PASSIO SECUNDUM JOHANNEM BWV 245 Johann Sebastian Bach (1685-1750) • Nas investigações acadêmicas sobre a crucifixão de Cristo – considerada separadamente do mistério da ressurreição, por pessoas religiosas ou não - é impossível fazê-lo sem paixão, tanto na aproximação intelectual quanto no envolvimento pessoal. Já se fizeram demais apelos à sua morte, vidas demais foram sacrificadas testemunhando a sua existência, ou como resultado de conclusões tragicamente enganosas sobre o seu significado, para que uma abordagem desapaixonada seja possível. • Sloyan, Gerard S. The Crucifixion of Jesus: History, Myt h, Faith. (1995). In Marissen, Lutheranism, Anti-Judaism and Bach’s St. John Passion, Oxford University Press, viii, Oxford, 1998 O CENÁRIO Antecedentes Históricos O drama da paixão de Cristo é representado desde o início da Era Cristã, em duas formas: dramática e musical, ambas as formas com suas origens na liturgia sacra. Era comum a celebração de importantes momentos litúrgicos, tais como o nascimento de Cristo, a Ressurreição e a Paixão, através de representação dramática, com considerável uso de recursos teatrais, incluindo figurinos, música e efeitos de cena. Estes “dramas litúrgicos” eram vistos como uma importante ferramenta para a educação religiosa do povo. À manifestação mais antiga, puramente dramática, foram acrescentados gradualmente diálogos cantados e frases ou versos interpolados, para enfatizar o conteúdo musical da missa, nas cerimônias festivas. A Paixão Dramática Desde a Idade Média, é sempre representada na igreja – originalmente em latim, textos recitados, intercalados com Cantochão, apresentados solene e reverentemente diante do altar. Mais tarde - em parte pelo uso do vernáculo - há uma crescente secularização e maior realismo dramático. Em função disso, as apresentações são transferidas para a nave e depois para o pórtico da igreja. Essa “tolerância” com a secularização do drama explica-se pelo fato de, na Idade Média, a igreja não ser apenas um local de oração e adoração, mas também a força unificadora – um importante ponto de encontro da comunidade. Os mais antigos “dramas da Paixão” de que se tem conhecimento são em Oberammergau e Thiersee, no Tirol. A tradição de apresentação cênica da Paixão, ao ar livre, mantém-se até hoje. A Paixão Musical A paixão musical é mais antiga ainda que a versão dramática. Desde o século V já existiam apresentações da Paixão, inseridas na missa, durante a Semana Santa. Os 4 evangelistas eram representados: - domingo de Ramos: Mateus - terça e quinta-feira santas: Marcos e Lucas - sexta-feira: João A Paixão Musical – evolução Inicialmente o relato todo era tarefa do diácono, que diferenciava os personagens alterando a voz (tessitura e inflexão) - evangelista: tessitura do tenor - Cristo: baixo - sinagoga (congregação judaica): contralto Manuscrito datado de 1296 contém instruções sobre como apresentar a Paixão: “... A parte do Cristo deve ser cantada com doçura, a do evangelista em um tom formal (sem emoção) e as dos ímpios judeus de maneira forte e áspera” [Gulielmus Durandus (1237-1296) RATIONALE DIVINORUM OFFICIORUM] No século XV foi adotada uma forma de diálogo, com três personagens diferentes: um sacerdote fazia a parte do Cristo, um diácono a parte do evangelista e um subdiácono fazia a sinagoga Uma versão definitiva para a apresentação da Paixão foi publicada em Roma, em 1586, por Guidetti (sob o Papa Sixtus V). Esta sobrevive até hoje. Nesta forma, a P. mais antiga parece ser da Inglaterra – a informação ainda é muito vaga – há mais duas Ps. Provavelmente italianas – data provável: 1490 Outras Paixões importantes no sec. XVI: Orlandus Lassus – Tomaz Luis de Victoria – William Byrd – Em todas elas o texto era em latim. A Paixão Musical na Alemanha Na Alemanha, a transição para o vernáculo foi lenta. O próprio Lutero, no prefácio para a Deutsche Messe (1526), insiste que seja cantada nas quatro línguas: no domingo em alemão – nos outros dias em latim, grego e hebraico. J. S. Bach usou como modelo para suas Paixões, a obra de Johannes Walther, principal conselheiro musical de Martinho Lutero. Esta é considerada a primeira Paixão alemã (datada de 1550). É trabalhada com poucos melismas, para maior clareza do texto. Um detalhe interessante na Paixão s. Mateus de Walther: após a cena da morte de Jesus, há na partitura uma grande pausa, para que a congregação faça a oração do “Pai Nosso” antes de continuar a trama. A Paixão Musical na Alemanha e a “Seconda Pratica” As inovações introduzidas pela Camerata Fiorentina provocam modificações importantes. Segundo Caccini, deve-se “... compor um discurso harmônico, uma música à qual se impõe uma certa restrição em favor das palavras...” A aplicação destas teorias faz surgir a Ópera, cuja contrapartida sacra é o Oratório, sendo a “Paixão Dramática” uma variante do “discurso harmônico” Características: - o recitativo substitui as partes de Cantochão - introduzem-se árias - presença do baixo continuo em todas as partes - introduzem-se os corais luteranos Esta torna-se a forma definitiva. Pietismo Durante o século XVII, a igreja luterana desenvolveu uma postura extremamente intelectualizada e dogmática, ao contrário do que havia sido a intenção de Lutero. As propostas originais da reforma, que pregavam uma aproximação simples e compreensiva dos ensinamentos bíblicos e reconhecimento de uma forma de sacerdócio universal, acessível a todos os fiéis, foram suplantadas por um novo grupo, que clamava para si a absoluta autoridade e direito exclusivo de interpretar a palavra divina, à luz de suas próprias e rígidas teorias. Um ramo calvinista da igreja reformada surgiu com propostas mais humanistas, baseadas em um cristianismo mais prático, na expressão da fé através de boas ações, mais do que pela estrita observância de regras doutrinárias. Jacob Spener (1635-1705) foi o primeiro a manifestar reação contra o luteranismo ortodoxo.Estudou em Strasburg e entrou em contato com a disciplina calvinista em Genebra, onde passou um ano. – Publicou Pia Desiderata (1675) que continha seis propostasguia para seus seguidores: 1) Que a bíblia fosse estudada em reuniões privadas, entre cristãos – 2) Que os leigos recuperassem sua condição de sacerdócio laico e seus direitos na condução espiritual da igreja – 3) Que houvesse uma nova ênfase no Cristianismo prático (não intelectual) – 4) Que os incrédulos fossem abordados com maior simpatia e compreensão – 5) Que se desse mais valor ao cultivo da devoção, no aprendizado teológico – 6) Que fosse encorajados os sermões mais simples e direcionados ao emocional. Baseado nestes preceitos, surgiu um novo movimento evangélico, denominado, ironicamente, “pietismo”. Espalhou-se rapidamente pelo centro e norte da Alemanha. Foi introduzido em Leipzig por Hermann Francke (1663-1727), mas encontrou forte resistência por parte dos luteranos ortodoxos – logo teve que se retirar de Leipzig e estabeleceu-se em Halle. Pietismo – ameaça e reação Seguindo o austero exemplo do Calvinismo, os pietistas descontinuaram o uso de música nos serviços religiosos, permitindo apenas alguns hinos e canções simples, de natureza sentimental, que apelassem para o emocional nas pessoas. Essa limitação exigia pouco dos músicos nas igrejas e não estimulava a sua arte. Erdmann Neumeister (1671-1756) – pastor na Jacobi-Kirche em Hamburgo, reconhecendo no pietismo uma ameaça à arte religiosa nas igrejas luteranas, escreveu um ciclo de textos de cantatas, baseadas em libretos de óperas, que para serem musicadas requeriam extrema habilidade dos compositores. Apesar de alguns veementes protestos por parte do público, logo a maioria dos luteranos ortodoxos reconheceram a eficiência desta nova arma contra o pietismo e aprovaram as novas formas musicais e poéticas. Ainda assim, pode-se reconhecer a influência da poética pietista em muitos dos libretos sacros, em procedimentos extremamente emocionais e na religiosidade multicolorida que caracteriza muitos dos textos reliciosos na época. O libreto para a Paixão de Picander e outros textos deste libretista são exemplos típicos desta influência. (Picander é um pseudônimo para Christian Friedrich Henrici (1700-1764), poeta alemão e libretista de muitas das cantatas compostas por Bach em Leipzig. Foi o libretista da Paixão Segundo Mateus e da Cantata do Café, entre muitas outras obras). DATAS • 1723 – primeira versão – estréia em 26 de março de 1723 - Köthen • 1729 – estréia da Paixão segundo Mateus • 1738 – versão definitiva da Paixão segundo João - Leipzig ESTRUTURA • CÔROS: representam a humanidade: nós, cidadãos, observando e acompanhando os acontecimentos. • CORAIS: momentos de reflexão, auto-crítica, contrição. • TURBA: nas cenas de turba, o côro representa os grupos de pessoas envolvidos na trama: os sumossacerdotes, o povo, os fariseus. • ÁRIAS: são momentos de reflexão individual, com características específicas para cada voz. CARACTERIZAÇÃO DAS VOZES • SOPRANO: emocional / subjetivo / pessoal • CONTRALTO: reflexão / responsabilidade para com a humanidade • TENOR: Evangelista / objetivo / imparcial Árias: extremamente pessoal / auto- punitivo • BAIXO: Cristo: suavidade / entrega / bondade Árias: solidariedade / ação positiva / ajudar a compreender