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A RODA DO CAVALO MARINHO:
ESPAÇO PARA UMA MEMÓRIA ESPETACULAR DE UMA
ANCESTRALIDADE FESTIVA.
Érico José Souza de Oliveira - UFBA55
Iniciaremos nossa comunicação sobre a festa do Cavalo Marinho, também
chamada de sambada por seus participantes, abordando três elementos
essenciais à existência humana: o jogo, a festa e o riso.
Estas três noções se complementam enquanto aspectos constitutivos: a
liberdade e a regra, a evasão temporária da realidade, o caráter cômico e crítico,
a concentração de esforços e afetos, a reinvenção da vida ordinária, a transgressão
e o reforço da ordem, além de seus elementos próprios de espetacularidade.
Para Johan Huizinga (1993, p. 53), a cultura surge sob a forma de jogo, ou
seja, ela possui certo grau de ludicidade, principalmente nos seus primórdios,
mas também nos dias atuais: A vida social reveste-se de formas suprabiológicas,
que lhe conferem uma dignidade superior sob a forma de jogo, e é através deste
último que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo.
Também encontramos este raciocínio nas reflexões de Roger Caillois
(1967, p. 34), quando o autor trata da noção de jogo atualizando-a entre as culturas
antigas e os tipos de jogos contemporâneos a ele, abordando seu domínio
espetacular e ostentatório, do qual ele define precisamente:
Tudo o que é mistério ou simulacro por natureza, está próximo do
jogo: é preciso ainda que a parte da ficção e do divertimento o faça
surgir, isto quer dizer que o mistério não seja venerado e que o simulacro
não seja início ou sinal de metamorfose e de possessão.
Para Huizinga (1993, p. 11-12), o jogo tende a se fixar rapidamente como
fenômeno cultural, como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser
conservado pela memória. É transmitido, torna-se tradição.
55
Professor Doutor da graduação e pós-graduação da Escola de Teatro da UFBA, Pós-doutorado (em curso)
na Universidade Paris 3 – Sorbonne Nouvelle (Paris), Diretor do Grupo de Pesquisa em Encenação
Contemporânea – G-PEC (CNPq), Ator, Encenador, Iluminador, Sonoplasta e Figurinista de teatro.
79
Com relação à festa, o professor Norberto Luiz Guarinello (2001, p. 973) a
define como uma forma de ação coletiva peculiar que implica em produção. Por
isso, ela envolve uma coletividade num processo de produção e consumo de
bens materiais e imateriais que ocupam lugares específicos no seio do grupo
que a realiza, compondo uma sensorialidade identitária que se dá pelo
compartilhamento simbólico festejado.
O autor atribui à festa um caráter polissêmico e complexo:
O que quero dizer, na verdade, é que o que chamamos de festa é
parte de um jogo, é um espaço aberto no viver social para a reiteração,
produção e negociação das identidades sociais (...) um tempo de
exaltação dos sentidos sociais, regido por regras que regulam as
disputas simbólicas em seu interior e que podem, por vezes, ser bastante
agudas. A festa unifica, mas também diferencia, tanto interna quanto
externamente.56
Neste ponto, Bakhtin (1999, p. 10) nos oferece uma definição de festa como
(...) uma “forma primordial”, marcante da civilização humana (...)
As festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido
profundo, exprimiram sempre uma concepção de mundo (...) Sua
sanção deve emanar não do mundo dos “meios” e condições
indispensáveis, mas daquele dos “fins superiores” da existência
humana, isto é, do mundo dos ideais. Sem isso não pode existir
nenhum clima de festa.
O grande fôlego investigativo de Georges Minois o faz encarar o desafio
de seguir o riso no curso da história ocidental, enquadrando-o como elemento
essencial e intransferível da existência humana. Segundo Minois (2003, p. 30), o
riso é a força motriz da festa:
Não se concebem mascaradas, travestimento, cenas de inversão,
desordens e excessos sem o riso desbragado que, de alguma
forma, imprime-lhes o selo de autenticidade. É o riso que dá sentido
e eficácia à festa arcaica. Porém, essas festas têm uma função:
reforçar a coesão social na cidade. Elas asseguram a perpetuação
56
In: JANCSÓ, István e Kantor, Iris (orgs.). Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. Volume
II. São Paulo: Hucitec/Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP: Imprensa Oficial, 2001.
80
da ordem humana, renovando o contato com o mundo divino; e o
símbolo do contato com o mundo divino é o riso (...)
Segundo o autor, o riso é implacável enquanto arma contra as questões
práticas e existencialistas do mundo, contra as incertezas e as certezas, contra
as eternas interrogações que se multiplicam durante os séculos, como uma
forma de resposta alegre às desventuras da vida, permitindo ao homem aceitar o
incompreensível, assumindo tudo sem levar nada a sério.
Diante do exposto, observamos que o que chamamos de ancestralidade
festiva é, sobretudo, uma espécie de memória física, que utiliza o próprio corpo
como instrumento que estrutura todos os sentidos com o intuito de reavivar, de
recompor um universo de liberdade e coletividade, tendo como elementos
imprescindíveis o jogo, a festa e o riso, servindo para promover uma espécie de
vida transversal que, desestruturando a ordem convencional, ajuda a organizar e
amenizar a lida com os sistemas de normas sociais vigentes.
Por isso, ela segue seu curso por entre as imposições sociais, sempre
se renovando e se transformando, porém, sem perder seus aspectos principais.
A ancestralidade festiva traz seu rastro de resistência e dinamismo, produzindo
inúmeras formas e modos de exteriorização dos anseios, alegrias e tristezas da
humanidade.
Esta sensação de distanciamento dos valores morais da sociedade,
através de uma realidade mais graciosa e rica, plena de prazer e felicidade
persegue e complementa o homem. E é no encontro deste corpo sedento de
alegria que o jogo, a brincadeira, o teatro, enfim, o espetacular se instala e recria,
revigora e fecunda a existência.
São práticas mantidas fora do funcionamento social padrão e, por isso,
tornam-se o espaço ideal para que a voz daqueles que não dispõem de poder na
sociedade em que se inserem seja projetada e brade contra todas as espécies
de injustiças e abusos.
Ao se incursionar por entre os elementos constitutivos do espetáculo
(esteja ele em que contexto estiver), é importante ter em mente que são sempre
nossos hábitos perceptivos culturais que nos dirigem para valorização deste ou
81
daquele detalhe ou recorte57, o que torna toda e qualquer análise um tanto
subjetiva, se pensarmos que é através de nosso olhar – e não há outra forma –
que os fatos tornam-se perceptíveis.
Sendo assim, situamos nossa análise sobre o Cavalo Marinho dentro de
uma perspectiva que absorve também o olhar do outro, no caso, dos brincadores,
a partir de seu entendimento do espetáculo em questão e tentamos acrescentar
nosso ponto de vista, na posição inevitável de pesquisador e praticante de teatro,
que ora rediscute as informações colhidas através dos próprios praticantes, ora
corrobora ou acrescenta, a partir de outros olhares – teóricos que venham a
contribuir ou elucidar o pensar o outro em seu caráter espetacular – na tentativa
de, mais que objetivar uma descrição do evento, refletir sobre sua importância na
estrutura sócio-cultural de quem o pratica.
O Cavalo Marinho de Pernambuco
É neste contexto que situamos nossa investigação sobre o Cavalo
Marinho de Pernambuco, através da análise de seus aspectos estéticos,
dramatúrgicos e históricos, sendo uma manifestação espetacular que funciona
no seio da sua sociedade local como um momento de integração, de prática
identitária que, através do riso, do jogo e da festa, traça um diagnóstico da relação
de poder e das diferenças sócio-econômicas existentes no Brasil.
A brincadeira do Cavalo Marinho é realizada, principalmente, na Zona
da Mata Norte de Pernambuco, região agrícola que, desde o período da
colonização do Brasil, sobrevive em torno da monocultura da cana-de-açúcar,
num sistema de latifúndios que privilegia uma pequena parcela da população e
explora de forma aviltante a grande parte dos trabalhadores rurais.
É neste cenário que o drama social oferece as bases para a construção
e o fortalecimento das identidades de um povo abandonado ao descaso e às
injustiças dos grandes proprietários de usinas de açúcar e aguardente de cana.
Historiadores sinalizam documentos que tratam de tal manifestação –
também conhecida como Bumba-meu-boi – desde o início do século XIX, mas,
57
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Editora Perspectiva S/A, 2003, p 163.
82
certamente, ela nasceu nas senzalas dos engenhos de cana, através do hibridismo
das culturas européias, africanas e ameríndias.
De conteúdo complexo, o Cavalo Marinho pode ser considerado
um espetáculo construído a partir de várias práticas espetaculares, festas,
brincadeiras, rituais religiosos e profanos que permeiam o imaginário do
povo brasileiro, principalmente, da parcela mais desprestigiada da
população.
A dança, o canto, a récita, o drama e o improviso são elementos constitutivos
do espetáculo que possui, aproximadamente, oitenta e cinco personagens –
chamados de “figuras” pelos praticantes – com enredos, canções e danças
próprias, que se apresenta ao ar livre durante toda a noite – o espetáculo, quando
completo, começa às 21 horas e finaliza às 06 horas do dia seguinte, durando,
em média, oito ou nove horas.
A brincadeira se desenvolve em círculo – chamado de roda pelos
brincadores – no qual o público, de pé, dá forma ao espaço representacional,
enquanto, dentro dele, se desenvolvem os dramas e conflitos pertencentes aos
membros do grupo e seu entorno sócio-cultural.
Apoiando-nos no estudo do literato russo Mikhail Bakhtin (1999, p. 10),
podemos perceber que o Cavalo Marinho pernambucano lida com estruturas
similares ao que o autor observou nas práticas festivas do medievo e da
renascença européia, como, por exemplo, a necessidade de práticas festivas
como desejo humano de renovação universal, de ressurreição e de transformação,
passagem para um estado ideal em que se revestia a segunda vida do povo, o
qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade,
igualdade e abundância.
Neste tipo de evento, as imagens cômicas do princípio da vida material e
corporal – imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades
naturais, da vida sexual, da liberdade gestual e de linguagem, revelam sua relação
entre o alto e o baixo, o céu e a terra, o grotesco e o sublime, além de servirem
como forma de inversão do statu quo, promovendo a sátira e a crítica aos padrões
rígidos e socialmente estabelecidos.
83
E é no meio da roda do Cavalo Marinho que presenciamos um ato festivo
e cômico, realizado por cortadores de cana, analfabetos em sua maioria, que
transmitem oralmente, através dos tempos, uma gama de valores, conhecimentos
e compreensão de mundo. Neste espaço, o embate entre a vida como ela é e a
vida desejada pelos participantes ganha ares espetaculares e representa um
fórum de debate acerca das condições em que se encontra tal comunidade:
Como um drama que enfatiza as relações patrão-empregado, a
subordinação e outros aspectos da autoridade rural tradicional,
o cavalo marinho pode ser interpretado como um quadro da
visão moral de seus participantes, que se vêem na transição de
um sistema tradicional, substituído pela modernização da
indústria de açúcar e da economia local. 58
Podemos dividir os personagens do Cavalo Marinho em figuras de
autoridade e populares. Entre as primeiras estão o soldado, o padre, o
engenheiro, o proprietário de terras, entre outros, que se utilizam de máscaras
grotescas e são, durante a brincadeira, ridicularizados pelos escravos Mateus,
Bastião e Catirina, que possuem o rosto pintado de negro. Os demais
personagens se dividem em trabalhadores manuais, animais e seres
sobrenaturais.
Nos corpos carnavalizados de todas as figuras do Cavalo Marinho estão
indissociáveis as imagens de nascimento e morte, pois,
...a vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório.
Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Esta é
precisamente a concepção grotesca do corpo59 ,
contendo estes corpos, ao mesmo tempo, a velhice e a infância, o ventre
e o túmulo.
MURPHY, John. O cavalo marinho pernambucano. Trad. André Cunati de Paulo Bueno. 1994. Tese
(Ph D em Etnomusicologia) – Escola Graduada de Ciências e Artes de Nova York, Columbia University,
Nova York.
59
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1999, p. 23.
58
84
E é este corpo aberto e incompleto que se expande e se confunde com
outros corpos como animais, coisas e seres de outro mundo, pois é um corpo
cósmico, uma partícula do caos, de onde brotam as trevas e a luz, a vida e a morte.
Em relação aos conteúdos do espetáculo, observamos a noção bakhtiniana
de “obras verbais”, na qual a literatura está imbuída da concepção carnavalesca
de mundo60 , e é composta tanto do aspecto religioso quanto de paródias e
escárnios ao sistema social e aos poderosos, através de travestimentos, animais,
bufões, malandros e tolos.
Tal dramaturgia abarca romances populares provindos da península
ibérica, histórias de figuras do imaginário popular brasileiro ou personagens que
se tornaram famosos por alguma característica particular, como o Valentão ou a
Velha libidinosa, e se divide em momentos versificados: toadas (cantos), loas
(récitas ou poemas), e momentos em prosa: diálogos (estruturas definidas de
discurso verbal) e improvisos (momentos de discurso livre sobre um tema).
Naturalmente, tais momentos não são estanques, mas, sim, possuem
fronteiras liminares e tênues, sempre enfatizadas pela relação que se estabelece
entre a brincadeira e o público presente, que participa de forma ativa e se vê
refletido nos episódios apresentados.
O conteúdo textual do Cavalo Marinho, que se perpetua e se atualiza de
forma oral, assim como sua estética e corporeidade, trazem em seu bojo
reminiscências de um passado e de memórias de uma ancestralidade que viabiliza
o fortalecimento das identidades atuais e suas formas de se posicionar perante o
mundo que as cerca.
Mateus, Bastião e Catirina
Dissertar sobre o todo da brincadeira do Cavalo Marinho torna-se
inviável neste momento, por isso, vamos nos ater a três figuras importantes
dentro da dinâmica da roda da manifestação popular em questão: o Mateus,
o Bastião e a Catirina.
Importantes no sentido de que são figuras que possuem uma
participação ambivalente na brincadeira, pois, ao mesmo tempo que são os
85
três escravos do Capitão, eles têm todo poder e liberdade para comandar a festa
com o consentimento do seu senhor.
Além disso, são figuras apresentadas pelos mesmos figureiros durante
sua permanência no grupo. Os brincadores responsáveis por estes tipos de figura
se especializam nos seus códigos gestuais e vocais e as apresenta durante toda
a sua vida ativa na brincadeira. Podemos dizer que, dentro das etapas de
aprendizado da brincadeira, estas figuras fazem parte do estágio mais elevado
de realização no drama.
Mateus é uma das figuras que permanece o tempo inteiro na arena, ficando
do início ao fim da brincadeira. Segundo os brincadores, é um escravo que serve
ao Capitão. Tem espírito matreiro e arredio. Seu objeto característico é uma bexiga
de boi seca e inflada com ar que usa para marcar o compasso das toadas batendoa na perna enquanto dança e, principalmente, para surrar as outras figuras.
Outros elementos característicos são: seu chapéu em forma de cone
coberto de papel laminado colorido, sua roupa sempre estampada e o matulão
que traz no alto das nádegas, feito de folha de bananeira, além do rosto melado
de cinza de carvão. É chamado pelo Capitão para tomar conta da festa que está
organizando.
Bastião também é uma figura permanente no terreiro e parceiro de Mateus.
É muito parecido com este, tanto nos trajes como em sua atuação no espetáculo,
com o diferencial de que o Mateus é mais ativo que ele. É chamado pelo Capitão
para ajudar seu amigo a cuidar da festa. Os dois negros se chamam de “pareia”
(parelha), devido à cumplicidade e companheirismo.
Catirina (ou Catita) é outra figura permanente da brincadeira. É a escrava
assanhada e mulher de Mateus. Alguns brincadores dizem que ela é mulher
dos dois negros, mas nosso informante, o mestre Biu Alexandre, não confirma
esta versão, apesar de haver sempre insinuações neste sentido durante o
espetáculo.
Apesar de ser uma figura feminina, é interpretada por um homem.
Também pinta o rosto de negro, usa um lenço na cabeça, um vestido simples,
um jereré (espécie de peneira para pescar) e uma boneca (a calunga) como
86
elementos de caracterização. Vem para a roda a pedido de seu marido Mateus.
É uma figura que está voltando aos poucos ao espetáculo, depois de muitos anos
de ausência e notamos que, devido a este afastamento, muita coisa em relação
a sua participação na brincadeira se perdeu (toadas, loas, enredos, etc.).
Percebemos, em todas as formas de jogos e manifestações espetaculares,
que o acentuado caráter visual é importante para a instalação da consciência de
que, naquele momento, se apresenta uma outra maneira de compreender e
narrar a vida.
Patrice Pavis (2003, p. 196-170) também atribui um importante papel aos
elementos responsáveis pela transformação do homem em seu momento
espetacular:
O figurino é, no teatro, um embreador natural entre a pessoa
física e privada do ator e a personagem da qual ele veste a pele
e os aparatos. Perfeito agente duplo, ele é levado por um corpo
real para sugerir uma personagem fictícia: podemos assim abordálo a partir do organismo vivo do ator e do espetáculo, ou então,
a partir do sistema da moda que ele transmite da maneira mais
precisa possível (...)
Analisando as vestimentas das figuras do Cavalo Marinho, concordamos
com Patrice Pavis, quando este observa a questão dos limites do figurino, ou
seja, o que pode ou não ser chamado de figurino.
Segundo o autor, não é fácil definir o começo e o fim do que pode ser
chamado de vestimenta, pois, a depender do tipo de roupa, torna-se impossível
distingui-la de outros elementos como máscaras, perucas, postiços, jóias,
acessórios e maquiagem.
Tanto a relação do figurino com o corpo do ator que o utiliza, quanto com
o espaço que ele interage, assim como sua relação com os outros elementos
visuais deve ser levado em conta no momento de uma análise mais apurada do
que se convencionou chamar figurino.
O mestre Biu Alexandre, do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, também está
de acordo com esta forma de pensar a vestimenta e sua importância para quem
a utiliza:
87
Rapaz, pra mim, tudo é importante. Eu não separo de importância.
Eu não separo nada, porque, pra mim, tudo é importante (...) o
figureiro, se ele não tiver uma roupa certa pra botar aquela figura,
ele já está achando ruim. Porque, você vê, tem figura que a
gente bota de manga de camisa, mas têm outras que não, que
são de paletó. Porque a figura só assenta com paletó. Uma figura
pesada, sem paletó, ela não é de nada. 61
Os negros Mateus e Bastião, quanto às suas vestimentas, são as figuras
mais curiosas em termos de análise, pois possuem um figurino que vem se
estilizando a um ponto em que não mais os enquadram nas suas funções de
escravos e serviçais. Não há, neste caso, como deixar de fazer uma relação entre
a roupa destas figuras com as antigas imagens de bufões, palhaços e os famosos
Arlequins da Commedia dell’arte.
Principalmente, se evidenciarmos um elemento que eles trazem nas costas
à altura das nádegas, o chamado matulão, que é feito de palha seca de bananeira.
No início de nossa pesquisa, pensávamos que a função deste objeto era de
diminuir o impacto dos tombos que as figuras levavam no decorrer das
apresentações, mas, através de entrevistas, fomos informados que seria uma
espécie de bagagem que os negros levavam consigo: Aquilo ali é a mala dele (...)
É a bagagem. Os negros, antigamente, não andavam com as bagagens? Quando
iam viajar, não levavam aquelas bagagens? A mesma coisa são os Mateus.62
O curioso é que encontramos referências longínquas sobre o emprego
deste material nas roupas de personagens cômicas, como vemos a seguir:
Por outro lado, palhaço vem do italiano paglia (palha), material usado
no revestimento de colchões, porque a primitiva roupa desse cômico
era feita do mesmo pano dos colchões: um tecido grosso e listrado, e
afofada nas partes mais salientes do corpo, fazendo de quem a
vestia um verdadeiro “colchão” ambulante, protegendo-o das
constantes quedas (RUIZ, 1987, p. 12).63
Idem, p. 11.
Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 17/02/2005, na cidade
do Condado, Pernambuco.
62
Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 16/02/2005, na cidade
do Condado, Pernambuco.
63
In: BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2001, p. 205.
60
61
88
De fato, não podemos asseverar de forma conclusiva tais relações, mas,
podemos perceber certa proximidade entre os dois casos expostos.
A roupa em si do Mateus e do Bastião também nos lembra, pelo colorido
e pela forma, as roupas mais conhecidas dos Arlequins, ficando claro que há
uma ligação muito antiga entre a graça, a diversão e a utilização de roupas
coloridas, pois, nos dois casos, estes são personagens encarregados em manter
o tom cômico dos espetáculos, além de suas origens modestas que geraram um
figurino em forma de retalhos multicores.
Também, são estas figuras, juntamente com a Catirina, que assumem a
função de inverter as relações sociais estabelecidas pelo sistema vigente, isto é,
dentro da roda, através do riso e do escárnio, são eles que dominam as outras
figuras que, na vida real, são os detentores do poder. Neste caso, o figurino
demonstra sua forma de participação na brincadeira.
Em se tratando da maquiagem que, segundo Patrice Pavis, tem a função
de vestir o corpo, assim como a alma de quem a usa, ela desempenha papéis
simples e de fácil percepção, à primeira vista, em se tratando da brincadeira do
Cavalo Marinho. Poderíamos mesmo dizer que a maquiagem se resume a rostos
pintados de preto ou branco ou o uso de máscaras.
Porém, numa análise mais apurada podemos observar significantes de
profunda relação com o imaginário que constitui o universo que permeia os
brincadores e, atentos à conduta de Pavis, tentaremos avaliar, sobretudo, a função
simbólica que a maquiagem e a máscara preenchem no momento da
espetacularização do corpo e suas conexões com o sistema sócio-cultural de
seus participantes.
Mas, antes de adentrarmos nestas questões, observemos o que Pavis
(2003, p. 170) nos diz a respeito da máscara e da maquiagem:
A maquiagem não é, no entanto, uma extensão do corpo como
podem ser a máscara, o figurino ou o acessório (...) É, melhor
dizendo, um filtro, uma película, uma fina membrana colada no
rosto: nada está mais perto do corpo do ator, nada melhor para
servi-lo ou traí-lo que esse filme tênue.
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Esta passagem nos faz refletir sobre a utilização das máscaras,
maquiagens e rostos limpos dos integrantes do Cavalo Marinho.
A maquiagem de cor preta só é usada por três figuras no espetáculo, o
Mateus, o Sebastião e a Catirina, os negros escravos do Capitão que são
contratados para tomar conta da festa. Por mais que seus intérpretes não
sejam brancos, isto é, estejam mais próximos dos descendentes de escravos,
seus rostos são maquiados de preto, o que ressalta o branco dos olhos quase
sempre arregalados e dos dentes sempre aparentes através da ginástica
facial característica que imprime o tom zombeteiro e satírico das figuras.
Podemos, a partir disso, afirmar que, nesta estrutura do Cavalo Marinho, a
maquiagem é a personificação do elemento oprimido que se faz livre na
brincadeira, ganhando poderes acima das normas do dia-a-dia. São os antigos
escravos que, reinventados pelos brincadores, são vividos como identidade destes,
são as figuras mais próximas a eles, que se identificam com seus pesares,
sofrimentos e injustiças.
Por isso, não a máscara, nem o rosto limpo, como acontece com as
outras figuras, mas aquela fina membrana colada no rosto, simbolizando que
nada está mais próximo do universo dos brincadores que seus antepassados
escravizados e, sendo assim, seus lugares são os mais próximos possível do
corpo do brincador, na sua pele, representando o elo, as referências sociais,
econômicas e simbólicas que refletem o sistema destrutivo que permanece
por anos a fio e unem passado e presente de uma história infeliz.
Para Maria Acselrad, as figuras do Cavalo Marinho fazem alusão, ao
mesmo tempo, à realidade e ao imaginário local, trazendo em sua aparição,
tanto a história do figureiro (pessoa responsável em executar a figura) que
lhe dá vida, do povo de seu lugar como a presença de um universo mais
coletivo e imemorial.
Esta relação dinâmica se estabelece através da vivificação da memória
que atua como um elo entre o passado e o presente, conferindo uma constância
identitária para o grupo:
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A memória cria efetivamente uma ligação temporal sensível, entre lugar
e corpo, e faz ressentir, num dado momento, o que foi ou o que teria
podido ser, na reconstrução de um passado no momento presente.64
Porém, esta noção de memória não deve ser vista como algo saudoso ou
melancólico, algo distante que não se pode resgatar, mas como experiência que
possui representatividade no agora, como complementa Pascal Roland:
A mobilização da memória se insere, consequentemente, na expressão
do instante presente e não na lembrança de um passado inexistente,
uma nostalgia.65
Neste processo de rememorização através do ato espetacular, não
importa a cronologia, o momento exato de algum fato, pois, ele já não existe
mais. Está nos elementos que transpassam o tempo e penetram nos dias atuais
a necessidade do relembrar.
Relembrar para esquecer o que passou, mas para não esquecer de si
mesmo, produzindo forças para poder seguir a diante e recriar a vida.
A brincadeira que corporifica as figuras do passado une um tempo
ancestral ao tempo atual, através de uma conjunção de ações e movimentos
que transitam entre tais temporalidades, ressignificando e atualizando a
história e neste contexto a referência ao passado só se faz no eco suscitado
no período atual e só vale por ele.66
Este acontecimento da memória se dá também na escolha dos tipos
que compõem o Cavalo Marinho como sendo um arcabouço de interseções
entre o hoje e o ontem, circulando no corpo dos participantes num fluxo infindável
de conhecimento e diversão, como explicita Helena Tenderine (2003, p. 64):
ROLAND, Pascal. Danse et imaginaire – Étude sócio-antropologique de l’univers chorégraphique
contemporain. Paris: EME, 2005, p. 94. Minha tradução : La mémoire crée em effet um lien temporel
sensible, entre lieu et corps, et fait ressentir, à um moment donné, ce qui a été ou aurait pu être, dans la
reconstruction d’um passe au moment présent.
65
Idem. p. 95. Minha tradução: La mobilisation de la mémoire s’insère em conséquence dans l’expression
de l’instant présent et non dans le rappel d’un passe révolu, une nostalgie.
66
Id. ibid, p. 96. Minha tradução: (...) la référence au passé ne se faisant que dans l’écho suscite dans la
période actuelle et ne valant que pour elle.
64
91
Eles mostram o universo em que vivem e o universo em que viveram seus
antepassados. Mesmo que alienadamente, eles estão representando e
apresentando uma realidade que foi vivida há tempos passados (na época da
escravidão) por seus ancestrais. Por isto, eles são e não são eles na brincadeira,
porque para alguns deles esta realidade está distante, guardada no passado,
mas para outros não, ela está bem viva no presente.
Maria Acselrad (2002, p. 108) desvela o caráter cósmico que
emprenha a brincadeira do Cavalo Marinho de sentido, interesse e
dinâmica, personalizado no conjunto de figuras que anima o espetáculo,
através das vielas da memória, do significado cultural e da relação
estabelecida entre elas e o público: As figuras são os outros dentro de um
só eu. A maneira como são colocadas, na maioria das vezes, sem ruptura
ou transição enfática, sugere que a multiplicidade é constitutiva da
integridade dos sujeitos que as colocam.
E mais, que tal multiplicidade é parte integrante de cada indivíduo,
permeado de tantos outros em sua suposta individualidade.
Bibliografia:
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92
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de Pernambuco, Recife.
Apoio
VIRT U T E S P I RIT U S
Universidade Federal da Bahia
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
Os Cadernos do GIPE-CIT são uma publicação do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e
Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade que existe desde 1994 e que
deu origem, em 1997, ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Sua proposta é
divulgar os resultados parciais das pesquisas realizadas por professores, alunos e outros
pesquisadores participantes. Os Cadernos do GIPE-CIT podem ser encontrados na
secretaria do PPGAC, na Escola de Teatro da UFBA e nas bibliotecas especializadas em artes
cênicas.
GIPE-CIT
Endereço: Av. Araújo Pinho, 292, Canela
CEP 40.110-150 Salvador - Bahia
Telefax: (71) 3245 0714
E-mail: [email protected]
Página do PPGAC/UFBA na Internet
http://www.teatro.ufba.br/ppgac/
Página dos Cadernos Gipe-Cit na Internet
http://www.teatro.ufba.br/gipe/
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A roda do cavalo marinho