Ações positivas para a igualdade material entre os sexos*
Dalva Carmem Tonato
Professora da Faculdade de Direito da UFRGS
*Trabalho apresentado na EDHUCA em 25 de março de 2007
Resumo. Na base deste artigo está a noção das ações positivas para a conquista da igualdade
material entre os sexos. Estas representam a própria atuação do Estado e da sociedade na
remoção das barreiras fáticas para a completa paridade entre os gêneros e na promoção e
fomento de ações concretas (em âmbito legislativo e administrativo) para que tome impulso esta
necessária revolução cultural a caminho da igualdade na diferença.
I. A evolução do conceito unitário bifronte de igualdade e a sua dimensão material na base da
justificação das ações positivas
A igualdade – fulcro deste trabalho - desponta entre os mais fundamentais direitos do ser
humano. É ela que conforma a própria liberdade, enquanto só se pode ser livre entre iguais.
Como conceito, é inteligível no seu aspecto unitário desde que considerados seus dois
prismas: o material ou substancial e o formal. Tal unidade conceitual denota o idêntico valor que
possuem os indivíduos para a sociedade (indivíduos estes diferentes entre si, diferença que é um
dado factual), considerados nas suas distintas aptidões e nas mais variadas contribuições que
podem dar. A igualdade, então, se consubstancia num juízo de valor1 que uniformiza os
indivíduos na sua potencial capacidade de contribuição social nas distintas áreas. No que tange
ao prisma formal, representa a condição dos indivíduos abstratamente considerados que submete
todos às mesmas normas e justifica que estas não possam fixar distinções e privilégios. Já no
prisma material, compreende a paridade de oportunidades no processo de ascensão de cada
indivíduo às várias posições sociais (não na atribuição dessas mesmas posições) 2, o que exige a
ação do Estado contra situações econômicas, culturais e morais mais degradantes, que negam a
um grupo de sujeitos o tratamento social reservado à generalidade3. Além disso, justifica –
quando não houver esta paridade de oportunidade na base fática – que o tratamento formal não
siga a regra do tratamento igual4.
Eis que, uma complicada relação está estabelecida entre a igualdade e a condição da
mulher pela sua tardia inclusão no conceito universalizado de “homem”. Esta igualdade - que
não se pretende meramente formal como a igualdade perante a lei, mas material, porque
PERLINGIERI, P., FEMIA, P. Nozioni introduttive e principi fondamentali del diritto civile, Napoli, 2000, p. 73 e s.; ARENDT,
H. A condição humana [1958], trad. por R. Raposo, Rio de Janeiro, 2001, p. 51.
2
BOBBIO, N. Dicionário de política, 1, Brasília, 1997, p. 603-604. Esta paridade de oportunidade não significa que a
sociedade deva garantir o sucesso de um indivíduo ou de um grupo em uma competição econômico-social, mas
apenas a sua paridade de situação face dos demais competidores, como salienta Norberto BOBBIO na obra
Igualdade e Liberdade, Rio de Janeiro, 1997, p. 30-32.
3
PERLINGIERI, P. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional, trad. por M. C. de Cicco, 3ª ed., Rio de
Janeiro, 1997, p. 37. Na base desta ação do Estado, estaria, justamente como visto pelo autor, a distribuição do ônus da
promoção da igualdade entre a sociedade como um todo, já que esta é beneficiária dos reflexos desta igualdade
artificial.
4
PERLINGIERI, P. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional, trad. por M. C. de Cicco, 3ª ed., Rio de
Janeiro, 1997, p. 46.
1
concreta e realizada nas relações sociais e, portanto, a ser implementada e fomentada - funda a
noção de ações positivas para a igualdade material entre os sexos. É o que se pretende
demonstrar neste texto.
Partindo desta análise do conceito de igualdade, e verificando a sua relação com o
“feminino”, concorda-se com a opinião segundo a qual a igualdade não se funda numa condição
natural, ou seja, não é verdade que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e
direitos”, como afirma o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU, de
1948 na esteira da Declaração de Virgínia de 1776 (art. 1º) e da Declaração francesa de 1789 (art.
1º), mas nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão
que garante a todos direitos iguais5. Nestes termos, a cidadania passa a ser uma das condições
sine qua non da igualdade e somente com o exercício pleno daquela pode-se pensar numa
implementação integral desta para além do seu mero sentido formal. Sozinha, a igualdade formal
só pode conduzir à sua própria erosão, enquanto que, se atuada juntamente com a igualdade
material, estas se retroalimentam, e se mantêm mutuamente. Portanto, é necessário fortalecer a
igualdade material garantindo que as oportunidades e os recursos necessários estejam
disponíveis para cada indivíduo realizar plenamente suas capacidades e poderes particulares por
meio da participação na vida política, social e cultural, que capacitam para o exercício da
cidadania6.
Eis que, mesmo com o estabelecimento – tardio – da igualdade formal entre homens e
mulheres, resta o fato de que, entre os indivíduos que não exercem de modo integral a sua
cidadania, estão as representantes do sexo feminino. Mais do que uma soma de indivíduos,
porém, estamos aqui tratando de um gênero, que representa no mínimo a parcela de 50% de
cada sociedade humana. Uma das causas desta situação pode ser vista no pouco tempo da efetiva
conquista da cidadania plena - com a plenitude dos direitos nas esferas pública e privada - que só
ocorreu formalmente a partir no final do século XIX e início e meados do século XX.
A histórica exclusão da mulher do espaço público, que vem sendo lentamente sanada,
contribuiu para que a cidadania do gênero feminino tardasse, isto porque desde há muito o papel
feminino na sociedade restringiu-se e f o i r e s t r i t o ao espaço privado, mesmo assim,
reduzida à condição inferior. Faz luz a estes dados a história de conceitos como os de cidadania,
democracia e república, que perduram até os nossos dias com excepcional consideração na
cultura ocidental.
“Cidadania” e “democracia” são idéias que surgem na Grécia, com a exclusão das
mulheres, dos estrangeiros e dos escravos. Em Atenas, considerada a pátria destes dois termos,
por uma decisão explícita, a mulher fica fora da cidadania, sem acesso à política e devendo aterse à esfera privada. O demos não é que o conjunto dos homens livres e pertencentes à pólis, e
conseqüentemente, o governo do demos, que é a democracia, é o governo dos homens livres.
Isso não quer dizer que em outras cidades-estado gregas a situação fosse idêntica, mas a situação
em Atenas é emblemática, porque é dali que a modernidade buscará as instituições de
organização pública.
O mesmo se verifica com o conceito de república – na separação entre res publica e res
privata, na prevalência da primeira sobre a segunda, e com o confinamento da mulher nesta – a
ARENDT, H. A condição humana [1958], trad. por R. Raposo, Rio de Janeiro, 2001, p. 227.
Os instrumentos mais imediato para realizar a igualdade material podem ser a intervenção legislativa reformadora, e,
principalmente, aquela administrativa, ambas possíveis mediante a despesa pública à qual o cidadão contribui na forma
de impostos.
5
6
res privata, ainda assim, submetida ao marido e ao pai. A exceção ocorre no âmbito religioso com as vestais – sacerdotisas encarregadas da manutenção do fogo público, mas esgota-se aí.
Na época moderna, mesmo os filósofos precursores da Revolução Francesa e da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como Locke7 e Rousseau8 que afirmavam a
igualdade natural dos homens, não concebiam a mulher na cidadania, restringindo-a apenas à
esfera da vida privada, cada um com as respectivas justificações, mas ambos chegando a um
denominador comum: a igualdade proclamada é igualdade entre todos os homens, não
entendido este termo como ‘ser humano’, mas como ‘indivíduo do sexo masculino’. E nesses
termos, a desigualdade promovida por privilégios de classes e mesmo aquela pela escravidão
encontrou solução mais cedo do que a situação marginal do sexo feminino9.
Assim, em 1791, na França e ainda durante a revolução francesa, Olympe de Gouges
(filha de um açougueiro) publica panfletos exigindo a inserção das mulheres na declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão. Os panfletos traziam a declaração dos direitos da mulher e da
cidadã, mas ela foi guilhotinada em 1793, condenada como mulher “desnaturada”. Na Inglaterra,
em 1792, Mary Wallstonecraft (1759-1797), ciente da desigualdade afirmada entre homens e
mulheres e não a admitindo, publicava a sua vez uma “reivindicação dos direitos da mulher”.
A expansão do feminino protagonista para fora do espaço restrito do lar (para a
reprodução e educação dos filhos), atingindo uma esfera de maior socialidade como a do
trabalho10 em função do nascimento das fábricas e das necessidades do pós-guerra, generalizou
os focos de reivindicações, que se multiplicaram assumindo respaldo 11. Mas, para uma
concretização pelo menos da igualdade formal, ainda faltava a inserção de fato e de direito no
verdadeiro espaço público – aquele da política – que teve início em 1893, na Nova Zelândia, com
o reconhecimento do direito ao voto ativo e passivo às mulheres. Seguiram a Austrália (1902),
Finlândia (1906), Noruega (1913), URSS (1917), Inglaterra (1918), EUA (1920), Portugal (1931),
Espanha (1931), Brasil (1932) e Suíça (1971). A partir de tais ascensões no âmbito dos Estados
nacionais, a igualdade entre os sexos obteve reconhecimento público internacional apenas em
1953, com a Convenção dos Direitos Políticos das Mulheres, da ONU em Nova Iorque. Esta
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8
LOCKE, J. The Second Treatise of Civil Government, cap. VII e VIII passim.
ROUSSEAU, J.J. Emílio - Da Educação, trad. por S. Millet, São Paulo/Rio de Janeiro, 1979, p. 419: “A rigidez dos
deveres relativos dos dois sexos não é nem pode ser a mesma. Quando a mulher se queixa a respeito da injusta
desigualdade que o homem impõe, não tem razão; essa desigualdade não é uma instituição humana ou, pelo menos,
obra do preconceito, e sim da razão; cabe a quem a natureza encarregou do cuidado com os filhos a responsabilidade
disso perante o outro”. Há que se ver a qual razão refere-se Rousseau, certamente a razão patriarcal.
9
A inclusão plena dos plebeus na cidadania (igualdade de direitos e de participação no processo político) em Roma
consolidou-se definitivamente em 287 a.C. (com a lei que equiparou os plebiscitos plebeus às leis patrícias e deu
àqueles aplicação geral e uniforme); em 1789, a Revolução Francesa abria caminho para a retomada do poder pelo
POVO, e quando a República é instituída – apesar da declaração de que todos seres humanos nascem iguais - apenas
aos homens é reconhecido o direito de sufrágio. Quanto aos escravos, nos EUA, apesar da 15ª emenda da Constituição
(de 1870) proibir que se negasse ou diminuísse o direito de sufrágio em decorrência da raça, da cor ou da condição
social prévia de servidão, somente em 1965 é que a cidadania política plena foi alcançada pelos negros, pela Lei do
Direito ao Voto; no Brasil a escravidão cessou em 1888, e em 1889 com a República, apesar da falta das condições
materiais (situação econômica, a negação do voto aos analfabetos) cessaram os impedimentos formais para o exercício
da plena cidadania com direito ao voto passivo e ativo; porém, no caso das mulheres, apenas em 1932 esta condição se
implementa, permitindo a participação plena no processo político. Esta cronologia demonstra quantos processos de
inclusão cidadã ocorreram até que o sexo feminino conseguisse a sua.
10
ARENDT, H. A condição humana [1958], trad. por R. Raposo, Rio de Janeiro, 2001, passim.
11
Antes desta revolução do mundo do trabalho, o lugar das mulheres, na mentalidade dominante do tempo, era no lar. A
"rua" era para as prostitutas ou as pobres.
convenção foi introduzida na ordem jurídica brasileira em 1955, mas já em 1932 as mulheres
haviam sido formalmente introduzidas na cidadania com o direito ao voto ativo e passivo.
O demos passa a ser entendido oficialmente como a soma de homens e mulheres, e assim
o político e a cidadania. Entretanto, por que, apesar destas proclamações de igualdade, este
direito humano fundamental não se percebe para as mulheres para além do seu aspecto formal?
Basta analisar superficialmente os dados do relatório do PNUD (2006)12 para que fique
evidente e estatisticamente demonstrado o déficit do feminino na sociedade e na política (esferas
reconhecidas pela modernidade como públicas). Segundo o PNUD, dos 81 países nos quais há
dados a respeito, somente num deles mais de 50% dos postos de comando está nas mãos de
mulheres (legisladores, funcionários públicos de alto escalão e gerentes), trata-se das Filipinas,
enquanto em 7 outros países há mais de 40% de mulheres em cargos de liderança pública,
computando-se entre estes tanto países com os maiores até países com os menores níveis de
desenvolvimento humano e de riqueza. Segunda na lista está a Tanzânia, com 49% de
representantes mulheres nos postos de comando (162º lugar em IDH no mundo), em quarto
lugar estão os EUA, com 42% de representação feminina, enquanto o Brasil é o 24º colocado
com 34% de atuação de mulheres em cargos de comando. Nos últimos lugares estão o Paquistão
(2% de participação feminina), Iêmen (4%), Turquia e Coréia de Sul (7%). Dos 81 países, em 41
deles há menos de 30% de mulheres nos postos de alto escalão. Se o dado fosse o da
representação ativa na cidadania, os percentuais seriam ainda menores. Dos 164 países de que se
tem dados, nenhum possui metade do parlamento composto por mulheres. Suíça e Ruanda têm a
maior proporção: 45, 3%. No Brasil, apenas 9,2% do Congresso é formado por mulheres (de 513
deputados, apenas 44 são mulheres; dos 81 senadores, apenas 10 são mulheres). O mesmo
relatório salienta que na esfera puramente social, a discriminação evidencia-se no âmbito da
remuneração, e em muitos países, no próprio acesso à educação formal.
Frente a este estado de coisas, quando se terá a igualdade de gênero no sentido de uma
efetiva absorção do feminino13 na democracia? Creio que a resposta só pode estar na efetiva
inclusão das mulheres na esfera pública em sentido amplo, em postos de comando, de
planejamento, na administração pública, na política, mas também nas empresas, nas
universidades etc., e isto só é viável com uma equilibrada compensação entre a esfera privada e
pública de homens e mulheres. As mulheres cedendo o espaço privado, com o respectivo
ingresso do homem neste; enquanto estes devem ceder lugar na esfera pública, admitindo a
complementaridade do feminino. Ocorre que as sociedades necessitam de alterações estruturais
para que isso aconteça – o que perpassa desde uma imprescindível evolução cultural acerca da
compreensão da igual aptidão de ambos os sexos para os diversos papéis sociais (materializável
através da educação) e alcança atitudes práticas – sustentadas pela sociedade através do Estado,
as ações positivas verdadeiras e próprias - como a garantia do direito à creche para a primeira
infância, a ampliação dos prazos da licença paternidade, a divisão de responsabilidades em
igualdade de condições entre homens e mulheres desde a família, passando pela escola e nas
demais esferas etc.
12
Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2006 elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), acessível em http:/www.pnud.org.br [documento gerado em 15/05/2007 às 11:23]
13
Feminino este entendido como identidade feminina coletiva.
II. A construção de um caminho em direção à cidadania plena e à cultura de
complementariedade na diferença com igualdade, a partir das ações positivas – suas tipologias e
modalidades
Para a consideração analítica das questões envolvidas no problema de desigualdade, e na
busca de soluções, após sucessivas conferências internacionais das mulheres, o Comitê
Econômico e Social europeu criou um órgão de trabalho para avaliar a evolução das políticas
públicas na questão da igualdade da mulher, principalmente em função das constatações e
proposições tomadas na conferência de Pequim (1995). Por outro lado, a Comissão sobre a
Condição Jurídica e Social da Mulher das Nações Unidas assumiu, desde março de 2005, a tarefa
de avaliar a aplicação das plataformas de Pequim+10 e de Nova Iorque 2000. Destas avaliações,
foram destacados 5 âmbitos onde há concentração do problema:
- vida econômica;
- participação e representação (processo decisório);
- direitos sociais;
- vida civil (direitos humanos e liberdades fundamentais – principalmente com relação à
violência);
- mudanças dos estereótipos e papéis (relativo ao sistema cultural e os meios de
comunicação).
Nos utilizaremos dos tópicos destacados para relacionar o problema às ações positivas já
postas em prática e para expor as tipologias e modalidades das ações positivas:
a) vida econômica: como já salientado pelo relatório do PNUD 2006, a diferença de
remuneração, inclusive para os mesmos cargos é o principal entrave, e nestes termos, nada tem
sido feito.
b) participação e representação (processo decisório): Este item diz respeito
principalmente à lacuna de representação feminina na esfera política, e neste campo a tipologia
das ações positivas apresenta-se essencialmente de caráter legislativo, na modalidade da fixação
de quotas com o número mínimo de representantes de um dos sexos nas listas de candidaturas
dos partidos ou, de modo mais imediato, nos assentos parlamentares. Atente-se para o fato de
que não há atribuição de quotas para as mulheres, mas de quotas mínimas para um dos sexos.
A finalidade de tais previsões legislativas é aperfeiçoar o espaço da cidadania, da
democracia, entendendo a igualdade material em termos de real paridade na esfera pública. Isto
significa que o feminino passa a “fazer as regras” também, não se atendo apenas às regras
impostas por uma sociedade patriarcal, que há milênios vem reproduzindo seus modelos.
Na América Latina, o processo de implementação deste tipo de ação positiva legislativa
para aumentar a representação feminina na política teve início no curso dos anos 90, na
Argentina. No Brasil, a Lei 9504/90 (art. 10 § 3º), alterada em 1997 estabeleceu a presença de no
mínimo 30% de membros de um sexo nas listas eleitorais de candidatos, outras leis de quotas
fixam o percentual mínimo de postos no parlamento a serem ocupados por mulheres etc. Ainda
no âmbito da cultura latina, mas no contexto europeu da Itália, após uma tentativa regional de
aplicação da lei de quotas, invalidada pela jurisdição constitucional14, impôs-se a necessidade de
adaptação às diretrizes européias e foi necessária a alteração da Constituição em 2003. A nova
redação determina que o Estado promova políticas de implementação da paridade entre os sexos
no acesso a cargos públicos (eletivos e da administração pública). As regiões atuam legislações
como o Regulamento 487 de 1994, que impôs a presença de no mínimo 1/3 de membros de um
dos sexos nas bancas e comissões de concursos.
Quanto à modalidade das quotas, o modelo italiano é mais abrangente do que o brasileiro,
porque no nosso caso, esta medida restringe-se aos cargos eletivos, enquanto na Itália, abrange
os cargos da administração pública. No entanto, estas são apenas medidas parciais, não podendo
reverter isoladamente a situação de disparidade. O caso italiano é paradigmático, pois apesar da
criação da lei de quotas não há candidatas suficientes para preencher os postos prefixados. Qual
a dificuldade? O ponto é que não basta tentar introduzir as mulheres na esfera pública se os
homens não participarem igualmente na esfera privada, e no núcleo central desta equação está a
questão da maternidade e da plena divisão das responsabilidades com a prole.
c) direitos sociais: aqui concentram-se as possibilidades de reversão mais eficaz do quadro
de desigualdade da mulher. A análise é certeira, servem políticas públicas que fomentem a
repartição das tarefas domésticas e das responsabilidades frente aos filhos. Estas políticas podem
ser atuadas na forma de leis (a que garante a licença paternidade é um exemplo, cabendo a sua
ampliação, bem como as que fixam o direito de obter vagas em creches públicas), mas, além da
intervenção legislativa reformadora, serve a administrativa, garantindo a disposição de recursos
suficientes para a implementação, atuação e controle das políticas definidas em lei.
d) vida civil: a aprovação de leis de tutela contra a violência doméstica15, (com a previsão
da restrição ao agressor a invadir um raio de 500 metros do agredido, a possibilidade de inclusão
da vítima de violência familiar nos cadastros assistenciais do governo federal, estadual e
municipal, com a garantia de acesso prioritário à remoção quando a vítima for funcionário
público ou manutenção do vínculo trabalhista por até 6 meses se necessário o afastamento do
local de trabalho, cf. o artigo 9º da Lei 11.340/2006) e a criação das delegacias da mulher, são
ações positivas de cunho legal e administrativo que visam uma tutela mais efetiva e ampla ao
direito fundamental da integridade física e, por fim;
e) mudanças dos estereótipos e papéis (relativo ao sistema cultural e aos meios de
comunicação): neste campo deve ser ressaltado o papel da educação, mas da educação-crítica,
adquirindo a consciência de que as leis sozinhas não são suficientes para mudar as mentalidades,
mas a educação sim. Neste campo da educação, tomemos um singelo exemplo: a maioria dentre
os educadores de história nos níveis do ensino fundamental e médio é de mulheres, mas quantas
já ouviram falar de Hypathia16 (certamente todos já ouviram falar de Pitágoras), de Boadicea17
14
A Sentença constitucional n° 422 de 1995 definiu inconstitucional uma lei que impedia listas eleitorais onde um
dos sexos não estivesse representado. Para maiores detalhes, veja-se D. TONATO, La Corte constitucional italiana y la
elaboración jurisprudencial en términos de ‘acciones positivas’ para la garantía de la igualdad material entre sexos.
Comentario de la decisión 39/2005 de la Corte Constitucional italiana” em ARTÍCULO 14, UNA PERSPECTIVA DE GÉNERO,
vol. 20, IAM, Sevilla.
15
A Lei nº. 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha.
16
Matemática e filósofa de Alexandria, viveu no século IV e foi membro da Escola de Atenas, tendo realizado a secção
do cone em um plano, contribuindo para a descoberta da hipérbole, da parábola e da elipse, e não se descartando a
atribuição da invenção do astrolábio.
17
Rainha celta que opôs resistência à invasão romana.
(com certeza todos conhecem César), de Dido18 (com certeza todos conhecem Rômulo e Remo)?
Ora, por que todas estas personagens não fazem parte da história formalmente contada nos
livros didáticos? Por que então esta pacífica exclusão da história, mesmo quando à mulher é
dado hoje o poder de participar da sua construção?19 A resposta certamente está na mudança de
mentalidade cultural acerca da compreensão do “feminino”, que passa pela educação formal
desde que entendida qual “meio para fortalecer as pessoas, melhorando a sua qualidade de vida e
aumentando as suas capacidades para participar do processo de decisão que guiam políticas
sociais, culturais e econômicas”, “uma educação capaz de produzir indivíduos informados,
críticos, pensantes, agentes de mudanças a começar pelas mulheres”20. Faz do conhecimento
uma das chaves da mudança, para romper os padrões do patriarcalismo que reduz a mulher à
esfera privada, e ainda assim em condição de inferioridade (pense-se no nosso codificador civil
de 1916, que identificava certos povos solares com as características da masculinidade,
destinados, portanto, a imperar; enquanto outros povos do frio eram identificados a
características femininas, destinados a serem subordinados21).
Esta revolução cultural pela educação começa na família, passa pela escola e culmina na
esfera pública, mas antes de tudo exige uma auto-crítica de cada mulher-indivíduo sobre o
gênero feminino (caracteristicamente pacifista, criativo e igualitário) e sobre o aporte que este
tem a fazer nas esferas pública e social.
18
Filha do rei de Tiro, fundadora de Cartago em 804 a.C (cidade hegemônica norte-africana que rivalizou com Roma
pelo império, no Mediterrâneo).
19
Uma semelhante percepção, referente ao ensino na área das ciências exatas e físicas, é trazida pela bióloga Cláudia
Moro: “(...) precisamos estar atentas (os) para a construção de uma prática pedagógica que envolva meninos e
meninas nas discussões sobre a importância da participação das mulheres nas atividades científicas. Vamos prestar
mais atenção em nossas aulas, evitando o uso do masculino genérico, para não silenciar nem tornar as mulheres
invisíveis; analisar as formas que ambos os sexos são apresentados nos livros didáticos, na televisão e nas
propagandas; fugir da representação de papéis sociais estereotipados que nem sempre nos damos conta, como o
médico e a enfermeira, o chefe e a secretária; e discutir a possibilidade de participação de homens e mulheres nas
diversas atividades profissionais e domésticas,em:http://novaescola.abril.uol.com.br/index.htm?ed/171_abr04/html/com_palavra.
20
Esta a função da educação na visão da UNESCO em http://portal.unesco.org/education/en/ev.php .
BEVILÁQUA, C. Estudos Jurídicos- história, philosophia e critica, Rio de Janeiro, 1916. Esta concepção não deixou de
ter reflexos na regulação da vida privada de todos os brasileiros de 1917 a 2003, através do Código Civil redigido por
este jurista.
21
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