contínuo como o som do monitor cardíaco
quando o coração do paciente para. De repente, um som grave e pontual é inserido, com corte
abrupto, a tela fica preta e temos um breve silêncio. Podemos inferir que tal sequência
representa imageticamente a morte de Glauber Rocha, porém sua morte não é trabalhada de
forma trágica ou dramática. A morte é representada de modo transcendente. Essa
transcendência se faz presente em vários momentos do filme, como na sequência em que uma
foto de Glauber emerge das águas percorrendo um rio ao encontro ao mar. Podemos notar
essa transcendência na própria montagem da sequência. Após a tela preta e o breve silêncio,
há uma última sequência, que poderia ser considerada como uma espécie de posfácio. E dá ao
filme uma ideia cíclica, assim como os ciclos da natureza, as estações do ano. Como no
princípio do filme, ouvimos os sons do mar, do vento e um som percussivo suave. A imagem
do começo torna aparecer – céu, árvore seca, som de pianos com notas bem pausadas.
Sentimos a vibração de cada nota até chegar ao silêncio. No entanto, a árvore não surge mais
com fotografias e sim com roupas penduradas: toalhas, meias, lenços. A voz de Glauber
ressurge cantando as notas musicais com as crianças. O filme termina indicando pelo meio
sonoro a imagem de pai, a imagem do Glauber privado, do artista renascido, com sua imagem
voltada ao futuro.
Através da breve decomposição das três sequências selecionadas de Diário de Sintra, seria
possível esboçar um desenho topográfico dessas oscilações entre os diferentes planos
temporais. No entanto, a representação associada às formações rochosas seria uma matéria
bastante rígida para “ilustrar” a fluidez do ato reminiscente. Talvez um elemento mais
apropriado para essa analogia, seriammatérias ou substâncias em estado líquido e com
diferentes densidades, que, uma vezagitados, parecem misturar-se. Em outros momentos,
esses líquidos se decantariam, sendo possível identificar os diferentes líquidos, com as
características que lhe são próprias.
103
4- VESTÍGIOS PELOS ESPAÇOS: SINTRA COMO DISPOSITIVO
No capítulo anterior, abordamos a memória por meio da perspectiva espacializada:
como um percurso de um trajeto e como uma edificação erguida mentalmente, compreendidos
num sentido metafórico. Neste capítulo, trabalharemos com algumas noções referentes ao
espaço factual, suas questões sociopolíticas, culturais, afetivas, e as aplicações destas para a
leitura e análise do documentário Diário de Sintra. Essa análise do espaço físico no
documentário se faz necessária para compreendermos como o olhar individual lançado sobre
este espaço se relaciona à sua dimensão coletiva. Conforme visto anteriormente, “o mapa
exprime a identidade entre percurso e percorrido. Confunde-se com seu objeto quando o
próprio objeto é movimentado” (DELEUZE, 1997, p.73). Assim, a análise aqui proposta visa
completar essa relação entre o espaço olhado e o sujeito que o olha.
4. 1 -Espaço: uma breve abordagem
Em diferentes disciplinas, existem modos diversos de se categorizar o espaço. Tais
noções acerca do espaço foram se transformando ao longo da história, tanto que hoje
acompanhamos a “espacialização” do pensamento nas Ciências Sociais, como veremos mais
adiante. Existira uma “evolução” conceitual sobre o espaço?
Platão, no Livro VII de A República, na passagem conhecida como o mito da caverna,
introduz a presença de dois mundos correlatos e qualitativamente distintos: o mundo das
ideias e o mundo das coisas sensíveis. Poderíamos compreender o primeiro como um mundo
imutável, independente do tempo e do espaço, que nos é acessível somente pelo intelecto; e o
segundo como o mundo concreto ou factual, que está em constante mutação. Tal mito
simboliza o aspecto teológico do platonismo. Por outro lado, o aluno de Platão, Aristóteles,
discordou da existência desses dois mundos. Para este, haveria apenas o mundo concreto,
negando a existência do mundo platônico, o mundo das ideias. Aristóteles, em sua obra
intitulada Física, indaga: o que seria o espaço? A sua hipótese aponta o espaço como uma
determinação dos próprios corpos, ou seja “o mundo, como totalidade, não está no espaço,
mas ele mesmo realiza o espaço como determinação sua” (PAULI, 1997, p. 340). Cumpre
observar como a Filosofia e a Física estiveram relacionadas desde seu surgimento e como
104
conceitos de uma aliam-se à outra. Porém, em alguns momentos, os conceitos se divergem.
Conforme analisa Mario Bunge, em Física e Filosofia: “É verdade, as incursões filosóficas
dos físicos, assim como as filosofias da física excogitadas por filósofos, foram, amiúde, obra
de amadores. Ainda assim, foram de interesse e, muitas vezes, fecundas e, de todo modo, não
é possível ignorá-las” (BUNGE, 2000, p. 9).
Santo Agostinho, de filiação neoplatônica, vinculou-se à estruturação e à
representação espacial baseado no modelo cosmológico dualista de Platão. No entanto, sua
conversão ao cristianismo o levou a reavaliar e reajustar tais proposições, transferindo-as para
a noção de Criação (a dualidade platônica passa a ser a relação entre criador e criaturas).
Agostinho, por ter essa filiação filosófica, transfere seus conhecimentos filosóficos para as
questões religiosas, o que o leva a indagar sobre as noções de memória e tempo em
Confissões(SANTOS, 2009, p.306). Agostinho, no livro XI deConfissões faz a seguinte
pergunta: “O que é, pois o tempo?”, no entanto, não existe a mesma indagação
correspondente ao espaço. O filósofo aborda a noção espacial apenas para tratar da memória,
e essa “espacialização da memória torna-se resistente à tentativa de desconstrução da
espacialidade” (Idem, p.308). O espaço seria tratado como uma extensão cosmológica e
relacionado a uma interioridade individual ou apenas tratado como extensão tridimensional do
meio em que se vive.
Na Idade Média, acreditou-se, por muito tempo, que a Terra era plana e o centro do
universo. A partir dos estudos e das teorias de Galileu, as noções espaciais sofreram
transformações, o espaço passa a ser regido por um conjunto hierarquizado de lugares.
Foucault, em Outros espaços,chamaesses lugares de hierarquias de“espaços de localização”
ou “medievais”, e contrasta tais hierarquias: “lugares sagrados e lugares profanos, lugares
protegidos e lugares, pelo contrário, abertos e sem defesa, lugares urbanos e lugares rurais
(onde acontece a vida real dos homens)” (FOUCAULT, 2001, p.412). Foucault ainda comenta
que antes de Galileu esses lugares se encontravam de maneira dissolvida na sociedade. No
entanto, a própria noção de heterotopia discutida por Foucault parte do princípio de que essas
hierarquias de lugares são uma constante em qualquer grupo humano, em qualquer época,
pois estão vinculadas às diferentes esferas de poder(política, econômica, religiosa, moral,
entre outras). Até então, as noções de “tempo” e “espaço” não eram pensadas de forma
separada ou desassociada. No final do século XVII, a física newtoniana trabalhava com a
105
ideia de tempo e espaço absolutos; entretanto, posteriormente tal hipótese foi rejeitada pela
física moderna.
Após o processo de colonização, notamos como a trajetória da Europa, o eixo central
da história ocidental até então, torna-se uma das múltiplas trajetórias coexistentes na esfera
terrestre (Cf. MASSEY, 2008, p.100). Todavia, a visão de mundo eurocêntrica perdurou por
muito tempo (em algumas instâncias tal visão ainda se faz muito presente). Recentemente,
com o revisionismo histórico, surgido nas últimas décadas, é que começamos a estudar dentro
de “novas” perspectivas.
Já na atualidade, temos a impressão de que as distâncias parecem tornar-se cada vez
menores, as “novas” tecnologias seriam as responsáveis por essa metamorfose da percepção
espaço-temporal. Por meio de aparelhos celulares que se com acesso à Internet, é possível
conectar pessoas que se encontram em lugares longínquos, realizando conversas por meio de
videoconferência. Conseguimos presenciar virtualmente um acontecimento em outro país,
cidade, etc.. É como se fosse possível ocuparmos dois ou mais espaços ao mesmo tempo: a
minha imagem virtual ocuparia um espaço real em outro local (um ambiente de negócios, por
exemplo), enquanto o meu corpo físico poderia estar presente em outro contexto (um
ambiente caseiro, familiar, por exemplo). Foucault já alertava para a transformação da noção
espacial, em uma conferência na Tunísia, em 1967:
A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na
época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do
longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que
o mundo experimentaacredito, menos como uma grande via que se
desenvolveria através dos tempos como uma rede que religa pontos e que
entrecruza a sua trama. (FOUCAULT, 2001, p. 411).
Não apenas as tecnologias da comunicação trouxeram essa impressão de redução das
distâncias. Os deslocamentos espaciais objetivam serem mais rápidos: metrôs, aviões,
jatinhos, trem-balas são representantes da necessidade de economizarmos no nosso tempo em
trânsito. Pagar contas e fazer compras pela Internet não é apenas uma questão de conforto e
praticidade, é mais um modo de pouparmo-nos dos deslocamentos, poupando assim o tempo,
que parece ter se tornado moeda corrente no mundo corporativo. Ocupar um espaço por muito
tempo pode, por muitas vezes, tornar-se um incômodo, aguardar em pé em uma fila, esperar
uma consulta médica, ficar preso num congestionamento de trânsito, esperar um vôo que
atrasa, também são complicações ligadas ao espaço pós-moderno. Esses espaços de espera,
106
esses “não-lugares” 78 parecem representar lacunas em nosso tempo, temos a sensação de
estarmos perdendo algo em outro lugar em que gostaríamos de estar. Com isso, elementos são
postos nestes espaços para nos distrairmos da espera tediosa e/ou solitária, como em filas de
supermercados, próximos aos caixas são colocados doces, revistas; em bancos: folhetos de
empréstimos e financiamentos; em consultórios: revistas, jornais e/ou um TV. Esses
elementos têm uma relação com a cultura consumista, pois nela é preciso estar sempre
“ligado” em alguma coisa, devanear em nossospróprios pensamentos ou fazer pausas para
reflexões parecem uma perda de tempo na era do agir e interagir. A publicidade parece querer
ocupar mais espaços a cada dia. Atualmente encontramos anúncios até em portas de banheiro.
No entanto, conforme Doreen Massey, o espaço é mais do que distância: “É a esfera
de configurações de resultados imprevisíveis, dentro de multiplicidades” (MASSEY, 2008,
p.139), e, dentro dessas relações de multiplicidades serão coconstruídos 79 novos tipos de
configurações espaciais, uma vez que nos espaços coletivos encontramos essas unicidades
(individualidades) que formam uma multiplicidade. Um exemplo de espaço múltiplo e
heterogêneo 80 é o espaço de deslocamento coletivo. Numa mesma rua passam pessoas de
diferentes classes, culturas, etc.. Tal proposição seria contrária da noção de “não-lugares”, de
Marc Augé, visto que esses lugares de passagem “criam uma tensão solitária” (AUGÉ, 2004,
p. 87) ou ainda “não cria nem identidade nem relação” (Ibidem, p.95). Dentro das abordagens
sobre esses espaços heterogêneos, existem divergências quanto à perda de identidade ou não
(tanto das pessoas, quantos dos próprios lugares). Para refletir melhor sobre essa questão,
iremos abrir um breve parêntesis no trabalho.
78
Marc Augé, em Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade, defende a seguinte
hipótese: “a supermodernidade é produtora de não lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares
antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes,
repertoriados, classificados e promovidos a “lugares de memória”, ocupam aí um lugar circunscrito e específico.
(AUGÉ, 2004, p.73)
79
Massey refere-se aqui ao ciberespaço.
80
Foucault, descreveria esse espaço heterogêneo como “pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no
qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói
e sulca [...]”. (FOUCAULT, 2001, p. 414)
107
4.1.1 -O espaço público urbano
Alguns dos estudiosos que trataram da relação entre espaço e as práticas sociais que
sãointeressantes para analisarmos como se torna possível visualizar traços da identidade
cultural dos espaços em que Paula Gaitán percorre em seu documentário, seriam: Michel de
Certeau e Felix Guattari. O conceito central na obra deCerteau seria a noção de espaço
enquanto “lugar praticado”. 81Uma analogia construída pelo autor para tornar clara tal noção
de espaço vinculado às práticas, gestos e as artes do fazer do cotidiano, comparava a estrutura
de uma cidade auma língua, e que a ação de caminhar seria semelhante ao ato de fala, à
enunciação. Tal analogia “permitia valorizar os processos de apropriação da topografia urbana
pelos seus atores que se desenvolveriam a partir das relações possíveis entre os polos
diferenciados” (DOSSE, 2004, p. 86).
Felix Guattari, no capítulo “Espaço e Corporiedade” de Caosmose (1992), também
trabalha com essa perspectiva do espaço antropológico, como possível portador de uma
poética ou de uma “aura” impregnada por um imaginário histórico, identitário e subjetivo:
[...] quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de
diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os
edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas
produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros
agenciamentos de subjetivação. [...] O alcance dos espaços construídos vai
então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais. (GUATTARI, 1992,
p. 157).
Guattari analisa que esses espaços (públicos, urbanos e coletivos) podem promover
tanto “um esmagamento uniformizador”(GUATTARI, 1992, p.158) como “uma resingularização libertadora da subjetividade individual e coletiva” (Ibidem). Mais adiante
acrescenta:
Pode parecer paradoxal deslocar assim a subjetividade para conjuntos
materiais, por isso falaremos aqui de subjetividade parcial; a cidade, a rua, o
prédio, a porta, o corredor... modelizam, cada um por sua parte e em
composições globais, focos de subjetivação. (Ibidem, p.161).
81
Conforme François Dosse em seu ensaio O espaço habitado segundo Michel de Certeau, retoma as palavras de
Certeau, para sintetizar a noção de lugar proposta pelo autor: “É um lugar a ordem (qualquer que ela seja)
segundo a qual os elementos são distribuídos em relações de coexistência. Encontra-se aqui; então, excluída a
possibilidade de duas coisas estarem no mesmo lugar. A lei do ‘próprio aí reina’... Há espaço desde que se
considere vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de
móveis... O espaço estaria em relação ao lugar da mesma forma que a palavra quando é pronunciada... Em suma,
o espaço é o lugar praticado”. (CERTEAU apud DOSSE, 2004, p.85)
108
O autor, ao abordar essa parcialidade subjetiva das edificações, desses espaços
urbanos, coloca o sujeito como correlato ou como componente dessa construção subjetiva,
exemplificando essa relação com a visão que o agoráfobo tem nesses espaços: “o lugar que
ele atravessa, a circulação que ele ressente como uma ameaça, o olhar dos passantes, sua
própria apreensão existencial do espaço dilatado ao extremo e seus fantasmas de perdição.”
(Ibidem).
Podemos compreender o “não-lugar”, dentro da perspectiva supermoderna de Augé,
como uma tendência do mundo corporativo, que busca uma praticidade, comodidade,
segurança de modo que estimule e mantenha a produtividade dos sujeitos. Ambientes
monitorados, regidos por uma aparência asséptica, e onde os sujeitos que ali circulam
parecem visualmente padronizados, como os shoppings centers que tanto vem se
“proliferando” nas últimas três décadas. No entanto, existe também resistências 82 contra essa
lógica dos “não-lugares”, ruas e praças enquanto espaço coletivo de circulação abrigam ainda
a existência de poética da cidade. A exemplo disso, vemos como a “cultura de rua” ou
“cultura hip-hop” 83 , que tem ganhado expressão e notoriedade no meio artístico. Hoje é
comum a presença de obras de grafite em bienais e galerias de arte. As artes de rua trabalham
com a ideia de ressignificação dos espaços urbanos, trazendo cores para muros marcados pelo
cinza do cimento, ou fazendo intervenções efêmeras como performances, danças, entre outras.
Estudos acerca do Urbanismo e Ocupações urbanas têm se destacado em discussões em
seminários e congressos acadêmicos, bem como em discussões sobre as melhorias de políticas
públicas. Ainda podemos compreender a rua como lugar de resistência, como local onde são
promovidas manifestações, levantes, passeatas, protestos. Tal discussão, a respeito dessas
diferentes abordagens, poderia ser mais amplamente discutida em outra oportunidade, por
hora não nos delongaremos sobre essas divergências conceituais acerca da perda ou não de
identidade nos espaços públicos. Analisaremos mais adiante como Paula Gaitán retrata, em
seu documentário, essas idiossincrasias dos espaços de Lisboa e Sintra. No entanto, vale
ressaltar como tais noções sobre esses espaços são regidos por uma série de máscaras sociais,
82
Um exemplo dessa resistência foi a onda de protestos (ocorridas entre maio e junho de 2013) contra a
construção de um shopping center no parque Gezi e na praça Taksim no Istambul (Turquia), que teve
repercussão internacional, mobilizando também pessoas e críticas de vários países, e fez com que as
reivindicações fossem atendidas.
83
A cultura Hip-hop iniciou na década de 1970, nas áreas centrais de comunidades jamaicanas, latinas e afroamericanas da cidade de Nova Iorque. Afrika Bambaataa, reconhecido como o criador oficial do movimento,
estabeleceu quatro pilares essenciais na cultura hip hop: o rap, o DJing, a breakdance e o graffiti. Outros
elementos incluem a moda hip hop e as gírias. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hip_hop>. Acesso
em 10 de nov. de 2013.
109
em que os indivíduos, por grande parte do tempo, estão postos ali para exercerem um papel ou
uma funcionalidade que encarna regras sociais.
4.1.2 – O espaço privado: a intimidade da casa
Talvez, o espaço em que podemos ter momentos de tranquilidade, e menos fixidezdas
ordens e das máscaras sociais, seja a casa que habitamos. Conforme os estudos de Bachelard,
em A poética do espaço, a casa tomada como um espaço da intimidade ofereceria um vasto
campo para compreender ou analisar valores particulares de um determinado sujeito:
Para um estudo fenomenológico dos valores da intimidade do espaço
interior, a casa é, evidentemente, um ser privilegiado, sob a condição,
bem entendido, de tomarmos, ao mesmo tempo, a sua unidade e a sua
complexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares num
valor fundamental. A casa nos fornecerá simultaneamente imagens
dispersas e um corpo de imagens. Num e noutro caso, provaremos que a
imaginação aumenta os valores da realidade. Uma espécie de atração
concentra as imagens em torno da casa (BACHELARD, 1989, p.21).
A casa e seu imaginário abrigam nossas mais remotas memórias, ela seria um
elemento capaz de representar nossa personalidade e valores, mesmo de modo fragmentário.
Geralmente, ao recordarmos de momentos de nossas vidas, criamos uma relação com tempo
para alcançarmos determinada lembrança. Acreditamos que iremos buscar alguma recordação
em uma suposta linha de tempo imaginária, em que no ano X ocorreu tal acontecimento, mas,
além dessa relação temporal, de estar inserido no tempo histórico/cronológico, o
acontecimento precisa necessariamente de um espaço para desenrolar-se. Assim explica
Bachelard:
Às vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece
apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um
ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando vai em
busca do tempo perdido, quer "suspender" o vôo do tempo. Em seus mil
alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso.
(BACHELARD, 1989, p. 24).
Nossas memórias e recordações são formadas por experiênciassensório-motoras, e grande
parte delas se associam à visão, às sensações auditivas, palatais e olfativas que podem por
muitas vezes associar-se a um espaço (que é representado por uma imagem). Podemos
encontrar essa relação entre memória, espaço e sentido na obra de Marcel Proust. Em
110
determinado momento de Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann, vemos o
seguinte relato:
Por certo, o que assim palpita no fundo de mim, deve ser a imagem, a
recordação visível que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a
mim. [...] E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era do
pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos
domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Leôncia me
oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília
quando ia cumprimentá-la em seu quarto.[...] eis que a velha casa
cinzenta, de fachada pra rua, onde estava meu quarto, veio aplicar-se,
como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e
que fora construído para meus pais aos fundos da mesma (esse truncado
trecho da casa que era só o que eu recordava até então) (PROUST, 1961,
p. 46-47).
Proust demonstra, nesse trecho de sua obra, mesmo que seja uma mistura de ficção e
autobiografia (se é que realmente existe um “purismo” de cada um desses gêneros), como a
memória gustativa provocou um desencadeamento de imagens mentais da casa em que
morava quando criança em Combray. Assim, Proust recria, em sua imaginação, toda uma
arquitetura do espaço de sua casa natal. Conforme assinala Bachelard, “veremos a imaginação
construir ‘paredes’ com sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção ou,
inversamente, tremer atrás de um grande muro, duvidar das mais sólidas muralhas”
(BACHELARD, 1989, p.22).
Ao considerar a forte relação entre imagem, espaço e memória, trabalharemos com a
temática do espaço e como a imagem desse, que aparece dentro do contexto fílmico.
Verificaremos os diferentes espaços (público e privado) do documentário Diário de Sintra e
suas diferentes significações dentro de cartografia memorial e afetiva realizada pela diretora
Paula Gaitán.
4.2 -Sintra: dispositivo espacial
O documentário Diário de Sintra estaria dentro de uma tendência atual: em que o
diretor se coloca como parte integrante do filme e torna sua vivência um acontecimento a ser
registrado. Assim como aponta Cezar Migliorin na introdução de Ensaios no real:
documentário brasileiro hoje: “Acompanhamos nos últimos anos uma série de dispositivos,
entrevistas e invenções de situações em que não havia uma roteirização possível, em que o
documentário se colocava sob o ‘risco do real’, como escreveu Comolli.” (MIGLIORIN,
111
2010, p.14). Desse modo, tendo como ponto de partida a viagem a Sintra, Paula Gaitán se
propõe a recordar, a trazer suas memórias não pelo tempo, não pela narração de suas
lembranças vividas junto a Glauber Rocha nos últimos momentos de sua vida, mas propõe
deixar que essas memórias fluam e apareçam através dos espaços de Sintra. Nesse sentido,
podemos verificar a potência do espaço em revelar as lembranças. Bachelard assinala:
Aqui o espaço é tudo. Porque o tempo não mais anima a memória. A
memória– coisa estranha! –não registra a duração concreta, a duração no
sentido bergsoniano. Não se podem reviver as durações abolidas. Só se
pode pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de toda densidade.
É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de uma
duração concretizados em longos estágios. O inconsciente estagia. As
lembranças são imóveis e tanto mais sólidas, quanto mais bem
espacializadas. Localizar uma lembrança no tempo não é uma
preocupação de biógrafo e quase corresponde exclusivamente a uma
espécie de história externa, a uma história para uso externo, para
comunicar aos outros. Mais profunda que a biografia, a hermenêutica
deve determinar os centros de destino, desembaraçando a história de seu
tecido temporal conjuntivo sem ação sobre nosso destino. Mais urgente
que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a
localização nos espaços de nossa intimidade. (BACHELARD, 1989,
p.25).
Visto que o tempo é algo inapreensível, buscar os resíduos de sua passagem no espaço
físico poderia ser uma forma de recordar um fragmento de um tempo perdido. Como acontece
na criminalística, peritos vão à cena do crime para encontrar rastros, vestígios. Os criminosos,
quando pegos, reconstituem a cena, para provar e registrar como o fato aconteceu. De certa
forma, Paula Gaitán age como um perito, que percorre por esses espaços em Portugal, em
busca dos últimos momentos de vida junto a Glauber. Em seu documentário Diário de Sintra,
ela indaga aos moradores da cidade se esses conhecem aquela imagem ou se já o viram
(Glauber), mostrando-lhes fotos, num gesto de busca por alguém perdido ou desaparecido. Ou
ainda, poderia ocorrer de alguém o reconhecer ou recordar de sua passagem por Portugal. O
cineasta participou da realização do documentário As armas e o povo (1974-75), filmado entre
25 de abril da Revolução dos Cravos e a celebração do primeiro de maio com o país livre da
ditadura salazarista. Nesse filme, Glauber, diante da câmera, faz entrevistas durante as
manifestações e se desloca até um bairro pobre da periferia de Lisboa, onde conversa e
provoca os moradores com questões: “Qual a sua posição política?”; “Você está disposto a
lutar pela Revolução?”; “Você está disposto a mudar de vida?”; “Você quer que a guerra
acabe ou continue?”.
112
FIGURA 1 e 2 - Mulheres do mercado vendo fotos de Glauber Rocha.
.
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Ainda sobre a relação do espaço físico, Paula Gaitán poderia se assemelhar a um flâneur 84,
percorrendo as ruas, ou pelo olhar do “sujeito-da-câmera” que observa os prédios, as casas, as
roupas estendidas nas sacadas das casas. Esse caminhar é como estar à deriva 85. Esse espaço
físico, factual, será o elemento disparador das memórias e sensações vivenciadas há anos.
FIGURA 3- Roupas estendidas na sacada em 2007.FIGURA 4 - Roupas no varal em 1981. (Super-8)
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Em alguns momentos do filme, essas sensações e fluxos de memória são representadas
pela trilha sonora. Em diversos momentos há camadas de ruídos, voz-over de Paula ou de
Glauber. Decerta forma, a diretora parece sugerir uma concretude às suas recordações
pessoais, ao colocar fotos em diferentes espaços e em caminhos por onde ela passa. Essas
fotografias, livros, objetos afetivos da memória estariam de algum modo materializando a
ausência do ex-marido Glauber Rocha. Visto que, há alguns anos, aqueles caminhos eram
84
Compreendido aqui como a entrega ao “imprevisto que surge”, ao “desconhecido que passa” (BAUDELAIRE,
1980, p.39).
85
O conceito de deriva está relacionado ao comportamento “lúdico-construtivo” e ligado ao conhecimento dos
efeitos de natureza psicogeográfica, opondo-se as noções clássicas de uma viagem e de um passeio. O espaço
seria visto como um labirinto, como um espaço a ser decifrado e descoberto pela experiência direta, é estar em
um estado de “deixar levar”. A teoria da deriva de Guy Debord foi publicada em 1958, na Revista Internacional
Situacionista.
113
feitos em companhia daquele que se foi, hoje, ela caminha por esses espaços de forma
solitária, procurando ali os vestígios que ficaram dessa passagem feita há 25 anos.
4.2.1- O espaço fílmico em Diário de Sintra
Geralmente é comum o pensamento de que o primordial no cinema é atribuído ao
tempo, pelo fato desse ser o dado mais imediato reconhecido em nosso esforço de apreensão
do filme. Segundo Pudovkin:
A ação cinematográfica não ocorre somente no tempo, mas no espaço. [...]
Igual à noção de tempo, a de espaço fílmico vincula-se também ao processo
principal do cinema, à montagem. Pela junção dos diferentes pedaços o
diretor cria um espaço à sua inteira vontade, unindo e comprimindo num
único espaço fílmico esses pedaços que já foram registrados provavelmente
em diferentes lugares do espaço real (PUDOVKIN, 1983, p.69).
A partir do espaço, é possível verificar o desenrolar de um acontecimento, e essa ação estaria
associada também ao tempo e a sua duração. Conforme Marcel Martin, em A linguagem
cinematográfica, não poderíamos falar de um espaço de filme, e sim um espaço no filme,
visto que o espaço fílmico seria uma realidade estética semelhante ao espaço representado em
uma pintura. O espaço fílmico, então, afigura-se como “um espaço vivo, figurativo,
tridimensional, dotado de temporalidade como o espaço real e que a câmera experimenta e
explora como nós o fazemos com este [...]” (MARTIN, 1990, p. 209). O espaço no cinema,
segundo Jacques Aumont, em O olho interminável: cinema e pintura,seria marcado pela
narrativa, mesmo que virtualmente, e que, o tempo na montagem cinematográfica seria
traduzido em espaço:
[...] é fácil ver que as formas temporais da imagem narrativa não existem
fora do espaço global em que a representação está em jogo. Digamos
rapidamente: por mais fragmentada, ou, ao contrário, duradoura e contínua,
que seja a obra, o filme, ela é sempre retotalizada por seu espectador, que, ao
mesmo tanto quanto na duração, a apreende na sequência, à custa da
percepção incessantemente modificada de um conjunto. Há, diante de um
filme, um jogo de substituição interminável entre o que já capitalizado como
memória, de uma maneira que é bastante natural metaforizar como espacial
[...] e o que advém de novo e procura tomar lugar nessa estrutura, nessa
memória, nesse espaço (AUMONT, 2004, p.140).
Tal ação constante de “retotalizar” o espaço global na narrativa fílmica empreendida pelo
espectador, torna-se um modo possível para compreender a estrutura de um filme. Assim,
114
poderíamos analisar que Diário de Sintra possui, resumidamente, em sua estrutura, uma ideia
de partida; chegada ao local de destino e encontro com suas memórias; retorno.
Na perspectiva do espaço fílmico criado em Diário de Sintra, podemos verificar que o espaço
é construído pelo olhar de alguém que busca algo em um determinado espaço (Sintra). O
espectador, de certa forma, também passa a assumir esse olhar de busca.O espaço torna-se
uma experienciação do “sujeito-da-câmera” que se move e que percorre diferentes lugares de
Lisboa e Sintra. Conforme Gabriela Amaral Almeida, em Estratégias sonoras em Diário de
Sintra, “o cineasta-poeta ou lírico cria espacialidades prenhes de significados, organizadas em
torno de um eixo subjetivo [...] Neste terreno, as convenções são recriadas a todo momento,
exigindo do espectador uma participação diferenciada [...].” (ALMEIDA, 2009, p.84) No
documentário analisado, o sujeito da “experenciação”
(Paula Gaitán) encontra-se
completamente envolvida pelos espaços que percorre. A sua permanência nos lugares que
visita, e como ela se aproxima de determinados lugares (como a casa em que morava, as ruas,
a praia e a região serrana) demonstram como as recordações vão surgindo em sua memória. A
memória, no caso, é representada por filmes de família, anotações, fotografias, em vozes.Ela é
reforçada pela trilha sonora e pela fragmentação das imagens.
Poderíamos ainda notar como a parte sonora (ou banda sonora) também é prenhe de
espacialidade, bem como de uma temporalidade. Mesmo onde há ausência espacial ou
imagética, é possível, pelo ambiente sonoro, criar paisagens, estado temporal e de duração.
Conforme Frederico Pessoa, na dissertação O lugar fora do lugar: topografias sonoras do
cinema documentário, afirma que:
[...] o som, na experiência cotidiana, é parte importante na definição da
espacialidade que ocupamos: localizar a posição e a distância de objetos
através do som que eles produzem ou identificar as dimensões de um
ambiente, ou sua textura, direciona a percepção e constitui o espaço
tridimensional percebido de forma diferente e complementar ao que a visão
não faz. [...] O som constrói ambientes com profundidade e camadas de
percepção dinâmicas. Dessa forma, o desenho de uma topografia do espaço
da percepção tem grande parte de suas raízes na experiência sonora.
(PESSOA, 2011, p.13).
Em Diário de Sintra, notamos como tal estratégia sonora, de se valer apenas do som cria uma
dimensão espacial e temporal. O filme começa com uma tela preta, e, durante quase dois
minutos, ouvimos apenas sons em camadas: primeiro ouvimos sons de cães granindo e latindo
(sons baixo); sons de grilos vão entrando aos poucos avolumando a densidade sonora. Essa
trilha realiza uma temporalização, os sons que remetem à noite, à escuridão. Aos poucos sons
de trovões são inseridos, também o som da chuva, do vento e do mar. A trilha cria um
115
ambiente vinculado à natureza, bem como seu ciclo, pois, após o cessar dessa tempestade,
nesse não lugar, surgem imagens de uma árvore e sons que rementem ao um amanhecer;
ouvimos sons de pássaros cantando e curso das águas doce. Tais sensações de temporização e
espacialização, criadas pelo som, remetem à passagem de um tempo denso, pesado,
tempestuoso, marcado pelo luto, pela perda de alguém querido. Essas sensações ainda
revelam como essa atmosfera densa vai se dissipando aos poucos.
Analisaremos o espaço fílmico criado em Diário de Sintra distinguindo-os entre público e
privado, para verificarmos como tais espaços potencializam a rememoração da diretora e
como ocorre a representação dos mesmos.
4.2.2 -O espaço privado em Diário de Sintra: a casa
“Evocando as lembranças da casa, acrescentamos valores de sonho; nunca somos verdadeiros
historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe a
poesia perdida”. (Gaston Bachelard, La poética de l´espace)
No capítulo anterior, tratamos a “sequência da casa” apontando como a montagem de Diário
de Sintra agencia os diferentes tempos da representação da casa onde viveram Glauber, Paula
Gaitán e seus filhos. A casa, enquanto lugar físico, factual dentro do documentário, pode ser
analisada em diferentes perspectivas. Seria possível analisá-la conforme a visão de Glauber,
de acordo com a maneira como ele via a casa e como ele é representado nesse ambiente
familiar,bem como pelo olhar de Paula Gaitán, e também podemos analisar tal espaço por si
próprio e como ele é registrado imageticamente. Tais perspectivas se entrecruzam no processo
de montagem do filme.
Conforme Bentes, Glauber menciona essa casa nas cartas que escreve para seus amigos. Em
23 de março de 1981, escreve a Cacá Diegues: “Cacá, só hoje escrevo uma carta ao Brasil.
Estou bem, numa casa ótima com Paula e as crianças, também a mãe de Paula veio passar uns
dias. [...] Aqui há condições, o ambiente é tranquilo, tenho alguns amigos [...]” (BENTES,
1997, p.682). E em outra carta (datada em 26 de abril de 1981) também ao mesmo
destinatário, comenta sobre o endereço: “PS – o cinema português está prometendo... sintome mais ou menos em casa, boa cama, bom clima, transromantismo... Se responder escreva
para o Hotel Central.” (Idem, p.693). É possível notar como Glauber via a casa como um
lugar de proteção, como local tranquilo e apropriado para criar e realizar seus roteiros. Essa
visão do lar enquanto abrigo e refúgio é trata por Bachelard em A poética do espaço:
116
[...] a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite
sonhar em paz. Somente os pensamentos e as experiências sancionam os
valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem
em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de
autovalorização. Ele desfruta diretamente seu ser. Então, os lugares onde se
viveu o devaneio se reconstituem por si mesmos num novo devaneio. É
justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como
devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis
(BACHELARD, 1989, p.23).
A casa como lugar de proteção, de recolhimento individual era um espaço importante para
Glauber Rocha, para a produção de seus textos, roteiros, para que este pudesse criar e realizar
seus trabalhos. A casa, ainda conforme Bachelard, revela um “estado de alma”. Poderíamos
assim, compreender que Glauber refugiava-se em sua casa buscando também um momento de
paz, tranquilidade e um processo de renovação. Veremos mais adiante como essa visão de
renovação estende-se também ao espaço público de Sintra.
Para Gaitán, a casa é vista (no sentido de vivenciar) e representada em seu filme.
Separar essas duas ações de ver e de registrar seria um tanto complexo, tais gestos são
diferentes; no entanto, misturam-se no filme. Há momentos em que o “sujeito-da-câmera”
percorre a casa, sendo compreendido pelo o olhar de Gaitán, e há outros em que vemos a
própria Paula observar aquele espaço, como, por exemplo, no momento em que ela olha pela
janela.
A representação dessa casa em 1981 se dá pelo registro em Super-8. Nesse registro, a casa
apresenta-se como espaço de intimidade da vida familiar. Tanto o áudio, como as imagens
revelam situações cotidianas, como por exemplo, o cuidado com os filhos. Já o material
produzido em 2007, apresenta a mesma casa, porém, desabitada, vazia, sua estrutura física
demonstra a sua situação de abandono. Tal material, por meio dos sons e imagens,
evidenciam a ausência de Glauber Rocha e a distância temporal em relação ao registro de
outrora. Um modo de analisar tais representações da casa em Diário de Sintra seria por meio
das noções 86 de imagem dialética de Walter Benjamin, e imagem crítica de Georges Didi-
86
Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos olha,vale-se da noção de imagem dialética e da fenomenologia do
ver para conceber o conceito da imagem crítica. Para tanto, ele recorre aos estudos a cerca da obra de Benjamin,
como Études sur la philosophie de Walter Benjamin, de Tiedemann, Walter Benjamin: une dialectique de
l’image, de Rainer Rochlitz, entre outros. Didi-Huberman cita Rochlitz: “Encontram-se em Benjamin pelo
menos duas concepções da imagem dialética: uma mais antiga, que a define como imagem de desejo ou de
sonho, e outra que faz dela o princípio heurístico de uma nova maneira de escrever a história, de construir sua
teoria [...] A primeira definição situa a tensão dialética no passado findo a própria imagem apresenta uma
interpenetração do antigo e do novo, do arcaico e do moderno; [...] A segunda, mais inovadora, situa a tensão no
presente do historiador: a imagem dialética é aquela imagem do passado que entra numa conjunção fulgurante e
instantânea com o presente, de tal modo que esse passado só pode ser compreendido nesse persente preciso, nem
117
Huberman. A representação da casa pelos registros realizados em 1981 pode ser
compreendida enquanto imagem dialética, visto que se trata de uma imagem do passado, um
arquivo, e como uma “imagem de memória e de crítica ao mesmo tempo, imagem de uma
novidade radical que reinventa o originário.” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.178). Desse
modo, Gaitán, ocuparia uma posição de historiadora que transforma os discursivos
circundantes acerca das “imagens de si” de Glauber Rocha.
Já a casa em 2007, assemelharia-se a um ambiente fantasmagórico, uma vez que nela
estão presentes as reminiscências do passado. Tal representação é decorrente do olhar de
Paula Gaitán sobre esse espaço enquanto “objeto exumado”, conforme Didi-Huberman. A
ação de busca de Gaitán por suas memórias nessa casa seria análoga ao trabalho de
arqueólogo que busca, em um terreno, os vestígios do tempo passado. Nesse gesto
memorativo, as significações daquele espaço alteram-se, posto como uma espécie de objeto
descoberto se torna um documento, uma origem ou uma testemunha daquele passado
recordado.
Poderíamosanalisar ainda, conforme a noção de dialética do ver proposta por Didi-Huberman,
que existiria um “espaçamento” entre o objeto olhado (a casa) e quem a olha (Paula Gaitán ou
“olhante”):
O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto
composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar
evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do
“dom visual” para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre
inquietar o ver, em seu ato, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma
operação de sujeito, portanto uma operação fendida inquieta, aberta. Entre
aquele que olha e aquilo que é olhado. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.77).
Essa operação de ver o espaço da casa em Diário de Sintra suscitaria no sujeito que
olha (no caso Gaitán), uma série de sensações nostálgicas, saltando imagens e sons de sua
memória, ou melhor, em sua ilha de edição. 87 O fluxo rompante da memória relacionada a
esse espaço fora abordado no capítulo anterior, apontando como as diferentes linhas
temporais se fundem na montagem do filme.
A terceira perspectiva de análise, a da casa enquanto objeto que se autorrepresenta por
sua própria estrutura, representa a finitude das coisas, bem como a passagem do tempo por
meio de suas marcas. Estas são decorrentes das ações da natureza, sol, chuva, frio, atuam na
antes nem depois; [...]” (ROCHLITZ apud DIDI-HUBEMAN, 1998, p. 177-8), e declara que se volta à primeira
acepção, que é vinculada ao sonho.
87
Alusão à frase de Wally Salomão.
118
superfície da matéria desgastando-a. As figuras a seguirsão frames extraídos do filme, que
demonstram as ações do tempo:
FIGURA 5 e6 - Pinturas e madeiras de portas e janelas desgastadas.
FIGURA 7 e 8 -Imagens de 2007, de Diário de Sintra (em 16mm, a imagem apresenta-se ruidosa).
Fonte: Diário de Sintra (2007).
Nestes trecho do filme, vemos imagens da pintura da janela e da porta descascando. Tanto o
concreto como a madeira encontram-se desgastados. Tais imagens evidenciam a atuação do
tempo sobre esse espaço. Nesse momento, a própria imagem parece desgastar-se, tornar-se
antiga através de efeitos de edição ou pelo uso de material fílmico desgastado (é sabido que
parte das filmagens foram feitas em 16mm). Tais texturas e ruídos no filme remetem a
imagens “antigas”. A imagem parece ganhar traços do tempo, e o tempo parece querer
contaminar a imagem — o espaço. Com isso, o espaço se transforma em tempo e vice-versa,
resultando, assim, a possibilidade de gerar uma outra dimensão: a do espaço-tempo. Essa
nova dimensão, espaço-tempo (ou poderíamos chamar de imagem-tempo) é apontada dentro
dos estudos de Deleuze em sua obra A imagem-tempo. Tal autor estabelece uma descrição
“orgânica” (descrição que supõe a independência de seu objeto) em que o imaginário aparece
de forma descontínua. Nesse caso, cada imagem desprende-se da outra, pois “as imagens
desse tipo se atualizarão na consciência, em função das necessidades do atual presente ou das
crises do real.” (DELEUZE, 1990, p.156). Essa dimensão do espaço-tempo também é
percebida no momento em que Gaitán está junto à janela. Podemos compreender a janela
como espaço-luz, como um lugar que está entre o interior e o exterior. A janela dá acesso ao
119
espaço onírico e ao espaço da memória. Ela aponta para a profundidade interior e dá acesso
ao exterior. Gaitán, na sequência da casa, parece encenar o gesto realizado por Glauber em
seu registro de 1981. Desse modo, a janela concreta torna-se abstrata e se abre para outro
tempo, como um portal da memória.
4.2.3 -O espaço público em Diário de Sintra: heterotopia da crise
O espaço geográfico de Sintra (Vila Portuguesa, Distrito de Lisboa), patrimônio
mundial da UNESCO, é conhecido por ter diversos palácios, jardins e por ser o local "onde a
terra se acaba e o mar começa”,conforme escreve Luís de Camões em Os Lusíadas, ao referirse ao Cabo Roca. No Canto III, do importante livro, Vasco da Gama termina a descrição da
geografia europeia ao rei de Melinde:
Eis aqui, quase cume da cabeça
da Europa toda, o Reino Lusitano,
onde a terra se acaba e o Mar começa
e onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
nas armas contra o torpe Mauritano,
deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente."
Esta é a ditosa pátria minha amada,
à qual se o Céu me dá que eu sem perigo
torne, com esta empresa já acabada,
acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
de Luso ou Lisa, que de Baco antigo
filhos foram, parece, ou companheiros,
e nela antão os íncolas primeiros.
(CAMÕES, Canto III estânc.17,20,21)
O Cabo da Roca, localizado na Serra de Sintra, é a parte mais ocidental da Europa
Continental e possui uma paisagem encantadora, que inspirou diversos artistas, poetas e
escritores.
120
Figura 9: Cabo da Roca
Fonte: Wikimedia.
A origem do nome, Sintra, veio de um templo dedicado à Lua, erguido pelos celtas
alguns séculos antes de Cristo. Os Celtas chamavam essa região de “Lua de Cynthia”, e,
posteriormente, quando os árabes dominaram a região, e não sabendo esses pronunciar os “s”,
começaram a chamar à região de “Chintra” ou “Zintira”. O geógrafo árabe Al-Bacr, no século
X, caracterizou da seguinte forma:
(Sintra) é uma das vilas que dependem de Lisboa no Andaluz, nas
proximidades do mar. Está permanentemente mergulhada numa bruma que
se não dissipa . [...]. A região de Sintra é uma das regiões onde as maçãs
são mais abundantes. [...] Na Serra de Sintra crescem violetas selvagens.
Da costa vizinha extrai-se âmbar excelente. (SERRÃO apud ALVES,
2004, p.13, grifos nossos).
Sintra é conhecida por ter sido o refúgio de reis, artista e religiosos. Por lá passaram
romancistas e poetas como: Eça de Queirós (1845-1900), autor de Os Maias, 88 O Primo
Basílio, entre outros romances; Ramalho Ortigão (1836-1915) escreve alguns romances em
parceria com Eça de Queirós, dentre eles se destaca O Mistério da Estrada de Sintra (1870), o
romance foi adaptado para o cinema em 2007; Ferreira de Castro (1989-1974), suas obras de
destaque são Emigrantes (1928) e A selva (1930), em Sintra existe um museu dedicado ao
88
Em Os Maias, no oitavo capítulo é repleto de descrições da paisagem de Sintra, como a seguinte passagem:
"Chegavam às primeiras casas de Sintra, havia já verduras na estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte
e fresco da serra. E a passo, o break foi penetrando sob as árvores do Ramalhão.Com a paz das grandes sombras,
envolvia-os pouco a pouco uma lenta e embaladora sussurração [sic] de ramagens e como o difuso e vago
murmúrio de águas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: através da folhagem, faiscavam
longas flechas de sol. Um ar subtil e aveludado circulava, rescendendo às verduras novas; aqui e além, nos
ramos mais sombrios, pássaros chilreavam de leve; e naquele simples bocado de estrada, todo salpicado de
manchas do sol, sentia-se já, sem se ver, a religiosa solenidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das
nascentes vivas, a tristeza que cai das penedias e o repouso fidalgo das quintas de Verão...” (QUEIRÓS, e-book,
p. 127).
121
autor com o acervo de suas obras e objetos; Henry Fielding (1707-1754), sua obra mais
conhecida é Tom Jones (1749), Fielding ao “sentir-se doente, retirou-se para uma mansão em
Sintra, que considerou o lugar mais belo da terra para escrever um novo romance”. (PAGE,
2009, p.21); O poeta inglês Lord Byron (1788-1824), no poema Childe Harold Pilgrimag
refere-se à Sintra como:“Cintra's glorious Éden”. Sintra abrigou também muitos músicos e
pintores como João Cristino da Silva (1829-1877) que pintou diversos quadros retratando a
paisagem de Sintra (FIG. 10 e 11).
FIGURA 10-João Cristino da Silva - Cinco artistas em Sintra (1855) FIGURA11 - João Cristino da Silva - Paisagem (1876)
Fonte: Wikipédia.
Dentre esses artistas e escritores que residiram em Sintra, trabalharam ou procuraram
inspiração para a criação de suas obras, o cineasta Glauber Rocha buscou no lugar, um
isolamento, um momento de repouso, de um autoexílio. Na época, sentia sua saúde um pouco
debilitada. Em 23 de março de 1981, Glauber Rocha escreve uma carta ao seu amigo Cacá
Diegues:
Cacá, Só hoje escrevo uma carta ao Brasil. Estou bem, numa casa ótima
com Paula e as crianças, também a mãe de Paula veio passar uns dias. Estou
me curando de uma sinusite que provocou uma pericardite, estive mal,
poderia morrer. [...]. Vivo um intervalo. Fim de um ciclo psíquico e
corporal. Um segundo exílio, de futuro incerto, mas caminhos mais ou
menos estruturados. (BENTES, 1997, p. 682).
Em outra carta, também a Cacá Diegues, datada de 26 de abril de 1981, Glauber escreve:
“[...] aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e
sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu
Ferreira de Castro...” (Idem, p. 690). Também no mesmo mês, Glauber dá um longo
depoimento em vídeo ao ator Patrick Bauchau, que filmava em Portugal parte de O estado das
coisas, dirigido por Wim Wenders. Nesse depoimento Glauber fala sobre a morte, e diz que
“Sintra é um belo lugar para morrer”.
122
Em determinado momento do filme (por volta do minuto 65), Paula Gaitán mostra
fotografias de Glauber às pessoas que o conhecerem ou que eram seus amigo em Portugal.
Algumas pessoas falam sobre as recordações que tinham do Glauber. Um dos senhores com
quem conversa, relata:
Ele [Glauber] escolhe Sintra que o lugar que escolhemos para refugiarmos.
Eu me exilei dentro do meu próprio país. Porque é um sítio onde eu posso
andar. Percebe que é um sítio fantástico para estar escondido. Para estar
sossegado, para não dar nas vistas. Porque tudo é exuberante em volta de
nós. É tudo mais forte que nós [...] é um retiro. (Transcrição de áudio de
Diário de Sinta, 2007)
Conforme a noção de heterotopia da crise proposta por Foucault em seu ensaio
Outros Espaços, Sintra poderia ser (na visão de Glauber e dos artistas) uma representação de
o que ele chama de hetorotopias da crise, que seriam “lugares privilegiados, ou sagrados, ou
proibidos, reservados aos indivíduos que se encontram, em relação à sociedade e ao meio
humano no interior do qual eles vivem, em estado de crise”(FOUCAULT, 2001, p.416). É
importante destacar algumas noções ou ideias correntes acerca da personalidade do artista de
um modo geral, conforme Jan Mukarovský, em A personalidade do artista, verificamos que:
A relação entre o artista e as outras pessoas transforma-se, no romantismo,
sentindo-se o artista singular, e por conseguinte diferente dos demais,
isolado das pessoas, sentindo este isolamento como um seu privilégio ou
como uma maldição. [...] tendo descoberto a sua individualidade, concentrase principalmente na sua vida interior e não naquilo que o rodeia. [...] a
maneira como o romantismo concebeu a personalidade tem constituindo sem
modificações fundamentais, até o atual momento, uma base firme da
situação do artista perante a obra e perante o mundo que o rodeia.
(MUKAROVSKÝ, 1993, p. 277-278).
Visto que a obra de arte seria algo equivalente à personalidade psíquica do criador,
surge, então, o conceito de “vivência” que seria correspondente a uma determinada fase ou
momento de sua vida. Conforme as transformações ocorridas na vida do artista, sua obra
também registraria mudanças. Desse modo, o cineasta Glauber Rocha, passando por um
processo de renovação psíquica, busca em Sintra uma espécie de retiro, para renovar as suas
criações.
Ainda a respeito da personalidade do artista, Mukarovský, observa que, em
decorrência das mudanças e transformações psíquicas ao longo da vida do artista, é natural
que surja uma espécie de “cansaço” em determinado momento da carreira artística.
Mukarovský aponta alguns indícios de tal cansaço, como:
123
[...] o apego à ‘mais modesta das artes’, semipopular e anónima, em que se
não dá ênfase à personalidade. Outro consiste na aspiração, pelo menos
teórica e programática, a que o artista se confunda com a massa – a que
todos sejam artistas. Outro consiste nas tentativas de inclusão da atividade
artística entre as demais profissões, libertas do peso da individualidade:
compara-se o artista com o artesão ou com o operário e, em certas ocasiões,
o próprio artista manifesta a sua aspiração a ser considerado como um deles.
(MUKAROVSKÝ, 1993, p. 280).
Podemos verificar que, Glauber Rocha, nos últimos momentos de sua vida demonstrou
alguns indícios desse “cansaço” apontado por Mukarovský. A exemplo disso, em Diário de
Sintra, escutamos em voz-over as seguintes palavras de Glauber: “A arquitetura não existe
sem o pedreiro. Sem o obreiro que coloca as pedras. Então da mesma forma que o operário
executa o projeto do arquiteto. O arquiteto só tem o seu projeto executado graças ao
pedreiro.” Tal fala reflete essa questão do artista como um homem em comunhão com
“massa”, como um operário. Também podemos observar que Glauber não desprezava a
comunicação de massa e com o objetivo de se fazer comunicar, realizou vários quadros no
programa televiso (na extinta TV Tupi) chamado Abertura. Em oito meses (entre fevereiro a
outubro de 1979), com 4 quadros semanais, a estimativa é que Glauber tenha aparecido mais
de 32 vezes no programa, que teve ao todo, 60 edições(Conforme site“Tempo Glauber”).
Retomando a discussão da representação espacial em Diário de Sintra, é possível
identificar, através de uma “topoanalise”, que os diferentes espaços associados ao factual e ao
imaginário memorativo se fundem tornando-se uma unidade, podendo ser “classificado”
como espaço poético, conforme os argumentos de Bachelard:
Poder-se-ia dizer que os dois espaços, o íntimo e o exterior, acabam por se
estimular incessantemente em seu crescimento. Indicar como fazem com
razão os psicólogos, o espaço vivido como um espaço afetivo não chega
entretanto à raiz dos sonhos da espacialidade. O poeta vai mais ao fundo
descobrindo com o espaço poético um espaço que não nos encerra numa
afetividade. Qualquer que seja a afetividade que dê cor a um espaço, seja ela
triste ou pesada, desde que seja expressa, poeticamente expressa, a tristeza se
tempera, o peso se alivia. O espaço poético, uma vez expresso, toma valores
de expansão. Pertence à fenomenologia do ex. (BACHELARD, 1989,
p.150).
Poderíamos, então, observar como esse espaço factual de Sintra (tanto o íntimo, como o
público), vivenciado por Paula Gaitán, torna-se em um espaço poético a partir da expressão de
seu filme. Esse imprime a ausência de Glauber naqueles espaços, a casa, as ruas, a paisagem
se expandem para além de sua concretude material, física, ganhando laços afetivos.
124
4.3 -“Mapa”: o poema e uma cartografia biográfica
Conforme dados biográficos, Glauber Rocha, desde sua infância, foi apreciador da
literatura. Ela teve grande influência em sua vida e obra. Um poema importante em sua vida
foi “Mapa”, 89 de Murilo Mendes, cujo título nomeou um grupo de jovens interessados em
artes e literatura, do qual Glauber fazia parte em Salvador, conhecido como Geração Mapa.
Gomes relata sobre esse grupo e a Revista Mapa, na biografia Glauber: esse vulcão:
Foi da junção de alunos do Central, seus colegas, com jovens de outras áreas,
conhecidos em órgãos culturais, sessões cinematográficas ou espetáculos
artísticos, que se formou a chamada Geração Mapa, batizada como mesmo
nome da revista que, a partir de 1957, se constituiria em porta-voz oficial do
grupo. O nome foi extraído de um poema de Murilo Mendes [...] Os jovens o
escolheram para dar nome também à revista não só pela beleza lírica de seu
texto e o seu conteúdo tipicamente modernista, com o qual todos se
identificavam, mas significativamente, porque o eu lírico de Murilo
proclamava – num verso que poderia ter sido a epígrafe da geração – que
inaugurava no mundo “o estado de bagunça transcendente”. (GOMES, 1997,
p.31).
E, mais adiante, continua:
O primeiro número da revista Mapa, tímido e com apenas 40 páginas, surgiu
em julho de 1957 [...] Em seu primeiro número, a revista estampava
trabalhos variados (crônica, conto, poemas e ensaios) [...] A mais importante
das colaborações, porém era do próprio Glauber, através de um ensaio
intitulado “O western – uma introdução ao estudo do gênero e do herói” [...]
O ensaio de Glauber alternava a visão poética dos filmes de cowboy com o
rigor da análise crítica partida de um estudioso do gênero [...] (Idem p.31-33)
Alguns anos depois, em 1965, Glauber Rocha participou da criação da produtora
cinematográfica Mapa Filmes, junto com outros cineastas cinema-novistas, para a produção
de seus próprios filmes. Através da Mapa Filmes Glauber produziu: Maranhão 66 (1966);
Terra em transe (1967); O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969); e coproduziu
Cabeças cortadas (1971).
Assim, o poema de Murilo Mendes é abertamente utilizado como referência pelo próprio
Glauber em suas realizações profissionais (revista, grupo e produtora). De maneira similar, é
possível utilizá-lo como uma referência para analisar Diário de Sintra, uma vez que tanto o
poema reverenciado pelo cineasta como o filme produzido por Gaitán suscitam as mesmas
89
Publicado no primeiro livro de Murilo Mendes(1901-1975), Poemas (1930), poeta modernista nascido em Juiz
de Fora e autor de diversas obras em verso e prosa, possui grande destaque dentro do panorama da Literatura
Brasileira.
125
questões: a impossibilidade de delimitação de “espaços”, revelando um estado de estar
“entre”; transitoriedade, multiplicidade; descontinuidade e caráter fragmentário. Podemos
também relacionar o anedotário acerca da vida de Glauber Rocha, onde encontramos falas,
depoimentos, críticas, entre outras referências que se vinculam a esse caráter multifacetado,
profético, “sempre em transformação”, do eu-lírico de “Mapa”.
Nos primeiros versos de “Mapa” 90 é possível observar a condição relacionada à posição
do eu-lírico:
Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação. (MENDES,
1994, p.116)
Nesse trecho, o eu-lírico parece se estabelecer dentro de uma delimitação físicoespacial, bem como sua condição de ter uma vitalidade em “um corpo desconjuntado”. As
delimitações cardeais poderiam ser compreendidas como as coordenadas de localização dadas
pelo eu-poético. Tais pontos indicam seus limites, não no sentido literal, geográfico, mas no
sentido subjetivo e individual. Vemos o caráter religioso cristão, relacionado ao Apóstolo São
Paulo, que foi o grande propagador do cristianismo. Sua formação e educação também
limitam-no e inserem-no num determinado tipo classe, e numa forma de compreender o
mundo. O norte (entendido como o referencial de uma bússola para localizar-se no espaço) é
o que norteia o poeta, são os sentidos, é o sensorial. Ao sul pelo medo, algo que poderia vir do
“subterrâneo”, algo que atravessa o poeta. Poderíamos entender esse sul dentro do parâmetro
eurocêntrico, em que o hemisfério sul seria esse local das incertezas, do medo (dado o
contexto da época em que poema foi escrito). O eu-poético busca apresentar-se entre essas
condições, entre o medo e os sentidos (ou desejos), entre a sua formação escolar e sua
formação religiosa, ou, entre a fé e a razão. A primeira analogia possível entre o eu-lírico e
Glauber, seria essa questão da formação cristã, religiosa, que se fez presente em muitos de
seus filmes. Glauber comenta sobre isso em uma entrevista:
Eu fui criado dentro da religião protestante, da seita Batista de Sion. Mas
estudei o primário em Conquista, num colégio católico oficioso, por meu pai
era ateu, e não tinha colégio protestante na cidade. Mas logo, pra fazer o
ginásio, a minha família se transferiu para Salvador [sic] (REZENDE, 1986,
p.109).
90
Ver poema em anexo.
126
Glauber fala de sua formação religiosa e escolar, em outra entrevista declara “Estudei
para ser pastor protestante até os 13 anos de idade. Sei a Bíblia de cor.” (REZENDE, 1986,
p.112). Essa formação não só se fez presente em seus filmes, roteiros e romance – Riverão
Sussuarana, sobre este livro de sua autoria, Glauber comenta: “Riverão é escrito em
linguagem bíblica e em linguagem de sertão” (Idem, p.113) – como também em sua vida,
visto que relacionava fatos de sua vida com passagens bíblicas. Um exemplo dessas analogias
está presente em uma entrevista publicada postumamente pelo “Jornal da Jornada” em
setembro de 1981:
Minha irmã morreu porque queriam me matar. Minha irmã foi como
Abigail, irmã do apóstolo Estevão, morta, mas eu já estou ligado com o
apóstolo Paulo e já sei exatamente que a minha mensagem é uma mensagem
universal. Mesmo que me matem, hoje a minha mensagem já está dada, de
forma que meus filmes estão aí. (REZENDE, 1986, p.110-11)
Esta relação que Glauber faz de si com o apóstolo Paulo (assim como o eu-poético),
pode ser compreendida no sentido de propagar uma “mensagem universal”, a qual se referia
ao tratar em seus trabalhos as condições de miséria dos povos dos países subdesenvolvidos,
colonizados outrora. Além dos aspectos econômico-sociais presentes em seus filmes, seu
objetivo era retratar os aspectos primários da cultura popular brasileira, não “a arte populista
que o burguês dá ao povo” (ROCHA, 2004, p.155). Neste sentido, Glauber, em seu manifesto
Estética da fome (escrito em 1965), empreende uma defesa a cerca dos valores estéticos do
movimento cinema-novista, que se relacionavam às questões político-sociais latino-americano
naquele contexto:
Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não
entende. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro
é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e,
sobretudo, não se sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós - que fizemos
estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem
sempre a razão falou mais alto – (...). Assim, somente uma cultura da fome,
mirando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais
nobre manifestação cultural da fome é a violência. (ROCHA, 2004, p.66)
Seus filmes tinham também uma intenção oswaldiana de dar nova interpretação sobre o
Brasil, tanto culturalmente como politicamente, e buscando uma emancipação estética para
além da visão eurocêntrica. Sua defesa do Cinema Novo não era apenas pelas circunstancias
em que a cultura brasileira vivenciava naquele contexto, mas também, para destacar tal
movimento no panorama do cinema moderno a nível mundial. Glauber em seus filmes
realizava esquematizações alegóricas criando um microcosmo da sociedade brasileira. Tais
127
alegorias eram constantes em seus trabalhos, representando o Estado, o poder, a pobreza, a
classe intelectual, bem como os arquétipos religiosos. Em Terra em Transe (1967), é possível
notar que essas alegorias demonstravam as contradições e ambivalências de um país tropical
ficcional, chamado Eldorado. Através de uma encenação empostada, os personagens
alegóricos representavam os desconfortos e delírios das diferentes esferas sociais correlatas
num território comum. Neste filme a famosa cena do comício de Viera (político populista
candidato a governador), filmada no Parque Lage, engloba diversas alegorias em uma
situação carnavalesca, estando presentes: a Igreja, a burguesia, a pobreza, a cultura popular, o
poder político, os intelectuais, convivendo entre elas como em uma grande festa. Tal
sequência de Terra em Transe, de algum modo se associa aos seguintes versos do poema
“Mapa”:“alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal” e “Onde
esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça”. O filme se trata de um flashback do
poeta, jornalista e conselheiro político Paulo Martins, agonizando antes da morte, revendo sua
trajetória política e de Eldorado (país ficcional). Desiludido com populismo, que aceita o
golpe sem resistência, e com a ascensão do político conservador Diaz, Paulo lança-se em um
gesto suicida ao empreender um ato isolado de resistência, ultrapassando uma barreira militar
com seu carro, é baleado em seu trajeto. Diante do delírio de morte, o mundo parece sambar
na cabeça de Paulo, várias imagens saltam em sua memória. Vemos isso tanto na montagem
do filme, estruturada de forma descompassada, bem como no fluxo delirante do poeta Paulo
Martins, refletindo também a conflituosa relação entre política, ética e estética. Em
determinado momento do filme, Sara diz seguinte frase consoladora ao poeta Paulo: “a
política e a poesia são demais para um só homem”. O filme tenta a todo o momento alinhar a
política à estética e vice-versa. Um exemplo que evidência isso é a seguinte parte do diálogo
entre Sara e Paulo no início filme. Sara o indaga diante de sue gesto de resistência: “O que
prova a sua morte?”, e Paulo responde: “O triunfo da Beleza e da Justiça”. Esse pensamento
parece similar ao eu-poético no verso “a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas”.
Ainda é possível identificar também a relação entre o poeta Paulo e o apóstolo Paulo que
entrega a sua vida a uma causa, a algo em que acredita.
No verso “Me colaram no tempo” percebemos que o tempo não é delimitado,
demarcado como fora tratado o espaço interior do poeta, o tempo é algo aberto. Não há um
índice de qual tempo seria esse. Tempo aqui se faz como uma noção de totalidade ou de uma
não divisão, como algo fluído. Essa fluidez temporal também é percebida em Diário de
Sintra, na composição do filme vemos como os diferentes planos-temporais se emaranham.
128
O pronome oblíquo “me” se faz presente em diversos momentos do poema demonstra
o caráter de autorrepresentação que é realizado no eu-poético. Tal pronome aparece indicando
como o poeta está em uma posição de estar à deriva, de “se deixar leva”, em que é ordenado
por algo exterior: “me colaram”, “me pregaram”, “me puseram”, “me chamam”. O eu-lírico
narra sua condição de fluidez, em que se vê numa nebulosa rodando, estando aqui e ali,
desarticulado, contraditório em que gosta de todos e ao mesmo tempo não gosta de ninguém.
Esse estado fluído, desarticulado, não permite hierarquias, ordens e sequências. Tal estado
revela também o caráter multifacetado e múltiplo do poeta, que está “sempre em
transformação.” Tal como Glauber Rocha que afirmava: “Sou um artista, e portanto meu
processo é um processo entre o fluxo inconsciente e minha razão é dialética. Assim, posso
mudar a qualquer momento.” (REZENDE, 1986, p.111) É possível notar em diversas
entrevistas, declarações e críticas esse caráter multifacetado de Rocha, ele atuava em diversas
instâncias culturais, como cineasta, roteirista, crítico, jornalista, escritor, produtor, entre
outros. Sobre sua atuação múltipla declara:
Tenho muitos projetos, porém acho que estou sofrendo transformações. Na
Bahia, já tenho recebido algumas mensagens do inconsciente, que alteram
meus projetos racionais. Do ponto de vista da tradição racional, eu sou
socialmente um cineasta, obrigado por isto a fazer filmes. Mas eu recuso este
compromisso com a especialidade intelectual, porque a vida está na
multiplicidade contraditória e infinita das práticas (REZENDE, 1986, p.107).
A “multiplicidade contraditória” e o “estado de bagunça transcendente” retratam a
imagem ou a personalidade glauberiana, “mito, em suas múltiplas faces, oferece fragmentos
para todo tipo de citação” (XAVIER, In: ROCHA, 2004, p.27). Glauber gostava de provocar,
de desorganizar e organizar, de confundir e esclarecer, apresentando em sua personalidade a
ambivalência tão presente nos personagens de seus filmes. Sempre em movimento e sempre
em produção.
O eu-lírico se relaciona com as propriedades do ar: “estou no ar”, “andarei no ar”,
“batalho com os espíritos do ar’, “sou um fluído”, “abraçarei as almas no ar”. Essa relação do
eu-poético com o ar remete à noção de mobilidade. De acordo com Bachelard, em O ar e os
sonhos, a verdadeira mobilidade seria aquela que é imaginada. Para o filósofo, a “verdadeira
viagem da imaginação é a viagem ao país do imaginário, no próprio domínio do imaginário”
(BACHELARD, 2001, p.5). A mobilidade no mundo factual é mais rígida, fixa. Assim, numa
viagem realizada em uma estrada ou pelos trilhos de um trem os trajetos já são determinados,
há poucas alternativas de desvios. Já uma viagem ao imaginário ou às reminiscências do
129
passado é livremente remodelada, conforme visto no gesto empreendido por Gaitán em seu
filme.
A autorrepresentação está presente tanto no filmeDiário de Sintra, como no poema “Mapa”,
pois o eu-lírico se autodescreve e Glauber realiza o mesmo processo nas gravações presentes
em Diário de Sintra. Ainda cabe salientar que o tanto o poema como o filme se inscrevem
nessa discussão a respeito das dificuldades em se estabelecer os limites internos de um mesmo
objeto. Eles remetem à impossibilidade da representação das fronteiras, dos limites, dos
fragmentos de uma unidade que é constantemente modificada.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Quando iniciei a presente pesquisa tinha como objetivo dar continuidade aos estudos
realizados no trabalho de monografia, para a conclusão do bacharelado em Letras (UFMG),
onde investigava o processo de autoficcionalização do sujeito (diretor)/ personagem/
observador em vídeos autorreferenciais. Para o projeto de mestrado buscava trabalhar também
com filmes autorreferenciais (recentes) que se dedicavam em abordar uma vivência pessoal
do diretor e como esse transcreveria suas memórias e experiências para a linguagem
cinematográfica. Alguns documentários com tal perspectiva me chamaram a atenção, como
Les Plages d'Agnès (2008), de Agnès Varda, Diário de uma busca (2010), de Flávia Castro,
Um passaporte húngaro (2003), de Sandra Kogut, e documentário de Paula Gaitán,Diário de
Sintra(2007), havia me chamado muito a atenção quando o vi pela primeira vez, sua
linguagem poética me instigou pesquisa-lo mais a fundo. O filme foge aos recursos comuns
encontrados nos documentários (no entanto, existe um momento do filme em que a diretora
realiza entrevistas e tal parte destoa do restante do filme). Diário de Sintra possui estratégias e
características presentes em trabalhos de videoarte. 91A diretora apresenta em sua filmografia
obras de videoarte, ou caracterizadas como experimentais. Minha motivação em estudar tal
filme se deu pela minha familiaridade com essa linguagem do audiovisual, pois desenvolvo
trabalhos de videoarte e documentários. Desse modo, a presente pesquisa, também foi muito
importante para meu processo de formação tanto do olhar enquanto videoartista e
documentarista, quanto no olhar voltado para a pesquisa acadêmica.
O processo de pesquisa deste trabalho tornou-se muito intenso, pois o filme Gaitán não
abordava apenas sua memória individual, o filme dedica-se a um momento pontual em sua
vida, mas o personagem que fazia parte desse universo pessoal da diretora era nada menos
que um dos grandes diretores do cinema brasileiro: Glauber Rocha. Meus conhecimentos
iniciais sobre o diretor eram rasos, conhecia alguns de seus filmes e alguns documentários
sobre sua vida e obra. E logo no principio desta pesquisa percebi uma grande quantidade de
materiais produzidos acerca de Glauber. Assim, minha tarefa inicial foi percorrer esse vasto
material bibliográfico que envolvia vida e obra do cineasta baiano para compreender o motivo
de seu autoexílio e o processo de construção de uma imagem mitificante do mesmo.
91
Conforme a Enciclopédia de Artes Visuais do Itaú Cultural, poderíamos sintetizar uma noção de videoarte no
seguinte trecho: “A videoarte parte da ideia de espaço como campo perceptivo, defendida pelo minimalismo
quando enfatiza o ponto de vista do observador como fundamental para a apreensão e produção da obra”.
Disponível
em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=
3854> Acesso em 15 dez. 2013.
131
Entretanto, a pesquisa sofreu algumas modificações ao longo de seu percurso no sentido de
circunscrever o documentário Diário de Sintra dentro de questões mais pertinentes para
análise do filme. Inicialmente, pretendíamos verificar como a “imagem de si” de Glauber
Rocha era trabalhada no filme de Gaitán, e se a diretora renovava ou corroborava com a
imagem mitificada do cineasta. Porém, percebemos que ter como foco principal a análise da
imagem de Glauber Rocha limitaria e reduziria toda complexidade tanto do filme de Gaitán,
como a do cineasta, que em vários momentos se manifestou contra essa criação de uma
imagem mitificante de sua pessoa. Conforme suas próprias palavras: “Eu não estou a fim de
ser mitificado, porque no fundo os meus filmes e as minhas críticas de cinema compõem um
discurso filosófico anti-mitificante [sic]” (REZENDE, 1986, p.106).Dessa forma, o presente
estudo se debruçou em cartografar diferentes biografemas de Glauber para ter a percepção
dessa multiplicidade em torno de sua personalidade. A partir dessa alteração no foco do
trabalho, fez-se necessária uma pesquisa voltada para questões referentes à memória e sua
relação com o espaço. Os diferentes estudos sobre memória, arquivo e espaço trazem noções
que se relacionam na construção do documentário Diário de Sintra. Assim, foi possível
também elaborar um modo de analisar o corpus da pesquisa. Percorremos os planos temporais
e destacamos como estes se relacionam, originando uma estrutura bem consolidada. O
emprego de diferentes registrosparece quase imperceptível após a montagem, uma
composição fluida em que um tempo ressoa no outro.
Verificamos comoo discurso autobiográfico se faz presente em diferentes linguagens
artísticas, enfatizamos a autorrepresentação no cinema, mais especificamente no gênero
documentário. Através de uma breve genealogia do gênero autobiográfico, foi possível
verificar como questões relativas à construção e à recepção se alteram ou ganham novas
formas de expressão. Acompanhamos como as ferramentas de comunicação virtual da
atualidade figuram um novo modo das “escritas de si”. E, os documentários autorreferenciais
também se configuram como uma extensão dos “cuidados de si”.Vimos que o foco de Gaitán
não era problematizar as questões que levaram Glauber Rocha a realizar o autoexílio, seu
filme debruça-se sobre a ausência do marido e sobre ogesto reminiscente, enfatizando em
suanarrativa mais o discurso poético. Nesta lógica, vimos que a diretora trata a questão da
morte de modo lírico, não há uma dramatização ou apelo para apresentar a perda de seu
companheiro. A morte é representada de modo sutil, como uma passagem entre planos
simbólicos.
Conforme observamos, o documentário, como gênero híbrido, não apresenta um método de
análise estabelecido; acentua, menos ainda, o recente modo performativo. Os parâmetros de
132
análise variam conforme o objeto, a técnica e os diferentes elementos que envolvem o
processo de construção e produção do documentário. As alterações dentro do campo do
documentário surgem em decorrência de diferentes fatores como: a técnica (modo de captação
e finalização das imagens em movimento);as políticas de apoio e incentivo à produção
cultural;o acesso (em relação aos custos) aos meios de produção e equipamentos; além da
criação entre amigos ou coletivos. Vimos que os meios de sociabilidade, atrelados ao desejo
de autoexposição, influenciam na produção dos filmes autorreferenciais. Podemos dizer que
esses documentários são como um retrato dos tempos atuais, em que existe uma
supervalorização do “eu”, do individual? Há muitas questões que não focalizamos no
trabalho, mas que seriam interessantes para um estudo posterior.
Através desta pesquisa, acreditamos que avançamos no que se refere ao método de se analisar
documentários que tenham como interesse trazer ao primeiro plano a reconstrução/reinvenção
das próprias memórias. Talvez seja possível aplicar tal lógica cartográfica e topográfica para
se analisar outros filmes que possuem uma estrutura análoga à Diário de Sintra, como
documentários que apresentem essa busca ao passado valendo-se do espaço e materiais de
arquivos para a transcrição das reminiscências para a linguagem fílmica.
133
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AS ARMAS E O POVO. Direção: Coletiva, incluindo Glauber Rocha. Portugal, 1975. (78
min.), son., color.
DIÁRIO DE SINTRA. Direção: Paula Gaitán. Brasil, 2007. (90 min.), son., color.
GLAUBER O FILME, LABIRINTO DO BRASIL. Direção Sílvio Tendler. Brasil, 2003 (80
min,), son., color.
ELENA. Direção: Petra Costa. Brasil, 2012. (82 min.), son., color.
TERRA EM TRANSE. Direção: Glauber Rocha. Brasil. 1967. (111min.), son., P&B.
142
ANEXOS
143
ANEXO 2 – DOCUMENTÁRIOS ACERCA DE GLAUBER ROCHA
ABECEDÁRIO
Direção: Manuel Carvalheiro. 35mm, 15min., 1981.
Sinopse
Realizado em Paris a partir de depoimentos e reforçado por letreiros, o vídeo experimental,
feito pelo diretor português, mostra um Glauber Rocha movimentando-se com dificuldade e
respondendo às perguntas de forma lacônica, amarga: — Não precisa fazer filmes, está tudo
nos livros. Eu só aceitei fazer este filme porque você é meu amigo. Sobre Eisenstein: — Se
aburguesou, ficou tentado por Hollywood. De repente, pega uma bisnaga na mesa e fala que
um camponês brasileiro não come nem aquilo. Sobre o psicanalista Jacques Lacan: —
Qualquer pai-de-santo de terreiro no Brasil sabe mais do inconsciente do que Lacan. Irônico:
Quem saca estas coisas de cinema é o Godard - que é suíço, entendeu?
ABRY
Direção: Joel Pizzini e Paloma Rocha.35mm, COR, 30min12seg, 2003.
Sinopse
Relatos de Dona Lúcia, mãe do cineasta Glauber Rocha. Abry é um mergulho poético no
universo fabulador de Lúcia, que reconstrói sua trajetória no cinema brasileiro através de
sons, imagens e personagens com quem conviveu de perto. A internação em São Paulo, o
testemunho emocionado e a entrevista com Pierre Verger. Dona Lúcia fala sobre os esforços
empreendidos para preservar a produção intelectual do filho.
ALVORADA SEGUNDO KRYSTO
Direção: Paloma Rocha e Raul Soares
Sinopse
Realizado a partir de um poema do pai da diretora, é um vídeo modesto e próximo do
documentário televisivo. No momento marcante dona Lúcia Rocha lê com força serena e
maternal o poema que fez para a filha (Necy, oh, Anecy, me desculpe me perdoe/mas eu
nunca te conheci. Gravado no Rio e em Brasília, o vídeo tem trechos de Terra em transe e A
idade da terra e depoimentos de pessoas amigas (Caetano Veloso, Paulo Saraceni, Leon
Hirszman, Mário Carneiro, Oliveira Bastos, Zelito Vianna). A leitura dos poemas e frases
glauberianas ficou dividida entre intérpretes glauberianos como Geraldo Del Rey, Norma
Benguell e Helena Ignez.
A MÃE
Direção: Fernando Belens e Umbelino Brasil.1998.
144
Sinopse
Curta-metragem com depoimentos bem conduzidos de dona Lúcia, Wally Salomão e Luiz
Carlos Barreto entre outros. O curta não esquece de Vitória da Conquista onde está o enorme
esqueleto de uma construção que homenagearia Glauber Rocha, obra completamente
abandonada, cercada de urubus. O monumento tornou-se, na visão de dona Lúcia, símbolo da
indiferença do país em relação a um de seus maiores criadores. Dona Lúcia também voltou à
casa
onde
viveu
seus
dias
mais
felizes.
Os autores pretendem remonta-lo num longa-metragem ou pelo menos num especial de 52
minutos para a tevê. Nessa montagem, Anecyr ganhará mais espaço. Há uma cena realizada
em Milagres, que é maravilhosa. Um morador que acompanhou as filmagens de O dragão da
maldade contra o santo guerreiro, reconhece dona Lúcia: — A senhora é mãe do Glauber! Me
lembro bem, pois a senhora vinha trazer comida pra ele - e traz, para que dona Lúcia conheça,
o neto dele, batizado com o nome de Glauber. Aí ele diz: — Ô Glauber, vem cá! O menino
vem e conta que ganhou o nome por escolha do avô, em homenagem ao cineasta Glauber
Rocha.
À MEIA-NOITE COM GLAUBER
Direção: Ivan Cardoso.35mm, COR. 16 min., 1997.
Sinopse
Entrevista com Glauber Rocha no final dos anos 60, mesclada com cenas da filmografia do
cineasta e imagens de Hélio Oiticica e José Mojica Marins.
ANABAZYS
Direção: Paloma Rocha e Joel Pizzini. 35mm, COR, 90min.,2007.
Sinopse
Recriação baseada na memória em torno da gênese e produção de A Idade da Terra (1980),
filme-testamento de Glauber Rocha. Um ensaio reflexivo sobre o método de um artista no
apogeu de sua expressão 'polytico-poétyka'. Narrado em primeira pessoa pelas 'vozes' de
Glauber e por depoimentos da equipe técnica, elenco e colaboradores, o filme investiga as
motivações estéticas e a luta incansável do cineasta pela liberdade no país, examinando ainda
as raízes dos preconceitos forjados historicamente para excluir o filme do circuito
cinematográfico.
A VOZ DO MORTO
Direção: Vítor Ângelo e Sérgio Zeigler. 35mm. 13 minutos, 1993.
Sinopse
Vida e obra de Glauber Rocha.
CINEMA NOVO
Direção: Orlando Senna.35mm, COReBP, 10min, 1997.
Sinopse
"Visão do Cinema Novo a partir de cenas emblemáticas do movimento e de um depoimento
inédito de Glauber Rocha, realizado em 1979. Episódio do longa-metragem Enredando
sombras, filme feito para a comemoração dos 100 anos do cinema na América Latina".
145
DE GLAUBER PARA JIRGES
Direção:André Ristum. 35mm, COR, 18min, 2005
Sinopse
"Através de trechos de cartas enviadas por Glauber Rocha ao seu amigo e colaborador Jirges
Ristum, na metade dos efervescentes anos 70, descobrimos um pouco da relação de Glauber
com a Itália e com o cinema, bem como sua perspectiva sobre as condições sócio-políticoculturais brasileiras naquela época. O filme também traz um pouco da intimidade de Glauber
contida nas cartas ao amigo, que é reconstruída mediante escritos, filmes Super 8 antigos e
poesias. Uma homenagem do diretor a Glauber Rocha e a seu pai, Jirges, ambos falecidos nos
primeiros anos da década de oitenta. Um retrato intenso do Brasil de trinta anos atrás e de
hoje em dia." (FBR/38)
DEPOIS DO TRANSE
Direção: Joel Pizzini e Paloma Rocha. 35mm, COR, 114min.2003.
Sinopse
Documentário produzido especialmente para o relançamento do filme Terra em Transe
restaurado. Para sua realização foram incorporados na montagem entrevista exclusivamente
produzidas com a equipe e elenco do filme, críticos e jornalistas, e um vasto material de acervo
sonoro em fitas K7 (entrevistas com Glauber Rocha e o debate no MIS em 68) e sobras de
montagem.
GLAUBER O FILME, LABIRINTO DO BRASIL
Direção: SilvioTendler.35mm, COR, 75min, 2002.
Sinopse
"Registro dos funerais do cineasta baiano, com imagens nunca antes vistas." (ALSN/DFB-LM)
"... sobre a vida e a morte de Glauber, um dos brasileiros que mais pensou e amou o Brasil. O
velório, o enterro, e a dor unidos a depoimentos de quem acompanhou, viveu, admirou, foi
amigo e lutou junto com esse mito do cinema nacional. O filme é uma homenagem a este artista
revolucionário e solitário." (Ancine/FTR)
GLAUBER ROCHA QUANDO O CINEMA VIROU SAMBA
Direção: José Roberto Torero e Erica Bauer.
Sinopse
O vídeo didático produzido pela secretaria da Educação de Minas, utiliza material do Tempo
Glauber. Os 35 minutos trazem depoimentos fluentes de dona Lúcia Rocha, do escritor Jorge
Amado, do cineasta Nelson Pereira dos Santos, do ator Othon Bastos e dos compositores
Sérgio Ricardo, Gilberto Gil e Caetano Veloso, além de uma entrevista regravada com o
próprio homenageado.
146
GLAUBER ROCHA: RETRATO DA TERRA
Direção: Joel Pizzini, 51 min., 2004.
Sinopse
Visão íntima com aspecto visual limitado. O documentário monta um panorama sobre a
carreira do aclamado cineasta. Através de depoimentos de cineastas, amigos e do próprio
Glauber, apresentam-se temas como a experiência do Cinema Novo, a visão política do
cineasta e as peculiaridades de suas obras, no Brasil e no exterior.
L´HOMME AUX CHEVEUX BLEUS
(O homem de cabelos azuis)
Direção: Sylvie Pierre e Georges Ulmann. 51 min., 1989.
Sinopse
Reúne diversos depoimentos de amigos do cineasta, Louis Marcorelles, Juliet Berto, Christina
Altan, Pascal Bonitzer, Jaques Aumont, Jean Narboni e Sylvie Pierre. “A última lembrança
que guardo dele é a de sua silhueta pesada sumindo na escuridão da escada dos Cahiers.”
(Jean Narboni).
QUE VIVA GLAUBER!
Direção: Aurélio Michiles.35mm, COReBP, 100min, 1991.
Sinopse
"Documentário produzido pela TV Cultura, com narração de Rodrigo Santiago, sobre e vida e
obra de Glauber Rocha, por meio de depoimentos de seus amigos, como Arnaldo Jabor, Cacá
Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Walter Clark, Zuenir Ventura, além de trechos de seus
filmes, incluindo o raro AMAZONAS AMAZONAS." (ALSN/DFB-LM)
Comentários: Citação do inconcluso Que viva México! De Eisenstein por quem Glauber
Rocha nutria imensa admiração. Aliás, a vinheta do documentário sobrepõe a imagem de
Glauber Rocha a foto clássica de Serguei Eisenstein. Que viva Glauber! Analisa a vida e a
obra do cineasta baiano através de importantes depoimentos como o da arquiteta Lina Bo
Bardi, dos cineastas Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues e Arnaldo Jabor, do filósofo
Sérgio Paulo Rouanet, do antropólogo e escritor Darcy Ribeiro, do produtor de tevê Walter
Clark e do jornalista e biógrafo de Glauber Rocha, Zuenir Ventura. O vídeo funde
depoimentos
do
cineasta
com
a
história
do
país.
NO TEMPO DE GLAUBER
Direção: Roque Araújo, 1986.
Sinopse
"No tempo de Glauber", é a reconstrução de um filme inacabado de Glauber Rocha, "Krysto
no terceiro mundo", o segundo capítulo de "A idade da terra". Roque Araújo deu continuidade
ao trabalho do cineasta, montando as imagens já filmadas da peregrinação de Cristo pelo
mundo, dos onze anos aos trinta e três anos, conforme a idéia inicial dele. Nas cenas filmadas
de "Krysto no terceiro mundo" aparecem os atores diletos de Glauber Rocha, Maurício do
147
Valle, interpretando John Brahms; Antônio Pitanga, no papel de Deus Negro; Jece Valadão,
como Cristo índio, Norma Benguell, como Santa Madalena; João Ubaldo Ribeiro, como o
Apóstolo; Tarcísio Meira, no papel de Cristo Imperador e Paula Gaetan, sua última mulher,
como
a
Virgem
Maria.
Roque Araújo mostra Glauber Rocha em plena atividade nos sets de filmagens: seu conflito
com o diretor do Museu de Arte Sacra da Bahia, Valetim Calderõn; que proibiu as filmagens
de "Krysto no terceiro mundo" no Museu, cenas de Glauber Rocha e Jece Valadão sambando
em plena rua durante a festa da Boa Viagem, em Salvador, e a interdição das filmagens da
procissão de Conceição da Praia pela Igreja Católica. Todas as explosões temperamentais do
irrequieto diretor. Além das imagens, a voz de Glauber Rocha faz-se presente todo o tempo,
seja recitando poemas, falando sobre política e sincretismo religioso, ou declamando textos de
seus personagens em diversos filmes não realizados: Alexandre, o Grande; Napoleão
Bonaparte; Hitler, e Júlio César. O filme tem ainda depoimento do jornalista e comentarista
político Carlos Castello Branco (trechos inéditos que não aparecem em A idade da terra sobre
os
governos
pós-64
e
uma
apresentação
de
atores
de
Brasília).
REDESCOBRINDO O BRASIL
GLAUBER ROCHA
Direção: Maria Maia
Documentário de uma hora da série Redescobrindo o Brasil, exibida pela TV Senado. Os
depoimentos de Ferreira Gullar, dona Lúcia Rocha, do produtor Luis Carlos Barreto, dão fio a
uma epifania burocrática. Há também depoimentos do diretor Vladimir Carvalho, do senador
José Sarney, dos jornalistas Fernando Lemos e Severino Francisco, os mais lúcidos; da
historiadora Berê Bahia, do ator Othon Bastos. Aparecem excelentes imagens históricas e
cenas dos curtas Amazonas, Amazonas, Maranhão 66 e 1968, uma pequena imprecisão, Paulo
Francis, não fez parte dos oito da glória na manifestação contra o Ato Institucional N.º 2. A
voz em off de Ferreira Gullar, declamando seu poema O morto, encerra o documentário.
ROCHA QUE VOA
Direção: Eryk Rocha. 35mm, COR, 94min, 2002.
Sinopse
"Filme-ensaio sobre o papel dos intelectuais na América Latina. O exílio em Cuba, em 1971 a
1972, um dos períodos menos conhecidos da vida de Glauber, coincide com um momento de
grande euforia e discussão em torno do papel das artes na revolução social e política dos
países da América Latina e do Terceiro Mundo. A voz de Glauber, numa velha entrevista, é o
fio condutor desta reconstituição do diálogo entre os dois principais movimentos
cinematográficos latino-americanos do final dos anos 60: o Cinema Novo brasileiro e o Cine
Revolucionário cubano." (CINUSP Paulo Emílio/2002)
SINTRA IS A BEAUTIFUL PLACE TO DIE
Direção: Patrick Bauchau.
Vídeo-documentário caseiro, 90 minutos com as últimas imagens de Glauber Rocha feito em
abril ou maio de 1981, durante um almoço na sua casa. Previsto para ser incluído no filme, O
estado das coisas, de Wim Wenders, o vídeo acabou rejeitado na montagem. Apesar da
precariedade técnica, o ator belga Patrick Bauchau argumentou que tratava-se de um
148
documentário histórico ao tentar vendê-lo inicialmente por quatro mil dólares a Antônio
D’Avilla, representante da Embrafilme em Paris, que regateou durante um ano, até fechar a
transação
por
1.500
dólares.
Agora podemos conversar, podemos falar da morte. Diz Glauber no primeiro plano. (...) Sou
suficientemente forte para sair dessa. Só tenho medo da morte estúpida, por exemplo, morrer
assassinado. Mas morrer num processo revolucionário não é problema.(...) Meu psicanalista
sempre fala que a minha doença não é física, mas sim uma multiplicidade de desejos. Meu
corpo é partido como a Guernica de Picasso (...) O marxismo é uma filosofia anarquista, pois
vem de uma sociedade sem Estado e sem classes. Eu sou anarquista e não monarquista, sou
partidário de Orfeu e não de Narciso. Narciso é o fetiche da extrema direita. A vaidade é a
grande razão de todos os crimes, de toda a brutalidade humana e da frivolidade. (...) Stálin foi
genial. Foi justo. Ser contra Stálin é bobo. Toda a direita intelectual que se passa para a
esquerda detesta Stálin. (...) Eu não gosto mais de movies. I move but I don’t like movies.
Glauber Rocha que aparece com um abajur o tempo todo além de afirmar Sintra is a beautiful
place to die, para o visor da câmera, ao final segura a lâmpada do abajur e diz:
— Nick Ray is a gay decadent... Welles is the only genius!
VERTIGENS: DEUS E O DIABO NO MEIO DO REDEMOINHO
Direção: Lucila Meirelles
Sinopse
Vídeo de seis minutos com fragmentos da obra de Glauber Rocha dialogando com paisagens
vertiginosas do sertão de Guimarães Rosa.
Referências:
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Do próprio bolso. Disponível em:
<http://www.dopropriobolso.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1166:
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149
Anexo 3
MAPA
Murilo Mendes
Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando sou um fluído,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregaram numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamento,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.
Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.
Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens "práticos". ..
150
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito.
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.
(MENDES, 1994, p.116-7)
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