MEMÓRIA
HÁ 150 ANOS PASTEUR DESCOBRIA QUE A FERMENTAÇÃO RESULTA DA AÇÃO DE MICRORGANISMOS
Golpe fatal na
geração espontânea
Em 1857, o periódico Memórias
das Sociedades de Ciência, Agricultura
e Artes de Lille, da França, publicou
um artigo que se tornaria célebre:
‘Memória sobre a fermentação
do ácido lático’. Nele, seu autor,
Louis Pasteur (1822-1895), descrevia
pela primeira vez na história
que organismos microscópicos
transformavam açúcares em moléculas
como o ácido lático, responsável pela
Há 150 anos
fermentação do leite e outros alimentos.
Embora não tenha sido a primeira
nem a única contribuição de Pasteur
para a ciência, foi certamente
um feito notável, que pôs fim
às idéias equivocadas sobre geração
espontânea e sobre a não-participação
de microrganismos na fermentação.
O eminente cientista francês
costuma ser mais lembrado pelo
desenvolvimento da vacina anti-rábica
ou pelo processo de esterilização
conhecido como pasteurização.
58 • CIÊNCIA HOJE • vol. 39 • nº 234
Q
uando estudou o fenômeno da fermentação,
Pasteur era um jovem e promissor químico. Ao
analisar estruturas cristalinas de tartarato (sais do
ácido tartárico), ele contribuiu fundamentalmente
para a descrição de propriedades quirais de moléculas orgânicas de origem biológica. Seu interesse pelo
tema se deve ao fato de ter vivido em meio a vinhas
desde os quatro anos de idade, quando a família se
mudou de Dole, sua terra natal, para Arbois, onde
fez seus primeiros experimentos com fermentações.
Aos 13 anos, iniciou uma talentosa carreira de pintor
fazendo um retrato de sua mãe. Aos 20 anos, porém,
já dedicando boa parte do tempo aos estudos, acabou
optando pela vida científica. Não sem antes compor
um último retrato, dessa vez de seu pai.
A contribuição de Pasteur para a ciência começou,
pois, com uma investigação sobre as propriedades
de cristalogênese do tartarato, quando lançou as bases para se entender o fenômeno da isomeria óptica
e sua relação com moléculas quirais presentes em
sistemas biológicos. Denomina-se ‘quiral’ um arranjo de átomos cuja imagem especular não pode ser
superposta ao arranjo original.
Só mais tarde se reconheceu a importância da
quiralidade em sistemas biológicos e sua relação
com o reconhecimento de enzimas e substratos,
hormônios e receptores, drogas e alvos terapêuticos.
Esse princípio de reconhecimento ligante-receptor
(seja DNA-proteína, proteína-proteína ou moléculas
pequenas-macromoléculas) estimula e justifica as
pesquisas sobre estrutura tridimensional de macromoléculas biológicas, sobretudo proteínas. Em
geral, quando se define a estrutura espacial de uma
macromolécula, é possível determinar sua função.
Aliás, tal fundamento é responsável pelo sucesso
de grande parte dos empreendimentos de genômica
estrutural.
Sob o olhar atento do eminente cristalógrafo francês Jean Baptiste Biot (1774-1862), Pasteur selecionou
dois grupos de cristais de tartarato que apresentavam
uma pequena diferença em uma de suas faces. As
propriedades químicas e físicas dessas espécies
moleculares eram idênticas, exceto pelo fato de que
as soluções daí obtidas desviavam a luz polarizada
FOTO FELIX NADAR
MEMÓRIA
em sentidos opostos. Cerca de 30 anos após essa
descoberta – e com o estabelecimento da noção de
‘carbono assimétrico’ – surgia a estereoquímica (parte
da química que investiga a disposição espacial dos
átomos nas moléculas).
Sua pesquisa se volta então para o entendimento dos processos de fermentação e putrefação, que
geram moléculas quirais. Ele partiu da premissa de
que os ‘fermentos’ podiam ser microrganismos, que
interferem na composição química do meio e transformam moléculas. À época, prevalecia a idéia da
geração espontânea, descrita por alguns investigadores renomados, como o biólogo francês Félix Archimède Pouchet (1800-1872), como a capacidade de
surgirem organismos, em meios de cultivo, sem a presença prévia de qualquer outro organismo similar.
Com o auxílio dos famosos balões de colo de cisne,
preservados intactos e estéreis até hoje no museu
do instituto parisiense que leva seu nome, Pasteur
mostrou que a presença de organismos microscópicos do ar atmosférico era a fonte da ‘contaminação’
dos meios de cultivo em contato com o ar. O papel
do oxigênio atmosférico nos processos fermentativos assumiu então importância crescente, e Pasteur,
que analisou simultaneamente a fermentação lática, etanólica e butírica (esta última realizada na
ausência estrita de oxigênio), dividiu os fermentos
em aeróbicos e anaeróbicos. A existência dos primeiros, ao contrário do que ocorre com estes últimos, depende do oxigênio livre retirado do ar.
Marco da microbiologia moderna
Qual a importância do correto entendimento do
processo de fermentação? Na época em que Pasteur
viveu, conceitos essenciais da biologia, como metabolismo ou processos de geração da vida (reprodução), eram vagos ou equivocados. Cerca de um século antes, por exemplo, o microscopista holandês
Anton van Leeuwenhoek (1632-1723) via ‘homúnculos’ no interior de espermatozóides humanos.
Quando publicou sua ‘Memória sobre a fermentação do ácido lático’, Pasteur ensinava química na
Universidade de Lille. As conclusões apresentadas nesse trabalho se chocavam com as idéias de
importantes químicos da época, como os alemães
Friederich Wohler (1800-1882) e Justus von Liebig
(1803-1873), e o sueco Jöns Jacob von Berzelius
(1779-1848), que não aceitavam a hipótese de que
o processo de fermentação resultasse da ação de células vivas. Nessa ‘Memória’, que não tardaria a se
tornar um marco da microbiologia moderna, Pasteur
concluiu que as células eram o ‘fermento’ e que a
fermentação só ocorria na presença de células vivas,
sendo uma exigência natural da vida. Mais tarde ele
concluiria que a fermentação era uma conseqüência
da vida sem ar (oxigênio).
Evidentemente o impacto dessas descrições sobre
a produção e o melhoramento de queijos, vinhos,
cervejas, vinagres e outros
produtos de fermentação
foi notável, o que explica,
em parte, a qualidade de
alguns desses produtos
na França. Pasteur observou também que as
fermentações naturais
podiam ser mistas, mas
cada tipo de fermentação seria produzido por
um único tipo celular.
Além de suas inúmeras contribuições
científicas, outro legado de Louis Pasteur
é o próprio Instituto
Pasteur de Paris, criado em 1887, onde hoje trabalham cerca de 3 mil
pessoas, das quais mais de mil são pesquisadores. O
instituto se dedica principalmente à investigação de
doenças infecciosas, do ponto de vista imunológico
e microbiológico, como Aids (o vírus que a ocasiona
foi ali descoberto em 1983), hepatite B, malária e
tuberculose.
No Instituto Pasteur, gerações de importantes
cientistas se formaram e desenvolveram suas atividades, como François Jacob (1920-) e Jacques Monod
(1910-1976) – cujos trabalhos levaram à compreensão
do controle da expressão gênica – e Georges Cohen
(1920-), que estudou o metabolismo de aminoácidos
na bactéria Escherichia coli.
Há institutos Pasteur em várias partes do mundo, inclusive na Ásia, África e América do Sul. No
Brasil, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é um dos
membros da Rede de Institutos Pasteur no mundo.
Graças aos esforços do governo francês e uruguaio
e da direção do Instituto Pasteur de Paris, acaba de
ser inaugurado o Instituto Pasteur de Montevidéu,
com infra-estrutura e administração que seguem o
modelo da instituição da capital francesa. O novo
organismo expressa a forte ligação entre o Instituto
Pasteur de Paris e pesquisadores sul-americanos, e
sua constituição, fruto da negociação entre governos,
deve ser tomada como exemplo pelo Brasil. Acordos
de cooperação França-Brasil existem há muito tempo
e precisam ser formalizados.
Louis Pasteur
(1822-1895)
Hernán Terenzi
Departamento de Bioquímica,
Centro de Ciências Biológicas,
Universidade Federal de Santa Catarina
janeiro/fevereiro de 2007 • CIÊNCIA HOJE • 59
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