Os Pretos forros do Sertão da Farinha Podre: Um caso de equilíbrio entre os sexos dos libertos de Uberaba-MG. 1840-1888∗ Alessandra Caetano Gomes♣ Palavras Chaves: Escravidão; alforrias; forros; século XIX . Resumo A literatura da escravidão, já comprovou que o escravismo não foi o mesmo nas diversas regiões do Brasil. A historiografia das manumissões parece apontar algumas convergências, quanto às práticas de concessão das alforrias no país. Entretanto, historiadores do tema sempre privilegiaram análises do processo de manumissão em regiões com características econômicas semelhantes, como é o caso de São Paulo e Rio de Janeiro que no século XIX, possuíram economias essencialmente urbanas e Campinas, a qual voltava-se para as atividades de agroexportação. Assim faz-se necessário, o estudo das práticas de alforria de regiões, que se notabilizaram por dinâmicas econômicas diferentes, como é o caso de Uberaba. A economia apresentada no Triângulo Mineiro do século XIX voltava-se essencialmente, para a agropecuária mercantil de subsistência. A literatura da posse de cativos comprovou que em economias que se caracterizaram pela atividade mencionada, o escravismo diverge de outras regiões. Assim, o recorte espacial de Uberaba justifica-se pelos motivos apresentados. Ademais, a região aparenta especificidades quanto ao processo de manumissão, diferentes em alguns aspectos, das apresentadas por outras localidades. Os libertos de Uberaba, apresentaram características diferentes das constatadas por outros estudos. Ao realizar o cruzamento das variáveis sexo, idade, cor e origem com os tipos de alforria, mostra-se que o tipo de economia, o processo de crioulização crescente e a divisão social do trabalho presentes no século XIX, influenciaram na concessão das alforrias de forros e forras. Tanto que, na região, não ocorreu a sobrerepresentação das libertas, mas sim um equilíbrio entre os sexos da população forra, fato que contraria outros estudos que afirmam que as mulheres sempre foram mais alforriadas que os homens. ∗ Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em CaxambúMG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004. ♣ Unesp Campus de Franca. 1 Os Pretos forros do Sertão da Farinha Podre: Um caso de equilíbrio entre os sexos dos libertos de Uberaba-MG. 1840-1888∗ Alessandra Caetano Gomes♣ Introdução 1. Os libertos do sertão da farinha podre. 1.1 População escrava da Uberaba do século XIX. Na década de 80, depois da comemoração do centenário da abolição no Brasil (1988), surgiram trabalhos no meio acadêmico que utilizaram uma documentação, que até então não havia sido pesquisada. Dessa forma, ampliou-se o estudo de fontes e regiões e dos aspectos sócio-econômico e culturais referentes a forros e cativos. Nesse contexto inseriu-se a alforria, que passou a ser vista como um elemento básico da escravidão e não um instrumento de abrandamento ou de caridade relativa aos senhores, e o escravo passou a ser visto como o agente histórico que lutou por sua liberdade. Diante disso, notou-se que não havia um padrão único de alforriados para todo o país, mas que estes estiveram circunscritos às transformações históricas relativas a um período e região determinados. O estudo que ora apresenta-se, baseia-se nas cartas de liberdade de Uberaba-MG.1 Situada no Triângulo Mineiro, a Uberaba do século XIX, foi a mais importante cidade da região, e sua principal atividade econômica ligava-se a pecuária. Fundada nas primeiras décadas do século mencionado, foi colonizada por migrantes geralistas2, que para lá se dirigiram com suas famílias e escravos. Caracterizada por uma escravidão peculiarmente rural, as atividades empreendidas na região, não usaram ativamente a mão-de-obra mancípia. Devido ao alto número de fogos com escravos, constatou-se que em muitos casos o braço cativo complementou o familiar. Lourenço, analisando 167 inventários post-mortem de 1822-1861, verificou que os fogos sem escravos variaram entre 16% a 24%. Desse modo, não houve distinção da divisão social do trabalho desempenhada no interior dos fogos. A região também se notabilizou por uma posse de escravos pulverizada, predominando os plantéis de um a cinco cativos. Posse semelhante à constatada em algumas comarcas, como a do Rio das Mortes, na província mineira (2002, p. 267-268). Sobre a variação da população escrava no Triângulo Mineiro, existem estudos que comprovam o equilíbrio entre os sexos dos cativos, e a reprodução natural positiva dos plantéis, por quase todo o século XIX.(PAIVA, 1996; LOURENÇO, 2002; CAETANO GOMES, 2003). Ao efetuar-se a análise dos sensos realizados na Uberaba do século XIX, percebeu∗ Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em CaxambúMG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004. ♣ Unesp Campus de Franca. Foram analisadas 540 cartas de liberdade que encontram-se no Arquivo Público de Uberaba e no Cartório do primeiro ofício de notas do tabelião da referida cidade. 2 Geralistas são os migrantes mineiros, originários das comarcas do Rio das Mortes e do Rio das Velhas. 1 2 se que, com exceção dos anos de 1831-32, sempre houve equilíbrio entre os sexos dos escravos, tabelas 1,2,3 e 4. Sexo Mulheres Homens Total Fonte: Sampaio, 2001, p. 353. Tabela 1 População de Uberaba em 1820 Condição Social Livres % Escravos 553 45,93 217 651 54,06 200 1204 100,00 417 Tabela 2 População do Triângulo Mineiro – Listas nominativas de 1831/32 Condição Social Sexo Livres % Escravos Mulheres 1.148 46,55 549 Homens 1.318 53,45 916 Total 2.466 100,00 1.465 Fonte: PAIVA. C. A, 1996, p. 205. Tabela 3 População de Uberaba em 1868 Condição Social Sexo Livres % Escravos Homens 2.982 49,33 858 Mulheres 3.063 50.67 778 Total 6.045 100,00 1.636 Fonte: SAMPAIO, 2001, p. 313. % 52,04 47,96 100,00 % 37,47 62,53 100.00 % 52,44 47, 56 100,00 Tabela 4 População do município e da freguesia de Uberaba. Censo de 1872 Condição Social Sexo Livres % Escravos % Mulheres 7.896 47,34 1.554 47,06 Homens 8.780 52,66 1.748 52,94 Total 16.676 100,00 3.302 100,00 Fonte: Catálogo Histórico. Ano I, n. 6, Uberaba , 1987. Sobre os dados mostrados nas tabelas cabem algumas considerações.3 Lourenço analisando a origem dos testadores de Uberaba apontou que, em cem por cento dos casos, estes pertenceram a outras localidades. Da migração para o Triângulo Mineiro, os testadores trouxeram consigo seus escravos. Ao analisarmos o primeiro censo feito na região (1820) averiguamos que a população escrava girou em torno de 25,72%. Notamos o equilíbrio entre os sexos dos cativos, fato que provavelmente favoreceu a formação da família escrava. Clotilde Andrade Paiva, avaliando as listas nominativas dos habitantes do Triângulo Mineiro de 1831/32, mostrou que no início da década de 1830, o tráfico de escravos já era algo atuante na região (PAIVA, 1996). Ver tabela 2. Tanto que a razão de masculinidade dos cativos deste período alcançou o patamar de 166,85. (CAETANO GOMES, 2003, p.38). Da 3 Para este trabalho não foram analisados os dados referentes aos livres, mas achamos importante a sua inclusão nas tabelas, apenas por motivos de comparação com a população cativa, a qual declinou com o decorrer do tempo. 3 análise dos inventários do período de 1822 a 1841, Lourenço apontou uma taxa de masculinidade de 62%, comprovando a atuante presença do Tráfico negreiro em Uberaba (2002, p. 254). Como se depreende na tabela 3, ocorreu também, quando da feitura do censo de 1868, o equilíbrio entre os sexos dos cativos, o que pode estar indicando que, para a manutenção dos plantéis de escravos fez-se necessário a formação da família escrava, uma vez que o tráfico internacional de cativos havia se findado, ou seja, o que poderia estar havendo era a recomposição do plantel por meio da reprodução natural dos mancípios. A taxa de masculinidade dos cativos encontrada por Lourenço para o período de 1842 a 1851 é de 54%(2002, p. 254). A razão de masculinidade dos escravos de 1868 é de 110,28, indicando uma queda da escravaria no decorrer do tempo (CAETANO GOMES, 2003, p. 40). Isto comprova a hipótese da maioria dos estudos que tratou do tema da posse de escravos de que, embora fosse evidente uma maior presença de cativos que de cativas, depois do fim do tráfico internacional, a recomposição dos plantéis para as áreas de agricultura de subsistência e pecuária deu-se por meio da dependência da reprodução natural da escravaria . Estes mesmos estudos assinalaram que, em economias como a de Uberaba, a mão de obra escrava não foi tão relevante. Em regiões onde a economia não possuía vínculo direto com o setor exportador, a reprodução natural foi viável, pois o trabalho era mais ameno. Fato esse encontrado nas fontes analisadas por Lourenço, o que também comprovou os achados de outros historiadores que perceberam este fato para outras localidades como o caso do Paraná analisado por Gutiérrez. O autor constatou que do período de 1798 a 1830, a população cativa apresentou equilíbrio entre os sexos e um alto índice de crianças nos plantéis de 1 a 3 escravinhos, que perfizeram um total de 43,3% (GUTIÉRREZ, 1987, v 17, p.298-301, 311). Muitos estudos permitem notar 4 que a família escrava esteve presente tanto em regiões onde houve pouca ligação com a economia exportadora, e também onde existiram economias com forte ligação com esta atividade, como foi o caso de Campinas, do período provincial (SLENES, 2000). Sobre o mesmo assunto, há um trabalho sobre Montes Claros que tratou da reprodução natural dos cativos em Minas Gerais. Com uma economia voltada para a subsistência e o abastecimento interno da província mineira, a escravaria de Montes Claros manteve-se por meio da reprodução positiva dos cativos. Ademais, na região havia reprodução natural de escravos devido a grande concentração de crioulos. Outro fato importante foi à razão de sexos equilibrada, como também a alta porcentagem de crianças, que foi constatada pela análise da taxa de natalidade, a qual também era bastante alta (BOTELHO,1994). Sobre as faixas etárias de africanos e crioulos de Uberaba, do período de 1822-1851, a base etária dos cativos de idades entre 11 a 30 anos foi bastante expressiva, revelando a ligação com o tráfico. Nas décadas de 1842-1851 ocorreu um envelhecimento da população masculina africana, fato que tem ligação com a crise gerada nos preços dos escravos devido à 4 A historiografia que se ocupou do tema da posse de cativos e da família escrava relacionada a economias de gêneros de subsistência foram GURTIÉRREZ, Horacio. Demografia escrava numa economia não exportadora: Paraná, 1800-1830. Estudos Econômicos. V. 17, n. 2, pp. 287-314, maio/ agosto de 1987. MOTTA, José Flavio. Corpos escravos vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (18011829). São Paulo: FAPESP: Anna Blume, 1999; COSTA, Iraci Del Nero da, & SLENES, & SCHWARTZ, S. A família escrava em Lorena (1801). Estudos Econômicos. São Paulo: 17 (2) p. 245-296, 1987; BOTELHO. T. R, Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de minas gerais no século XIX. 1994. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. E por último sobre economias agro-exportadoras: SLENES, Robert W. ; Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava - Brasil Sudeste, século 19. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 4 pressão exercida pela Inglaterra para o fim do mesmo. Em relação à população crioula, a alta mortalidade e natalidade entre os escravos — questão que relaciona-se à reprodução positiva dos cativos — os números mostraram que houve um equilíbrio entre os sexos dos crioulos. (LOURENÇO, 2002, pp. 255,256 e 257). No censo realizado em 1872 para o município e freguesia de Uberaba, ainda é notável o equilíbrio entre os sexos dos escravos. Entretanto, pelo cálculo de toda a população de Uberaba, observa-se um crescimento da população livre neste período, que perfazia um total de 83,47%, enquanto a população escrava estava decrescendo 16,53%, (ver tabela 4). A queda na população escrava, provavelmente, deveu-se em parte a promulgação da lei do ventre livre. Sabe-se que essa lei afetou a manutenção dos plantéis de escravos, que antes da norma era realizada por meio da reprodução natural dos cativos. Ademais, com a outorga dessa lei, todos os filhos de escravas nascidos após a sua implementação foram considerados livres. Assim conclui-se que para todo o século XIX, com exceção do período de 1831-32, houve equilíbrio entre os sexos dos escravos, o que provavelmente, de alguma forma influenciaria o rol populacional dos forros do sertão da farinha podre.5 1.2 O equilíbrio entre os sexos dos libertos de Uberaba. Estudos afirmam que as mulheres sempre foram mais alforriadas que os homens, mesmo sendo minoria entre os escravos.6 Em Uberaba este fato diferiu, pois em todo o século XIX, houve equilíbrio entre os sexos dos forros. Assim, 51,1% dos alforriados eram homens e 48,9% eram mulheres. Vejamos primeiramente o que a literatura afirmou a respeito dos sexos e das origens dos libertos, em algumas regiões do sudeste escravista do século XIX. Ao analisar a composição étnica versus gêneros dos manumissos de Ouro Preto, Gonçalves percebeu que no período de (1808-1870) o número de homens libertos por origem foi maior que o verificado para as mulheres. No entanto, as crioulas predominaram para todo o período, o que elevou a quantidade de mulheres, as quais perfizeram um total de 1034 libertas, enquanto os homens atingiram a marca de 840 libertos. Ou seja, esse predomínio de 5 Sertão da Farinha Podre era o antigo nome dado a região do Triângulo Mineiro. Sobre a questão das alforrias ver as obras: BERTIN, E. Alforrias em São Paulo do século XIX: Entre a conquista escrava e o paternalismo senhorial. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. EISENBERG, P. Homens esquecidos. Escravos e trabalhadores livres no Brasil dos séculos XVIII e XIX. 1ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1989. GONÇALVES, A. L. As margens da liberdade: Estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. 1999. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. 1ª ed. São Paulo: Cia das terras, 2000. MOREIRA, PAULO Roberto Staudt. Faces da liberdade, máscaras do cativeiro.1ª ed. Porto Alegre: EDIPURCS, 1996. PAIVA, E. F. Coartações e alforrias nas Minas gerais do século XVIII: As possibilidades de libertação escrava no principal centro colonial. Revista de História. FFLCH – USP, São Paulo, n. 133, p. 49-57, 1995. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do século XVIII: Estratégias de resistência através dos testamentos. 1ª ed. São Paulo: Anna Blume, 1995. Do mesmo autor: Escravidão e universo cultural na Colônia - Minas Gerais - 1716-1789. 1ª ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. 1ª ed. Tradução Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A luta pela alforria. In: SILVA, M.B.N da. Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 6 5 mulheres adequa-se ao padrão verificado no restante do país. Mas, a expectativa foi de que esse predomínio fosse decrescente, a medida em que a população escrava se crioulizasse e: [...] em que se verificassem alterações nas atividades produtivas desempenhadas pelos escravos e em que avançassem os questionamentos gerais quanto a conveniência de manutenção da instituição servil (GONÇALVES, 1999, p. 238). No entanto, Gonçalves destacou que não levou em consideração a intensa migração de forros na província de Minas Gerais, principalmente de homens, porque não há como medir se os libertos registraram suas alforrias no lugar onde serviram ou em um local onde encontraram melhores condições de sobrevivência. Mesmo depois, da intensa migração da população das áreas mineradoras para outras partes da província, o número de mulheres libertas “não deixou de ser um fato observável até mesmo após a estabilização da economia, caracterizada, inclusive para a comarca de Ouro Preto, como mercantil de subsistência”. Com a extinção do tráfico internacional, a predominância de mulheres em Ouro Preto foi significativa, ou seja, com o processo de crioulização, não houve sobrerepresentação dos forros sobre as forras (1999, p. 239). Para Campinas, o numerário de libertas sempre superou o de libertos, exceto nos últimos anos da escravidão, mas mesmo com essa constatação as mulheres sempre receberam um número “desproporcional de alforrias” (EISENBERG, 1989, p. 267). Em relação à origem dos manumissos, antes do fechamento do tráfico predominaram os crioulos, e este segmento tornou-se quase total depois de 1870. Entretanto, existe a possibilidade de que estes dados não estejam corretos, porque o tráfico internacional de escravos era ilegal desde 1831. Provavelmente, os senhores tiveram receio de declarar ao governo que seus escravos eram africanos e por isso mentiram sobre a origem dos seus mancípios: Pode ter havido o mesmo tipo de sonegação de informações nos últimos anos da escravidão, quando o tráfico interprovincial ficou sujeito, por leis provinciais e pela Lei dos sexagenários, a sérias restrições. Deduzimos essa possibilidade do fato de que na década de 1880 o número de alforriados com naturalidade identificada caiu vertiginosamente, o que não aconteceu nem com a freqüência de alforria, nem com número de alforriados identificados pela cor. Os dados sobre naturalidade de escravos, por essas razões, não merecem muito crédito para a maior parte do século XIX, mas parece plausível a conclusão de que os crioulos, as pessoas de cor nascidas no Brasil, foram a maioria em Campinas, tanto dos escravos, quanto dos alforriados e dos outros livres de cor (EISENBERG, 1989, p. 272 e 273). Em São Paulo, 28,4% dos forros eram crioulos (380), e 12,7% eram africanos ou (170), no entanto não constam informações sobre a origem em 58,9% das alforrias registradas pelos proprietários paulistanos. De acordo com Bertin, essa falta de informações pode deturpar a análise do perfil dos forros, além de significar também, que os proprietários utilizaram desse ardil para escamotear possíveis “irregularidades na escravidão de africanos, após 1850, por exemplo”. Sobre as alforrias dos manumissos com pagantes na família, proporcionalmente os escravos crioulos e africanos receberam mais alforrias que as mulheres. Mas, existem mais registros de escravas sem informação que escravos, por isso seria algo perigoso afirmar que os homens tiveram mais facilidade em receber alforrias que as mulheres, uma vez que tal fato é contrário aos estudos de Campinas e Minas Gerais (BERTIN,2001, p. 111). No Rio de Janeiro, quase dois terços dos alforriados foram mulheres. Sendo que a maior parte das alforrias se deu em âmbito urbano. Ademais, na cidade, mais da metade das forras foram africanas. Houve vários motivos que levaram as escravas a receberem mais cartas de liberdade. Primeiramente, porque as mulheres tiveram preços mais baixos que os 6 verificados para os homens e assim, não precisaram trabalhar tanto para acumular pecúlio para a compra da liberdade. Além disso, os escravos preferiram libertar suas esposas para que os filhos do casal nascessem livres. Outro aspecto a ser ressaltado, é que algumas forras receberam suas alforrias pela proximidade que tinham com suas senhoras que acabaram as considerando suas amigas, no entanto houve casos em que a proximidade gerou inimizades. Também, existiram alforrias que foram outorgadas a mulheres velhas e enfermas, as quais foram colocadas literalmente na rua por suas senhoras, que não queriam arcar com despesas geradas pelas ex-escravas. As cativas também utilizaram outras estratégias, ou seja, tiveram relações com seus senhores, ou com outros homens que acabaram pagando pelas alforrias de suas companheiras. Por fim, as mulheres tiveram a vantagem de não serem avaliadas pela sua força de trabalho, mas pelos serviços domésticos que empreendiam. Como a escravidão no Rio de Janeiro foi essencialmente urbana, isso garantiu que muitas mulheres pudessem comprar não somente a sua liberdade, mas a de seus familiares, apenas com os frutos dos ganhos acumulados pelo trabalho no pequeno comércio (KARACSH, 2000, p. 452-454). No caso dos libertos de Uberaba, a hipótese que talvez explique o equilíbrio verificado em sua escravaria, é a de que na região houve um processo de crioulização dos plantéis de escravos, que acabou por refletir na concessão das alforrias, pois como assinalou a literatura das manumissões, os crioulos — escravos nascidos no Brasil — sempre foram desproporcionalmente, mais alforriados que os africanos.7 Para uma melhor visualização do que se está discutindo, cabe olhar a tabela 5, das etnias dos escravos de Uberaba, para todo o período estudado: Tabela 5 Origem dos forros de Uberaba 1830-1888 Origens Freqüência Porcentagem Crioulo 374 69,3 Africano 69 12,8 N. C 83 15,4 Indeterminado 14 2,6 Total 540 100,0 Fonte: APU e Cartório do 1º ofício. Se a hipótese estiver correta pode-se afirmar que, como o processo de crioulização foi crescente, isso significou que a escravaria estava se reproduzindo naturalmente, daí a influência no equilíbrio entre os sexos dos forros. A economia verificada em Uberaba – criação de gado e agricultura de subsistência –, provavelmente influenciou na reprodução dos cativos, uma vez que por serem estas atividades mais amenas, isso acarretaria no aumento da possibilidade de haver uma maior proporção de escravos crioulos na região, pois este tipo de economia também viabilizaria a formação das famílias escravas. No entanto, cabe verificar, se em economias com esse perfil os escravos alforriados foram em sua maioria crioulos e se isso acarretou em uma maior proporção entre os sexos. Em Uberaba esse equilíbrio pode ser verificado para todos os períodos, sexos e etnias, (Tabela 6): 7 Eisenberg afirmou que crioulo foi o escravo nascido no Brasil, e que por isso possuía vantagens semelhantes as do escravo pardo, na medida em que se parecia mais com o senhor, pois falava o português e podia ter relações desde criança, com seu proprietário e seus parentes podiam auxiliá-lo na conquista da liberdade. 7 Tabela 6: Origem e sexo dos forros de Uberaba 1830 -1888 Sexo Masculino Feminino Total Origens Freq. % Freq. % Freq. % Indeterminado 9 1,7 5 0,9 14 2,6 Africano 38 7,0 31 5,7 69 12,8 N. C 37 6,9 46 8,5 83 15,8 Crioulo 192 35,6 182 33,7 374 69,3 Total 276 51,1 264 48,9 540 100,0 Fonte: APU e Cartório do 1º ofício. Pelo cruzamento realizado entre os sexos e as origens dos cativos, notou-se que para o primeiro período, as escravas crioulas, receberam mais alforrias que os crioulos, o mesmo vale para as africanas. Nas décadas de 1851 a 1870, os forros de ambas origens, receberam mais alforrias que as forras. No último período os libertos crioulos ganharam um pouco mais de alforrias que as crioulas. Entretanto, nos três períodos verificados, a diferença na concessão das alforrias por origem e sexo não são tão relevantes. Em números, esta desigualdade para os intervalos abordados, variou de três a três e meio porcento, no caso dos crioulos. No caso dos africanos, de dois e meio a cinco por cento. No último período, houve equilíbrio entre os sexos dos cativos africanos, pois as mulheres receberam meio por cento a mais de alforrias que os homens, (tabelas 7, 8 e 9). Sexo Masculino Feminino N. c. 4,2 1,7 Tabela 7: Sexo e origem dos forros 1830 – 1850. Origens Crioulo Africano Indeterminado 34,7 8,5 0,8 38,1 11,0 0,8 Total 5,9 72,9 Fonte: APU e Cartório do 1º ofício. Sexo Feminino Masculino Total Fonte: APU e Cartório do 1º ofício. Sexo Masculino Feminino N. C. 12,8 16,3 Total 29,1 Fonte: APU e Cartório do 1º ofício. 19,5 1,7 Tabela 8: Sexo e origem 1851-1870. Origens N c. Crioulo Africano 5,0 34,2 5,9 2,7 37,4 11,0 7,8 71,7 16,9 100,0 Indeterminado 1,8 1,8 3,7 Tabela 9: Sexo e origem dos forros 1871 – 1888. Origens Crioulo Africano Indeteterminado 34,0 2,0 2,0 30,5 2,5 ---64,5 4,4 8 Total 48,3 51,7 2,0 Total 50,7 49,3 100,0 Total 47,0 53,0 100,0 Pode ser que a hipótese sobre a crioulização observada na população escrava e forra de Uberaba esteja correta, mas seria perigoso afirmar com certeza, uma vez que há que se levar em consideração o que a literatura afirmou a respeito da predominância de crioulos na população manumissa. Sabe-se que, com o fim do tráfico internacional de escravos, muitos senhores mentiram sobre a origem de seus cativos, pois não era permitida a entrada de africanos no país. Supondo-se que, a amostra dos crioulos para Uberaba esteja enviesada, assim mesmo verifica-se o equilíbrio entre os sexos dos forros e das forras. Diante de tal fato, é preciso que se faça uma pesquisa sobre o comportamento demográfico dos cativos e dos libertos, o qual pode ser realizado por meio dos registros paroquiais, com o intuito de verificar se na população forra e escrava de Uberaba, houve predominância de crioulos e equilíbrio entre os sexos dos dois segmentos. Uma outra hipótese que talvez explique o equilíbrio entre os sexos dos libertos refere-se ao tipo de economia praticado na região de Uberaba. Já foi dito que o tipo de escravidão que se desenvolveu em Uberaba foi rural. Deve-se considerar também, que o tipo de economia verificado para o Triângulo Mineiro, não necessitou de muita mão-de-obra cativa, de maneira que não existiu diferenciação entre o trabalho desempenhado pelos senhores, dos desenvolvidos pelos escravos. Se a divisão social do trabalho foi de base familiar provavelmente, alguns dos cativos homens tiveram o mesmo tipo de ocupação que os seus proprietários, que normalmente estava associada à pecuária. Talvez, isso tenha garantido que alguns escravos tivessem mais acesso a trabalhos remunerados que as mulheres e que, portanto, pudessem pagar por suas alforrias. Também, a maior proximidade verificada entre os cativos e seus senhores fez com que muitos alcançassem a liberdade. As alforrias com a condicional pagamento em dinheiro mostram que os homens tiveram um pouco mais de acesso a trabalhos remunerados que as mulheres. Ao cruzar as alforrias condicionais e os sexos dos forros, notou-se que os homens receberam para todo o período, 16,2% de alforrias com a condicional mencionada e as mulheres 12,5%. Nos três períodos, os libertos obtiveram os seguintes percentuais do total de manumissões com esta forma de condição: 21,7%, 13,8% e 15,3%, enquanto as libertas obtiveram 10,8%, 8,7%, e 17,7%. No último intervalo, houve equilíbrio entre o número de homens e mulheres que pagaram por suas alforrias, neste caso, com a proximidade do fim da escravidão os preços dos cativos caíram, assim as escravas puderam pagar por suas cartas de liberdade. Mas as cativas, não tiveram menos acesso às manumissões, pois para os dois primeiros períodos elas receberam mais alforrias incondicionais que os homens, ou seja, as escravas continuaram empregando estratégias de resistência. Nos dois primeiros períodos, as mulheres receberam mais alforrias gratuitas que os homens. Entretanto, esse número decresceu nas décadas de (1871-1888), pois nessa época as manumissas receberam um pouco mais cartas de liberdade onerosas. Talvez a proximidade do fim da escravidão, tenha levado os senhores a alforriar sem distinção os cativos uberabenses. No primeiro período, o número de onerosas tendeu a equilibrar-se; nesse intervalo os preços dos escravos eram mais baixos, principalmente os das mulheres. As cativas receberam também, um pouco mais de liberdades com a condicional prestação de serviços, como se verá a seguir. Já nas décadas da crise do fim do tráfico de escravos, com o aumento dos preços dos cativos, as mulheres receberam menos alforrias onerosas (Tabela 10). 9 Tabela 10: Categorias de alforrias e sexos dos forros de Uberaba 1830 -1888 Gratuitas Períodos Homens Mulheres 1830 – 1850 13,6 16,9 1851 – 1870 17,8 21,9 1871 – 1888 22,2 18,7 Fonte: APU e Cartório do 1º ofício. Onerosas Homens Mulheres 34,7 34,7 35,2 25,1 28,6 30,5 Total 100,0 100,0 100,0 Assim, se a escravidão em Uberaba tivesse ocorrido nos moldes urbanos como é o caso de São Paulo e Rio de Janeiro — regiões do sudeste escravista —, provavelmente as mulheres cativas de Uberaba teriam sobrerepresentado os homens. Tendo em vista que a herança africana de comerciar era uma característica verificada na população cativa feminina, ou seja, se elas tivessem acesso a trabalhos remunerados, como os que são observados nessas regiões, talvez elas teriam sido a maioria na população forra do Triângulo Mineiro. No caso do setor agro exportador, as mulheres sobrerepresentaram os homens, porque a mão de obra destes é mais necessária que a das escravas, que além de possuírem preços mais baixos que os escravos, não são muito apropriadas para o trabalho duro nas grandes lavouras, como foi o caso de Campinas. No que se refere às alforrias onerosas com a condicional prestação de serviços, houve equilíbrio entre os sexos para todo o período. Os homens conseguiram 23,8% dessas alforrias e as mulheres 22,6%. Isso mostra que os senhores preferiram conceder este tipo de condicional, uma vez que não perderiam os serviços de seu mancípio. Nos três períodos estudados, respectivamente, as mulheres obtiveram as seguintes taxas da condicional mencionada: 21,7%, 25,4% e 20,2% e os homens 16,9%, 29,0% e 22,6%. No primeiro período as mulheres obtiveram mais alforrias com esta condicional, pois foi mais fácil para os homens o acesso a trabalhos remunerados e assim as mulheres acabaram recebendo mais esse tipo de manumissão. O aumento verificado da condicional prestação de serviços, nas décadas de 1851/70 tem base explicativa na crise pós-tráfico internacional. Dessa forma, alguns proprietários de Uberaba preferiram aplicar esse tipo de condição para, não comprometer a mão-de-obra que complementava o trabalho familiar dos fogos. Geralmente, a alforria tem sido considerada um instrumento de controle da escravaria. Os mancípios que conquistaram a liberdade, — mesmo que fossem condicionais — serviram como exemplo para outros cativos que acabaram empregando também as mesmas estratégias de bom comportamento e fidelidade que os seus companheiros de cativeiro. No entanto, grande parte dos escravos do Brasil, jamais vislumbraram a possibilidade de um dia alcançarem a liberdade. As cartas de liberdade de Uberaba parecem evidenciar que em economias que se notabilizaram pelas atividades de pecuária e agricultura mercantil de subsistência, há uma maior probabilidade de haver equilíbrio entre os sexos dos forros. Diante de tal proposição, cabe averiguar se em regiões com características semelhantes à economia apresentada por Uberaba, ocorreu também o equilíbrio entre os sexos dos forros, no entanto, estas ainda são propostas futuras de trabalho. 10 Referências Bibliográficas BERTIN, E. Alforrias em São Paulo do século XIX: Entre a conquista escrava e o paternalismo senhorial. 2001. 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