Odirlei Costa dos Santos A LITANIA DOS TRANSGRESSORES: DESÍGNIOS DA PROVOCAÇÃO NAS NOVELAS DE LÚCIO CARDOSO Rio de Janeiro 2010 Odirlei Costa dos Santos A LITANIA DOS TRANSGRESSORES: DESÍGNIOS DA PROVOCAÇÃO NAS NOVELAS DE LÚCIO CARDOSO Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho Rio de Janeiro 2010 Ao Moacir, o grande apaixonado cardosiano de Patos de Minas, interlocutor perfeito para diálogos literários e algumas amenidades prazerosas, único amigo capaz de compreender e compartilhar o risco de um fascínio chamado Lúcio Cardoso. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 11 1. CONSIDERAÇÕES SOBRE “DIÁRIO DE TERROR”: A PROVOCAÇÃO NA METAESCRITA CARDOSIANA ................................................................................................ 16 2. HOMOEROTISMO E VIOLÊNCIA COMO PROVOCAÇÕES .............................................. 31 2.1 A paixão obscura: o sentimento oblíquo .................................................................................. 32 2.2 O afeto trágico: o homoerotismo em O desconhecido ..............................................................42 2.3 Espanto e renúncia: a descoberta homoerótica em O anfiteatro ...............................................53 2.4 A pureza profanada: violência em O enfeitiçado ......................................................................59 3. O RISO TRANSGRESSOR DE SÍSIFO: O ABSURDO NAS NOVELAS CARDOSIANAS ..............................................................................................................................63 3.1 A experiência do suicídio em Mãos vazias ................................................................................64 3.2 A revolta absurda em Inácio e O enfeitiçado .............................................................................69 3.3 O mofo, o ódio e o ressentimento: inferno e decadência nas províncias mineiras ....................77 3.4 Agonizar de olhos abertos: loucura e lucidez no absurdo .........................................................86 3.5 A blasfêmia contra o rosto de Deus: o absurdo e o sagrado ......................................................92 4. LÚCIO CARDOSO E O UNIVERSO MARGINAL DAS CIDADES .......................................99 4.1 Caricaturas da decadência: as personagens das novelas urbanas .............................................100 4.2 Limites marginais entre interioridades e exterioridades ..........................................................109 4.3 Das sacristias aos bares: a ruptura com os espaços de clausura e opressão ............................116 CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 126 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................... 131 RESUMO O presente estudo busca engendrar o deslinde dos artifícios da provocação face às novelas de Lúcio Cardoso (1912-1968). Por Mãos vazias (1938), O desconhecido (1940), Inácio (1944), A professora Hilda (1946), O anfiteatro (1946) e O enfeitiçado (1954), podemos perscrutar como a tessitura literária ontológica explorada por Lúcio atende fundamentalmente ao ideário provocador do escritor mineiro. Procuramos enfatizar como o autor explorou diversos estratagemas literários para adensar a escrita de mal-estar e perturbação, a tornar a provocação o mote primordial de seu virtuosismo literário transgressor. PALAVRAS-CHAVE: Lúcio Cardoso. Provocação. Novela. Transgressão. ABSTRACT Before Lucio Cardoso’s novels this thesis pursues to engender the unravelling of the artifices that reveal provocation. Through some of his works such as Mãos vazias (1938), O desconhecido (1940), Inácio (1944), A professora Hilda (1946), O anfiteatro (1946), and O enfeitiçado (1954) it is possible to go over the ontological literary texture explored by Lucio in order to know how it answers his own provocative ideal. We aim to emphasise how the Brazilian author used a range of literary stratagem to gather a piece of writing that causes discomfort and perturbation. Thus provocation becomes the primordial subject of his literary virtuosity that is also transgressing. KEY WORDS: Lúcio Cardoso. Provocation. Novel. Transgression. O mundo está atento ao meu êxito se deseja a minha queda. Jean Genet INTRODUÇÃO Escritor notório pelas sondagens existenciais e pelos mergulhos ontológicos de suas personagens, presentes tanto em diários íntimos como na prosa de ficção, Lúcio Cardoso construiu toda sua imagerie literária tendo como esteio fundamental a provocação. Observamos que a palavra não se limita apenas aos seus significados habituais de insultar, afrontar, ofender; também permite a confluência de sentidos tão notadamente cardosianos, como estimular, instigar, desafiar, tentar, incitar, seduzir. Lúcio foi absolutamente um grande provocador. Toda a construção de narrativas, entrechos, personagens, efeitos de ambientes, cenários, paisagens, cores, tudo o que compõe por inteiro sua tessitura literária teve como moto-perpétuo seu ideal perturbador. Devassar até a possibilidade de intensificar em níveis extremos o mal-estar do leitor foi parte de um projeto pessoal e profissional de vida. O interesse do presente trabalho reside em deslindar o artifício da provocação face às novelas de Lúcio Cardoso, produções que ainda não mereceram um estudo de tese, segundo consta em O riso escuro ou O pavão de luto, de Ésio Macedo Ribeiro, a biografia anotada mais completa feita sobre Lúcio até o momento. Toda a literatura de introspecção por ele construída não se insere tão somente em um contexto de perscrutação ontológica do homem; antes atende aos interesses de instigar estados de desconforto e inquietação em seus contemporâneos. Pretendemos apreciar os modos com que o polemista mineiro engendrou uma escrita perturbadora a partir de todos os artifícios possíveis, tornando a provocação não uma mera conseqüência do seu estilo de escrita ou dos temas desconcertantes que escolheu; ela antecedia suas pretensões literárias como uma forma imanente do artista Lúcio Cardoso e seu virtuosismo transgressor. Do menino nascido em Curvelo, em Minas Gerais, no dia 14 de agosto de 1912 até a derrocada boêmia da década de 1960 no Rio de Janeiro, temos a trajetória de vida de um escritor e artista pouco conhecido do público médio, embora bastante admirado por escritores e estudiosos do círculo acadêmico contemporâneo. Não é nosso interesse aqui repetirmos uma biografia já bastante conhecida pelos estudiosos cardosianos; apenas retiramos dela algumas passagens que nos ajudam a vislumbrar a formação do homem provocador sob o menino impetuoso dos rincões de Minas. Os primeiros signos da insubordinação de Lúcio estão presentes em Por onde andou meu coração, de sua irmã Maria Helena Cardoso. As referências a Lúcio são moderadas, já que procura tecer suas memórias pessoais e não as de seu irmão – isto a escritora deixaria para Vida vida, embora as reminiscências estejam restritas aos últimos anos de vida de Lúcio, além da abordagem parcimoniosa referente às questões mais polêmicas como o homoerotismo. Garoto em Belo Horizonte, educado em casa primordialmente materna, o caçula foi o mais sensível dos irmãos, preferindo jogos diferentes dos outros meninos, encenando a coroação de Nossa Senhora em maio ou simplesmente brincando de bonecas, o que deixava o pai mortalmente escandalizado (CARDOSO, 1968: 272). Entre outras de suas quimeras, brincava com recortes de jornais e revistas dos artistas de cinema, fazendo seus próprios programas e anunciando filmes com os títulos que criava. Não obstante, não foi o menino dócil agarrado à saia da mãe ou das irmãs; mesmo com uma sensibilidade acima da média, já prenunciava o garoto imperioso que preferia fazer o que bem lhe aprouvesse, como diria a irmã em relação à sua desobediência.1 Demonstrava também um interesse precoce por cinema e teatro, concomitante ao seu prazer pela literatura. Tal imaginário prematuro o levaria a escrever Maleita aos 17 anos, e que seria posteriormente 1 “Apesar de inteligente e sensível, não gostava da escola, onde era considerado como um dos alunos mais apagados. Fugia do Grupo Escolar e ia para o parque com outros companheiros, ficando lá até a hora de acabarem as aulas. Uma vez a professora mandou indagar de mamãe se o menino estava doente, pois havia um mês que não comparecia ao Grupo. Foi um rebuliço lá em casa e, à volta do parque, todo sujo e rasgado, mamãe deu-lhe uma surra de “gloriosa memória”, como ela costumava dizer. Não podia entender a rebeldia daquele menino, capaz de desafiá-la daquela maneira. Nenhum dos outros jamais tivera a audácia de um procedimento desses, desobedecendo-lhe num ponto que sabia fundamental para ela. Ficava inquieta. E se quando crescesse desse o malandro que papai tanto anunciava? Mesmo contra a sua vontade, tinha necessidade de ser rigorosa com ele, pois papai estava de olho e não perderia a oportunidade de criticar seu sistema de educação. Tinha dado certo com Fausto e Dauto, por que não daria com ele? O menino era altivo, não se dobrava, mas devia haver um jeito.” (CARDOSO, 1968: 273) publicado em 1934. Entre romances e novelas, trabalharia com teatro2, escrevendo e dirigindo, além de suas incursões goradas como diretor de cinema. Como medida de subsistência, atuaria como jornalista profissional em A Noite na década de 40 – trabalho em que pouco se sentia à vontade – e inicia período como tradutor de obras como Ana Karenina, de Leon Tostoi, Confissões de Moll Flanders, de Daniel Defoe, Orgulho e preconceito, de Jane Austin e O livro de Job, a partir de uma versão francesa de Samuel Kahen, entre outras. Apesar de conquistar a consagração com Crônica da casa assassinada em 1959, a atenção de Lúcio foi focada por mais de 10 anos em O viajante, com o qual almejava alcançar a plenitude como escritor, mas cuja produção foi interrompida devido às suas outras atividades artísticas ou mesmo à errância de uma vida repleta de amigos e noitadas pela boêmia carioca. Quando não circulava pelos bares, gostava de viajar pelo interior, principalmente pela região dos lagos do estado do Rio de Janeiro ou por Minas Gerais. Até mesmo como fazendeiro tentou viver, comprando uma terra inóspita nas imediações de Rio Bonito. Em Vida vida, Maria Helena Cardoso destaca as peripécias do irmão, mostrando seu espírito aventureiro e dinâmico, desprendido de ganância pelo dinheiro ou poder, dividindo o que era seu com amigos ou amantes. Esse forte apego à vida – o que nos ajudou a encarar uma outra faceta desconhecida de Lúcio, extremamente relevante para o presente trabalho – também foi apontado por Clarice Lispector na crônica “Lúcio Cardoso”, publicada em 11 de janeiro de 1969 no Jornal do Brasil e posteriormente incluída em A descoberta do mundo, compilação de todos os seus textos para o jornal.3 No primeiro capítulo, apresentamos a provocação como questão-chave do nosso presente estudo, a partir do chamado “Diário de terror”, de onde ela originariamente foi desvelada 2 Os textos dramatúrgicos foram compilados em Teatro reunido, lançado em 2006 pela Editora UFPR, o que inclui também as peças escritas nunca encenadas. 3 Muitos afirmam a paixão da escritora por Lúcio, algo que também podemos inferir por esta curiosa declaração: “Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado” (LISPECTOR, 1999: 167). aos nossos olhos. Pela leitura do manuscrito, o propósito deliberado do autor em instaurar a perturbação e o mal-estar se tornou clarividente, o que instigou o desejo de perscrutar na prosa de ficção menos conhecida do escritor os artifícios engendrados para alcançar seus intentos. “Considerações sobre ‘Diário de terror’: a provocação na metaescrita cardosiana” funciona, de algum modo, como uma segunda introdução para o trabalho, já que deslindamos o mote de nossa tese a partir dos diários de Lúcio, o que nos conduz ao entendimento da provocação como essência de sua produção literária e de toda a sua concepção de arte. Ainda no primeiro capítulo, apresentamos Diário completo para que ele seja encarado fundamentalmente como deve ser: o livro primordial para quem queira se aventurar pelos estudos cardosianos, e sua leitura concomitante às narrativas do autor tornou-se absolutamente imprescindível. Todas as novelas de Lúcio Cardoso publicadas estarão presentes no estudo de tese: Mãos vazias (1938), O desconhecido (1940), Inácio (1944), A professora Hilda (1946), O anfiteatro (1946) e O enfeitiçado (1954). Como adendo, teremos a inacabada novela Baltazar, em edição da Civilização Brasileira de 2002, que forma com Inácio e O enfeitiçado a trilogia “O mundo sem Deus”. Elas serão analisadas não em ordem cronológica, e sim respeitando a adequação de cada uma delas aos temas propostos. Começamos efetivamente a abordá-las a partir de “Homoerotismo e violência como provocações”. Importante salientarmos a priori pelo menos três caminhos para o deslinde da tessitura literária cardosiana: o primeiro percorre as inquietações ontológicas, amiúde confundidas às interdições religiosas; um segundo, a abarcar os sinais de comportamentos psicológicos dissonantes, legitimados por uma tendência imanente do homem para o Mal; e o terceiro viés – o que justamente serve de moto-contínuo para nosso estudo de tese – traz implicações com os conflitos de natureza moralizante, a expor uma luta voraz do homem consigo mesmo e com o universo opressor ao redor. Genealogia da moral, de Friedrich Nietzsche, torna-se um texto com importância proeminente em todos os capítulos do trabalho, face ao anseio das personagens cardosianas pela transgressão moral. Jean Genet, de quem Lúcio foi leitor e admirador, será também um nome fundamental ao longo da tese, pelos modos como o escritor francês afronta o discurso moralista impondo sua ode ao fascínio pelo crime e pela marginalidade. Ainda no corpus teórico das referências essenciais, apontamos também Corcel de fogo, de Mario Carelli, estudioso que pode ser considerado o maior divulgador da obra cardosiana no exterior. Utilizamos também artigos e ensaios publicados na edição crítica de Crônica da casa assassinada, principalmente aqueles assinados por Octavio de Faria. A partir do terceiro capítulo, “O riso transgressor de Sísifo: o absurdo nas novelas cardosianas”, focamos as narrativas urbanas do escritor, tendo como norte a relação de Lúcio com o absurdo, tal como foi proposto por Albert Camus em O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo – juntamente com outro livro do pensador argelino, O homem revoltado. Continuamos a desvelar os matizes provocadores das novelas urbanas no último capítulo, “Lúcio Cardoso e o universo marginal das cidades”, onde novamente Nietzsche e Genet serão esteios fundamentais para o desvelamento do caleidoscópio cardosiano de loucura e morte em suas progressões mais perturbadoras possíveis. CAPÍTULO 1 – CONSIDERAÇÕES SOBRE DIÁRIO DE TERROR: A PROVOCAÇÃO NA METAESCRITA CARDOSIANA Em um pequeno caderno escolar de cinqüenta e seis páginas, perdido no limbo das criações renegadas, encontramos fragmentos de um pensamento seminal para o presente estudo de tese sobre o escritor mineiro Lúcio Cardoso. “Diário de terror”4, misto de escrita pessoal com endogênese de sua prosa de ficção, poderá nos desvelar de modo mais acurado o pensamento de Lúcio a respeito da fabulação de sua escrita. O manuscrito havia sido publicado inicialmente na revista Caravelle de Toulouse em 1985, até ser novamente reeditada na segunda edição crítica de Crônica da casa assassinada, organizada por Mario Carelli e publicada em 1997. Encontramos, neste pequeno esboço de tessitura íntima, possibilidades de ampliar o deslinde de suas concepções provocadoras da narrativa, intensificadas pelos seus interesses pessoais de solidificar a imagem de persona non grata, por seus embates com escritores e críticos que lhe foram contemporâneos, pela famigerada polêmica que seus romances e novelas instigavam e também por sua própria imagem de bon vivant homossexual e de vida assumidamente boêmia. O manuscrito de “Diário de terror” foi um trabalho concomitante à construção de Crônica, como aponta Carelli ao afirmar que tais anotações “revelam a proposta íntima do artista, dando várias chaves de leitura do romance e, em segundo lugar, constituem o lugar genético de fragmentos reintegrados com novo estatuto na obra ficcional”, provando que as personagens do romance “expressam convicções fundamentais da mensagem pessoal do autor” (CARELLI, 1997: 743). Não obstante, acreditamos que o deslinde vai mais além, no que tange à possibilidade de uma leitura imanente do manuscrito sem submetê-lo a uma mera comparação com personagens do livro 4 A referência ao “Diário de terror”, de Lúcio Cardoso, será dada entre parênteses, com a abreviatura DT, seguida do número da página. citado. A metaescrita de Lúcio desnuda de modo clarividente a plena relação que expõe entre escrever e provocar, algo que podemos inferir pela leitura de “Diário de terror” que, apesar da alcunha de diário, funcionaria mais como um texto em que o autor desfilaria livremente suas idéias sem se preocupar excessivamente com a organização por datas ou tópicos de leitura. Acreditamos que, pelas linhas de um trabalho menos notório, Lúcio definiria bem suas intenções provocadoras em fomentar uma escrita direcionada para causar um profundo mal-estar no leitor: Gostaria que meus leitores se transportassem a um estado de tão alta emoção passional que isto lhes destruísse o equilíbrio e eles se sentissem fisicamente doentes. As grandes emoções interiores sacodem até o âmago a estrutura física do ser – e como não há maior ambição para um escritor do que a de causar a emoção mais violenta e mais perigosa, gostaria que aqueles que me acompanham se sentissem dominados, violentados até a saturação, e me rejeitassem com violência, o que seria uma demonstração da minha força, ou me aceitassem como um mal irremediável, o que seria um sinal da minha profundeza. (DT, 744) Octavio de Faria, grande amigo e conhecedor profundo dos textos cardosianos, seria um dos grandes defensores da valoração existencial – defendendo a idéia do “romance ontológico” (FARIA, 1997: 662) – de seus escritos, o que confere inegável densidade ao escritor que talvez mais bem tenha explorado o caráter de introspecção do romance brasileiro moderno. Não obstante, o que procuramos com o presente trabalho é enfatizar que todo o seu “mundo eminentemente desesperado” (FARIA, 1997: 665) pertence efetivamente a um projeto deliberado de escrita e que mesmo suas sondagens existências – contando ainda, mais do que a própria devassa ontológica, o desconforto que se abate sobre o leitor a partir dela – compõem um jogo de escrita muito bem articulado pelo autor, com plena consciência do transtorno moral que instigaria diante de um público reacionário: “Não há conhecimento que não seja pessoal, e tudo o que plantei em mim, as sementes do bem e do mal, a terra que revolvi e adubei, que cumpra o seu destino e produza, ainda que a flor azul aos meus olhos, não seja aos olhos alheios senão um fungo demente e monstruoso, uma rosa de fel e pestilência” (DT, 746). Podemos inferir como Lúcio procura aliar a perspectiva ontologicamente trágica do homem à função estética da arte pela qual construiu seu projeto literário. Tal proposição nos remete à distinção barthesiana entre “texto de prazer”, construído face à satisfação das expectativas do leitor, dando-lhe a sensação de contentamento, conforto e segurança, e “texto de fruição”, aquele que fornece “um estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem” (BARTHES, 1996: 22). A fruição do texto pela perscrutação ontológica que realiza junto às suas personagens é absolutamente deliberada como artifício de escrita. A virulência da arte que incomoda o homem a ponto de perturbá-lo até fisicamente compõe o mote literário cardosiano de diários, novelas e demais produções do autor, como percebemos também pelo trecho de “Confissões de um homem fora do tempo”, outro pequeno ensaio do autor, presente na mesma edição crítica de Crônica da casa assassinada: Mas tendo afirmado que acredito no romance, quero acrescentar que acredito apenas naquele que é feito com sangue, e não com o cérebro unicamente, ou o caderninho de notas, no que foi criado com as vísceras, os ossos, o corpo inteiro, o desespero e a alma doente do seu autor, do que foi feito como se escarra sangue, contra a vontade e como quem lança à face dos homens uma blasfêmia. (CARDOSO, 1997: 763) Lúcio sustenta o seu projeto com uma obra de forte apelo expressionista, graças ao olhar transfigurador que lança sobre personagens e ambientes. Pela transfiguramento constante das dimensões do mundo pelo sujeito pensante, a prosa de ficção cardosiana é representada pelo expressionismo, segundo aponta Mario Carelli, ao enfatizar o modo peculiar com que Lúcio Cardoso transcende a mera representação do real. No artigo “A música do sangue”, Carelli aponta que “expressionista é a obra na qual o autor desordenou as linhas e as estruturas naturais, acadêmicas, da composição para obter efeitos duma emotividade carregada, exasperada, subtraindo a perspectiva de suas leis objetivas, dobrando-a ao ritmo interno da própria visão”5. Lúcio escreve em seu Diário completo que, ao artista, não restaria retirar algo do completo nada, já que suas pretensões poderiam ser encaradas por outro prisma de criação: “todo criador tira sua criação (...) do seu fermento interior, de suas contradições, de sua ânsia de entender e captar, impondo assim ao mundo um conjunto de valores que representem exatamente a estatura de sua força interior” (CARDOSO, 1970: 276). A escrita expressionista teria como leitmotiv o anseio pela transfiguração, através de um estranhamento do habitual e da busca do sentido oculto dos elementos ao redor. Ao esclarecer sua capacidade peculiar de “ver” o mundo que o circunda, Lúcio Cardoso apresenta sua própria definição de expressionismo, ainda em seu Diário completo: Leio em Montherlant que um escritor, para saber descrever, tem necessidade de “ver” – que Balzac, Tosltói, “viam” bem. Não sei a que quer ele se referir com isto, mas investigando o que para mim significa “ver”, chego à conclusão de que “não vejo bem”, no sentido de que ver é olhar intensamente para uma coisa ou uma paisagem. Olhar, olho muitas, mas tenho certeza de que não consigo vê-las. As coisas, para serem vistas por mim, têm necessidade de preexistirem, latentes, no meu íntimo – que tal árvore ou tal lago relembre coisas já vistas ou sentidas – ou que despertem outras não vistas nem sentidas ainda, mas que estendam suas raízes no meu espírito – que pactuem um pouco, enfim, desse mundo inorgânico que me forma, e onde se mistura às sensações e aos sentimentos, a ponta de uma verdade que do lado de fora vem encontrar o seu eco – próximo ou remoto, que importa – mas ainda assim eco de uma verdade existente ou existida. (DC, 263-264) A deformação de cenários e personagens, sem se submeter aos limites que uma leitura realista poderia impor, chegou a suscitar críticas pouco favoráveis aos seus textos – Octavio de Faria apontaria que, segundo os críticos, suas personagens “seriam heróis pouco reais, pouco verossímeis, esses que não conheciam senão os limites extremos de seus sentimentos – essas regiões onde só se verificam ‘acontecimentos extraordinários’, porque nelas só sopram os ventos 5 CHIARINI apud CARELLI, 1997: 728. da loucura e da morte, da destruição e do crime” (FARIA, 1997: 667), completando que, ainda para eles, “seriam exagerados os tons do paisagista e até monótono o ‘de profundis’ que entoa” (FARIA, 1997: 667). As críticas acirradas surgiram principalmente após a ruptura com os escritores regionalistas, a partir da publicação de A luz no subsolo em 1936. Em pleno período de grande engajamento político-social dos artistas brasileiros, Lúcio lança um texto demarcado pela literatura de introspecção, em que o absurdo e o nonsense já configuravam seus matizes – como ressonância temos a carta que Mário de Andrade escreveu para Lúcio em 20 de agosto de 1936, relatando o quanto havia ficado incomodado com a leitura do livro (SANTOS, 2001: 31). A celeuma prosseguiu entre nomes como Brito Broca, Jorge Amado, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins e a famigerada contenda com José Lins do Rego, com quem teria saído às vias de fato na loja da livraria José Olympio (fato desmentido posteriormente). Em entrevista a Brito Broca em 1938, Lúcio Cardoso já definiria os contornos de sua escrita expressionista, como que se preparando de antemão para os petardos que receberia pelas características de seu trabalho6 (consideramos não só a crítica aos romances e novelas, mas também em relação ao teatro, onde recebeu as reprovações mais impiedosas), a partir do qual construiu sua trajetória literária dos próximos 20 anos: Já em várias ocasiões me referi a essa crença dominante na maioria dos nossos romancistas de que a “fidelidade à vida” – oh! Deus! – consistia na observação direta dos fatos e das coisas – espécie de espionagem em torno de características puramente sociais ou aparentes em prejuízo dos fatores profundos que as determinam. E isto tinha levado a maioria dos romancistas brasileiros a uma pura paisagem, quase sempre levantada com talento de narrados, mas, sem raízes na vida. A origem era quase exclusivamente nascida no desprezo em que mantinham uma das faculdades básicas em qualquer obra de arte – a imaginação. Todos pareciam de comum acordo em ignorar que é neste ponto que se manifesta a força do dom que um artista recebe no berço. Entretanto o real que era tão vigorosamente apregoado, é tão diferente, tão mais profundo e misterioso do que parece, que será ingenuidade concordar em que um simples golpe de vista “documentário” o apreenda; que de energia e de paixão, de angústia e de entusiasmo foge da mão do romancista que tenta indolentemente fixá-lo. Quase 6 A leitura do livro Polêmica e controvérsia permite identificar duras ressalvas à qualidade de suas novelas, o que demonstra como a figura de persona non grata circulava também de forma intensa entre os círculos literários, sem contarmos aqui as pesadas críticas que recebeu por seu trabalho com o teatro na época. sempre nada consegue senão a imagem que rege o mecanismo da vida, mas a vida em si está ausente. Porque, para humilhação nossa, é preciso dizer mais uma vez que a vida não é a constatação do ambiente exterior, a escada de um pardieiro, a rua, as fachadas das casas, os barcos, os riso, os tetos e os jardins – a vida é ao contrário o que o homem o sofre, a história das suas reações, os sentimentos que os habitam, as paixões que o conduzem. A vida não é o que os olhos vêem, mas o que a alma guarda. E fora disto não existe arte e sim fabricação. (CARDOSO apud SANTOS, 2001: 58-59) A imaginação que Lúcio Cardoso destaca em 1938 ganharia tamanha proporção nos próximos trabalhos que se transformaria em estado febril de delírio, como o que encontraremos nas novelas Inácio e O enfeitiçado, abordadas em nosso estudo. Suas personagens transcendiam o real utilizando vários elementos possíveis: álcool, tóxicos, homicídios, violência sexual ou pela própria loucura imanente. Como veremos com mais precisão nos próximos capítulos, o mundo das coisas concretas está impregnado de tédio, remorso e frustração por uma vida esvaziada de sentido, e disto as personagens pareciam fugir desesperadamente: “Só as pessoas realmente fortes podem viver na realidade definitiva das coisas; quase todo mundo vaga numa atmosfera morna de fantasia” (DT, 748). Ao utilizar os excessos da imaginação desregrada para construir sua própria realidade transgressora, Lúcio demonstrou ser menos preocupado com a coerência lógica de algumas de suas histórias do que com o escrutínio emocional do coração humano devastado, sem submeter a organização de sua escrita a uma descrição extremamente fidedigna do real em seus limites de espaço e tempo, o que permitiu que muitos acusassem de incongruente o entrecho de suas narrativas. Por certo, notamos como não são realmente raros certos lapsos de escrita com os quais muitos de seus detratores literários se regozijaram, e que após anos de leitura cardosiana não seja difícil detectar. É comum encontrarmos em algumas histórias certo despropósito cronológico, o que permite inferir uma insubordinação de Lúcio aos limites temporais, já que alguns dos acontecimentos são alinhavados em um período de tempo por vezes improvável, face à força incontrolável que arrasta suas personagens, verdadeiras marionetes à mercê da gana obsessivamente trágica de Lúcio. O mais curioso talvez seja o que observamos no inacabado O viajante: todo o torvelinho de situações é concomitante aos preparativos da festa religiosa da cidade e todas as paixões eclodem no recorde de tempo de três dias. Após alguns poucos encontros com o viajante Rafael, Donana de Lara decide atirar o filho deficiente no precipício. Em novelas como O desconhecido, toda a relação trágica entre as personagens suscita a ligeira impressão de que tudo ocorre após meses da estada de José Roberto na fazenda Cata-Ventos; não obstante, todas as situações se desenrolam em questão de algumas semanas, da paixão do homem pelo adolescente até o ímpeto de esmagá-lo com uma enxada. Em Mãos vazias, da morte do filho de Ida, passando pelo enterro, adultério, pela fuga até o suicídio, a narração não ultrapassa três dias. Sem aprofundarmos muito a questão dos limites cronológicos, percebemos como o tempo nas narrativas cardosianas não pode ser submetido a uma análise estritamente realista. O tempo de Lúcio antes pertence àquele dos espíritos indômitos e dos arroubos incontroláveis, sem rechaçar a intensidade com que o autor quer devassar a perturbação emocional de suas personagens-vítimas até atirá-las ao abismo, com a mesma sofreguidão da mãe que não hesita em atirar o próprio filho, preso a cadeira de rodas, encosta abaixo. Em outras novelas, observamos como Lúcio lida com o tempo de forma similar, o que permite inferir como o autor possui outras prioridades ao traçar o esboço de suas histórias. Tamanha despreocupação expõe como a lógica que possivelmente elucidaria o germe das ações lhe é indiferente, diante dos efeitos insanos da paixão humana. A própria possibilidade de ponderar sobre as causas seria uma atitude por demais formal e racional por parte do autor, o que talvez seria bem colocado em um romance de tese; teríamos então um viés literário por demais cartesiano, que não atenderia o estratagema-mor de Lúcio Cardoso de formular uma escrita cuja urgência está em atender os desígnios da subversão. Lúcio prefere instaurar o mal-estar e o impacto causado pelas provocações morais, e seu trabalho será sempre norteado pelas paixões incontroladas e por suas forças irreprimíveis. Não obstante, difícil sermos ingênuos em achar que o mal-estar causado por Lúcio Cardoso em seus contemporâneos surgiu apenas por questões de cunho intelectual. Cássia dos Santos afirma que as críticas ferrenhas como as de Álvaro Lins por suas novelas se deviam a aspectos que transcendiam o universo literário, como no caso do “silêncio” em relação ao homoerotismo presente em O desconhecido, questão que veremos com mais apuro no próximo capítulo. A pesquisadora Santos afirma: “Se a homossexualidade tematizada na novela não passou despercebida ao meio literário contemporâneo ao escritor, como é possível supor, impõe-se a seguinte conjectura: teria tal fato contribuído para reforçar a atmosfera de má vontade com que muitos já cercavam a obra e a pessoa de Lúcio Cardoso?” (SANTOS, 2001; 89) Pela leitura de seus diários, podemos inferir que o escritor mineiro de modo algum desconhecia os motivos extraliterários circunscritos aos discursos opinativos ressonantes de seu trabalho. Lúcio demonstrava ser bom estrategista ao utilizar a rota de colisão a seu favor, pois nunca respondia aos ataques com agressividade, embora nunca se submetesse ao consentimento. Como bom polemista, o escritor sabia como perverter o discurso moralizante em prol do seu escopo literário controverso, como observamos em Diário completo: Esses que afetam me temer tanto, por me considerarem imoral, não é a mim que temem, nem ao que eles imaginam que sou – mas ao que apresento deles próprios, à possível tradução dessas faltas – as mesmas que eu sei que não são minhas, mas que sendo deles compreendo tanto, como tudo mais que é humano. No fundo, é a minha compreensão que os aterroriza. Calando-me, sei exatamente que elas são faltas – e eles, é falando e protestando que delas se esquecem como de um acontecimento sem importância. (CARDOSO, 1970: 268) O escrito de seus diários íntimo aproxima infalivelmente Lúcio Cardoso de Friedrich Nietzsche (1844-1900), mesmo que, em Diário completo, esboçasse uma crítica velada ao uso indiscriminado dos aforismos do pensador: “É preciso se arriscar ao máximo, a fim de que o sono não nos ganhe – o que em última análise parece um conselho estandardizado de Nietzsche ou de Gide” (CARDOSO, 1970: 28). Não obstante, em um excerto de “Diário de terror”, temos o único manuscrito em que admite ser leitor de Nietzsche, tomando uma posição diante de sua influência: “Uma das coisas que mais lamento na minha vida é não ter, aos vinte anos, conhecido Nietzsche ainda. Conhecia suas teorias e sabia aforismos de cor, mas Nietzsche é uma dosagem maciça, cujo poder só pode ser avaliado inteiro com pleno conhecimento de toda a região que domina” (DT, 748). Podemos discernir de modo mais acurado os desígnios de Lúcio ao utilizar entrechos e personagens para devassar a moral que tanto o perturba – “Reclamo o ser de emergência e de prontidão, destinado a renovar na angústia e no medo todos os vícios de sua criação moral” (DT, 745) – e que o aproxima dos petardos do pensador contra os “homens de boa vontade” em Genealogia da moral: Eles rondam entre nós como censuras vivas, como advertências dirigidas a nós – como se saúde, boa constituição, força, orgulho, sentimento de força fossem em si coisas viciosas, as quais um dia se devesse pagar, e pagar amargamente: oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como anseiam ser carrascos! Entre eles encontra-se em abundância os vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de ânimo tranqüilo. Entre eles não falta igualmente a mais nojenta espécie de vaidosos, os monstros de mendacidade que buscam aparecer como “almas belas” e exibem no mercado, como “pureza de coração”, sua sensualidade estropiada, envolta em versos e outros cueiros: a espécie de onanistas morais e “autogratificadores”. (NIETZSCHE, 2006: 112113) O desconforto moral será uma questão efetivamente perseguida por Lúcio Cardoso em todo seu trajeto literário – e perseguida obsessivamente, algo próprio de seu feitio como escritor. Lúcio é um escritor obsessivo, postura que ele confirma ser inevitável: “Só é possível a existência de uma obra de arte através da obsessão” (CARDOSO, 1970: 14). Pelas novelas que aqui estudaremos, Lúcio confirma sua posição como escritor das paixões e obsessões, e de tal modo que suas narrativas por vezes beiram o contrassenso, com personagens marcadas pela ilogicidade e pelo paradoxo. São sempre seres complexos, ambivalentes e contraditórios, submetidos a ações e pensamentos disparatados e excessivos. Lembremos como críticos e estudiosos sempre procuraram um entendimento para esta condição tão visceralmente apaixonada das personagens de Lúcio Cardoso. Como são ligados de forma atávica a um escritor eminentemente obsessivo, não seria diferente o modo como suas atitudes são descritas. Por outro lado, notamos que as paixões intempestivas interessam a Lúcio porque se encaixam com perfeição em universo literário transgressor. Consideremos ainda que tais paixões só podem ser representadas em um palco onde impera a desordem moral – e por isto se tornam providenciais à construção de sua escrita polêmica. Por isto, enfatizamos que a paixão e o desespero são extremamente explorados porque atendem ao clima de assombro desejado por Lúcio para instaurar o mal-estar. Mesmo o “mundo desesperadamente ontológico”, como citou Octavio de Faria, encerra o seu intuito de provocar. Os excessos e devaneios – e até mesmo os longos conflitos com a fé e a redenção repetidos à náusea – são estratagemas do texto literário como um jogo, o que estabelece a “verdade lúdica” do texto (BARTHES, 1984: 28), como apontou Roland Barthes em O rumor da língua. Já em Crítica e verdade, afirma Barthes que “as regras a que está sujeita a linguagem literária não concernem a conformidade dessa linguagem com o real (quaisquer que sejam as pretensões das escolas realistas), mas somente sua submissão ao sistema de signos que o autor fixou para si mesmo” (BARTHES, 1970: 161). Pelas narrativas por vezes insólitas, enxergamos as puras intenções de Lúcio ao carregar as cores destes signos que compõem um universo moralmente caótico, o que explica seu interesse em criar personagens tão absurdamente apaixonadas, como aponta em Diário completo: “Os seres ou não me interessam, por impossibilidade ou por excesso de conhecimento, ou me interessam até a paixão, até a afronta – os que eu amei, esgotei-os até a saciedade, porque a minha curiosidade era mortal e a minha paixão era maior do que a força deles, e adivinhando-os tanto, eu poderia assassiná-los” (DT, 746). Lúcio pretende que o leitor o acompanhe nesta espécie de deambulação alucinatória, de acordo com os desígnios de sua visão lisérgica como artista, como escreve em “Diário de terror”: “Não compreendo o romance como uma pintura, mas como um estado de paixão” (DT, 744); completa que o leitor irá entrever objetos transfigurados, “recriados através de um movimento de paixão, e que assim designados, reconhecidos, ele possa situá-los em meu espírito como acessórios da minha atmosfera de paixão e tempestade” (DT, 744). Determina também o amálgama existente entre ele e suas personagens, o que acentua ainda mais o halo subversivo de sua figura pessoal que, como vimos acima, não estava totalmente desvinculada da leitura desfavorável que faziam de sua ficção: Durante muito tempo procurei obter uma visão pessoal do mundo, e não o consegui senão quando tive uma visão pessoal de mim mesmo; em vez de limitar o mundo por idéias falsas que seriam adotadas por mim, limitei-o a uma expansão do meu ser, a uma dilatação interior que me garantiu um conhecimento e uma avaliação mais ou menos autêntica do existente. Porque não se cria nada vindo do exterior, mas em permanente colaboração com suas forças mais obscuras e mais indeterminadas. (DT, 744) Para muitos leitores torna-se quase penoso sair incólume de suas leituras e, como vemos em “Diário de terror”, era o que ardentemente almejava. Na introdução de “Três histórias da província”, título que abarca novelas que serão aqui estudadas, Maria Alice Barroso aponta que “Lúcio – como todo grande escritor – ao escrever tinha como sua mais secreta e obstinada ambição modificar a índole das pessoas. Também ele, o Artista, a semelhança do Santo, tem duas maneiras de atingir tal objetivo: pela persuasão ou pela violência” (BARROSO, 1969: 05). Lúcio Cardoso possui um trabalho demarcado por imagens violentas e excessivas, como se o excesso fosse uma imposição de sua personalidade da qual não pudesse fugir, apontando como “o que são tendências nos outros, em mim são correntezas fortes” (DT, 748), ou ainda não negando desconhecer a acusação de virtuosismo artificial ao construir suas novelas: “Jamais perdoariam o excesso, e o excesso é o elemento primordial que nos compõe” (CARDOSO, 1970: 107). O excessivo e o desmesurado compõem seu embate contra o estado de letargia moral e contra uma vivência espiritual arrefecida –– “Só através de situações extremas o homem encontra a si próprio, na tensão completa do seu ser, no despojamento de sua essência cotidiana, no esmagamento de seus postulados comuns e sem vitalidade” (DT, 745) – o que nos leva a perceber como muitos fragmentos de “Diário de terror” funcionam como um manifesto pessoal a toda uma ordem de coisas que o incomodava profundamente, sem importar que sua contestação fosse carregada com os signos do horror e da violência extrema: O terror é uma época de ultrapassamento. É um impulso único e violento de todo o ser para regiões de intempéries e de insegurança; é uma dilatação anormal para zonas inabitadas e desumanas, onde somos o único guia, único farol, além de fronteiras que não nos seria permitido atravessar em épocas comuns, e onde encontramos finalmente a essência esquiva, ambiciosa e cheia de espanto que nos governa. (DT, 744) As imagens ontológicas do desespero, que levam o sujeito se atirar deliberadamente ao abismo para conhecer a si mesmo, e na maioria das vezes subjugado por forças incontroláveis que não consegue explicar, permitem que Lúcio exponha os modos de devastação pelos quais um homem deve se submeter. Outros fragmentos de seus textos demonstram, por vezes, não existir medida que pudesse amenizar sua gana por uma escrita de mal-estar, como podemos inferir a partir deste fragmento de Diário completo: Vou com Fregolente à Barra da Tijuca, onde durante algum tempo, infeliz e sem repouso, viajo através de uma multidão feia, triste e sem nenhuma dúvida profundamente desgraçada. (...) Não é precisamente nesses minutos, nesses e não em outros, que ousamos desejar para toda essa gente uma catástrofe comum, uma guerra, uma inundação ou até mesmo um ataque coletivo de insânia ou de crueldade – qualquer coisa enfim que agite essas carnes moles que se estendem ao sol, domesticadas pela preguiça, pelo álcool e por uma sensualidade grosseira e sem profundidade? (...) O Deus antigo, o Deus do terror e das hecatombes, bem poderia agora esparzir esse sangue bruto ao longo das areias mornas – bem poderia brandir um raio ou soprar uma rajada morna de demência – qualquer coisa finalmente que fizesse sangrar essas almas cativas, tornado-as acordadas e viris. Há uma determinada sonolência da alma que só o castigo e o medo conseguem afastar. Os ferros do tempo dos escravos ou as tenazes ardentes da Inquisição, tudo serviria para fazer vir á tona das faces uma sombra de sentimento ou de espírito. Mas é inútil sonhar, eles apenas vivem uma agonia sem sentido, enquanto aconchegam ao sol brando, sem amor e sem piedade, as velhas carnes maltratadas. (DC, 142) Podemos perceber, pela leitura dos fragmentos em que Lúcio realiza sua ode à crueldade como componente essencial do homem, que o ato da escrita para Lúcio exibe também seu prazer pela cena de exibição de um polemista. Como um homem de teatro que foi – entre as publicações das novelas que estudaremos, Lúcio esteve entretido com a dramaturgia, escrevendo e dirigindo – Lúcio sempre foi preocupado com o décor, e suas personagens excessivas e desregradas foram escritas para serem encenadas em um teatro composto por excessos figurativos. A imagem de um escritor preocupado com a mise-en-scène de sua prosa ficcional (ou mesmo de sua escrita íntima, considerando a forma como ele forjou outras imagens de si mesmo) reflete o entendimento que o sujeito controverso tem da cena pública, o que o aproxima do herói romântico ou do dândi, tal como nos apresenta Albert Camus em O homem revoltado: A revolta veste-se de luto e faz-se admirar nos palcos. O romantismo inaugura o culto da personagem que coloca bem acima do culto do indivíduo. É nessa altura que ele se mostra lógico. Tendo já desesperado da regra ou da unidade de Deus, obstinado em concentrar-se contra um destino adverso, ardendo em impaciência por manter aquilo que o possa ainda existir num mundo votado à morte, a revolta romântica procura uma solução por intermédio da atitude. A atitude sustenta numa unidade estética o homem entregue ao acaso e destruído pelas violências divinas. O ser condenado a morrer ao menos resplandece antes de se extinguir e encontra nesse esplendor a sua justificação. (CAMUS, 1951: 77) Lúcio Cardoso demonstrava conhecer o quanto sua imagem pessoal estaria próxima do dândi, embora negasse a relação: “Não sou, nunca fui um fin de siècle, misturado a resquícios românticos e heranças ancestrais. Sou totalmente um romântico, com más heranças próprias e sem responsabilidade de ninguém” (CARDOSO, 1970: 138). Ainda em O homem revoltado, Camus lembra que o herói romântico se considera uma vítima da “fatalidade”, incapaz de discernir entre o bem e o mal, e sempre arrastado por forças sobre as quais não tem controle: “A fatalidade exclui os juízos de valor. Substitui-os por um ‘É assim’ que tudo desculpa, exceto o Criador, único responsável deste escandaloso estado de coisas” (CAMUS, 1951: 72-73). Observamos como Lúcio assume tal postura em seu diário: Lembro-me de ter dito, não sei mais onde, que não condizia comigo uma religião que não me permitisse sentar ao lado do último dos homens. Lugar-comum, talvez, já romanticamente explorado por muita gente, mas no momento a mais natural das reações. Pode quem quiser vislumbrar aí resquícios de literatura ou não sei que mais, afloramento de idéias e atitudes “decadentes” – não está hoje tão em moda o gosto pelo noir, pela manifestação das últimas e mais secretas podridões da nossa natureza? Mas não, não há uma ESCOLHA na minha atitude, uma preferência especial pelo “último dos homens”. E é isto que torna as minhas palavras isentas de suspeita. (CARDOSO, 1970: 154-155) Apesar de buscar um modo de escamotear sua franca predileção por assuntos controversos, como o fragmento acima permite supor, a sedução pelo Mal é própria dos espíritos acintosamente rebelados, como lembra Camus: “Que o artista – e particularmente o poeta – seja demoníaco é uma idéia muito antiga e que se oferece aos românticos como uma formulação provocante” (CAMUS, 1951: 73). Embora negada, a postura provocadora de Lúcio o aproxima dos decadentistas pelo modo como persegue temas moralmente desafiadores: “O dândi é por função um oposicionista. Só pelo desafio consegue manter-se” (CAMUS, 1951: 78). No artigo “Uma breve história do labirinto”, publicado em O labirinto finissecular e as idéias do esteta, Mônica Genelhu Fagundes aponta características da escrita decadentista que se aproximam da posição polemista de Lúcio: “Contra a tirania da razão, impõe a subjetividade e a intuição; contra a crueza do discurso realista/naturalista, o ornamentalismo; da intenção de marcar sua singularidade atípica e sua diferença em relação ao grupo social que deplora, brota o gosto pelas máscaras, disfarces e artifícios” (FAGUNDES, 2004: 54). Mesmo que prefira ser considerado um romântico, como vimos acima, a imagem decadente se aproxima muito do escritor das novelas urbanas, como veremos nos próximos capítulos: “O Decadentismo despreza a coerência, e da mesma forma o equilíbrio, a naturalidade, a norma, preferindo louvar as excentricidades, a exceção, a embriaguez que leva às alucinações, os desvios mentais à beira da loucura, que são, segundo a sua cartilha, princípios estéticos” (FAGUNDES, 2004: 54-55). A preferência pelos temas desconcertantes para o fomento do constructo literário provocador é imanente à trajetória dos decadentistas já que, como afirma Camus, “o dandismo é uma forma aviltada de ascese” (CAMUS, 1951: 77). A imagem do espírito infernal que resplandece por sua agonia, diante dos olhos do público estarrecido, representa a busca do dandismo pelo espaço cênico de exposição, como observamos uma vez mais em O homem revoltado: O dândi recompõe-se, procura conferir a si próprio uma unidade por meio da própria força da recusa. Criatura dispersa, como pessoa privada de regras que é, o dândi será coerente como personagem. Mas uma personagem pressupõe um público; o dândi não pode alicerçar-se sem adotar uma atitude de oposição. Não pode assegurar-se da sua existência se a não reencontrar no rosto dos outros. Os outros são o espelho. Espelho rapidamente embaciado, é certo, pois a capacidade de atenção do homem é limitada. Tem de ser despertada, esporeada pela provocação. Por isso, o dândi se vê constantemente forçado a espantar os outros. A sua vocação consiste na singularidade; o seu aperfeiçoamento, na excedência. (CAMUS, 1951: 78) A obsessão de Lúcio pelo mistério das paixões humanas esconde uma outra obsessão: a do escritor que sabe retirar do sumo do pensamento ontológico o conteúdo necessário para erigir uma escrita de fruição que perturbasse ao extremo. O afã do escritor em expor as verdades malditas se explica pela possibilidade da construção de uma dramaticidade carregada e o conseqüente mal-estar do público. Não importava tão somente erigir o discurso; o teatro de Lúcio Cardoso precisa fulgurar pelo arrebatamento, tão imponente quanto o mistério por ele perseguido: “Só o grito faz viver; a exaltação substitui a verdade” (CAMUS, 1951: 75). Vejamos, a partir dos próximos capítulos, como as personagens das novelas encenam o discurso trágico exaltado de seu criador. CAPÍTULO 2 - VIOLÊNCIA E HOMOEROTISMO COMO PROVOCAÇÕES Em leitores incautos ou conhecedores incipientes da intricada prosa de ficção de Lúcio Cardoso, uma possível sinopse do ciclo cardosiano de novelas já seria o bastante para causar certo mal-estar. O assassinato de um efebo a golpes de enxada, a tentativa de suicídio de um adolescente por ingestão de raticida, o defloramento de uma menina embriagada, um padre viciado em tóxicos em um hotel de má categoria, e mais uma galeria de prostitutas, viciados e homicidas completam parte da tessitura literária de Lúcio e bem poderiam beirar o grotesco ou mesmo o kitsch, caso não fossem respaldados pela sondagem existencial a permitir que a monstruosidade e a sordidez de suas personagens estivessem sob um deslinde ontológico de profundas dimensões. As manifestações de violência moral, não menos devastadoras do que a expiação física, compõem os modos com que Lúcio opera o artifício das provocações. As personagens púberes e castas – cordeiros imolados à mercê do aniquilamento fatal de suas histórias – representam sempre a beleza e um sentido de inocência e pureza perdidas prestes a serem devassadas pelo desejo do escritor em conduzir narrativas circunscritas ao universo trágico. Lúcio é obcecado pelas personagens de 19 anos – ou mais próximas o possível desta idade – como podemos verificar no caso de Emanuela de A luz no subsolo, Adalberto de Crônica da casa assassinada, Sinhá de O viajante, Rogério Pádua de Inácio, Adélia de Val-Flor de O enfeitiçado, Paulo de O desconhecido, Cláudio e Gil de O anfiteatro. Seu interesse obsedante reside em impor a tragédia para seus jovens rebentos como um moto-perpétuo de implacável destruição física e moral. Senão, vejamos: o enlouquecimento da ingênua empregada Emanuela após ser violentada por Pedro; o suicídio do jardineiro Adalberto, após a paixão devastadora por Nina; o assassinato cruel de Sinhá, retalhada a golpes de machado; o enlouquecimento e a derrocada do insano Rogério após conhecer seu pai; o abuso sexual de Adélia de Val-Flor por Inácio, embriagada e sem consciência, o que a levaria anos depois a tentar o suicídio já como prostituta; a morte de Paulo a golpes de enxada pelo torturado José Roberto e a malograda tentativa de suicídio de Gil com veneno de rato. Este caleidoscópio nefasto de suicídios, estupros e homicídios adensam os contornos da fixação do autor em profanar e destruir a juventude que ostenta um halo de pureza e sexualidade intocadas. Para compreender melhor os matizes desta obsessão cardosiana, podemos focar nosso deslinde nas novelas em que Paulo, Cláudio, Gil e Adélia de Val-Flor serão os rebentos prontos para o massacre. 2.1 A paixão obscura: o sentimento oblíquo em Lúcio Cardoso De antemão destacamos o conceito homoerotismo preferido aqui aos seus correlatos homossexualismo e homossexualidade. Tal conceito foi apresentado pela psicanalista brasileiro Jurandir Freire Costa, em seu livro A inocência e o vício: estudos sobre homoerotismo, ao lembrar como homossexualismo é um termo que nos remete ao vocabulário do século XIX, o que implica, de algum modo, reforçar o sistema estereotipado de nominação que qualifica os sujeitos com inclinações homoeróticas como moralmente inferiores. Cerceados pelas limitações morais, já que, como apresenta Costa, a palavra é “autônoma em relação à intenção moral de quem as emprega” (COSTA, 1992, 11), devemos lembrar que a questão “não é a de saber qual a crença moral que cada usuário destas noções possui, mas a de mostrar que conseqüências éticas elas acarretam ou que limites são impostos ao que podemos saber sobre o problema, quando limitamos a entendê-lo de modo convencional” (COSTA, 1992, 11). Acreditamos, pois, que o desejo de um homem por outro – mesmo que sugerido de modo por vezes oblíquo e sub-reptício – possa ser aqui usado como homoerótico pelas razões acima expostas. Antes de engendrar o deslinde da questão homoerótica nas novelas, iremos verificar o modo peculiar com que tal questão se dissemina em Lúcio Cardoso e, por conseguinte, seu uso como estratagema de provocação. O homoerotismo cardosiano nunca é deflagrado por linhas explícitas; antes se reconhece melhor pela obliqüidade típica das narrativas estrategicamente sinuosas. O termo obliquidade que aqui usamos tem como referência o artigo “A escritura oblíqua de García Lorca”, de Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro, no qual a autora fornece a seguinte orientação para o conceito: Oblíquo, conforme o dicionário é, em sentido figurado, o “dissimulado, o tortuoso, sinuoso”. Por escritura oblíqua queremos significar, aqui, uma manobra de construção simbólica tangencial aos jogos verbais próprios à escritura poética e que possibilite uma investigação de rastros fragmentários de um imaginário cerceado pelos limites de uma forma especial de marginalidade a que chamamos de gueto. Gueto porque circunscrito, radicalmente revolucionário; marginal não apenas porque contraposta ao cânon, mas inscrita em suas brechas ou margens. (RIBEIRO, 2003: 129) Tal obliquidade literária foi uma constante não só na escrita de Lúcio, pois se encontra presente no trabalho de autores que lhe foram contemporâneos e muitos dos quais afetos pessoais, como Octavio de Faria, António Botto7 e Walmir Ayala. Não obstante, Lúcio desenvolve uma forma de escrita sui generis ao lidar com o homoerotismo. Como veremos adiante, ele se torna mais notório em O desconhecido, o único texto entre os de sua prosa de ficção a aproximar efetivamente a atração homoerótica do desejo que conhece uma possibilidade de evasão; também consta do jogo obsessivo e eminentemente oblíquo a envolver o triângulo Cláudio-Gil-Professor Alves em O anfiteatro e de modo sub-reptício pelos volteios da marginalidade em Inácio e O enfeitiçado. Apesar de Timóteo ser um dos homossexuais mais conhecidos não só da produção cardosiana de escrita como de toda a prosa de ficção brasileira, o sujeito travestido funciona mais 7 Ver artigo “Artimanhas do dândi na poética de Antônio Botto”, de Luiz Edmundo Bouças Coutinho, publicado em Dândis, estetas e sibaritas, volume organizado por Luiz Edmundo Bouças Coutinho e Latuf Isaias Mucci (Rio de Janeiro: Confraria do vento, 2006). com uma persona bizarra que se torna a própria alegoria da transgressão e da monstruosidade, enquanto as personagens das novelas possibilitam aproximar o homoerotismo da paixão amorosa e do afeto sensual entre homens, mesmo que circunscritos inevitavelmente à tragédia romanesca. O homoerotismo cardosiano oscila entre projeções de desvelamento e ocultação, entre imagens apolíneas e dionisíacas, entre as explosões da carne e o flagelo da culpa. As oscilações entre o velamento e a libertação conduzem a um estado de tensão constante em todos seus livros já que, como apontaria Luiz Ruffato, a respeito de A luz do subsolo, o fardo da formação católica “conflitava profundamente com a ojeriza do escritor ao tradicionalismo mineiro, reacionário e castrador, e com seu problemático homossexualismo (sic), nunca assumido, nunca escondido” (RUFFATO, 2003). O homoerotismo seria a blasfêmia mais aguda, uma espécie de mal efetivamente encarnado, e para autores cristãos o assunto não estaria livre da expiação amorosa e dos embates com Deus em prol da misericórdia da providência divina, que tais autores julgavam ser o único recurso para os pecadores nesta condição pessoal. Prova da influência cristã na obra destes autores está no pouco conhecido Um animal de Deus, livro do escritor Walmir Ayala, afeto pessoal tanto de Lúcio como de sua irmã Maria Helena Cardoso – foi de Ayala quem Helena recebeu o primeiro incentivo para resgatar suas memórias em Por onde andou meu coração. Embora bastante categórico ao demonstrar todo o envolvimento do homoerotismo com a culpa religiosa, o livro encerra a força do afeto entre homens sem quaisquer subterfúgios. O amor de Mário por Rafael representa um caso típico do envolvimento homossexual sublimado: um jovem se apaixona por um homem casado, que alimenta sutilmente seu interesse sem possibilitar que seja concretizado sexualmente. O estigma do homossexual romântico que se apaixona pelo homem que jamais colocará em xeque sua posição heterossexual está indissociavelmente ligado ao flagelo a que se submete, pois a existência concreta do sentimento homossexual torna-se a existência do próprio desespero, como percebemos após o primeiro encontro entre Mário e Rafael: Então viu mesmo o mundo. Nunca as calçadas tiveram aquela densidade sob seus pés. Nunca reparara na fisionomia das pessoas como naquele momento. A hora da tarde, escurescente, pondo um azul triste sobre as fachadas dos prédios interiormente iluminados, tudo vibrava ao redor de Mário e ele não sabia o que fazer com sua emoção desencadeada. Começar, seria começar a sofrer, sabia. E já começara a começar a sofrer. Estava só. Desde o momento em que se sonda o profundo estame do amor então é para não se viver mais dissociado, é para se entrar na corola carnívora e deixar triturar sem pena, com tácito suspiro de consolação porque enfim se existe. (AYALA, 1967: 17) Enquanto passa a colher as migalhas de afeto do “anjo” Rafael, Mário troca uma série de cartas com Frei X, outro homossexual emocionalmente torturado, recém-desertado de sua filiação religiosa ao ser descoberto em sua condição sexual. A noção tempestuosa que os autores cristãos tiveram do pecado aproxima inevitavelmente o homoerotismo da miséria humana acompanhada do sentimento de morte. Não obstante, Ayala desafia os interditos da escrita amaldiçoada a qual o homoerotismo estava circunscrito, ao abordá-lo sob uma circunstância absolutamente afetuosa e, embora não esteja livre das contingências do fardo religioso, é de amor que trata, em um ímpeto bastante ousado até então: Ali no quarto, àquela hora, relembrando, sabia acima de tudo que perdera Rafael, tão depois (...) Assim, quando a luz se abateu em sua pele, de olhos cerrados, um gemido escapou de sua boca, um gemido moribundo, como se o Arcanjo estivesse revoando a atmosfera de seu quarto modesto, e pousando como um riso a asa da eternidade em sua carne. Era isso que sentia, isso que lhe ficara daquela última e enorme experiência de amor (...) E aí estava: admitia os muitos amores. E o último sempre sobrepujando, logo sendo de uma certa forma o único, pois nada mais nos resta do que repudiar o que foi preparação, indício, projeto, de uma forma definitiva de ser. E este último sucedimento emocional parecia esgotar-lhe todas as correntes vivas da alma. Lembrava as palavras de Ana: “A nossa vida inclui três fases: a da educação do corpo, a da construção sobre o amor, a da preparação para a morte.” (AYALA, 1967: 10) Quanto mais a alma busca a redenção da divina misericórdia para o mal encarnado, mais a carne lateja pelos espíritos dissonantes tomados pela completa licenciosidade. O homossexual neste período foi retratado sob duas perspectivas: o sujeito com o sentimento sublimado e torturado pelas interdições religiosas, como vimos em Um animal de Deus, ou um outro de comportamento francamente lúbrico, como observamos em Os solteirões, de Gasparino Damata. Embora publicado posteriormente ao livro de Ayala, as histórias de algum modo são contemporâneas e mostram um período em que os homossexuais se concentravam no famigerado Amarelinho (freqüentado pelo próprio Lúcio, como algumas passagens de Diário completo possibilitam inferir) ou em frente ao Cine Odeon, prosseguindo pelos demais bares e cafés do Passeio Público, o que se tornou um retrato do comportamento homossexual no período histórico pré-ditadura. Vejamos o tom explícito com que Damata aborda a outra faceta do homoerotismo, no conto “O voluntário”: Só ia ao mictório da Central do Brasil no último caso, para não ter de presenciar o espetáculo perturbador, incômodo, daquela fila de sujeitos muito sérios, de pau duro, fazendo que estavam urinando, porém na verdade a olhar para o membro uns dos outros. Uma ocasião levou mais de dez minutos para conseguir urinar, porque um escuro com a idade de ser seu pai, de aliança no dedo, não despregava os olhos do seu membro. Envergonhado, o mijo sumira, nada de aparecer, embora a vontade de urinar persistisse. (DAMATA, 1976: 104-105) Damata ousadamente descortina, sem quaisquer tergiversações, a profusão de atitudes e sentimentos homossexuais, com todos os jogos licenciosos envolvendo garotos, homens casados ou mais velhos (ironicamente chamados de “fanchones”) e mesmo militares – o escritor narra de forma franca as peripécias dos sargentos para conquistar seus efebos em pleno quartel, algo absolutamente desafiador tendo em mente que o livro foi publicado no contexto mais violento da ditadura militar. Embora esta abertura moral jamais esteja exposta na escrita cardosiana, a marginalidade latente nos textos do escritor pernambucano representa um território que atraía Lúcio Cardoso profundamente, como já apresentamos em estudos anteriores8. Seu estratagema foi redimensionar tal marginalidade de forma absolutamente oblíqua, cruzando elementos da expiação religiosa de Ayala e sua condição sexual sublimada com a aura libertina e libertadora do gueto e os 8 Ver estudo “Imagens do amante/amador em Diário completo, de Lúcio Cardoso”, de Odirlei Costa dos Santos, publicado em Ipotesi: revista de estudos literários (Juiz de Fora: UFJF, 2005). comportamentos desregrados do bas-fond. Em passagem de O enfeitiçado, ao encarar um sujeito acompanhado de uma prostituta em um dos bares da Lapa, Inácio aponta um modo curioso como o homossexual é reconhecido: “Não sei o que teria pensado a meu respeito, vendo-me fitar seu companheiro com tal intensidade. Provavelmente, que eu fosse um viciado” (I, 165, grifo meu). O personagem Inácio, ao percorrer o gueto em busca do filho, demonstra um conhecimento argucioso destes ambientes, próprio do escritor mineiro: Eu próprio, com o cuidado e a perícia de quem muito já havia experimentado a densa e morna fumaça desses lugares, desci aos antros noturnos do Rio, na esperança de encontrar num deles aquele que eu procurava. Esse esforço acentuava a minha ânsia – e de porta em porta afrontando os olhares agressivos e as propostas sem pejo, a risada das mulheres fáceis e o trânsito angustiante desses corredores mal freqüentados, sondei, revolvi, indaguei de mesa em mesa, esperando a cada momento deparar com a face buscada. (E, 199) Para um espírito tão mineiramente católico, Lúcio encontraria nos livros de Jean Genet (1910-1986) a possibilidade de erigir um outro tipo de moral e santidade à custa da danação e do gozo: “Leitura: Jean Genet. Como compreendo esse dom de insuflar poesia a um mundo árido, de embelezá-lo, de torná-lo único e grandioso, apenas pela força do amor...” (CARDOSO, 1970: 189). A admiração pelos modelos míticos de Jean Genet, como Stilitano, Armand, Mignon, Querelle e Nossa Senhora das Flores, que pervertem decisivamente a moral religiosa pelo roubo, pela prostituição e pelo homicídio, é sintomática do desejo de Lúcio em alimentar certos tipos de imagens próximas da violência e da corrupção sexual, como formas de sublevação contra o domínio do universo moralizante que imperava ao seu redor, como observamos neste fragmento de Diário completo: Octavio de Faria me envia, a pedido meu, mais um livro de Jean Genet. Curiosa, a idéia de preservação de valores fundamentais do homem através do mal. Com que acentos novos, com que resplandecente inspiração o poeta nos fala do crime e dos criminosos: através dessa aparente decomposição, velhas noções de heroísmo, lealdade e integridade última da natureza humana reerguem seus dilacerados espectros. E Jean Genet, como outros desta época, é um sintoma vivo, um grito de repulsa, de violência e de audácia, contra esse sistema uniformizador e constante que vem reduzindo, cortando e planificando os alicerces fundamentais da existência humana, como a fé, a moral, a política etc (...) Seus heróis no compulsivo caos de seu reduto prenhe de valores primitivos e especiais são testemunhas da sombra, da existência do pecado, do mal entranhado na natureza do homem – e compondo-o apesar de tudo. (CARDOSO, 1970: 195) O homoerotismo se confunde às engrenagens da escrita provocadora de Lúcio e atende perfeitamente aos seus anseios literários. A busca de Lúcio pelas verdades inconfessas – e o homoerotismo talvez seja a mais desconcertante entre todas – se alia ao próprio ideal estético de suas obras, o que torna ainda mais acirrado para o escritor o interesse em engendrar um “escrito polêmico” (NIETZSCHE, 2006: 11). Se a transgressão que primordialmente compõe a sexualidade já demonstra gana suficiente para espicaçar o universo moralizante, o homoerotismo seria sua centelha mais explosiva. Torna-se também o viés perfeito para os escritores provocadores, desejosos de serem uma afronta aos espíritos mais ortodoxos, e o modo acintoso como Genet o expõe funcionaria como o estopim em Diário de um ladrão: Tudo já está cristalizado – até a minha morte – numa banquisa eterna: o meu tremor quando um rapagão pede para se tornar minha esposa (descubro que o desejo dele é o meu tremor) numa noite de carnaval; no crepúsculo, de uma colina de areia, a vista dos guerreiros árabes apresentando a sua rendição aos generais franceses; as costas da minha mão pousadas na braguilha de um soldado mas principalmente nelas o olhar malicioso do soldado; o mar de repente entre duas casas me aparecendo em Biarritz; da penitenciária a minha fuga a passos minúsculos, com medo não de ser apanhado novamente mas de me tornar a presa da liberdade; em seu pau enorme que estou cavalgando, um louro legionário me carrega durante vinte metros nas fortificações; (...) quando, calçando sandálias sem meias, atravesso os campos de neve, durante a noite, na fronteira da Áustria, não fraquejarei, mas então é preciso, penso eu, que esse momento doloroso concorra para a beleza da minha vida, esse momento e todos os outros eu nego que sejam detritos; utilizando o seu sofrimento, me projeto no céu do espírito. (GENET, 1986: 112) Todos os grandes desafiadores possuem um tipo de ligação atávica pelos seus escritos e a aproximação de Lúcio Cardoso com Jean Genet foi inevitável por ser o escritor francês também um grande provocador, como observamos a partir de Diário de um ladrão: “Pelo menos, pensava eu, se a minha vergonha é verdadeira, dissimula um elemento mais agudo, mais perigoso, uma espécie de dardo que sempre há de ameaçar aqueles que a provocam” (GENET, 1986: 65). As implicações com o ideário marginal de Jean Genet se estendem, e não faltaria às novelas cardosianas – notadamente em O enfeitiçado, já que Inácio pode ser considerado infalivelmente um tipo de outsider, em sua imagem de dândi bizarro e demoníaco – um discurso notadamente cáustico e similar ao que observamos em Diário de um ladrão: Tornar-me-ei, pois, cada vez mais ignóbil, cada vez mais um objeto de nojo, até o ponto final que ainda não sei o que é, mas que deve ser comandado por uma busca estética quanto moral. A lepra, com que estou comparando o nosso estado, provocaria, dizem, uma irritação dos tecidos, o paciente se coça: ele tem uma ereção. Num erotismo solitário a lepra se consola e canta o seu mal. A miséria nos erigia. (GENET, 1986: 26) Lúcio possuía plena consciência da perturbação que provocaria entre autores e leitores contemporâneos, e busca sempre acirrar os ânimos de seus detratores morais expondo seus modos de ocultar-se e desvelar-se, estabelecendo uma espécie de jogo tácito com o leitor, ao mesmo tempo em que aproveita o ensejo para espicaçar seus desafetos mais reacionários, como observamos em outra passagem de “Diário de terror”: “Para se dizer certas coisas são necessários certos leitores; e como certos leitores são raros, é melhor calar do que dizer ao vento, pois certas coisas não podem ser ditas a toda gente” (DT, 747). Figura maldita reconhecida pelos críticos literários, freqüentador contumaz de bares da Lapa e Cinelândia, Lúcio não hesita em também lançar seus dardos ao afirmar acintosamente em Diário completo: “Sou da raça dos que se alimentam de venenos” (CARDOSO, 1970: 76); ou ainda em descortinar, face a uma escrita (e ainda a uma vida) efetivamente provocadora, que “no trânsito comum da vida, as pessoas que encontramos não suportam toda a verdade de que somos capazes. Há nuances, gradações a serem servidas – e como certos tóxicos, só atuam ingeridas em pequenas doses” (CARDOSO, 1970, 75). Reconhece em si uma monstruosidade que inevitavelmente nos remete ao repúdio causado pelo comportamento homossexual, ao desvelar em seu Diário completo: “... nasci com alguma coisa monstruosa, exagerada e aberrante, que faz, por exemplo, com que todos os olhares se voltem surpresos para mim, quando entro pela primeira vez num salão” (CARDOSO, 1970, 93). Impossível não nos remetermos a uma das figuras mais monstruosas e transgressoras de Lúcio, o Timóteo de Crônica da casa assassinada, sujeito que, travestido de Maria Sinhá, torna-se o monstro moral que o sujeito transgressor personifica: “É esta a única liberdade que possuímos integral: a de sermos monstros para nós mesmos” (CARDOSO, 1979: 48). As verdades indesejadas alimentam a torrente de questões subversivas, e o homoerotismo se torna o ponto nevrálgico amalgamado às inquietações existenciais. Este último ponto difere uma personagem como Timóteo de outra como Zé Honório de O casamento, de Nelson Rodrigues. Embora o primeiro inevitavelmente trave seu diálogo com o grotesco por sua bizarra aparência exterior, seus pensamentos possuem uma profunda depuração ontológica, enquanto o segundo possui a provocação bruta do sujeito que deseja ser sodomizado por um negro diante do pai entrevado, para se vingar das surras que levara dele de chicote na infância. Por isto, enfatizamos que o homoerotismo em Lúcio Cardoso é uma verdade ontológica que, quanto mais abnegada, mais possibilita ao escritor mineiro incitar o desconforto que se torna o norte de sua trajetória como escritor, seguindo os votos de Nietzsche aos provocadores em Genealogia da moral: ... desejo de coração que se dê precisamente o oposto – que esses pesquisadores e microscopistas da alma sejam na verdade criaturas valentes, magnânimas e orgulhosas, que saibam manter em xeque seu coração e sua dor, e que se tenham cultivado a ponto de sacrificar qualquer desejo à verdade, a toda verdade, até mesmo à verdade chã, acre, feia, repulsiva, amoral, acristã... Porque existem tais verdades. (NIETZSCHE, 2006: 18) Diante da obsessão do autor pelas verdades malditas, estas não seriam perseguidas sob um ímpeto que não fosse o da violência, o que determina uma busca desesperada a se confundir com experiências-limite como estupro, assassinato e suicídio. Tamanha violência possibilita a Lúcio carregar as imagens pictóricas de suas tragédias urbanas ou provincianas e adensar os contornos de ambientes e personagens com tons por vezes pesados e agressivos, alternando sobressalto e fascínio diante do mistério que jamais se oculta completamente. Não somente sua ocultação é impedida como a força do retorno da verdade surge diretamente proporcional ao seu encarceramento, como observamos por esta passagem de Perto do coração selvagem (1944), cujo título nasceu por indicação do próprio Lúcio Cardoso: “Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido, é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma capacidade perigosa – daí um temor maior ainda. Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar sobre todos” (LISPECTOR, 1994: 78). Quanto mais recôndita a paixão, maior a avidez com que emerge, e as paixões abnegadas do universo cardosiano – não apenas nas circunvoluções do homoerotismo, mas também em todos os amores trágicos de suas personagens – não poderiam ser tratadas de modo distinto, como inferimos a partir de Um mais além erótico: Sade, de Octavio Paz: As paixões chamadas secretas assim são não porque sejam menos fatais, isto é, menos naturais que as normais. Para se satisfazer, não vacilam em violar as leis públicas: são mais violentas. Contudo, são mais violentas porque são mais naturais. A mesma coisa acontece com os prazeres cruéis. São os mais antigos, os mais naturais – não são chamados de bestiais? A natureza é singular, é uma fonte inesgotável de fenômenos. A normalidade é uma convenção social, não um fato natural. Uma convenção que muda com os séculos, os climas, as raças, as civilizações. (PAZ, 1999: 57-58) Temos aqui um entendimento para esta condição tão visceral das personagens de Lúcio. As paixões intempestivas só poderiam ser representadas em um palco onde a desordem moral pudesse servir ao jogo na construção de sua escrita polêmica e transgressora. Por suas narrativas deliberadamente insidiosas, enxergamos as puras intenções de Lúcio ao carregar as tintas deste universo moralmente caótico, o que explica seu interesse em criar personagens tão absurdamente apaixonadas, como aponta em “Diário de terror”: “Os seres ou não me interessam, por impossibilidade ou por excesso de conhecimento, ou me interessam até a paixão, até a afronta – os que eu amei, esgotei-os até a saciedade, porque a minha curiosidade era mortal e a minha paixão era maior do que a força deles, e adivinhando-os tanto, eu poderia assassiná-los” (DT, 746). O amor em Lúcio Cardoso será subjugado pelos excessos da paixão, como afirma em Diário completo: “Ah, o amor que não sabe ter calma e não conhece nenhuma espécie de repouso – antes é uma espécie de febre constante e lúcida. Com o correr do tempo transforma-se numa obsessão sem fundo, um estado agudo, delirante” (CARDOSO, 1970: 09). O desatino representa um modo de transcender a mediocridade moral, e as questões incômodas e subversivas desejam devassar o mistério deste Ser subterrâneo que não poderá ser eternamente encoberto. Por isto tamanha obsessão do escritor mineiro pelo que considera ser a verdade, e a sua procura está disseminada no discurso de suas personagens, discutido intensamente em toda sua produção textual, seja em novelas, romances ou teatro. Todas elas a perseguem de modo obsedante, assim como seu criador, e tal verdade é sempre ultrajante, sempre algo absolutamente escuso e terrivelmente aterrador quando lançado à luz do pleno desvelamento – o que inevitavelmente traz em si a condição homoerótica, e ela estará presente obliquamente no seu ciclo de novelas. 2.2 O afeto trágico: o homoerotismo em O desconhecido Em O desconhecido9, uma das primeiras novelas que publicou, Lúcio daria vazão a tema não menos cabuloso: a atração homoerótica de um homem por um jovem. O protagonista de O desconhecido, espécie de anti-herói predestinado ao Mal, logo ao chegar a fazenda Cata-Ventos, conhece Paulo, com quem passa a dividir um simplório quarto na casa e onde o ensina a ler e escrever. Aos poucos, passa a nutrir um interesse peculiar por este rapaz “magro, de fisionomia infantil e olhos ingênuos” (OD, 33), incutindo-lhe um papel apaziguador em meio aos espíritos 9 A referência à novela O desconhecido será feita pela sigla OD, seguida do número da página. atribulados que circulam pela fazenda. A ingenuidade da personagem, um adolescente solto pelos campos, com uma liberdade agreste que parecia “emprestar à sua fisionomia alguma coisa da maravilha selvagem dos pássaros e das flores” (OD, 35), como não maculada pelos ferinos sentimentos humanos, instaura em José Roberto uma sensação quase imediata de admiração: “Decerto, oh! – decerto jamais compreenderia tão lucidamente o segredo da fascinação humana, essa sombra que vagueia e cintila ao mesmo tempo, que atrai e acaricia como um fluido elemento esparso pelos corpos ardentes” (OD, 35). O primeiro signo da profanação de algum modo foi aqui lançado, já que tal fascinação desvela a possibilidade futura da obsessão com que o desconhecido sustenta sua vocação para o Mal. Para enfatizar ainda mais o liame emocional entre os dois homens, Paulo também corresponde de algum modo à amizade que o desconhecido lhe oferece, face a uma espécie de elo tácito de atração e mistério que reforça a densidade homoerótica da trama: Neste instante, ambos estavam tão próximos que um sentia no rosto a respiração do outro. E, sem saber por que, ambos compreenderam que já não havia entre eles nenhuma hostilidade e que, ao contrário, alguma coisa poderosa como o instinto os havia unido, como se, colhidos pela engrenagem de um fato misterioso e inesperado, devessem lutar juntos para se libertarem. (OD, 36) Mario Carelli, em Corcel de fogo, lembraria que “Lúcio jamais descreveu com tanta força o fascínio exercido por outro homem” (CARELLI, 1988: 121), o que torna O desconhecido a novela em que Lúcio mais se aproximaria do tema controverso. A tensão homoerótica se une efetivamente aos artifícios de provocação graças às suas implicações com o transtorno emocional e a sexualidade transgressora. José Roberto é o foco central das inquietações ontológicas de Lúcio, principalmente pelo modo com que incorpora o Mal cuja força permanece ainda oculta, já que a personagem percebe em si mesmo que “uma força obscura estava prestes a desencadear-se no seu ser; ele sabia que necessitava de toda a sua vontade para retê-la, antes que ela o lançasse impotente na mais perigosa das voragens” (OD, 45). A referida “força obscura”, como veremos mais adiante, é uma constante nas personagens cardosianas, como um impulso tão refreado quanto ameaçador, sendo que o mesmo pode ser dito sobre a “loucura adormecida”: “Toda vez que ele a libertava, era para causar algum desastre” (OD, 69). A insanidade, o desejo homoerótico e a morte formam um amálgama de sentimentos intrincados e efetivamente oblíquos. A relação com Paulo parece ser a única rota de fuga diante deste cerceamento constante e é com o jovem que encontra a calmaria em meio às suas agonias interiores: “no rosto de Paulo, ele parecia contemplar pela primeira vez a sombra fugitiva e insuspeitada do Amigo” (OD, 49). E completa: “Que outra vida poderia desejar, a que título reclamaria emoções diferentes e mais puras do que aquela que experimentava agora?” (OD, 59). No quarto com o rapaz, José Roberto nota que “seus traços eram admiravelmente regulares, tudo parecia bem colocado naquela face embebida ainda na luz da adolescência” (OD, 34). Em certo momento, percebe que “o rapaz se levantou como um felino” – lembremos a associação que Lúcio faz da sensualidade dos efebos com os felinos em seu Diário completo – e na fascinação crescente de José Roberto “seu rosto quase tocava o de Paulo e ele sentia queimá-lo o calor daquele outro corpo” (OD, 35). Aos poucos, José Roberto percebe nesta relação a possibilidade do arrefecimento de suas convulsões interiores: “Durante um minuto, um pálido minuto que fosse – frágil réstia de tempo que devia perdurar entre os outros como um átomo de luz – queria acreditar que sua solidão não era tão profunda, que todo o mal do homem seria remediável” (OD, 69). Embora o amor para Lúcio seja sempre notadamente trágico – o que nos remete a Octavio Paz, quando este afirma que “o amor é duplo: é a suprema ventura e a desgraça suprema” (PAZ, 2001: 187), no seu livro A dupla chama: amor e erotismo –, a presença de Paulo foi responsável por um pequeno hiato que serviria de trégua ao espírito torturado de José Roberto. Não obstante, o alento não duraria muito tempo – o amor não conhece a longevidade. Ainda em A dupla chama, Paz afirmaria: O amor também é uma resposta: por ser temporal, o amor é, simultaneamente, consciência da morte e tentativa de fazer do instante uma eternidade. Todos os amores são infelizes porque todos são feitos de tempo, todos são o nó frágil das criaturas temporais que sabem que vão morrer; em todos os amores, até nos mais trágicos, há um instante de felicidade que não é exagerado chamar de sobre-humana; é uma vitória contra o tempo, um vislumbrar do outro lado, esse mais além que é um aqui, onde nada muda e tudo o que é realmente é. (PAZ, 2001: 189) A referência à personagem Nina, filha da empregada Elisa e expulsa por Aurélia, proprietária da fazenda, apresenta um novo viés à trama. Embora seja quase um espectro em toda a narrativa e tendo apenas uma breve aparição já nos rumos finais da história, a personagem é responsável de modo indireto pelas circunvoluções da novela, graças ao desconforto instigado por sua beleza – um dos outros motes presentes nas narrativas cardosianas. Impossível não nos lembrarmos da personagem homônima de Crônica da casa assassinada, que deixaria atrás de si um rastro de destruição moral e física graças ao êxtase provocado por sua beleza alucinante. A aristocrata Aurélia, representando aqui a decrepitude de um corpo e alma arruinados, expõe em suas palavras toda a carga de ódio e obstinação que sente pela jovem expulsa da fazenda: Como é bela, meu Deus, como é bela! Nunca vi na minha vida cabelos iguais, pele mais sedosa, olhos mais brilhantes. Nunca vi fascinação mais poderosa. Pensei em deixar tudo, em me recusar a tomar um partido definido. Mas a pequena crescia a olhos vistos, criava formas, atraía todos os olhares, invadia a fazenda inteira com o seu esplendor. Onde quer que eu fosse, eu a via, estuante de saúde. Como era possível viver desse modo, eu, que nunca tive nada, que sempre fui feia e escarnecida? Não tive forças para perdoá-la. Expulsei-a. (OD, 84)10 O amálgama composto pela beleza imaculada e a pureza de espírito alimenta sentimentos obscuros que vão além dos limites estabelecidos pela inveja, além de instigar um ódio quase irreprimível: “Essa menina é uma negação da minha própria existência” (OD, 85). Ao lado 10 O ressentimento e amargura da personagem representam um tipo de ódio provinciano que será abordado no terceiro capítulo do presente trabalho. da perseguição obsedante da velha Aurélia, a ingenuidade de Paulo instiga o mesmo viés de fascinação em José Roberto a se intensificar no decorrer da história: Tão grande proximidade o assustava. Não se julgara sempre como o lobo solitário da história, e não se comprazia orgulhosamente dessa solidão? Como era terrível e inesperada aquela morna presença junto dele! Às vezes, durante a noite, despertado pelo calmo ressonar do companheiro, levantava-se, acendia silenciosamente a lamparina, aproximava-se, inclinava-se sobre ele, inclinava-se tanto que chegava a sentir no rosto a surda palpitação daquele sono tranqüilo. Toda a face parecia então banhada numa luz estranhamente pura. O que ele, José Roberto, sentia nesse momento jamais poderia dizer; era como se ele próprio tivesse cessado de existir, como se tudo em torno tivesse parado misteriosamente o seu movimento, encerrado para sempre, como uma paisagem petrificada, no âmago daquele minuto. (OD, 90) Como reviravolta da trama, Paulo desvela a José Roberto algo até então insuspeitado: seu envolvimento com a filha de Elisa e o desejo de partir com a moça, que vivia sob os cuidados de um padre residente no povoado próximo. O jovem pede ajuda a José Roberto, para que este lhe dê o dinheiro necessário para empreender a fuga. O desconhecido, face à possibilidade iminente de Paulo abandoná-lo, vê-se diante da derrocada dos seus planos de permanecer na fazenda e eliminar seus pesadelos interiores: “Mas como evitar, como fugir a uma realidade que se colocava aos seus olhos de um modo tão cruel? Entretanto, obstinado, ele indagava se não teria sido um engano, se não teria compreendido mal, se não teria sido apenas uma dessas absurdas confusões que às vezes parecem ameaçar nossos sonhos mais caros...” (OD, 137) A partir deste trecho, está demarcado o momento em que a história começa a seguir um novo viés e, agora de modo mais claro e evidente, o limiar da tragédia que se abateria sobre Paulo e o desconhecido: Como pudera se ter enganado desse modo? Uma revolta surda apoderou-se de José Roberto. Não era possível, não podia permitir que o outro esfacelasse desse modo brutal, como uma simples miragem criada pela sua imaginação, toda a vida que o tinha habitado nos últimos tempos. Seria eternamente assim, estaria condenado a ver desaparecer entre os seus dedos, sem poder fazer nenhum esforço, todos os seus pobres afetos? (OD, 138) Como um ponto nevrálgico que tivesse sido atingido, José Roberto amarga a consciência evidente de perder os laços de afeto e entende a fragilidade das barricadas que inutilmente construíra em torno de si. A agonia em que o desconhecido aos poucos imerge começa a alinhavar a tessitura trágica: “José Roberto retirou as mãos do rosto, recuou para a obscuridade, a fim de que o rapaz não pudesse perceber, pela sua fisionomia, o desespero que o invadira” (OD, 139). Aos olhos de José Roberto, descortinam-se as incertezas sombrias do seu futuro: Do outro lado, distinguiu o vulto do companheiro estendido na cama. Levantou-se e, pé ante pé, se aproximou, contornando cautelosamente a mesa que separava os dois catres. Depois, retendo a respiração, sentou-se na borda do leito em que Paulo descansava. Não podia explicar esse furioso desejo de sentir alguém vivo junto de si, uma âncora que o retivesse junto a essa vida que parecia revolvê-lo constantemente ao seu lugar de espectador. Sim, como pudera imaginar que conseguiria viver de um modo diferente, como ousara acreditar que seria possível romper os limites traçados ao seu destino? (OD, 143) José Roberto consegue entender com mais clareza o ódio que Aurélia sente por Nina, bem como seu comportamento obsedante em destruí-la: “De repente, como se na sua consciência se reatassem duas pontas perdidas de um mesmo fio, reviu a figura de Aurélia e compreendeu, com lancinante profundeza, a significação do seu ódio pela filha da empregada” (OD,159). A possibilidade concreta de perder a companhia do adolescente rechaça o sonho de manter a paz com que vivia no lugar: “Como não tinha compreendido ainda que, sem o amigo, sua existência naquele lugar seria impossível? Jamais suportaria a ilusão que sua ausência causaria” (OD,161). O afeto do homem, quando obscuro e abnegado, se transforma em uma emoção indômita e tempestuosa, como aponta Octavio Paz, em Um mais além erótico: Sade: “As paixões se distinguem entre si pela violência. Uma paixão será tanto mais enérgica quanto mais resistências tenha que vencer. As paixões secretas e as paixões cruéis são as mais fortes. Seu outro nome é destruição” (PAZ, 1999: 58). Os ciúmes inerentes ao estado passional suscitam um furor incontrolável e cede terreno para o aniquilamento final, como podemos inferir sobre o sentido devastador da perda no sistema intricado de desejos, dado por Bataille: A forma significativa da necessidade do desequilíbrio e do equilíbrio alternados é o amor violento e terno de um ser por um outro. A violência do amor leva à ternura, que é a forma durável do amor, mas introduz na busca dos corações este mesmo elemento de desordem, esta mesma sede de fraqueza e este mesmo antegosto de morte que encontramos na busca dos corpos. Essencialmente, o amor eleva o gosto de um ser por um outro a esse grau de tensão em que a privação eventual da posse do outro – ou a perda do seu amor – não é sentida menos duramente que uma ameaça de morte. (BATAILLE, 1987: 225) José Roberto decide ir com Paulo ao moinho, local onde escondera certa quantia em dinheiro para que ele pudesse realizar a fuga desejada. Extenuado pela amargura e pela ruptura do afeto que o ligava incondicionalmente ao rapaz, inconformado com a rejeição do amigo e com o abandono a que este de certa forma o submetera, José Roberto mergulha em um arroubo incontrolável e comete o assassinato de Paulo, em um dos atos de violência e terror mais impressionantes da trajetória literária de Lúcio Cardoso: E, como o rapaz se debruçasse novamente, sondando a massa escura que os sacos formavam no fundo da caixa, sentiu um ódio selvagem apoderar-se do seu coração, estreitá-lo como duas poderosas tenazes. Por que permitir que ele destruísse assim a sua vida? E o seu furor foi tão grande que se sentiu cego e, temendo cair, apoiou-se com as duas mãos à parede. Seus dedos tocaram o cabo de uma das enxadas. Então as trevas se converteram em vermelho, um vermelho ardente, oleoso, que o sufocava. Tomou a enxada, levantou-se no ar, vibrou no amigo dois golpes furiosos. Ouviu um grito abafado e, depois, uma voz que exclamava, estrangulada pelo terror e pela surpresa: Meu Deus, que é que você está fazendo? E, sem mais saber realmente o que fazia, dominado por aquela onda vermelha que lhe afogava a alma, continuou a desferir golpes, até que, exausto, ouviu o corpo tombar pesadamente. (OD, 161) Notamos que a narração do crime possui um estilo direto que intensifica a atmosfera sombria. Lúcio expõe uma narrativa bastante visual, com traços quase pictóricos, acentuando ainda mais sua busca deliberada em instigar a violência de cores e formas na descrição do ato criminoso, como a que observamos quando descreve o rosto de Paulo como “uma pasta sangrenta, uma forma negra, sem nenhuma identidade com o seu companheiro”, ou quando, ao ouvir um gemido do corpo já em seus estertores, “deu-lhe um violento pontapé, como se desejasse experimentar aquela vida que se extinguia” (OD, 162), ou ainda, ao descrever o local logo após o homicídio, aponta que “como a claridade se derramasse mais forte, verificou que as tábuas da parede estavam cobertas de sangue”; por fim, ao tentar atirar o corpo nas águas do moinho, “introduziu a cabeça esmagada na abertura” e “deu um último empurrão, escutou o corpo tombar lá embaixo, com um baque surdo” (OD, 162). Embora a ambientação da morte apresente contornos de um clima alucinatório, o que observamos é a descrição realista de um assassinato à luz do efeito devastador do ciúme e da agonia que funcionam como catalisadores para o terror. A sensação perturbadora da leitura confirma a gama de sortilégios que acompanhava o desconhecido desde o limiar da narrativa: Sim, que acontecera, que fizera realmente? Na verdade, conservava a estranha impressão de que cumprira apenas um gesto que em torno dele todos estavam aguardando. No momento em que levantara a enxada, sentira que o fazia como se cumprisse uma obscura ordem. Não era possível ignorar que aquela atmosfera pesada, repleta de ressentimento, aguardava a morte de alguém. Essa morte, ele a tinha realizado. Mas, desde quando, de que minuto exato, datava a sua submissão a essa força maléfica? (OD, 166) Ao mesmo tempo em que cumpre o papel predestinado, como o desconhecido que penetra na fazenda para disseminar o Mal, o crime também é, por mais cruel que tenha sido, um ato de força maior com que o sujeito rompe os interditos da consciência apaziguada: “Em nenhum outro momento da sua vida, poderia dizer que possuíra uma lucidez mais perfeita. Reconhecia todas as coisas com uma esquisita acuidade, era capaz de apreender os raciocínios mais sutis” (OD, 164). Mergulha em um profundo estado de perturbação da existência a representar, ao mesmo tempo, a intensidade do Ser já que, quando detém as rédeas de seus demônios, demarca os contornos do potencial para o Mal: “Até aquele momento, tinha permanecido à parte da existência, contentara-se em ouvir o rugido da grande correnteza, sem forças para se fixar, para se inserir nesse corpo palpitante.” E completa: “E, de repente, com um só gesto, conseguira penetrar nela da maneira mais decisiva, emprestando à sua fisionomia, até aí indefinida, a violenta realidade de alguns toques para sempre indeléveis.” (OD, 164) Inevitável não pensarmos em Jean Genet que, em seu Diário de um ladrão, consegue erigir um mundo de força composto por seus anjos criminosos e decaídos: “Faço, nem tanto da solidão, mas do sacrifício, a mais alta virtude. É a virtude criadora por excelência. Deveria existir danação. Será que provocarei espanto se disser que o crime pode me servir para assegurar o meu vigor moral?” (GENET, 1986: 206) Rompendo momentaneamente os limites do que Friedrich Nietzsche chama em Genealogia da moral de “profunda doença” (NIETZSCHE, 2006: 72) do homem apaziguado, José Roberto está livre das pressões da “alma”. O ato maior que eleva a vida nos remete a um fragmento do já citado “Diário de terror”: “O homem mais profundo é o que tiver mais profunda consciência do seu equívoco” (CARDOSO, 1997: 747). O seguinte fragmento de Nietzsche, ainda em Genealogia da moral, de algum modo reforça o conhecimento de uma força não mais submetida a interditos religiosos ou morais: O homem ativo, violento, excessivo, está sempre mais próximo da justiça do que o homem reativo; pois ele não necessita em absoluto avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz, como tem que fazer o homem reativo. Efetivamente por isso o homem agressivo, como o mais forte, nobre, corajoso, em todas as épocas possuiu o olho mais livre, a consciência melhor: inversamente, já se sabe quem carrega na consciência a invenção da “má consciência” – o homem do ressentimento! (NIETZSCHE, 2006: 63-64) O viés excessivo das narrativas cardosianas, sendo ainda o modo como o autor engendra o enfrentamento sempre doloroso dos limites da verdade ontológica, é próprio dos estados agônicos que buscam devassar o mistério extrapolando os limites, como aponta Bataille, em O erotismo: “Mesmo o pensamento (a reflexão) não se completa em nós senão no excesso. O que significa a verdade, fora da representação do excesso, se não vemos senão o que excede a possibilidade de ver o que é intolerável de ver como, no êxtase, é intolerável gozar? O que é a verdade se pensamos o que excede a possibilidade de pensar? (BATAILLE, 1988: 249). Sob tal regime de convulsão e esgotamento das linhas do pensamento ontológico, os heróis trágicos de Lúcio seguem os rumos da perturbação existencial, como afirma novamente Octávio de Faria sobre as personagens cardosianas: É na voragem do ‘de profundis’ que eles se atiram quando se perdem na procura de si mesmos. Nesse caminho, nada os detém enquanto não atingem o desespero (...) Se são sinceros, se buscam realmente a verdade íntima, irão ter, inevitavelmente, ao pleno desespero. Conhecer-se a si próprios ou desesperar-se, são sinônimos absolutos em qualquer dos romances ou novelas de que cogitamos. (FARIA, 1997: 666) Não obstante, o assassino não permanece impune diante do ato e, como criatura de Deus, cerceada pela Sua onipotência e onisciência, se vê esmagado pelos interditos do remorso. As oscilações religiosas seriam uma constante em toda a trajetória cardosiana, e a confissão da miséria interior e a busca da redenção serão sempre explorados à náusea por Lúcio que, segundo Carelli, passa a ser um “procedimento dostoievskiano (e não nietzschiano, já que a revolta contra Deus se salda com um apelo a sua misericórdia e não com uma negação do seu poder)” (CARELLI, 1988: 123). José Roberto sucumbe diante da consciência, o que Nietzsche afirmaria como “seu órgão mais frágil e mais falível” (NIETZSCHE, 2006: 73). Não poderia faltar à narrativa cardosiana o eterno embate do sujeito combalido pelo temor a Deus, bem como a proximidade do perdão divino pela danação: Dominou-o uma tristeza tão grande que escondeu o rosto nas mãos, enquanto o sacudiam soluços secos, inúteis, que só pareciam trazer à tona uma ânsia do seu pobre corpo torturado. Deus do céu, como pudera, como tivera forças para fazer aquilo? Por que não tinha visto que a extensão de tal gesto acabaria sufocando os seus sentimentos até às mais longínquas raízes? Seria possível que tudo houvesse terminado assim? Teria sido ele apenas uma vítima dos seus próprios sentidos desgovernados? Deus do céu, que acontecera realmente? (OD, 165) José Roberto dilacera com suas próprias mãos a possibilidade de vivenciar plenamente o afeto, cumprindo um fado de destruição imanente às personagens cardosianas pois, como afirma Octávio de Faria, ainda sobre a leitura das personagens: “Somos animais eminentemente destruidores. E, pela vida afora, nada poupamos, nem aos outros, nem a nós mesmos. E eis que, um dia, até a própria imagem da criatura amada torna-se vítima dessa verdadeira ‘nostalgia da destruição’ que nos possui e envenena o que de mais vital existe em nós” (FARIA, 1997, 672). Para Bataille, beleza e pureza transgredidas, profanadas, maculadas. A consciência desta ruína final vêm à tona de forma clara para o desconhecido: Como era fácil, como era terrivelmente fácil destruir alguma coisa dentro de nós – sentimentos, emoções que se esgotam, fantasmas que nos perseguem como o emblema de tudo o que não atingimos. Que lhe importava agora o quarto humilde que abrigara tantos sonhos, que lhe importava a fazenda onde fora tão feliz nos primeiros tempos, o laranjal onde trabalhara, o aceiro que homens tinham construído sob as suas vistas? Tudo isso estava morto, só existia aquele cadáver na obscuridade do moinho. (OD, 169-170) Antes da fuga, José Roberto tem um último encontro com Miguel, que o acusa de assassinato e afirma saber do que acontecera no poço. Mais uma vez o arsenal de maus agouros se confirma, como se o desconhecido estivesse realmente predestinado a cumprir a sina de sortilégios que circundava a fazenda, consoante as palavras do cocheiro: “Quando nos vimos pela primeira vez, compreendi que você tinha forças para realizar sem hesitação tudo o que a minha covardia ameaçava a cada instante” (OD, 177). Após o breve diálogo, Miguel realiza um ato com uma significação peculiar para a história: Cego pelo súbito furor que às vezes o dominava inteiramente, brandiu o chicote e, avançando sobre o homem, vibrou-lhe um golpe profundo em pleno rosto. Com um grito de dor, José Roberto tombou sobre um arbusto, enquanto Miguel exclamava: - Isto é para que você leve eternamente o sinal da sua vergonha! Desse modo, jamais se esquecerá de mim. José Roberto sentiu um sangue morno, espesso, inundar-lhe a face. A dor foi tão forte que ele tombou contra o chão, arrastando na sua queda o arbusto sobre que se apoiara. (OD, 177) Em Gênesis, Caim se sente preterido por Deus e, por inveja do irmão e sem suportar a rejeição divina, comete o primeiro crime da humanidade. Como castigo, Caim é condenado ao desterro, ostentando o famigerado “sinal de Caim”, que o impediria de ser morto como vingança pelo assassinato do irmão, mas o condenaria à errância no deserto dos homens e ao cultivo de terras improdutivas: “E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão” (Gn 4,11). Mesmo que no episódio bíblico não esteja clara qual seria a natureza do sinal dado, inferimos que a marca deixada violentamente no rosto de José Roberto representa o signo da mácula e da vergonha pela destruição de uma criatura de Deus, estabelecendo um ponto de convergência com a notória passagem do Antigo Testamento. Tal como Caim ao afirmar que “é maior a minha maldade que a que possa ser perdoada” (Gn, 4,14), o desconhecido não conhece qualquer possibilidade de redenção e cumpre o fado final de sua expiação ao sucumbir diante do peso da morte que jamais poderia ser esquecida: Naquele momento, o homem deitado no leito da hospedaria não sabia mais se estava apenas sonhando ou se estava acordado. Escutava o rumor indistinto da chuva e via as luzes que brilhavam ao longe. De repente, uma força sobre-humana elevou-o, sentiu que na realidade o seu coração espedaçava como uma corda grave que se rompe. As luzes se dilataram, e ele se viu arrastado num oceano de fulgurantes vagas amarelas. Como uma forma desconhecida que o tivesse aprisionado até aquele minuto, o corpo abatido tombou sobre as cobertas desfeitas – e, enquanto a espantosa mentira se revelava em toda a sua fulminante profundeza, o silêncio se apoderou para sempre do seu irreconciliável inimigo. (OD, 195) Lúcio Cardoso almeja cumprir na ficção um anseio de aniquilamento próprio de um espírito provocador, instaurando o mal-estar por signos de insanidade, violência e paixão sem possibilidades redentoras: “Todo o meu ser é uma aventura impossível de sonho e de extermínio” (CARDOSO, 1970: 177). O homoerotismo das personagens acompanha a prece nefasta de seu criador. Da atmosfera lúgubre de uma fazenda na província, nos dirigimos agora para o clima opressivo de uma família burguesa no Rio de Janeiro, por onde a amargura, o ódio e a obsessão seguem caminhos não menos devastadores e tortuosos, encerrando novamente a linguagem de destruição e morte, única pela qual o escritor mineiro deseja proferir. 2.3 Espanto e abnegação: a descoberta homoerótica em O anfiteatro Se a paixão de José Roberto por Paulo foi desvelada em um contexto de agonia e desespero, novamente Lúcio traria à baila o amálgama de homoerotismo, loucura e morte em O anfiteatro11, novela em que os signos homoeróticos permaneceriam interligados a questões eminentemente trágicas. Anos-luz de distância do ambiente da província, a narrativa se passa em um ambiente absolutamente citadino, no Rio de Janeiro da década de 1950. O protagonista Cláudio, membro de uma família abastada que habita uma quinta na Gávea, pressente no limiar da novela a morte do pai. Cláudio é dotado de extrema sensibilidade e os acontecimentos que circundam os estertores paternos colocam o jovem em um estado de inquietação: “Pela primeira vez, o mundo surgia diferente aos meus olhos (...) Já agora, coisa alguma conseguia tranqüilizar-me: não reconhecia nem mesmo o que me era habitual, e uma inquietante advertência parecia fitar-me em cada objeto onde os meus olhos pousavam” (A, 122). Cláudio é um jovem de 19 anos que, concomitante à morte do pai, aos poucos abandona o terreno da inocência para encarar o estranhamento de si e do mundo: “Que me faz tão estranho?” – perguntava a mim mesmo. Que o perturba e quem o condena assim dentro do seu próprio mundo? (...) Quem saberá a surpresa e o silêncio que na alma dos adolescentes acompanham tantas descobertas – algumas delas vitais?” (A,122). No quarto em que o pai morre, Cláudio encontra um sujeito cujo olhar fixo lhe causa extremo mal-estar, uma densa “impressão de estranheza e de absurdo” ao mesmo tempo em que percebe que “desde o primeiro momento ‘já era outra coisa’” (A,128). 11 A referência à novela O anfiteatro será dada pela sigla A, seguida do número da página. Dias depois, após o luto do pai, Cláudio está no anfiteatro como aluno do curso de medicina, quando se depara novamente com o sujeito desconhecido, justamente o professor daquela disciplina. Aos poucos, Cláudio expõe o dom de domínio que o professor possui sobre si, o que causaria no rapaz um misto de terror e fascínio: “Um silêncio absoluto reinava sobre o anfiteatro, e só a voz se elevava, como uma música, enquanto os dedos nervosos iam retalhando a carne escura e sem movimento. Oh, naquele minuto ele poderia ter feito de nós o que quisesse...” (A,150). O jovem irá nutrir um sentimento de encanto concomitante à descoberta de seus sentimentos insuspeitados: “Compreendi então que aquele homem me conhecia, não apenas como conhecemos ou suspeitamos as pessoas, mas profundamente, por uma espécie de pasmosa intuição das cordas mais íntimas da minha natureza” (A,152). Cláudio desenvolve pelo professor Alves uma obsessão que possibilita o desvelamento de uma atração homoerótica – “uma curiosidade doentia pela vida daquele homem se apoderara de mim, e eu queria conhecer detalhes que me auxiliassem a reconstituí-lo com uma fisionomia mais íntima” (A, 153) – e, em seu interesse cada vez mais obsedante, se sente estarrecido diante do “reconhecimento” do professor: Senti naquele momento, pela primeira vez, que ele me “reconhecia” – e em todo o meu ser desabrochou uma claridade repentina, como se um mistério além das pobres forças humanas tivesse dado vida ao meu ser – e era realmente uma vida nova e eu me sentia perturbado, atônito, como diante de Deus deviam se sentir as primeiras criaturas, ainda nuas no barro em que haviam sido criadas. Não devia dizer nunca àquele homem o que ele significava para mim – não devia narrar os longos momentos em que revivera na memória a sua imagem de convivência tão rara, nem os sonhos que alimentara, nem suas palavras de banal interesse, e que no meu espírito eu cultivara como sementes de uma planta de luxo. (A, 186) Uma tríade de relações ambíguas se estabelece entre Cláudio, o professor Alves e seu colega Gil, “um rapaz ‘vivo’, talvez excessivamente vivo para o resto das pessoas” (A, 148). Na residência do professor, quando este mostrava um álbum de fotografias de uma viagem que realizara pela Europa para Gil, Cláudio se sente momentaneamente preterido e reforça ainda mais a leitura que fazemos do seu afeto oblíquo: “Senti penetrar-me, instantaneamente, um sentimento frio de amargor e de abandono. Pela primeira vez conheci o que era ciúme, um ciúme frio, que me penetrava aos poucos, como um líquido pingando gota a gota sobre o meu coração” (A,155). O homoerotismo cardosiano nunca é deflagrado por linhas explícitas; antes se reconhece melhor nos volteios da obliqüidade e da ligação constante com a loucura adormecida, como um sentimento “desses que nos acompanham a vida inteira como uma sombra interior, muitas vezes quase sem possibilidade de evasão, de tal modo permanecem no âmago das consciências” (A,159). O desejo homoerótico, recusado e cerceado pelos interditos da criação cristã, permanece como substrato de forças subterrâneas. Mesmo sob um entendimento ainda incipiente, Cláudio infere que sobre tais forças “jamais poderemos avaliar como existem e se colocam em ação – mas a verdade é que sob certas condições alguma coisa se põe em movimento no centro mais obscuro e recuado de certas almas, como uma hélice que impulsionasse sentimentos absurdos e misteriosos” (A, 128). O homoerotismo cardosiano oscila entre o velamento sustentado pela obliqüidade e o desvelamento dado por gestos excessivos e desmesurados de suas personagens, sempre esmagadas pelo sem rumo de forças misteriosas. Notamos como Lúcio faz certa opção pela irrupção das subjetividades carregadas, também como forma de expor os modos com que o desejo aprisionado tem relação proporcional à transgressão já que, citando novamente Bataille, “o limite não é dado senão para ser excedido. O medo (o horror) não indica a decisão verdadeira. Ele incita, ao contrário, num contragolpe, a ultrapassar os limites” (BATAILLE, 1978: 135). A sexualidade transgressora traz em si signos do ódio que fortalecem a possibilidade de evasão do desejo contido, como se a descoberta desta sexualidade culpada (a se confundir com a própria verdade do sujeito) e sua subseqüente abnegação alimentassem uma capacidade inata de odiar despertada pela amargura da renúncia. Os espíritos recônditos (e ao mesmo tempo indômitos) promulgam o ódio em discurso onipresente em toda a prosa de ficção do autor e, no caso da presente novela, é proferido pela mãe de Cláudio ao próprio filho: Você não tem idade para compreender o ódio. Na mocidade, o ódio é quase sempre um movimento de repulsa. Mas, quando a vida já nos experimentou suficientemente, quando já nos sentimos velhos e gastos, quando já não temos sonhos para encher as longas horas que ainda nos restam, então o ódio mesmo serve, o ódio é uma força que nos enche e simula a vida. Vivemos dele como se vivêssemos de um sentimento vital; o amor, por exemplo. É o ódio quem levanta as paredes do nosso silêncio, ele que orienta os nossos gestos, sempre presente. (A,161) Lúcio expõe o ódio como a sublevação do homem diante dos rumos da mediocridade moral e da consciência apaziguada, como vimos em O desconhecido. Pelo ódio, a sexualidade transgressora encontra modos de expressão de suas cordas íntimas e o conhecimento de si desvelase como a verdade antes encoberta. No caso de Cláudio, a violência é amortecida pelo terreno das descobertas e do arrolamento inicial de sensações, sem que sejam negadas, porém, as implicações do desejo com o Mal e com a demência. Se para os jovens de 19 anos das narrativas cardosianas, como Alberto, Manuela, Inácio e Adélia de Val-Flor, as reviravoltas os colocariam sempre à mercê do suicídio, da violência sexual e da derrocada espiritual, para Cláudio a descoberta se daria de modo menos abrupto, embora não menos relacionado ao assombro diante do desvelamento. Após a morte do pai e a fixação pelo professor Alves – catalisadores de uma espécie de espanto diante do mistério – o protagonista é tomado pelo entendimento da transgressão, do castigo e da redenção como constitutivos do amor homoerótico. Além disso, notamos como Lúcio Cardoso encontra a possibilidade de rememorar a própria agonia íntima de sua primeira juventude através de Cláudio, em um discurso que poderia constar de seus diários, ao dizer que “fui um desses rapazes tristes que trazem em si um mundo muito grande, em choque com o pequeno e bem organizado mundo dos outros, onde diferenças são loucuras, e erros, crimes imperdoáveis” (A, 144). Abandona a adolescência e a ingenuidade em direção às regras regidas pelos adultos, ao notar que “muitas coisas aprendi mal ou não aprendi de todo, e incomoda-me a inocência com que vivi, frente a um mundo que só concede o seu perdão quando se apodrece aos poucos, como toda a gente, a caminho da maioridade” (A, 155). Suas questões existenciais “teriam de ir-se colocando ao longo dos anos, penosamente reveladas, entre o pasmo das primeiras descobertas o desespero e a nascente claridade que iria envolvendo aos poucos a indizível realidade” (A,144). A descoberta do jovem Cláudio (ou do jovem Lúcio) é também o limiar do entendimento do fardo moral que Nietzsche chamou de “má consciência” do homem moderno, como observamos em Genealogia da moral: Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem “amansar”, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência”. Com ela, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, como que um salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava. (NIETZSCHE, 2006: 73) As descobertas homoeróticas da personagem se unem à compreensão das barricadas impostas pelos interditos morais e à impossibilidade da compreensão de si e do mundo: “Oh, incerta e obscura vida! Não somos nós também todos assim, cegos animais a procurar a estrada que não encontramos nunca?” (A,164). Cláudio percebe por suas idiossincrasias aspectos marcados pela diferença, pela exclusão, pela ruptura moral, e reconhece isto em seu colega Gil: “Havia nele qualquer coisa de um cego, de um ser perdido que falasse para se embriagar com as próprias palavras, temendo deparar com a realidade mais funda da sua natureza, aquela que só se revela quando estamos sozinhos, distantes da indiferença, da incompreensão e até mesmo da justiça dos outros” (A,174). Afirma ainda, a respeito do mesmo amigo: “um pouco do seu segredo se passara para o meu conhecimento, e estávamos unidos agora por um desses inevitáveis e inquietantes laços de sofrimento e miséria comum, por uma dessas alianças que o destino traça com a sua mão caprichosa e cruel (A,175). Em um diálogo com Gil, a condição da diferença culposa é ainda mais explorada: “Não adianta fugirmos – continuou ele, naquele tom envergonhado e triste em que vinha se exprimindo -, tudo está perdido, envenenado. E é difícil viver com este sentimento no coração, como quem procura esconder uma falta. No dia em que descobri...” (A, 178). O escritor escreve sobre a força do que ele apontou ser em Gil a “realidade mais funda de sua natureza”, consoante citamos acima, em uma das rarísismas passagens de Diário completo em que aborda diretamente o homoerotismo: “Montherlant diz – e não pode haver testemunho mais insuspeito – que o homossexualismo é “a própria natureza’. No que tem razão, pois no ato de duas pessoas do mesmo sexo se unirem, há um esforço da natureza para se realizar até mesmo sem os meios adequados” (CARDOSO, 1970: 255). Para cada (anti)herói transgressor, um destino trágico inevitavelmente o espera – entendimento que jamais abandonou Lúcio, em nenhuma de suas novelas. A imagem da tentativa de suicídio de Gil com veneno de rato, torna-se uma espécie de metáfora para Carelli, já que “o ‘veneno impuro’ ligado ao sangue é sobretudo sinal da possessão maléfica que endurece o coração do homem, que mata nele qualquer capacidade de amar” (CARELLI, 1988: 127). Após o martírio a que os jovens Cláudio e Gil são submetidos, o professor Alves permanece como o elemento obscuro e devastador, pela impressão da própria mãe da personagem: Sempre vira o filho causar a ruína em torno dele, sempre o vira como um enviado maléfico, trazendo à luz do sol o que de mais secreto e insuspeito havia no fundo das almas. Como que sua presença infundia a consciência de uma outra Graça, monstruosa e invertida. O que tocava, era para despedaçar. Possuía, sem nenhuma dúvida, essa força misteriosa dos seres predestinados ao mal. (A, 210) Do homoerotismo partimos para as manifestações de violência sexual em O enfeitiçado, o que adensa ainda mais o quadro das provocações deliberadas do autor e do seu interesse em alicerçar a narrativa com aspectos que possam desconcertar seus leitores mais puritanos. 2.4 A pureza profanada: violência em O enfeitiçado O enfeitiçado12 possui a narrativa em primeira pessoa feita pelo protagonista Inácio Palma, em ritmo de confissão perfilada em um pequeno caderno de notas, o que adensa ainda mais o contorno das subjetividades confundidas às engrenagens íntimas de Lúcio: “A verdade é que sou um velho – terrível confissão – que se embriaga com o significado das coisas fluidas, imponderáveis, essas que nos roçam sem tocar, que nos dominam pela sugestão, como a sombra, o sonho ou a memória” (E, 152). Inácio se dirige à casa de Lina de Val-Flor, misto de “cartomante” com embusteira, em busca do seu filho Rogério, que narra a primeira novela da trilogia, Inácio. Lá é apresentado à filha de Lina, Adélia de Val-Flor, oferecida sutilmente pela cartomante por dinheiro, o que já prenuncia também o estado de sacrifício e destruição: ...creio hoje que Lina de Val-Flor nada pouparia à filha, a fim de transformála numa estúpida caricatura. Não lhe transmitia certos requintes, senão para destruí-la com mais energia. Devagar, alimentava com carícias e paradoxais ensinamentos, a vítima que massacraria em breve sob seus duros pés de camponesa. (E,175) Para acentuar ainda mais a sugestão de objeto imolado, Lúcio ressalta as nuances de beleza, pureza e inocência da filha oferecida pela própria mãe: “...Adélia de Val-Flor surgiu como uma esplêndida visão da mocidade. Devo esclarecer desde já que se tratava de uma criança, uma criança no sentido exato da palavra, tímida e mal vestida” (E, 174). Importante enfatizar como nas obras cardosianas a juventude do objeto sacrificado se confunde com a beleza a ser ultrajada: “...vi então que não era um tipo vulgar, e sim uma pessoa dotada de extraordinária beleza. Podia ser apenas um brilho passageiro, esse imponderável e misterioso brilho que emana 12 A referência à novela O enfeitiçado será dado pela siga E, seguida do número da página. dos adolescentes. O que quer que fosse, contaminou-me: uma chama ligeira percorreu-me o corpo” (E, 175). A beleza é o primeiro signo da profanação, recurso que Lúcio deliberadamente ostenta para instigar o primeiro sinal do sacrifício de suas personagens púberes, cuja referência a Georges Bataille, em O erotismo, é ainda mais contundente: “Se a beleza, cujo acabamento rejeita a animalidade, é apaixonadamente desejada, é porque nela a posse conduz à conspurcação animal. Nós a desejamos para maculá-la, para sentir o prazer de que estamos profanando-a” (BATAILLE, 1987: 135). Em um mundo apodrecido, rodeado de figuras demoníacas e caricaturas grotescas do homem, Adélia é o último resquício de pureza já na iminência de ser ultrajada e oferecida ao massacre: “Dirão talvez que exagero, que não há na vida desses anjos de pureza, desses lírios nascendo de monturos e pântanos quentes da baixeza humana” (E, 174). Quando Lúcio submete beleza à destruição, nos remetemos novamente a Bataille, visto que “a fealdade não pode ser maculada, e a essência do erotismo é a mácula. A humanidade, significativa do interdito, é transgredida no erotismo. Ela é transgredida, profanada, maculada. Quanto maior a beleza, maior a conspurcação” (BATAILLE, 1987: 136). Aos poucos, Inácio começa a circular com Adélia pelas ruas do subúrbio carioca, tentando fugir da velhice e da miséria com o último recurso oferecido pela jovem – “A vida, com o tempo, esfria e amortece como o sangue nas veias – e é preciso calor jovem, temperatura diferente, para nos aquecer e nos atirar de novo ao turbilhão fecundo” (E,179) – ao mesmo tempo em que vislumbra em Adélia a possibilidade de um último grande ultraje: “... meu desejo se tornava mais áspero, mais intratável, um verdadeiro capricho que exigia o seu preço e não tergiversava com circunstâncias acidentais” (E,185). Após deixar Adélia embriagada e conduzi-la para seu quarto de pensão, Inácio cumpre o ritual cardosiano de profanação: Devagar, como quem executa um ato sagrado, comecei a despi-la. Primeiro fiz ceder sobre os ombros as alças que lhe retinham o vestido, depois, ao longo do corpo, fiz deslizar as vestes que a cobriam (...) Meu Deus, era apenas um corpo de criança. Assim semidespido, como parecia ligeiro e frágil, não um corpo de mulher, mas de menina ainda mal desabrochado. Mais um pouco e ela estaria completamente nua. (E, 248) Inácio cumpre o papel que faz dele “a criatura mais demoníaca de Lúcio” (CARELLI, 1987: 133), enfatizado pelo tom perverso de suas confissões – “E confesso que não tive nenhum pudor, nenhum remorso em profanar aquele corpo de criança” (E, 249) – e construído deliberadamente por Lúcio com a intenção de ser, pelas palavras de seu próprio criador, “talvez a caricatura de um demônio, de um desonesto fundamental, no transe final de sua carreira” (CARDOSO apud CARELLI, 1988: 134). Importante salientar que todo o sacrifício dos rebentos cardosianos compõe parte do arsenal de transgressões que viceja a intenção absolutamente provocadora de Lúcio, algo ainda mais clarividente pela referência que fazemos a Bataille: “Ao falar da beleza, falei da profanação. Eu poderia ter falado igualmente de transgressão, uma vez que a animalidade, em relação a nós, tem o sentido da transgressão, visto que o animal ignora o interdito. Mas o sentimento de profanar é mais imediatamente inteligível para nós” (BATAILLE, 1987: 136). Tal transgressão expõe os interesses de Lúcio em macular não apenas um tipo de personagem ou outra, mas também toda uma moral circunscrita aos anos em que vive (e que, de um modo ou de outro, perdura ainda na contemporaneidade); logo, a profanação do corpo de Adélia assume a forma simbólica da transgressão moral a todo um corpus de valores, embora isto conduza inevitavelmente à expiação não só moral como espiritual – o eterno embate de Lúcio com Deus e todo seu catolicismo mineiro eternamente imanente. Não obstante, encontramos em O enfeitiçado o escritor dos anos 1950, que observa a derrocada espiritual sob um certo olhar cáustico, como se o inferno queimasse um pecador debochado, a zombar de sua própria danação, como veremos nos próximos capítulos. Se Lúcio não consegue romper de vez com seus valores mineiros, procura reagir com a provocação, o riso, o sarcasmo, o desregramento final dos que tudo podem diante do mistério eternamente insondável, como acredita Inácio no estertor de suas memórias: “Se somos fantasmas, é que procuramos estabelecer uma realidade proibida. A realidade é o segredo” (E, 277). Se Minas é o eterno espinho fincado no coração de Lúcio Cardoso, resta-lhe expor a agonia com um riso o mais blasfemo e ultrajante possível. CAPÍTULO 3 – O RISO TRANSGRESSOR DE SÍSIFO: O ABSURDO NAS NOVELAS CARDOSIANAS Em seus desígnios provocadores, Lúcio Cardoso deseja intensificar formas, cenários, máscaras, efeitos e cores, compondo uma mise-en-scène para suas personagens, os fantoches de um espetáculo de horrores. Elas esperam um discurso que não é menos do que a voz do próprio autor, onipresente em quaisquer narrativas que compõem sua prosa de ficção. Se tal discurso é o mesmo que encontramos em sua escrita íntima ou metaescrita (como observamos no primeiro capítulo), antes pertence a um constructo literário forjado para abalar os ânimos de uma moral circunscrita ao seu próprio tempo. Pelo seu comportamento doidivanas e pela gana com que gozava a vida13, este Casanova boêmio e sedutor, afeito a festas e encontros, sempre acompanhado por uma legião de amigos, parecia estar longe de se deter diante da opressão excessivamente religiosa que encontramos em seus livros. O chicote de sete pontas e a expiação diante de um Deus terrivelmente vingativo foram estrategicamente deixados às pobres almas combalidas de suas personagens sem redenção. A respeito das novelas, em Corcel de fogo, Mario Carelli apontaria que “na novela o que interessa a Lúcio não é tanto o aspecto impressionante de uma cena de pesadelo, mas sobretudo a possibilidade de enriquecer uma atmosfera e aprofundar o estudo da psicologia dos personagens” (CARELLI, 1988: 117). Não obstante, acreditamos que a cena de terror muito interessa ao escritor enquanto projeção do mal-estar, como homem de cinema e teatro que foi, fato já observado no primeiro capítulo no que tange à sua relação com o decadentismo. Carelli se refere como a análise psicológica – fato tão decantado por vários estudos e artigos sobre o autor – nos leva a repensar tal análise para reconsiderá-la como fruto do interesse de Lúcio em devassar a alma de personagens para apontar seus aspectos mais controversos e provocadores. Lúcio não se fez de rogado ao explorar profundamente os contornos dramáticos (por vezes excessivos e extravagantes) e, de tal modo, que muitas de suas narrativas possuem um caráter eminentemente insólito. A preocupação em enriquecer uma atmosfera, como Carelli acertadamente aponta, leva o escritor 13 A leitura de Vida vida, de Maria Helena Cardoso, nos permite inferir tal colocação, já que a escritora relembra o modo com que o escritor foi apegado à vida, bem como lutou com afinco pela recuperação de sua saúde, no anseio de voltar a escrever e terminar seus romances e novelas. A luta persistiu anos depois do primeiro derrame, até a crise fatal em 1968. mineiro a configurar um caleidoscópio de situações grotescas que beiram o contrassenso. O grotesco nos conduziu até O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo, de Albert Camus, pela referência óbvia que o livro do pensador faz sobre a absurdidade em seu título. Não obstante, pela leitura do texto de Camus, observamos que o modo com que trata o absurdo é absolutamente distinto e distante do enfoque usual. Procurávamos um conceito; encontramos outro ainda mais fértil e, ao mesmo tempo, absolutamente esclarecedor. O absurdo colocado sob outro prisma, coincidentemente, estabelece a mesma relação sui generis que Lúcio Cardoso possui da absurdidade ao construir suas novelas. O universo absurdo está submetido ao crivo de sua lente expressionista, que intensifica os matizes deste universo alucinatório construído deliberadamente para provocar o leitor e suscitar nele um mal-estar irremediável, o que veremos em todo o presente capítulo. 3.1 A experiência do suicídio em Mãos vazias Albert Camus inicia o ensaio tendo como mote o suicídio, o ponto nevrálgico que atinge os limites de valoração da existência – lembremos que o suicídio é uma questão onipresente em quase todas as novelas de Lúcio Cardoso. O modo como tal questão se alia à falta de sentido da vida encerra uma atitude autodestrutiva, tão comum às personagens do autor. Camus lembra que o suicídio dificilmente é conseqüência de um ato morosamente reflexivo; antes pertence à ordem dos estados indômitos e aos impulsos irrefreáveis da alma, característicos dos espíritos perturbados das narrativas cardosianas. Em meio à galeria de suicidas do ciclo de novelas cardosiano, encontramos Ida, que submerge no pântano no desfecho de Mãos vazias. Já em O enfeitiçado, a corda sombria dependurada na janela do quarto foi o objeto com que possivelmente Inácio se enforcou, algo que a inacabada novela Baltazar, a última que compõe a trilogia “O mundo sem Deus”, possibilita inferir. A mãe do jovem Cláudio também se mata por envenenamento em O anfiteatro, mesmo modo com que o adolescente Gil fomenta sua tentativa gorada de suicídio. No início de Baltazar, a prostituta Adélia de Val-Flor termina sua deambulação buscando provocar a própria morte em frente às barcas. Nem mesmo crianças escapam incólumes da obsessão trágica de Lúcio: citemos o caso de Sofia, uma menina de nove anos que se atira em uma represa, após a tortura emocional a que foi submetida pela professora Hilda, na novela homônima. O suicídio seria a tenaz confissão de que a vida não vale a pena ser vivida, segundo Camus. E não vale por se submeter a características imanentes da própria existência, que tanto o pensador argelino como o escritor mineiro reforçam: o caráter irrisório que se tornou o hábito de viver, a insensatez das razões que funcionam como esteio para a maioria dos homens e a inutilidade que reveste as atitudes humanas. A constatação de tais características faz surgir o sentimento do absurdo, diante desta vida cíclica e absolutamente inútil e despropositada. A vida, o trabalho, as horas que se repetem, a mediocridade que embala as pequenas buscas prosseguem em vibrações continuamente monocórdias, até o momento em que uma espécie de espanto possa suscitar o movimento da consciência. O homem é arrebatado por seu próprio pensamento: “Começar a pensar é começar a ser consumido” (CAMUS, [s.d], 15). Importante apontarmos aqui como o conceito de absurdo por Camus tem um sentido bastante peculiar em relação àquele que normalmente o termo assume de forma corrente. Tal absurdo não se remete diretamente à improbabilidade e ilogicidade das coisas; antes faz referência a uma lógica esvaziada de sentido, a situações que habitualmente são consideradas plausíveis na ordem vigente de coisas vividas e sentidas, mas que são absolutamente desprovidas de um sentido profundo que as tornem realmente justificadas, após a observação mais densa de um olhar consciente e desvelador. O homem absurdo é o sujeito consciente da absurdidade do mundo. Ele é capaz de sentir a lassidão e a falta de propósito que levam ao sentimento do absurdo, e é justamente por estabelecer uma consciência desta situação que ele efetivamente se torna o sujeito absurdo. Como confirma Camus em O homem revoltado, “para afirmar que a vida é absurda, a consciência tem necessidade de existir” (CAMUS, 1951, 15). O estranhamento do habitual e uma nova percepção da densidade dos objetos, livres dos véus com que são revestidos pelos hábitos mundanos, conduzem à quebra deste elo que mantém o estado amorfo de todas as coisas, como verificamos pelo ensaio de Camus: Os homens também segregam algo de inumano. Em certas horas de lucidez, o aspecto mecânico dos seus gestos, a sua pantomima privada de sentido torna estúpido tudo o que os rodeia. Um homem fala ao telefone por detrás de uma divisória de vidro; não o ouvimos, mas vemos a sua mímica sem alcance: perguntamos a nós próprios porque vive ele. Esse mal-estar ante a humanidade do próprio homem, essa queda incalculável ante a imagem daquilo que somos, essa ‘náusea’, como lhe chama um autor dos nossos dias, é também o absurdo. Também o estranho, que em certos segundos vem ao nosso encontro num espelho, o irmão familiar, e apesar disso inquietante que encontramos nas nossas próprias fotografias, é ainda o absurdo. (CAMUS, [s.d], 27) Em Mãos vazias14, Ida inicia um processo vertiginoso de desespero após a morte do filho de seis anos, o que se torna o catalisador necessário para provocar-lhe o estranhamento do universo limitado em que vivia. Como em toda personagem cardosiana que se preze, a capacidade inata para o Mal e para a loucura, bem como o desconhecimento das próprias forças obscuras, são os elementos que ajudam a desencadear o drama perturbador. Ainda no dia do enterro, Ida recebe a visita do médico de seu filho e se entrega sexualmente. Logo depois do ato “ocorreu-lhe afinal que tinha se entregue ao médico friamente, sem nenhum desejo” (MV, 219), o que demonstra como Ida aos poucos perdia o controle sobre si mesma, percebendo que “há momentos na vida em que a pujança dos acontecimentos torna impotente todo esforço para dominá-los; nada são senão correntezas poderosas que se agitam na penumbra do ser e o arrastam com o ímpeto das forças implacáveis da natureza” (MV, 232). A insipidez da vida na pequena São João das Almas se alia a um ódio avassalador que sente por Felipe, o marido que julga ser fraco e medíocre. Apesar de ser um esposo prestimoso, a incapacidade do homem de entender o turbilhão de sentimentos que a invadira – “Felipe era um espírito reto, mediocremente reto” (MV, 263) – faz com que Ida seja tomada por um 14 A referência à novela Mãos vazias será feita pela sigla MV, seguida do número da página. rancor irremediável: “Queria-o mais ríspido, imaginava proezas que o pobre Felipe nunca chegaria a realizar. Nem sequer seria capaz de compreender o seu pensamento, quando chegasse a descobrir os estranhos desejos que a perturbavam” (MV, 216). O repúdio pelo esposo e pelo casamento acentualhe ainda mais o espírito de inquietação: A mulher recomeçou a examiná-lo. “Como é vulgar”, pensou, sentindo avolumar-se o seu desdém. “Realmente, nada deseja, senão encontrar o meio mais fácil de passar o tempo.” Os olhos frios de Ida continuaram a pesquisar-lhe os defeitos e ela percebia que isso aplacava uma sede desconhecida na sua alma. Naquela noite tinha a necessidade de odiar alguém. Sentia-se cheia de uma força perversa e tumultuosa, capaz de desencadear como o vento que no outono verga inesperadamente as árvores. (MV, 226) A lassidão do espaço da província é o antípoda do aluvião de sentimentos a tomar a personagem de assalto: “Ó Deus, aquela vida, aquela casa pequena, aquelas rosas do lado de fora, o ar abafado da sala quando fumegava sobre a mesa a terrina de sopa... Tudo isto era ignóbil, ignóbil” (MV, 233). O estranhamento é agravado pela capacidade de destruição imanente a quase todas personagens cardosianas e o perfil de sua tragédia aos poucos era traçado pelo próprio mal que não compreendia: “Certas idéias giram em nosso sangue até se converterem numa obsessão; de novo aquele ato apresentava-se revestido de estranheza e ela se detinha imóvel, sem saber ao certo o que fizesse (...) Que demônio era aquele que lhe agitava o ser?” (MV, 238). Diante da passividade do marido, ao demonstrar uma reação inócua diante da confissão de adultério, Ida decide fugir de casa e vagar pela cidade como uma espécie de Lilit desgarrada e sem redenção e, tal como o mito da lenda judaica15, está irremediavelmente condenada ao mal, como um “espírito feminino que foi negado, reprimido e rejeitado, e que conseqüentemente torna-se um espírito maligno” (SANFORD, 1988: 156). Durante sua deambulação, reconhece que “nada fizera senão reabilitar a sua personalidade esmagada por uma vida obscura e fácil” (MV, 272) e, ao se lembrar do suicídio de uma prima da 15 Ver SANFORD, John . Mal: o lado sombrio da realidade. São Paulo, Paulinas, 1988, pág. 155. cidade, reprimida pelas parentes por seu comportamento julgado imoral, conclui que “duas são as espécies de faces que transitam pelo mundo: as que refletem a serenidade adquirida e as agitadas, como as de Maria, capazes de todas as loucuras” (MV, 273). A força incapaz de vencer as barricadas que a cerceiam é o mal que não encontra formas de sublevação, o que leva o médico de Mãos vazias constatar que o transtorno de Ida “é o de não saber como empregar a sua força” (MV, 267), levando a uma completa aridez e a um grande vazio. Diante da completa falta de sentido para a vida, Camus lembra que o sujeito estará diante de apenas duas condições, como no caso de Ida: morrer voluntariamente pelas próprias mãos ou optar pela esperança. Novamente o médico da novela apontaria que “passamos a vida inteira como adormecidos, mas sucede que um dia o destino abre os nossos olhos e nos obriga a escolher um caminho” (MV, 288). A escolha de Ida é pela evasão final, que assegura o desfecho da novela: O odor fétido do pântano estonteou-a um momento, mas, levada pela força da idéia que a dominava, Ida não se deteve, continuando a correr. Junto da água, deteve-se um minuto, desorientada com o mau cheiro que subia. Nas suas costas sentia o luar como uma punhalada. Começou a penetrar lentamente, sentindo as raízes e os detritos chocarem-se na suas pernas. A luz da Lua varava o pântano, estendia-se até o centro do rio, como o reflexo morto de um incêndio. Então docemente, Ida deixou-se desvalar, perdeu-se para sempre nas profundezas da noite. (MV, 308) Se optamos por não desertar voluntariamente da própria vida, restaria a esperança; não obstante, Camus rechaça tal mistificação: não há razões, expectativas ou verdades que poderiam indicar um novo norte. O sujeito é obrigado a abolir pseudoesperanças que fomentariam o esteio de uma trajetória existencialmente esvaziada de profundidade. Camus esclarece não optar pelo suicídio, embora longe fosse o caso de Ida simplesmente abandonar a idéia de se afogar no pântano e encontrar um sentido para a vida. Para o sujeito plenamente consciente do sentimento absurdo, tal como a mulher que não somente estranha como contesta o marido, o casamento e toda a vida mediana ao seu redor, aniquilar o mito da esperança representa o limiar de uma existência redimensionada aos limites de uma vida sem apelo, “em que nada é possível, mas tudo é concedido e após o qual só há o desmoronamento e o nada. Ele pode então decidir-se a aceitar viver em tal universo e tirar dele as suas forças, a sua recusa à esperança e o testemunho obstinado de uma vida sem consolo” (CAMUS, [s.d], 76). Podemos também fugir da província para a cidade, onde encontraremos os náufragos cardosianos que recusaram o suicídio e se tornaram os sujeitos absurdos conscientes do tédio, da inutilidade e da insensatez da absurdidade mundana. São tais sujeitos que enfrentam a loucura e a morte os desafiadores presentes no nosso próximo subtítulo. 3.2 A revolta absurda em Inácio e O enfeitiçado A luta tenaz de Lúcio Cardoso sempre foi contra o homem apaziguado e sua relutância em romper com as interdições morais que o impediam de explorar seus limites desconhecidos. A errância diante do mistério maior que aterroriza representa um caminho sem volta àquele que estiver preso ao sentimento do absurdo: “O homem é sempre presa das suas verdades. Uma vez reconhecidas, não pode libertar-se delas. É preciso pagar esse preço. Um homem que se torna consciente do absurdo fica-lhe ligado para todo o sempre” (CAMUS, [s.d], 46). O sujeito esmagado pelo cotidiano não está livre para abandonar-se ao desvelamento da “densidade e estranheza do mundo” (CAMUS, [s.d], 27), bem como é incapaz de transgredir os interditos em busca das regiões caóticas das quais emerge o estado de convulsão que o conduz ao conhecimento de si – ou, melhor pensando, ao completo desconhecimento: “Mesmo este coração que é o meu ficar-me-á para sempre incompreensível” (CAMUS, [s.d], 31). Camus não só desmistifica a extrema necessidade do homem em estabelecer verdades peremptórias (sejam de ordem social ou religiosa) como rechaça quaisquer possibilidades de impor sentidos que expliquem o mundo: Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço tal sentido e que de momento me é impossível conhecê-lo. Que significa para mim um significado fora da minha condição? Só posso compreender em termos humanos. O que toco, o que me resiste, eis o que compreendo. E ainda sei que não posso conciliar estas duas certezas, o meu apetite de absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional e razoável. Que outra verdade posso reconhecer sem mentir, sem fazer intervir uma esperança que não tenho e nada significa nos limites da minha condição? (CAMUS, [s.d], 67) Se Camus lança luz sobre a (in)capacidade do sujeito em viver nos desertos onde a esperança não é mais o refúgio comum, Lúcio aponta que a serenidade de espírito não passa de um engodo irrisório, além de espicaçar intensamente uma esperança que não condiz com o destino trágico de suas personagens. Rogério e Inácio Palma, filho e pai, protagonistas respectivamente de Inácio e O enfeitiçado, são porta-vozes da concepção do absurdo tal como apresentada por Camus em O mito de Sísifo, como podemos inferir pelas palavras de Inácio: “O homem nasce do chão, vem da poeira e da terra escura como as plantas, é uma força desenraizada e cega, uma pobre árvore solta na imensidão. Não há destino, nem missão a cumprir. Duramos como os objetos mortos duram” (E, 227). O homem cardosiano, consciente do seu destino esvaziado de qualquer propósito coerente, é capaz de esgotar ao máximo o sentimento do absurdo em uma perspectiva ainda mais trágica do que a apontada pelo escritor argelino. As personagens da trilogia “O mundo sem Deus” elevam a revolta existencial a tal nível que loucura, autodestruição e morte estão confundidas às ferragens de suas almas trágicas. Como o próprio título da tríade permite inferir, encontramos nela pontos de convergência com a existência sem apelo de Camus, o que conduz o sujeito a aniquilar a esperança como único alento de uma sobrevivência possível. A consciência da inutilidade das tábuas de salvação coloca o homem como estrangeiro do mundo, surtindo nele uma sensação de subsistir à margem, como percebemos em Inácio ao deplorar os controles moralizantes que lhe são absolutamente irrisórios. Inácio torna-se um náufrago que vive sem esperanças, apelos e interdições morais. Está livre de Deus, dos outros homens e do seu futuro, pronto para esgotar-se ao máximo sem quaisquer subterfúgios: Quase tudo em que os homens crêem como sensato e positivo, deixara de existir para mim; muitas vezes vi-me apenas como uma força bruta e sem destino, independente dos rigores das leis e dos sábios mandamentos instituídos como a base sacramental da sociedade. Eu não pertencia a coisa alguma, eu não acreditava em coisa alguma, vivia. E para viver, não queria perder um só minuto, todo o tempo me era precioso e raro, tudo me servia. Assim disponível, como podia admitir o avanço dessa solidão que eu tanto detestava? (E, 215) Não obstante, a perda do consolo perpetua um caminho extremamente árido e por vezes desesperador, como observamos nas novelas cardosianas. Se Camus propõe a consciência e a revolta contra aqueles que pretendem fugir do enfrentamento, Lúcio expõe espíritos revoltosos que sustentam o filão dos desafiadores morais, com suas paixões incontroláveis, suas subversões sexuais e suas atitudes disparatadas. Os rebelados cardosianos não renunciam à consciência do absurdo, e são por ela arrastados até à completa loucura ou autodestruição. Assim como observamos em O mito de Sísifo, abolir a esperança não é o mesmo que sucumbir à renúncia ou à resignação: Viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver é, antes de mais, olhá-lo. Ao contrário de Eurídice, o absurdo só morre quando dele nos afastamos, sem voltar a cara para trás. Uma das únicas posições filosóficas coerentes é a revolta. Ela é um confronto perpétuo do homem e da sua própria obscuridade. É a exigência de uma impossível transparência. Equaciona o problema do mundo a cada segundo. Tal como o perigo fornece ao homem impossibilidades insubstituíveis de tomada de consciência, assim a revolta metafísica dilata a consciência ao longo da experiência. É a presença constante do homem em si próprio. Não é aspiração, pois é sem esperança. Esta revolta não passa da certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la. (CAMUS, [s.d], 69-70) Já no início da novela Inácio, Rogério é tomado de tal forma pela consciência do absurdo que ela condiciona também o limiar do seu estado de insanidade. O modo como a constatação da absurdidade se confunde com a futura condição de demência da personagem atende às necessidades provocadoras de Lúcio, por possibilitar que o autor carregue ainda mais a ambientação lisérgica da história e (des)focar todo um corpo de situações com sua lente expressionista. O aspecto bizarro com que as personagens são expostas e as atitudes disparatadas de Rogério e seus convivas demonstram como Lúcio parte de um ponto traçado por Camus para transformar o estranhamento inicial num caleidoscópio insólito de formas e expressões que contribuem (deliberadamente) para o estado de mal-estar do leitor. O enfeitiçado segue o mesmo viés da primeira parte da trilogia, ao explorar intensamente o sentimento do absurdo, face ao protagonista que circunscreve às suas impressões pessoais o desprezo por quaisquer sentidos plausíveis para a existência. Se em O mito de Sísifo o homem absurdo é capaz de buscar experiências em meio à inutilidade da vida, para Lúcio Cardoso a derrocada de suas personagens pertence ao viés trágico que devem obrigatoriamente percorrer, o que confirma a postura extremista do escritor. Rogério Palma é o homem absurdo que explora com afinco o conceito de absurdidade (lembrando que podemos dizer o mesmo de seu pai). Desperto de uma intensa febre, o espanto diante do absurdo norteia todas suas atitudes posteriores e, assim como aponta Camus, aos poucos assume os contornos de uma paixão lancinante, a ponto de o escritor indagar “se podemos viver com as nossas paixões, se podemos aceitar a sua lei profunda, que é a de queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam” (CAMUS, [s.d], 35). No momento em que abandona seu quarto de pensão em direção às ruas do Rio de Janeiro, Rogério é tomado de assalto por uma intensa disposição de ânimo a partir do novo alcance de seus pensamentos: Que grande espetáculo é a vida! E eu sentia que, mais do que qualquer outra coisa, minha “idéia” me auxiliava a viver naquele instante. Era sua força que me impulsionava. Sem descanso, perguntava a mim próprio: diante desta euforia, deste entusiasmo, como pode você conceber que tenha vivido durante tanto tempo naquele quarto lúgubre, entre livros empoeirados e idéias que assassinavam aos poucos? Se não fosse a súbita descoberta dos “tempos novos”, certamente você teria morrido, e neste caso não seria uma morte plenamente justificada, já que você nada tinha feito para merecer uma existência melhor? Mas as idéias são simples fragmentos, coisas diminutas, parcelas íntimas que brotam do nada e, no entanto, sacodem a base do mundo. As idéias são forças extraordinárias em movimento. (I, 22) Rogério deseja encarar o mundo extrapolando seus limites morais, com atitudes que o conduzem a uma loucura vertiginosa. O personagem aponta o dedo sobre o absurdo enquanto seu estado de desvario prossegue em moto-contínuo, como se sua própria loucura crescente fosse paradoxalmente o modo mais lúcido de lidar com o desvelamento da absurdidade ao seu redor, o que o leva a supor: “No dia em que soubéssemos de tudo, morreríamos. Sim, há coisas que ignoramos e cuja ciência nos mataria infalivelmente” (I, 30). Camus não subestima a força do sentimento absurdo sobre o homem consciente, ao apontar como “a tenacidade e a clarividência são espectadores privilegiados nesse jogo desumano em que o absurdo, a esperança e a morte travam o seu diálogo” (CAMUS, [s.d], 21). A loucura de Rogério se alimenta intensamente do ódio para não mais se submeter à resignação, um ódio tão clarividente que por vezes nos remete aos últimos lampejos de lucidez que possui. Diante de Duquesa, dona da pensão que insiste em assediá-lo, o jovem adensa o rancor extremo com que encara as pessoas ao seu redor: “Tornou-se mais agudo, instantaneamente, o meu antigo desgosto pelo gênero humano. Na verdade, como tolerar semelhante monstro perto de mim, dias, noites, semanas inteiras? O suicídio surgiu-me como uma benção” (I, 19). Vemos como toda repulsa capaz de sustentar é instigada pelos sujeitos que perpassam a história, e são eles que mais permitem a Lúcio carregar nas cores deste mundo insólito que tanto persegue (abordaremos as personagens urbanas com mais detalhes no próximo capítulo). O absurdo das situações é (des)focado por uma lente transfiguradora a atender as grandes obsessões cardosianas que, como lembra Carelli a respeito de Inácio, configuram “personagens que se espiam, os seres acuados que se mascaram para aparar os golpes, a vida comparada a uma doença, a morte violenta, as manifestações grotescas da loucura” (CARELLI, 1988: 130). O auge da perturbação de Rogério é estar tête-à-tête com Inácio. Sente pelo pai um misto de fascínio e repulsa, ao notar-lhe o “poder de arrancar as coisas do vazio, de produzir tudo como um feiticeiro com sua varinha, como alguém que faz explodir um fogo de artifício” (I, 109), e aponta ainda o que chama de sua “capacidade de transfiguração”, ao notar na figura paterna como “ainda mesmo que se tratasse do fato de tomar uma laranjada, para Inácio esse episódio banal se convertia em algo de estranho e maravilhoso” (I, 109). O pai irá nutrir ainda mais o repúdio do filho pelo estado de coisas ao seu redor, como para torná-lo um cúmplice: “Os homens me causam um desgosto profundo. Cheiram mal, vestem-se de uma maneira inconcebível, são tolos e pretensiosos. Não é possível que Deus tenha inventado seres tão sórdidos para testemunhar da sua grandeza” (I, 113). Neste ponto, observamos como as personagens de Inácio e O enfeitiçado rejeitam sentidos ou consolos para suas existências, tal qual observamos no ensaio de Camus. Encontrar forças para o enfrentamento moral e arregimentar uma capacidade de resistência implacável são os modos com que o homem possivelmente pode não sucumbir ao suicídio. Longe estaria a possível busca do homem em apoiar-se em pseudoexpectativas ou em explicações metafísicas – Deus e a confiança no Outro são estritamente abolidos. Citemos o entendimento do personagem Inácio: “Que era o mundo, que significavam aqueles sinais? Estrela solta, erosão sem significado, esboços de um grande sonho fracassado? Aquela monstruosa paisagem, cheia de formas sem sentido, não atestava a favor de outra experiência, perdida entre os dedos sem forças do homem?” (E, 227) O homem deve viver sem apelo ao se desligar do desejo de almejar sentidos para a vida, tendo como horizonte a consciência da morte como única realidade concreta. A vida conduz o homem a um esforço inútil e sem esperança, assim como o mito de Sísifo sugere: Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pela suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longe esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à superfície. (CAMUS, [s.d], 149) As personagens cardosianas se aproximam do herói absurdo, tal como aponta Camus, pela plena consciência que possuem da vida como um esforço inútil e a consequente perda da fé em Deus e nos homens, que as conduzem à derrocada moral e espiritual. Seguem de tal modo para o abismo (e muitos se atiram apressadamente nele, com a sofreguidão própria das almas alucinadas) que tamanha lucidez diante da inutilidade existencial paradoxalmente se transforma em uma espécie de loucura – ou antes a demência de alguns está sub-repticiamente revestida de tamanha clarividência que seus atos se tornam ainda mais assustadores. São personagens dolorosamente conscientes, como aponta Camus: “Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente (...) O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente” (CAMUS, [s.d], 149). Camus completa: “Sísifo, proprietário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória” (CAMUS, [s.d], 149). Inácio possui um entendimento claro do mal sob o qual irá sucumbir, e a clareza do nefasto presságio cardosiano – “A tragédia é o estado natural do homem” (CARDOSO, 1970: 05) – é o leitmotiv de toda a sua trajetória, assim como a de outras personagens, e torna-se também responsável por este intenso malestar causado nos leitores: Começa aqui a minha destruição. Não temam, não recuem diante da palavra, pois ela serve apenas para exprimir o sistema de desintegração que foi o meu, tão idêntico em suas linhas essenciais a todos os processos de falência e morte que a humanidade conhece (...) Há agora em mim uma vivacidade que me assombra – a dialética do caos é extremamente inteligente. E não sei, vou separando os detalhes, inutilizando frases, acontecimentos, com uma certeza febril: o amor de certas almas se assemelha à danação. (E, 242) Aos espíritos combativos, Camus propõe a revolta, a liberdade e a paixão como únicas possibilidades para o enfrentamento da realidade irrisória. Em O homem revoltado, obra que de algum modo complementa as idéias de Ensaio sobre o absurdo, Camus reforça a proposta: “Eu grito que não creio em coisa alguma e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar do meu grito e tenho pelo menos de crer no meu protesto. A primeira e única evidência que assim me será proporcionada, no interior da experiência absurda, é a revolta” (CAMUS, 1951: 20). Tendo a morte como a única certeza entre tudo o que almeja, a privação de esperanças e de um futuro, por outro lado, aumentam a disponibilidade do homem para explorar possibilidades concretas – a arte sendo a mais proeminente entre elas – diante da existência inútil, e Camus reforça a proposição a partir de uma frase que parece redimensionar o aforismo de Descartes: “Eu revolto-me, logo existimos” (CAMUS, 1951: 38). Negando a imortalidade e a conveniência de se amparar em sentidos irrisórios, Camus propõe: “O absurdo elucida-me neste ponto: não há amanhã. Eis, daqui em diante, a razão da minha profunda liberdade” (CAMUS, [s.d], 74). O homem rejeita o desejo de ser imortal – imortalidade que o ascetismo religioso encerra, pela necessidade do homem negar a si mesmo e a sua realidade concreta como ponte para viver em uma outra existência após sua “salvação” – por um maior número de experiências possível diante da falibilidade de pseudoverdades metafísicas. Temos uma atitude de desprezo próxima àquela de Nietzsche em um dos adágios de Aurora: Aos sonhadores da imortalidade – Desejais, pois, uma eterna duração a essa bela consciência de vós mesmos? Não é um descaramento? Não pensais em todas as outras coisas que teríeis então de suportar por toda a eternidade como as suportastes até aqui, com uma paciência mais que cristã? Ou julgais poder obter, pela vossa presença, um eterno sentimento de bem-estar? Um único homem imortal sobre a terra bastaria para mergulhar tudo o que o envolvesse numa fúria universal de suicídios e de enforcamentos pelo desgosto que inspiraria! E vós, habitantes da terra, com os vossos conceitozinhos de alguns milhares de minutos de tempo, quereis estar eternamente dependentes da existência eterna e universal! Pode ser-se mais importuno? – Finalmente: sejais indulgentes com um ser de setecentos anos! – Ele não pôde exercer a imaginação a descrever o seu próprio “aborrecimento eterno”, - não teve tempo disso! (NIETZSCHE, 1977: 174) Se os vaticínios de Inácio sobre seu próprio destino são expostos de forma lúcida – lembrando que tamanha lucidez acompanha quase sempre o modo como as personagens cardosianas encaram a própria fatalidade –, o desprezo pela existência miserável e o desdém a toda uma moral que o circunda desnuda um ponto nevrálgico que une implacavelmente os sujeitos fatídicos de Lúcio aos escritos de Camus, como este aponta: “Não há destino que não possa ser sugado com o desprezo” (CAMUS, [s.d], 149). Tal pensamento será o norte dos protagonistas da trinca Inácio, O enfeitiçado e Baltazar, pela qual a falência de Cristo é decretada e por onde o degredo de uma vida esvaziada de fé retira das personagens qualquer possibilidade de redenção. 3.3 O mofo, o ódio e o ressentimento: inferno e decadência nas províncias mineiras O desprezo é grande aliado da avidez insidiosa com que as personagens de Lúcio Cardoso empreendem sua descida aos infernos, sejam aqueles que queimam as sacristias mineiras e os altares religiosos das províncias, sejam aqueles responsáveis pelos conflitos ontológicos em meio à decadência do submundo das cidades. Este imenso repúdio se confunde às engrenagens das intenções provocadoras de Lúcio Cardoso, principalmente em suas novelas urbanas. Se no ambiente da província as personagens ainda sucumbem sob o peso do remorso e da expiação religiosa – lembremos de José Roberto na agonia final em seu quarto, após o assassinato de Paulo –, as personagens citadinas preferem chafurdar no pântano amoral com seus comportamentos tresloucados. O ódio é componente essencial das personagens cardosianas, onipresente na essência de cada um deles e na atmosfera que os envolvem, como afirma Inácio: “Sempre o senti em torno de mim, impregnando as ações e os gestos, sempre o senti escorrer imponderável entre os homens, atento, vigilante, olhos acesos e imóveis na obscuridade das casas, nas esquinas freqüentadas, nas sarjetas, nos bailes e nos cafés” (E, 171). Podemos destacar os matizes do ódio cardosiano: surdo, contínuo e arrastado, comparado a um mofo insidioso que se espalha morosamente, espécie de mal que sub-repticiamente contamina todos os homens: Enganei-me, ao dizer que o ódio permanece de olhos acesos; ele não tem olhos, ou se os tem, são pupilas cegas, úmidas pupilas de mofo, pois só o mofo traduz esse lento e progressivo trabalho, essa sufocante vegetação. Aos olhos menos desatentos não será difícil verificar o que está mofado, pois são nossas mãos que se mostram duras e cansadas, é o sangue que gira menos forte em nossas veias – e se os lábios nunca podem sorrir, os corações batem sem alma, um imenso véu de neblina e tédio se estende sobre o mundo. (E, 171) Lúcio Cardoso faria sua louvação ao ódio com a publicação da novela A professora Hilda (1946). Pela personagem homônima, o autor almejava criar um arquétipo da personificação do mal. Em um pequeno texto que funciona como intróito para a novela, o novelista apontaria alguns indicativos na construção de suas personagens insólitas: “Pois o Mistério é a única realidade deste mundo. E, se dele temos tão grande necessidade, é para não morrer do conhecimento dos nossos próprios limites, como as criaturas loucas e martirizadas a que tentei dar vida” (H, 269). Assim como o homoerotismo, o suicídio e a corrupção sexual nortearam o tour de force do escritor polemista, a provocação em Hilda terá como esteio o ódio – mais precisamente a tenacidade do ódio provinciano, espécie de ódio mineiro a se fortalecer na surdina, alimentado pela violência própria da interioridade. A personificação demoníaca foi acentuada deliberadamente pelo escritor, a começar pela própria descrição da protagonista, feita com detalhes que procuram a todo custo enfatizar os traços maléficos da anti-heroína. Mario Carelli aponta que o apuro na descrição da personagem é feita de modo com que “as observações agudas, quase rangentes, sublinham a crueldade do personagem” (CARELLI, 1988: 123), num trabalho descritivo que o estudioso italiano apontaria ser um “retrato talhado a escalpelo (talvez um pouco esquemático, como ele [Lúcio] próprio reconhecerá)” (CARELLI, 1988: 125), a confirmar o desejo do escritor em realçar os contornos dramáticos para fortalecer a imagem de uma personagem moralmente controversa. Deste modo, temos a descrição de Hilda: Era uma mulher de estatura abaixo do normal, ligeiramente volumosa, cabelos pretos, sedosos, partidos no meio e rematados em duas tranças no alto da cabeça. Seus olhos eram miúdos e de órbitas profundamente cravadas na face, seu nariz era pequeno e sem importância, os lábios estreitos e cruéis, incimados por um buço forte. Toda a extraordinária força que emanava de sua pessoa parecia, apesar de tudo, partir exclusivamente desses olhos pequenos, onde uma nota qualquer, aguda e maldosa, como que ainda avivava mais o seu brilho constantemente vigilante e desconfiado. Trajava-se severamente de preto, uma estreita fita de veludo no pescoço roliço, onde ainda se demorava uma mocidade pesada e sem graça, último reflexo de uma vida destituída de qualquer vislumbre de sensualidade. (H, 271) A professora reside em um lugarejo recôndito ao lado de uma estrada de ferro e no local possui posição soberana para dominar as rédeas de todas as realizações políticas, familiares e sociais da comunidade, incluindo eleições, festas e batizados. Todo o domínio da professora, porém, é ameaçado com a notícia da chegada iminente de outra professora nomeada para o lugar, algo que desperta em Hilda o desejo de realizar uma série de ardis para expulsá-la. A professora parece viver em uma espécie de inferno pessoal criado por si mesma, envolto pelo marasmo da província a acentuar uma espécie de falta de expectativa que a faz sempre “desvendar alusões misteriosas, intrigas fáceis e manobras em torno de si” (H, 272), quando “tudo lhe parecia uma ofensa sem remédio ou um golpe mortal” (H, 272) ou ainda “as palavras mais insignificantes lhe surgiam aos olhos pejadas de sentido; os descuidos mais banais convertiam-se em imperdoáveis afrontas” (H, 272), sendo que tais intrigas pertenciam absolutamente às maquinações de sua mente doentia e fantasiosa. Lúcio adensa as características do espírito rancoroso da personagem: Pelo fato de se ofender com tanta obstinação e de sorrir tão continuadamente, o hábito lhe criara uma máscara pálida e altiva, onde sempre parecia flutuar um misto de náusea e desdém. Mas Hilda não perdoava, não sabia perdoar. Sua natureza fechada ao mistério da fé era um mecanismo de julgamento severo, uma balança delicada e precisa das faltas alheias. E, de tanto ocultar seus sentimentos, criara no coração um obscuro e largo depósito de rancores concentrados. Nele, nesse cofre de sentimentos ásperos, borbulhava com o correr dos anos um líquido escuro que lhe atormentava a alma, um desespero soterrado e estranho, que às vezes lhe fazia descer aos olhos um vapor espesso. Nessas ocasiões sua rigidez aumentava, mal dirigia palavras aos outros, recusava convites, impedia festas, acentuava maldosamente palavras desprevenidas, forjando situações inexplicáveis e inimizades sem conta. (H, 273) Tal empenho acentuadamente deliberado para salientar as nuances de uma personagem cruel também se encontra na descrição de Miguel, na novela O desconhecido. Ao descrever seus seres mais venais, Lúcio não hesitava em carregar nos traços pictóricos de suas imagens expressionistas quase caricaturais, a ponto de transformar o cocheiro em uma alegoria da perversidade, com uma descrição que nos remete a uma espécie de vampiro de Dusseldorf. O homem a bradar o chicote para seus cães agressivos, deixados sem comida para que se tornassem assassinos, é uma destas criaturas misteriosamente demoníacas que Lúcio sempre ressaltou em suas novelas da província: Era impossível a José Roberto dominar a antipatia que aquele indivíduo lhe causava. Tudo, desde sua roupa de um preto luzidio, caprichosamente passada a ferro, suas botas lustrosas e o cabelo liso, impregnado de uma oleosidade que deixava à sua passagem uma nuvem de perfume adocicado, até os seus dedos longos e afilados, dedos de curiosa expressão feminina, tudo despertava nele uma enorme vaga de repulsa. Sobretudo a nuca, uma nuca branca, inteiramente lisa, onde os tendões pareciam denunciar a cada momento a magreza. Porque Miguel era magro, de uma dessas magrezas longas e pálidas, quase seráficas; apesar de tudo, qualquer coisa nos seus movimentos rápidos, no seu olhar oblíquo, dissimulado, parecia denunciar a cada momento uma força escondida, um perigo prestes a explodir. (OD, 53) A obliqüidade, aspecto apontado no que tange ao homoerotismo, nos conduz a uma outra categoria emblemática não somente das novelas, como de toda sua prosa de ficção: a força do ressentimento. Notamos, ao final do tópico anterior, como a revolta é uma atitude absolutamente concreta e dinâmica que Camus defende; não obstante, muitas das personagens de Lúcio – notadamente as figuras enclausuradas da província – se afastam da revolta tal como foi apontada pelo escritor argelino para se metamorfosearem em espíritos perigosamente ressentidos. Em O homem revoltado, Camus aponta uma relevante distinção entre revolta e ressentimento: O ressentimento é muito bem definido por Scheler como uma auto-intoxicação, a secreção nefasta, em recipiente fechado, de uma prolongada impotência. Mas a revolta, pelo contrário, despedaça o ser e ajuda-o a transbordar de si próprio. Ele liberta vagas que, estagnadas, se tornam furiosas. O próprio Scheler põe a tônica sobre o aspecto passivo do ressentimento, salientando o lugar importante que ele ocupa na psicologia das mulheres, votadas ao desejo e à posse. Na origem da revolta, houve, pelo contrário, um princípio de atividade superabundante e de energia. Scheler teve igualmente razão ao afirmar que a inveja contribui poderosamente para o ressentimento. (CAMUS, 1951: 31) Os sujeitos da província estão intoxicados pela sensação claustrofóbica do enclausuramento das casas, das igrejas e de si mesmos. Não são silenciosos por mero acaso – Lúcio sempre demarcou que, sob a parcimoniosa eloqüência mineira, jazia a pior crueldade possível. Aquele mofo lento e insidioso citado por Inácio é ainda mais nefasto quando progride no território limitado da província, com suas residências de janelas sempre cerradas, suas longas estradas empoeiradas sob o sol impiedoso, suas sacristias cheirando a incenso nauseante, suas famílias repletas de desejos abnegados cujo rancor, longe de ser o fogo fátuo das histórias esquecidas, se torna demasiadamente longo e arrastado. Sabemos que lançar uma luz implacável sobre o inferno das províncias pertence ao projeto pessoal de Lúcio contra Minas, dominada pelos demônios do silêncio e do cárcere privado. Hilda compõe parte do arsenal de sujeitos ressentidos, com seu ódio alimentado pelo tédio, pelo marasmo e pela interiorização caótica. Enquanto as cidades condicionam a eclosão das revoltas – mesmo as personagens urbanas mais autodestrutivas são, de algum modo, combativas e desafiadoras –, as províncias representam o espaço do re-sentir, o sentir duplicado como um moto contínuo nunca exposto, nunca apaziguado. Lúcio demarcou personagens tão silenciosas quanto cruéis, seres repletos de perversidade que medram nas províncias, como Aurélia, dona da decadente fazenda Cata-ventos em O desconhecido, ao apontar que “havia nela uma ressonância de paixões reprimidas, de ódios recalcados e pequenas misérias subjugadas” (OD, 21). Destaca ainda que a mulher “amava também criar mistérios, espalhá-los em torno de si como dissimuladas armadilhas. Gostava de ver as pessoas desprevenidas se envolverem nas teias que tecia na quietude dos pequenos cantos, no enigma de pequenos atos deixados em começo” (OD, 41). Os ressentidos cardosianos são sempre solitários – pela extrema solidão, a tendência para o Mal se concretiza e o isolamento dimensiona o inferno pessoal que posteriormente contamina a todos. Como no caso de Miguel, uma ambientação quase fantasmagórica envolve Aurélia, dando forma a uma maldade quase sobrenatural: A imagem de Aurélia, tal como a vira pela primeira vez no carro, impôs-se de novo ao seu pensamento – e compreendeu subitamente por que ela se encerrava naquele desdenhoso mutismo, qual era a origem daquela estranha atmosfera que parecia envolvê-la e distanciá-la irremediavelmente dos outros. É que ela jamais participaria do mundo em que todos eles transitavam – ao contrário, a sua solidão criava um terreno à parte, para onde se transferia tudo o que em torno dela era dotado de vida, gerando assim um permanente conflito entre o que se transfigurava pelo seu poder, o que participava assim da sua esquisita harmonia e o que, ao contrário, não se submetia a esse sopro de destruidora magia. (OD, 38-39) Enquanto nos espaços citadinos a revolta exteriorizada extrapola os limites da angústia e do desespero, rompendo as barricadas que aprisionam o ódio, nas províncias o rancor se prolonga como uma metástase silenciosa e contínua. A relação entre revolta e ressentimento se projeta inversamente nas novelas, já que o revoltado cardosiano enlouquece ou arregimenta mecanismos de autodestruição não só como ressonância da inadequação que sentem, mas também como forma de imposição do próprio Ser – e o ressentido cardosiano, o mais perigoso entre todas as personagens, mesmo que envenene a si mesmo, é obcecado com o aniquilamento do Outro. Em O desconhecido, Aurélia quer fazer de José Roberto literalmente seu escravo, para exercer sobre alguém sua necessidade mefistofélica de domínio e destruição.16 Camus elucida melhor a questão: “O 16 Curioso notarmos como a passagem possui uma clara referência à tentação de Jesus, presente no Evangelho de Mateus 4, 1-11, quando Aurélia oferece todas jóias de família para o desconhecido: “Pois tudo será seu, se você me ressentimento é sempre um ressentimento contra o próprio que o experimenta. O revoltado, pelo contrário, no seu primeiro movimento, opõe-se a que toquem naquilo que é. Luta pela integridade de uma parte do seu próprio ser. De princípio, não pensa em conquistar, mas em impor” (CAMUS, 1951: 31). A imposição do rebelado se dá principalmente pelo distanciamento das bases moralizantes, seja pelo sexo ou pelas drogas, e funciona implacavelmente como uma provocação daqueles que se sobrepõem aos limites da resistência. Os personagens citadinos destroem a si mesmos como consequência da insubordinação, e sucumbem sob o efeito catártico do riso transgressor a exarcebar o clima dramático da loucura acintosamente expurgada; já os provincianos focam a destruição do Outro, sob uma dramaticidade tensa, austera e silenciosa, própria dos dementes contidos, que preparam suas trincheiras em surdina – o entrincheiramento tipicamente mineiro. Timóteo travestido aguardou por mais de 20 anos sua vingança, esperando o momento oportuno para expor sua monstruosidade – e quando se liberta do auto degredo, em pleno enterro de Nina, funciona como um estopim para a decadência dos Menezes – a decadência mineira. Nas residências da província, as personagens erguem seus últimos altares para o inferno, como na casa de fazenda de Madalena cujo pesadelo é constante, da primeira à última página de A luz no subsolo; ou como no castelo provinciano de Donana de Lara em O viajante, de onde retira o filho aleijado uma única vez para atirá-lo aos urubus que voam sobre o precipício. Tais casas são verdadeiras estufas de rancor e ódio, que aceleram o rumo dos acontecimentos trágicos, e a avidez do ódio é própria do autor que deseja expressar a ruína da tradicional família mineira. O tom oblíquo do ódio mineiro conduz a um estado de mistério sempre intrigante para o escritor, que lhe possibilita criar atmosferas quase fantasmáticas, como aquela a assaltar José Roberto na fazenda Cata-ventos: A atmosfera de irrealidade que desde o entardecer parecia vir impregnando tudo a que ele assistia, esses gestos absurdos e essas reticências cheias de mistério no adorar, se me seguir de joelhos, se for meu como um objeto, como a poeira do chão, como o que depende de mim para a vida e para a morte” (OD, 150). silêncio da noite, essas criaturas que vinha encontrar girando em torno de uma mola secreta – tudo isso acelerava o vago sentimento de terror que vinha sentindo estreitar-lhe desde cedo o coração. (OD, 38) A forte impressão de Mistério pertence ao olhar expressionista que Lúcio lança por Minas Gerais, terra da qual nunca conseguiu se desligar por completo: “O que amo em Minas são os pedaços que me faltam, e que não podendo ser recuperados, ardem no seu vazio, à espera de que eu me faça inteiro – coisa que só a morte fará possível” (CARDOSO, 1970: 293). Em uma de suas últimas viagens pelos rincões mineiros, de passagem pela cidade de Ubá, zona da mata mineira (onde possivelmente, pelos seus arredores, poderia ser encontrada a decaída mansão dos Meneses de Crônica da casa assassinada), Lúcio explicitaria suas mais pungentes e definitivas declarações a partir da ligação atávica com o estado. Seria pelo registro diário que confirmaria a latência do seu ódio e de sua fascinação por Minas, “esse espinho que não consigo arrancar do meu coração” (CARDOSO, 1970: 293). Todos os ambientes sombrios de seus livros e novelas parecem se remeter a uma eterna “tristeza mineira” que tanto o perseguiu e o fazia lastimar: “Minas é muda e cega. Sua crueldade vem do sentimento terrível do seu poder: são léguas e léguas de brejos, carrascais, lama, poeira e desolação” (CARDOSO, 1970: 293). Minas Gerais e suas longas estradas empoeiradas e soturnas, suas fazendas outrora faustuosas a ostentar a derrocada dos valores e tradições mineiros, suas residências misteriosas de portas e janelas trancadas – Mario Carelli lembraria, em Corcel de fogo, que a casa da fazenda Cata-ventos, de O desconhecido, lembraria o palácio de Nosferato do cineasta Murnau –, suas personagens carregadas de um ódio tão perene quanto amargamente silencioso definiriam os contornos e matizes do universo trágico cardosiano, cuja imagem de sangue e violência ele retira profundamente do berço natal que o transtorna como uma maldição: Há uma certa doçura na tristeza – a gente se compraz nela, amando. Nesta tristeza – na gente de Ubá há evidentemente um compromisso com o aniquilamento: passo e repasso pela suas ruas iguais, pelos seus becos, pela sua praça. Uma única coisa me fere a atenção: o fundo dos açougues, escuros, escuros, oh! tão escuros, molhados de sangue, onde homens de faca em punho retalham enorme pedaços de porco – muitos pedaços, lascas enormes de porco banhadas em sangue, para serem vendidos amanhã a esse gente que come, come, finge que vive e vive ignorando a vastidão e o esplendor do mundo. Surdos como se andassem besuntados de sangue. (CARDOSO, 1970: 293) O absurdo de Camus tem plena relação com a ordem de situações cíclicas, com os ritmos monocórdios que se prolongam à náusea, com a angústia morosa do espaço provinciano. O verdadeiro mal para Lúcio Cardoso é a repetição mantida em surdina; o pior inferno para o escritor é a realidade insuportavelmente contínua, nutrida por um tempo que se arrasta incessantemente, comparado àquele que impera no microcosmo interiorano. Um Sísifo entediado pelo castigo do trabalho tolo e inútil vive sob este fastio eterno. Lúcio explora a pletora de arroubos de suas personagens marginais por temer a sinuosidade traiçoeira do ódio mineiro, implacável por seu silêncio dissimulado e por sua capacidade de se manter tão lento quanto pungente. De qualquer modo, o absurdo estará presente tanto nos períodos temporais repetitivos da província como no ciclo do tempo tedioso das cidades. O tédio como o tempo inutilmente prolongado é o que, como afirma Inácio, “aos poucos nos embrutece e nos transforma em rígidas estátuas de cor cinza, monstros de mofo e anestesia, cidadãos de um vasto reino onde prevalece a falta de energia e de finalidade” (E, 172). Um Sísifo resignado não possui força suficiente para ostentar um ódio voraz, pois Inácio não fala “de um ódio ativo, um ódio vicejante como uma hera de chama – e sim de um sentimento antigo e sem grandeza, um estado por assim dizer larvar a que nos submetemos, uma falta de graça, uma estilização do nada” (E, 172). Um mundo de homens mofados, transformados em larvas sem vitalidade, dotados de ouvidos moucos e incapaz de gritar, submetidos à condição doentia do homem domesticado, tal como Nietzsche expõe em Genealogia da moral: Os doentios são o grande perigo do homem: não os maus, não os “animais de rapina”. Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados – são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós (...) Neste solo de autodesprezo, verdadeiro terreno pantanoso, cresce toda erva ruim, toda planta venenosa, e tudo tão pequeno, tão escondido, tão insincero, tão adocicado. Aqui pululam os vermes da vingança e do rancor; aqui o ar fede a segredos e coisas inconfessáveis; aqui se tece continuamente a rede da mais malévola conspiração – a conspiração dos sofredores contra os bem logrados e vitoriosos, aqui a simples vista do vitorioso é odiada. E que mendacidade, para não admitir esse ódio como ódio! Que ostentação de grandes palavras e atitudes, que arte de calúnia “honrada”! Esses malogrados: que nobre eloqüência flui de seus lábios! Quanta resignação humilde, viscosa, açucarada, flutua em seus olhos! (NIETZSCHE, 2006: 112) Os ressentidos da província encarnam os doentios e seus ardis são próprios dos que destroem aos poucos. O escritor sustenta-lhes de tal forma uma imagem depreciativa que eles serão autores de situações insanas, como o flagelo a que Hilda submete Sofia, uma menina de apenas nove anos, a ponto de ameaçá-la jogar impiedosamente em uma represa. Como veremos no quarto capítulo, importa menos a lógica da intriga do que o clima de mal-estar que ela possa instigar. Tanto que Sofia resolve se atirar, deliberadamente, nas águas da própria represa que a apavorava, episódio final que, segundo Álvaro Lins em Os mortos de sobrecasaca, foi “introduzido ali abruptamente pela necessidade de uma conclusão de qualquer modo terrível e patética” (LINS, 1963: 118). A provocação cardosiana sempre prevalece sobre o enredo e sua verossimilhança. Ao final da novela, após o suicídio da menina, ocorre um tipo de “conversão” espiritual de Hilda que posteriormente seria preterido nas novelas urbanas – justificadamente se encaixam na tríade chamada “O mundo sem Deus”. Tal desfecho encerra uma forma de redenção pela misericórdia divina que muito enfraquece a novela, mas que demonstra sempre como o trabalho de Lúcio Cardoso segue sempre direções muito específicas, estabelecendo toda uma ordem de intenções de escrita que subjaz sob uma aparente desordem quanto à técnica e à formatação prévia de um plano narrativo. Do ressentimento provinciano nos dirigimos agora à revolta urbana, para encararmos os modos como o absurdo se reveste de loucura e alucinação em Inácio e O enfeitiçado. 3.4 Agonizar de olhos abertos: loucura e lucidez no absurdo O riso trocista de Rogério Palma percorre toda a novela Inácio como signo de absoluto desprezo pelos rumos da mediocridade circundante. Representa ainda o modo com que ostensivamente fere os moralmente doentios, cortando abruptamente o silêncio mortificado dos fracos com o ruído dissonante de sua gargalhada subversiva. Sua descida aos infernos é feita entre risadas, como um Sísifo a ridicularizar acintosamente da própria fatalidade. O mortal castigado pelos deuses não é esmagado pelo infortúnio graças a uma consciência aliada ao desprezo, assim como Rogério não mais deseja se submeter aos estreitos limites de sua realidade ordinária, com o que ele aponta ser uma “capacidade de rir, não rir de lado, como um simples espectador, nem rir esmagado, como é o riso dos fracos... Mas rir, rir positivamente dentro da comédia; rir com crueldade e consciência, rir até o último dia, até o dia do Juízo Final...” (I, 112) Camus imagina Sísifo feliz, enquanto Lúcio o deseja cada vez mais escarnecedor, tomado por um riso absolutamente desvairado como se, ao zombar dos deuses, sustentasse sua última forma de insubordinação. Rogério reconhece na figura paterna a gana em combater o absurdo mundano e o sorriso esmorecido dos homens fragilizados, pelas palavras que dirige ao pai: “Ninguém me tira isto da cabeça. Se pudesse, você atearia fogo ao mundo para poder rir melhor” (I, 112) e completa: “Sente-se que você está sempre acima dos outros e que se diverte sem descanso, que se diverte estrepitosamente, cada vez mais, cada minuto mais... Repito, não são muitos os que suportam uma tão desenfreada alegria!” (I, 112). Estamos aqui distantes do cenário da província, onde o ódio silente e interiorizado conduz ao ressentimento. Nas cidades, as personagens marginais rompem o silêncio ostensivamente, enlouquecem com sarcasmo porque, mesmo aparentemente às avessas, serão libertos, sendo o riso a forma acintosa de sublevação moral. Assim como a ausência de lágrimas condenou moralmente Meursault no enterro da mãe, em O estrangeiro, Rogério e Inácio desejam ser condenados pelo riso. O deboche torna-se um ardil absolutamente ofensivo, assim como o homoerotismo, o crime e a corrupção moral possibilitaram ao escritor polemista urdir seu libelo transgressor. Vejamos uma vez mais a força do riso rebelado em Inácio: Sim, Inácio ria, mas ria porque realmente toda a sua alma estava devorada pelo ódio, ria porque nele tudo estava morto. Só um grande vazio permitiria que o riso soasse de modo tão poderoso. Nem mesmo fora a sua necessidade de rir que lhe criara aquele horrível tédio da vida – fora o seu rancor por alguma coisa mais forte, mais alta, o seu ateísmo. Inácio era um ateu de forma particular, um ateu como realmente não existem muitos, que sabem criar do seu vazio uma forma de vida, ainda mesmo que esta vida seja uma afronta ao resto dos homens. De súbito, sem que pudesse reter mais o meu pensamento, senti que minhas idéias se ampliavam e compreendi que esta tremenda necessidade de rir era como a própria alma do nosso mundo, no seu perpétuo escárnio e no seu desafio a Deus. O mundo ria, porque dele a verdadeira alma desertara. Um único e tremendo riso no espaço, uma sombria e dilacerada risada, cujo eco ia bater, enorme vaga, junto às portas da Eternidade. (I, 145) Temos a revolta do sujeito não mais conformado às renúncias morais – e a sublevação dos espíritos indômitos de Lúcio é quase sempre tomada em seus excessos, pela intensidade com que se reveste do ódio desmesurado, das paixões violentas e das atitudes extremas como o suicídio ou a destruição de si próprio ou do outro. Tanto Camus como Lúcio não subestimam o peso da consciência do absurdo sobre os ombros do homem em sua vida comum, e o primeiro aponta em Ensaio sobre o absurdo: “O verdadeiro esforço consiste, pelo contrário, em aí nos agüentarmos, tanto quanto possível, e examinarmos de perto a vegetação barroca dessas regiões afastadas” (CAMUS, [s.d], 20). Justamente por não desdenhar o entendimento da absurdidade, Lúcio termina por conduzir suas personagens à fatalidade dos que não resistem – ou resistem pela loucura e pelo desregramento moral. O comportamento de Rogério ao final da novela o leva inevitavelmente a três anos de sanatório. Não obstante, sua loucura é paradoxalmente clarividente, como uma alucinação que nascesse do pleno entendimento do absurdo, ao mesmo tempo em que condiciona sua liberdade face à convivência com os doentios morais: Farto de conter o rancor que se acumulava incessantemente dentro de mim, comecei a dar pontapés, a esmo, nos livros esparsos, nos objetos, nas cadeiras e nos móveis. Durante um minuto, tudo foi confusão aos meus olhos. As páginas rasgadas voavam, eu tropeçava nas cadeiras quebradas, mas continuava a minha destruição, sentindo que afinal alguma coisa terrível, forte como um outro ser dentro do meu, libertava-se daquela fúria. Afinal, exausto, percebendo que nada mais havia para desorganizar e quebrar, enxuguei o suor que me escorria pelo rosto. “Afinal”, murmurei comigo mesmo, “livre, livre, completamente livre! Nunca mais voltarei a este quarto. Serei outro homem, um príncipe, um rei!” (I, 131) Mesmo que uma centelha explosiva acompanhe os pensamentos de Rogério, eles não se prescindem de uma visão perspicaz sobre a esmagadora condição moralizante do sujeito. Tal visão, porém, é embalada pelo riso dos marginais, riso de quem lucidamente se vê enlouquecer para ser apartado dos fracos e doentes, tal como Nietzsche aponta. A libertação é feita de forma delirante, como um estado de transcendência para combater o tédio e o marasmo da vida inútil, mesmo sob o risco da demência iminente. Desespero e lucidez entram em confluência, mesmo a circundar constantemente o desequilíbrio total, como observamos em O mito de Sísifo: “A oração, diz Alain, “é quando a noite vem cobrir o pensamento.” Mas é preciso que o espírito encontre a noite, respondem os místicos e os existenciais. Decerto, mas não essa noite que nasce sob os olhos cerrados e pela simples vontade do homem – noite sombria e fechada que o espírito suscita para nela se perder. Se ele deve reencontrar uma noite, que seja antes a do desespero que permanece lúcido, noite polar, véspera do espírito, de onde se levantará essa claridade branca e intacta que desenha cada objeto na luz da inteligência. Nesse grau, a equivalência reencontra a compreensão apaixonada. Já não se trata de julgar o salto existencial. Ele retoma o seu lugar no meio do afresco secular das atitudes humanas. Para o espectador, se este é consciente, tal salto ainda é o absurdo. Na medida em que julga resolver o paradoxo, volta afinal a formulá-lo. E nessa medida é comovedor. A esse título tudo retoma o seu lugar e o mundo absurdo renasce no seu esplendor e na sua diversidade. (CAMUS, [s.d], 81-82) Lúcio expõe toda uma pletora de experiências viscerais às suas personagens, condicionadas a uma autodestruição concomitante à destruição do outro, pela tortura psicológica que submetem a si mesmas e àqueles que as circundam, além de adotarem medidas extremas como a violência sexual ou o homicídio. Tal pletora pertence a um pleno esgotamento de todas as possibilidades – Camus defende que “o homem absurdo tem de esgotar tudo e esgotar-se” (CAMUS, [s.d], 71). As criaturas cardosianas seguem bem a cartilha do esgotamento pois, de tão excessivas, beiram à irrealidade. Não obstante, o desvario nunca é gratuito ou usado como mero adorno narrativo. A loucura permite a Lúcio realizar suas sondagens existenciais sempre perturbadoras, assim como o homoerotismo, o suicídio ou o crime sempre condicionaram a formação do pensamento ontológico provocador. Camus aponta a ânsia do revoltado em esgotar-se, ao completar que “o absurdo é a sua tensão mais extrema, a que ele mantém constantemente com um esforço solitário, porque sabe que nessa consciência e nessa revolta do dia-a-dia testemunha a sua única verdade, que é o desafio” (CAMUS, [s.d], 71). Nas novelas urbanas, há um desmesurado sentido de urgência e um clima de ansiedade pelo esgotamento, como aponta Inácio: “... repeti mais uma vez que o sacrifício é vão, que o tempo passa, e que é preciso sugar depressa a polpa macia do fruto, enquanto ele ainda se acha ao alcance das mãos” (E, 210). As personagens esgotam de tal modo a constatação do absurdo que dificilmente saem incólumes das circunvoluções ontológicas que submetem a si mesmas, levadas pelas vias da loucura extrema, como observamos uma vez mais pelas palavras de Inácio: Sei qual foi meu erro fundamental: não quis viver aos poucos, tornar-me imbecil e mistificador, degrau por degrau, como toda a gente. Quis ir de um salto, apoderar-me logo do posto que ambicionava, sem indagar se eram lícitos ou não os meios que me conduziriam até lá. O absoluto, mesmo o da mediocridade, tem os seus caminhos. Eu não poderia violar leis tão poderosas, sem despedaçar-me na jornada. (E, 216) No campo dos excessos, os atores das narrativas urbanas acabam extrapolando os limites da percepção unilateral dos objetos e das situações ao redor, redimensionado (ou retorcendo) as imagens como se estivessem sob efeito de um poderoso tóxico. Como aponta Carelli, “essas deformações voluntárias nascem de uma escrita de embriaguez e lucidez febril. Lúcio quer recriar essas imagens e intuições que fazem com que o mundo e suas convenções de todo tipo oscilem sob os pés do alcoólatra ou do drogado” (CARELLI, 1988: 133). O olhar expressionista das personagens assume os tons de uma visão lisérgica que deforma todos os contornos do real e, embora algumas estejam literalmente embriagadas, o delírio antes pertence à capacidade imanente do sujeito transcender com seu próprio espírito visionário. Em certo episódio de O enfeitiçado, não sabemos se o circo que voa pelos ares pertence aos domínios da alucinação ou ao relato de uma mera constatação do real – sabemos ao menos que tal fato verdadeiramente acontece com pequenas companhias circenses do interior. Em Inácio Palma, porém, o álcool não suplanta a clareza da imagem onírica que tem diante de si: Sentamo-nos numa das arquibancadas, com a maré humana ondulando aos nossos pés. Não sei, devia estar ligeiramente embriagado, para que apoderasse de mim tão grande exaltação. Tudo parecia oscilante, líquido, maravilhoso. Havia uma jovem que voava em torno do picadeiro, de pé sobre um cavalo, a carne branca apertada num maiô de seda vermelha. Com uma varinha nas mãos, ela passeava o olhar pela multidão e sorria. Jamais vira eu tão prodigiosa imagem da mocidade – o sonho e a aventura não poderiam criar um ser mais extravagantemente belo, mais terrível e mais forte para as nossas pobres forças (....) Depois, foi a vez do trapezista, um rapaz de quinze anos, vestido com uma colante roupa de seda azul-marinho, repleta de luas de ouro. Ágil, vibrante como um pássaro, ele se equilibrava no alto do trapézio – para ele o abismo não existia. Foi neste momento, lembro-me bem, que começou a soprar o vento, um vento carregado, ruidoso, vindo não sei de onde. De repente, sem que pudéssemos saber como, o toldo levantou-se, como suspenso por mão enorme: dir-se-ia que não tardaria a voar (...) Alguns espectadores também se tinham posto de pé, enquanto o vento continuava a soprar, agitando o menino de azul como se quisesse arrancá-lo ao trapézio, e enfunando o vasto toldo como uma vela prestes a partir. A esta altura é que a vertigem me tomou: todo o circo parecia flutuar, fugir, misturar-se à noite como o destroço de um fabuloso naufrágio. (E, 213) O universo em ruínas de Inácio Palma, despedaçado tanto por sua própria contemplação estarrecida como pelo fluxo de acontecimentos que o assalta – o encontro com o rebento decaído no gueto e sua posterior rejeição, o abandono de Adélia após perceber que fora por ele violentada e a corda sugestivamente dependurada pelo bizarro Sargento, para que Inácio cumprisse seu destino – encerra os sintomas de seu “enfeitiçamento”: “Quero me referir aqui a livros antigos, almanaques velhos que lera em horas de despreocupação e felicidade, dedicados à feitiçaria ou prática da magia negra. Certos seres obsedados sentiam-se como eu, esvaziados do mundo real, desamparados num cemitério de formas sem repercussão. Sim, julguei-me enfeitiçado” (E, 255). Neste ponto da novela, Carelli lembra que Lúcio “conseguiu inverter o ponto de vista da narrativa precedente, depois de ter mostrado o funcionamento exterior de Inácio e como este era percebido pelo filho; o autor pôs seu personagem pelo avesso – mostrou-o a partir do interior” (CARELLI, 1988: 133). Por uma narração partindo puramente dos intestinos da personagem, o autor confirma uma vez mais o estado caótico da interioridade que, seja pelo efeito do “feitiço” ou do tóxico, completa o quadro de absoluta alucinação: Explico como me senti naquele momento: inicialmente, um formigamento por todo o corpo, como se um elemento morno, picante, fizesse correr de modo diferente o sangue das minhas veias. Depois, ciciosas, cheias de envenenado encantamento, vozes que não me eram conhecidas espalhavam segredos que me subiam ao pensamento revoltado, através de palavras que nunca ouvira pronunciar, açucaradas e vis. Disse vozes – mas quero acreditar que fosse uma única voz, rápida, feita de milhões e milhões de inflexões, soprando aqui e ali, como um vento sem destino, propostas e conselhos que eu não chegava a perceber inteiramente, mas que sentia úmidos nos meus lábios. A verdade é que alguém tentava usar a minha boca, afim de ganhar o mundo e nele criar forma para suas infernais bruxarias. Não me achem bizarro, repito, esta voz viajava no meu ser, procurando a válvula onde pudesse ecoar sua extraordinária existência. (E, 255-256) Carelli aponta que “Inácio tem necessidade de se sentir sob o domínio do álcool afim de realizar seus ‘desejos proibidos’, mas em seu enfeitiçamento permanece perfeita e friamente lúcido” (CARELLI, 1988: 133), o que nos remete ao mesmo estado de clarividência observado no riso demente de Rogério. Não há possibilidade de fuga para a tragédia, nem mesmo por bebida, drogas ou enlouquecimento. Seria uma outra forma do autor supliciar suas criaturas até a derrocada final, como um pesadelo sentido intensamente em todas suas variações, confirmando mais uma vez a imposição do argumento trágico a todos estes trágicos fantoches do seu circo de horrores. 3.5 O blasfêmia contra a rosto de Deus: o absurdo e o sagrado Se o absurdo, a loucura e a destruição travam o seu diálogo, a religiosidade seria um quarto elemento a carregar novos tons na trajetória absurda de Lúcio Cardoso. Na trilogia “O mundo sem Deus” não poderia faltar o eterno embate de Lúcio com a sacristia mineira, e a absurdidade proposta por Camus estabelece pontos de ruptura e confluência com a religiosidade, como ele aponta: “Escolher entre o Céu e uma fidelidade irrisória, preferir-se à eternidade ou abismar-se em Deus, é a tragédia secular onde temos de ocupar o nosso lugar” (CAMUS, [s.d], 104). A revolta religiosa reforça ainda mais as dúvidas que Lúcio possui da fé como possibilidade redentora – ora acreditando piamente em tal fato, como observamos no desfecho de algum modo forçado de A professora Hilda, ora negando totalmente a possibilidade de conversão espiritual, como no caso da citada tríade. O sujeito rebelado não rejeita prontamente a idéia de um Deus; antes prefere confiar em sua existência para enfrentá-lo e destruí-lo, como aponta Camus em O homem revoltado: “O revoltado metafísico não é certamente um ateu, como se poderia ser levado a crer, mas sim, e forçosamente, um blasfemador. Simplesmente, começa por blasfemar em nome da ordem, acusando Deus como pai da morte e do supremo escândalo” (CAMUS, 1951: 42). O vacilo da fé torna-se um artifício providencial para Lúcio – nada mais provocador do que uma blasfêmia lançada aos céus. O escritor sacrílego é sempre incitador da tensão entre os seus contemporâneos cristãos. Ainda no mesmo livro, Camus lembra que “o revoltado desafia mais do que nega. Primitivamente, pelo menos, não suprime Deus; fala-lhe simplesmente de igual para igual. Mas não se trata de um diálogo cortês. Trata-se de uma polêmica animada pelo desejo de vencer” (CAMUS, 1951: 43). As personagens cardosianas se debatem desesperadamente entre o sagrado e a revolta em meio à derrocada de suas condições morais e espirituais, e Camus esclarece a distinção entre os dois elementos ainda em O homem revoltado: Se, dentro do mundo do sagrado, não deparamos com o problema da revolta é porque nele não existe uma problemática real, pois todas as respostas foram dadas de uma vez. A metafísica é substituída pelo mito. Deixa de haver interrogações; tudo se reduz a respostas e comentários eternos que poderão, nessa altura, ser metafísicos. Mas, antes que o homem penetre no sagrado, e para que nele se integre com êxito, ou, abandonando-o, dele possa sair igualmente com êxito, o homem é interrogação e revolta. O homem revoltado é o que se situa antes e depois do sagrado e que se dedica à reivindicação de uma ordem humana em que todas as respostas sejam humanas, isto é: racionalmente formuladas. A partir desse momento, toda a interrogação, toda a palavra passa a ser revolta, ao passo que, no mundo das coisas sagradas, toda a palavra é ação de graças. Não seria difícil demonstrar aqui que não pode haver para um espírito humano senão dois universos possíveis – o do sagrado (ou para falar em termos cristãos – o da graça) e o da revolta. (CAMUS, 1951: 36) Diante da falta de apelo em um universo caótico, o abalo da fé é uma constante em quaisquer das narrativas de Lúcio, e na tríade urbana tal abalo se transforma em um clima de tensão contínua, quando o nome de Deus é invocado sempre para o confronto e Ele passa a ser duvidado em sua onipotência ou mesmo espicaçado, sempre como recurso da provocação, como observamos em O enfeitiçado: Devia precisar aqui, antes de prosseguir, a impressão extraordinária que naquele momento me causavam as casas. Cerradas, envoltas nas protetoras sombras da noite, pareceram-me absurdas, vazias de sentido, monstros inertes aglomerados na escuridão. Esta sensação foi tão forte, em certo momento o mundo me pareceu uma coisa tão absurda, tão desesperadamente inútil, que estaquei, sacudindo a cabeça, experimentando-me para ver se não tinha febre. Onde estava, que paisagem era aquela? Criação de um Deus impotente para arrastar suas criaturas até a luz plena, ali jaziam os destroços de sua visão, consciências vivas e visionárias cerceadas de todos os lados pela doença, pela fome, pelo tédio, pelo vício e pela morte. Não, nenhum Deus ousaria ter levantado semelhante caos. (E, 227) Temos um tipo de desafio religioso que nos remete uma vez mais a Jean Genet, pela necessidade de buscar a salvação e a misericórdia pelo Mal. Ao citar a admiração pelo escritor francês em seu Diário completo, aponta que “corresponde Genet ao que poderíamos esperar de uma revolta contra todos os que nesta época de nivelamento e de ausência de mistério pretendem nos impor um Cristo limpo e distante, um Cristo adomingado e sem abjeção” (CARDOSO, 1970: 195) Chega mesmo a afirmar que “devemos disseminar todos os germes da desagregação, para que se produza uma nova época de terror. É o único modo de reerguemos um Cristo vingativo e terrível, que vimos perdendo desde a Idade Média...” (CARDOSO, 1970: 95). A necessidade de alcançar a santidade pela danação faz com que as personagens criminosas de Genet alcancem um vigor moral e espiritual que vai de encontro a tudo o que comumente compõe o caminho do homem para o que julgam ser a vontade de Deus. As personagens cardosianas querem alcançar a comunhão com Deus onde, sob a medida de pensamento dos religiosos comuns, Ele justamente não se encontra presente, principalmente no que tange ao chamado pecado da carne. Como afirma Nelly Novaes Coelho em “Lúcio Cardoso e a inquietude existencial”, a respeito das personagens cardosianas pecadoras, “a paixão da carne, as surdas invejas e ódios, as corroedoras paixões humanas são, na verdade, as únicas coisas vivas e atuantes no mundo amorfo, estático e estagnado que lhes serve de cenário e de impotente bloqueio com o peso de suas tradições esclerosadas” (COELHO, 1997: 780). Podemos observar que a procura de Deus pelo pecado carnal está presente em todas as novelas aqui estudadas, e por este pecado as personagens também sucumbem. Assim como Camus afirma que o reconhecimento do absurdo se torna uma paixão lancinante, é por suas criaturas apaixonadas e viscerais que Lúcio busca a misericórdia pelo Mal como espécie de prova para a força (ou o fracasso) da fé: Não resta dúvida de que certos períodos são épocas de provação: Deus nos experimenta até o cerne, para ver se conhecemos de que têmpera somos formados. Eu sei qual é a minha triste natureza. Conheço o fascínio que a exorbitância exerce sobre mim, o gosto do mal subindo até a garganta como um fluido escuro, a necessidade de reconhecer o pecado a fim de me fazer vibrar e sentir que palpita no meu íntimo um terror que me faz menos banal e menos tristemente moldado às misérias do dia. E sei o sofrimento desses indivíduos que seguem tão encarniçadamente suas paixões, que se entregam completamente a um signo delas, esperando uma redenção imposta às avessas, uma luz que venha de qualquer espécie de abismo, mas que seja diferente deste acanhado mundo em que vivemos. Um mundo de santos danados. (CARDOSO, 1970: 101)17 Intentamos (re)pensar as implicações religiosas de Lúcio Cardoso pelo prisma da provocação, e percebemos como sua revolta contra Deus atende uma vez mais aos seus desígnios controversos. Vistos por um olhar ortodoxo e considerados por uma leitura mais austera, os embates religiosos das personagens cardosianas incitam um profundo mal-estar e estabelecem confluência com as sondagens existenciais, como vários estudos acadêmicos já apontaram. Não obstante, lembremos uma vez mais que a atenção de Lúcio para os signos perturbadores antecediam suas aspirações literárias e, quando tais signos são revestidos desta religiosidade amaldiçoada, o escritor consegue instaurar inevitavelmente um estado de imenso desconforto para o leitor, mesmo não sendo este um cristão nato. As personagens pecam também por vários motivos que os estudos cardosianos já apontaram – inquietação ontológica, impulso imanente para o Mal, o mistério que envolve as paixões humanas –, mas infringem a moral religiosa, acima de tudo, porque são personagens provocadoras, e atendem os desejos do seu criador-escritor. As novelas urbanas são as que mais comprovam o desafio contra Deus, com o riso escarninho sendo o sinal mais agudo da revolta de Rogério e Inácio Palma, os grandes blasfemadores das novelas cardosianas. O desprezo moral se confunde ao pensamento cáustico contra um Criador de seres tão disformes e grotescos: “Os homens me causam um desgosto profundo. Cheiram mal, vestem-se de uma maneira inconcebível, são tolos e pretensiosos. Não é possível que Deus tenha inventado seres tão sórdidos para testemunhar de sua grandeza” (I, 113). O escárnio não é apenas amoral; é o riso contra a fé, é a blasfêmia cuspida no rosto sagrado. Ao ser perguntado pelo filho 17 Quando Lúcio faz referência a não desconhecer sua “triste natureza” , ao seu fascínio pela “exorbitância” e ainda ao se comparar aos sujeitos que “seguem tão encarniçadamente suas paixões”, o pecado da carne encerra implicações com o homoerotismo, como já estudamos no segundo capítulo. sobre sua crença em Deus, Inácio responde: “Se acreditasse, gostaria de matá-lo em mim, plenamente, a fim de poder realizar os meus planos. Não poderia tolerar nada que deixasse de justificar o meu riso. E eu quero, precisamente como você, rir, do primeiro ao último dia, rir sem descanso, rir até ser acompanhado ao outro mundo pelo eco dessa risada” (I, 113). Importante salientar, porém, que as personagens não escapam incólumes a este enfrentamento sacrílego; a recusa de Deus leva ao esgotamento mental do filho, internado em um manicômio e posteriormente reduzido ao lumpen noturno como viciado em tóxicos. Anos depois, temos o pleno arruinamento moral do pai, com a sugestão do seu suicídio ao final de O enfeitiçado, só confirmado nos primeiros capítulos de Baltazar. Como observamos anteriormente, tanto Lúcio como Camus não desconhecem os desertos áridos que recebem o sujeito consciente do absurdo. Não obstante, Camus lembra que o reconhecimento é um caminho sem volta e que conduz incondicionalmente à convivência com a angústia que o entendimento instiga: “Se tenho como verdadeiro esse absurdo que regula as minhas relações com a vida, se me deixo penetrar por esse sentimento que me ganha ante os espetáculos do mundo, por essa clarividência que me impõe a procura de uma ciência, devo sacrificar tudo a estas certezas e olhar de frente, para poder mantê-las” (CAMUS, [s.d], 34). No caso do escritor mineiro, a negação da fé levaria a uma grande exaustão emocional que reduziria suas personagens à completa demência, mas justamente tal negação incita a possibilidade de um denso aprofundamento pelos labirintos do espírito dissonante, que Lúcio tanto almeja como força motriz de sua verve literária: “O homem mais profundo é o que tiver mais profunda consciência do seu equívoco” (DT, 747). Uma necessidade de realizar uma louvação à imagem eternizada pelo Mal, como afirma também Genet: “Limitado pelo mundo ao qual me oponho, recortado por ele, serei tanto mais belo e brilhante quanto mais agudos forem os ângulos que me ferem e me dão forma, e quanto mais cruéis forem os meus recortes” (GENET, 1986: 205). Temos o caminho do abismo interior e da danação como condição indubitável da tragédia que jamais é abjurada por nenhum destes três escritores citados, e que Camus reforça em O mito de Sísifo: Trata-se de viver nesse estado de absurdo. Eu sei sobre o que ele é fundado, esse espírito e esse mundo arrimados um ao outro como arcobotantes sem poderem abraçar-se. Pergunto qual a regra de vida deste estado e o que me propõem desdenha os fundamentos, nega um dos termos da oposição dolorosa, ordena-me uma demissão. Pergunto o que arrasta a condição que reconheço como minha, sei que ela implica obscuridade e ignorância e asseguram-me que essa ignorância explica tudo e que essa noite é a minha luz. Mas não respondem dessarte à minha intenção e esse lirismo exaltante não pode esconder-me o paradoxo. É pois necessário afastarmo-nos. Kierkegaard pode gritar, prevenir: “Se o homem não tivesse consciência eterna, se no fundo de todas as coisas só houvesse um poder selvagem e fervente a produzir todas as coisas, o grande e o fútil, no turbilhão de paixões obscuras, se o vazio sem fundo que nada pode encher se escondesse sob as coisas, que seria então a vida senão o desespero?” Este grito não pode fazer parar o homem absurdo. Procurar o que é verdadeiro não é procurar o que é desejável. Se para fugir à pergunta angustiada: “Que seria então a vida?” for necessário alimentar-se, como o burro, das rosas da ilusão, de preferência à resignar-se à mentira, o espírito absurdo prefere adotar, sem tremer, a resposta de Kierkegaard: “o desespero”. Tudo bem considerado, um espírito determinado resiste mesmo a isso. (CAMUS, [s.d], 56) A resposta de Camus, tomada do pensamento de Kierkegaard, atende aos desígnios da escrita provocadora de Lúcio Cardoso e se transforma no moto perpétuo não somente das novelas aqui estudadas, como de toda a concepção de arte do escritor mineiro. Camus lembra que a obra de arte não pode ser considerada como um refúgio face ao absurdo, pois ela própria se torna um fenômeno absurdo e descreve o mal imanente à essência do homem, sem oferecer alento para este mesmo mal. De algum modo, porém, o pensador argelino aposta que a obra “faz sair o espírito de si próprio e coloca-o em face de outrem, não para que ele aí se perca, mas para lhe apontar com um dedo seguro o caminho sem saída por onde todos vão” (CAMUS, [s.d], 120). Lúcio deseja fazer exatamente o mesmo ao compartilhar o mundo caótico de suas personagens trágicas com o leitor – não almeja trazer-lhe qualquer espécie de alívio, mas antes pretende convidá-lo para que se deixe queimar nos infernos das cidades, como veremos no próximo capítulo, com seus desvãos e espaços de loucura exteriorizada e transgressão, por onde o grito de Sísifo encontra um eco ainda mais dissonante e provocador. CAPÍTULO 4 – LÚCIO CARDOSO E O UNIVERSO MARGINAL DAS CIDADES Se pelas províncias mineiras Lúcio Cardoso explora toda a claustrofobia ontológica de personagens calcinadas pelos desvarios da clausura interior, nas narrativas urbanas o autor rompe as barricadas excessivas da introspecção, face a uma nova dimensão dada à sua imagerie expressionista de formas, cores e imagens. No ciclo das chamadas “histórias das cidades”, encontramos o desenvolvimento de novos matizes de escrita e de novas possibilidades para a configuração de ambientes e tessituras existenciais. O espaço citadino seria o local propício para que Lúcio retomasse o caos da interioridade, embora desta vez circunscrito ao universo marginal exterior, onde a paisagem expressionista se projeta sob uma perspectiva distinta da província. Lúcio urbano, a percorrer as ruas cariocas alternando estados de enfado e frenesi, se aproximaria do que Luiz Edmundo Bouças Coutinho chamaria de écrivain-dandy, em seu ensaio “Formas e truques de um écrivain-dandy”. As próprias deambulações de Lúcio se confundiriam às projeções de suas escritas pessoais e ficcionais, como podemos observar no registro de seu Diário completo, ao passar pela Cinelândia ou pelo Café Vermelhinho: “Sinto que não é possível que tudo prossiga assim, nessa eterna espera, nessa angústia do nada e da mediocridade. No fundo do coração é a catástrofe que chamamos. Ninguém suporta a horrível monotonia da vida” (CARDOSO, 1970: 197). Sua andanças erráticas pelo Rio de Janeiro serviriam de experiência in loco ao fomento da tríade de “Um mundo sem Deus”, permitindo a Lúcio expor o transbordamento dos estados de alma de suas personagens com cores ainda mais carregadas e desmesuradas, sem perder a postura emblemática como criador de totalidades existenciais, segundo aponta Alfredo Bosi em História concisa da literatura brasileira. O excesso com que acentua os contornos da dramaticidade destas histórias citadinas irá ajudar a compor seu ideário literário provocador, ao figurar com violência cromática sua galeria repleta de tipos marginais e amorais a beirar o exagero e o nonsense, sem impedir que muitos se aproximem do kitsch. Nas novelas urbanas, Lúcio mostraria sua faceta ainda mais cáustica e controversa, já sem os alicerces mineiros para sustentar seus conflitos morais e espirituais, e o afã pela destruição se daria menos com a tortura ontológica encarcerada de suas personagens provincianas do que com o riso demoníaco escancarado dos transgressores morais. Embora a expiação moral e espiritual fosse sempre explorada à náusea por Lúcio Cardoso, em quaisquer de seus textos que venham compor sua prosa de ficção, havia uma profusão de imagens infernais projetadas pelo gueto que permitiriam ao escritor deformar as formas convencionais de encarar pessoas e lugares, tornando o cenário das cidades o lugar propício para que a tragédia clássica assumisse ares de um circo de horrores. 4.1 Caricaturas da decadência: as personagens das novelas urbanas As novelas urbanas de Lúcio Cardoso estão circunscritas a entrechos que optam por um completo desregramento de pensamentos e ações, de tal forma que as personagens talvez sejam as mais bizarras e tresloucadas da trajetória cardosiana de escrita. A sondagem existencial percorreria os desvãos do bas-fond, com seus venenos lisérgicos e licenciosos, e desceria cada vez mais aos infernos das cidades, com seus drogados, “viciados” (espécie de eufemismo de Lúcio para os pederastas) e prostitutas decaídas, compondo espaços onde a transgressão se confunde à decadência. Os traços de suas personagens amorais seriam quase deliberadamente caricaturais, verdadeiras pantomimas de um teatro grotesco. Mesmo sem trabalhar diretamente com a paisagem urbana em sua prosa de ficção posterior a O enfeitiçado (considerando que Baltazar permaneceu inacabada), as personagens citadinas que invadem o espaço da província, como Nina de Crônica da casa assassinada, ou Rafael (ou, no original que seria publicado, Kelene) de O viajante, trariam em si as marcas da transgressão que deixariam todo um rastro de destruição pelas tradicionais famílias mineiras. Nas primeiras anotações que Inácio Palma realiza em ritmo de confissão, em O enfeitiçado, a paisagem instiga a possibilidade de rechaçar as primeiras cordas íntimas que sustentavam a interiorização: Quem nunca terá vivido como eu, olhando a paisagem prenhe de um acontecimento que não se decide, quem não terá vivido à espera de alguma coisa, o sem-nome, o que de inesperado costuma acontecer na vida, o sobressalto, a pressão nessa pequena mola que aciona o destino e transforma os hábitos? (...) Sim, ousemos tudo. Já agora não há nenhum motivo para me deter a meio caminho. Que eu faça destilar aqui, ao meu possível leitor futuro, amigo e possivelmente semelhante, tudo o que nunca disse, o que sempre vivi, áspera e violentamente, contra tudo e contra todos, sozinho no meu desespero. Nessa semi-obscuridade, sinto o meu riso crescer como se viesse de longe... (E, 152-153) O ritmo dinâmico da cidade torna-se providencial às pretensões de Inácio em busca de seus últimos anseios, além de sinalizar como toda a narrativa trágica se faria acompanhar pelo mesmo pensamento sardônico que seria o legado maior que deixaria ao seu rebento Rogério. Além da tão decantada vocação das personagens cardosianas para o Mal, a sugestão febril dos acontecimentos e o dínamo incessante a conduzir o tempo das ruas e pessoas acirram o espírito a outros níveis de perscrutação ontológica: “Ainda que estejamos acordados, ainda mesmo que protestemos e vivamos depressa (...) alguma coisa flui, escorre incessantemente na obscuridade, deteriora-se, alguma coisa que é nossa, particular e vital, infinitamente particular e desgraçadamente vital” (E, 154-155). Inácio, espécie de dândi caricato em estágio último de derrocada moral, perambula por Lapa, Centro, Gamboa, Saúde, Meyer em busca de Rogério, além de percorrer os considerados antros mal freqüentados da cidade, hotéis suspeitos como Progresso do Meyer, Hotel da Lanterna e A Pastora de Nápoles. O território urbano é visto com terror e fascinação já que, como lembra Teresa de Almeida no ensaio “A metrópole expressionista”, ao apontar o livro De Caligari a Hitler, o ensaísta Siegfried Kracauer “parece nos remeter a algumas das narrativas de Lúcio Cardoso, nas quais a representação da metrópole se mostra caracterizada em determinadas cenas por uma espécie de agressividade e desordem nela reinante, que porém tanto fascina seus protagonistas” (ALMEIDA, 1998: 55). Lúcio procura sublinhar a atmosfera soturna e enigmática das cidades sob o olhar do sujeito noturno, espécie de fascinação noir a acentuar sua estética expressionista, ao mesmo tempo em que o fascínio encerra a gama de possibilidades próprias das cidades para os vícios, perigos e prazeres ocultos: Lembro-me que a manhã já se tinha esgotado, e eu não bebia mais. A última gota de vinho tremia no fundo do copo, tremia como uma gota de orvalho no aconchego de uma folha. E era tarde, era quase noite, ou melhor, era precisamente essa hora que eu tanto amo, hora em que as ruas escurecem e as luzes se acendem. Nunca pude ficar em casa nesse momento. É preciso amar as cidades para adivinhar as horas em que palpita seu segredo mais fundo. É preciso ter os olhos bem abertos, os ouvidos à escuta, para perceber quando o mar se cala e a noite chega, com suas promessas e possibilidades. Ninguém saberá jamais o que é a noite para os noctívagos: eles se roçam nela, embriagam-se com sua cálida essência, resplandecem aos seus fogos concentrados. Desmesuradas, àquela hora as casas abrigavam a sombra. (E, 156) A noite e as margens serão cúmplices ideais para o ocaso das personagens decaídas. Temos tal impressão já em Inácio, primeira parte da trilogia, uma novela que possui um fluxo narrativo frenético próprio do estado febril de Rogério Palma. Em sua errância pelos bares e hotéis, se depara com os tipos mais trágico-cômicos do universo cardosiano, ainda mais deformados pela febre que acentua o clima alucinatório das descrições. A primeira personagem que Rogério encontra para inaugurar sua nova condição agônica é a dona da pensão em que vive, ironicamente chamada Duquesa: “Trinta ou quarenta anos de moral de pensão barata, toda a ética do Catete e da Lapa, transparecia visível e suada naquele rosto envelhecido pelo prazer e pela usura” (I, 19). Logo depois, em um “desses pequenos, estreitos e escuros antros da Lapa” (I, 23), Rogério é assediado pela prostituta Violeta, o que ele chama ser uma das mulheres típicas do local, “excessivamente pintadas, de olhos pisados e sorriso feio, deixando à mostra, desastradamente, um dente de ouro” (I, 24), além de pontuar que “tudo o que nela havia de criminoso – em nós sempre existe algo alerta para o crime –, tudo o que nela era força disposta para o mal estava alerta e pronto para entrar em ação” (I, 25). A terceira personagem seria talvez a mais desastrosa de toda a novela: Lucas Trindade, um sujeito descrito como o tipo mais canastrão possível. Se em um primeiro momento, Rogério julgava estar ali o pai que tanto procurava, imediatamente rejeita o pensamento prévio, diante do desastre ambulante que encontra diante de si: O que primeiro me chamou a atenção foi a sua palidez: era pálido, não como somos habitualmente pálidos, mas de uma lividez de cera, com uma nota qualquer antiga e sobrenatural. Sorri comigo mesmo: como poderia ela supor que se tratasse dele, uma semelhante lesma? Depois era gordo, não possuía nenhuma elegância, nenhuma aristocracia nos traços inchados e desagradáveis. Devia estar-se aproximando dos cinqüenta anos, ou então a vida o estragara bastante. Seus cabelos, ralos, eram de uma cor suja, indefinível. Naquele instante, sob a luz crua da lâmpada, parecia esmagado por um extremo abatimento (...) Mas havia uma coisa que ainda me chamou mais a atenção e que, durante um segundo, provocou-me uma espécie de riso sufocado: era uma cruz de esparadrapo, enorme, que trazia colocada sobre o nariz, a ponto que não se via bem aquele apêndice, mas apenas um ponto branco no rosto descorado e triste. (I, 38) Se o humor é algo quase inexistente na literatura de Lúcio Cardoso, o escritor utiliza a ironia cáustica como uma espécie de sucedâneo mais corrosivo para a comicidade. Os diálogos que poderiam sugerir uma veia cômica menos provocam o riso do que uma sensação desconcertante advinda do mais puro escárnio. Não obstante, existe um tom acentuado de galhofa que não se encontra em quaisquer outros livros do autor, principalmente no que tange às impressões de Rogério quando vislumbra desastres ambulantes como Lucas Trindade. O grotesco das personagens adquire força graças ao extremo sarcasmo com que o protagonista as descreve. O próprio pai, a figura idealizada e ansiosamente procurada, é apresentado como um arremedo de nobre decadente a reinar sobre as paisagens marginais, com seu peculiar terno xadrez, “excessivamente gaiato para um homem comum, e já fora de moda” (I, 85) – o que inevitavelmente nos remete a um dândi ainda mais decadente e espalhafatoso –, terno que possuía “um talhe todo especial, apertado na cintura como roupa dos antigos janotas. No bolso, um lenço branco escandaloso voava ao vento como uma enorme rosa desabrochada sobre o incrível costume de xadrez” (I, 85). (A imagem extravagante da flor na lapela curiosamente nos remete a uma das fotografias do escritor Oscar Wilde). O mais curioso de sua apresentação é seu bizarro rosto de boneca, o que reforça o modo com que Lúcio pontua suas personagens mais demoníacas com a incapacidade de envelhecer (na peça Angélica, a personagem homônima, uma espécie de Dorian Gray ainda mais perversa, jamais envelhece por vampirizar a beleza de jovens adolescentes). Ainda durante a Feira de Amostras, Rogério se sente ainda mais perturbado diante da figura do pai – “Estremeci, percebendo-me face a face com o mistério daquela natureza humana: nele, dir-se-ia que a paixão, qualquer que fosse, constituía o todo inteiriço de sua personalidade” (I, 86) – e aponta ainda como viu “seu rosto pálido como se fosse de cera, corado ao centro, um rosto realmente de boneca, mas iluminado por tal expressão de ódio como jamais vi numa fisionomia humana” (I, 88). A primeira visão do pai não poderia ser mais inusitada, já que o encontra brincando em uma das gôndolas da roda-gigante, acompanhado de duas figuras do gueto não menos bizarras: Tratava-se de duas das mais reles prostitutas que freqüentavam os cabarés da Lapa, dessas que se convertem em tipos populares pelo exótico, pelo ridículo e pela decadência. Nunca na minha vida tinha visto pessoas se comportarem tão cinicamente, era isso sem dúvida o que atraía as pessoas que já se comprimiam junto ao muro, olhos fixos no grupo escandaloso da rodagigante. Indiferentes a tudo, elas riam alto, sacudindo as pernas e inclinando demasiadamente a cabeça para trás. Ninguém se enganaria: ainda mesmo que se portassem como meninas de colégio, todos saberiam imediatamente que eram mulheres daquela laia, pois traziam na testa, em letras de fogo, o estigma da sua condição. Entre tão vis criaturas, como Inácio parecia florescer, como se mostrava satisfeito! Não havia dúvida, era o mesmo pulha que eu imaginava. (I, 85) Em O enfeitiçado, encontramos na primeira metade da novela novos representantes deste arsenal de seres arruinados, embora sejam apresentados por Inácio em um ritmo narrativo mais monocórdio que a história anterior. A primeira desta figura é Lina de Val-Flor, pastiche patético de mística e cartomante, procurada pelo protagonista para que pudesse dar sinais do paradeiro do filho perdido. Vejamos novamente o modo como Lúcio carregava na descrição dos detalhes sórdidos, de tal forma que chegam a ser caricatos, sempre no intuito de surtir os efeitos acintosos por ele desejados: Assim, junto à luz e enquanto preparava as cartas, pude vê-la melhor. Era uma mulher de meia-idade – seria impossível dizer ao certo quantos anos tinha – extraordinariamente gorda, com os braços polpudos e roliços pejados de braceletes. O cabelo curto e lustroso estava aparado numa bem cuidada franja – o seu negror excessivo, quase azul de tão forte, denunciava o uso imoderado de pintura. Jamais conseguirei transmitir em palavras a esperteza que se lia naquela face: oleosa, de traços miúdos e vulgares, sua expressão parecia condensar tudo o que havia no mundo como baixeza e mesquinhos interesses. Não lhe faltava certa inteligência nos olhos, é certo, uma inteligência pronta a surgir nos momentos difíceis, a criar expedientes fáceis e, mais do que tudo isto, a prestar atenção, investigar, farejar e a defender os interesses que lhe pareciam mais imediatos. Completava sua personalidade um perfume intenso e morno de violeta, que devia impregná-la da cabeça aos pés. (E, 161) Inácio não se engana quando procura o arremedo de cartomante para indicar os lugares decadentes onde poderia encontrar o filho, ex-paciente de um hospício e agora viciado em entorpecentes. A torpeza da mulher é confirmada quando esta oferece a própria filha para saciar os últimos desejos de um sujeito em fim de carreira como Inácio. Lina de Val-Flor torna-se um arquétipo da ardileza incrustada nos seres moralmente combalidos: Compreendi que realmente ela conhecia os homens, não somente daquela sala, mas sobretudo desses variados lugares onde eles tanto se revelam, bordéis, pensões ou casas de jogo, em todos os antros onde Lina de Val-Flor usara de sua complacência, da sua ambição ou do seu cinismo, entregando-se ou procurando arrancar o dinheiro alheio, indiferente às quedas, aos risos e aos sentimentos despedaçados, que encobrem, como a última camada de limo, as camadas mais fundas da triste natureza humana. (E, 168-169) A descrição de Adélia de Val-Flor, a menina que serve como cordeiro imolado tal como abordamos no segundo capítulo, procura ressaltar a ingenuidade da personagem, “tão pura e tão intocada pela deprimente atmosfera que a cercava” (E, 174), com sua aparência de pobreza e timidez excessivas, suas tranças que lhe pendiam pelos ombros, seu ar de criada ou menina de orfanato, “quieta, as mãos abandonadas ao longo do corpo, olhos baixos, esperando que Lina lhe ordenasse o que fazer” (E, 174). Interessante notarmos que, por trás de aparente piedade, encontrase um certo tom de ironia corrosiva com que o escritor encara o seu “lírio” nascido do pântano: Os anjos existem, as papoulas brancas nascidas do pântano e da miséria. E são eles que nos dão uma medida para o contra-senso da vida, peso e medida de um mundo desgovernado pelas paixões e pelo delírio de destruir. No dia em que as meninas de tranças e com ares compungidos de orfanato não existissem mais, forças obscuras subiriam do caos para anunciar o advento de uma destruição prematura. (E, 174) Inácio Palma vive em uma pensão decrépita em um dos subúrbios cariocas, um ambiente inóspito dominado pelo mofo, pelas ratazanas e pela completa ausência de conforto e tranqüilidade. As proprietárias são outras das figuras bizarras da narrativa do universo marginal de O enfeitiçado, e novamente ostentam traços caricaturais sob o tom cáustico com que a protagonista as apresenta: Pois são duas, Cecília e Malvina, ambas no último quarto da vida, severas, de saias pretas onde fremem restos de vidrilhos (...) Uma é viúva, a outra solteirona, mas à força de conviverem transformaram-se numa única espécie de ser, híbrido, misterioso e sem identidade real, nem solteiras nem casadas, mas uma monstruosa figura da mitologia doméstica, como só é possível florescer em determinados ambientes fechados (...) Demoro-me um pouco mais no retrato dessas duas singulares harpias: uma é alta, solene, ostentando com fria dignidade o luto de um marido morto logo após o casamento. A outra é baixa, gorda, agitada, inteiramente submissa à mais alta, acompanhando-a sempre de quarto em quarto, sombra fiel e compreensiva. Jamais entrava eu em casa, sem que as encontrasse logo à entrada, varrendo o corredor, sempre sujo e mal iluminado, ou então espiando algum dos hóspedes pelo buraco da fechadura. (E, 194) Completa a galeria de tipos bizarros o chamado Sargento, espécie de Mal personificado cujos traços pessoais descritos são tão indefinidos que ele menos se configura como uma manifestação maléfica de carne e osso do que uma abstração própria de uma alucinação ou de um pesadelo: “Ele sorria, e aquele pálido ricto não conseguia iluminar o áspero traçado de sua fisionomia, onde protuberâncias cresciam em oposição a vácuos e cicatrizes, revelando um panorama trágico, absurdo, onde nenhum sentimento transparecia” (E, 219). Tal grau de abstração faz com que a personagem seja descrita do modo similar ao que Lúcio utiliza para apresentar os ambientes, o tornando uma fantasmagoria que adensa ainda mais o clima de nonsense que acompanha o “enfeitiçamento” final do protagonista: “Nem por um minuto duvidei de que minha vida estivesse ameaçada – aquele homem trazia o perigo e a vingança consigo, como uma atmosfera que o envolvesse” (E, 219). O vaticínio se cumpre quando Sargento dependura a corda na janela do quarto de Inácio, após a violação de Adélia, com a qual provavelmente se enforcou. Como adendo para a análise dos tipos urbanos, iremos considerar o plano parcial da novela Baltazar18, tal como foi publicada pela Civilização Brasileira em 2002 e organizada por André Seffrin. Apesar de ter permanecido inacabada, pela reedição temos conhecimento não só do viés que Lúcio seguiria para construir a trinca que completa “O mundo sem Deus”, como também possivelmente dos modos com que trataria o universo marginal em seus próximos livros. Anos depois do suposto suicídio de Inácio Palma, a jovem se torna uma prostituta nas ruas do centro do Rio. É a primeira (e única) das novelas de Lúcio a contar com uma mulher a relatar a história em primeira pessoa, embora continue a seguir a mesma cartilha de todos os outros livros: os pensamentos da personagem são descritos à maneira pessoal do próprio autor, mesmo que sob enfoque de um ponto de vista feminino. No primeiro plano organizado da novela (o restante do 18 A referência à novela Baltazar será dada pela sigla B, seguida do número da página. texto provavelmente tenha se perdido), Adélia é uma mulher completamente desesperada que, após tentativa malograda de suicídio em frente às barcas para Niterói, se vê cercada por figuras típicas do gueto, perseguida pelo fantasma de Inácio e assediada pelos tipos decaídos dos lupanares e dos hotéis que forneciam narcóticos. Lúcio retoma a personagem Lina de Val-Flor, mãe de Adélia, que a oferecera para Inácio na novela anterior. Se o arremedo de cartomante já havia sido descrito de forma quase exótica, sua reaparição conta com uma descrição ainda mais carregada, a acentuar os aspectos de decadência e bizarrice da mulher, o que demonstra como Lúcio esteve sempre demasiadamente atento à expressão pictórica disforme e grotesca de suas criaturas do bas-fond, sem hesitar em expor traços e cores que ostentavam o excesso próprio de suas personagens marginais: Ela pareceu refletir um segundo – um segundo em que vi toda aquela enorme massa alquebrada pela velhice, distender-se, fluir e refluir no esforço da emoção, até aquietar-se de novo sob os seus andrajos coloridos e sem dignidade. Sim, ali estava ela, e eu podia refletir nisto, durante aquela pausa que se estabelecera entre nós – ali estava ela, como no meu delírio eu a tinha imaginado, decadente e triste, ainda remexendo todos os monturos da vida, à procura de uma pequena satisfação, de uma recompensa ilusória e tardia, tragada pelo seu próprio veneno e pela sua crueldade, como eu a vira desde a infância, em torno de mim, mentindo e corrompendo tudo em que tocava. Lina de Val-Flor, a antiga cartomante, já agora era apenas um destroço nesse imenso mar que oscila nas zonas recuadas do vício: jogadora, gatuna, venal e inconsciente, era uma espécie de madrinha dos aventureiros e das decaídas, aproveitando as últimas forças que lhe sobravam, antes que fosse jogar a derradeira cena da sua comédia, nos braços impassíveis da morte. (B, 311) A imagem mais instigante que temos do primeiro plano da novela (que poderia ter sido alterado várias vezes, já que Lúcio esboçava pelo menos duas versões para um mesmo segmento narrativo, com observamos em O viajante), é a do personagem epônimo, que teria a mesma força descritiva de personagens nitidamente cardosianas como Inácio e Rogério Palma. Baltazar Leivas, com pouco mais de trinta anos, é a típica personagem marginal esgotada por bebidas e excessos, mas com toda a carga ontológica imanente às personagens trágicas que ostentam o halo da destruição. Em seu primeiro encontro com o sujeito, Adélia afirma ter examinado “suas faces pálidas, onde nenhum sorriso brilhava, suas mãos magras e nervosas, seu todo que exprimia febre e uma certa ansiedade – exatamente como certos tipos desajustados que encontramos, já bastante causticados e experimentados e que traem tudo isto num certo tique nervoso e irritado” (B, 328). Sua disposição para o Mal se encontra no modo como o escritor o descreve, já que as personagens mais maléficas de Lúcio carregam esta mesma magreza, palidez e uma estranha intensidade que traz nos olhos o relampejo da loucura e da tragédia, como notamos no cocheiro Miguel de O desconhecido. Como contraste, temos as personagens obesas e disformes como representantes de uma decadência sem maiores traços de imponência, como Lucas Trindade em Inácio e a acima citada Lina de Val-Flor. Lúcio se preocupou em carregar os traços grotescos desta última personagem, tanto que o trecho de sua morte se encontra entre as variantes da novela, como se o autor revelasse certa ânsia em adiantar a cena patética de sua morte. Vejamos um fragmento do episódio final da cartomante: Aproximei-me vagarosamente de Lina, procurando divisar melhor seu rosto através da sombra. Não, jamais poderia reconhecê-lo, aquele rosto que me era tão familiar. Tudo o que nela exprimia cobiça, dissimulação ou crueldade, fora grotescamente acentuado pela agonia – e o que eu tinha agora diante de mim era uma espécie de máscara medieval, de pálpebras inchadas, bochechas escuras e tumefatas, de onde se escapava um sopro intermitente, como se dentro daquele corpo castigado, fervesse alguma coisa ou trabalhasse alguma monstruosa máquina. Os cabelos, por um desses mistérios que se processam com os agonizantes, já não combinavam com o resto da fisionomia: rebeldes, desgrenhados, pareciam lutar para se oporem à dura chegada da morte, já quase senhora daquele rosto onde pousavam pouco a pouco tão densas e variadas sombras. (B, 365) As personagens aqui citadas lembram figuras construídas para o espaço cênico pelo alto grau de dramaticidade que exibem, reforçando o interesse de Lúcio Cardoso menos pelo entrecho dos livros do que pela expressão quase teatral de suas criaturas. Notamos que tal dramaticidade chega a ser tragicômica em alguns casos, graças aos gestos excessivos e desmesurados de personagens que encenam sempre em um palco imaginário, um pouco distantes daqueles outros mais austeros da província, puramente trágicos em forma e essência. Não representariam uma farsa, pois seu criador não era afeito ao humor em suas histórias; antes seriam integrantes de um teatro do absurdo, onde as linhas sinuosas do sonho beiram a alucinação. As formas distorcidas deste cenário e o jogo claro-escuro das luzes que incidem sobre ele compõem a imagem projetada das cidades e de seus desvãos marginais, aspectos abordados no próximo tópico. 4.2 Limites marginais entre interioridades e exterioridades Em Por onde andou meu coração, Maria Helena Cardoso curiosamente aponta que a avidez do irmão pelo teatro e pelo cinema aconteceu precocemente, e concomitante ao seu interesse por literatura, demonstrando como sob a figura do menino jazia o futuro dramaturgo, cineasta e literato. Até mesmo a música incitava a verve de Lúcio, quando este demonstrou talento para o piano, embora tenha o deixado de lado tempos depois (CARDOSO, 1968: 274). Ainda muito jovem escrevia roteiros para o cinema e para o teatro, demonstrando que seu afã por outras manifestações artísticas foram fundamentais para a formação do escritor. Vejamos o seguinte fragmento de Por onde anda meu coração: Apesar de garoto e eu, moça de dezenove para vinte anos, nos dávamos muito bem. Como gostava de ler, tomei a peito orientá-lo, tendo começado com livros de Dickens, Crime e castigo e Recordações da casa dos mortos, de Dostoievski, de mistura com romances de folhetim, que seguíamos ansiosos. Tinha paixão pelo cinema, conhecendo toda a sua história, acompanhando os grandes filmes que se lançavam na época. Apenas com onze para doze anos, já falava sobre Cecil B. de Mille e filmes como O gavião do mar, atrizes como Alma Rubens, Ala Nazimova. Insistia para que fôssemos ver um determinado filme que sabia ser bom, por ter seguido a filmagem através das revistas de cinema, estando a par da vida dos intérpretes, do diretor, dos vários incidentes por ocasião da filmagem. Acompanhava-nos nas noites frias de inverno, com uma pelerine azul. Sentava-se à nossa frente e durante os intervalos voltava para nós o rosto ansioso, os olhos inquietos e brilhantes, como a indagar a nossa impressão. Se não gostávamos e lhe dizíamos, ficava desapontado e triste, como se fosse ele o diretor. Apesar de criança ainda, tinha o gosto apurado, conhecendo cinema como gente grande. Não poucas foram as vezes em que o desapontei, discordando de sua opinião que, naquela época, para mim era opinião de criança. Mas quem tinha razão era ele, apesar da idade. Foi o primeiro a me falar de Greta Garbo, que acabava de aparecer no filme Laranjais em flor. A instâncias suas, fomos juntos ao Cinema Odeon, vê-la em A carne e o diabo. Saiu de lá no maior entusiasmo e a sua satisfação cresceu quando percebeu que também eu tinha gostado. Não me deixava perder um só filme das irmãs Talmadge, que ele adorava, especialmente Norma, da qual vimos juntos A Duquesa de Langeais. O dia todo passávamos conversando do seu mundo: o cinema, os livros que líamos, os dramas da vizinhança. (CARDOSO, 1968, 265-266) Nas novelas urbanas, Lúcio utilizaria elementos próprios da linguagem cinematográfica que pudessem servir de esteio aos seus interesses de escrita, assim como notamos com os recursos cênicos na figuração de locais e pessoas. Embora tais elementos estejam mais dispersos do que propriamente sistematizados ao longo das narrativas, eles demonstram como o autor procurou o máximo de recursos possível para engendrar uma literatura que fosse absolutamente provocadora, confirmando uma vez mais o trabalho deliberado de Lúcio para instaurar o mal-estar no leitor. A construção de certas passagens de Inácio e O enfeitiçado como imagens visuais acentua o tom expressionista com que o autor quer destacar a insanidade das personagens, a sensação agônica dos ambientes vistos por um olhar entorpecido pelas drogas e pelo álcool e o clima decadente que circunda os ambientes marginais das pensões, hotéis, bares e lupanares. A descrição de tais ambientes é construída sob forte apelo visual, variando entre a manifestação pictórica, a expressão cinematográfica ou a cenografia teatral. Mario Carelli aponta tal impressão sobre a novela Inácio: “Personagem noturno, Inácio não habita um mundo de meiastintas. Cores gritantes (como as que agradam às prostitutas da Lapa) ofuscam o olhar e explodem no texto como explodem na tela de pintura ou na tela de cinema” (CARELLI, 1988: 130). Cita ainda que “Lúcio teve um grande cuidado com a ‘encenação’ (na época ele se ocupava com o Teatro de Câmara), em especial com a entrada dos personagens, especificando as iluminações ou definindo os espaços” (CARELLI, 1988: 130). Em alguns trechos, percebemos marcações próprias destinadas à apresentação cênica; em outros, notamos uma descrição quase roteirizada a fornecer signos de orientação para o percurso da câmera sobre o ambiente descrito, como observamos na cena em que Rogério acompanha Lucas Trindade para encontrar o cadáver da prostituta Stela, que em breve saberia ser sua mãe: Acompanhei o homem e, ganhando de novo o corredor, fomos para diante de uma segunda porta, sem nenhuma dúvida a do quarto em que se achava o cadáver. Estava apenas cerrada, pois Lucas empurrou-a mansamente, convidando-me a entrar, com um gesto (...) Eu não via coisa alguma, pois a luz baixa como que fazia incidir toda a sua parca claridade sobre a morta coberta com um lençol. Aquela obscuridade emprestava um tom de maior irregularidade ainda ao aposento; apesar de tudo, vi que havia uma cama ao fundo, ainda desmanchada, como se alguém tivesse deitado nela recentemente, os travesseiros atirados de lado, e uma pequena mesa, cheia de frascos de remédios, algodão e ampolas vazias. Perto do cadáver, espalhados pelo chão, vários chapéus de senhora, chapéus fora da moda, uns ainda com os seus enfeites, flores e pássaros, outros desguarnecidos, semi-rasgados, como se tivessem sofrido uma violência. Olhei para o meu companheiro: tremia ainda mais e fitava-me também, como se pedisse meu auxílio. (I, 54-55) A atividade de Lúcio Cardoso com o cinema foi a possibilidade de “saciar um demônio de sua infância” (CARELLI, 1988: 57). Escreve o roteiro para o longa-metragem Almas adversas, de Léo Marten, filmado em Congonhas do Campo em 1948, e participa de sua produção. No ano seguinte, aventura-se como roteirista e diretor de seu próprio filme, que permaneceu inacabado. A mulher de longe foi filmado na praia de Itaipu que, como lembra Carelli, era um dos recantos mais selvagens do litoral do Rio de Janeiro na época. Diante de seus projetos gorados para o cinema, Lúcio estabeleceria ainda mais pontos de confluência entre sua escrita e a linguagem cinematográfica. Ainda em seu Diário completo – que se iniciou justamente como diário de bordo do filme que tentou construir em 1949 –, Lúcio apontaria que “travellings, panoramas e long-shots nada mais são senão capítulos, frases, balbucios do mesmo romance que não se conclui nunca e que, através das imagens, procura apenas transmitir sua existência” (CARDOSO, 1970: 18). Em outros trechos, seria o ainda adormecido pintor que daria contornos à violência cromática e a desvirtuação das formas com que olha o mundo exterior, como atesta em seu diário: “Há em mim, sem nenhuma dúvida, um artista plástico fracassado. Em certos momentos, tenho a impressão de que escrevo como se desenhasse” (CARDOSO, 1970: 229). No ensaio “A construção narrativa: uma gigantesca espiral colorida”, Sonia Brayner aponta as diferentes personas intelectuais de Lúcio, o que remete à influência destes múltiplos matizes artísticos sobre as possibilidades de construção literária: A palavra dialógica de Lúcio trabalha em um horizonte amplo de possibilidades de relação interna. Aí encontraremos o escritor, o cineasta, o teatrólogo, o pintor. São atividades e ‘olhares’ que se conjugam, cada qual com sua peculiaridade, para captar um espaço intersemiótico, movente, pleno de visões, lacunas, angulações. O leitor, seduzido pela composição dissonante dos padrões usuais, torna-se o eixo de dinamização textual e, recompondo os fragmentos, atualiza as alusões, cruza as referências a fim de desvendar o mistério maior da criação. (BRAYNER, 1997: 718) Aos poucos, Lúcio submete as paisagens urbanas ao seu olhar de cineasta e cenógrafo, para criar, mais do que descrições, sensações a partir de formas e tons interiorizados – em seu diário lembra que “alguém, há tempos, achou esquisito que eu afirmasse não ser um escritor, e sim uma atmosfera” (CARDOSO, 1970: 90). A cidade seria o espaço propício para Lúcio fortalecer os liames entre cinema e escrita, através da criação destas atmosferas quase lisérgicas que confirmam ainda mais seu olhar expressionista como artista, além de explorar a possibilidade de as personagens seguirem uma lógica distorcida e dissonante, própria dos sonhos ou devaneios. No anteriormente citado artigo “A metrópole expressionista”, Teresa de Almeida explica um pouco mais a projeção das cidades na escrita cardosiana: Em Inácio e O enfeitiçado, a metrópole desponta para o leitor, em flashes, muitas vezes, caótica, misteriosa ou até fantasmagórica. É como se ela fosse ao mesmo tempo um lugar concreto, ocupando posição precisa num mapa de geografia, e uma região onírica, cujas dimensões e limites parecem alterar-se de forma monstruosa ou dissolver-se de acordo com o estado emocional das personagens, freqüentemente devoradas pela angústia. Sem dúvida, na grande cidade a solidão da criatura cardosiana se adensa, portanto, voltada com freqüência para uma espécie de monólogo ou de discurso interior que lembra certas personagens de Dostoievski, autor considerado precursor do expressionismo. Como Rodion Romanovitch Raskolnikov, em Crime e castigo, que perambula com a consciência culpada por São Petersburgo, metrópole demoníaca, atingida pelo irreal com suas meretrizes, mendigos e indivíduos suspeitos. (ALMEIDA, 1988: 55) As imagens do exterior compõem a descrição das feiras de amostras, parques de diversões, festas populares com fogos, bandas de música, barracas e leilões, multidões nos bares e nas portas dos cinemas e cafés, alternando a luz parcimoniosa dos espaços obscuros e silenciosos com as cores berrantes e o rebuliço das pessoas dos bairros da Lapa e do Centro, como afirma Rogério Palma em sua perambulação febril pelas ruas do Rio. Em Inácio, a narrativa explora o exterior mais do que em outras novelas. Temos o movimento próprio da loucura exteriorizada, quando a personagem procura ambientes fora da clausura do eu no anseio por espaços abertos. As luzes dos fogos, o rumor das gôndolas da roda gigante e o barulho distorcido das caixas de música parecem romper o marasmo de cores e sons da província, fazendo com que Lúcio consiga alternar as zonas de penumbra e sombra com o rasgo incontrolável de luzes, como afirma Rogério: “Estaquei diante de um edifício em construção, olhando os homens que iam e vinham, carregando tijolos ou encarapitados nas altas traves, inteiramente insensíveis ao céu azul, desesperadamente azul, que a mim causava vertigens” (I, 21). Aponta ainda o sol de Copacabana – algo poucas vezes observado na tessitura literária cardosiana, já que sua ambientação é quase sempre pouco afeita à luminosidade diurna –, sentido por Rogério ao lado do seu pai, sentados em um bar: “Nossas melhores idéias, aquelas que acalentamos mais fundamente no âmago do ser, pelas quais vertemos nosso sangue e com que dilapidamos o melhor dos nossos sonhos, não se transformam, não ficam ridículas à luz de um sol tão forte, ante aquele mar que parece encerrar toda a alegria do mundo?” (I, 111). Como afirma Carelli, a respeito de O desconhecido, “a intriga se subordina ao clima” (CARELLI, 1988: 120), o que se torna uma constante em toda sua prosa de ficção, ao notarmos como a narrativa está subordinada a uma ambientação por vezes nonsense e irreal, o que implicou na acusação de que as novelas adotavam um tom forçado e de extremo artificialismo, como lembra André Seffrin, na introdução da reedição da trilogia urbana (SEFFRIN, 2002: 07). Além disso, Lúcio se interessava pelas atmosferas de múltiplas nuances, como se quisesse experimentar efeitos novos e distintos sem subordiná-los a formas estanques, o que explica como de uma cena expressionista possa se dirigir a uma expressão imagética absolutamente kitsch em um mesmo segmento narrativo. Temos, como exemplo, a descrição quase bizarra feita por Inácio Palma de duas imagens pictóricas de gosto um tanto quanto duvidoso, em dos bares freqüentados por ele no gueto, ressaltando desta vez no escritor o olhar do futuro pintor: O ‘Progresso do Méier’ era o meu predileto: havia nele dois grandes painéis a óleo que me lembravam coisas da infância, um jardim cheio de rosas e uma senhora gorda, esvoaçando entre gazes orientais, cercada de bizarros jarrões e polpudas almofadas. O primeiro desses quadros, com suas grandes flores coloridas e artificiais, lembrava-me o tempo de colégio, os desenhos que eu fazia com tanto esforço, as flores e as borboletas que ideava com sacrifício. Não sei se era o tamanho exagerado ou a disparidade das cores, fantásticas, que me transportava a essas distantes paragens – mas indubitavelmente aquelas pinturas guardavam um pouco do exagero e da fantasia que povoavam a nossa infância (...) Havia o segundo painel, o da mulher oriental, e este afagava as minhas mais recônditas inclinações para o luxo e o bem-estar. Digam o que disserem os entendidos e os esnobes, o bom gosto para mim sempre foi representado mais ou menos de maneira idêntica, almofadas e jarrões, e no meio dessas quinquilharias, uma lânguida e vaporosa mulher que fita um bandolim abandonado no tapete. (E, 177-178) Em O enfeitiçado, as luzes e sons dissonantes dos espaços rumorosos estão presentes na primeira metade da novela, mas vão aos poucos sendo substituídos pela surdina dos ambientes lúgubres e penumbrosos dos desvãos suburbanos. O movimento da loucura exteriorizada segue o viés contrário na segunda novela, quando o escritor inverte a insanidade expurgada do filho para o pesadelo interiorizado do pai. As luzes urbanas se esmorecem em um filme que passa a ser dominado pelas sombras e pela escuridão: “Percorri ruas iluminadas e vielas escuras, atravessei linhas da estrada de ferro, detive-me sob pontilhões e viadutos, contemplando esse triste rebotalho humano que fuma e se esconde sob as arcadas, à sombra das pilastras” (E, 217). A projeção da atmosfera noturna atinge também as residências: “Cerradas, envoltas nas protetoras sombras da noite, pareceram-me absurdas, vazias de sentido, monstros inertes aglomerados na escuridão” (E, 227). A novela passa a ter uma expressão medonha típica dos ambientes mais decaídos: “Becos mal iluminados atraíam a minha atenção: neles, crianças mal vestidas brincavam ou ensaiavam as primeiras letras do alfabeto e do vício” (E, 217). Lúcio adensa os contornos de uma paisagem urbana abandonada por Deus, onde a loucura preenche os céus das cidades: Edifícios, muralhas, casas, lojas, salas de assembléia, conselhos, fortalezas e prisões, erguiam-se formando um vasto mapa traçado pela ambição humana. E era impossível não sentir que um minúsculo elemento perturbava o andamento normal das coisas, que um pequeno órgão lacerado e triste, impotente na cegueira dos seus movimentos, palpitava sob os escombros daquele pesadelo. Surda, como uma vaga soterrada, a loucura viajava insone sob a laje dos edifícios. (E, 218) O mesmo movimento de interiorização pode ser observado em Baltazar, quando Adélia se sente nostálgica ao lembrar do encanto que sentia ao cair da noite, quando “os bondes pejados passavam junto a mim em demanda dos lares trancados e hostis, e as fachadas dos cabarés e das casas de diversão acendiam o seu olho luminoso e quente, olhando as calçadas onde transitava um triste rebanho à cata de prazeres” (B, 289); apesar disso, as impressões da personagem logo resvalam para os ambientes fechados e recônditos, ao apontar que “durante anos, sufocada nos quartos mais estreitos e nos ambientes mais sórdidos, eu esperara em vão que a luz salvadora surgisse” (B, 290), ou ainda ao dizer “desses quartos suspeitos e imundos, em cujas janelas estrangeiras tantas vezes me debrucei, sondando aflitamente a escuridão sem remédio, os tetos sujos, como se fosse possível que uma vez, uma só vez, alguém chamasse o meu nome do outro lado...” (B, 290). São os eternos espaços de extrema tristeza e desolação que o autor expõe em seus livros; não obstante, pelas novelas urbanas, tais espaços encerram o jogo interior-exterior sob a possibilidade de a moral reacionária ser ultrajada. O desregramento exteriorizado possibilita a Lúcio Cardoso impor a insanidade de suas personagens citadinas contra o marasmo do universo moralizante e de suas almas doentes de mofo e tédio, como veremos no próximo tópico. 4.3 Das sacristias para os bares: a ruptura com os espaços de clausura e opressão Se a atmosfera das cidades ainda permanece carregada de signos intrincados, tal como aqueles observados nas novelas da província, a obsessão de Lúcio Cardoso pela vocação imanente do homem para o Mal assume novos matizes quando escapa da clausura de fazendas decadentes ou da sacristia de igrejas mineiras para a penúria dos bares suspeitos e da zona de prostituição carioca da cidade onírica. Temos cada vez mais a projeção do Lúcio desregrado e boêmio, como se o autor aproveitasse suas próprias digressões noturnas para deslindar a loucura e a derrocada moral de suas personagens citadinas. Cada vez mais atraído pelas paisagens marginais, a cidade permitiria a Lúcio ceder momentaneamente a seus impulsos transgressores, longe de sua eterna Minas Gerais introjetada: Não sei, é claro, se são estes os caminhos em que deveria me arriscar, mas geralmente eu me arrisco em todos, sem me prender a nenhum. Tudo é perigoso, para quem sofre vertigens. Mas para quem não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom para ser visto de perto. (Digo TUDO: as casas cheias de sombra e promessas aliciantes, os grandes becos da nevrose, o tóxico, os olhos insones do ciúme, as renúncias nas sacristias afastadas, os livros da magia, os claros escritórios do jogo e da ambição, o inimigo subterrâneo que nos saúda, a prostituta que nos recebe sem suspeita, a conversa que pode decidir o futuro, TUDO) (...) Decerto essas experiências nos envelhecem, quando a elas vamos sem nenhuma pureza de coração, quando as consideramos uma finalidade. Mas quando as aceitamos como uma simples possibilidade à nossa revelação, são elas, exatamente, que nos garantem a permanência do dom da mocidade. Elas é que nos conduzem perpetuamente a novas paisagens, que nos auxiliam a afugentar o espectro macio do sono, e nos desvendam implacavelmente os cimos mais raros do perigo. (DC, 28-29) Em uma espécie de flânerie bem mais vertiginosa e febril, projetada pelos devaneios de Inácio e Rogério Palma, Lúcio encontraria possibilidade de expandir seu desregramento e adensar ainda mais o estado de insanidade, com entrechos conduzidos às raias da incongruência e inverossimilhança que, como vimos, tornou-se alvo de críticos e detratores literários. Estabeleceria também, a partir disso, uma intrincada relação entre a loucura e a letargia moralizante do homem moderno, como afirma o jovem Rogério, desperto em estado de desvario do marasmo da vida regrada: “Adoeci de tanta mediocridade” (I, 30). E completa: “Não acredita que se possa morrer de mediocridade? Pois morre-se. Os médicos é que dão nomes diferentes, mas estou convicto de que cada doença corresponde exatamente a um estado de pressão moral que muitas vezes é ignorada pelo próprio paciente” (I, 30). Rogério parece acordar de uma espécie de torpor, ao errar pelas ruas da cidade em absoluto delírio, ciente de que “não há casas, nem ruas, nem homens, mas idéias, apenas idéias em ação, idéias que se matam, que amam e raciocinam, idéias que envelhecem de repente e outras que aos poucos vão não valendo mais nada (...) O que é preciso é ter sempre idéia mais forte” (I, 22). Este jovem monstro moral de 19 anos se reveste de força alucinatória para colocar seus planos em ação e encontrar seu pai, impondo sua imagem de metralhadora giratória: “O amor da humanidade, estou cuspindo em cima dele! Os homens, para mim são seres grotescos e miseráveis, acima de quem pretendo me colocar bem ostensivamente...” (I, 28). Rogério e Inácio Palma são as personagens mais perversas das narrativas cardosianas por proclamarem a plena voz a capacidade imanente do homem para o Mal, o que realmente representa um pensamento tenaz do próprio Lúcio Cardoso e do seu pessimismo, segundo a condição do perverso dada por Patrick Vignoles em A perversidade: O perverso é um ser que se comporta não somente como se quisesse o mal, mas como se quisesse que o mundo inteiro fosse mau, que “todo o mundo” fosse maldoso. A perversidade é o estado corrompido e corruptor do homem que deseja a corrupção do gênero humano e que quer, por assim dizer, administrar a prova de que o mal é o estado de natureza do gênero humano, ou até mesmo da natureza profunda da Natureza. Sou perverso quando sinto um “prazer maligno” em representar minha própria maldade como a verdade do homem, em “ver o mal em tudo”. O perverso é pessimus, que em latim quer dizer “muito mau”, e é pessimista: o pessimismo é uma atitude maldosa em relação à natureza humana, uma doutrina que diz o mal e a fatalidade do mal como se ela a desejasse secretamente. É justamente o perverso que afirma que o homem deseja o mal. (VIGNOLES, 1991: 66) Rogério e Inácio apontam dramaticamente o dedo para a crueldade e miséria humanas como se representassem em um palco imaginário para um espectador estarrecido. Não basta que seja realizada a louvação da maldade, porém; ela deve ser plenamente alcançada para restaurar as forças subjugadas do homem, como notamos anteriormente no caso do assassinato de Paulo em O desconhecido, quando José Roberto é capaz de devassar seus limites mais obscuros, praticando efetivamente o Mal. Lúcio aproveita o ensejo do discurso de Rogério Palma para rechaçar as dissimuladas noções de bondade e altruísmo, estes eternos sucedâneos enfraquecidos da falta de viço para o Mal – o que faria Rogério Palma vociferar: “O mundo apodrece de caridade” (I, 29) –, como podemos observar a partir de Genealogia da moral (1887), de Friedrich Nietzsche: Se os oprimidos, pisoteados, ultrajados exortam uns aos outros, dizendo, com a vingativa astúcia da impotência: “sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos” – isto não significa, ouvido friamente e sem prevenção, nada mais que: “nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante; mas esta seca constatação, esta prudência primaríssima, que até os insetos possuem (os quais se fazem de mortos para não agir “demais”, em caso de grande perigo), graças ao falseamento e à mentira para si mesmo, próprios da impotência, tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos – isto é, seu ser, sua atividade, toda a sua inevitável, irremovível realidade – fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito. (NIETZSCHE, 2006: 37) Anos depois, Inácio continuaria a alimentar um pensamento sucedâneo diante da vida decomposta pela mediocridade e pelas misérias ditadas pela “má consciência” (NIETZSCHE, 2006: 72), quando afirma que “os corações batem sem alma, um imenso véu de neblina e tédio se estende sobre o mundo. Mundo mofado, mundo de sono e odiosa quietude” (E, 171). E completaria que “esse tóxico que altera a paisagem inteira, aos poucos nos embrutece e nos transforma em rígidas estátuas de cor cinza, monstros de mofo e anestesia, cidadãos de um vasto reino onde prevalece a falta de energia e de finalidade” (E, 171-172). O tédio, a mediocridade, o excesso de altruísmo hipócrita que ascendeu no homem católico e moderno, em uma “tartufice dos mansos animais domésticos” (NIETZSCHE, 2006: 55), remetem uma vez mais a Genealogia da moral: O ensombrecimento do céu acima do homem aumentou à medida que cresceu a vergonha do homem diante do homem. O olhar pessimista enfastiado, a desconfiança diante do enigma da vida, o gélido Não do nojo da vida – estas não são características das épocas de maior maldade do gênero humano: como plantas pantanosas que são, elas surgem apenas quando há o pântano que necessitam – refiro-me à moralização e ao amolecimento doentios, em virtude dos quais o bicho “homem” aprende afinal a se envergonhar de seus instintos. A caminho de tornar-se “anjo” (para não usar palavra mais dura) o homem desenvolveu em si esse estômago arruinado e essa língua saburrenta, que lhe tornaram repulsivas a inocência e a alegria do animal, e sem sabor a própria vida – de modo que por vezes ele tapa o nariz diante de si mesmo, e juntamente com o papa Inocêncio III prepara, censura no olhar, o rol de suas repugnâncias (“concepção impura, nauseabunda nutrição no seio materno, ruindade da matéria de que se desenvolve, cheiro hediondo, secreção de escarro, urina e excremento”). (NIETZSCHE, 2006: 56-57) Ao mergulhar nas paisagens marginais, Lúcio estabelece nova proximidade com o escritor Jean Genet. O decadente que desafia a Deus e o incenso da sacristia pelas impressões do ultrajante Inácio Palma – “criação de um Deus impotente para arrastar suas criaturas até a luz plena, ali jaziam os destroços de sua visão, consciências vivas e visionárias cerceadas de todos os lados pela doença, pela fome, pelo tédio, pelo vício e pela morte” (E, 227) – se aproxima do entendimento da vocação amoral do autor de Diário de um ladrão. Se o papa promulga a imundície que instiga o homem a ter vergonha de si mesmo, os malditos, impuros e criminosos de Genet aparecem para reabrir acintosamente as chagas diante da insipidez do homem domesticado: Assim, por um grosseiro subterfúgio, eis que estou falando novamente dos mendigos e dos seus males. Atrás de um mal físico real ou fingido que o distingue e o faz esquecer, mais secreto um mal da alma se dissimula. Enumero as chagas secretas: Os dentes estragados, O hálito fétido, A mão cortada, O fedor dos pés etc. Para escondê-las e estimular o nosso orgulho, tínhamos: A mão cortada, O olho vazado, A perna de pau etc. Enquanto trazemos sobre nós as marcas da degradação, somos uns degradados, e mesmo que não nos abandone a consciência da impostura, isso de nada nos vale. Só quando utilizávamos o orgulho imposto pela miséria é que provocávamos a piedade cultivando as chagas mais nojentas. Nós nos tornávamos uma censura à felicidade de vocês. (GENET, 1986: 52) No Progresso do Méier, um dos bares frequentados por Inácio, a personagem reconheceria “em cada um daqueles rostos isolados, todos eles exprimindo paixões diferentes, o tédio, o ódio, a cobiça, a insatisfação, a carne, o orgulho, a fantasia e a vaidade” (E, 178). De algum modo, Lúcio pode exteriorizar modos de confundir a errância de Inácio pelo mundo marginal às possibilidades de um discurso livre do entendimento do que o homem considera justo e sensato: “Muitas vezes vi-me apenas como uma força bruta e sem destino, independente dos rigores das leis e dos sábios mandamentos instituídos como a base sacramental da sociedade” (E, 215). Já em um estabelecimento com o curioso nome Hotel da Lanterna, Inácio encontra uma personagem que bem seria uma espécie de vingança pessoal do seu criador aos tempos de sacristia mineira: No fundo do corredor, por detrás de uma cortina esburacada, vejo surgir de repente uma figura impressionante: é um rosto chato, intensamente pálido, onde dois olhos miúdos, vivos, examinam tudo com assustada curiosidade. Ao meu ver, o homem que se achava evidentemente sentado, levanta-se, suspende a cortina – percebo então que se trata de um padre, que aos meus olhos atônitos ainda conserta a batina desalinhada e suja. Não há nenhum acanhamento nos seus gestos, antes me fita com insolência, ajeitando a roupa com calma, os dedos finos correndo ao longo das pregas que descem até o chão empoeirado. Em certo momento, como ele se voltasse em direção ao bureau do gerente, percebi que trazia na face esquerda uma enorme cicatriz, profunda e recente, um talho a navalha que lhe desfigurava completamente a expressão do rosto (...) Vi então, no fundo, num dos quartos menores, dois pés calçados de botinas pretas que ultrapassavam o foro de chita, pertencentes a alguém que se achava deitado, mas cujo tamanho insólito ultrapassava as medidas exíguas da dependência. Não duvidei de que se tratava novamente do padre, entregue às influências mágicas do tóxico. (E, 223) Além da sua intenção deliberadamente provocadora de ostentar o halo da santidade a chafurdar no deleite dos vícios noturnos, notamos como as novelas cardosianas exploram o uso de tóxicos e do álcool como catalisadores do estado alucinatório – Mario Carelli lembraria, em Corcel de fogo, que “o olhar do alcoólatra sobre o mundo” (CARELLI, 1988: 130) seria uma das obsessões de Lúcio. Lúcio foi um consumidor contumaz de bebidas e anfetaminas, como atesta sua irmã Maria Helena Cardoso em Vida vida (1973) e como expõe sutilmente o autor em alguns fragmentos de Diário completo. Neste último, Lúcio cita o contato com jovens rapazes (ele sabia bem como não dispensar a companhia de mancebos desregrados), que rompiam ampolas de kelene (espécie de anestesiante que serviria de nome para a personagem de O viajante). Durante suas incursões noturnas, Lúcio se impressionava como tais jovens burgueses “a isto se atirem com gritos de prazer e estremecimentos animais: como que da sombra alguma coisa mais primitiva e mais antiga do que o próprio homem, acorda em suas faces necrosadas o gosto do imundo” (CARDOSO, 1970: 195). Esta imagem dos rapazes – que, embora tenha um certo tom pseudomoralizante em seu diário, causava intensos estados de fascinação no escritor – seria retomada durante a peregrinação de Inácio pelos subúrbios cariocas em busca do filho: Às vezes, através do movimento e da agitação que reinava nessas sedes do vício, julgava distinguir uma fisionomia que me lembrava qualquer coisa – ao me aproximar, no entanto, verificava que se tratava apenas de um jovem da sua idade, pálido, sugado pelo prazer, pelo álcool e pelo esforço das noites alegres. Instintivamente comparava-os comigo mesmo – e tinha certeza de que não viveriam muito, pois entregavam-se sem resguardo à alegria, num furor de quem visasse apenas a autodestruição (...) Não, esses jovens não se divertiam – consumiam apenas, em vastas horas de delírio e esquecimento, a tristeza de viver. Eram velhos sem esperança, restos humanos que haviam tombado cedo dos galhos sem seiva do conhecimento. (E, 200) Lúcio não desconhece o comportamento típico dos “centros viciados da cidade”, o que acirra ainda mais sua admiração pelo mundo marginal e pelos jovens criminosos do bas-fond, fazendo Lúcio-Inácio apreender “que miserável comédia representa a existência neste mundo, que sonho de escuridão e obscenidade é o caminho do homem sobre a terra” (E, 167) e intensificar o desejo de devassa moral: “Não, nossa única obrigação é sermos fortes, intratáveis, selvagens na satisfação dos nossos desejos e fantasias” (E, 167). Por mais que se refira a “uma profunda fraqueza” ligada a instintos de ordem sexual (principalmente o homoerotismo), a licenciosidade está plenamente relacionada aos modos de transgressão, fazendo com que Lúcio subscreva por linhas sinuosas sua atenção obsedante pelo castigo ditado aos sujeitos transgressores, sob forma de crime, sangue e violência. Expõe em seu Diário completo: “Esses homens, precisamente esses que vislumbro em meio à multidão, que parece não trazerem a alma nos olhos, mas ausência e frieza. É que, vagarosos, vão impelindo para frente a única identidade a que realmente dão importância, o sexo. É como se carregassem um gigantesco sexo na alma” (CARDOSO, 1970: 278-279). Não obstante, a sexualidade transgressora compõe parte do jogo literário lúdico, das suas zonas de desvelamento e ocultação que alternam sombra e luz sobre esta sua “inquietação de felino” (CARDOSO, 1970: 136). Lúcio joga o tempo todo com estas possibilidades de transgressão, como desvela na ambivalência/ambigüidade de sua própria imagem em Diário completo: “Estranho dom: Deus deu-me todos os sexos” (DC, 295). Afirma ainda: “Nada renego da minha natureza, porque daquilo que me faz, de merda e sangue, construir-me-ei definitivo e avaro” (CARDOSO, 1970: 202-203). As possibilidades de transgressão do universo marginal esboçam novas referências de Genet em Diário de um ladrão: “Júpiter rapta Ganimedes e o viola: eu poderia ter-me permitido todas as devassidões. Possuía a elegância simples, a desenvoltura dos desesperados. A minha coragem consistiu em destruir todas as habituais razões de viver e em me descobrir outras” (GENET, 1986, 167). A forma como oscila diante do crime e da violência apenas sublinha de algum modo seu fascínio desmedido pelo mundo marginal – ainda em Diário completo: “Esta perpétua tendência à autodestruição... Sim, de há muito ela existe em mim e eu a conheço como um doente acaba conhecendo o próprio mal. É incalculável o número de ciladas que invento para me perder” (CARDOSO, 1970: 30). O terror diante da loucura e da licenciosidade apenas intensifica o êxtase com que Lúcio se antepõe emocionalmente à sua vocação para os excessos, como lembra mais uma vez Bataille: Para ir até o fim do êxtase em cujo prazer nos perdemos, devemos sempre colocar o seu limite imediato: o horror. A dor dos outros, ou a minha própria, aproximando-me do momento em que o horror me atacará, pode me fazer chegar ao estado de felicidade próximo ao delírio, e também não há nenhuma forma de repugnância em que eu não veja a sua afinidade com o desejo. Não que o horror nunca se confunda com a atração, mas se esta não pode inibi-lo, destruí-lo, ele termina por reforçá-la. O perigo paralisa, mas se não for tão forte, pode excitar o desejo. Não alcançamos o êxtase, a não ser se ele não estivesse tão distante, na perspectiva da morte e do que nos destrói. (BATAILLE, 1987: 248) Baltazar, a terceira parte da tríade “O mundo sem Deus”, que possivelmente teria sido publicada na primeira metade dos anos 1960, desvela os rumos que Lúcio daria às narrativas vividas no universo marginal. Desta vez, quem perambula erraticamente pelos cafés, dancings e bares considerados de baixa reputação é a arruinada Adélia de Val-Flor, e são delas impressões muito próximas àquelas que Rogério e Inácio tiveram nas novelas anteriores: “sentia que todas as cidades secretam dessa espécie noturna e desgraçada de seres, desses obscuros destroços que se arruínam pelas esquinas, ao longo de uma vida inteira de febre e de procura...” (B, 290). Importante apontar um novo dardo provocador de Lúcio ao destacar o monólogo de uma prostituta, sem escamotear para o leitor o modo como ganhava a vida nas ruas, mesmo que vistos com amargura pela protagonista: Eu caminhava, as ruas iam ficando para trás de mim, os quarteirões que me eram tão familiares, as esquinas onde tantas vezes me postara à espera das vítimas incautas... dessas eternas vítimas que afinal são os nossos algozes e os duros senhores de quem dependemos. Eu caminhava, e ao meu pensamento subia a lembrança de outras mulheres que eu vira em situação mais ou menos idêntica, tristes, isoladas, com essa sensibilidade doentia e viva dos que rolam a vida inteira à mercê das mais duras contingências... Lembrava-me de tantos rostos isolados e frios, e a mim mesma perguntava onde tinham ido, se haviam tomado o mesmo caminho que eu, se haviam conseguido suportar o inenarrável vazio dessa vida sem esperança e sem horizonte de espécie alguma... (B, 289) Apesar do modo melancólico e por vezes amargo que Lúcio descreve os ambientes da Lapa, Cinelândia ou outras regiões ainda mais recônditas do bas-fond, notamos sempre este jogo cardosiano que subscreve sua fascinação oblíqua por tais ambientes em meio à atmosfera decadente dos noctívagos em busca de prazeres, e Baltazar confirma como Lúcio teria mantido nas narrativas urbanas as mesmas impressões agônicas pelos olhos de Adélia: Naquela noite, entrei num dos primeiros bares que encontrei, pequeno e acanhado, com vistas de Portugal desenhadas nas paredes. O movimento já era intenso, grupos de marinheiros bebiam e discutiam acaloradamente, mulheres transitavam com indolência, velhos de olhares cúpidos seguiam as pessoas que passavam. Não sei se já conhecem toda essa fauna deserdada e insone que freqüenta os bares boêmios – mas é fácil identificá-los, pois possuem todos qualquer coisa em comum, certa suavidade nos traços estirados, na palidez e no brilho exangue dos olhos. São os afilhados da noite, os filhos diletos dos vícios fáceis de esquina, os tristes anjos desses paraísos efêmeros que a madrugada proíbe. Era a eles que eu vinha misturar-me, sem nenhuma piedade para os meus nervos castigados, disposta a defender o meu direito de viver. (B, 320) Podemos inferir do último fragmento do monólogo de Adélia uma frase que poderia ter sido proferida por seu próprio criador: pelos “afilhados da noite” Lúcio sempre se misturou, defendendo o que julgava ser seu direito de gozar as massas noturnas, seus perigos e prazeres. Foi algo que exasperava sua irmã Maria Helena, ao lembrar que, após uma pequena crise que funcionou como um aviso prévio do derrame que teria meses depois, Lúcio ficou apenas algum tempo longe das bebidas e “bolinhas”; logo estaria noite adentro pelos bares, desaparecendo dias seguidos, sempre intransigente e fazendo somente o que lhe bem aprouvesse (CARDOSO, 1973: 69). Fosse negando ou regozijando a noite e suas criaturas, foi pela descida ao mundo marginal que Lúcio Cardoso encontrou modos modo de rechaçar as formas datadas de encarar a condição moral. Além disso, resgata por suas personagens marginais um tipo de personificação renegada que completa uma natureza humana que outrora só foi considerada parcialmente. Persegue um modo infame de ascese aos olhos dos homens ordinários, considerado por ele imprescindível para que o homem seja encarado em todas as suas possibilidades: O mundo novo não exige fé, nem confiança e nem entusiasmo, e nem nenhumas das celebrações que faziam e fazem os atributos do mundo condenado; o que ele exige é uma tal soma de idéias e sentimentos violentos, o que impõe é uma ressurreição de qualidades durante tanto tempo soterradas e tidas por secundárias ou aviltantes, que pode-se dizer que realmente um outro homem surge, e nele se confundem as noções clássicas do bem e do mal, não para situá-lo “além”, o que pressupõe o “outro”, mas para fazer do “mesmo” o ser exato que ele é, o homem das medidas equilibradas e não o das medidas alteradas para mais ou menos. (DT, 747) Pelo fragmento acima, notamos como o sujeito desregrado do universo marginal e o habitante enclausurado do espaço limitado da província estão diante um do outro como em um jogo especular: as imagens, apesar de invertidas, são a mesma em essência e se completam menos em representação do que em definição da vocação do homem para a tragédia. Pela gana em expor o humano em sua completude, busca o homem citadino como complemento do provinciano, formando dois sujeitos aparentemente díspares caminhando em linhas paralelas que convergem para o abismo, mesmo que a intensidade de suas paixões seja exposta por modos distintos. Ambos persistem na destruição de si e do outro e se fundem para formar o homem em sua totalidade – a totalidade tal como Lúcio Cardoso acreditava, embrenhada pelo Mistério e pela disposição para o Mal. CONCLUSÃO Ouvi o nome Lúcio Cardoso de G., que nunca pôde se esquecer do peso dos móveis, do cheiro das salas fechadas, das janelas que nunca se abriam no casarão decadente dos Meneses. Lúcio veio como um aprendizado do nome amalgamado ao susto da descoberta amorosa e, pouco tempo depois, iria se unir à fatalidade do primeiro amor gorado. Para o fracasso do afeto, restaram apenas dois elementos: a dor e o nome. Já que o primeiro me seria dado involuntariamente ao longo dos anos, fui atrás do segundo, pela curiosidade que aquele canteiro desconhecido de violentas me causava. Após quase dois anos de busca, me deparei com o livro. Passado o olhar estarrecido do leitor incauto diante da escrita cardosiana, surgiram inquietações que se estenderam ao longo de sete anos de pesquisa, e que não poderiam ser compreendidas tão facilmente. Inquietações curiosas se pensarmos que eu me dedicaria mais outros sete anos, com a certeza plena de que aquele texto de fruição dos primeiros anos se tornou efetivamente um texto de prazer. Já apartado de sua ligação ao primeiro abismo amoroso, era difícil ler os textos cardosianos sem levantar a cabeça, barthesianamente falando, perseguido pela mesma pergunta: Por que tanto interesse por Lúcio Cardoso? Nunca obtive prontamente a resposta, e espero sinceramente nunca obtê-la tão facilmente, pois a errância em busca do mistério renovará continuamente meu interesse por ele. Um pensamento que saciasse minha dúvida se tornou um pouco mais clarividente durante a presente conclusão, e considerá-lo se tornou uma alternativa diante da insipidez e inutilidade de se concluir um trabalho de escrita, já que o pensamento concluído de um texto literário é francamente impossível, e sua afirmação é absolutamente contrária à suspensão de sentidos que a tessitura literária encerra. O mote perseguido ao longo do estudo consegue elucidar em parte minha ligação com Lúcio. A provocação certamente é uma das pistas que me conduzem a este caminho de trilhas oblíquas e sinuosas. Longe de ser um provocador nato, face à interdição pesada da criação mineira, a provocação sempre me instigou, quaisquer fossem seus níveis, tanto na dramaturgia, no campo cinematográfico e no espaço literário. Apontamos uma vez mais como a provocação é imanente ao desejo violento do escritor em expurgar o homem de sua mediocridade – ou pelo menos apontá-la cruamente, lançando luz sobre seus mecanismos lentos de destruição. Como vimos, as almas mofadas carregam signos da abnegação que corroem em surdina até a completa ruína de si mesmas e dos outros. O impedimento e a impossibilidade são motivos de grande infelicidade, o que explica Minas ter se tornado um alvo tão evidente para Lúcio, pois o massacre moralizante tornou (e torna) os mineiros menos livres e mais enclausurados em si mesmos, principalmente no que tange aos eternos tabus mineiros, como família, sexualidade e religião. Lúcio elegeu a provocação como a força-motriz para o susto essencial, possibilidade que o sujeito encontra de romper o estado larval que Lúcio-Nietzsche tanto apontaram no espírito moralizado. Acredito também que Lúcio me atraiu pela intensidade de suas personagens à beira do limite, o que desperta uma sensação de passionalidade e tragédia amorosa que sempre me inquietaram. A aversão ao discurso moralizante, também tão afeito aos padrões da tradicional família mineira, foi uma vingança pessoal do autor, e acabou se tornando uma forma de compreender algumas de minhas próprias interdições. O embate com Lúcio não foi fácil nos primeiros tempos, mas acredito que tenha aprendido a jogar com ele e a lidar com a verdade lúdica do seu texto, única forma de driblar o mal-estar com que ele pretende contaminar o leitor. Graças a isto, consegui impor o afastamento necessário para o estudo de tese, inclusive ao encarar com menos parcimônia as limitações e as deficiências do escritor que, embora mais translúcidas hoje, de modo algum afetam a qualidade do seu trabalho. De qualquer modo, torna-se necessário o afastamento para entender como as personagens são joguetes para aliviar a obsessão cardosiana – estratégia para impedir o leitor e estudioso de se tornar mais um deles. Lúcio carregava em si traços de suas personagens, mas não se tornou uma delas; tudo pertence ao jogo que a prosa de ficção expõe quando nasce das mãos de um escritor polêmico, principalmente quando ao próprio autor agrada a imagem do outsider. A loucura, o desregramento, a transgressão sexual de suas personagens me atraíram, mas a intensidade dessas experiências pertence ao jogo ficcional. A paixão e a pesquisa oscilam entre a proximidade e o afastamento em proporções necessárias ao exercício da tese. Não obstante, mesmo como estudioso que precisou se safar do mal-estar cardosiano, acredito ser muito difícil sair incólume das leituras cardosianas. Livros como A luz no subsolo ainda provocam aquele assombro, aquele bruto soco no estômago referido por Mário de Andrade em carta ao escritor mineiro. A vertigem pertence às pretensões que Lúcio tanto perseguiu deliberadamente, e que motivou todo o presente estudo. Se hoje ele não está relegado à marginalidade como outrora, persiste o impacto instigado por sua perturbadora escrita de introspecção. Lúcio conquistou seus intentos e, sob aquele desejo dissimulado de todo escritor de permanecer eternizado, seu nome configura entre os principais escritores brasileiros do século XX. Apesar da última deixa, algo permanece vago entre as linhas desta conclusão. Penso com certo ceticismo no espaço que a escrita de Lúcio Cardoso terá futuramente e, indo um pouco mais além, me questiono sobre o lugar de toda a literatura daqui alguns anos. Sob o risco evidente de emitir um discurso fatídico, encaro os percalços que já são enfrentados pelo discurso literário. Aos poucos sendo banida do ensino médio e dos processos seletivos para o ensino superior, vista com crescente desdém pelos estudantes universitários, a literatura aos poucos está sendo relegada aos círculos acadêmicos, considerados elitistas pelo restante da sociedade. Entre os membros inerentes à área de pesquisa científica, o estudo de teoria literária é considerado quase uma excentricidade, tornando o pesquisador literário um lobo solitário em meio à falta de cumplicidade de alunos e demais colegas de profissão. Não culpemos alunos e leitores pela falência de todo esse processo, porém; escritores passaram a conviver arduamente no chamado espaço profano de conflito, onde prevalecem a competição e a disputa por poder e sucesso. O ego de muitos autores, mesmo os que ainda se encontram em falsa ascensão, antecede a competência e originalidade para o exercício de escrita. Lembremos ainda que o degringolar do discurso literário parece recrudescer com o tipo de literatura comercial em voga, a rejeitar sistematicamente a profundidade ontológica e metafísica em favor de uma superficialidade forjada. As livrarias hoje são espaços de bem-estar acoplados aos shoppings, com livros transmutados em souvenirs, obrigados a ostentar a cópia do cartaz do filme por terem-lhe inspirado o roteiro, como necessidade de chamariz para a venda e com a incômoda sensação do texto ter se tornado o pastiche da fruição cinematográfica. Diante das prateleiras abundantemente coloridas, com toda a opulência do design que transforma livros em objetos de fetiche, graças a capas luxuosas e ao acabamento editorial impecável, percebemos o artifício da indústria em dissimular um conteúdo que já nos vem apodrecido. O livro hoje é a própria metonímia da sociedade: exibe a beleza fácil do mundo para rechaçar-lhe a interioridade decadente. Não pretendo focar o aniquilamento literário em seu sentido ideológico e econômico tão somente. Não aponto unicamente a deficiência da leitura, famigerado chavão da precariedade do ensino em nosso país. Se a leitura segue uma trilha tortuosa na atualidade, há de se pensar no tipo de literatura singular engendrada por Lúcio Cardoso. Explicitamente densa e ontológica, consoante observamos ao longo de nosso trabalho, nos perguntamos onde estarão hoje os interessados por este tipo de escrita de introspecção. Face à arte de prazeres, superfícies e intensidades fugazes, ao predomínio voraz do texto de prazer sobre o texto de fruição, os adeptos da escrita cardosiana estão cada vez mais incluídos entre aqueles que buscam a própria expiação existencial pela leitura. Tal constatação não é nenhuma surpresa, no entanto; lembremos de Octavio Paz, ao apontar como as defesas morais e psicológicas na contemporaneidade enfraqueceram, tornando o homem ainda mais vulnerável e despreparado do que outrora. Podemos duvidar até que ponto um sujeito estaria realmente preparado para um mergulho ontológico por interesse próprio, nesta tortuosa busca voraz de si mesmo, sem estar submetido ao alento de drogas, do consumo e dos deuses salvadores, como um Admirável Mundo Novo imerso em crescente barbárie tecnológica. Se o consumo de inibidores de angústia aumenta vertiginosamente, penso curiosamente em Lúcio como o antípoda dos ansiolíticos por excelência. Lúcio está anos-luz de distância de qualquer política de apaziguamento para os espíritos. Não penso nos membros do espaço acadêmico, para quem Lúcio será sempre bem quisto e objeto de admiração, mas face àqueles que estão em formação, entre os conhecedores incipientes de literatura, ou mesmo para os insipientes que ainda insistem em relegar a escrita cardosiana ao limbo literário. A expectativa de incluir o nome de Lúcio entre os compêndios de ensino está cada vez mais distante, com o estudo literário sendo aos poucos extinto das escolas. No curso de Letras observamos um contínuo desinteresse de muitos alunos que saem da graduação desconhecendo até mesmo o nome do autor, o que não nos provoca nenhuma indignação, dado o desdém paradoxal de muitos alunos de línguas por literatura. Mas o discurso literário no ensino, se nos parece de antemão estar em seus estertores, indica o caminho da estrada de tijolos amarelos onde encontraríamos um foco de possibilidades. O texto literário lido em sala de aula hoje parece algo exótico para muitos; aos poucos, fortalecido pelo poder da enunciação, torna-se sedutor aos alunos distantes deste universo, instigados pelo gozo desconhecido do espanto essencial. O primeiro susto do nome ligado à descoberta amorosa, a paixão que transforma o texto de fruição em prazer. No espaço de enunciação, os textos provocadores são catalisadores eficazes para romper a letargia emocional em que muitos alunos se encontram. A provocação será primordial no processo de revitalização literária a partir de agora. Não podemos deixar de desejar que a trajetória acadêmica de professores e pesquisadores possa abrigar o escritor mineiro em um espaço vivo de enunciação, provocando espíritos atraídos por sua escrita perturbadora. Oxalá o Príncipe Esfolado e Esfarrapado seja sempre o germe do desequilíbrio, da agonia e do mal-estar, pois assim sempre desejou. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Teresa de. A metrópole expressionista. 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