Crônicas 1
PARA GOSTAR DE LER
PARA GOSTAR DE LER 1
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
FERNANDO SABINO
RUBEM BRAGA
PAULO MENDES CAMPOS
Humor é o que não falta neste livro, que traz crônicas escritas por quem mais
entende do assunto: Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes
Campos e Rubem Braga. É só ler estes textos para entender, afinal, o que é a
crônica. Mas se precisar mesmo de uma definição, fique com esta: crônica é um
texto tão gostoso de ler que dá até vontade de escrever.
Carlos Drummond de Andrade
Fernando Sabino
Rubem Braga
Paulo Mendes Campos
Este livro apresenta os mesmos textos ficcionais das edições anteriores.
PARA GOSTAR DE LER 1
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
FERNANDO SABINO
RUBEM BRAGA
PAULO MENDES CAMPOS
Diretor editorial adjunto
Fernando Paixão
Editora adjunta
Carmen Lucia Campos
Revisão
Ivany Picasso Batista (coord.)
Editora de arte
Suzana Laub
Editor de arte assistente
Antonio Paulos
Edição de arte
Ilustração da capa
Mário Cafiero
Ilustrações internas
Aderbal Moura
Colaboração na seleção de textos
Edson Lima Gonçalves, Francisco Marto de Moura, Icléa Mello Gonçalves, Ilka
Brunhilde Laurito, José Inaldo Godoy, José Luís Pieroni Rodrigues, Sarah Ortiz
Capellari
Colaboração na redação de textos
Malu Rangel, Margarete Moraes, Wagner D'Ávila
Criação do projeto original da coleção
Jiro Takahashi
Suplemento de leitura
Veio Libri
Editoração eletrônica
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Eduardo Rodrigues
Edição eletrônica de imagens
Cesar Wolf
85 08 05289 8
2002
Todos os direitos reservados pela Editora Ática
Rua Barão de Iguape, 110 - CEP 01507-900
Caixa Postal 2937 - CEP 01065-970 - São Paulo - SP
Tel.: 0-11 3346-3000 - Fax: 0-11 3277-4146
Internet: http://www.atica.com.br
e-mail: [email protected]
Sumário
Amigo estudante 7
Crianças
Hora de dormir, Fernando Sabino 11
Menina no jardim, Paulo Mendes Campos 14
No restaurante, Carlos Drummond de Andrade 17
Negócio de menino, Rubem Braga 20
Animais
O pintinho, Carlos Drummond de Andrade 25
História triste de tuim, Rubem Braga 28
A verdadeira história de Pio, Paulo Mendes Campos 31
O dia da caça, Fernando Sabino 33
No mundo do consumo
Conversa de compra de passarinho, Rubem Braga 41
Aspirador, Fernando Sabino 44
Caso de arroz, Carlos Drummond de Andrade 46
A cesta, Paulo Mendes Campos 48
Tipos humanos
Os bons ladrões, Paulo Mendes Campos 53
Serás ministro, Carlos Drummond de Andrade 56
Se não me falha a memória, Fernando Sabino 59
O padeiro, Rubem Braga 61
A linguagem e o homem
Macacos me mordam, Fernando Sabino 65
Recalcitrante, Carlos Drummond de Andrade 69
Recado ao senhor 903, Rubem Braga 72
Continho, Paulo Mendes Campos 74
Conhecendo os autores 75
Referências bibliográficas 85
Amigo estudante
Este livro não tem a intenção de ensinar coisa alguma a você. Nem gramática nem
redação nem qualquer matéria incluída no programa de sua série.
Nós só queremos convidar você a descobrir um mundo maravilhoso, dentro do mundo
em que você vive. Este mundo é a leitura. Está à disposição de qualquer um, mas
nem toda gente sabe que ele existe, e por isso não pode sentir o prazer que ele
dá.
Experimente abrir este livro em qualquer página onde começa uma crônica. Crônica
é um escrito de jornal que procura contar ou comentar histórias da vida de hoje.
Histórias que podem ter acontecido com todo mundo: até com você mesmo, com
pessoas da sua família ou com seus amigos.
Mas uma coisa é acontecer, outra coisa é escrever aquilo que aconteceu. Então
você notará, ao ler a narração do fato, como ele ganha um interesse especial,
produzido pela escolha e pela arrumação das palavras. E aí começa a alegria da
leitura, que vai longe. Ela nos faz conferir, pensar, entender melhor o que se
passa dentro e fora da gente. Daí por diante a leitura ficará sendo um hábito, e
esse hábito leva a novas descobertas. Uma curtição.
As crônicas serão apenas um começo.
Há um infinito de coisas deliciosas que só a leitura oferece, e que você irá
encontrando sozinho, pela vida afora, na leitura de bons livros.
Boa sorte, e um abraço para você, de seus amigos cronistas.
Carlos Drummond de Andrade
Fernando Sabino
Paulo Mendes Campos
Rubem Braga
Crianças
Hora de dormir
Fernando Sabino
- Por que não posso ficar vendo televisão?
- Porque você tem de dormir.
- Por quê?
- Porque está na hora, ora essa.
- Hora essa?
- Além do mais, isso não é programa para menino.
- Por quê?
- Porque é assunto de gente grande, que você não entende.
- Estou entendendo tudo.
- Mas não serve para você. É impróprio.
- Vai ter mulher pelada?
- Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que você tem colégio amanhã cedo.
- Todo dia eu tenho.
- Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso e vá dormir.
- Espera um pouquinho.
- Não espero não.
- Você vai ficar aí vendo e eu não vou.
- Fico vendo não, pode desligar. Tenho horror de televisão. Vamos, obedeça a seu
pai.
- Os outros meninos todos dormem tarde, só eu que durmo cedo.
- Não tenho nada que ver com os outros meninos: tenho que ver com meu filho. Já
para a cama.
- Também eu vou para a cama e não durmo, pronto. Fico acordado a noite toda.
- Não comece com coisa não, que eu perco a paciência.
- Pode perder.
- Deixe de ser malcriado.
- Você mesmo que me criou.
- O quê? Isso é maneira de falar com seu pai?
- Falo como quiser, pronto.
- Não fique respondendo não: cale essa boca.
- Não calo. A boca é minha.
- Olha que eu ponho de castigo.
- Pode pôr.
- Venha cá! Se der mais um pio, vai levar umas palmadas.
- ...
- Quem é que anda lhe ensinando esses modos? Você está ficando é muito
insolente.
- Ficando o quê?
- Atrevido, malcriado. Eu com sua idade já sabia obedecer. Quando é que eu teria
coragem de responder a meu pai como você faz. Ele me descia o braço, não tinha
conversa. Eu porque sou muito mole, você fica abusando... Quando ele falava está
na hora de dormir, estava na hora de dormir.
- Naquele tempo não tinha televisão.
- Mas tinha outras coisas.
- Que outras coisas?
- Ora, deixe de conversa. Vamos desligar esse negócio. Pronto, acabou-se. Agora
é tratar de dormir.
- Chato.
- Como? Repete, para você ver o que acontece.
- Chato.
- Tome, para você aprender. E amanhã fica de castigo, está ouvindo? Para
aprender a ter respeito a seu pai.
- ...
- E não adianta ficar aí chorando feito bobo. Venha cá.
- Amanhã eu não vou ao colégio.
- Vai sim senhor. E não adianta ficar fazendo essa carinha, não pense que me
comove. Anda, venha cá.
- Você me bateu...
- Bati porque você mereceu. Já acabou, pare de chorar. Foi de leve, não doeu nem
nada. Peça perdão a seu pai e vá dormir.
- ...
- Por que você é assim, meu filho? Só para me aborrecer. Sou tão bom para você,
você não reconhece. Faço tudo que você me pede, os maiores sacrifícios. Todo dia
trago para você uma coisa da rua. Trabalho o dia todo por sua causa mesmo e,
quando chego em casa para descansar um pouco, você vem com essas coisas. Então é
assim que se faz?
-
...
Então você não tem pena de seu pai? Vamos! Tome a bênção e vá dormir.
Papai.
Que é?
Me desculpe.
Está desculpado. Deus o abençoe. Agora vai.
Por que não posso ficar vendo televisão?
Menina no jardim
Paulo Mendes Campos
Em seus 14 meses de permanência neste mundo, a garotinha não tinha tomado o
menor conhecimento das leis que governam a nação. Isso se deu agora na praça,
logo na chamada República Livre de Ipanema.
Até ontem ela se comprazia em brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um
tédio enorme do barro de que somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão,
ergueu o rosto, ficou pensativa, investigando com ar aborrecido o mundo
exterior. Por um momento seus olhos buscaram o jardim à procura de qualquer
novidade. E aí ela descobriu o verde extraordinário: a grama. Determinada,
levantou-se do chão e correu para a relva, que era, vá lá, bonita, mas já
bastante chamuscada pela estiagem.
Não durou mais que três minutos seu deslumbramento. Da esquina, um crioulão de
bigodes, representante dos Poderes da República, marchou até ela, buscando
convencê-la de que estava desrespeitando uma lei nacional, um regulamento
estadual, uma postura municipal, ela ia lá saber o quê.
Diga-se, em nome da verdade, que no diálogo que se travou em seguida, maior
violência se registrou por parte da infratora do que por parte da Lei, um guarda
civil feio, mas invulgarmente urbano.
- Desce da grama, garotinha - disse a Lei.
- Blá blé bli bá - protestou a garotinha.
- É proibido pisar na grama - explicou o guarda.
- Bá bá bá - retrucou a garotinha com veemência.
- Vamos, desce, vem para a sombra, que é melhor.
- Buh buh - afirmou a garotinha, com toda razão, pois o sol estava mais
agradável do que a sombra.
A insubmissão da garotinha atingiu o clímax quando o guarda estendeu-lhe a mão
com a intenção de ajudá-la a abandonar o gramado. A gentileza foi revidada com
um safanão. Dura lex sed lex.
- Onde está sua mamãe?
A garotinha virou as costas ao guarda, com desprezo. A essa altura levantou-se
do banco, de onde assistia à cena, o pai da garota, que a reconduziu, sob
chorosos protestos, à terra seca dos homens, ao mundo sem relva que o Estado
faculta ao ir e vir dos cidadãos.
A própria Lei, meio encabulada com o seu rigor, tudo fez para que o pai da
garotinha se persuadisse de que, se não há mal para que uma brasileira tão
pequenininha pise na grama, isso de qualquer forma poderia ser um péssimo
exemplo para os brasileiros maiores.
- Aberto o precedente, os outros fariam o mesmo - disse o guarda com imponência.
- Que fizessem, deveriam fazê-lo - disse o pai.
- Como? - perguntou o guarda confuso e vexado.
- A grama só podia ter sido feita, por Deus ou pelo Estado, para ser pisada. Não
há sentido em uma relva na qual não se pode pisar.
- Mas isso estraga a grama, cavalheiro!
- E daí? Que tem isso?
- Se a grama morrer, ninguém mais pode ver ela - raciocinou a Lei.
- E o senhor deixa de matar a sua galinha só porque o senhor não pode mais ver
ela?
O guarda ficou perplexo e mudo. O pai, indignado, chegou à peroração:
- É evidente que a relva só pode ter sido feita para ser pisada. Se morre, é
porque não cuidam dela. Ou porque não presta. Que morra. Que seja plantado em
nossos parques o bom capim do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente
pelo menos o pouco espaço dos nossos poucos jardins. O que é preciso plantar,
seu guarda, é uma semente de bom-senso nos sujeitos que fazem os regulamentos.
- Buh bah - concordou a menina, correndo em disparada para a grama.
- O senhor entende o que ela diz? - perguntou o guarda.
- Claro - respondeu o pai.
- Que foi que ela disse agora?
- Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para o diabo que o carregue.
No restaurante
Carlos Drummond de Andrade
- Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabrochando na
ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não
precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria.
Queria lasanha.
O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu
para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.
- Meu bem, venha cá.
- Quero lasanha.
- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.
- Não, já escolhi. Lasanha.
Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em
sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:
- Vou querer lasanha.
- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.
- Gosto, mas quero lasanha.
- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de
camarão. Tá?
- Quero lasanha, papai. Não quero camarão.
- Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
- Você come camarão e eu como lasanha.
O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:
- Quero uma lasanha.
O pai corrigiu:
- Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.
A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é
proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os
lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela
atacou:
- Moço, tem lasanha?
- Perfeitamente, senhorita.
O pai, no contra-ataque:
- O senhor providenciou a fritada?
- Já, sim, doutor.
- De camarões bem grandes?
- Daqueles legais, doutor.
- Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo?
- Uma lasanha.
- Traz um suco de laranja pra ela.
Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para
surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos,
não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa
manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.
- Estava uma coisa, hem? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. Sábado que vem, a gente repete... Combinado?
- Agora a lasanha, não é, papai?
- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?
- Eu e você, tá?
- Meu amor, eu...
- Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.
O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha,
bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A
garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com
força total, o poder ultrajovem.
Negócio de menino
Rubem Braga
Tem dez anos, é filho de um amigo, e nos encontramos na praia:
- Papai me disse que o senhor tem muito passarinho...
- Só tenho três.
- Tem coleira?
- Tenho um coleirinha.
- Virado?
- Virado.
- Muito velho?
- Virado há um ano.
- Canta?
- Uma beleza.
- Manso?
- Canta no dedo.
- O senhor vende?
- Vendo.
- Quanto?
- Dez contos.
Pausa. Depois volta:
- Só tem coleira?
- Tenho um melro e um curió.
- É melro mesmo ou é vira?
- É quase do tamanho de uma graúna.
- Deixa coçar a cabeça?
- Claro. Come na mão...
- E o curió?
- É muito bom curió.
- Por quanto o senhor vende?
- Dez contos.
Pausa.
- Deixa mais barato...
- Para você, seis contos.
- Com a gaiola?
- Sem a gaiola.
Pausa.
- E o melro?
- O melro eu não vendo.
- Como se chama?
- Brigitte.
- Uai, é fêmea?
- Não. Foi a empregada que botou o nome. Quando ela fala com ele, ele se arrepia
todo, fica todo despenteado, então ela diz que é Brigitte.
Pausa.
- O coleira o senhor também deixa por seis contos?
- Deixo por oito contos.
- Com a gaiola?
- Sem a gaiola.
Longa pausa. Hesitação. A irmãzinha o chama de dentro d'água. E, antes de sair
correndo, propõe, sem me encarar:
- O senhor não me dá um passarinho de presente, não?
Animais
O pintinho
Carlos Drummond de Andrade
Foi talvez de um filme de Walt Disney que nasceu a moda de enfeitar com
pintinhos vivos as mesas de aniversário infantil. Era uma excelente idéia, no
mundo ideal do desenho animado; conduzida para o mundo concreto dos
apartamentos, também alcançou êxito absoluto. Muitos garotos e garotas jamais
tinham visto um pinto de verdade, e queriam comê-lo, assim como estava,
imaginando ser uma espécie de doce mecânico, mais saboroso. Houve que contê-los
e ensinar-lhes noções urgentes de biologia. As senhoras e moças deliciaram-se
com a surpresa e gula dos meninos, e foram unânimes em achar os pintos uns
amorecos. Mas estes, encurralados num centro de mesa, entre flores que não lhes
diziam nada ao paladar, e atarantados por aquele rumor festivo e suspeito,
deviam sentir-se absolutamente desgraçados.
Como a celebração do aniversário terminasse, e ninguém sabia o que fazer com os
pintos, pareceu à dona da casa que seria gentil e cômodo oferecer um a cada
criança, transferindo assim às mães o problema do destino a dar-lhes. O único
inconveniente da solução era que havia mais guris do que pintos, e não foi
simples convencer aos não contemplados que aquilo era brincadeira para guris
ainda bobinhos, e que mocinhas e rapazinhos de nível mental superior não se
preocupam com essas frioleiras.
Os pintos, em conseqüência, espalharam-se pela cidade, cada qual com seu
infortúnio e seu proprietário exultante. O interesse das primeiras horas
continuava a revestir-se de feição ameaçadora para a integridade física dos
recém-nascidos (se é que pinto produzido em incubadora realmente nasce). Um
deles foi parar num apartamento refrigerado, e posto a um canto da copa, sobre
uma caixinha de papelão forrada de flanela. Semeou-se em redor o farelinho
malcheiroso que o gerente do armazém recomendara como alimento insubstituível
para pintos tenros, e que (o pai leu na enciclopédia) devia ser, teoricamente,
farinha de baleia. A idéia da baleia alimentando o pinto encheu o garotinho de
assombro, e pela primeira vez o mundo lhe apareceu como um sistema.
O pinto sentia um frio horroroso, mas desprezava a flanela, e a todo instante se
descobria, tentando fugir. Procurava algo que ele mesmo não sabia se era calor
da galinha ou da criadeira. À falta de experiência, dirigiu seus passinhos na
direção das saias que circulavam pela copa. As saias nada podiam fazer por ele,
senão recolocá-lo em seu ninho, mas o pinto procurava sempre, e piava.
O garoto queria carregá-lo, inventava comidas que talvez interessassem àquele
paladar em formação. Não senhor - explicou-lhe a mãe:
- Não se pode pegar, não se pode brincar, não se pode dar nada, a não ser farelo
e água.
- Nem carinho?
- Meu amor, carinho de gente é perigoso para bicho pequeno.
Mas o pinto, mesmo sem saber, estava querendo era um palmo sujo de terra, com
insetos e plantas comestíveis, o raio de sol batendo na poça d'água caída do
céu, e companhia à sua altura e feição, e, numa casa assim tão bonita e
confortável, esses bens não existiam. E piava.
A situação começou a preocupar a dona da casa, que telefonou à amiga doadora do
pinto: que fazer com ele?
- Querida, procure criá-lo com paciência, e no fim de três meses bote na panela,
antes que vire galo. É o jeito.
Não virou galo, nem caiu na panela. No fim de três dias, piando sempre e
sentindo frio, o pinto morreu. Foi sua primeira e única manifestação de vida,
propriamente dita.
O menino queria guardá-lo consigo, supondo que, inanimado, o pinto se
transformara em brinquedo, manuseável. Foi chamado para dentro, e quando voltou
o corpinho havia desaparecido na lixeira.
História triste de tuim
Rubem Braga
João-de-barro é um bicho bobo que ninguém pega, embora goste de ficar perto da
gente; mas de dentro daquela casa de joão-de-barro vinha uma espécie de choro,
um chorinho fazendo tuim, tuim, tuim...
A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com uma vara
de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até o outro menino
apanhar. Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois do corredor de
entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes, não de joão-de-barro,
mas de tuim.
Você conhece, não? De todos esses periquitinhos que tem no Brasil, tuim é capaz
de ser o menor. Tem bico redondo e rabo curto e é todo verde, mas o macho tem
umas penas azuis para enfeitar. Três filhotes, um mais feio que o outro, ainda
sem penas, os três chorando. O menino levou-os para casa, inventou comidinhas
para eles; um morreu, outro morreu, ficou um.
Geralmente se cria em casa é casal de tuim, especialmente para se apreciar o
namorinho deles. Mas aquele tuim macho foi criado sozinho e, como se diz na
roça, criado no dedo. Passava o dia solto, esvoaçando em volta da casa da
fazenda, comendo sementinhas de imbaúba. Se aparecia uma visita fazia-se aquela
demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo: tuim,
tuim, tuim! Às vezes demorava, então a visita achava que aquilo era brincadeira
do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.
Mas o pai disse: "menino, você está criando muito amor a esse bicho, quero
avisar: tuim é acostumado a viver em bando. Esse bichinho se acostuma assim,
toda tarde vem procurar sua gaiola para dormir, mas no dia que passar pela
fazenda um bando de tuins, adeus. Ou você prende o tuim ou ele vai-se embora com
os outros; mesmo ele estando preso e ouvindo o bando passar, você está arriscado
a ele morrer de tristeza".
E o menino vivia de ouvido no ar, com medo de ouvir bando de tuim.
Foi de manhã, ele estava catando minhoca para pescar quando viu o bando chegar;
não tinha engano: era tuim, tuim, tuim... Todos desceram ali mesmo em
mangueiras, mamonas e num bambuzal, divididos em pares. E o seu? Já tinha
sumido, estava no meio deles, logo depois todos sumiram para uma roça de arroz;
o menino gritava com o dedinho esticado para o tuim voltar; nada.
Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa, disse: "venha
cá". E disse: "o senhor é um homem, estava avisado do que ia acontecer,
portanto, não chore mais".
O menino parou de chorar, porque tinha brio, mas como doía seu coração! De
repente, olhe o tuim na varanda! Foi uma alegria na casa que foi uma beleza, até
o pai confessou que ele também estivera muito infeliz com o sumiço do tuim.
Houve quase um conselho de família, quando acabaram as férias: deixar o tuim,
levar o tuim para São Paulo? Voltaram para a cidade com o tuim, o menino toda
hora dando comidinha a ele na viagem. O pai avisou: "aqui na cidade ele não pode
andar solto; é um bicho da roça e se perde, o senhor está avisado".
Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas para soltar o tuim
dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala; a mãe e a irmã não
aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.
Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigoso, desde que ficasse perto;
se ele quisesse voar para longe era só chamar, que voltava; mas uma vez não
voltou.
De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: "que é tuim?" perguntavam
pessoas ignorantes. "Tuim?" Que raiva! Pedia licença para olhar no quintal de
cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para
outra.
Teve uma idéia, foi ao armazém de "seu" Perrota: "tem gaiola para vender?"
Disseram que tinha. "Venderam alguma gaiola hoje?" Tinham vendido uma para uma
casa ali perto.
Foi lá, chorando, disse ao dono da casa: "se não prenderam o meu tuim então por
que o senhor comprou gaiola hoje?"
O homem acabou confessando que tinha aparecido um periquitinho verde sim, de
rabo curto, não sabia que chamava tuim. Ofereceu comprar, o filho dele gostara
tanto, ia ficar desapontado quando voltasse da escola e não achasse mais o
bichinho. "Não senhor, o tuim é meu, foi criado por mim." Voltou para casa com o
tuim no dedo.
Pegou uma tesoura: era triste, era uma judiação, mas era preciso; cortou as
asinhas; assim o bicho poderia andar solto no quintal, e nunca mais fugiria.
Depois foi lá dentro fazer uma coisa que estava precisando fazer, e, quando
voltou para dar comida a seu tuim, viu só algumas penas verdes e as manchas de
sangue no cimento. Subiu num caixote para olhar por cima do muro, e ainda viu o
vulto de um gato ruivo que sumia.
Acabou-se a história do tuim.
A verdadeira história de Pio
Paulo Mendes Campos
No princípio do ano, para amenizar o reinício das aulas, as crianças compraram
um pinto na feira. Deram-lhe o nome de Pio. Todos que o antecederam tinham
morrido, mas dessa vez residia no edifício uma senhora que entendia da
sobrevivência de pinto de feira em apartamento perto do mar. Instruídas por ela,
as crianças conseguiram manter acesa dentro de Pio a faísca da vida. Já de
pequenino, mostrou-se pinto esquisito, achegado aos seres humanos e danado de
andejo. Piava com monotonia os segundos todos do tempo, como se o chateasse a
passagem das horas.
Em mudança de casa, passou dois dias subindo e descendo a escada, piando,
piando, entre as pernas dos carregadores portugueses. Seu prestígio cresceu com
o episódio; era tratado como gente e se orgulhava disso, assumindo um ar à
vontade e presumido de bípede empenado.
Mas acabou me aborrecendo. Como as crianças tinham atingido a irremovível crise
do cachorrinho, acabei cedendo, mas exigindo a extradição de Pio para a casa que
o Zanine estava construindo na Barra da Tijuca.
Meses depois, ao visitar o amigo, Pio já era quase um galo, branco e bonito, mas
extravagante e presunçoso. Indiferente ao terreiro, preferia desfilar na sala e
na varanda, misturando-se às pessoas, peito estufado, chamando atenção para uma
figura que ele queria irresistível.
Mais algum tempo, virou galo mesmo e aí não demorou a revelar os indícios
neuróticos que o agitavam. Pio nunca tinha visto na vida outro ser galináceo.
Acreditava-se o único ente de sua raça, superior e absoluto. Firmou-se na crença
carismática, deu para agredir os homens. Como estes se defendessem com a ponta
do sapato, mudou de tática, bicando-lhes à traição a barriga da perna. Só
respeitava o próprio Zanine, a quem não tinha afeição, mas considerava com
gratuidade um aliado no combate contra o mundo. Seguia o dono por todos os
cantos, não como um cão humilde, mas com a imponência do chefe de gabinete
acompanhando o ministro.
Zanine, como aconteceu comigo, embora achasse graça na birutice de Pio, acabou
saturado, dando o boboca de presente ao poeta Rubem Braga, que sempre foi um
infalível receptador de aves desajustadas.
Já se sabe, o Braga é um fazendeiro do ar, morando entre hortaliças e cajueiros
num décimo terceiro andar de Ipanema.
Insolente diante da natureza, Pio fez estragos na horta, desenterrou
sementeiras, estraçalhou as couves, dando-se ainda à petulância de aborrecer,
com relativo escândalo, a filha da cozinheira. Também o Braga, achando graça,
foi complacente, impedindo que a cozinheira transformasse o doidinho em galo ao
molho de cabidela. Mas acabou igualmente cheio, dando Pio ao hortelão português,
dono de farto galinheiro no subúrbio. Antes, contudo, o galo foi colocado diante
de um espelho, na esperança geral de que descobrisse o outro, o próximo, o irmão
galináceo que ele devia amar como a si mesmo.
Não quis saber de nada, persistindo na neurose: durante meio minuto encarou a
imagem com estupefação, deu-lhe as costas e se foi, único de sua espécie, dono
da pretensão que o inflava da crista sanguínea ao facho da cauda.
Enfim chegou a hora do galinheiro, quando Pio passaria a viver uma vida normal
dentro da comunidade, encontrando na força do amor a salvação.
Pois o bestalhão, mal ingressou no harém, matou a bicadas duas galinhas
sinceras. E o português o comeu.
O dia da caça
Fernando Sabino
A caçada estava marcada para as 7 horas. Desde as 6, porém, Paulo e eu já
estávamos de pé, aguardando a chegada de seu Chico Caçador.
- Seu Chico vai trazer as espingardas?
- Vai. E cachorro também.
- Cachorro? Para que cachorro?
Olhei com pena meu companheiro de aventura:
- Onde você já viu caçada sem cachorro, rapaz?
- Ele disse que hoje vai ser só passarinho.
- Passarinho para ele é codorna, macuco, essas coisas...
Em pouco chegava seu Chico, todo animado:
- Tudo pronto, meninos?
De pronto só tínhamos o corpo. Seu Chico trazia atravessadas às costas duas
espingardas de caça e usava um gibão de couro, uma cartucheira, vinha todo
fantasiado de caçador. Ao seu redor saracoteava um cachorro:
- O melhor perdigueiro destas redondezas.
Na varanda da fazenda, seu Chico se pôs a encher os cartuchos, meticulosamente,
usando para isso uns aparelhinhos que trouxera, um saquinho de pólvora, outro de
chumbo:
- Vai haver codorna no almoço para a família toda - dizia, entusiasmado.
Despedimo-nos comovidos da família e partimos através do pasto. Seu Chico,
compenetrado, ia dando instruções, procurando impressionar:
- Parou, esticou o corpo, endureceu o rabo? Tá amarrado. É só esperar o bichinho
voar e tacar fogo!
- Seu Chico, nós não vamos passar perto daquele touro, vamos?
- Aquele touro é uma vaca.
A vaca levantou a cabeça e ficou a olhar-nos, na expectativa.
- Por via das dúvidas, me dá aí essa espingarda.
Fomos passando com jeito perto da vaca.
- Bom dia - disse eu.
- Buu - respondeu ela.
Ao sopé do morro o cachorro se imobilizou.
- É agora! Me dá aqui a espingarda!
- Fiquem quietos - comandou seu Chico, num sussurro.
- Que foi, seu Chico? Não estou vendo nada...
Alguma coisa deslizou como um rato por entre o capim rasteiro, levantou vôo
espadanando as asas.
- Fogo! Fogo!
Paulo atirou na codorna, eu atirei em seu Chico.
- Cuidado!
- Que bicho é esse?
Seu Chico suspirou, resignado:
- Era uma codorna. Não tem importância... Olha, quando atirar outra vez, vira o
cano pro ar. O chumbo passou tinindo no meu ouvido.
No ar ficaram apenas duas fumacinhas. Fomos andando, seu Chico carregou
novamente nossas espingardas. Assim que o cachorro se imobilizava, ficávamos
quietos, farejando ao redor, canos para o ar.
- Vira isso pra lá!
- Agora! Fogo!
Mal tínhamos tempo de ver uma coisa escura desaparecer no céu, como um disco
voador.
- Assim também não vai, seu Chico. Não dá tempo...
- Me dá aqui essa espingarda. Deixa eu matar a primeira para mostrar como é que
é.
Andamos o dia todo pelo pasto. Nada de caça.
- Nem ao menos uma codorninha - suspirava seu Chico, quando o sol começou a
dobrar o céu. - Tem dia que eu mato mais de quinze macucos.
Andando, subindo morro, saltando cerca, atravessando valas, pisando em barro,
escorregando no capim. O estômago começou a doer.
- Seu Chico, o melhor é a gente desistir. Estamos com fome.
- Hoje no jantar vocês comem perdiz. Ou eu desisto de ser caçador.
Sua honra estava em jogo. A tarde avançava e seu Chico perscrutando o pasto,
açulando o cachorro. Paulo, sentado num toco - desistira de andar: tirara o
sapato e coçava o dedão do pé. Resolvi também fazer uma parada para caçar
carrapatos. Seu Chico desapareceu numa dobra do terreno. De repente, pum! pum! era o caçador solitário. Teria acertado desta vez? A vaca de novo. Vinha vindo
pachorrentamente pela picada aberta por ela própria.
- Cuidado, Paulo! - preveni. - Olha a vaca.
Paulo se voltou para a vaca, que já ia passando ao largo:
- Buuu! - fez com desprezo.
A vaca se deteve, voltou-se nos flancos e de súbito disparou num pesado galope
em sua direção. Paulo deu um salto, abriu a correr, passou por mim como um raio:
- Foge! Foge!
Atrás de nós a terra estremecia e a vaca bufava, escavando o chão com as patas.
- Seu Chico! Socorro!
Em poucos minutos e aos saltos, escorregadelas, trambolhões, cruzamos o terreno
que leváramos toda a manhã a conquistar. Já na porteira da fazenda, nos voltamos
para ver a vaca, que ficara para trás, entretida com uma touceira de capim.
- Devo ter falado algum palavrão em língua de vaca.
Em pouco regressava seu Chico, cabisbaixo, desmoralizado, quase chorando:
- Errei até em anu.
Procuramos consolá-lo:
- Um dia é da caça e outro do caçador, seu Chico.
Deixou conosco as espingardas e foi-se pelo pasto mesmo, evitando a fazenda e o
opróbrio aos olhos dos moradores. Paulo e eu nos coçávamos, sentados no travão
da cerca, quando ambos demos um grito:
- Epa! Que é aquilo?
- Você viu?
Uma caça, uma caça enorme! Um gigantesco galináceo que ao longe ganhava o morro
em disparada, sumindo ali, surgindo lá - uma cegonha?
- Cegonha nada! Uma avestruz!
Saímos como loucos em perseguição da avestruz. Nas fraldas do morro disparamos o
primeiro tiro.
- Socorro! - berrou a avestruz.
Deu um salto e abriu fuga com suas pernocas longas, morro acima. Ah, se seu
Chico nos visse agora!
- Pum!
- Socorro!
E a ave pernalta fugia espavorida, escondendo-se na vegetação. Íamos no seu
encalço, implacáveis.
- Pum! - trovejava a espingarda.
- Não! Não! - implorava a avestruz na sua fuga, largando penas pelo caminho.
A noite veio surpreender-nos do outro lado do morro, já às portas da cidade.
Voltamos para a fazenda estropiados, roupas rasgadas, sapatos pesados de barro.
Fomos recebidos com alegre expectativa:
- E então? Caçaram alguma coisa?
- Com seu Chico, nem um passarinho. Mas depois que ele foi embora quase
apanhamos uma caça esplêndida, uma avestruz deste tamanho...
O dono da fazenda pôs as mãos na cabeça:
- Minha siriema, que eu mandei vir da Argentina! Imagine o susto da coitadinha!
Embarafustamo-nos pela cozinha, completamente derrotados.
- Que vamos ter hoje no jantar? - perguntei à cozinheira.
- Galinha ao molho pardo.
- Já matou?
- Não.
Empunhei a espingarda com decisão e voltei-me para o galinheiro, mas Paulo
cortou-me os passos:
- Não faça isso! O crime não compensa.
E propôs que na manhã seguinte saíssemos para caçar borboletas.
No mundo do consumo
Conversa de compra de passarinho
Rubem Braga
Entro na venda para comprar uns anzóis, e o velho está me atendendo quando chega
um menino da roça com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado,
esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e
pergunta: "Quanto?" O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de
outro: "Quarenta". O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os
olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo
coleiro do brejo que está cantando. O velho:
- Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas
morreu ontem; é um bicho que morre à toa.
Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa; o velho
lhe serve cachaça, recebe, dá o troco, volta-se para mim: "O senhor quer chumbo
também?" Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige
ao menino da lenha:
- Quer vinte e cinco pode botar lá dentro.
O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:
- Quanto é o coleiro?
- Ah, esse não tenho para venda, não...
Sei que o velho está mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse
para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de
cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar
minhas compras. O menino murmura: "O senhor dá trinta..." O velho cala-se, minha
nota na mão:
- Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?
Fico calado algum tempo. Ele insiste: "O senhor diga..." Viro a minha cachaça,
fico apreciando o coleiro.
- Não quer vinte e cinco vá embora, menino.
Sem responder o menino cede. Carrega as achas de lenha lá para os fundos, recebe
o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas,
carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho
vontade de vingá-lo:
- Passarinho dá muito trabalho...
O velho atende outro freguês, lentamente.
- O senhor querendo dar 500 cruzeiros, é seu.
Por trás dele o pescador de bigodes brancos me faz sinal para não comprar. Finjo
espanto: "QUINHENTOS cruzeiros?"
- Ainda a semana passada eu rejeitei 600 por ele. Esse coleiro é muito especial.
Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando suas
especialidades. Faço uma pergunta sorna: "Foi o senhor quem pegou ele?" O homem
responde: "Não tenho tempo para pegar passarinho".
Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido
esse menino desconhecido por aquele coleiro especial?
- No Rio eu compro um papa-capim mais barato...
- Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo
que coleiro é esse.
- Mas QUINHENTOS cruzeiros?
- Quanto é que o senhor oferece?
Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que
compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com a voz fria,
seca: "Dou 200 pelo coleiro, 50 pela gaiola".
O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que
vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: "Por 300 cruzeiros o senhor
leva tudo".
Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão
pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me
despeço.
- O senhor não leva o coleiro?
Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro
do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino
da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos
quando ele, o velho, estiver rachando lenha no Inferno, o burrinho, o menino e o
coleiro vão entrar no Céu - trotando, assobiando e cantando de pura alegria.
Aspirador
Fernando Sabino
Antes que eu lhe pergunte o que deseja, o gordinho começa a exibir-me uma
aparelhagem complicada, ainda na porta da rua. São tubos que se ajustam, fio
para ligar na tomada, escovinhas de sucção e outros apetrechos.
- Entre - ordenei.
Ora, acontece que jamais prestei sentido na existência dos aspiradores de pó.
Por isso é que fui logo cometendo a imprudência de convidar o gordinho a exibirse de uma vez no interior da sala. Na porta da rua venta e faz muito pó, disselhe ainda, tentando um trocadilho infeliz. Entramos os dois, para a tradicional
peleja entre comprador e vendedor.
Vi o gordinho desdobrar-se, suando, estica o fio, não dá até a tomada, arrasta a
cadeira um pouco para lá, não é isso mesmo? assim, com licença, quer limpar esse
tapete?
É um tapete que arrasto comigo há anos, por todos os lugares em que venho
morando. Já abafou meus passos em dias de inquietação, já recebeu alguns pulos
meus de alegria, e manchas de café, de tempo, de poeira dos sapatos. Pois olhe
só - em dois tempos o gordinho pôs a engenhoca a funcionar, esfrega daqui e
dali, praticamente mudou a cor do meu tapete.
- Agora é que o senhor vai ver - anunciou, feliz, revelando-me a existência,
dentro do aparelho, de uma sacola onde o pó se acumulava. Exibiu-me seu conteúdo
com um sorriso de puro êxtase, o tarado.
Aquilo me decepcionou: pois se tinha de despejar o pó no lixo, por que não
recolhê-lo de uma vez com a vassoura? Evidente burrice da minha parte - o
gordinho devia estar pensando: com certeza eu esperava que o pó se volatilizasse
dentro do aspirador, num passe de mágica?
Deixei que ele me enumerasse as outras aplicações do miraculoso aparelho: servia
para escovar um terno, por exemplo, quer ver? E voltou para mim o cano da arma,
que num terrível chupão quase me leva a manga do paletó.
- Serve também para massagens. Com sua licença - e passou-me no rosto a ponta do
tubo. Minha pele foi repuxada sob a improvisada ventosa, deslocando-se
ruidosamente num violento beijo de cavalo.
- Basta! - protestei: - Estou convencido. Compro o aspirador.
- E digo mais - prosseguiu ele, sem me ouvir: - Serve para refrescar o ambiente.
Duvida? E só virar ao contrário...
- Não duvido não. Já está comprado.
- ... e funciona como um perfeito ventilador.
Fui buscar o dinheiro, paguei e despedi sumariamente o gordinho que, perplexo,
continuava ainda a recitar sua lição:
- Aspira o pó dos lugares mais inacessíveis: aspira atrás das estantes, aspira
cinzeiros, aspira...
- Obrigado, obrigado - e fechei a porta atrás dele.
Passei o resto da tarde me distraindo com a nova aquisição. De todas as
maneiras: aspirei cinzeiros, estofados, cortinas, ternos, aspirei atrás das
estantes, fiz desaparecer, até o último grão, o pó existente na casa.
Então tentei retirar das entranhas do aspirador a tal sacola, como o gordinho me
havia ensinado. Para meu júbilo, estava bojuda como um balão. Só não me lembrei
foi de desligar o aparelho que, como ele me havia ensinado também, virado ao
contrário funciona como um perfeito ventilador: de súbito, explode no ar uma
bomba de pó acumulado. Tudo voltou ao que era dantes, fui à cozinha buscar uma
vassoura. És pó e em pó reverterás - pensei comigo.
Caso de arroz
Carlos Drummond de Andrade
E assim aquela eficiente dona-de-casa do Leblon resolveu o problema do arroz, do
feijão, da carne e de outras preciosidades da nossa era: mudando de mercearia.
- Não! - exclamou a amiga. Não vá me dizer que Nossa Senhora Aparecida desceu
por aqui e montou um supermercado. Milagre não vale!
Pois não era milagre, quem falou nisso? Era apenas a Federação, que divide (e
reúne) o Brasil em nações autônomas, com seus recursos econômicos e seu comércio
próprios. Os novos fornecedores de Dona Araci ficam ali no Estado do Rio. Não é
precisamente no bairro em que ela mora, mas o casal comprou um carrinho
paulista, e o marido de Dona Araci é um amor: concordou em ir de lotação para o
escritório. Ela pegou os dois garotos, botou-os no carro e tocou para o País da
Fartura, Caxias chamado:
- Vocês dão um passeio e me ajudam a carregar os sacos.
O merceeiro de Caxias vendeu a Dona Araci umas duas arrobas de magnificente
arroz, mas ponderou-lhe, com o saber de experiências feito:
- Madame não passa na barreira com esse sortimento. O máximo permitido são cinco
quilos.
- Não seja por isso. Trouxe fronhas em quantidade, e vou transformar meus
feijões e meu arroz em travesseiros para os meninos repousarem a cabeça retrucou-lhe a precavida senhora.
Assim foi feito, e, de novo com o pé na tábua, a família voltou muito feliz para
o País do Está-em-Falta, conhecido também por Guanabara.
Junto à barreira, a fila de caminhões e automóveis era longa, e os guardas
procediam a uma investigação cabal. A Alfândega de Nova York não seria mais
rigorosa, ao farejar entorpecentes ou engenhos nucleares. Alguns veículos
retrocediam, e de outros os motoristas retiravam pacotes condenados, que eram
entregues à lei, na pessoa de seus agentes implacáveis.
- Qual, não atravesso esse muro de Berlim - suspirou Dona Araci, desanimada.
Eles fazem até radiografia da gente.
Nisso apareceu um cortejo fúnebre, que os guardas deixaram passar sem
formalidades, dando-lhe preferência, e Dona Araci não teve dúvida: incorporou-se
a ele, recomendando aos garotos:
- Vocês aí: façam cara triste!
E lá se foi o enterro, enorme. Que defunto seria aquele, tão estimado, a julgar
pelo número de acompanhantes, pelas fisionomias compungidas? Eis que aparece o
cemitério, na curva da estrada, e de súbito o imenso acompanhamento deixa o
carro mortuário quase sozinho, com um ou dois carros na retaguarda, e toca para
o Rio. Os motoristas interpelam-se aos gritos:
- Quantos quilos você trouxe?
- E você?
- E você?
Dona Araci não chegou a apurar quem era o morto a que prestara aquela homenagem
de emergência. Os outros também não sabiam. E daí, talvez o caixão não
contivesse nenhum defunto, quem sabe?
A cesta
Paulo Mendes Campos
Quando a cesta chegou, o dono não estava. Embevecida, a mulher recebeu o
presente. Procurou logo o cartão, leu a dedicatória destinada ao marido, uma
frase ao mesmo tempo amável e respeitosa.
Quem seria? Que amigo seria aquele que estimava tanto o marido dela? Aquela
cesta, sem dúvida nenhuma, mesmo a uma olhada de relance custava um dinheirão.
Como é que ela nunca tivera notícia daquele nome? Ricos presentes só as pessoas
ricas recebem. Eles eram remediados, viviam de salários, sempre inferiores ao
custo das coisas. Sim, o marido, com o protesto dela, gostava de bons vinhos e
boa mesa, mas isso com o sacrifício das verbas reservadas a outras utilidades.
De qualquer forma, aquela cesta monumental chegava em cima da hora. E se fosse
um engano? Não, felizmente o nome e o sobrenome do marido estavam escritos com
toda a clareza e o endereço estava certo.
Alvoroçada, examinou uma a uma as peças envoltas em flores e serpentinas de
papel colorido. Garrafas de uísque escocês, champanha francês, conhaque, vinhos
europeus, pâté, licores, caviar, salmão, champignon, uma lata de caranguejos
japoneses... Tudo do melhor. Mulher prudente, surripiou umas garrafas e
escondeu-as nas gavetas femininas do armário. Conhecia de sobra a generosidade
do marido: à vista daquela cesta farta, iria convidar todo o mundo para um
devastador banquete. Isto não tinha nem conversa, era tão certo quanto dois e
dois são quatro. Mas quem seria o amigo? Esperou o regresso do marido, morrendo
de curiosidade.
E ei-lo que chega, ao cair da noite, cansado, sobraçando duas garrafas de vinho
espanhol, uma garrafa de uísque engarrafado no Brasil, um modesto embrulho de
salgadinhos. Caiu das nuvens ao deparar com a gigantesca cesta. Pálido de
espanto, não tanto pelo valor material do presente (era um sentimental), mas
pelo valor afetivo que o mesmo significava, começou a ler o cartão que a mulher
lhe estendia. Houve um longo minuto de densa expectativa, quando, terminada a
leitura, ele enrugou a testa e se concentrou no esforço de recordar. A mulher
perguntava aflita:
- Quem é?
Mais da metade da esperança dela desabou com a desolada resposta:
- Esta cesta não é para mim.
- Como assim? Você anda ultimamente precisando de fósforo.
- Não é minha.
- Mas olhe o endereço: é o nosso! O nome é o seu.
- O meu nome não é só meu. Há um banqueiro que tem o nome igualzinho. Está na
cara que isto é cesta pra banqueiro.
- Mas, o endereço?
- Deve ter sido procurado na lista telefônica.
Ela não queria, nem podia, acreditar na possibilidade do equívoco.
- Mas faça um esforço.
- Não conheço quem mandou a cesta.
- Talvez um amigo que você não vê há muito tempo.
- Não adianta.
- Você não teve um colega que era muito rico?
- O nome dele é completamente diferente. E ficou pobre!
- Pense um pouco mais, meu bem.
Novo esforço foi feito, mas a recordação não veio. Ela apelou para a hipótese de
um admirador. Afinal, ele era um grande escritor, autor de um romance que fizera
sucesso e de um livro para crianças, que comovera leitores grandes e pequenos.
- Um fã, quem sabe é um fã?
- Mulher, deixa de bobagens... Que fã coisa nenhuma!
- Pode ser sim! Você é muito querido pelos leitores.
A idéia o afagou. Bem, era possível. Mas, em hipótese nenhuma, ficaria com
aquela cesta, caso não estivesse absolutamente certo de que o presente lhe
pertencia.
- Sou um homem de bem!
Era um homem de bem. Pegou o catálogo, procurou o telefone do homônimo
banqueiro, falou diretamente com ele depois de alguma demora: não é muito fácil
um desconhecido falar a um banqueiro.
Aí, a mulher ouviu com os olhos arregalados e marejados:
- Pode mandar buscar a cesta imediatamente. O senhor queira desculpar se minha
mulher desarrumou um pouco a decoração. Mas não falta nada.
A mulher foi lá dentro, quase chorando, e voltou com umas garrafas nas mãos.
- Eu já tinha escondido estas.
- Você é de morte. Coloque as garrafas na cesta.
Vinte minutos depois, um carro enorme parava à porta, subindo um motorista de
uniforme. A cesta engalanada cruzou a rua e sumiu dentro do automóvel. Ele
sorria, filosoficamente. Dos olhos da mulher já agora corriam lágrimas francas.
Quando o carro desapareceu na esquina, ele passou o braço em torno do pescoço da
mulher:
- Que papelão, meu bem! Você ficou olhando para aquela cesta como se estivesse
assistindo à saída de meu enterro.
E ela, passando um lenço nos olhos:
- Às vezes é duro ser casada com um homem de bem.
Tipos humanos
Os bons ladrões
Paulo Mendes Campos
Morando sozinha e indo à cidade em um dia de festa, uma senhora de Ipanema teve
a sua bolsa roubada, com todas as suas jóias dentro. No dia seguinte,
desesperada de qualquer eficiência policial, recebeu um telefonema:
- É a senhora de quem roubaram a bolsa ontem?
- Sim.
- Aqui é o ladrão, minha senhora.
- Mas como o... senhor descobriu o meu número?
- Pela carteira de identidade e pela lista.
- Ah, é verdade. E quanto quer para devolver meus objetos?
- Não quero nada, madame. O caso é que sou um homem casado.
- Pelo fato de ser casado, não precisa andar roubando. Onde estão as minhas
jóias, seu sujeito ordinário?
- Vamos com calma, madame. Quero dizer que só ontem, por um descuido meu, minha
mulher descobriu quem eu sou realmente. A senhora não imagina o meu drama.
- Escute uma coisa, eu não estou para ouvir graçolas de um ladrão muito
descarado...
- Não é graçola, madame. O caso é que adoro minha mulher.
- E por que o senhor está me contando isso? O que me interessa são as jóias e a
carteira de identidade (dá um trabalho danado tirar outra), e não tenho nada com
a sua vida particular. Quero o que é meu.
- Claro, madame, claro. Estou lhe telefonando por isso. Imagine a senhora que
minha mulher falou que me deixa imediatamente se eu não regenerar...
- Coitada! Ir numa conversa dessas.
- Pois eu prometi nunca mais roubar em minha vida.
- E ela bancou a pateta de acreditar?
- Acho que não. Mas o que eu prometo, cumpro; sou um homem de palavra.
- Um ladrão de palavra, essa é fina. As minhas jóias naturalmente o senhor já
vendeu.
- Absolutamente, estão em meu poder.
- E quanto quer por elas? Diga logo.
- Não vendo, madame, quero devolvê-las. Infelizmente, minha mulher disse que só
acreditaria em minha regeneração se eu lhe devolvesse as jóias. Depois ela vai
lhe telefonar para checar.
- Pois fique sabendo que estou gostando muito de sua senhora. Pena uma pessoa de
tanto caráter casada com um... homem fora-da-lei.
- É também o que eu acho. Mas gosto tanto dela que estou disposto a qualquer
sacrifício.
- Meus parabéns. O senhor vai trazer-me as jóias aqui?
- Isso nunca. A senhora podia fazer uma suja.
- Uma o quê?
- A senhora, com o perdão da palavra, podia chamar a polícia.
- Prometo que não chamo, não por sua causa, por causa de sua senhora.
- Vai me desculpar, madame, mas nessa eu não vou.
- Também sou uma mulher de palavra.
- O caso, madame, é que nós, os desonestos, não acreditamos na palavra dos
honestos.
- Tá. Mas como o senhor pretende fazer, então?
- Estou bolando um jeito de lhe mandar as jóias sem perigo para mim e sem que
outro ladrão possa roubá-las. A senhora não tem uma idéia?
- O senhor entende mais disso do que eu.
- É verdade. Tenho um plano: eu lhe mando umas flores com as jóias dentro dum
pequeno embrulho.
- Não seria melhor eu encontrá-lo numa esquina?
- Negativo! Tenho o meu pudor, madame.
- Mas não há perigo de mandar coisa de tanto valor por uma casa de flores?
- Não. Vou seguir o entregador a uma certa distância.
- Então, fico esperando. Não se esqueça da carteira.
- Dentro de vinte minutos está tudo aí.
- Sendo assim, muito agradecida e lembranças para a sua senhora.
Dentro do prazo marcado, um menino confirmava que, em certas ocasiões, até os
ladrões mandam flores e jóias.
Serás ministro
Carlos Drummond de Andrade
- Esse vai ser ministro - sentenciou o pai, logo que o garoto nasceu.
- E você, com esse ordenado micho de servente, tem lá poder pra fazer nosso
filho ministro? - duvidou a mãe.
- Então, só porque meu ordenado é micho ele não pode ser ministro? A Rádio
Nacional deu que Abraão Lincoln trabalhava de cortar lenha no mato, e chegou a
presidente dos Estados Unidos.
- Isso foi nos Estados Unidos.
- E daí? Nem eu estou querendo tanto pra ele. Só quero uma de Ministro.
- Tonzinho, deixa isso pra lá.
- Pra começar, a gente convida o Ministro pra padrinho dele.
- O Ministro não vai aceitar.
- Não vai por quê? Trabalho no gabinete há dois anos.
- Ele é muito importante, filho.
- Por isso mesmo. Com padrinho importante, o garotinho começa logo a ser
importante.
- O Ministro é tão ocupado, você mesmo diz. Vê lá se tem tempo pra batizar filho
de pobre.
- Pois sim. Ele me trata com toda a consideração, de igual pra igual. Hoje mesmo
eu faço o convite.
Fez. O Ministro não pôde comparecer, mas enviou representante. Era quase a mesma
coisa. Na hora de dizer o nome do menino, o pai não vacilou; disse bem sonoro:
- Ministro.
- Como? - estranhou o padre.
- Ministro, sim senhor.
A mulher ia atalhar: "Tonzinho, não foi Antônio de Fátima que a gente combinou?"
mas era tarde.
No cartório, também estranharam:
- Ministro por quê?
- Porque eu escolhi. Acho lindo.
- Não é nome próprio.
- Pois eu cá acho muito próprio. Não tem aí uma família chamada Ministério,
aliás com pessoas distintas, médicos, dentistas, etc.?
- Tem.
- Pois então. Meu filho é Ministro, só isso. Ministro Alves da Silva, futuro
cidadão útil à Pátria. Tem alguma coisa demais?
O garoto registrou-se. Cresceu. Na escola, a princípio achavam-lhe graça no
nome. Parecia apelido. Depois, o costume. Há nomes mais estranhos. Ministro não
era o primeiro da classe, também não foi dos últimos.
Já moço, o leque das opções não se abriu para ele. Entre o ofício sem brilho e o
andar térreo da burocracia, acabou sendo, como o pai, servente de repartição.
Promovido a contínuo.
- Eu não disse? - festejou o pai. - Começou a subir.
O máximo que subiu foi trabalhar no gabinete do Ministro.
- Ministro, o Sr. Ministro está chamando.
- Ministro, já providenciou o cafezinho do Sr. Ministro?
- Sabe quem telefonou pra você, Ministro? A senhora do Sr. Ministro. Diz que
você prometeu ir lá consertar umas goteiras e esqueceu.
- Ministro! Roncando na hora do expediente?!
Começaram os equívocos:
- Telefonema para o Ministro.
- Qual? O Ministro ou o Sr. Ministro? - Este Ministro é um cretino! Me fez
esperar uma hora nesta poltrona!
- Perdão, Deputado, o senhor está ofendendo o Sr. Ministro.
- Eu? Eu? Estou me referindo a esse animal, esse...
Até que se apurasse que o animal era Ministro, o contínuo - que confusão!
O Ministro de Estado, ciente da confusão, recomendou ao assessor:
- Faça esse homem trocar de nome.
- Impossível, Sr. Ministro. É o seu título de honra.
- Então suma com ele da minha vista.
Mandaram-no para uma vaga repartição de vago departamento. Queixou-se ao pai,
aposentado, que isso de se chamar Ministro não conduz a grandes coisas e pode
até atrasar a vida.
- Ora, meu filho, hoje no bueiro, amanhã no Pão de Açúcar. E você não tem de que
se queixar. Num momento em que tanta gente importante sua a camisa pra ser
Ministro, e fica olhando pro céu pra ver se baixa um signo do astral, você já é,
você sempre foi Ministro, de nascença! de direito! E não depende de governo
nenhum pra continuar a ser, até a morte!
Abraçaram-se, chorando.
Se não me falha a memória
Fernando Sabino
Memória boa tinha aquele velho. Correu os olhos pelo cartório onde eu era
escrivão e veio direto à minha mesa:
- Sr. Escrivão, meus respeitos - fez um salamaleque: - Queria que o senhor me
desse informações sobre um inventário.
- Às suas ordens - e retribuí o cumprimento: - Inventário de quem?
- Já lhe digo o nome do falecido. Minha memória ainda é das melhores - apesar de
ter sofrido uma comoção cerebral há poucos dias, ainda não estou inteiramente
bom. Espera aí, deixa eu ver... Sou advogado há mais de quarenta anos, não
esqueço o nome de um constituinte, vivo ou morto. Hoje em dia... Benvindo!
- Como?
O nome do falecido era Benvindo. Isto! Benvindo Lopes. Marido da minha
cozinheira. Faleceu há pouco tempo. Ela já não está boa da cabeça e se eu não me
lembrasse o nome do marido dela, quem é que haveria de lembrar? Levindo Lopes.
- O senhor disse Benvindo.
- Eu disse Benvindo? Veja o senhor!
- É Levindo ou Benvindo?
Ele ficou pensativo um instante:
- Benvindo seja - respondeu afinal, muito sério.
Depois de verificar no fichário, expliquei-lhe que deveria trazer uma petição. O
velho agradeceu e saiu, assegurando-me que sim, não esqueceria. Nem dez minutos
haviam decorrido e tornou a surgir na porta:
- Sr. Escrivão, já que o senhor ainda há pouco foi tão amável, e sem querer
abusar, posso lhe pedir uma informação? É sobre um inventário, esqueci de lhe
dizer. Minha memória é muito boa, mas sofri há dias uma comoção cerebral...
- O senhor me disse - sorri-lhe, solícito: - Qual é o inventário, desta vez?
- Inventário de... de... Não vê o senhor? A minha cozinheira... O marido dela.
- Benvindo Lopes?
- Isso! Benvindo Lopes. Como é que o senhor sabe?
- O senhor já me tinha dito.
- Mas sim senhor! Vejo que também tem boa memória.
Tornei a explicar-lhe a mesma coisa, isto é, que deveria trazer uma petição. Não
esquecesse.
- Não, não me esqueço.
Agradeceu e se afastou. Deteve-se a meio caminho da porta.
- Veja o senhor! Já ia me esquecendo é do motivo principal que me trouxe aqui: a
minha cozinheira, que está mais velha do que eu, perdeu o marido há pouco tempo
e estou cuidando do inventário dele...
- Sabe o nome do falecido? - perguntei, sem me alterar.
- Como não? Minha memória ainda funciona, para nomes então, principalmente. Ora,
pois. É Levindo não sei o quê...
- Não será Benvindo?
- Isso! Benvindo... Benvindo Lopes, se não me engano.
- Este nome não me é estranho - limitei-me a murmurar.
O padeiro
Rubem Braga
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e
abro a porta do apartamento -mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo
instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a
"greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos
patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar
seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto
tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando
vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para
não incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas
vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma
empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro
perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é
ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis
detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos
importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno.
Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma
passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros
exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do
forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante
porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu
escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão
estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a
lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é
ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
A linguagem e o homem
Macacos me mordam
Fernando Sabino
Morador de uma cidade do interior de Minas me deu conhecimento do fato: diz ele
que há tempos um cientista local passou telegrama para outro cientista, amigo
seu, residente em Manaus:
"Obséquio providenciar remessa 1 ou 2 macacos".
Necessitava ele de fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser
encontrado na localidade. Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu
resposta:
"Providenciada remessa 600 restante seguirá oportunamente".
Não entendeu bem: o amigo lhe arranjara apenas um macaco, por seiscentos
cruzeiros? Ficou aguardando, e só foi entender quando o chefe da estação veio
comunicar-lhe:
- Professor, chegou sua encomenda. Aqui está o conhecimento para o senhor
assinar. Foi preciso trem especial.
E acrescentou:
- É macaco que não acaba mais!
Ficou aterrado: o telégrafo errara ao transmitir "1 ou 2 macacos", transmitira
"1 002 macacos"! E na estação, para começar, nada menos que 600 macacos
engaiolados aguardavam desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo:
"Pelo amor Santa Maria Virgem suspenda remessa restante".
Ia para a estação, mas a população local, surpreendida pelo acontecimento, já se
concentrava ali, curiosa, entusiasmada, apreensiva:
- O que será que o professor pretende com tanto macaco?
E a macacada, impaciente e faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na
plataforma da estação, divertindo a todos com suas macaquices. O professor não
teve coragem de aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua
casa. À noite, porém, o agente da estação veio desentocá-lo:
- Professor, pelo amor de Deus vem dar um jeito naquilo.
O professor pediu tempo para pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo:
- Professor, nós todos temos muita estima e muito respeito pelo senhor, mas
tenha paciência: se o senhor não der um jeito eu vou mandar trazer a macacada
para sua casa.
- Para minha casa? Você está maluco?
O impasse prolongou-se ao longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se
comentava outra coisa, e os ditos espirituosos circulavam:
- Macacos me mordam!
- Macaco, olha o teu rabo.
À noite, como o professor não se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas
gradas do lugar: o prefeito, o delegado, o juiz.
- Mandar de volta por conta da Prefeitura?
- A Prefeitura não tem dinheiro para gastar com macacos.
- O professor muito menos.
- Já estão famintos, não sei o que fazer.
- Matar? Mas isso seria uma carnificina!
- Nada disso - ponderou o delegado: - Dizem que macaco guisado é um bom prato...
Ao fim do segundo dia, o agente da estação, por conta própria, não tendo outra
alternativa, apelou para o último recurso - o trágico, o espantoso recurso da
pátria em perigo: soltar os macacos. E como os habitantes de Leide durante o
cerco espanhol, soltando os diques do Mar do Norte para salvar a honra da
Holanda, mandou soltar os macacos. E os macacos foram soltos! E o Mar do Norte,
alegre e sinistro, saltou para a terra com a braveza dos touros que saltam para
a arena quando se lhes abre o curral - ou como macacos saltam para a cidade
quando se lhes abre a gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra,
imediatamente invadiu a cidade em pânico. Naquela noite ninguém teve sossego.
Quando a mocinha distraída se despia para dormir, um macaco estendeu o braço da
janela e arrebatou-lhe a camisola. No botequim, os fregueses da cerveja habitual
deram com seu lugar ocupado por macacos. A bilheteira do cinema, horrorizada,
desmaiara, ante o braço cabeludo que se estendeu através das grades para
adquirir uma entrada. A partida de sinuca foi interrompida porque de súbito
despregou-se do teto ao pano verde um macaco e fugiu com a bola sete. Ai de quem
descascasse preguiçosamente uma banana! Antes de levá-la à boca um braço de
macaco saído não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um momento em
que não restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E houve também
o célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou intacto. A noite
passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se dispuseram a acabar com a
praga - e mais de um esquivo notívago correu risco de levar um tiro nas suas
esquivanças, confundido com macaco dentro da noite.
No dia seguinte a situação perdurava: não houve aula na escola pública, porque
os macacos foram os primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente
desde cedo, apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender
a missa naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia.
Depois, com o correr dos dias e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns
morreram de fome ou caçados implacavelmente. Outros fugiram para a floresta,
outros acabaram mesmo comidos ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas
mesas mais pobres. Um ou outro surgia ainda de vez em quando num telhado,
esquálido, assustado, com bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o
perseguia com pedras. Durante muito tempo, porém, sua presença perturbadora
pairou no ar da cidade. O professor não chegou a servir-se de nenhum para suas
experiências. Caíra doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante
algum tempo muitos insistissem em visitá-lo pela janela.
Vai um dia, a cidade já em paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo
em Manaus:
"Seguiu resto encomenda".
Não teve dúvidas: assim mesmo doente, saiu de casa imediatamente, direto para a
estação, abandonou a cidade para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele.
Recalcitrante
Carlos Drummond de Andrade
O trocador olhou, viu, não aprovou. Daquele passageiro, escanchado placidamente
no banco lateral, escorria um fio de água que ia compondo, no piso do ônibus, a
microfigura de uma piscina.
- Ei, moço, quer fazer o favor de levantar?
O moço (pois ostentava barba e cabeleira amazônica, sinais indiscutíveis de
mocidade), nem-te-ligo.
O trocador esfregou as mãos no rosto, em gesto de enfado e desânimo, diante de
situação tantas vezes enfrentada, e murmurou:
- Estes caras são de morte.
Devia estar pensando: Todo ano a mesma coisa. Chegando o verão, chegam
problemas. Bem disse o Dario, quando fazia gol no Atlético Mineiro: Problemática
demais. Estava cansado de advertir passageiros que não aprendem como viajar em
coletivo. Não aprendem e não querem aprender. Tendo comprado passagem por 65
centavos, acham que compraram o ônibus e podem fazer dele casa-da-peste. Mas
insistiu:
- Moço! Ô moço!
Nada. Dormia? Olhos abertos, pernas cabeludas ocupando cada vez mais espaço,
ouvia e não respondia. Era preciso tomar providência:
- O senhor aí, cavalheiro, quer cutucar o braço do distinto, pra ele me prestar
atenção?
O cavalheiro, vê lá se ia se meter numa dessas. Ignorou, olímpico, a marcha do
caso terrestre.
Embora sem surpresa, o cobrador coçou a cabeça. Sabia de experiência própria que
passageiro nenhum quer entrar numa fria. Ficam de camarote, espiando o circo
pegar fogo. Teve pois que sair do seu trono, pobre trono de trocador, fazendo a
difícil ginástica de sempre. Bateu no ombro do rapaz:
- Vamos levantar?
O outro mal olhou para ele, do longe de sua distância espiritual. Insistiu:
- Como é, não levanta?
- Estou bem aqui.
- Eu sei, mas é preciso levantar.
- Levantar pra quê?
- Pra quê, não. Por quê. Seu calção está molhado de água do mar.
- Tem certeza que é água do mar?
- Tá na cara.
- Como tá na cara? Analisou?
Forrou-se de paciência para responder:
- Olha, o senhor está de calção de banho, o senhor veio da praia, que água pode
ser essa que está pingando se não for água do mar? Só se...
- Se o quê?
- Nada.
- Vamos, diz o que pensou.
- Não pensei nada. Digo que o senhor tem de levantar porque seu calção está
ensopado e vai fazendo uma lagoa aí embaixo.
- E daí?
- Daí, que é proibido.
- Proibido suar?
- Claro que não.
- Pois eu estou suando, sabe? Não posso suar sentado, com esse calorão de
janeiro? Tenho que suar de pé?
- Nunca vi suar tanto na minha vida. Desculpe, mas a portaria não permite.
- Que portaria?
- Aquela pregada ali, não está vendo? "O passageiro, ainda que com roupa sobre
as vestes de banho molhadas, somente poderá viajar de pé".
- Portaria nenhuma diz que o passageiro suado tem que viajar de pé. Papo findo,
tá bom?
- O senhor está desrespeitando a portaria e eu tenho que convidar o senhor a
descer do ônibus.
- Eu, descer porque estou suado? Sem essa.
- O ônibus vai parar e eu chamo a polícia.
- A polícia vai me prender porque estou suando?
- Vai botar o senhor pra fora porque é um... recalcitrante.
O passageiro pulou, transfigurado:
- O quê? Repita, se for capaz.
- Re... calcitrante.
- Te quebro a cara, ouviu? Não admito que ninguém me insulte!
- Eu? Não insultei.
- Insultou, sim. Me chamou de réu. Réu não sei o quê, calcitrante, sei lá o que
é isso. Retira a expressão, ou lá vai bolacha.
- Mas é a portaria! A portaria é que diz que o recalcitrante...
- Não tenho nada com a portaria. Tenho é com você, seu cretino. Retira já a
expressão, ou...
Retira não retira, o ônibus chegou ao meu destino, e eu paro infalivelmente no
meu destino. Fiquei sem saber que conseqüências físicas e outras teve o emprego
da palavra "recalcitrante".
Recado ao senhor 903
Rubem Braga
Vizinho Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do
zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em
meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meianoite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com
tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se
não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o
dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando
há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando
o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos
reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros.
Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano
Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 - que é o
senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano
Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois
apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo
sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de
manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será
convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às
7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de
outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda
numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não
incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus
algarismos. Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.
... Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um
homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e
ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho e
come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois
descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do
vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o
murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e
o amor e a paz.
Continho
Paulo Mendes Campos
Era uma vez um menino triste, magro e barrigudinho, do sertão de Pernambuco. Na
soalheira danada de meio-dia, ele estava sentado na poeira do caminho,
imaginando bobagem, quando passou um gordo vigário a cavalo:
- Você aí, menino, para onde vai essa estrada?
- Ela não vai não: nós é que vamos nela.
- Engraçadinho duma figa! Como você se chama?
- Eu não me chamo não, os outros é que me chamam de Zé.
Conhecendo os autores
A crônica à mineira de Carlos Drummond de Andrade
Antes de saber ler, Drummond já gostava de decifrar as letras.
Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31 de outubro de 1902, filho de fazendeiros
da pequena Itabira de Mato Dentro, interior de Minas Gerais. O pai queria que
ele cuidasse da terra, seguindo a tradição da família, mas o menino preferia
ficar sozinho com seus livros, a viver entre as plantações.
Mineiro, ele sempre foi do tipo quieto. Desde pequeno, Carlos Drummond de
Andrade tinha a mania de ficar olhando para as coisas, observando tudo em
detalhes. Daí, a sua fama de distraído. Mas o que ninguém sabia é que atrás do
menino sonhador havia uma alma sensível que fotografava os detalhes do cotidiano
para transformá-los em poesia.
Era bom aluno, mas não tinha muita paciência para a disciplina rígida dos
colégios da época. Saiu de Minas para estudar em um colégio de Friburgo (RJ),
mas se revoltou contra a rigidez do lugar e acabou expulso. Voltou rapidinho
para Belo Horizonte, onde terminou os estudos e formou-se em farmácia. Nunca
exerceu a profissão.
Casou, teve uma filha e, para ganhar a vida, trabalhava como professor de
português, enquanto escrevia para jornais e revistas.
Nessa época, Drummond já escrevia de tudo: críticas literárias, contos e poemas
em prosa. Mas como literatura não dava dinheiro, foi ser funcionário público,
chegando a chefe do gabinete do Ministro da Educação. Apesar de trabalhar para o
Governo, nunca se contentou com a situação das coisas e por isso mesmo sua obra
reflete uma grande preocupação social. Chegou a ser editor do jornal comunista A
Tribuna Popular, no qual atacava a desigualdade social.
O primeiro livro publicado foi Alguma poesia (1930), com uma tiragem de apenas
500 exemplares, mas foi com A rosa do povo, de 1945, que ficou nacionalmente
conhecido. Durante toda a sua vida, publicou textos em diversos gêneros, da
literatura infantil ao conto e à crônica, mas sempre com destaque para a poesia.
Para o escritor, que nunca gostou de grandes festas, deve ter sido estranho ser
escolhido como tema da escola de samba campeã no Carnaval de 1987, a Estação
Primeira de Mangueira. Morreu no Rio de Janeiro, em agosto desse mesmo ano,
reconhecido como um grande escritor tanto no Brasil como nos países em que seus
livros foram publicados, como Argentina, Chile, Peru, Cuba, Estados Unidos,
Portugal, Espanha, França, Alemanha e Suécia, entre outros.
Mesmo trabalhando, Drummond achava tempo para escrever poemas e histórias.
Os mil e um talentos de Fernando Sabino
Além das palavras, a bateria é o instrumento predileto de Fernando Sabino.
Mineiro de Belo Horizonte, Fernando Sabino nasceu em 12 de outubro de 1923. Teve
uma infância solitária, apesar de ser caçula em uma família de seis filhos e ter
vários amigos para brincar. É que, assim que aprendeu a ler, não conseguiu mais
largar os livros.
Mesmo louco por leitura, conseguiu um tempinho para se dedicar ao escotismo. Com
isso, aprendeu a comunicar-se através do Código Morse, acender fogueira com um
só palito de fósforo, descobrir onde é Leste e o Oeste e outras habilidades do
gênero.
Mais tarde, tornou-se um bom nadador e chegou a ganhar várias medalhas em sua
especialidade, o nado de costas. Foi assim que descobriu que levava jeito para
esportes e, quando prestou o serviço militar na cavalaria, acabou se destacando
em equitação.
Com 15 anos, participou de um concurso de uma revista literária e publicou sua
primeira história, um conto policial. A partir daí, cada vez mais animado,
escreveu uma enxurrada de histórias, algumas das quais também pre- miadas. Tinha
ape- nas 18 anos quando saiu seu primeiro li- vro, Os grilos não cantam mais.
Sabino fez de tudo um pouco na vida: foi professor de português, funcionário
público e adido cultural da Embaixada do Brasil em Londres (Inglaterra). Morou
alguns anos nos Estados Unidos. Fundou a Editora do Autor e, mais tarde, a
Editora Sabiá. Produziu documentários para cinema em vários países, inclusive no
Oriente Médio e no Japão.
Em 1944, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ainda vive. Adora tocar bateria e
até hoje não sabe dizer se a sua verdadeira vocação é escrever ou ser músico de
jazz. Algumas de suas histórias, como "O homem nu" e "O grande mentecapto", já
foram adaptadas para o cinema.
Fernando Sabino e seus amigos de vida inteira, Hélio Pellegrino, Otto Lara
Resende e Paulo Mendes Campos.
A paixão de Paulo Mendes Campos
O escritor passeando pelo Rio de Janeiro, cidade que tanto amava.
Paulo Mendes Campos nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1922. Era um menino
espevitado, que não parava quieto e que aproveitou a infância no interior de
Minas Gerais para se divertir na mata, na beira do rio, brincando com os bichos.
Nasceu aí seu imenso amor pela natureza.
Seu primeiro sonho na vida foi o de ser aviador militar. Conseguiu entrar na
Escola Preparatória de Cadetes, em Porto Alegre (RS), mas ficou apenas um ano,
até perceber que a disciplina rígida dos militares não tinha nada a ver com a
imagem romântica que fazia dos aviadores. Voltou para Belo Horizonte e passou a
conviver com outros jovens escritores, descobrindo seu amor pela literatura.
Em 1945, foi até o Rio de Janeiro para conhecer o poeta chileno Pablo Neruda,
que fazia uma visita ao Brasil. Era para ser uma estada de apenas alguns dias,
mas durou um mês, apaixonado que estava pela Cidade Maravilhosa. Voltou para
Belo Horizonte apenas para pegar suas coisas e despedir-se da família.
No Rio de Janeiro, passou a escrever para vários jornais. Também foi funcionário
público, trabalhando como redator e, mais tarde, como responsável pela divisão
de Obras Raras da Biblioteca Nacional. Mas qualquer outra ocupação que não fosse
a literatura era um simples "ganha-pão". Paulo Mendes Campos gostava mesmo era
de escrever e foi o que fez até morrer, em 1991. O escritor faleceu no Rio de
Janeiro.
Rubem Braga, o cronista passarinho
Rubem Braga sempre se considerou um homem das palavras.
Rubem Braga nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, em 1913. Era
do tipo esportista e gostava de jogar futebol e nadar. Desde menino, gostava de
passarinhos e, mais tarde, iria usá-los como temas de algumas de suas crônicas
mais líricas.
Começou a escrever muito cedo, em um jornal que pertencia à sua família. Formouse em Direito, mas jamais exerceu a profissão, tornando-se jornalista e
trabalhando em várias cidades pelo país afora.
Chegou a ser correspondente de guerra por duas vezes: durante a Revolução de 32,
em São Paulo, e também na Segunda Guerra Mundial, quando acompanhou a tropa
brasileira à Itália. Morou em Paris (França), em Santiago do Chile e em Rabat,
capital do Marrocos, onde foi embaixador. Quando voltou para o Rio de Janeiro,
já vivia só de escrever, tanto para jornal quanto para televisão.
Rubem Braga é conhecido como um dos maiores cronistas da literatura brasileira.
Não se preocupou em escrever novela, romance ou poesia. Gostava mesmo de
publicar em jornal, apesar de saber que, depois de lido, o texto ia para o lixo,
ao contrário dos livros, que reinam eternos nas prateleiras. De qualquer
maneira, mais tarde, suas histórias foram reunidas em diversas edições.
Rubem Braga não era exatamente tímido, mas evitava festas e adorava ficar
sentado à sombra das árvores do seu jardim, com canteiros e um pequeno pomar que
dava carambola, romã, abricó-de-praia, pitanga e manga. Isso em uma cobertura em
Ipanema!
Morreu no Rio de Janeiro, em 1990, deixando um enorme legado literário para
todos que apreciam um bom texto.
Referências bibliográficas
Os textos que compõem esta antologia foram extraídos das seguintes obras:
Carlos Drummond de Andrade
No restaurante. In: O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso. 4. ed.
Rio de Janeiro, José Olympio, 1975. p. 3-4.
O pintinho. In: Fala, amendoeira. 7. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1976. p.
87-89.
Caso de arroz. In: Cadeira de balanço. 8. ed. Rio de Janeiro, José Olympio,
1976. p. 12-14.
Serás Ministro. In: De notícias & não-notícias faz-se a crônica. 2. ed. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1975. p. 57-59.
Recalcitrante. In: De notícias & não-notícias faz-se a crônica. 2. ed. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1975. p. 31-33.
Fernando Sabino
Hora de dormir. In: A companheira de viagem. 2. ed. Rio de Janeiro, Sabiá, 1972.
p. 123-26.
O dia da caça. In: A companheira de viagem. 2. ed. Rio de Janeiro, Sabiá, 1972.
p. 31-36.
Aspirador. In: A mulher do vizinho. 7. ed. Rio de Janeiro, Record, 1976. p. 17476.
Se não me falha a memória. In: A mulher do vizinho. 7. ed. Rio de Janeiro,
Record, 1976. p. 99-101.
Macacos me mordam. In: O homem nu. 13. ed. Rio de Janeiro, Record, 1976. p. 13034.
Paulo Mendes Campos
Menina no jardim. In: SALES, Herberto, org. Antologia escolar de crônicas. Rio
de Janeiro, Tecnoprint, 1971. p. 213-16
A verdadeira história de Pio. In: O anjo bêbado. Rio de Janeiro, Sabiá, 1969. p.
211-13.
A cesta. In: Supermercado. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1976. p. 59-62.
Os bons ladrões. In: O cego de Ipanema. 2. ed. Rio de Janeiro, Ed. do Autor,
1961. p. 46-49.
Continho. In: Supermercado. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1976. p. 53.
Rubem Braga
Negócio de menino. In: A traição das elegantes. Rio de Janeiro, Sabiá, 1967. p.
181-83.
História triste de tuim. In: Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro, Ed. do Autor,
1960. p. 133-36.
Conversa de compra de passarinho. In: A traição das elegantes. Rio de Janeiro,
Sabiá, 1967. p. 10-13.
O Padeiro. In: Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1960. p. 4346.
Recado ao senhor 903. In: A cidade e a roça. 3. ed. Rio de Janeiro, Sabiá,
[s.d.]. p. 16-17.
PARA GOSTAR DE LER 1 ROTEIRO DO PROFESSOR
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE * FERNANDO SABINO * PAULO MENDES CAMPOS * RUBEM BRAGA
1. Crônicas I
O livro traz vinte crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino,
Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. Com muito humor e sensibilidade, esses quatro
autores falam do cotidiano e revelam a preciosidade que se esconde nos
acontecimentos mais comuns. São crianças tentando persuadir adultos com
argumentos inocentes ("Negócio de menino"), adultos sonhando e idealizando o
futuro de seus filhos ("Serás ministro"), homens se relacionando com os animais
de estimação e confrontando-se com valores maiores, como a liberdade e o direito
à vida ("O pintinho" e "História triste de tuim"); enfim, crônicas que falam da
vida e do ser humano de forma simples, mas extremamente poética.
Os textos estão organizados em cinco partes de acordo com seu tema central:
Crianças; Animais; No mundo do consumo; Tipos humanos; A linguagem e o homem.
Um rico material para ser usado em sala de aula e que propicia um trabalho de
aprofundamento literário e reflexão, a partir de uma leitura sempre agradável.
2. Coleção Para Gostar de Ler
Ler é paixão! E é possível transmitir essa paixão aos jovens leitores. Para
isso, foi idealizada a Coleção Para Gostar de Ler: textos de autores brasileiros
e internacionais, selecionados pela capacidade de encantar e de tornar a leitura
parte da vida de cada leitor.
A cuidadosa escolha dos textos é a característica marcante da Coleção. São
crônicas, contos e poemas de mestres destes gêneros, plenamente acessíveis ao
leitor iniciante. Os textos são curtos, fáceis de serem lidos e compreendidos,
associando diversão e reflexão.
Divididos entre antologias por autor e antologias temáticas, os livros da Para
Gostar de Ler chamam a atenção do leitor também pelo novo tratamento gráficovisual, que deixou a coleção mais dinâmica e moderna. Cada livro traz
informações sobre os autores que reúne: são dados biográficos, pensamentos e
curiosidades que traçam o perfil humano do escritor, aproximando-o do leitor,
enriquecendo a leitura e ampliando o panorama da época.
3. O Suplemento
O Suplemento de Leitura, que acompanha cada volume, traz exercícios para fixar e
aprofundar a leitura, propondo questões que aguçam a curiosidade e estimulam o
espírito crítico do leitor sobre diversos aspectos presentes nos textos
(contexto social, comportamento humano, valores, além das características
literárias.
Na versão do Professor, o suplemento oferece a resolução dos exercícios e
sugestões de aprofundamento da leitura, com atividades a serem desenvolvidas
dentro e fora da sala de aula. O objetivo é ampliar o envolvimento do leitor com
o texto, relacionando-o com o cotidiano.
A literatura tem um tanto de técnica, outro de magia. É isso o que muitas
gerações de leitores têm descoberto com os livros dessa coleção que faz o jovem
gostar de ler.
Sugestões Didáticas
1 - Há diversas maneiras de levar o aluno a uma interpretação criativa e pessoal
dos textos. Por exemplo, práticas de:
a - Teatralização: Uma crônica como "Hora de dormir", toda construída com
diálogos, e outras, na qual o diálogo é um ponto forte, podem ser encenadas sem
maior dificuldade de adaptação do texto. Convém dar aos leitores a liberdade
para mudar a história e as falas, e que a cena seja ensaiada sob a orientação do
Professor.
b - Debate: Crônicas como "História triste de tuim" (o garoto devia ou não
cortar as asas do pássaro?) ou "A cesta" são pequenas preciosidades para um
debate sobre questões éticas concretizadas no cotidiano.
2 - Muitos estudiosos caracterizam a crônica brasileira moderna como um gênero
intermediário entre o conto e a poesia. Quanto mais distante do episódio que a
inspirou, quanto mais imaginada, mais próxima do conto. Quanto mais se valer de
recursos de estilo, afastando-se do tom descritivo, mais próxima da poesia.
Essas diferenças podem ser estudadas, de diferentes maneiras.
a - Comparação: Trazendo para a classe um poema, um conto e uma crônica do mesmo
autor, o Professor pode comparar melhor os diferentes modos de expressão. Por
exemplo, o Professor poderia trabalhar com um poema, com o conto "Flor,
Telefone, Moça" (incluído no livro O sorvete e outras histórias, da Ática) e a
crônica "Serás ministro", de Carlos Drummond de Andrade. Depois da leitura,
poderia estimular os alunos a dizerem que diferenças vêem entre os textos, que
têm um toque de cotidiano comum à crônica. Ocorre que, no poema, procura-se a
forma radicalmente sintética, o jogo de palavras, sem preocupação com contar o
caso, e sim apenas sugeri-lo, vagamente. No conto, embora a narrativa se inicie
de modo trivial, desvia-se para o sobrenatural, o que não é próprio das
crônicas.
b - Redação: Podemos propor que os leitores redijam crônicas, partindo de algum
caso do seu cotidiano. Depois, que a própria turma avalie a qualidade de cada
uma e no que o texto produzido conseguiu (ou não) incorporar as características
da crônica.
1PGLanimais.tif
3 - O Professor pode trazer para a sala de aula a seção de esportes (ou de
política etc...) de um jornal, comparando o texto da notícia ao da crônica. O
objetivo é mostrar qual é a especificidade da crônica. A crônica é um
comentário. Por exemplo, na crônica esportiva, há menos preocupação com
informações, como o placar do jogo, quem foi expulso, quem foi substituído, e
mais em passar a impressão do cronista sobre a partida. A linguagem da notícia é
informativa, a da crônica é interpretativa e, mesmo, às vezes, literária.
4 - A crônica é viva, ligada ao cotidiano, absorve a gíria, a personalidade
(artista, político etc...) do momento, a última moda. Principalmente
considerando a datação de algumas destas crônicas, o leitor vai passar por
palavras, expressões e referências que desconhece. Em "Conversa de compra de
passarinho", a moeda que se menciona é o cruzeiro. Em "Caso de arroz", a mulher
fala em muro de Berlim. Que tal pedir aos alunos que descubram mais sobre o
cruzeiro e o muro de Berlim? Ou também que identifiquem outras referências
datadas nas crônicas. Por exemplo, uma referência datada mais sutil acontece em
"Aspirador", de Fernando Sabino. Na época da crônica, o eletrodoméstico para
cuja existência ninguém mais dá tanta atenção, e é comprado até em
supermercados, era vendido de porta em porta, como novidade, a tal ponto de o
bom vendedor ser aquele que conseguia ensinar, em minutos, as utilidades do
aparelho. Esse vendedor de porta em porta, que já não existe nos grandes
centros, é o correspondente, hoje, aos anúncios com telefones 0900, na tevê:
ligue agora e compre j
PARA GOSTAR DE LER 1 SUPLEMENTO DE LEITURA
NOME
SÉRIE
ESTABELECIMENTO
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE * FERNANDO SABINO * PAULO MENDES CAMPOS * RUBEM BRAGA
Você teve a oportunidade de ler quatro dos melhores cronistas e deve ter achado
algumas destas crônicas engraçadas, outras emocionantes... Agora, está na hora
de refletir um pouco sobre elas.
Truques e segredos
A arte de contar histórias tem truques, segredos, uns jeitos especiais...
Mas, se ler com atenção, você vai descobrir alguns deles...
1 - A crônica é um tipo de texto diferente de outros, como o conto e a poesia.
Pensando nos textos que leu, marque com um X as alternativas que trazem
características que pertencem a esse estilo.
A crônica explora temas baseados inteiramente na fantasia, inventando peripécias
e personagens que não poderiam acontecer e existir em nosso dia-a-dia.
X
Muitas crônicas usam o humor e a ironia para fazer uma crítica aos nossos
costumes e modos de pensar a vida.
O cronista procura sempre passar informações sobre algo que aconteceu, numa
linguagem direta, objetiva e sem sua interpretação pessoal, da mesma forma que
as matérias jornalísticas.
X
Diferente das notícias dos jornais, a crônica procura às vezes brincar com o
texto, e mesmo lhe dar um tom literário.
2 - Muitas histórias dão características humanas a objetos ou animais, em alguns
casos para criticar certos defeitos das pessoas. É o que acontece em "A
verdadeira história de Pio". Quais as características humanas que o autor deu ao
galo Pio?
No texto, lemos que "Pio já era quase um galo, branco e bonito, mas extravagante
e presunçoso". Paulo Mendes Campos, com humor ferino, escreve sobre o
comportamento do galo como se fosse uma neurose humana.
3 - O narrador, que conta a história, pode não ter nada a ver com o autor, a
pessoa real. Um narrador diferente pode ser criado para cada história. Podemos
dizer que em "A verdadeira história de Pio", temos um narrador-personagem? Por
quê?
Sim, na crônica, trata-se de um narrador-personagem porque ao mesmo tempo que
conta a história do galo ele participa dela, tendo sido, inclusive, um dos donos
de Pio.
Nas entrelinhas
Uma história, às vezes, traz coisas disfarçadas, que só lendo e relendo a gente
descobre.
Uma leitura extra, algo a mais, que você não pode perder...
4 - O humor é uma característica de muitas crônicas. As duas frases abaixo têm
muito humor e são, também, quase charadas porque se referem a elementos que não
estão ditos claramente. A que se referem estas citações? Você vê nelas alguma
intenção oculta?
"Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que somos feitos".
("Menina no jardim")
"O pai [...] apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da
competência dos senhores pais". ("No restaurante")
A primeira é uma referência à Bíblia, quando diz que Deus criou o Homem do
barro; e a ironia, aqui, é que, para a menina, barro é o brinquedo que se larga
de lado sem preocupação maior. A segunda ressalta que a autoridade paterna está
um tanto abalada, reduzida, em comparação ao passado, e que as crianças andam
mais espertas, ou mais rebeldes; como demonstram, aliás, ambas as crônicas.
5 - Criança apronta cada uma! Você já ouviu alguém dizer isso? Relacione o
título da crônica às atitudes de seus pequenos personagens.
1 - "Hora de dormir"
2 - "Menina no jardim"
3 - "No restaurante"
4 - "Negócio de menino"
4
Para o garoto da crônica, a lógica do lucro não interessa. Fazer negócios, para
ele, é ser jeitoso, para conseguir o que quer: um passarinho, e de graça.
3
Apesar de todas as tentativas de convencimento do pai, a menina, até o final,
insiste em escolher o que vai comer.
1
O menino teima em continuar a assistir televisão apesar de toda a insistência da
mãe para que ele vá dormir.
2
Com o apoio do pai, e a despeito da proibição do policial, a menininha brinca
sobre a grama.
6 - Em "A verdadeira história de Pio", Paulo Mendes Campos faz uma referência a
Rubem Braga: "Já se sabe, o Braga é um fazendeiro do ar [...]". Por que ele o
chama assim?
Como está mencionado nesse parágrafo, Rubem Braga tinha um jardim com horta e
árvores frutíferas na cobertura do seu apartamento: era um fazendeiro do ar.
7 - Um dia é da caça, outro do caçador. Na crônica de Fernando Sabino, por que
teria sido "O dia da caça"?
Resposta pessoal do aluno. Nada deu certo para os caçadores, no dia narrado pela
crônica; e sequer conseguiram abater caça alguma.
8 - Em "Conversa de compra de passarinho", o narrador-personagem demonstra
interesse pelo coleiro do dono da venda. Daí, muda de assunto, pechincha e, no
fim, mesmo conseguindo um abatimento, não compra o passarinho. Por que ele agiu
assim?
Resposta pessoal do aluno. O sujeito faz com o dono da venda o que este fez com
o garoto da lenha. Ao que parece, estava mais interessado em castigá-lo do que
em comprar o coleiro.
9 - Em "A cesta", a mulher termina lamentando: "Às vezes, é duro ser casada com
um homem de bem!". Qual é a sua opinião sobre a atitude do marido dela?
Resposta pessoal do aluno. Boa oportunidade para discutir valores éticos
expressados em ocorrências aparentemente miúdas do cotidiano.
10 - Em "O padeiro", Rubem Braga faz uma comparação entre a profissão dele, que
é jornalista, e a do padeiro.
a - Que tal tentar lembrar qual foi essa comparação? Se não conseguir, dê uma
relida na crônica.
No texto, vamos encontrar: "muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros
exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do
forno".
b - O que você acharia se alguém dissesse perto de você: "Não é ninguém, é o
padeiro!"?
Resposta pessoal do aluno. É possível basear-se na crônica, na qual Rubem Braga
parece dar o mesmo valor à sua profissão e à do padeiro.
11 - Em "História triste de tuim", um gato devora um passarinho. Na sua opinião,
haveria uma diferença entre um episódio desses, que acontece o tempo todo na
natureza, e o que ocorre em discussões no trânsito, às vezes, ou em assaltos,
por exemplo? Há diferença entre violência e instinto?
Resposta pessoal do aluno. O que o aluno deve ser levado a pensar é que há, sim,
uma diferença entre um ato praticado por um ser humano, com consciência de estar
prejudicando a outro, e o de um animal que tem seu instinto de sobrevivência; é
posto no mundo para caçar e, assim, conseguir seu alimento.
Agora o cronista é você...
Arrisque! Crie! Escreva sua crônica!
12 - Você foi ou conhece uma criança rebelde, como essas das crônicas? Que tal
contar algum caso seu ou desse seu conhecido? Se não conhece nenhuma história
real, invente uma bem divertida e lembre-se de contá-la em seu caderno no
formato de uma crônica.
Este suplemento é parte integrante da Coleção PARA GOSTAR DE LER * Crônicas 1 .
Não pode ser vendido separadamente. Reprodução proibida. © Editora Ática.
Download

Crônicas 1 PARA GOSTAR DE LER PARA GOSTAR