CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 22/7/2008 SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 22/7/2008 | CADERNO DEZ! Gledson Santos 17 anos, estudante Notícias que não Morto a tiros por um policial, em 1º de dezembro de 2002 “Saía pouco de casa. Gostava mesmo era de ler, escrever e desenhar e pintar” envelhecem Sylvio Baptista, representante do grupo Peça Vida/Cedeca, tio "Guel" é uma palavra que muito se ouvia naquela casa da rua Ruy Barbosa, centro de Salvador. Não demoravam a aparecer garotos na porta, sempre dizendo: "Guel!, Guel!". Para completar um time ou apenas jogar conversa fora, os poucos amigos de Gledson Baptista de Almeida Santos sempre vinham procurá-lo. Ele nem sempre correspondia. Alheio a esse encanto pela rua, passava dias indo da escola para a casa, de casa para a escola, e não muito mais. Estudante do colégio ICEIA, no Barbalho, tinha acabado de conseguir um estágio, Trabalharia no setor de microfilmagem de uma firma. Gledson sorria pouco, mas estava animado com a notícia. "Ele morava com a avó, era muito apegado a ela", diz Sylvio Baptista, um tio. Caseiro, calado, Gledson conversava muito com a família, mas pouco se abria com recém-conhecidos. Tinha hábitos silenciosos, solitários. Preferia o desenho, a leitura e a escrita; também gostava de andar de bicicleta por ruas próximas à sua, e fazia aulas de natação. Faz seis anos que Gledson foi assassinado. Segundo seu tio, foi agredido por dois homens, na frente de casa, e levou quatro tiros à queima-roupa de um terceiro, já desmaiado pelos socos que levara. O pai, Nelson, assistiu a tudo, ficou estático. Sylvio ainda perseguiu os assassinos e os alcançou; mas acabou sendo ele próprio preso, enquanto o autor dos disparos, amigo do delegado de plantão, saía despreocupado. Para Silcélia Batista, ainda é difícil falar de Gledson. Sua opção parece ter sido assumir para si o silêncio tão característico do seu filho. DIEGO DAMASCENO Como quase tudo no Brasil, também a paz é para poucos. Fora desse grupo está boa parte da população jovem, negra, moradora da periferia das grandes cidades. A cada ano mais jovens com esse perfil são mortos. Dada a razão com que acontecem, esses homicídios deveriam estar no centro do debate político no Brasil. Suas causas, formas de combate possíveis, os erros cometidos e as iniciativas eficientes, tudo isso deveria ocupar um lugar mais central do que ocupa hoje. A sociedade ainda resiste em encarar o tema. Debates existem, avanços são reconhecidos. Dezoito anos depois, o Estatuto da Criança e do Adolescente continua a ser agressivamente desrespeitado. As histórias desses jovens teimam em não aparecer com a freqüência necessária na agenda do País. Algumas delas o Dez! conta a seguir 7 FOTOS ARQUIVO PESSOAL CAPA ❚ Famílias contam um pouco da história de jovens assassinados [email protected] | Fábio Nascimento 15 anos, estudante Morto a tiros, em 16 de setembro de 2005. O acusado é policial militar “Eu chamava ele de Narizão. A gente brincava de cabana, no quintal de casa” Adson Souza, 7 anos, sobrinho O céu estava nublado naquela manhã de sábado. E por ser sábado mesmo, Fábio dormiu até tarde. Levantou lá pelas onze, onze e meia. O dia anterior não teve alterações na rotina: estudava à tarde, e em algumas manhãs ajudava o pai, que é marceneiro, fazendo entregas. Antes do almoço, sempre pontual, buscava Kelly, sua namorada, na porta da escola. Fábio corria: entre a saída dela e a entrada dele no colégio, o tempo era curto. Mesmo assim insistia no compromisso por ele mesmo imposto. "Teimoso" e "ciumento", aliás, são as duas Adelmo Bispo Lima 17 anos, estudante Morto a tiros no dia 11 de junho de 2006. Os acusados são policiais militares “Era meu irmão e meu confidente. Com ele, era muito difícil eu ficar triste” Joyce Bispo Silva, 17 anos, irmã primeiras características lembradas por Kelly. Ciúme Fábio também tinha da mãe, Neusa Santos. "Ele não queria que eu arranjasse namorado", diz ela, com um sorriso triste. Lembranças de Fábio estão por toda a casa. Uma palmeira solitária no jardim foi plantada por ele. Também o móvel de madeira na sala, que sustenta a televisão, foi ele quem construiu. "Ele queria ser marceneiro, como o pai". Aos 15 anos, Fábio já tinha planos a longo prazo. Mais de uma vez disse para a mãe: "Vou ganhar dinheiro fazendo móveis, e casar com Kelly". São muitos os papéis sobre a mesa. Difícil saber por qual começar. Elindinalva dos Santos, a dona da casa, primeiro mostra atestados de freqüência, diplomas, certificados de cursos. Informática, negócios. "Meu filho queria ser empreendedor", diz. Adelmo Bispo Lima tinha 17 anos quando foi assassinado por quatro policiais militares em serviço. A família não sabe quantos tiros levou. Pouco importa. Depois do primeiro, que o atingiu na nuca, já caiu desfalecido. Um amigo ainda tentou socorrê-lo, mas teve de se esconder, para não acabar morto também. Naquele sábado nublado, 16 de setembro de 2006, Fábio voltava da praia com um amigo. O sol ia baixo, era fim de tarde. Na hora de descer do ônibus, o amigo percebe ter esquecido a camisa. Os dois voltam. Um policial militar, à paisana, levanta e atira nos dois. Depois foge pela porta de trás. Na delegacia, alegaria: "achei que iam assaltar o ônibus". Na casa modesta em Alto de Coutos, também o muro que fronteia o terreno, sem pintura e sem portão, foi Fábio quem ergueu. Ficou incompleto. Neusa nunca quis terminar. Na mesa, mais lembranças em papel. Aos 11, em uma foto, Adelmo é o garoto de óculos sentado à esquerda, em um banco de igreja. Católico praticante, tinha boa reputação no bairro onde morava e foi morto, Santa Cruz. O bairro tem fama de violento, e a rivalidade de gangues dos vizinhos Nordeste de Amaralina, Vale das Pedrinhas e Serra Verde assusta. Mesmo assim, garante Isac Sales Silva, padrasto de Adelmo, "ele andava por todos os lugares e ninguém mexia. Era respeitado". A relação com o afilhado vem à pessoas entre 12 e 24 anos foram mortas em Salvador de janeiro a junho de 2008 BRUNO AZIZ | Em 2007, o total de mortos foi de tona através de uma outra foto, esta mais recente. Adelmo, sentado, sorri, usando fones de ouvido. Isac, que é músico e compositor, tinha em Adelmo a esperança de um aluno. “Comecei a mostrar a ele como editar músicas e mixar músicas”. Adelmo deixou dois irmãos: Leonardo, 22, e Joyce, 17 anos, estudante. Ela é a garotinha que aparece em uma foto em uma praia fora de Salvador, ao lado de Adelmo, à época com 12 anos. Elindinalva lembra os desejos do filho. "Ele gostava muito de viajar. Queria ser motorista". NÚMEROS DESTA MATÉRIA: CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E ESTATÍSTICA POLICIAL/ POLÍCIA CIVIL; PESQUISAS MAPA DA VIOLÊNCIA IV E V; UNESCO 6 8 | CADERNO DEZ! SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 22/7/2008 | A lógica do ‘um a menos’ NA REAL ❚ No Brasil, algumas vidas valem mais do que outras DIEGO DAMASCENO [email protected] Publicada este ano, a pesquisa Mapa da Violência V, do sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz, confirma: 1) continua a crescer o número de assassinatos no País; 2) é cada vez maior o número de jovens vitimados. Uma amostra dos resultados obtidos por Waiselfisz dá a dimensão do problema: entre 1996 e 2006, o número de assassinatos na população entre 15 e 24 anos aumentou 31,3%. Na população total, esse crescimento foi de 20% no mesmo período. Especialistas ouvidos pelo Dez! foram unânimes na definição do perfil comum dessas vítimas: sexo masculino, negro ou pardo, morador de favelas ou bairros periféricos, baixa escolaridade. Outro ponto comum: os políticos não resolverão o problema se não houver um envolvimento real da população. Mas o desinteresse pela maioria dessas mortes continua sendo o comportamento comum de boa parte da sociedade. A professora Nancy Cardia, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, atribui essa apatia à distância entre classes. “As pessoas não se identificam porque vêem números, não acompanham os casos. A identificação só acontece quando se percebe que há algo em comum com a vítima”, defende. A explicação também faz sentido para Luiz Eduardo Soares, secretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu [RJ] e ex-secretário Nacional de Segurança Pública [2003]. “Se as grandes injustiças atingissem a classe média, haveria grandes comoções e grandes transformações políticas”. Tânia Cordeiro, coordenadora do Fórum Comunitário de Combate à Violência, acredita que as diferenças entre ricos e pobres vão da vida até a morte. “Do mesmo modo que há ‘vidas que valem mais que outras’, há mortes violentas que causam mais pesar, como se houvesse uma balança que atribuísse um peso diferenciado às vítimas”. A idéia de uma sociedade dividida é defendida pelo professor Eduardo Machado, especialista em criminologia e violência do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba. Para ele, falta uma melhor compreensão dos direitos humanos. “Há uma retórica contra direitos humanos, mas, se observarmos bem, existem direitos individuais para uma certa parcela da sociedade. A sociedade acha que direitos humanos se referem a um grupo. E ao lado dessa retórica, há uma prática de restringir esses direitos a um grupo específico da população”. REVANCHE – Quando o crime se aproxima dos mais ricos, as reações se transformam. A costumeira indiferença dá lugar à indignação e à comoção. Imagens de parentes de vítimas pipocam em telejornais e primeiras páginas. Também não demoram a aparecer os pedidos de O número de pessoas mortas por arma de fogo no Brasil entre 1979 e 2003 é de ”justiça a qualquer preço“. Para Luis Eduardo Soares, a idéia de que a morte de um criminoso se justifica não é exclusiva da sociedade brasileira, e surge pela falta de uma experiência democrática que leve à compreensão do espaço público. ”No mundo privado é natural que haja o sentimento de revanche. O problema é projetar esse sentimento na arena pública“. O problema parece se multiplicar, porque mesmo aqueles que não são atingidos diretamente pela violência acabam agindo sob sua influência. Na visão de Eduardo Machado, ”O sentimento de insegurança é reflexo da violência, mas tem uma independência em relação a ela. Uma vez desencadeado, adquire dinâmica própria“, afirma. POLÍCIA – Também daí aparecem as críticas à atuação da Polícia Militar. Alguns estudiosos falam da estrutura precária, enquanto outros, como Eduardo Machado, vêem um o problema na filosofia da corporação. Para o antropólogo e major da PM Ramalho Neto, comandante da 40ª Companhia Independente, a atuação da polícia é resultado direto da sociedade que a acolhe. ”O Estado quer combater a violência usando apenas a polícia. É um erro“. O major também refuta a idéia de que a PM seja justiceira. ”Não há política de extermínio na PM. Queremos prender o bandido vivo, para obter informações“. E propõe: ”Se a polícia é tão ruim como dizem, talvez seja hora de repensar o seu modelo“. SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 22/7/2008 No ranking das capitais em que mais morrem jovens, Salvador é a | CADERNO DEZ! | 9 ENTREVISTA ❚ Clarissa Huguet, coordenadora do projeto COAV - Cidades [Children in Organized Armed Violence], ONG Viva Rio “Políticas de segurança atuais ampliam número de mortes” A taxa de homicídios de afrodescendentes no Brasil é maior do que a de brancos em FOTO ARQUIVO PESSOAL A experiência de Clarissa Huguet no estudo da violência tem as cores e o peso de quatro realidades. Como coordenadora do projeto COAV – Cidades, que trabalha com crianças e jovens envolvidos em situações de violência armada, participou de estudos em Medellín [Colômbia], Cidade do Cabo [África do Sul] e Zacatecoluca [El Salvador], além de Niterói [RJ]. Das pesquisas, resultaram propostas de combate à violência nessas cidades. Clarissa, que também faz parte do Conselho Nacional da Juventude, falou por e-mail ao Caderno Dez! Mídia melhora cobertura, mas ainda traz distorções No enfrentamento do problema da violência, a mídia ocupa um lugar central, mas incerto. É consenso a sua importância na construção do imaginário social e sua influência no forjamento das visões de mundo. Para a jornalista Suzana Varjão, autora de Micropoderes, Macroviolências, estudo sobre o noticiário da violência, os meios de comunicação de massa são peças essenciais no combate eficaz às violências. Mas o discurso da mídia, “conservador e violento”, e os vícios da apuração ainda precisam ser revistos. “Os meios de comunicação de massa estão centrados sobretudo no ato violento, e falam baseados quase que unicamente em fontes institucionais de informação, vinculadas ao aparato repressivo de Estado. Isso causa distorções na percepção pública do fenômeno”. DOMINAÇÃO – Ainda que reproduza um pensamento de classe, o discurso da mídia tem penetração em toda a sociedade. O professor do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba Eduardo Paes Machado, observa que há uma internalização da dominação mesmo por parte dos dominados. Tanto social, como política, jurídica e simbólica. “Não existiria sociedade se não houvesse essa alquimia que permite o dominado interiorizar a dominação”, teoriza. Machado defende não existir uma posição definitiva sobre o papel da mídia. Mas também reconhece alguns pontos de influência no comportamento da sociedade. “As pessoas almoçam hoje vendo noticiários sobre o crime. Não tenho avaliação científica, mas acho que fazem com que as pessoas naturalizem as situações sem refletir sobre elas”. Silvia Ramos, co-autora da pesquisa Mídia e Violência: novas tendências na cobertura da violência no País, vê uma melhora na cobertura. “A mídia tem um papel crucial de ajudar o País a desentortar a própria cabeça. Há muitos veículos de imprensa preocupados com isso. Existe uma nova geração de jornalistas que não aceita mais essas distorções”. ❛ “O jovem brasileiro é vítima agente da violência. Mas é, sobretudo, vítima”. AT – Por que o número de jovens assassinados no Brasil continua tão alto? Clarissa Huguet – É importante ressaltar que com menos de 3% da população mundial, o Brasil é responsável por 11% de mortes por arma de fogo no mundo. O jovem brasileiro, principalmente o afrodescendente, pobre e morador de periferia figura em ambos os lados dessa moeda, como vítima e como perpetrador da violência. Mas especialmente como vítima. É comprovado que as políticas de segurança pública que priorizam a política de combate propriamente dita irão aumentar os níveis de violência atingindo o público jovem já descrito e engordando as estatísticas de homicídio juvenil. Não tem como ser diferente... AT – Por que o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda é visto como ferramenta de impunidade? CH – Principalmente por dois motivos: desconhecimento da população em geral sobre o Estatuto, e pelo fato do tempo máximo de internação a que um adolescente possa ser condenado ser de três anos. Mas cabe aqui esclarecer: o adolescente no Brasil já é punido quando em conflito com a lei, a partir dos 12 anos. É uma grande falácia afirmar que tais adolescentes não são punidos. AT – Como a imprensa pode ajudar a diminuir essas mortes? CH – A imprensa já ajudaria muito se deixasse de reproduzir três mitos: a superdimensão da delinqüência, a periculosidade do jovem e sua impunidade. Os três mitos juntos contribuem para a formulação da idéia de um jovem que deve ser punido antes de assistido e que é mais responsável pelos índices de violência que as circunstâncias que o colocaram em conflito com a lei. AT – Como combater a violência contra o jovem? CH – O problema é complexo, não há uma fórmula mágica a ser seguida. Porém, a meu ver existem alguns pontos-chave que têm grande influência nesse quadro, como a corrupção em todos os níveis da sociedade brasileira e a impunidade. A polícia necessita de uma grande reforma, desde salários mais justos até uma limpeza nos seus quadros, para que maus policiais deixem a corporação. E a sociedade civil precisa cobrar atitudes, de governantes e de si mesma. A dificuldade é que a população está amedrontada, e tende a agir de forma reativa e simplista. Isso se comprovou com maioria da população em defesa da redução da maioridade penal, medida que não atinge as causas do problema. O adolescente que vai preso depois volta ao convívio social certamente muito mais perigoso do que antes. i Notícia integrada: Íntegra da entrevista no blog do Dez! | blogdodez.atarde.com.br