Políticas Públicas em Educação: Lições do Caso Sul-Coreano.
Autoria: Oswaldo Gonçalves Junior, Lara Elena Ramos Simielli
RESUMO
A qualidade, a universalização do acesso e o financiamento do ensino são temas de grande
relevância no debate sobre as políticas públicas da educação. Sob essa perspectiva, ainda que
as diferenças entre realidades desaconselhem a eleição de “modelos” a serem seguidos, não
deixa de ser importante analisar outros sistemas educacionais a fim de realçar aspectos
relevantes e comuns a muitos países. Nesse sentido, a Coréia do Sul, freqüentemente citada
como um exemplo de desempenho educacional bem sucedido, é um referencial que apresenta
grande potencial comparativo frente à realidade brasileira, considerando-se as semelhanças
das trajetórias de ambos os países nos últimos 50 anos. O presente artigo tem como
preocupação central enfocar possíveis lições que se pode extrair do sistema educacional
coreano e que iluminem a tomada de decisões neste campo.
INTRODUÇÃO
O recente lançamento do Plano para o Desenvolvimento da Educação (PDE) pelo governo
Lula, em maço de 2007, chamou mais uma vez a atenção para o debate sobre a qualidade da
educação no Brasil. Resultados de avaliações nacionais, como o SAEB e a Prova Brasil
evidenciam também o fato de que a qualidade do nosso ensino está bastante aquém do
desejado.
No plano internacional, o resultado de avaliações como o PISA - Programme for
International Student Assessment - torna as comparações com outros países inevitáveis. Ainda
que as diferenças entre realidades desaconselhem a eleição de “modelos” a serem seguidos,
não deixa de ser importante analisar outros sistemas educacionais a fim de realçar aspectos
relevantes e comuns a muitos países. Nesse sentido, a Coréia do Sul, freqüentemente citada
como um exemplo de desempenho educacional bem sucedido, é um referencial que apresenta
grande potencial comparativo frente à nossa realidade, considerando-se as semelhanças das
trajetórias de ambos os países nos últimos 50 anos.
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, Coréia do Sul e Brasil atravessaram
transições estruturais semelhantes nas suas economias e instituições, entre elas a transição de
sociedades rurais para sociedades industriais, a substituição de importações pelo foco
exportador e a passagem de regimes ditatoriais para democracias (TERRA e WEISS, 2002).
Não obstante, apesar das semelhanças, a Coréia do Sul atingiu um nível de desenvolvimento
social e econômico muito superior ao Brasil.
Neste artigo, objetiva-se analisar o desempenho do sistema de ensino sul-coreano, tendo
como pano de fundo o sistema brasileiro, evidenciando em maior ou menor medida
semelhanças e diferenças entre eles em três pontos principais: financiamento, acesso e
qualidade. Em última instância, pretende-se compreender algumas lições possíveis de serem
extraídas do modelo educacional sul-coreano, que auxiliem na tomada de decisões quanto aos
caminhos a serem seguidos pelo Brasil.
1
FINANCIAMENTO
Em 2002, os gastos públicos em educação no Brasil foram de 4,2% do Produto Interno
Bruto, a mesma porcentagem investida pelo governo da Coréia do Sul (UNDP, 2005).
Entretanto, os indicadores educacionais de ambos os países estão bastante distantes.
Diversas razões podem ser levantadas para tal discrepância nos indicadores educacionais.
Apontaremos duas delas: em primeiro lugar, é preciso analisar os investimentos privados
destinados à educação, importantes principalmente no contexto coreano por elevarem
significativamente o total investido; em segundo lugar, é preciso entender a destinação destes
gastos a cada um dos níveis de ensino, ou seja, quanto do total de recursos vai para o ensino
fundamental, médio e superior.
Na Coréia do Sul, apesar dos investimentos públicos em educação estarem abaixo da
média de alguns países pertencentes à OECD1, o destaque está nos altos investimentos
privados, realizados pelas famílias. Não só os investimentos privados são altos, como vêm
crescendo nas últimas décadas: a taxa de investimento privado sobre investimento
governamental aumentou de 48,6% em 1977 para 108,4% em 1990 (MOE, 2005).
Um estudo do Banco Mundial (2000) concluiu que, em 1995, os investimentos privados
corresponderam a 8,9%2 do PIB - que, somados ao investimento governamental de 4,4% do
PIB, elevaram o total investido neste ano para 13,3% do PIB, provavelmente a taxa mais
elevada do mundo para países em estágio similar de desenvolvimento.
Um outro estudo desenvolvido pelo Korean Educational Development Institute (KEDI),
ligado ao Ministério da Educação, concluiu que, em 1994, os gastos totais em educação
alcançaram 11,8%: 5,75% investidos em educação pública (sendo o governo responsável por
3,72% e a iniciativa privada por 2,03%) e 6,02% investidos pelas famílias. Do total investido
pelas famílias, quase 45% estavam direcionados a aulas particulares e materiais
complementares relativos aos exames de admissão nas Universidades.
O elevado valor dos investimentos privados em educação na Coréia está diretamente
relacionado com a intensa competição no ensino. Interessante observar, por exemplo, que o
total de instituições que oferecem cursos suplementares e preparam para exames era de
24.890 em 2005, superior ao total de escolas – 19.586, soma que envolve a rede privada e
pública (MOE, 2005). Desta maneira, uma estimativa de Kim (2005) conclui que o total gasto
fora das instituições formais de ensino mostra-se superior ao gasto dentro delas.
A fim de confrontarmos o total investido em educação (investimentos públicos e privados)
nos dois países, a ausência de uma medida dos gastos privados em educação no Brasil
inviabiliza esta comparação. Considerando-se apenas os gastos públicos, porém, percebe-se
que o total investido no Brasil encontra-se próximo a países como a Alemanha e Espanha 4,6 e 4,5%, respectivamente (UNDP, 2005), demonstrando que a raiz do problema da baixa
qualidade da educação no Brasil encontra-se em outros fatores que não somente no total de
recursos investidos pelo governo. A destinação dos gastos pode ser uma possível explicação.
No caso da Coréia do Sul, houve uma clara priorização do ensino fundamental desde a
década de 70. Na década de 90, quando a maioria dos países em desenvolvimento, como o
Brasil, começava a se preocupar com a universalização do ensino, a Coréia do Sul já
apresentava taxas de alfabetização de 100% da população. O governo coreano, neste sentido,
preocupou-se com a universalização de um ensino fundamental de qualidade, determinando
que o crescimento econômico não fosse absorvido apenas pela elite. Esta política, aliada a
outros fatores como a reforma agrária, garantiram o desenvolvimento do país
simultaneamente à redução da desigualdade, diferentemente do que ocorreu na América
Latina (BIRDSALL e SABOT, 1994).
A opção do Brasil e de outros países da América Latina foi diferente: os investimentos em
educação foram (e são até hoje) fortemente direcionados ao ensino superior. De acordo com o
2
INEP, os gastos públicos em educação no Brasil, de 4,1% do PIB em 2004, foram
direcionados da seguinte maneira 0,4% para educação infantil, 2,4% para ensino fundamental,
0,5% para ensino médio e 0,8% para ensino superior. Este direcionamento de
aproximadamente 20% dos gastos para o ensino superior contrasta fortemente com a Coréia
do Sul, que investiu, em 2002, apenas 8% neste nível de ensino (UNDP, 2005).
Esta escolha beneficia em grande parte as elites, que podem pagar por um ensino
fundamental e médio privado e ao fim deste ciclo têm maiores chances de entrar no ensino
superior público, principalmente nos cursos mais procurados, tais como Medicina e
Engenharia. Assim, de maneira comparada, pode-se afirmar que o Brasil vem caminhando
numa rota inversa à adotada pelos países asiáticos.
ACESSO
Notável perceber que na Coréia do Sul, em 1965, mais de seis milhões de estudantes já
estavam inclusos no sistema educacional, o que corresponde, aproximadamente a metade do
número de estudantes atuais (MOE, 2005). No Brasil, por outro lado, cerca de 12 milhões de
estudantes freqüentavam estabelecimentos de ensino neste mesmo ano – aproximadamente
um quinto do total de estudantes em 2005 (IBGE, 2003).
A inclusão nos diferentes níveis de ensino, porém, não se deu de forma homogênea em
nenhum dos dois países. Se em 1965, 88,9% das crianças em idade escolar adequada já
freqüentavam a escola primária (elementary school)3, apenas 1% das crianças freqüentavam o
ensino infantil – número que até hoje ainda é baixo: 31,4% em 2005 (MOE, 2005).
Isso porque a escola primária (elementary school) tornou-se obrigatória a partir de 1960 - e
gratuita desde 1979. A educação infantil, por sua vez, não foi incluída no sistema obrigatório
de ensino e até hoje é paga.
Evolução da taxa de matrícula líquida e do acesso aos níveis superiores de ensino
na Coréia do Sul de 1965 a 2005
% de alunos do
% de alunos do
% de alunos do
primeiro ciclo que segundo ciclo do
matrícula no
ensino médio que
matrícula no ensino
seguiam para o ensino fundamental
primeiro ciclo do
seguiam para
infantil
ensino fundamental segundo ciclo do que seguiam para
ensino superior
ensino médio
ensino fundamental
1965
1975
1985
1990
1995
2000
2001
2002
2003
2004
2005
1,0%
1,7%
18,9%
31,6%
26,0%
26,2%
27,2%
28,4%
29,1%
29,6%
31,4%
88,9%
97,8%
100,5%
98,2%
97,2%
97,5%
97,5%
98,5%
98,0%
98,8%
54,3%
77,2%
99,2%
99,8%
99,9%
99,9%
99,9%
99,9%
99,9%
99,9%
99,9%
69,1%
74,7%
90,7%
95,7%
98,5%
99,5%
99,5%
99,5%
99,7%
99,7%
99,7%
32,3%
25,8%
36,4%
33,2%
51,4%
68,0%
70,5%
74,2%
79,7%
81,3%
82,1%
Fonte: Ministry of Education & Human Resources Development (MOE), 2005.
Com relação a ensino secundário (middle school), o aumento no acesso deu-se durante a
década de 1970, por conta da política adotada em 1969 de não adoção de exame de admissão.
Enquanto em 1965 apenas 54,3% dos alunos que completavam o ensino primário seguiam
3
para o nível seguinte, em 1975 este número elevou-se para 77,2% e em 1985 atingiu-se a
quase universalização - 99,2%. Hoje em dia, 99% dos alunos formados no ensino primário
seguem para o ensino secundário, que é obrigatório e parcialmente gratuito (totalmente
gratuito apenas para alunos da zona rural).
Fenômeno semelhante ao ocorrido com o ensino secundário ocorreu com o ensino médio.
O exame para a entrada neste nível foi abolido em 1974 e, por conta disso, houve um grande
salto no acesso já na década de 1980. A quase universalização, porém, deu-se apenas em
1995, quando 98,5% dos alunos formados no ensino secundário seguiram para o ensino
médio.
Antes da década de 1970, porém, o acesso ao ensino médio e superior dava-se
exclusivamente por meio de exames. A restrição no número de vagas nestes níveis mais
elevados de ensino, combinada com a preocupação do governo em garantir que as vagas
fossem preenchidas de maneira justa e eficiente deu origem aos testes anuais, que
determinariam a entrada ou não dos alunos nos níveis seguintes de ensino. A preocupação em
garantir que os testes fossem uniformes e justos levou a uma competição puramente técnica
entre os estudantes, imprimindo um sentido conteudista à educação coreana. Além disso,
gerou uma intensa competição entre os alunos pela obtenção das melhores notas e fez com
que os investimentos privados em educação aumentassem vertiginosamente (KIM, 2005).
Atualmente, ainda persistem os exames para admissão no ensino superior e um sistema de
quotas estudantis, apesar de uma maior flexibilização a partir de 1994. Por esta razão, como
dito anteriormente, grande parte dos recursos privados investidos pelas famílias destina-se a
aulas particulares e materiais adicionais voltados ao acesso às universidades. Tal fenômeno
ocorre não somente porque o ensino superior traz consigo uma maior garantia de obtenção
dos melhores empregos, mas também porque este diploma traz consigo um “certificado
informal” de dedicação pessoal, disciplina e outros traços de caráter fortemente valorizados
pela iniciativa privada na Coréia do Sul (FLEURY e MATTOS, 1991).
QUALIDADE
Com relação ao indicador de testes comparativos internacionais, a pontuação da Coréia do Sul
no PISA – Programme for International Student Assessment, encontra-se entre as mais altas,
superior à média dos países da OECD (INEP, 2004).
Grupo 1
(Acima da média da OCDE)
Hong Kong, Finlândia, Coréia, Países Baixos, Liechtenstein,
Japão, Canadá, Bélgica, Macau, Suiça, Austrália, Nova
Zelândia, República Tcheca, Islândia, Dinamarca, França e
Suécia.
Grupo 2
(Média da OCDE)
Áustria, Alemanha, Irlanda e República Eslováquia.
Grupo 3
(Abaixo da média da OCDE)
Noruega, Luxemburgo, Polônia, Hungria, Espanha, Letônia,
Estados Unidos, Rússia, Portugal, Itália, Grécia, Sérvia,
Turquia, Uruguai, Tailândia, México, Indonésia, Tunísia e
Brasil.
Fonte: INEP, 2004.
Esse bom desempenho, também pode ser visualizado no gráfico abaixo que apresenta os
resultados da edição do ano 2000 da avaliação4.
4
Resultados dos dez primeiro colocados e do Brasil no PISA 2000
600
550
546 534
532 529 528 527 525 523 522
516
500
450
Suécia
Japão
Reino Unido
Coréia do Sul
Irlanda
Austrália
Nova Zelândia
Holanda
Canadá
Finlandia
350
Brasil
396
400
Fonte: PISA/OECD (www.pisa.oecd.org). Nota dos elaboradores: devido a problemas com a amostra
holandesa,os resultados da Holanda não são comparáveis com os dos demais países.
Porém, apesar desse desempenho, muitas críticas vêm sendo feitas à qualidade do sistema
sul-coreano de ensino. Uma das críticas mais comuns decorre da excessiva centralização do
sistema educacional, que implicou na forte padronização do ensino, principalmente nos níveis
mais elementares, tendo como características um excessivo número de alunos por sala e uma
instrução limitada à transmissão de conhecimento. O produto desse modelo é um aluno com
uma boa bagagem de informações e um alto desempenho em testes objetivos realizados em
avaliações internacionais, mas que apresenta deficiências em virtude da pouca autonomia,
flexibilidade, criatividade e capacidade de adaptação, aspectos demandados na resolução de
problemas (FLEURY e MATTOS, 1991).
Partindo do âmbito governamental, um movimento reformista tem caracterizado um
intenso processo em que as políticas públicas educacionais sul-coreanas visam contornar as
marcas de uma excessiva estatização, centralização, uniformização e hierarquização,
características do período anterior5. Vem, ainda, ganhando força as ações de avaliação do
sistema. Unindo as perspectivas de controle da qualidade e descentralização, em 1995, o
Educational Reform Committe elaborou o documento chamado “Education Reform Measures
to Estabilish a New Education System”, propondo a adoção de programas de avaliação para a
Educação Elementar e Secundária, programas esses a serem implementados pelos governos
locais, o que começou a ocorreu a partir de 1997. O processo desencadeado foi cristalizado no
documento “Education Vision 2002: Creation of New Scholl Culture”, elaborado em 1998,
sendo as ações propostas colocadas em prática na Educação Elementar e Secundária a partir
de 1999 (KEDI, 2001).
Em relação ao processo de ensino-aprendizagem, parece também existir a convicção da
necessidade de renovação em face de um ensino tradicionalmente conteudista, buscando
despertar uma formação voltada para habilidades diretamente ligadas às necessidades
impostas por um mundo em constantes e aceleradas transformações.
Yang et al (2001) reporta os resultados de um amplo estudo abordando escolas sulcoreanas nos diferentes níveis de ensino. Este estudo contou com a participação de mais de
dez pesquisadores do KEDI (Korean Educational Development Institute), KICE (Korea
Institute of Curriculum & Evaluation) e KERIS (Korea Education & Research Information
Service) que permaneceram por uma semana em uma série de escolas visitadas pela equipe,
observando o andamento das aulas e outros aspectos da rotina escolar, além de realizarem
entrevistas com estudantes e pais. A pesquisa serviu para mapear o estado atual do ensino
5
sul-coreano segundo o entendimento de atores diretamente ligados ao tema da educação e pela
sociedade sul-coreana como um todo.
Em primeiro lugar, o estudo confirmou a visão já exposta por outros autores do caráter
conteudista do ensino, o que acarreta numa experiência educacional pouco significativa para
os estudantes. Foi além ao demonstrar que mesmo esse caráter conteudista sofre em virtude
do descumprimento de mínimos necessários exigidos pelo currículo oficial. Tal fato estaria
implicando em frustração e conduzindo à perda de confiança no sistema educacional em
geral. Outras conseqüências observadas seriam o desinteresse e falta de concentração nos
estudos, fatores que implicariam em aumento da indisciplina. Em conseqüência, os
professores estariam, cada vez mais, utilizando o tempo em sala para contornar esses
problemas em detrimento de outras atividades. Tal fato traz a tona uma segunda constatação
relativa a questões atinentes a formas de controle dos professores sobre os alunos e a falta de
legitimidade de regras estabelecidas sem a participação dos alunos, frutos de uma frágilcultura
democrática da escola e da sociedade como um todo. Um terceiro ponto observado evidencia
uma crise quanto ao papel do professor que, além das questões acima expostas, estaria
sofrendo com o desinteresse dos alunos, face à difusão de meios de acesso à informação mais
atrativos como a Internet. Além deste, foi observada a falta de suporte ao trabalho docente por
parte do poder público, que não tem propiciado de forma constante programas de treinamento
e formação. Em quinto lugar, as práticas administrativas das escolas tenderiam a focar naquilo
que oficialmente querem mostrar para fora dessas instituições, em detrimento de gastar suas
energias em ações que, de fato, contribuíssem para um ganho em qualidade. O sexto problema
identificado refere-se ao ambiente escolar: classes lotadas evidenciam uma grande
contradição entre “o que deveria ser” e “o que é”, dada as dificuldades expostas pelo
comportamento público de alunos e professores. Em sétimo lugar, as políticas de educação do
tipo top-down, que esperam resultados tangíveis num curto espaço de tempo, não conseguem
ser completamente implementadas, pois em geral são feitas sem um conhecimento e uma
análise aprofundada do problema. Por último, o estudo constatou que uma sociedade que
coloca tanto peso e valor no diploma contribui para distorcer as prioridades do sistema
educacional. Assim, conclui-se que seria quase impossível realizar uma educação “verdadeira
e significativa” neste tipo de ambiente social.
Na literatura, tão longa quanto a lista de qualidades do sistema educacional coreano é a
lista de críticas feitas a ele. No entanto, sem significar necessariamente um pessimismo
exacerbado quanto ao futuro, pode-se entender que as críticas em questão espelham o patamar
que poucos países alcançaram, bem como o próprio dinamismo que caracteriza o campo da
educação. Dessa forma, antes que estar sob a égide de um defeito maior – a estagnação – a
profusão do debate que segue naquele país pode ser visto também como parte de um
movimento maior de reflexão coletiva, aprimoramento e renovação.
Nesse sentido, há um intenso debate que divide opiniões sobre os caminhos que a educação
deve seguir. Lim (2005), uma especialista em educação, analisou o discurso de atores sociais
sul-coreanos que demonstravam um senso de urgência em relação aos rumos da educação
daquele país, para muitos em “colapso” no final do século XX. A autora identificou quatro
diferentes grupos de atores, os quais classificou como tradicionalistas (traditionalist),
reformistas democráticos (democratic reformists), neoliberais (neo-liberalists) e
desescolarizadores (deschooling).
Segundo a autora, o discurso tradicionalista baseia sua visão na tradição da filosofia e
prática confuciana. Os adeptos dessa corrente entendem que o “colapso” educacional sulcoreano advém de fenômenos morais que prevalecem na sociedade contemporânea daquele
país. Eles entendem que esse quadro resulta, por sua vez, de dois fatores: a falta de disciplina
a que estão expostas as crianças nos lares e a perda de autoridade dos professores, fruto das
políticas públicas dos últimos anos. A Korean Federation of Teachers’ Associations (KFTA)
6
é um dos principais atores que produziram um discurso fortemente calcado nesse segundo
fator. Para a autora, é interessante notar que, ainda que prevaleça nesse grupo um fervoroso
discurso de oposição às privatizações e reformas de cunho mercantil voltadas para a área
educacional, ele encontra alguma similaridade com o do grupo identificado como neoliberal,
já que ambos têm em comum a crítica às políticas governamentais para educação. Já os
tradicionalistas distanciam-se dos reformistas democráticos em virtude da rivalidade com
outra organização bastante representativa dos professores, a Korean Teachers’ Union – KTU.
Tradicionalistas e reformistas democráticos dividem, entretanto, uma visão fundamental sobre
a natureza pública e coletiva da educação escolar, seja nos aspectos morais ou sociais. Ambos
os discursos, a despeito dos disparates relativos às raízes do confucionismo e da ideologia
democrática, vêem a educação como elemento central para a integração social, um aspecto
fundamental para a coletividade.
Os neoliberais, por sua vez, são o grupo que possui uma das mais fortes vozes no debate
em questão. Tendo poucas coisas em comum com as organizações de professores citadas, os
neoliberais produziram um discurso de interesses de classe na educação relativamente claro,
sobretudo representativo das classes média, média alta e meios de comunicação
conservadores. Este grupo delegou o fenômeno do “colapso” a uma conseqüência natural de
uma não adequação do sistema educacional às transformações sociais e econômicas. Entre
essas não-adequações estaria a restrição das possibilidades de acesso por parte dos jovens a
uma educação de qualidade, sobretudo a partir de critérios que valorizassem seus méritos e
escolhas individuais
O último, e mais radical, ponto de vista refere-se aos desescolarizadores. Eles vêem o
fenômeno do “colapso” como uma conseqüência natural das mudanças ocorridas na Coréia do
Sul nas duas últimas décadas. Assim como em outros países, as escolas procuraram, na era
moderna, adequar suas transformações em virtude das necessidades da sociedade. Seriam,
portanto, um reflexo dela. No entanto, nesta tentativa de adequação às necessidades sociais, as
escolas teriam falhado, pois, segundo esta corrente, elas possuem necessidades próprias e
diferenciadas. Este grupo é composto principalmente por educadores pós-modernos e pais que
defendem uma educação alternativa e doméstica.
Para Lim (2005), estes grupos representariam forças sociais majoritárias, servindo para
iluminar o embate que se dá naquele país em torno dos rumos atuais da educação sul-coreana.
Não obstante, servem indiretamente para demonstrar que, por trás de um discurso que muitas
vezes une de forma direta e simplista educação e desenvolvimento econômico, existe uma
profusão de visões diversas e contestatórias. Estudantes, famílias, professores, organizações e
grupos de interesse diversos constituem uma teia de relações frente a qual as iniciativas
reformistas governamentais estão limitadas para atuarem unilateralmente, como o fora no
passado recente sul-coreano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sob certo ponto de vista, não há como negar que o sistema educacional sul-coreano foi
muito bem-sucedido em seus objetivos, sobretudo no que tange à universalização e à
instrução maciça de sua população. Como demonstrado, no tocante ao acesso, a
universalização do ensino fundamental, ensino médio, e a quase universalização do ensino
superior são tarefas que ainda exigirão um grande esforço do Brasil. Em relação aos
indicadores de qualidade, as notas obtidas pelos alunos sul-coreanos estão acima mesmo de
países desenvolvidos da OECD. Estes dois fatores, aliados à constatação de que a Coréia do
Sul e o Brasil destinam a mesma porcentagem do PIB à educação, reforça a necessidade do
país repensar seu modelo de financiamento da educação.
7
Não obstante, como se quis chamar a atenção também, o sistema educacional sul-coreano é
passível de uma série de críticas, especialmente quando o debate ganha uma dimensão mais
ampla referente ao quesito qualidade. O fato dos alunos sul-coreanos terem um desempenho
diferenciado em avaliações como o PISA é um indicativo, mas não o único a ser considerado
quando se trata do tema da qualidade do ensino. Como salientado, apesar dos alunos terem
uma boa bagagem de informações, um olhar crítico aponta que um déficit no tocante à
autonomia, flexibilidade, criatividade e capacidade de adaptação, aspectos demandados na
resolução de problemas, como apontado por Fleury e Mattos (1991).
Na maior parte das vezes, o debate sobre a qualidade do ensino emerge após um
diagnóstico de crise. Considerando-se o próprio dinamismo do campo da educação, a
profusão do debate que segue naquele país pode ser visto também como parte de um
movimento maior de reflexão coletiva, aprimoramento e renovação, e não somente como uma
“crise” propriamente dita. Sem se constituir em um problema em si, tal fato pode ser
entendido como uma etapa necessária para a efetivação de processos transformadores.
Os resultados do estudo a que se reporta Yang (2001) evidenciam, de forma surpreendente,
que muitos dos problemas apontados coincidem com freqüentes críticas feitas à qualidade do
sistema educacional brasileiro: falta de significado do ensino proferido, indisciplina, falta de
apoio ao trabalho docente, necessidade de revisão do papel do professor etc.
Igualmente, a profusão de visões identificadas por Lim (2005), que procura caracterizar o
debate atual sobre a educação sul-coreana, encontra similaridade quanto à diversidade de
visões presentes no debate brasileiro. Neste sentido, vale lembrar que as discussões em torno
da qualidade da educação confundem-se com a própria história do pensamento educacional, ou
seja, com o papel que se pretendeu que a educação cumprisse em diferentes contextos e épocas.
É preciso salientar, ainda, que apesar das semelhanças nas trajetórias dos dois países, muitas
diferenças podem ser observadas no tocante ao modelo de desenvolvimento escolhido. Neste
sentido, o governo sul-coreano foi um ator fundamental para que desenvolvimento econômico,
desenvolvimento social e acúmulo do recurso conhecimento caminhassem juntos. Em primeiro
lugar, reformas que garantiram uma melhor distribuição da renda, como a reforma agrária, foram
implementadas logo no início do processo reformista o que, aliado ao acesso ao ensino
fundamental, garantiu a redução das desigualdades e um contexto de maiores oportunidades a
todos. O foco na política exportadora e no desenvolvimento tecnológico, intensivos na
absorvição de em mão-de-obra capacitada, incorporaram trabalhadores que investiram em sua
escolarização.
Neste sentido, a complementaridade entre o modelo econômico escolhido e o incentivo ao
investimento em educação por parte dos estudantes e suas famílias foram fundamentais para o
desenvolvimento sul-coreano, criando um circulo virtuoso altamente favorável ao país.
Portanto, para além de análises que, de forma direta creditam o sucesso econômico sulcoreano à educação, deve-se considerar um processo mais amplo de medidas levadas adiante
naquele país e que serviram de estímulo à escolarização por parte da população.
Situando o tema dessa forma, os aspectos a aqui enfocados não tiveram por pretensão reduzir
a educação no que se refere às suas dimensões e possibilidades, já aprofundadas por diversos
autores em reflexões que geraram um significativo acúmulo teórico neste campo. Em outras
palavras, pretendeu-se aqui focar alguns elementos que servissem para iluminar aspectos
específicos relativos ao debate sobre o sistema educacional sul-coreano e que servissem para
orientar possíveis reflexões sobre a realidade educacional brasileira.
8
NOTAS
1
Na Dinamarca e na Suécia, por exemplo, são gastos pelo governo, respectivamente, 8,5% e 7,7% do PIB
(UNDP, 2005).
2
Nesta análise, o total de 8,9% de investimentos privados dividia-se da seguinte forma: 2,3% em taxas escolares
(tuition fees), 3,2% em aulas particulares (private tutoring) e 3,4% em gastos com materiais, livros e papelaria,
uniformes, transporte, alimentação e alojamento (BANCO MUNDIAL, 2000).
3
Quanto aos níveis do sistema educacional sul-coreano, ele é dividido da seguinte forma: seis anos de primary
school, três anos de middle school, três anos de high school (correspondente ao ensino médio brasileiro) e ensino
superior.
4
O PISA foi lançado pela OCDE (Organização para o Desenvolvimento e Cooperação Econômica), em 1997.
Os resultados obtidos nesse estudo têm por pretensão ajudar no monitoramento de sistemas educativos,
avaliando o desempenho dos alunos sob um determinado conceito aceito internacionalmente. A sua aplicação
ocorre em ciclos de 3 anos: na primeira edição, no ano 2000, objetivou avaliar principalmente habilidades de
leitura. O estudo envolveu, então, cerca de 265 mil alunos de 15 anos, de 32 países, 28 dos quais membros da
OCDE. Já o PISA 2003 contou com a participação de 41 países, incluindo a totalidade dos membros da OCDE
(30), envolvendo mais de 250 mil alunos de 15 anos. O estudo deu um maior enfoque à matemática e, em
segundo plano, leitura e ciências, bem como a resolução de problemas. No PISA 2006 houve preponderância de
ciências, contando com a participação de cerca de 60 países, envolvendo mais de 200 mil alunos de 7 mil escolas
(OECD, 2007).
5
Em 1991, ocorreu a separação do Ministério da Educação do antigo ministério que reunia educação e cultura
sob uma mesma pasta. Dez anos depois, em 2001, uma nova reestruturação foi implementada, passando o
Ministério a se chamar “Ministério da Educação e Recursos Humanos para o Desenvolvimento. Juntamente a
esta mudança, o cargo de ministro da educação passou a ter o status de “Deputado Primeiro Ministro” (Deputy
Prime Minister), sendo este responsável por outros ministérios do governo, coordenando as políticas relativas
aos recursos humanos destinados ao desenvolvimento do país (KEDI, 2001).
BIBLIOGRAFIA
BANCO MUNDIAL. Republic of Korea: Transition to a Knowledge-Based Economy. Report
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1 Políticas Públicas em Educação: Lições do Caso Sul