Capítulo XX - Cooperação, Economia Solidária e Sociabilidades: estudo de caso na 20ª Feira
Estadual do Cooperativismo de Santa Maria (FEICOOP)
Cooperação, Economia Solidária e Sociabilidades: estudo de caso na 20ª Feira
Estadual do Cooperativismo de Santa Maria (FEICOOP)
POSSATTI, Daniele Marzari 57
DEWES, Fernando58
RESUMO
Este artigo é fruto do curso de especialização em Gestão de Cooperativas e tece
reflexões teóricas e empíricas sobre cooperativismo e economia solidária. Através
da abordagem qualitativa, fez-se revisão de literatura e discussões sobre feiras,
cooperativismo e economia solidária, e estudo de caso durante os dias da Feira
Estadual do Cooperativismo de Santa Maria/FEICOOP, em julho de 2013. Para
investigar os significados que a feira evoca nos atores sociais enquanto ocupação
do espaço coletivo, lançou-se mão da observação participante, anotações de
campo, entrevistas dialogadas e análise de discurso. Os objetivos da pesquisa foram
historicizar o cooperativismo e a economia solidária; contextualizar e descrever a
FEICOOP e seus aspectos importantes, e analisar os significados da feira. Como
considerações, entendemos que a FEICOOP se constitui enquanto espaço plural de
ação coletiva e política, onde os atores acionam sociabilidades como cooperação e
solidariedade, elementos fundamentais para a criação e atualização de laços sociais
para uma vida cooperativa.
Palavras-chave: Cooperativismo. Economia Solidária. Feiras.
RESUMEN
Este trabajo es el resultado del curso de especialización en Gestión de Cooperativas
y reflejan la investigación teórica y empírica sobre la cooperación y la economía
solidaria. A través de un enfoque cualitativo, se revisó la literatura y las discusiones
sobre las ferias, la cooperación y la economía solidaria y un estudio de caso en los
días de la Feira Estadual de lo Cooperativismo de Santa Maria/ FEICOOP en julio de
2013. Para investigar el significado de la feria para los actores, se empleó la
observación participante, notas de campo, entrevistas dialogaron y análisis del
discurso. Los objetivos de la investigación fueron historizar la economía solidaria y
cooperativismo; contextualizar el FEICOOP, describir y identificar sus aspectos
fundamentales y analizar los significados de la feria. Como consideraciones,
creemos que FEICOOP se constituye como acción plural colectiva y política, donde
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Extensionista Rural Social – Socióloga, Bacharela em Ciências Sociais e Licenciada em Sociologia
UFSM. Especialista em Atenção Psicossocial UFPel. Mestre em Desenvolvimento Rural UFRGS.
E-mail: [email protected].
58
Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1975),
mestrado em Psicologia pela Universidade de Brasília (1981), doutorado em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2004) e pós-doutorado pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (2011) - CEPAN, professor da Universidade de Caxias do Sul - UCS,
das Faculdades Integradas de Taquara - Faccat e da Escola Superior em Cooperativismo ESCOOP, RS.
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Estadual do Cooperativismo de Santa Maria (FEICOOP)
los actores desencadenan la sociabilidad, la cooperación y la solidaridad, elementos
clave para la creación y el mantenimiento de los lazos sociales de una cooperativa.
Palabras-clave: Economía Solidaria. Cooperativismo. Ferias
1 INTRODUÇÃO
Ao situarmos o sistema capitalista em que vivemos como modo de produção
de relações sociais de exploração e dominação, historicamente os grupos,
coletividades e sociedades vêm acionando e organizando suas capacidades de
reação frente às consequências perversas e excludentes desses tipos de relações.
Neste sentido, o presente trabalho é fruto do curso de especialização em Gestão de
Cooperativas e apresenta a temática do cooperativismo e da economia solidária
enquanto contrapontos à lógica e ao funcionamento capitalista, em que a
cooperação e a ajuda mútua sintetizam o eixo central.
Podemos destacar, como consequência das organizações sociais e populares
e das cooperativas de economia solidária, a criação e ativação de feiras, redes e
circuitos locais. Neste contexto, que construímos como problema de pesquisa, a
seguinte questão: que significados as feiras de economia solidária evocam como
espaço de ocupação coletiva dos atores sociais e organizações? Para tanto, esta é
uma pesquisa qualitativa, na qual realizamos revisão e discussão de literatura e
elegemos a Feira Estadual do Cooperativismo de Santa Maria (FEICOOP) para o
estudo de caso realizado no mês de julho de 2013. Como técnica de coleta de
dados, lançamos mão da observação participante, anotações de campo, entrevistas
dialogadas e análise de conteúdo de documentos, sites e materiais de divulgação.
Os objetivos da pesquisa foram historicizar o cooperativismo e a economia solidária;
contextualizar a FEICOOP; identificar seus aspectos fundamentais e analisar os
significados da feira para os atores sociais envolvidos.
Para contribuir com os objetivos e com a questão problema, iniciamos com a
contextualização do tema da pesquisa: cooperação e ajuda mútua. Como forma de
delimitação, trazemos os desdobramentos da institucionalização e discussão sobre
cooperativas, história do cooperativismo e a perspectiva de cooperativismo ampliado
e engajado. Na segunda seção, apresentamos referências conceituais sobre a
economia solidária e popular, onde situamos o importante papel que assume a
economia solidária enquanto prática e teoria, sobretudo no final dos anos 80 e início
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Capítulo XX - Cooperação, Economia Solidária e Sociabilidades: estudo de caso na 20ª Feira
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dos anos 90. Na seção seguinte, destacamos as redes e feiras de economia
solidária e popular como forma de ocupação de espaços coletivos e de criação e
recriação de laços sociais. A discussão conceitual e teórica é que embasará o
estudo de caso sobre a FEICOOP na quarta seção.
Por fim, as análises e as considerações finais encerram a discussão iniciada
na primeira seção e desenvolvida nas demais, com a análise do estudo de caso e
diálogo interpretativo. Dentre diversos significados atribuídos para a FEICOOP,
destacamos que esta constitui um espaço plural de ação coletiva e política, onde a
feira é arena de reconhecimento econômico, político e social da produção, consumo
e apropriação de valor. Existem as circulações do fruto do trabalho e as circulações
de bens simbólicos desses atores e suas organizações, em que acionam
sociabilidades como cooperação, reciprocidade e trabalho voluntário, elementos
fundamentais para a criação e atualização de laços sociais para uma vida
cooperativa.
A justificativa para a escolha do tema de pesquisa é a de dar visibilidade às
práticas de ajuda mútua e de cooperação entre os atores através da organização de
feiras de cooperativismo e economia solidária. Nas sociedades contemporâneas é
urgente a necessidade de mapearmos e proliferarmos as experiências entendidas
como contra-hegemônicas, como a FEICOOP referida no estudo de caso, para
cristalizarmos que existem outras formas de relações sociais estabelecidas que não
exigem e não consideram natural a exploração e a dominação entre seres da
mesma espécie.
2 COOPERATIVAS E COOPERATIVISMO: REFLEXÕES, HISTÓRIAS E
CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS
Iniciamos de modo muito simples: o que entendemos por cooperativa?
Compreendemos por cooperativa uma forma institucionalizada de organização
coletiva, com objetivos compartilhados entre as pessoas que a compõem. Neste
ponto de vista, a cooperativa pode ser vista como um dispositivo coletivo de ação
econômica e social utilizado pelas pessoas e por grupos, capaz de impulsionar,
potencializar e catalisar distintas necessidades, urgências, desejos e projetos.
Por exemplo, para um grupo de agricultores familiares, que dependem da
renda da atividade leiteira como meio de reprodução econômica e social das
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unidades de produção familiares, é evidente que a cooperativa cumpre a
necessidade de acesso aos mercados, pois de modo individual, às vezes, isso se
torna inalcançável. Ainda assim, melhorar a renda é o interesse compartilhado para
que as famílias se tornem cooperadas.
Entretanto, que outros objetivos compartilhados agregam pessoas e grupos
em uma cooperativa? Ou ainda, que horizontes vislumbram as cooperadas e os
cooperados em cooperativas, que com outras tantas cooperativas, conformam o
que, muitas vezes, indiscriminadamente, denominamos de cooperativismo? Surge,
então, um convite para a reflexão.
É com os questionamentos acima que damos início à discussão sobre
cooperativismo e economia solidária. Este trabalho aposta na perspectiva do
cooperativismo que é transformado pela realidade e, ao mesmo tempo, assume um
forte caráter transformador da realidade, no sentido de, enquanto dispositivo
coletivo, não só catalisar o engajamento ampliado dos agentes para a superação
das assimetrias econômicas, mas também das assimetrias sociais, políticas e
culturais. Em última instância, um cooperativismo que repouse sua concepção e
aguce suas práticas, comprometido com a ruptura de relações de exploração,
dominação e racismo.
Mas o que queremos dizer com cooperativismo engajado, nesta perspectiva?
Para nos situar, em nossa sociedade, destacamos que as relações de
exploração estão baseadas na apropriação do fruto do trabalho por corporações,
empresas, grupos, oligopólios e pelo Estado. Onde a dominação de gênero é
nitidamente constatada não apenas na vida privada, mas, também, na esfera da vida
pública, pois as mulheres no Brasil ainda são minoria, quando se coloca em questão
as tomadas de decisão nos postos de trabalho, nas instituições, organizações,
associações e cooperativas. Onde as minorias étnicas e raciais sofrem com a
discriminação, num país em que, apesar da Constituição Federal de 1988 dispor
pretensamente que indígenas e afro-brasileiros sejam incorporados ao processo
civilizatório nacional, ainda se percebe a cultura da discriminação e exclusão,
contratualizada em estatutos sociais de cooperativas que estabelecem critérios
etnocêntricos para a adesão de novos cooperados.
O cooperativismo, na perspectiva ampliada adotada aqui, não é apenas uma
forma de distribuir as riquezas monetárias, fruto do trabalho dos indivíduos. É
movimento, dinâmica e luta cotidiana de agentes que são históricos e compreendem
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a plenitude de tomar partido diante do mundo que ocupam. É buscar a ruptura do
cenário descrito anteriormente, contribuir para o processo de emancipação
econômica, política e social das mulheres, junto com as mulheres. É exercitar e
potencializar que a democracia pode ser encarada como modo de vida dentro e fora
da cooperativa pelos agentes, diferente, por exemplo, da visão limitada e eleitoreira
de democracia que a dispõe como o direito a um voto por cooperado nas
assembleias anuais. Em última instância, isto significa uma ameaça latente e
manifesta ao status quo.
O que parece utopia encontra forte inspiração no trabalho de Rech (2012),
que na apresentação de seu livro, inicia:
Compreender e praticar o cooperativismo significa, antes de tudo, conhecer
o tema (a partir da prática e do resgate histórico) e estabelecer o
compromisso de lutar por justiça social, por transformação da realidade.
O mesmo autor admite que as cooperativas foram apropriadas pelo sistema
capitalista e que a luta é imensa para retomar a iniciativa social e apropriada pelos
povos mais vulneráveis. Eis o que Rech (2012) define como cooperativismo
solidário: aquele “[...] comprometido com a Justiça Social, contribuindo com o
exercício da democracia e cidadania para todos e todas e a transformação da
realidade brasileira.”. Uma perspectiva ampliada e engajada de cooperativismo. É
neste sentido que o cooperativismo possui uma missão frente ao mundo capitalista
que vivemos, como movimento social que venha a contribuir na formulação de
alternativas e formas econômicas concretas e emancipatórias para a construção de
um mundo justo e solidário. (RECH, 2012, p. 17).
As raízes históricas do cooperativismo acompanham a própria história da
humanidade, pois a cooperação e a ajuda mútua foram fatores fundamentais para a
evolução da espécie humana. Ao longo de milhares de anos, nossos ancestrais
resistiram a incalculáveis dificuldades e crises para estarmos aqui hoje. A evolução
da espécie humana só foi possível por meio da cooperação como fator fundamental
para a sobrevivência. Na edição de 1914 do livro Ajuda Mútua: um fator de evolução,
em plena guerra que assolava parte da Europa, o autor Piotr Kropotkin expõe que “a
luta pela vida e a sobrevivência dos mais aptos” foi o argumento de muitos para
justificar os horrores de uma guerra a partir de distorções da teoria de Charles
Darwin, sobretudo após a obra A Origem das Espécies, no século XIX. Entretanto,
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no mesmo contexto histórico, havia uma obra inglesa que interpretava o progresso
biológico e social, não como resultado do exercício da força bruta e da astúcia, mas
da cooperação interespécies e intra-espécies. (KROPOTKIN, 2009, p. 8). Para
esclarecer:
A ideia de que a ajuda mútua representa na evolução um importante
elemento progressista – começa a ser reconhecida pelos biólogos. A
maioria das obras publicadas na Europa nos últimos tempos que tratam da
evolução já diz que é preciso fazer uma distinção entre dois aspectos
diferentes da luta pela vida: a guerra exterior das espécies contra condições
naturais adversas e as espécies rivais, e a guerra interna pelos meios de
subsistência dentro das espécies. Também se reconhece que tanto a
extensão desse segundo aspecto quanto sua importância para a evolução
tem sido exagerada – para grande consternação do próprio Darwin –,
enquanto a importância da sociabilidade e do instinto social nos animais,
tendo em vista o bem-estar da espécie foi subestimada, ao contrário dos
ensinamentos deste grande naturalista. Mas, se a importância da ajuda e do
apoio mútuo entre os animais começa a ser reconhecida entre os
pensadores modernos, ainda não se pode dizer que isso está acontecendo
em relação à segunda parte de minha tese: a importância desses dois
fatores na história do homem, tendo em vista o crescimento de suas
instituições sociais progressistas. (KROPOTKIN, 2009, p. 8-9).
Dentro das formas de cooperação, encontram-se registros no Antigo Egito
através de grêmios, na Grécia com as orglonas, em Roma com os colégios, os
ágapes entre os primeiros cristãos e na América os ayllus nos incas e os calpulli dos
astecas. (RECH, 2012, p. 17). O que tinham em comum era a “ação conjunta, a
busca coletiva da superação dos problemas das pessoas e a integração a um
empreendimento que pudesse trazer benefícios a toda a comunidade”. (RECH,
2012, p. 17).
É importante destacar que, no Brasil e no Rio Grande do Sul, antes mesmo
da invasão colonial, o cooperativismo já existia entre os povos ameríndios
originários, com as ações coletivas integradas como modo de vivenciar as
necessidades biológicas e culturais dessas populações. (RECH, 2012, p. 27):
[...] após a chegada dos colonizadores portugueses e espanhóis, que
conhecemos a primeira experiência de cooperação mútua, estabelecida a
partir de 1610, foi a fundação das Reduções Jesuíticas no sul do Brasil, com
a tentativa de construção de um estado cooperativo em bases integrais. [...]
a atuação das comunidades indígenas deu exemplo de sociedade solidária,
fundamentada no trabalho coletivo, no princípio do auxílio mútuo, onde o
bem-estar das pessoas e da família se sobrepunha à acumulação
econômica da produção. A experiência das reduções foi destruída pelos
interesses dos estados colonizadores do Brasil. (RECH, 2012, p. 27).
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O cooperativismo moderno ocidental se constituiu, no século XVIII e XIX, fruto
de uma Europa em ebulição devido ao desenvolvimento do capitalismo e suas
amargas implicações sociais, econômicas e nas relações de trabalho. Com o intuito
de distribuir riquezas, a cooperativa se tornou a forma institucionalizada de
organização da produção e consumo. O grupo dos “Pioneiros de Rochdale” e o
modelo de cooperativismo europeu teve forte influência no Brasil, sobretudo no Rio
Grande do Sul, trazido pelos imigrantes colonizadores.
Como explica Rech (2012), a influência do cooperativismo conservador
europeu trouxe-nos, entre tantas heranças, a criação de cooperativas com
centralidade no aspecto utilitarista e monetarista, distante do sentido engajado e
amplo de cooperativismo. Neste sentido, no século XIX e XX, a principal
preocupação associativa e de incentivos do Estado para com as cooperativas era
torná-las uma alternativa econômica e marcar a abertura e a inserção positiva do
Brasil na modernidade liberal. Em grande medida, esta postura fez das cooperativas
um suplemento ao processo de expansão capitalista, em especial no campo
agropecuário, e, como instituição não imaculada no capitalismo, favoreceu a
concentração de riqueza para os dirigentes e relegou à marginalidade os menos
capitalizados.
Para
delimitarmos
no
contexto
contemporâneo,
a
formalidade
do
cooperativismo se encontra na esteira de uma legislação específica, retrógrada e
conservadora, datada nos Anos de Chumbo da ditadura militar. A lei nº 5.764, de
1971, foi a materialidade de uma intervenção autoritária sobre organizações
cooperativas. Importante, como ressalta Rech (2012), embora tecnicamente seja a
legislação específica que opera no Brasil, a abertura e a luta democrática que
culminaram com a Constituição Federal de 1988, que trouxeram novo vigor ao
cooperativismo.
Como é própria de uma visão dialética do mundo, a realidade tupiniquim
tropical e subtropical do Brasil provocou um cooperativismo repleto de diferenças e
matizes, fruto de mudanças históricas, culturais e econômicas vivenciadas pela
América Latina e pelo Brasil. As implicações desses processos contribuíram para o
debate sobre um novo marco regulatório para as cooperativas e, também, sobre um
novo modo de fazer cooperativismo. É a partir dos anos 80 que começa a tomar
corpo, e, com maior expressão, a partir dos anos 90, a construção do chamado novo
cooperativismo como contraponto ao modelo de cooperativismo tradicional. Ao
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mesmo tempo, a Economia Solidária começa a se desenhar com maior força e
urgência em uma realidade brasileira onde crescia o desemprego e a exclusão social
(RECH, 2012, p. 30). Para registro, cabe salientar uma das formas de organização
do novo cooperativismo através da constituição da União Nacional das Cooperativas
da Agricultura Familiar e Economia Solidária (UNICAFES), no ano de 2005, que
mobiliza cooperativas em todo o país, de produção e comercialização em diferentes
ramos, como crédito, trabalho, assistência técnica, habitação, produção e
comercialização. (ESCHER, 2011, p. 8).
3 ECONOMIA SOLIDÁRIA E POPULAR
No bojo do conceito e da prática da economia solidária, encontra-se uma
diversidade de perspectivas e ideologias embutidas, em que a diferença colabora
para o debate e para as propostas. Importante atribuição de Singer (2005), que
converge com o cooperativismo ampliado para economia solidária, como uma
função ampliada no âmbito de uma nova sociabilidade e qualidade de vida, e não
meramente uma resposta econômica para integrar ao capitalismo grupos que, de
outro modo, não ingressariam no mercado da produção e do consumo (SINGER,
2005, p. 11). A caracterização de economia solidária e o potencial transformador, em
termos de fundamentação teórica e empírica, têm sido sistematicamente
trabalhados. (GAIGER, 2003):
Sob o prisma das relações que cultivam entre si e com os demais agentes
econômicos, as iniciativas solidárias vivem um momento de ebulição, ao
mesmo tempo, que de debilidade. A todo instante, surgem novas
organizações de crédito, troca e consumo solidário, além de notícias de
avanços nas que já existiam, 'gerando um ambiente pródigo em encontros e
projetos de cooperativas de crédito, bancos populares, moedas sociais,
redes de troca, etc. Entretanto, salvo poucas iniciativas de maior porte ou
relativa maturidade, esses mecanismos são experimentais: valem por seu
significado intrínseco, não pelo seu impacto. Para assegurar sua
reprodução, os empreendimentos solidários precisam lidar adaptativamente
com as externalidades capitalistas. As tentativas de romper o círculo, por
meio de contatos, trazem reforço moral e político, mas carecem por hora de
práticas efetivas de intercâmbio econômico, tanto mais quando envolvem
segmentos e atores sociais diferentes. (GAIGER, 2003, p. 206).
No ambiente onde as relações de mercado são consideradas hostis,
característico do sistema capitalista em que vivemos e da configuração de impérios
alimentares, analisa Ploeg (2008), que as relações com empresas e cooperativas
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altamente mercantilizadas, no caso do estudo deste autor sobre a cadeia produtiva
do leite, demonstram o ambiente espoliante onde operam as cooperativas. Sem
regras de mercado muito nítidas, os impérios alimentares dominantes possuem
interferências locais que tendem a desmobilizar a organização social, produtiva e de
comercialização de muitos agricultores e gestores de cooperativas, ludibriados pelas
vantagens oferecidas pelos complexos agroindustriais, incentivando o descrédito na
delicada relação de confiança entre a cooperativa e os cooperados.
Ao mesmo tempo, temos a noção de que existem circuitos demagógicos na
esfera do local, com as mais variadas justificativas e formas, que têm feito uso do
termo economia solidária. Embora não exponhamos de modo mais sistemático, cabe
a reflexão embasada em Rech (2012), quando argumenta que a concorrência e a
competitividade, pilares que retroalimentam as relações sociais capitalistas entre
agentes e organizações, distanciam as cooperativas da constituição de redes e
criam disputas comerciais e de mercado, justificada equivocadamente pela ‘própria
sobrevivência’ ao invés de se praticar a solidariedade. Outro fator que pauta
desafios a serem pensados pelos agentes da economia solidária é a política de
autopromoção de lideranças e dirigentes, forjada à custa de lutas populares e do
movimento cooperativista, resultando em concentração de poder e complicações
para a democracia cooperativista. (RECH, 2012, p. 25).
Apesar dessa tendência desestruturadora, é possível notar que sociabilidades
e formas de organização social são produzidas e reproduzidas nas formas de
cooperação e ajuda mútua na economia solidária. De modo comum é notável a
existência de uma polifonia de organizações institucionalizadas, tais quais as
cooperativas e as associações, e, também, organizações não institucionalizadas. A
problematização sobre a Economia Solidária e Popular vem contribuir para a
compreensão do estudo de caso deste trabalho, enquanto teoria e prática contra
hegemônica que agencia sociabilidades alternativas e legítimas.
Para Mance (2000), o conceito de economia solidária abriga muitos métodos
econômicos associados a práticas de consumo, comercialização, produção e
serviços, em que se fomenta a participação coletiva, autogestão, democracia,
cooperação, autossustentação, a promoção do desenvolvimento humano e o
equilíbrio dos ecossistemas. Mesmo que muitas práticas de economia solidária, que
se pretendem transformadoras, ainda estejam em convergência com o paradigma
que reproduz relações capitalistas, como expõe o autor, o significado da economia
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Capítulo XX - Cooperação, Economia Solidária e Sociabilidades: estudo de caso na 20ª Feira
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solidária tem a ver com a reinvenção de relações sociais, nas quais as noções e
práticas de rede, fluxos e relações de realimentação assumem papel de fundamental
importância. As práticas de economia solidária, consumo e labor solidários,
permitem que os valores econômicos gerados pelo trabalho possam realimentar o
processo de produção e consumo, para promover a reprodução das coletividades e
a redução das privações.
Retomamos a contribuição de Kropotkin (1914), quando trabalhou a crise
gerada pela guerra e seus efeitos sobre a vida cotidiana da população afetada e sua
análise sobre as possibilidades que emergiram dessas pessoas.
Os líderes do pensamento contemporâneo ainda tendem a afirmar que as
massas têm pouco interesse pela evolução das instituições sociais do
homem e que todo progresso feito nessa direção se deveu a líderes
intelectuais, políticos e militares das massas inertes. [...] Vai mostrar o
quanto o espírito criativo e construtivo da massa do povo é necessário
sempre que uma nação tem de passar por um momento difícil de sua
história. (KROPOTKIN, 2009, p. 9).
É neste sentido que as pessoas consideradas “comuns” ou as “massas”, que
sofrem os efeitos de uma guerra por poder, de um sistema desigual, da invisibilidade
de muitos grupos marginalizados, têm papel basilar em construir processos coletivos
e afirmar o espírito criativo e as forças construtivas dos seres humanos em ações,
como forma de superar as imposições e dificuldades vividas por sua época, como
nos coloca o autor. Se pensarmos a Economia Solidária e Popular junto com
Kropotkin (2009), poderemos problematizar que a guerra suscitou a solidariedade
entre os humanos, aonde mesmo do extermínio das populações de modo imposto,
foram observadas e registradas as manifestações de ajuda mútua, dedicação aos
empreendimentos e ao trabalho voluntário, a ponto de serem consideradas as
“sementes de novas formas de vida”. (KROPOTKIN, 2009, p. 10).
4 AS REDES E FEIRAS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA E POPULAR: CRIAÇÃO,
OCUPAÇÃO E INTERAÇÃO EM ESPAÇOS COLETIVOS
De concretas necessidades e urgências para a sobrevivência de pessoas,
grupos e culturas marginalizadas em múltiplas dimensões, criam-se vivências e
emergem sociabilidades contra hegemônicas a partir de novas formas de ocupação
de espaços coletivos e públicos. A constante e dinâmica reinvenção das formas de
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vida coletiva através do engajamento de atores em diversas arenas contribuem para
a constituição de novas formas de instituições, organizações, circuitos, redes e
feiras. Muito mais que meros espaços de compra e venda, tais arenas arranjam e
demonstram a esperança na criatividade histórica e cooperativa como fator de
superação e possibilitam ao cooperativismo e à economia solidária um sopro de vida
e de ressignificação.
É a partir dos anos 90 que as práticas de economia solidária são proliferadas,
em especial com a organização de redes e feiras para promover os valores e
organizações relacionadas ao processo de mudança de paradigma. (MANCE, 2000,
p. 3). Não apenas no Brasil, mas na América Latina e nos demais países, ditos na
época do “terceiro mundo” ou principais alvos do sistema capitalista mundial,
compõem-se movimentos em redes de contraponto ao modelo hegemônico de
dominação e exploração. Como resultados qualitativos e quantitativos, têm uma
nova formação social emergente em busca da superação da lógica capitalista de
concentração de riquezas e exclusão social, destruição da sociobiodiversidade e
exploração dos seres humanos pelos próprios semelhantes.
Para Mance (2000), a noção de rede, como potencialidade e prática
transformadora, coloca em evidência as relações entre diversidades e simetrias, com
fluxos de elementos que circulam nessas relações, nos laços que alavancam a
sinergia coletiva, na preocupação da reprodução de cada pessoa, grupos, povos e
culturas. Como exemplos bem sucedidos de redes de colaboração solidária, Mance
(2000) apresenta os Sistemas Locais de Emprego e Comércio, os Sistemas
Comunitários de Intercâmbio, a Rede Global de Trocas, a Economia de Comunhão,
a Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, os Bancos dos Povos, a Agricultura
Ecológica, o Consumo Crítico, o Consumo Solidário, os Softwares livres e as Redes
e Feiras Livres de economia solidária. Em muitos casos, as iniciativas são
fomentadas por organizações, instituições e atores não estatais, com ampliação de
novos campos de ações solidárias, estrategicamente articulados em redes de
cooperação com o objetivo de estabelecer uma nova compreensão de sociedade,
com capacidade de expandir novas relações sociais de produção e consumo e
promover as liberdades públicas e privadas. (MANCE, 2000, p. 4).
Desse modo, uma das formas de dar vazão às ações e ideologias da
economia solidária são as feiras. O conceito de sociabilidade é importante para
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Capítulo XX - Cooperação, Economia Solidária e Sociabilidades: estudo de caso na 20ª Feira
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analisar dinâmicas e processos provocados pela inserção dos atores e organizações
disposta nas feiras:
[...] na perspectiva da construção de relações internas coletivas,
participativas, autogeridas, no âmbito das relações sociais mais
elementares, quais sejam, as sociabilidades, entendidas como arranjos
interativos (e, portanto, organizacionais) e representações de coletividades.
(TOMASI; BRANCALEONE, 2012, p. 16).
5 ESTUDO DE CASO: 20ª FEIRA ESTADUAL DO COOPERATIVISMO “UMA
EXPERIÊNCIA APRENDENTE E ENSINANTE”
De modo a estabelecer pontos de interpelação com as perspectivas e
discussões apresentadas até o momento é que foi realizado o estudo de caso na 20ª
Feira do Cooperativismo e Economia Solidária (FEICOOP), no município de Santa
Maria. O estudo de caso qualitativo se estruturou com base no trabalho de campo
durante os dias da feira para coleta de dados e lançou mão da observação
participante, anotações de campo, entrevistas dialogadas e análise de conteúdo em
materiais digitais e de divulgação. Ressaltamos que, devido aos limites deste artigo,
descreveremos de modo muito sintético aspectos relevantes para relacionar com a
pesquisa, que mereceriam, sem dúvida, adensamentos, dada a história, a
multiplicidade de tramas, atores, organizações, acontecimentos e agendas da
FEICOOP, e que, quiçá, serão desenvolvidos em outra oportunidade.
A Feira Estadual do Cooperativismo/FEICOOP teve sua 20ª edição no ano de
2013, e ocorreu do dia 11 ao dia 14 de julho, na cidade de Santa Maria. Nesta
edição, somaram-se à feira o 2º Fórum Social e a 2ª Feira Mundial de Economia
Solidária, tendo como local agregador o Centro de Referência em Economia
Solidária Dom Ivo Lorscheiter, a Escola Irmão José Otão e o pavilhão do Feirão
Colonial, no Bairro Medianeira. A FEICOOP é uma feira que tem como responsáveis
pela coordenação e organização os atores do Projeto Esperança/Cooesperança, no
qual a referência e a articulação é impulsionada historicamente pela coordenadora
do Projeto e também da FEICOOP, a Irmã Lourdes Dill, com forte relação com a
Arquidiocese de Santa Maria e apoio da Cáritas, além do Fórum Brasileiro de
Economia Solidária/FBES, Empreendimentos Solidários e entidades parceiras.
Cerca de 200.000 pessoas circularam nos quatro dias de feira como
visitantes, consumidores, expositores, grupos, organizações, movimentos sociais,
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associações, entre outros, totalizando atores de 27 países, a maioria países da
América Latina. Do Brasil, todos os estados estiveram presentes, com 530
municípios e aproximadamente 1.000 organizações e empreendimentos de
Economia Solidária.
Em uma diversidade de temáticas e ações, podemos elencar mostras de
filmes, shows, teatros, mesas, oficinas, fóruns de discussão e troca de experiências,
plenárias, acampamento da juventude, avaliações, marchas e a comercialização
direta de artesanato e alimentos de agroindústrias em quase 10.000 víveres, fruto do
trabalho dos atores e suas organizações.
As instâncias estatais e esferas de ação coletiva institucionalizadas também
compõem e ativam a FEICOOP, com as comemorações de projetos efetivados,
como os 10 anos do Fórum Brasileiro de Economia Solidária/FBES; 18 anos da
Rede Internacional de Promoção de Economia Social e Solidária do Caribe e LatinoAmericano/RIPESS; 10 anos da Secretaria Nacional de Economia Solidária/
SENAES; 20 anos da FEICOOP; 30 anos de Economia Solidária/Cáritas Brasileira;
25 anos do Projeto Esperança/Cooesperança.
As atividades autogestionárias pelos atores do Movimento de Economia
Solidária conformavam o denominado Território Solidário, com discursos e práticas
que posicionavam o cooperativismo e a economia solidária como desenvolvimento
sustentável, popular e coletivo, com o objetivo de constituir os espaços da feira como
territórios de interação social e publicização de formas de organização política,
cultural, econômica e social.
Destacamos a presença do Levante Popular da Juventude com frequentes
intervenções musicais, debates, proposições, marchas, gritos, bandeiras de lutas,
músicas de protesto no acampamento da juventude e, também, em todos os
espaços da feira, a fim de sensibilizar e afirmar as pautas organizadas aos
transeuntes na feira.
A presença ativa da diversidade cultural e das minorias historicamente
marginalizadas é uma das marcas da FEICOOP, entre as quais evidenciamos as
presenças e articulações de mulheres sem terra, agricultores camponeses,
quilombolas, indígenas, catadores, mobilizações de rua, através da comercialização
direta de sua produção, organizações e em fóruns de discussão.
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6 ANÁLISES E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para iniciarmos nossas análises e as considerações finais desta pesquisa a
partir do estudo de caso, trazemos o lema da 20ª FEICOOP, “Uma experiência
Aprendente e Ensinante”, e, ainda, o lema da 2ª Feira Mundial de Economia
Solidária, “Outro mundo é possível. Outra Economia já acontece”. Logo,
consideramos que esta é uma feira que constantemente questiona o status quo atual
ao mesmo tempo em que brinda com a demonstração dos empreendimentos e
organizações de economia solidária de que outra economia já acontece. Uma
economia não baseada na relação de exploração, mas sim na possibilidade de
produção,
circulação,
geração
e
apropriação
de
valor
como
forma
de
desenvolvimento humano e social. Deste modo, apresenta-nos a atitude afirmativa e
contundente deste acontecimento, fruto de construções coletivas de atores e
organizações pautadas e angariadas em rede ao longo dos 20 anos.
O lema da 20ª FEICOOP aciona o potencial do aprendizado coletivo e de
sociabilidade provocado pela feira, onde todos os envolvidos são vistos como
aprendentes e, ao mesmo tempo, ensinantes, na perspectiva das trocas
econômicas, simbólicas, culturais, cooperativas e de afetos, durante os dias da feira.
Isto aponta para o posicionamento construído como uma forma de ruptura ao
modelo hierarquizado e dominante de sociedade, onde algumas pessoas e grupos
detêm o saber e o conhecimento, e uma grande maioria com seus saberes é
deslegitimada e excluída da esfera de ação pública e coletiva. Vale destacar o
profundo estudo de Vargas (2012) acerca dos slogans da FEICOOP, através da
análise de cartazes das edições da feira, onde é possível notar nos seus conteúdos
no decurso de sua história, a mudança dos significados, resultado de superações de
assimetrias econômicas e sociais.
Dentre os diversos significados atribuídos para a FEICOOP, destacamos que
se constitui enquanto espaço plural de ação coletiva e política, arena provocativa de
práticas, valores, discursos e projetos de economia solidária, ao mesmo tempo em
que a economia solidária lhe confere a identidade síntese. Discussões e
encaminhamentos são realizados no campo da economia solidária enquanto esfera
de ação coletiva e política que ordena e reordena o funcionamento das
organizações, grupos, cooperativas e empreendimentos que, com mais ou menos
intensidade, têm relação com a economia solidária e popular.
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Também significa reconhecimento econômico, político e social da produção,
consumo e apropriação de valor. Existem as circulações do fruto do trabalho e as
circulações de bens simbólicos desses atores e suas organizações. A categoria
trabalho, por sua vez, assume importante papel, seja enquanto trabalho voluntário,
seja enquanto oportunidade dos agentes de serem reconhecidos e visibilizados
como pessoas e pelo fruto do seu trabalho pela sociedade local, através do contato
direto entre “produtores e consumidores”. O entusiasmo, a comercialização direta, a
oportunidade de acordos comerciais futuros, o reconhecimento e as interações
sociais, fazem com que o trabalho assuma outro sentido, distante da realidade
penosa do labor cotidiano, do desgaste físico, psíquico e social. A organização e a
participação na FEICOOP para os promotores, apoiadores ou organizadores é um
grande desafio, especialmente para aqueles grupos, cooperativas ou famílias que se
deslocam do seu raio de atuação cotidiana e se inserem em um espaço de
circulação pública, onde diversas pessoas, grupos, lideranças políticos, instituições e
imprensa compõem o espaço.
No trabalho de Lourenço (2012) podemos verificar que, na análise de
cooperativas de economia solidária, o direito, a fala e a voz de cada cooperado são
provocados. A cooperativa não é um lugar de rejeição de opiniões, manifestações,
ideias e críticas. De modo semelhante ao encontrado na feira, os atores, de modo
muito ativo, oscilam suas expressões e falas entre si e diretamente aos promotores e
organizadores, expressando valorizações, críticas e propostas. As pessoas que
estão engajadas na feira aproveitam o evento para praticar e expor suas virtudes
solidárias, de reciprocidade, de apoio mútuo, de democratização do espaço, de
modo a beneficiar o coletivo e também promover o modo pelo qual norteiam suas
práticas e interesses. As subjetividades dos atores são expressas em opiniões,
alegrias, conquistas, desafios, amizades, abraços coletivos e alguns conflitos e
tensões inerentes a qualquer espaço de interlocução. Ainda que sem muita noção
sobre conceituações acerca da economia solidária, a ajuda mútua e a cooperação
na organização dos estandes, revezamento de escalas e a torcida para que “dê tudo
certo”, são evidências das possibilidades evocadas.
Historicamente, a FEICOOP tem se constituído com impulsos e iniciativas de
várias organizações, com destaque do papel desempenhado pela Cáritas Brasileira
e seus atores, na composição de um espaço plural de inclusão das minorias e
grupos
marginalizados.
Entretanto,
dada
430
essa
estruturação
da
FEICOOP,
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analisamos que a feira é preenchida pela agência dos atores, onde o espaço
coletivo é apropriado e significado pela multiplicidade de pessoas, organizações não
estatais, redes, coletivos, cooperativas e associações. Na maturação de sua
vigésima edição, o que podemos afirmar é que existe uma polifonia de vozes, em
que as práticas e os significados das relações estabelecidas são instituídos pelos
atores e visualizados pela sociedade local, sejam quilombolas, agricultores
familiares, mulheres e homens sem terra, kaingangs, guaranis, trabalhadores
autônomos, catadores e recicladores, jovens, entre tantos outros.
Sendo assim, a partir do trabalho de campo, nota-se que muito aquém ou
além da exposição e comercialização da produção dos feirantes, a FEICOOP
apresenta as diversidades de produção dos grupos e organizações e as
diversidades de mundos e sentidos em interlocução. Torna-se espaço de interação
social, de criação e atualização de laços de solidariedade e ajuda mútua, de convívio
entre as diferenças. Neste sentido, essa pluralidade aviva a experiência da
alteridade, pois significa o encontro com o “outro”, com grupos e culturas “diferentes”
entre si e que, através das sociabilidades emergentes, distanciam-se da
individualização e apontam para uma lógica de interrelação e compreensão entre
pessoas, coletivos e mundos. Conhecer e interagir com outras culturas faz
reconhecer que “somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.”.
(LAPLANTINE, 2000, p. 21).
Pesquisas com movimentos sociais contemporâneos têm problematizado e
animado o potencial desses na ativação da esfera pública e na democratização da
relação Estado-Sociedade no que há de “gérmen ou potencial criativo para
instituição de novos mundos possíveis”. (TOMASI; BRANCALEONE, 2012, p. 16). É
neste sentido, que a presença de organizações, associações e movimentos sociais
nos espaços coletivos da FEICOOP fazem operar contestações, pautas,
reivindicações, onde se afirmam formas de ação através de diálogos, articulações,
marchas, contatos, fóruns e intervenções para a produção de outra economia.
Criam-se e recriam-se relações sociais de coletivos e se instiga o sentimento de
pertença a movimentos sociais que cristalizam no cotidiano a necessidade de
transformação e instituição de mundos e relações sociais mais horizontais.
Entendemos que a arena da feira expõe dramas sociais e também evidencia
processos econômicos e sociais dispostos a traduzir modalidades de criação de
laços e vínculos sociais baseados em princípios e práticas cooperativas, entre os
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quais a reciprocidade, a solidariedade, o apoio mútuo, a confraternização e a
apropriação do valor de uso e do valor do coletivo. Distancia-se e discrimina lógicas
hegemônicas pautadas na acumulação do lucro, mercantilização e capitalização das
relações sociais.
Não somente faz a história das pessoas, grupos, organizações, como produz
a memória da coletividade. Oportunamente, consideramos a feira como espetáculo
participante e ritual, onde os participantes se tornam cúmplices desse acontecimento
e vivenciam o que Turner (1974) denominou como princípio de communitas. Ao
estudar os processos rituais de comunidades não ocidentais, esse autor identificou
um momento do processo que definiu de liminaridade, em que as hierarquias se
anulavam e se instalava uma nova relação de interação horizontal entre os
participantes. Chamou esse estado de communitas, em que se institui um
sentimento de fraternidade, partilha e integração entre os membros. Após o
processo ritual dos participantes e do encerramento da feira, a projeção é de que o
communitas compartilhado, a experiência comunitária e a memória coletiva,
provocarão efeitos na vida cotidiana pós-feira na emergência de novas experiências.
Os compromissos e acordos assumidos durante a feira são exemplos concretos
desse efeito, tais quais os convites e a articulação para participação em feiras
futuras, viagens, excursões, fóruns de discussão, acampamentos, apresentação de
relatos de experiências em outras regiões do RS e do Brasil, papéis em redes ou
organizações.
O processo de produção do significado da FEICOOP para os atores passa
pela experiência vivida por pessoas, grupos, culturas, coletivos e organizações
envolvidas, através das quais afetam e são afetados individual e coletivamente. As
práticas e ações de cooperação e ajuda mútua são alimentadas e retroalimentadas
nos discursos, saberes, experiências e sentidos sobre cooperativismo e economia
solidária, durante os dias da FEICOOP. Notamos que os discursos e práticas, por
vezes, se conciliam e convergem, e, por vezes, se contundem e contradizem.
Entendemos que a existência desses conflitos e incongruências também constitui a
feira e estes são vitais para o cooperativismo e a economia solidária enquanto
processo histórico em curso, que agencia contradições, superações e horizontes.
Substancialmente, para os atores que a compõem e as redes que organizam,
entendemos que as sociabilidades emergentes pulverizaram a padronização e o
controle, e exercitam relações sociais, culturais e econômicas mais simétricas:
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Nesta perspectiva, concebemos como sociabilidades emergentes um
conjunto de práticas sociais e representações do social orientadas por
elementos como a horizontalidade, a liberdade, o respeito à diferença, a
solidariedade, a livre criação, a apropriação social de valor de uso e a
inclusão como fundamentos do estabelecimento de laços sociais e da
constituição de coletividades autodeterminadas. [...] Apesar de sua aparente
invisibilidade, constatamos uma insinuante multiplicação das sociabilidades
no interior de processos, organizações e incluso instituições estabelecidas,
ou seja, articuladas em diversas configurações no interior ou em relação
marginal com o Estado e o mercado como os conhecemos. E cremos que
sua presença fragmentária pode ser o sintoma de dinâmicas configuradoras
de novos sujeitos e arenas sociais, no caminho da emancipação humana.
(TOMASI; BRANCALEONE, 2012, p. 17).
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