1 ORGANIZAÇÃO DOS CUIDADOS PALIATIVOS NEONATAIS E PEDIATRICOS IV REUNIÃO DE ÉTICA – FUNCHAL 5 – 6 OUTUBRO 2012 Lincoln Justo da Silva [email protected] O acto de paliar (do latim pallium, capa) é muito antigo. A primeira referencia escrita surge na Bíblia com o episódio do Bom Samaritano. Esta atitude humana de agasalhar e acompanhar o outro homem em sofrimento, manteve-se ao longo de toda a história. Caracterizavam-se por atitudes individuais e colectivas ligadas a instituições religiosas a exemplo das quais, podemos referir os inúmeros albergues que acompanhavam o Caminho de Santiago. Com o evoluir da ciência e da tecnologia, a medicina moderna encontrou-se na posse de poderosos instrumentos de luta contra as doenças. Tal facto levou a que os doentes que recorriam em maior número aos hospitais, lá ficavam internados e onde acabavam por morrer. Deste modo, os doentes passaram a morrer não em casa rodeados dos seus familiares e no ambiente que sempre conheceram, mas num hospital, sob a forma de um número e num ambiente asséptico, isolado e inóspito. Muitas vezes, os médicos na sequência das extraordinárias inovações científicas e técnicas, foram dando mais atenção à doença e menos à pessoa doente, o que os levou, a considerar a morte como uma derrota do poder da ciência que representavam. Nos meados do seculo XX, surgiram no Reino Unido, os primeiros trabalhos a chamar a atenção para as dificuldades dos doentes e familiares com doenças graves e incuráveis como o cancro, na fase terminal e no luto. E foi deste modo que na década de sessenta, Cicely Saunders no Reino Unido, socióloga, enfermeira e médica, lançou as bases da ciência e arte de cuidar de doentes atingidos por doenças graves e incuráveis. A partir dos trabalhos de Cicely Saunders em 1967, o conceito de cuidados paliativos estendeuse a outras regiões com especial destaque para os Estados Unidos e países escandinavos. A Organização Mundial de Saúde, em 1986 publicou as orientações para a terapêutica da dor com especial enfase no uso da morfina¹. Em 1989, a OMS publicou a primeira definição de cuidados paliativos como – uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos doentes e seus familiares que se confrontam com problemas derivados de doenças com risco de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento e detecção precoce e tratamento da dor e outros problemas físicos, psicossociais e espirituais. Na Pediatria também a OMS definiu cuidados paliativos em 1998 como sendo um cuidado activo e global à criança no plano físico, mental e espiritual que envolve também o cuidado à sua família. Um estudo clássico realizado na Europa² referia que dos 1235 médicos inquiridos, tinha tido um envolvimento pessoal na abstenção terapêutica em 45% dos casos e 86% na suspensão 2 terapêutica. Não foram contudo referidas as medidas tomadas para aliviar o sofrimento e apoiar as famílias no doloroso processo de morrer nas unidades de cuidados neonatais. Em Portugal, no ano de 2010 houve 631 óbitos na idade pediátrica considerada desde o nascimento até os 19 anos. Como morreram estas crianças e jovens? Como reagiram os seus pais e familiares? E os profissionais que deles cuidaram? Estas considerações serão importantes? Se a resposta for afirmativa, os cuidados paliativos estão justificados. Como atrás foi referido a vocação paliativa é inerente ao ser humano. Contudo, a evolução da ciência e tecnologia, a complexidade das doenças, a evolução sociológica com o reconhecimento da dignidade e a evolução dos direitos do Homem (e das Crianças) obrigou os médicos a uma resposta cientificamente estruturada e multidisciplinar. Por outro lado, através dos meios de comunicação, os doentes estão cada vez mais conscientes dos seus direitos nomeadamente na participação no plano de cuidados (autonomia), na informação sobre a sua doença, no conforto em especial o alívio da dor e outros sintomas e o acompanhamento pelos familiares. Desde 1963, ano em que foi inaugurado o primeiro hospício por Cecily Saunders, o cuidar dos doentes incuráveis assumiu um caracter multidisciplinar baseado em conceitos científicos a par da redescoberta e prioridade do sentido humano da Medicina. Desde a fundação do seu hospício, Cecily Saunders preocupou-se com a formação dos cuidadores profissionais e com a investigação com o objectivo de melhorar a qualidade de cuidados prestados. Dos cuidados inicialmente destinados aos adultos, passou-se progressivamente para as crianças no Reino Unido, no Canadá, Estados Unidos, países escandinavos e Austrália. A Associação Americana de Pediatria em 2000, através do Comité sobre Bioética e Comité em Cuidados Hospitalares lançou as bases dos cuidados paliativos pediatricos nos Estados Unidos³. Em 2006, o grupo de trabalho IMPaCCT (International Meeting for Palliative Care in Children) elaborou o documento orientador para os cuidados paliativos pediátricos na Europa que no ano seguinte foi adoptado pela Associação Europeia dos Cuidados Paliativos⁴. Portugal acompanhou a partir de 2004, o movimento europeu para os cuidados paliativos através do Programa Nacional dos Cuidados Paliativos integrado no Plano Nacional de Saúde para 2004 – 2010 e coordenado pela Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI). Infelizmente apesar do grande esforço não foi possível atingir as metas propostas pelo Programa atras referido. Em 5 de Setembro de 2012 foi publicada a nova Lei de Bases dos Cuidados Paliativos que revoga e integra toda a legislação precedente ⁵. Na nova lei de bases dos cuidados paliativos, já surgem referencias às crianças e adolescentes, na Base V – Direitos dos doentes no nº 4 – “as crianças, os adolescentes … têm o direito de expressar a sua vontade e essa vontade deve ser considerada pelo médico”, e na Base XXIII - Organização – Nº 3 : Os serviços da Rede Nacional de Cuidados Paliativos diferenciam-se para dar resposta específica … na área pediátrica. Esta lei estipula com detalhe a organização da rede no que refere à tutela, localização, recursos humanos, tipologia das equipas e suas competências, avaliação e governo. 3 Para que qualquer programa de cuidados paliativos seja eficaz torna-se determinante a formação dos elementos que a integram. A nova Lei de Bases dos Cuidados Paliativos refere a formação contínua e específica como competência da Comissão Nacional dos Cuidados Paliativos (Base XII) sendo a formação avançada remetida para as ordens profissionais científicas (Base XXVII, nº 4). Ora a formação de base deve ser a primeira etapa na formação sobre cuidados paliativos e deve começar na fase pré-graduada de todas as profissões de saúde. Para responder às necessidades dos doentes e familiares em cuidados paliativos, os médicos devem: 1. Ter conhecimentos e adoptar atitudes que possam responder às necessidades emocionais e psico sociais do doente. 2. Ter competências (básicas e diferenciadas) para cuidar em cada uma das áreas dos cuidados paliativos. 3. Ser capazes de adaptarem-se ao confronto com os vários aspectos dos cuidados paliativos. Uma das barreiras à implementação dos cuidados paliativos em Portugal, está relacionado com a ausência durante a formação pré graduada dos médicos, sobre os aspectos espirituais e psicossociais do exercício da Medicina. Ensinados desde o início a combater a doença por todos os meios, todas as tecnologias e terapêuticas, minimizaram a abordagem dos doentes como pessoas que sofrem e com necessidades não médicas, mas que são determinantes para o seu bem-estar e qualidade de vida no tempo que lhes restar para viver. Infelizmente ainda não se conhecem nas Faculdades de Medicina portuguesas, quaisquer programas de ensino sobre cuidados paliativos. Existem variados mestrados em diversas Faculdades tanto de Medicina como de Psicologia e Enfermagem. Seria porém muito importante que os aspectos sociais, psicológicos e espirituais da doença e os cuidados a doentes incuráveis e terminais fossem incluídos nos programas do ensino pré graduado, tanto teóricos como práticos. Para colmatar esta deficiência na formação, seria oportuno que a Sociedade Portuguesa de Pediatria e a secção de Neonatologia pudessem constituir-se como pioneiros na formação em cuidados paliativos dos internos, definindo os programas e seus conteúdos que fariam parte dos respectivos ciclos de aprendizagem. Referencias: 1. Cancer pain relief .WHO.1986. Geneve. 2. Cuttini M, NadiaM, Kaminski M et al. End-of-life decisions in neonatal intensive care: physicians’ self reported practices in seven European countries. Lancet 2000;355:211218. 3. Palliative Care for Children. Committee on Bioethics and Committee on Hospital care. Pediatrics 2000;106:351-357. 4 4. IMPaCCT: standards for Paediatric Palliative care In Europe. European Journal of Palliative Care, 2007; vol.14,nº3:109-114. 5. Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, Lei nº 52/2012. Diário da Republica, 1ª serie, Nº 172 – 5 de Setembro 2012.