Proselitismos, revivalismos e redes religiosas pós-coloniais
A
s últimas décadas têm sido pro-
nalguns deles de mais de cento e cinquenta
O “retorno” da religião, porém, não pode
prática religiosa e para o recrutamento de
fundamente marcadas na África
anos, sendo a religião considerada um
ser explicado nem por um qualquer “essen-
novos crentes, nomeadamente nos sectores
subsariana pelo “retorno da
“assunto privado” e a prática religiosa
cialismo” que nos reenvie para a apregoada
populacionais não seguidores das religiões
religião” e pela renovação dos
tende progressivamente a confinar-se ao
“natureza essencialmente religiosa” dos
ditas do Livro, várias tendências religiosas
papéis da religião ou, dito de
espaço dos templos, nesta zona do globo
africanos, nem simplesmente pelo papel
muçulmanas e diferentes igrejas cristãs
outra forma, pelo “alastramento
a visibilidade da religião tem aumentado
de refúgio que a religião desempenha nas
disputam, naturalmente com possibilidades
fortemente.
situações de crise. Cobrindo especificidades
e sucessos diferentes segundo os países, o
que só podem ser descritas, interpretadas
controle religioso, social, politico e nalguns
os interstícios das sociedades subsarianas
“Novos” lugares da religião
e compreendidas tendo em conta o con-
casos mesmo económico de crescentes
e pelo papel que a “renovação religiosa”
Na África subsariana, “projectando-se” para
junto de alterações politicas, económicas,
sectores populacionais, tanto nas cidades
tem tido, por exemplo, tanto em termos de
fora dos locais de culto, insinuando-se
culturais e sociais ocorridas no continente
como no mundo rural.
redefinições identitárias como de “facilitado-
nos meandros de todas as instâncias que
desde o início das independências e as
De facto, o ressurgimento da religiosidade
ra” da passagem para a “modernidade” .
compõem a sociedade e só sendo efectiva-
relações diferenciadas que as várias religiões
na África subsariana, para além de ser acom-
De facto, na África subsariana, como aliás
mente considerada como assunto privado
tecem com as culturas locais, o “retorno da
panhado de proselitismo muito competitivo
em muitas outras partes do globo, os papéis
por grupos minoritários, a religião tende
religião”, sem deixar de ser uma “resposta”
entre as várias religiões e, no interior destas,
desempenhados pelas religiões sofreram
a constituir-se em simultâneo como matriz
à crise, tem vindo a revelar-se também como
entre as várias tendências, foi acompanhado
nas últimas décadas profundas mudanças.
de interpretação e explicação da realidade,
a expressão de novos papéis desempenha-
do aparecimento de formas de sociabilidade
O sucesso das religiões, sobretudo o dos
como criadora de sentido objectivo das prá-
dos correntemente pelas religiões na África
de conotação religiosa que se expressam,
sectores ditos neopentecostais ou carismá-
ticas e, paradoxalmente, entidade exterior à
subsariana, caso, entre outros, dos de “des-
por exemplo, pela multiplicação em cascata,
ticos do cristianismo e o dos ramos mais
própria realidade.
colonização mental”, de “encantamento”, de
nos últimos trinta anos, de associações de
“islamitas” ou “arabófonos” do Islão, em
Especializada na regulação da forma de
combate politico, de produção de “visões
natureza cultural, social, educativa ou eco-
muitas regiões da África subsariana, depen-
“acesso” ao “sobrenatural”, a religião, nestas
do mundo”ou de produção identitária.
nómica criadas e estritamente controladas
de da “hábil dosagem” entre transmissão de
sociedades onde se projecta “desenvol-
das religiões”, nomeadamente das que se
reivindicam de “religião do Livro”, a todos
pelas diferentes religiões.
ideias religiosas, promessas de “salvação” e
tamente” para fora dos templos e não é
Religião, “visões do mundo”,
resolução de “problemas terrenos”, isto é,
considerada como um assunto meramen-
produções identitárias
países africanos no conjunto das nações fez
ofertas de serviços e bens materiais dos seus
te privado, é, por excelência, não só a
Em certa medida, “libertando-se” da tutela
com que não só frequentemente práticas
adeptos.
instituição de controle da moral, como da
rígida e da “orientação funcional” impostas
e representações da realidade e do mundo
Muito embora estas não sejam verdadeira-
produção dos códigos que servem em boa
pelos poderes coloniais e da “indiferença”
conotadas com as religiões tradicionais ou
mente novas – as “missões” cristãs e, ainda
parte de referência aos que “organizam”
e, em alguns casos, mesmo hostilidade
com as igrejas cristãs africanas se tornassem
que de forma diferente das missões, o islão
(ou devem organizar) os próprios padrões
com que eram vistas por muitos dirigentes
na (quase) “face visível” da “autenticidade
das confrarias fazem-nas desde o tempo
de controle das outras instituições (família,
políticos dos primeiros anos das indepen-
africana”, como ainda progressivamente as
colonial –, o seu aumento significativo em
política, economia, educação, etc.).
dências, as religiões na África subsariana
religiões se fossem assumindo como forma
termos de quantidade e de variedade da
Na actualidade, as religiões na África subsa-
de uma forma notória desde a década de
de “descolonização mental”, caso da mensa-
oferta coincide com a implementação, na
riana, por exemplo no plano politico, não
1980 não só estão presentes “por todo o
gem religiosa de ruptura com o Ocidente dos
década de 1980, dos chamados Programas
só informam os imaginários políticos numa
lado” no quotidiano das populações, como
grupos islamitas ou, como no caso da valori-
de Ajustamento Estrutural e corre em para-
escala de abrangência maior do que no
ainda, num outro registo de constatação
zação do individualismo e da experiência pes-
lelo à galopante deliquescência do Estado e
passado, como ainda contribuem de forma
de evidências, concorrem, por vezes de
soal na relação com a divindade propagado
à crescente pauperrização das populações
não negligenciável para a estruturação da
forma extremamente violenta, para ganhar
pela movida carismática católica e sobretudo
na África subsariana.
sociedade civil e a formação do espaço pú-
posições no “mercado” em que tanto o pro-
pela neopentescostal protestante, como a
As associações de cariz filantrópico na área
blico de discussão de ideias e de confronto
selitismo muçulmano como o das diferentes
“encarnação” dos valores da modernidade.
da saúde ou da educação suportadas pelas
de propostas de toda a ordem.
igrejas cristãs transformaram o “renovado
Num outro plano de análise, a “religião”
diferentes instituições religiosas e as organi-
Primeiro, a passagem da situação colonial à
desejo de religião dos africanos”.
não só veio substituir, como suporte ao
zações não governamentais “confessionais”
independência e, posteriormente, a “mul-
De facto, sucessivas mudanças politicas e
combate politico, ideologias de cariz mar-
são, na África subsariana, uma realidade
tidão” de acontecimentos políticos, sociais
muito em particular a quase generalizada
xizante ou liberal, que durante as primeiras
incontornável e, em conjunto com outras
e económicos que se foram sucedendo
situação de deliquescência do Estado na
décadas das independências imperaram,
organizações “não confessionais”, substi-
fizeram com que na generalidade dos países
África subsariana vieram não só questionar
confrontando-se, enquanto “visões do
tuem em múltiplas funções o Estado.
subsarianos a “religião” fosse ocupando
os alinhamentos políticos tradicionais das
mundo” e do “lugar dos africanos nesse
Por outro lado, nas ultimas décadas, ao
paulatinamente, a par dos “espíritos”,
religiões, como ainda, quase per se, propor-
mundo”, como ainda se tornou, na África
contrário do que se passa por exemplo em
espaços onde a sua presença era menos
cionar e impor novas formas e objectivos de
subsariana, num importante instrumento de
muitos países europeus onde a tradição de
notória ou mesmo, em alguns deles, como
proselitismo das diferentes religiões presen-
produção identitária.
separação efectiva entre Estado e religião e
é caso do “espaço público”, praticamente
tes no espaço dos Estados africanos.
Todavia, muito embora no actual contexto
entre público e privado tem já uma história,
desconhecida.
Voltados em simultâneo para o “retorno” à
subsariano as formas de sociabilidade
JANUS 2010 anuário de relações exteriores
Por outro lado, o novo lugar dos diferentes
Meio século de independências africanas
Eduardo Costa Dias
Aspectos populacionais e culturais
3.5.2
tornem a religião num incontornável ins-
neopentescostais americanas, generalizou-
dência de fundos e de meios carreados a
canas e, de forma indirecta, como defensores
trumento de produção identitária, esta não
se a quase todos os sectores cristãos e tem,
partir do estrangeiro.
destas contra o perigo ocidental e cristão.
se confina ao pretexto confessional. Muitas
na movida islamita, o seu correspondente:
De facto, como o ocorrido no campo cristão
Em larga medida, os fundos e os meios
outras dimensões, incluindo a étnica, nela
o fervor prosélito dos “missionários”
na mesma época com a “entrada em força”
humanos carreados do estrangeiro para as
intervêm. A religião acrescenta-se a todas as
(da’iyha) dos múltiplos movimentos de
do pentecostismo americano e as mudanças
organizações religiosas actuando na África
outras dimensões ou, como dizem alguns
“retorno ao islão” (movimentos de da’wa)
de estratégia da Igreja Católica e de várias
subsariana, tornaram-se num preponde-
autores, é para muitos fonte de “orgulho” e
que se cruzam e “descruzam” desde há mais
igrejas protestantes em África, a presença de
rante sustentáculo do proselitismo e num
“complemento natural” a outras pertenças.
de três décadas nos países subsarianos com
fundos e de organizações árabes de cariz reli-
importante suporte ao “revivalismo” cristão
presença significativa de muçulmanos.
gioso e caritativo é uma realidade incontorná-
e muçulmano.
Religiões, proselitismos, revivalismos
No caso particular destes dois “fundamen-
vel desde finais dos anos 1970 e ganhou uma
De facto, o sucesso das religiões em África,
É neste contexto de profundas mudanças
talismos”, eles próprios atravessados por
grande amplitude nas décadas seguintes.
ao depender da “hábil dosagem” entre
no papel das religiões na África subsariana
múltiplos movimentos contraditórios e com
Isto é, paralelamente às mudanças de
transmissão de ideias religiosas, promessas
que, por exemplo, se explicam em boa parte
expressões diferentes nos vários países, o
estratégia observadas na Igreja Católica e em
de “salvação” e ofertas de serviços e bens
situações tão diversas como os recorrentes
seu alargamento aos diferentes sectores
várias igrejas protestantes de que resultaram,
materiais, está de múltiplos pontos de vista
confrontos entre o islão e o cristianismo na
populacionais, nomeadamente nas áreas
entre outros aspectos, um empenhamento
dependente da capacidade de as instituições
Nigéria, no Quénia, nos Camarões ou no
urbanas, veio alterar muitos dos equilíbrios
de longo termo no social e a “africanização
religiosas subsarianas se posicionarem ade-
Sul do Sudão, os papéis políticos privilegia-
intra e interreligiões existentes nas primei-
acelerada” dos seus quadros, o levantamento
quadamente nas redes em que participam
dos que algumas igrejas cristãs desempe-
ras décadas de independência e, mesmo,
dos obstáculos criados pelas potências colo-
e de, por via do lugar que nelas ocupam,
nham actualmente na Costa do Marfim,
por exemplo, nuns casos estabelecer no
niais a um maior envolvimento das organiza-
acederem aos recursos de que necessitam
no Quénia, na Zâmbia ou no Benim, o
interior dos países zonas de afrontamento
ções muçulmanas africanas com os países do
para as suas acções prosélitas.
fulgurante protagonismo em certos países
permanente entre religiões e noutros
Magrebe e do Médio Oriente tornado possí-
Deste ponto de vista, em última análise,
de líderes religiosos muçulmanos de cariz
“reservas de crescimento” exclusivas desta
vel pela ascensão à independência dos países
a par das condições internas, o “retorno”
reformista, o estatuto “chique e bom tom”
ou daquela religião do Livro.
africanos, o choque petrolífero do início
e a nova visibilidade da religiões do Livro
que cerimónias de religiões tradicionais
Isto é, à crescente confessionalização do
dos anos 1970, a guerra do Kippur (1973),
têm muito a ver com os meios materiais
desfrutam no seio de muitos sectores das
espaço público, acrescentaram-se, nestas ul-
a revolução islâmica iraniana (1979) e as
e humanos postos à sua disposição e à
elites africanas, as generalizadas e recorren-
timas décadas, a multiplicação dos conflitos
sucessivas crises económicas no continente
“redefinição” do papel da África subsariana
tes “contaminações” das religiões do Livro
de cariz étnico e religioso e, como veremos,
africano ligaram-se entre si para favorecer o
na “diplomacia” das organizações religiosas
por práticas das religiões ditas tradicionais
a redefinição generalizada dos alinhamentos
reforço das relações entre a África subsariana
internacionais.
ou, na generalidade dos países subsarianos,
internos e externos dos diferentes sectores
islamizada e os países árabes, nomeadamen-
À entrada da década de 2010, as organi-
a incontornável visibilidade das práticas
das religiões do Livro
te pela prestação quer de intensa “assistência
zações religiosas cristãs e muçulmanas
técnica” em matéria religiosa, quer de apoios
na África Subsarina, não só em termos de
Neste sentido, para além da visibilidade
Religiões, redes, “alinhamentos”
económicos e sociais importantes.
meios materiais e humanos globalmente se
forte e “tangível” das religiões, o revivalismo
religiosos
Desde então, fazendo de certa maneira con-
equivalem, como ainda se mostram igual-
religioso, tanto muçulmano como das igre-
Aliás, para vários autores, os conflitos
traponto ao aumento crescente de meios
mente bastante predispostas a desempenha-
jas cristãs, impregna fortemente a via social
religiosos na África subsariana relevam de al-
humanos e materiais colocados à disposição
rem papéis ainda de maior relevo.
de boa parte das populações e, em alguns
gum modo da crescente transnacionalização
das diferentes igrejas cristãs, multiplica-
O “retorno” da religião na África subsa-
casos, desdobra-se de fervor “neófito” na
das redes religiosas, sobretudo no que tem a
ram-se não só as doações árabes para a
riana não é pois nem uma idiossincrasia
“boca” de “renascidos para a religião”,
ver com a relação entre as dinâmicas religio-
construção de mesquitas e para a criação e
dos africanos, nem um simples fenómeno
incluindo dirigentes dos mais altos lugares
sas locais e as redes internacionais onde, de
manutenção de escolas e institutos muçul-
ditado por sucessivas conjunturas de crise
hierárquicos do Estado (por exemplo, a
forma explícita, os sectores mais prosélitos
manos, o envio de conselheiros religiosos
económica, social e politica: o “retorno” da
neopentecostista Sara Gagbo e Janet Muse-
do Cristianismo e do Islão se incluem.
para os países subsarianos, as ofertas de
religião inscreve-se na própria trajectória
vini, deputadas e mulheres, respectivamen-
Na realidade, tanto num como noutro,
bolsas para estudos religiosos e os subsídios
da África subsariana desde o início das
te, do presidente da Costa do Marfim e do
as relações, nas últimas décadas, entre
para peregrinações a Meca, como também
descolonizações. ■
Uganda, o ex-pastor pentecostista Goodluck
componentes africanas e componentes
os investimentos e os projectos assistenciais
Ebele Jonathan, actual vice-presidente da Ni-
internacionais não só se têm intensificado,
financiados por fundos e organizações
géria ou Yaha Sanneh, actual presidente da
como ainda esse relacionamento em rede,
privadas e estatais árabes.
Gâmbia e durante muito tempo empenhado
apesar de algumas diferenças substantivas
Com meios vultuosos ao seu dispor, os países
protector de grupos da movida wahhabista
em termos de objectivos, entre redes cristãs
árabes e do Médio Oriente em geral assu-
na sub-região senegambiana).
e muçulmanas, tornou-se num dos mais
mem-se, independentemente da diversidade
O fenómeno dos born again, em Áfri-
importantes sustentáculos, no terreno, do
de interesses e de posicionamentos religiosos
ca inicialmente confinado aos sectores
proselitismo das religiões do Livro, como o
entre eles, de forma directa como grandes
protestantes interconectados com as igrejas
demonstra, por exemplo, a grande depen-
apoiantes das comunidades muçulmanas afri-
religiosas, quaisquer que elas sejam.
Referências
DOZON, Jea-Pierre (2008) — L’Afrique à Dieu et à
Diable – États, ethnies et religions. Paris: Ellipses.
GIFFORD, Paul (1998) — Africain Christianity, Its Public
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GOMEZ-PEREZ, Murriel (ed.) (2005) — L’Islam Politique
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Karthala.
LEVTZION, Nehmia; POUWELS, Randle L. (eds) (2000) —
The History of Islam in Africa. Athens: Ohio University
Press.
183
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Proselitismos, revivalismos e redes religiosas pós-coloniais