LPH - Revista de História, v.2, n. 1, 1991
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A NOÇÃO DO TEMPO E O ENSINO DE HISTÓRIA
Raquel Glezer
Depto. de História - IEA/USP
“En fait, l’historien ne sort jamais du temps de l’histoire : le temps colle à as pensée comme la terre à la bêche du
jardinier.”1
Um dos aspectos interessantes na questão da formação de historiadores no Brasil é
o da pouca atenção que vem sendo dada ao estudo das variáveis obrigatórias: Espaço e
Tempo.
Deixamos a discussão do Espaço para geógrafos, e nem mesmo acompanhamos, à
distância, os debates e as transformações que estão ocorrendo na área vizinha. Geohistória,
história dos climas, geopolítica não atraem a atenção dos jovens historiadores nacionais.
Quanto ao Tempo, parece-nos haver uma atitude generalizada de considerar o tema
arcaico, ultrapassado, envelhecido. Sentimos que alguns historiadores, quando lhes é colocada
a questão, simbolicamente, puxam os revólveres e atiram: “tempo é cronologia”; “tempo é
periodização”; “tempo é ideologia”, ou mesmo, “tempo é periodizaçao europocêntrica”.
Propor o tema é quase uma ousadia.
As discussões sobre velhos temas, velhas histórias, velhas preocupações, como
questões epistemológicas, escolas historiográficas, métodos e técnicas estão hoje,
aparentemente, fora do atual saber histórico. Relações vivenciais, emoções, parecem que se
tornaram mais significativas para a prática do historiador.2
Raros textos conceituais retomam as questões clássicas.3
Entretanto, para todos que trabalham na difícil e problemática área da
Epistemologia e Teoria da História, Tempo e História é ato de reflexão obrigatória.4
Tempo, para História, além de ser variável, é uma questão teórica fundamental.
O surgimento da História como campo de conhecimento, apreensão da realidade,
com teorias, métodos e técnicas de trabalho, tornou-se possível com a laicização do
pensamento filosófico. Quando a História e Filosofia de História deixaram de ser uma
unidade, o processo de conhecimento histórico pôde definir seu objeto de estudo – a ação
dos homens entre si e com a natureza.
Ao ocorrer a separação, História manteve o conceito Tempo, que se era, até então,
sagrado e escatológico, passou a ser laico, mas manteve a finalidade, qualquer que fosse o
nome dado a ela: Juízo Final foi substituído por Liberdade, Razão, Estado, Progresso,
Evolução, Revolução.
A noção do Tempo laicizado continuou sendo a do Tempo sagrado, cristão, com
passado, presente e futuro. Ocorreu uma permuta de significação: Criação e Queda da
Humanidade transformou-se em Passado; Oferta de Salvação, em Presente; Juízo Final em
Futuro. O Tempo deixou de ser o meio de expressão da Providência Divina para ser o
Tempo da vontade dos homens, direcionado por eles. Esse Tempo tornou-se um absoluto.
Para a História, o Tempo variável obrigatória, acabou sendo o fator básico,
elemento de união, explicação em si, fator de coordenação do passado dos homens, que,
1
BRAUDEL, Fernand. Écrits sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1969. p.75
Vide VIEIRA, M. M. do Pilar et alii. A pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989.
3
Vide CARDOSO, Ciro Flammarion. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988 e ZAIDAN FILHO,
Michel. A crise da razão histórica. Campinas: Papirus, 1989.
4
Escolhi para discutir neste texto a questão do Tempo no ensino dos cursos de graduação em História, tanto por
estar no campo nos últimos anos, como pelo fato de que, apesar das dificuldades conceituais, Ernesta Zamboni e
Circe Maira Fernandes Bittencourt têm, nos últimos anos, dedicado alguns artigos à questão do ensino de 1o e 2o
graus.
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mais estavam no caminho da Salvação, estavam imersos na estrada do Futuro (qualquer
que fosse o nome dado a ele).
O Tempo permitiu a relação entre sociedades com formas diferentes de contagem, a
comparação entre elas, a articulação de elementos aparentemente desconexos. Ele tornouse a explicação causal, primária, elementar: fatos eram agregados por proximidade
cronológica. Com o progressivo desenvolvimento do conhecimento teórico, a questão
temporal transformou-se em recurso técnico, classificatório.
A preocupação a História Universal (História Católica) valorizou as periodizações:
eras, épocas, impérios, idades. Questões proféticas, escatológicas que foram
tranqüilamente assumidas pela histórica ciência, pois o estatuto científico do conhecimento
garantia a neutralidade e a objetividade. A Cronologia, como estudo comparativo dos
diferentes calendários, correspondentes a diversas civilizações e formas de contagem de
tempo, desenvolveu-se, tornando-se um instrumento de pesquisa básico para articulação de
contagens originalmente diferentes. A progressiva especialização do conhecimento
histórico introduziu os marcos temporais, a partir do único definido como dominante: o
nascimento de Cristo. Novos marcos foram paulatinamente sendo introduzidos, bem como
recortes temporais, etapas, marcos simbólicos.
A percepção do Tempo como elemento articulador se transformou em pano de
fundo. Não havia o que discutir, o que falar sobre o Tempo. Afinal, ele sempre
esteve/está/estará à disposição do historiador como elemento explicativo.
A introjeção do Tempo como fator explicativo em si mesmo pode ser acompanhada
na leitura atenta dos manuais de introdução aos estudos históricos, que, do século passado
a nossos dias, servem de apresentação do estado consensual do conhecimento histórico.
Do clássico Langlois & Seignobos, ficamos com o Tempo como categoria
classificatória dos documentos e depois dos fatos.5
Bauer separou claramente em dois momentos diferentes o uso do Tempo na
periodização e na Cronologia, uma ciência auxiliar.6
A questão do Tempo não é assunto tratado nos manuais, nem em livros de Teoria
da História. É um dado apenas. Desde quando Braudel introduziu a questão das
temporalidades, que é um recurso classificatório de fenômenos, pouco mais se avançou no
debate.7
Em textos recentes discutem-se questões como formas de contagem de tempo e de
como historiadores submetem o Tempo em seu processo explicativo,8 ou como os
conceitos explicativos relacionados à questão temporal se desenvolveram como calendário,
passado/presente, idades míticas, antigo/moderno, escatologia e decadência.9
Podemos comprovar que, mesmo para historiadores preocupados com a questão
teórica, Tempo é percebido como elemento articulador pelo uso indiferenciado do termo,
como sinônimo de época, era, idade, momento, ideologia e História.10
A utilização camaleônica do termo Tempo indica que, de acordo com os próprios
especialistas, o conceito não é claro. Como não estudamos a questão do Tempo, este segue
5
LANGLOIS, Ch.V. e SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946. p.
74-172 (1a ed.1898).
6
BAUER, Wilhelm. Introducción al estudio de la historia. Barcelona: Bosch, 1970 (1a ed.1921);
7
BRAUDEL, Fernand. A longa duração. IN: História e Ciências Sociais. Lisboa:Presença, 1972. (1a ed. 1958).
8
CORDOLIANI, A. Comput, chronologie, calendries, e BEAUJOUAN, G.Les temps historiques. IN:
SAMARAN, Ch. (org). L’historie et ses mèthodes. Bruges:Gallimard, 1961, p.31-51 e 51-67.
9
LE GOFF, J. (org). Memória – História. Enciclopédia Einaudi, v.1, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1984. p.260, 293, 311, 370, 393 e 425.
10
Ver, entre outros, VILAR, Pierre. O tempo do Quijote; BAGU, S. Tiempo, realidad social y conocimientos;
ARIÉS, Ph. O tempo da história; e ainda, Le Goff, Duby, Foucault, Thompson, Taylor, etc.
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sendo, como em senso comum, o articulador dos atos humanos, fator explicativo em si
mesmo, inquestionável, pois é percebido sensível e empiricamente.
Falta aos especialistas a retomada da questão básica do tempo. Em alguns campos
já se está recolocando a questão como fundamental, para a compreensão do próprio
conhecimento científico.11
Não pode o ensino de História, nos cursos de graduação, ficar limitado a apresentar
a questão do Tempo como restrita a dois grandes debates teórico-ideológicos, como a
questão das periodizações europocêntricas ou etapistas,12 e, a questão da seleção dos
marcos simbólicos sociais, dos vencedores e dos vencidos.13
Ao fazer crítica a seleções ideológicas temporais, como a periodização e o marco
temporal do vencedor, não se deve jogar fora a questão do Tempo.
Mesmo os críticos mais acirrados das periodizações não abandonam o Tempo
tripartite.14 Afinal, para todos nós, é claro que o abandono do Tempo leva a História à
extinção. Na sociedade contemporânea, encharcada de informações e dados aleatórios, a
consciência histórica não pode deixar de ser um elemento articulador.
O descaso com a questão Tempo deixa a sociedade diante de uma perplexidade:
diversos Tempos/diversas Histórias levarão à incompreensão e à certeza de que o Tempo é
o solucionador das questões que o homem colocou em seu caminhar, e ele, o Tempo, é um
deus “ex-machina” que resolverá os problemas que os homens não puderam resolver.
A sacralização do passado, que tanto os historiadores combateram, retornará pela
sacralização do Tempo.
11
Vide POMIAN, K. L’ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984 e Current Sociology, 37 (3), winter 1989 – The
sociology of Time, org. Gilles Pronovost.
12
Vide CHESNEAUX, J. Hacemos tabla rasa del pasado? Madrid: Siglo Veintiuno, 1984 (1a ed 1976) e
FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: IBRASA, 1983.
(1a ed 1981) e FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
13
Vide VEZENTINI, C. & DE DECCA, E. A Revolução do vencedor. Contraponto. Rio de Janeiro: 1976 e DE
DECCA, Edgar. O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981. Ver também BENJAMIN, Walter. Obras
escolhidas. São Paulo:Brasiliense, 1985, 1987, 1989.
14
CHESNEAUX, Jean. L’axe passé/présent/avenir. Espaces Temps. Paris, n. 29, 1985, p.13, onde diz:
“L’histoire c’est, d’une part, un esemble de tecniques: tout le monde ne peut pas’improviser spécialiste de la
connaissance historique ... d’autre part, représente la continuité interne de la dimension du temps, l’articulacion
d’une à une autre”.
FONTE
ANAIS DO VII ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH – MG – Crise de Ideologias – Mariana,
24 a 28 de setembro de 1990. Separata da Revista de História, vol.2 – número 1 – 1991 – Depto. de História da
UFOP, p. 38 a 41.
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Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - fevereiro 1991
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O TEMPO NA HISTÓRIA1
Raquel Glezer
Depto. de História - IEA/USP
Apesar de não ter combinado com o Bruni2por onde começaria, só posso mesmo
começar quando a Filosofia da História se separa da História e, o que chamamos de
História como um processo de conhecimento, uma forma de apreensão da realidade,
tornou-se possível ao ser humano, independente da Providência Divina, independente da
vontade divina, independente de algo transcendente aos homens, à natureza e à própria
História. A laicização do pensamento permitiu a existência da História e ela surge com
duas variáveis obrigatórias: o espaço e o tempo. O tempo da história, quando ela se
estrutura como conhecimento, é um tempo que chamamos tripartite. É o tempo que vem
do cristianismo, laicizado, mas a ligação com o futuro permaneceu forte e marcada. O
tempo da história inclui, obrigatoriamente, o passado, o presente e o futuro. Esse futuro,
quer seja o ideal de progresso, quer o ideal de liberdade, quer o ideal de razão, está
sempre ligado a uma idéia de progresso intelectual, material, de desenvolvimento, da
submissão da natureza à força humana, aos atos humanos, à vontade humana. A
separação da Filosofia da História, que permitiu a criação da História, a formulação do
pensamento histórico, fez com que o tempo, na história, passasse a ser encarado, pelo
menos naquele momento, como um absoluto. Não se discutiu a questão do tempo, porque
o tempo é o elemento organizador do passado da humanidade, permite o arranjo e a
comparação das diversas sociedades, permite a articulação de elementos aparentemente
desconexos. Se para a filosofia existe o problema do mundo material ser um mundo
degradado, para a História , quando se formula, ao se separar da Filosofia da História, na
qual a explicação de tudo o que o ser humano fez, faz ou fará, era dada pela
transcendência divina ou qualquer outro processo de explicação doa atos humanos, o
elemento tempo entrou como elemento de articulação, como uma conexão causal,
primária, extremamente elementar. Os fatos foram agregados por proximidade, mas é o
tempo que vai permitir ao homem explicar os fatos, independente da vontade divina. O
tempo também vai permitir a periodização, a criação dos recortes temporais e é estranho
que à medida que a História se separa da Filosofia da História, mantenha elementos da
própria Filosofia da História. Ela mantém, por exemplo, a idéia de uma história universal,
uma história católica. Essa história universal, na história laica, vai manter a periodização
em idades. É claro que a origem das idades, tal como as conhecemos, numa visão
europocêntrica, bem mediterrânea, é ligada ao Renascimento. É uma periodização que
tem sido bastante criticada pelos historiadores, porque, como se pretende uma
periodização universal, a história dos povos não mediterrâneos só passa por essa história
universal quando esbarra na história dos povos do Mediterrâneo. Entretando, essa
concepção europocêntrica que presidiu a todo o desenvolvimento do conhecimento
histórico, resiste a duras penas às críticas que vêm sendo feitas desde meados da década
de cinquenta, desde o início do processo de descolonização dos povos africanos e
asiáticos. Mesmo os autores europeus, a partir da década de sessenta criticam essa
periodização em idades universais definidas, estruturadas, iguais para todo o mundo.
Entretanto, ela continua como referência, é um recorte, permite que o tempo se divida e é
1
Comunicação transcrita da mesa-redonda O Tempo na Filosofia e na História, auditório de Cinema da Escola
de Comunicação e Artes da USP em 29 de maio de 1989, páginas 14 a 19.
2
A autora refere-se ao Prof.José Carlos Bruni, professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e
também autor nesta coleção.
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Série Estudos Sobre o Tempo - fevereiro 1991
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na divisão do tempo que as explicações históricas se articulam. Ao lado da periodização
da história universal, encontramos a periodização dos modos de produção, hoje em dia
tão criticada, tão atacada quanto a periodização universal. Da crítica à periodização
homogeneizada, algumas vezes fica para as pessoas que acompanham a discussão na
área, a idéia de que o tempo se tornou um elemento desnecessário, deixou de ser
importante, fundamental, para o trabalho de explicação. Entretanto, quer o historiador
trabalhe com explicações causais muito simples, muito ligadas à cronologia, a um tempo
direto, quer ele trabalhe com temporalidades, está sempre amarrado ao tempo. Desde o
final da década de cinquenta, os historiadores trabalham com um tempo decomposto,
dependendo do tipo de História que estejam fazendo, do material disponível, dependendo
da concepção de História. Eles podem trabalhar com um tempo breve, um tempo médio e
um tempo longo. Normalmente, as pessoas acham que os historiadores trabalham com o
tempo numa sequência cronológica amarrada. Na prática, o tempo do historiador é todo
lacunar. A amarração é dada pela narrativa, é dada pela construção. Não existe a
possibilidade do historiador reconstituir em sua explicação, tudo o que aconteceu. Ele
trabalha com resíduos aleatórios do passado, o seu trabalho com esses resíduos depende
do momento em que está vivendo, daquilo que a sociedade lhe permite pensar, lhe
permite usar como instrumental e lhe defina como objetivo do conhecimento. O
historiador usa as lacunas temporais como se elas não existissem. Ele sabe que elas
existem, sabe que são partes integrantes da narrativa e elas são simplesmente ignoradas.
A característica da narrativa histórica normal é que ela é uma narrativa linear; as pessoas
que a lêem nunca encontram as lacunas temporais. A impressão que dá é que tudo
aconteceu numa ordem direta, arrumada, cronológica e, obviamente, foi aquilo mesmo
que aconteceu. A montagem das lacunas, a montagem da narrativa, a seleção do material
é todo o trabalho do historiador. O historiador pode optar com qual tempo vai trabalhar,
com qual material e com qual período de duração. Quando falamos numa narrativa de
tempo breve, falamos numa História que tem sido chamada de história factual, de história
tradicional. Uma História que se prende ao fato histórico, na narrativa considerada como
uma narrativa dramática, cuja característica da produção nos dias de hoje é o que
chamamos de história imediata – a história que está sendo escrita praticamente no
momento em que está acontecendo. Essa história fatual é uma história que vai sendo
montada de acordo com a seleção dos acontecimentos da vida cotidiana. É uma história
montada muito em cima do dramático. Tradicionalmente, tem-se considerado a história
política como a história do tempo breve, a história dos rápidos acontecimentos. Os
historiadores, na primeira metade do século vinte, discutiram muito como destruir essa
história política e colocar no lugar da história dos reis, dos heróis, das guerras, dos
tratados, uma outra história. De certa forma, na decomposição do tempo histórico, eles
fazem isso. E o fazem criando outras formas de História. Uma outra forma de trabalhar o
tempo em História é através do chamado tempo médio, tempo de conjuntura, que é o
tempo da história econômica e social. É uma concepção de tempo que a história extrai da
economia: literalmente pega os ciclos econômicos e transporta a idéia para sua história
quantitativa, criando ciclos diferentes, de acordo com o fenômeno que é estudado.
Algumas vezes, as pessoas leigas pensam que uma história de conjuntura possui
obrigatoriamente uma duração definida. Isso não ocorre. Ela possui a duração que o
historiador define, a partir do assunto que escolhe como tema de pesquisa, do material
que seleciona. Então, temos histórias de conjuntura de dez a cem anos, histórias de
conjuntura de duzentos anos. Dependendo do material que se conseguiu selecionar, que
se conseguiu recuperar, que se conseguiu articular, temos histórias muito diferentes do
que tradicionalmente se concebia como história, que é a história do tempo curto. Temos
histórias de técnicas, de instituições políticas, história das ciências, história de
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Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - fevereiro 1991
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civilizações mesmo, como histórias conjunturais. A terceira fase da decomposição
temporal é a chamada história estrutural, história de tempo longo, história de longa
duração. Essa história de longa duração fez com que historiadores procurassem trabalhar
com fenômenos de persistência extremamente demorada. Trabalhava-se
fundamentalmente com história da cultura, com a geohistória, no momento de seu
lançamento. Tentou-se passar, nos anos seguintes, para a história das mentalidades.
Quando o historiador fala em estrutura, nesse momento, não está pensando nem na
estrutura antropológica, nem na estrutura no sentido marxista; está pensando em
realidades que existem dentro do tempo. Ele não consegue dar outro nome senão
estrutura, mas vai defini-la como realidade que o tempo demora muito para movimentar,
agitar e desgastar. É um tempo que os historiadores definem como um tempo quase
imóvel. As três velocidades do tempo somaram-se às críticas das periodizações e fizeram
com que a produção histórica contemporânea se tornasse completamente fragmentada.
Muitas vezes, não é a especialidade que define a temporalidade. Nós vamos encontrar
simultaneamente histórias do imaginário de tempo breve, médio e longo. Vamos
encontrar histórias da família que são histórias de longa duração, mas também histórias
de família de curta duração. A fragmentação se torna tão complexa que a discussão do
tempo deixa de aparecer na narrativa histórica, fechando-se no campo restrito da Teoria
da História. E a narrativa histórica continua sendo feita praticamente como se o tempo, na
sua utilização e decomposição, não tivesse sido alterado. Dificilmente o historiador
coloca um aviso na sua obra de quer a sua narrativa é uma história de longa duração,
deixando a discussão para outro tipo de obra, fazendo a separação, o corte. Isso acaba
provocando no leitor a idéia de que o tempo, para o historiador, é sempre uma
continuidade, que é sempre um tempo contínuo, com conexão sempre causal direta e que
toda explicação é estruturada em cima da continuidade. Na verdade, qualquer que seja o
tempo que escolha, o historiador trabalha com a descontinuidade, com o lacunar e com
um tempo de difícil apreensão e de difícil captação. Só que na sua narrativa isso não
aparece. A narrativa é sempre uma narrativa estruturada como sequencial. A
fragmentação das concepções de tempo, das periodizações, aparece na escolha dos
objetos. A fragmentação surge como decorrência do tempo do capital, da percepção
multidimensional e consciente do fluxo de pensamentos que caracterizam a sociedade
contemporânea.
FONTE:
INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS
Universidade de São Paulo / FFLCH
Coleção documentos – Série Estudos sobre o tempo – vol.2
O Tempo na Filosofia e na História
Participantes: Maria Helena Oliva Augusto, José Carlos Bruni, Raquel Glezer e Milton
Santos.
Fevereiro/91
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Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1991
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TEMPO & HISTÓRIA: A VARIÁVEL INCONSTANTE1
Raquel Glezer
Depto. de História - IEA/USP
“C’est dans le temps se déroule la vie de l’homme, c’est dans le temps que se succèdent les événements et les modes de
pensée dont le ensemble constitue l’histoire du monde, c’est à travers le temps que l’homme écrit l’histoire”. 2
Este texto é uma parte da reflexão sobre o Tempo na História como elemento de
ruptura e significação, discussão do ano em curso do Grupo de estudos sobre o Tempo do
IEA/USP.
Falar sobre o Tempo e História é ato de retomada de algumas questões básicas de
reflexão sobre o conhecimento histórico, tal como se tem concretizado em termos de
Epistemologia e Teoria da História.
O que significa Tempo para a História? A resposta clássica é que o Tempo é uma
das variáveis obrigatórias, ao lado de Espaço. Truísmo consolidado, repetido
mecanicamente no decorrer dos anos. A ninguém ocorre questionar a origem das variáveis,
percebidas como evidentes em si mesmas, verdade dada e inquestionável, tornando
desnecessária a preocupação com o significado delas e as suas relações com o
conhecimento histórico.
Quando retraçamos a relação da História com o Tempo, temos a oportunidade de
verificar que a questão é complexa, envolvendo facetas multiformes.
Tempo, para a História, além de ser uma variável obrigatória, é, fundamentalmente,
uma questão teórica.
O surgimento da História como campo de conhecimento, apreensão da realidade,
com teorias, métodos e técnicas de trabalho, tornou-se possível com a separação do
pensamento filosófico da Filosofia Cristã de História. Quando a História deixou de ser a
História da Humanidade (História Universal, isto é, Católica), distinguindo-se da Filosofia,
o processo de conhecimento histórico pode definir seu objeto: o estudo da ação dos
homens, a relação dos homens com a natureza, a relação dos homens entre si.
Na separação, a História manteve o conceito de Tempo cristão, que se era, até
então, sacro, escatológico, passou a ser laico, mas manteve a finalidade, qualquer que fosse
o nome atribuído a ela: Salvação pelo Juízo Final foi substituído por Liberdade, Razão,
Progresso, Evolução, Revolução, etc.
A noção de Tempo, apesar de laicizado, continuou sendo o do Tempo cristão:
passado, presente e futuro. Ocorreu apenas uma permuta de significados: Cristão e Queda
da Humanidade transformaram-se em Passado; Oferta da Salvação em Presente e Juízo
Final em Futuro.
Tempo deixou de ser a expressão da Providência Divina e tornou-se expressão da
vontade dos homens, direcionado por eles. Esse Tempo transformou-se em absoluto.
Para a História, Tempo acabou sendo utilizado como fator básico, elemento de
união, fator explicativo, coordenador do passado dos homens, que não estando mais
inseridos na caminhada para a Salvação, estavam imersos no Tempo, no caminhar dos
homens em direção ao Futuro, qualquer que fosse o nome dado a ele.
Tempo permitiu aos historiadores estabelecer relações entre as sociedades com
diferentes formas de contagem, diversos calendários, marcos desconexos. Surgiu a
Cronologia, como ciência auxiliar, que permitiu a formulação de tabelas cronológicas,
1
Texto retirado da Sessão de Grupos de Pesquisa “Grupo de Estudos sobre o Tempo do IEB/USP” realizado
em 3 de setembro de 1990 durante o X Encontro de História – Movimentos Sociais – do núcleo de São Paulo da
Associação Nacional dos Professores Universitários de História – ANPUH, em Franca/SP.
2
CORDOLIANT, A. Comput, chronologie, calandriers, In: SAMARAN, Ch. (org.) L’histoire et ses méthodes.
(Bruges) Gallimard (1961), p. 31-51.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1991
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relacionando calendários diversos, com marcos temporais próprios, e, possibilitando a
articulação entre elas e os fatos aparentemente isolados.
Tempo tornou-se a explicação causal, primária, elementar: fatos eram agregados
por proximidades cronológicas, e isso bastava para a inserção e explicitação mútuas.
Com o progressivo desenvolvimento do conhecimento histórico, a questão temporal
transformou-se em recurso técnico, classificatório. Estudaram-se as periodizações, que
também tinham vindo da História Universal, contendo impérios, idades, eras. A crescente
especialização do conhecimento introduziu marcos, recortes temporais, etapas, para melhor
manejar e explicar o conjunto sempre ampliado dos documentos. Simultaneamente, a cada
escolha de marcos temporais significativos, cada sociedade restruturava seu passado e
construía sua teia de significações.
A percepção de tempo como elemento articulador acabou transformando-o em pano
de fundo, cenário imutável, a disposição do historiador como elemento explicativo. Não
havia o que falar ou discutir sobre o Tempo.
A introjeção do Tempo como fator explicativo em si mesmo pode ser acompanhada
pela leitura atenta dos manuais de introdução aos estudos históricos, que do século passado
a este servem de apresentação do estado consensual do conhecimento histórico aos
iniciantes.
No clássico Langlois & Seignobos3 encontramos o Tempo como categoria
classificatória de documentos e depois dos fatos.
No livro de Bauer4 aparece claramente a separação da utilização do fator Tempo em
dois momentos diferenciados: um, na periodização, e, outro, na Cronologia, como ciência
auxiliar.
A questão do Tempo não é assunto tratado nos manuais, e nem nos livros de Teoria
da História. Tempo aparece como um dado apenas.
Somente na década de 50, Fernand Braudel introduziu o debate sobre a longa
duração, e logo as temporalidades braudelianas foram introjetadas, utilizadas normalmente,
e se transformaram em recurso classificatório de fenômenos de difícil articulação em um
Tempo pensado como uniforme e contínuo.5
Nos textos dos mais recentes manuais discute-se formas de contagem de tempo e
como os historiadores o submetem a seu processo explicativo,6 ou como os conceitos
relacionados a questão temporal se desenvolveram, como calendário; passado/presente:
idades míticas; antigo/moderno; escatologia e decadência.7
Como o tema do Tempo não é objeto de atenção nos livros que, em tese, deveriam
estar centrados na discussão do conhecimento histórico, seu desenvolvimento, sua prática e
seus problemas, não devemos estranhar que a grande parte dos historiadores
contemporâneos utilize o termo Tempo como sinônimo de época, era, idade, momento,
ideologia e História.8
A utilização indiscriminada do termo indica que o conceito é pouco claro para os
historiadores e, em razão disso, é usado como elemento articulador, fator explicativo em si
mesmo.
3
LANGLOIS, Ch. V. & SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946, p.
74 e 172 (1a ed.1898).
4
BAUER, Wilhelm. Introducción al estudio de la historia. Barcelona:Bosch (1970). (1a ed. 1921)
5
BRAUDEL, Fernand. A longa duração. In: História e Ciências Sociais. (Lisboa) Presença, 1972. (1a ed. 1958).
6
CORDOLIANI, A. op.cit., e BEAUJOUN, G. Les temps historiques, op.cit. p.51-67.
7
LE GOFF, Jacques (org.) Memória-história. Enciclopédia Einaudi, v.01 (Lisboa) Imprensa Nacional-Casa da
Moeda (1984), ver. p. 260, 293, 311, 370, 393 e 425.
8
Ver, entre outros, BAGU, Sergio. Tiempo, realidad social y conocimiento; VILAR, P. El tiempo del Quijote;
TOULMIN, S. y GOODFIELD, J. El descubrimiento del tiempo; também LE GOFF, THOMPSON, TAYLOR,
CHESNEAUX, etc.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1991
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Se o conceito é pouco claro aos especialistas, como então deve se apresentar ao
público leitor?
Aos leigos, a questão temporal é completamente elidida. O Tempo é sempre
apresentado como contínuo, linear, eixo articulador onde os fatos (notáveis, estranhos,
exóticos ou do cotidiano) se inserem.
Aos historiadores é desnecessário lembrar que o seu trabalho é estruturado sobre
resíduos aleatórios do passado, aos quais se agregam solicitações contemporâneas,
preocupações sociais, técnicas e recursos existentes.
Ao público leitor tudo isso é escamoteado. E contribui para sua ilusão a forma
como historiadores referem-se ao Tempo, como “O Tempo do Quixote” de Vilar, ou, “O
Tempo das Catedrais”, de Duby.
Os historiadores permutam o uso dos termos História e Tempo, sem o menor aviso
ao leitor, de forma preocupante. Como exemplo de permutação, podemos usar duas obras.
Uma delas é o ensaio de Halevy, Essai sur l’accélération de l’histoire, escrito na década de
40, cujo tema central é o da aceleração temporal dos fatos históricos.9 Outra, de recente
tradução em português, em sua segunda edição, é o conjunto de ensaios de Philippe Ariès,
denominado O tempo da História, que versa sobre sua trajetória pessoal como
historiador.10
Se especialistas renomados utilizam de forma indiferenciada Tempo e História,
como pode o público leitor se orientar?
Não devemos estranhar que na linguagem diária Tempo e História continuem a ser
utilizados como sinônimos, termos equivalentes, e também não devemos reclamar quando
ao Tempo é dada a função primordial de explicação do que ocorreu. Não podemos nos
queixar da a-historicidade da sociedade contemporânea, pois ela se vê imersa no Tempo,
sinônimo de História.
Falta a nós, historiadores, a retomada da questão do Tempo, que não pode ficar
restrita a questões teórico-ideológicas, como o debate sobre as periodizações
europocêntricas ou etapistas,11ou, ao debate sobre a seleção dos marcos temporais
simbólicos sociais, dos vencedores e dos vencidos.12
Enquanto historiadores utilizarem Tempo e História como sinônimos, a variável
Tempo não poderá ter seu conceito esclarecido. E ao público leitor, restará a
incompreensão do termo, e, a certeza de que o Tempo é o grande solucionador dos
problemas que o ser humano se colocou em sua caminhada, e, ao tempo, como um deus
“ex-machina” caberá resolver todos os problemas que os homens não conseguiram
selecionar.
E em uma estranha trajetória, dois séculos e meio depois dos historiadores terem
laicizado seu saber, a sacralização retornará, via sacralização do Tempo como solucionador
dos problemas humanos. E novamente, passado/presente/futuro será sacralizado, e aos
homens restará apenas aguardar seu destino.
FONTE: INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS
Universidade de São Paulo
Coleção Documentos
9
HAVELY, Daniel. Essai sur l’accélération de l’histoireí. Paris: Self, 1948 (2a ed).
ARIÈS, Philippe. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
11
Vide CHESNEAAX, J. Hacemos tabla rasa del pasado? Madrid: Siglo Veintiuno ed, 1984 (1a ed.1976), e
FERRO, Marc, A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: IBRASA (1983),
e idem, A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes (1989).
12
Vide VESENTINI, C.A. e DE DECCA, E. A revolução do vencedor. Contraponto. Rio de Janeiro, 1976; DE
DECCA, E. O silêncio dos vencidos, São Paulo: Brasiliense, 1981 e BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, São
Paulo: Brasiliense, 1985, 1987, 1989.
10
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IEA/USP - ESTUDOS AVANÇADOS
Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1991
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Série Estudos sobre o Tempo – Volume 3 – uma proposta interdisciplinar
Participantes: Nelson Marques, Luiz Menna-Barreto, Maria Dora Mourão e Raquel Glezer
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IEA/USP - ESTUDOS AVANÇADOS
Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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TEMPO E OS HOMENS: DOM, SERVIDOR E SENHOR1
Raquel Glezer
Depto. de História - IEA/USP
A proposta de discutir a relação “Tempo e Poder” como atividade do Grupo de
Estudos sobre o Tempo do IEA/USP em uma sessão de comunicação coordenada no XVI
Simpósio Nacional da ANPUH, para e com historiadores, apresentou-se como muito
atraente. Entretanto, mais do que a bibliografia disponível, as possíveis questões a serem
exploradas e o tempo de exposição previsto forçaram a uma seleção restritiva. Em função
das limitações concretas escolhi, na perspectiva de historiador, apoiada em historiadores,
apenas um dos múltiplos enfoques possíveis, o que discute a transformação das relações
dos homens com o Tempo, de maneira generalizada, valorizando-as como indicadores de
poder.
Para a formulação do texto foram utilizados apenas algumas obras de alguns
historiadores, relacionados nas notas finais, selecionados tanto em função do tema como do
enfoque.
Pretendo explorar sumariamente a relação que os homens desenvolveram com o
Tempo, na perspectiva da civilização ocidental.
Na tradição ocidental cristã, ou na européia ocidental, a percepção do Tempo está
mais relacionada à tradição judaico-cristã do que à helênica.
Para os gregos, o Tempo dos homens, quer entendido como cíclico, de eterno
retorno, quer como sub-lunar, degradado, sujeito à destruição, foi percebido, concebido e
trabalhado por seus historiadores como um tempo não linear, presentificado, limitado em
alcance pela vida e memória humanas.2
1. O TEMPO COMO DOM
Na tradição judaico-cristã, Tempo é elemento fundamental, articulador da história,
da vida dos homens – eixo linear progressivo e explicativo: o Tempo possui um fim em si
mesmo, “telos”, que embora pudesse ser confundido com a Eternidade, imaginada como
estática, não o é.3
Para o Cristianismo, em seu desenvolvimento, Tempo, elemento explicativo acabou
sendo um processo de raciocínio e formulação de razões.
A concepção de Tempo na Bíblia e no cristianismo primitivo era a de tempo
teológico, iniciado por Deus e dominado por ele, pois Tempo era condição necessária e
natural de todos os atos divinos. A Eternidade surgia como a dilatação do tempo até o
Infinito, permitindo a percepção de que entre ambos havia diferença quantitativa.
Os textos do Novo Testamento introduziram uma questão diferenciada, nova: o
Tempo como dimensão histórica, pois passou a haver um centro, Cristo, e uma finalidade,
a Salvação: “desde a Criação até Cristo, toda a história do passado, tal como é relatada
no Antigo Testamento, passou a fazer parte da história da Salvação”.
Surgiu então uma ambiguidade, pois os pensadores cristãos, diversamente dos
judeus, que concebiam o Futuro de forma escatológica e coletiva, a Encarnação passou a
1
Texto apresentado na sessão de Comunicação Coordenada Tempo e Poder, realizada no XVI Simpósio
Nacional Memória, História e Historiografia, da Associação Nacional dos Professores Universitários de História
– ANPUH, no campus da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, em 23 de julho de 1991.
2
Vide O Tempo na Filosofia e na História, vvaa. São Paulo: IEA/USP, fev.1991 (Coleção Documentos, Série
Estudos sobre o Tempo, 2).
3
Vide LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente,
Lisboa: Estampa, 1980.
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Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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dar sentido ao Tempo, pois com a certeza da possibilidade de Salvação, trazida pelo Cristo,
a realização dela foi transferida para a história coletiva ou para a individual.
Santo Agostinho, em suas reflexões, explicou a ambivalência pelo fato de que no
âmbito da Eternidade, os homens, subordinados à Providência, dominam seu próprio e o da
Humanidade simultaneamente.
Nos séculos seguintes, do VI ao XI, a sociedade medieval praticamente congelou a
reflexão histórica, retirando o Tempo da História ao assimilá-la à História da Igreja,
renegando a História, preferindo como gêneros a epopéia e a canção de gesta, provocando
o esvaimento da historicidade, resultante da atuação dos pensadores políticos ligados ao
agostinianismo.
A questão do Tempo só foi retomada posteriormente, quando o tema do “final dos
tempos”, que ressurgira nas heresias escatológicas e no milenarismo dos grupos oprimidos
e esfomeados, aos quais o Apocalipse surgira como esperança e alimento, se esgotara em si
mesmo.
Sem o contrapeso do milenarismo, no século XII, o Tempo apareceu instalado na
Eternidade, isto é, como Tempo linear, com sentido, direção, caminhando para Deus, e as
transformações econômicas propiciaram a retomada da reflexão sobre a História,
principalmente à partir do desaparecimento do Império Romano, da barbarização do
Ocidente, da restauração carolíngea e da restauração otoniana. O cristianismo, inserido na
evolução histórica, dominada esta pela Providência, e ordenada pela Salvação, precisava
esclarecer as causas segundas, estruturais ou contingentes. Havia a necessidade de
ultrapassar um duplo obstáculo: a visão judaica da Eternidade estática e o simbolismo
medieval, que não permitiam a investigação e a sistematização da realidade concreta do
tempo da História, para se obter uma concepção de tempo maleável.
Hugues de Saint-Victor, segundo Le Goff na obra citada, recuperou a história:
“historia est rerum gestarum narratio”, uma narração seriada, com sucessão organizada,
continuidade, articulação, elos de um sentido – iniciativas de Deus, fatos de Salvação. Esta
História retomou uma das vias que já fora outrora trilhada: a teoria das idades, dos
clássicos gregos, que então passou a ser semelhante aos Dias da Criação da Bíblia. História
que desde então passou a usar a noção de transferência, “translações”, a história das
civilizações percebida como uma história de transferências, tanto no campo intelectual – o
conhecimento se transferiu de Atenas para Roma, de Roma para Paris, como no campo
político, onde o Império fizera também uma transferência. A ligação entre sentido do
tempo e sentido do espaço aparece como uma novidade revolucionária, a qual se soma a
concepção organicista do Estado de João de Salisbury.
Mas, até então, Tempo era percebido como Dom, isto é, doação de Deus para
usufruto dos homens, da mesma forma que ele doara o usufruto de outros elementos da
natureza, como o sol e a água. Claramente, o Tempo como Dom não poderia ser submetido
ao controle dos homens, não poderia ser utilizado de forma a permitir ganho material aos
homens, pois tal fato significaria a exploração de algo que não pertencia aos homens.
De maneira quase imperceptível, o desenvolvimento econômico dos séculos XI e
XII, o processo de aceleração econômica e as transformações das condições mentais,
introduziram uma nova percepção de Tempo.
2. O TEMPO COMO SERVIDOR
Nos textos eruditos se elaborava lentamente uma nova percepção do Tempo, mas na
vida concreta também uma nova realidade estava sendo criada e concebida.
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Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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O mercador do Ocidente europeu, que vagarosamente delineara suas atividades,
numa organização política-militar-religiosa na qual não encontrava muito espaço de
atuação, foi um elemento básico para a ruptura da concepção de Tempo como Dom.
O mercador, que atuava no espaço do Mediterrâneo Ocidental e no espaço
hanseático, estava submetido ao tempo natural, dia e noite; metereológico, ciclo das
estações, acidentes naturais como tempestades, desastres marítimos e terrestres. Diante de
tais condições nada podia ele fazer, a não ser se submeter humildemente às contingências
naturais.
Entretanto, no processo de alargamento do mundo conhecido, o problema do tempo
de viagem não ficou restrito às preocupações dos mercadores. O Estado, principalmente os
que realizaram a proeza do alargamento do mundo, ficou com problema semelhante.
Segundo Vitorino Magalhães Godinho: “Em 1512 afonso de Albuquerque escreve a
D.Manuel: “olhe bem Vossa Alteza o que assina pera a Índia, que é muito longe”..., e
D.João de Castro, em 1546, parece fazer-lhe eco: ‘primeiro que hajamos respostas de
nossas cartas e Vossa Alteza queira socorrer as nossas necessidades, dá o sol muitas
voltas, e que acaba de fazer duas inteiras revoluções.’”4
Questões novas para mercadores e para Estados: distâncias a serem calculadas em
tempo, outra forma de organização comercial, questões de armazenagem de mercadorias,
questões de empate de capital.
Distâncias, demoras, dificuldades do meio físico, dificuldade de comunicações:
“Para a Índia as naus do reino tem de desaferrar de Lisboa em Março ou primeiras
semanas de Abril, para lá chegarem em Setembro; de Cochim e Goa levantam ancora em
dezembro, para ancorarem no Tejo na segunda quinzena de Junho até a primeira de
Setembro ... As ilhas de Cabo Verde estão a umas duas semanas de Lisboa, São Jorge da
Mina a uns quarenta e cinco dias de navegação. Entre a capital portuguesa e La Rochelle
gastam-se sete a oito dias, até o porto de Antuérpia ou a Amsterdão uns doze ou quinze ...
os navios que vem carregar sal a Setubal contem com um mês de viagem: entre o Tejo e
Livorno há que contar com umas três semanas ...”.
Da mesma forma que o espaço se tornava objeto de contagem e medida, também o
tempo, porque tinha que ser levado em consideração na viagem, na organização das redes
comerciais, nos preços dos produtos e mesmo na duração do trabalho artesanal.
A necessidade de regulamentar o tempo foi se impondo, pois estava recomeçando a
cunhagem de moedas de ouro; a diversificação das moedas reais; o bimetalimo começava a
se impor e as flutuações de valor começavam a se fazer sentir: o câmbio se organizava, a
Bolsa estava em germinação.
A questão da justa medida do tempo aparecia também de um outro ângulo, além do
comercial, que exigia contabilidade, relações de viagem, práticas comerciais consensuais,
letras de câmbio, naquele das corporações de ofício, com seus estatutos.
O Tempo que surgia era um tempo novo, mensurável, orientado, previsível,
sobreposto ao Tempo eternamente recomeçado e imprevisível do meio natural.
Apareceram os primeiros relógios comunais que marcavam as horas das transações
comerciais e as horas de trabalho dos artesãos, operários têxteis – os mercadores da
comuna instalavam o instrumento, que assinalava o seu domínio sobre o Tempo do
trabalho.
Ocorreu a transformação do Tempo, que passou a ser racionalizado, laicizado,
mensurável, mecanizado, com valor. Ao Tempo da Igreja, marcado por sinos, por ofícios
religiosos, pelos quadrantes solares ou pelas clepsidras – tempo concreto, se opôs o Tempo
dos mercadores: tempo do relógio, que marcava as tarefas laicas e profanas, o tempo
4
Vide GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa:Arcádia, 1963.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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urbano do trabalho e das transações, medido como o espaço, pela duração de um trajeto,
pela maleabilidade de outros caminhos.
Le Goff exemplificou a profunda alteração que a nova relação Tempo e Espaço
trouxe pela introdução da perspectiva.
As transformações trazidas pela introdução da vida urbana, pela formação de uma
sociedade urbana, provocaram a divisão do Tempo em três esferas, o que acabou
contribuindo para transformar a relação dos homem com ele.
2.1. O TEMPO DO TRABALHO
No Ocidente europeu medieval o dia de trabalho era definido pelas condições
naturais, o levantar e pôr do sol: uma unidade única para medir o dia de trabalho no campo
e o trabalho urbano, cujas divisões eram as horas religiosas, reminiscências da Antiguidade
romana.
A atividade humana, dizendo melhor, o trabalho era demarcado pela luminosidade:
o tempo de trabalho era o de uma economia determinada pelos ritmos agrários, sem pressa,
sem preocupação com exatidão, sem inquietudes sobre produtividade. Segundo Le Goff,
tal descrição corresponde a de uma sociedade sóbria e pudica, sem grandes apetites, pouco
exigente, pouco capaz de esforços quantitativos.
Podemos considerar, da mesma forma que o autor citado, o marco da transformação
a introdução do trabalho noturno: heresia urbana, interditada e punida com pesadas multas.
Mas, a divisão interna do dia de trabalho lentamente estava sendo alterada, em
evolução pouco notada: a hora “none” que corresponderia às 14h foi recuada para as 12h,
introduzindo a pausa para uma refeição na oficina, iniciando um processo de subdivisão do
dia de trabalho.
No final do século XIII o conflito pelo horário de trabalho já estava firmemente
estabelecido, com o avanço do trabalho noturno, iniciando-se o questionamento da noção
de “dia laboral”.
Na crise do século XIV a definição de “dia laboral” tornou-se mais eficiente:
inicialmente os operários solicitaram sua ampliação, depois solicitaram aumento salarial,
com o argumento que haviam aumentado os pesos e as dimensões dos tecidos.
Le Goff considera tais argumentações como expediente dos trabalhadores têxteis
para aliviar a crise, com a deterioração dos salários reais e a alta dos preços.
A autorização do trabalho noturno foi dada por Felipe, o Belo.
Por sua vez, os patrões procuraram regulamentar rigorosamente o dia de trabalho,
instituindo os “sinos de trabalho”, torres com sinos especiais que regulavam o trabalho nas
cidades têxteis, delimitando o tempo dos tecelões, que era também o tempo dos novos
mestres em uma conjuntura de crise e ascenção social se tornara possível.
A introdução dos “sinos de trabalho” não ocorreu de forma pacífica. Em diversas
localidades, os trabalhadores se revoltaram contra eles. Entre o século XIV e início do
século XV a questão entre patrões e operários esteve centrada na duração do dia de
trabalho, incorrendo em pesadas multas aqueles que desobedecessem aos horários. A
redução do dia de trabalho foi motivo, da mesma forma que a criação da diferença entre
dia e dia laboral; a inserção do tempo de descanso no decorrer do dia laboral, a admissão
do tempo para o trabalho pessoal.
Devemos considerar que nas comunas o tempo marcado pelo “sino do trabalho”,
pelo “sino do mercado”, que assinalava o tempo urbano, diverso do tempo religioso, servia
simultaneamente para as atividades de defesa, administração, convocação de reunião de
conselho e juramentos.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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A vida urbana começava a ser lentamente aprisionada pelo sistema cronológico –
tempo do quotidiano, tempo de horas certas, tempo do trabalho medido. As igrejas
perderam o monopólio do controle do tempo, sinal importante do início do processo de
laicização.
Le Goff destaca com atenção especial o fato de que os “sinos de trabalho” na
realidade não traziam consigo qualquer inovação tecnológica e, significavam uma nova
relação com o Tempo, pois a separação entre tempo natural, tempo profissional e tempo
sobrenatural acabou desenvolvendo novas formas de pensamento, especialmente a que
possibilitou a separação da profissão da Salvação.
2.2. O TEMPO DO ESTADO E DA IGREJA
Indicador preciso do grau profundo das transformações que estavam ocorrendo no
Ocidente medieval europeu, o novo Tempo, originário das necessidades burguesas,
rapidamente passou a ser expressão do poder real: os sinos de Paris, desde 1370, com
Carlos V, deveriam ser regulados pelo relógio real.
O Estado, ainda que na figura de um soberano, passou a ser o indicador do tempo
racionalizado, transformando o novo tempo em Tempo do Estado.
No interior da Igreja surgiu também uma outra conceituação de Tempo. No debate
entre essencialistas e nominalistas a questão do Tempo como o campo das decisões
imprevisíveis de Deus onipotente foi sendo formulada.
No discurso dos místicos, Tempo assumiu também uma nova visão, uma nova
dimensão temporal: na primeira metade do século XIV, a perda de tempo transformou-se
em pecado, um escândalo espiritual.
Na busca da unificação das consciências, rompida pelas novas formulações do
Tempo, a Igreja recorreu a evolução da confissão, introduzindo manuais de confissão: a
questão da coerência de comportamento tornou-se importante, e nela, os que rompiam com
a relação natural do tempo, podiam, por obras beneficentes, recuperar a relação com a
religião, ou melhor ainda, no final da vida, doar seus bens e retirar-se para um mosteiro.
Houve também o desenvolvimento da legislação canônica, e o surgimento de uma reflexão
moral sobre a usura.
No Renascimento reapareceu o sentido helênico de Tempo, como tempo cíclico,
tempo do eterno retorno. O reencontro com a concepção aristotélica de tempo como
movimento, apoiado por São Tomás de Aquino criou a base de articulação do Tempo da
Igreja com o Tempo dos homens.
2.3. O TEMPO DOS HOMENS
O homem do Renascimento, o humanista, por definição era o senhor de seu tempo.
Em oposição à medievalidade, Tempo, dom de Deus, transformou-se em Tempo,
propriedade dos homens.
Le Goff cita Alberti sobre as três coisas que pertencem ao homem: fortuna, corpo e
tempo.
A hora tornou-se medida de vida, o homem passou a ter controle sobre ela: nunca
perder uma hora transformou-se em virtude, tanto para a visão católica da disciplina e
organização, como para o humanista, cuja virtude era a temperança.
A nova iconografia que surgiu atribuiu ao relógio a medida de todas as coisas.
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A transformação foi radical: o homem do Renascimento tornou-se o senhor de seu
tempo, porque passou caber a ele definir políticas, atividades econômicas e posições
intelectuais. Por sua Fortuna e por sua Virtú, podia ele decidir os atos e fatos da sua vida.
O Tempo, dom de Deus, transformou-se em Tempo, servidor dos homens, pois os
mercadores passaram a usá-lo, na sociedade urbana que se instalava na Europa ocidental,
tanto como medida do tempo de trabalho do operário, definindo e demarcando as
atividades do trabalho, rompendo com o esquema do dia natural, como um elemento de
cálculo de lucro, permitindo o ganho em cima do tempo.
No momento que aos homens passou a ser dado o controle do Tempo,
transformando-o em serviçal, permitindo o lucro sobre seu transcurso, abriu-se também,
para um desenvolvimento lento e paulatino, a possibilidade que, se servidor dos homens, o
Tempo se transformasse em Senhor.
De início, apenas os trabalhadores urbanos estavam submetidos ao domínio do
tempo do trabalho, mas com o desenvolvimento tecnológico, todos os trabalhadores,
manuais ou não, se transformaram em serviçais do tempo.
3. O TEMPO COMO SENHOR DOS HOMENS
E.P.Thompson chamou a atenção para a necessidade de sincronização no trabalho
da sociedade industrial, a exigência de formação de novos hábitos de trabalho, com
disciplina e divisão, levando a interiorização do tempo controlado, em estudo muito
conhecido.5
Aos trabalhadores, a submissão ao Tempo foi sendo cada vez mais exigida, de
forma que eles se tornaram serviçais do tempo da máquina, da mecanização.
Hoje, no momento contemporâneo, denominado por alguns autores de
“modernidade”, Tempo adquire uma nova percepção, uma nova forma de atuação, que
esvazia a duração temporal, que trabalha só com o fragmento, o descontínuo, o
instantâneo, o efêmero, o imediato – tempo hegemônico que se impõe ao indivíduo, o
domina em sua lógica despótica – tempo comedor do tempo.6
3.1. O TEMPO DO TRABALHO
No desenvolvimento do capitalismo, desde o seu início, havia a preocupação de
ganhar tempo, pois o ganho sobre o tempo aumentava os lucros. No século XIX o tempo
do trabalho dos homens foi submetido totalmente ao tempo das atividades das máquinas. O
investimento capitalista, buscando sempre o máximo de rentabilidade, explora homens e
máquinas. Taylor, no início deste século, organizou o tempo industrial, em blocos
definidos
pela máxima produtividade. Em nossos dias, progresso tecnológico significa caça ao tempo
morto e obsessão pela rapidez.
Diferentemente do capitalismo clássico, que se expandiu pelo espaço, no de hoje, o
Tempo é um dos campos principais de sua expansão: o crescimento capitalista se deslocou
para a dimensão do Tempo, explorando mais rigorosamente cadeias temporais, definindo
as durações, reduzindo-o a partículas cada vez menores, assegurando no interior dele a
5
THOMPSON, E.T. Tiempo, disciplina y capitalismo. In: Tradición, revulta y consciencia de clase. Estudios
sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelon: Crítica, 1979.
6
Vide CHESNEAUX, Jean. De la modernité. Paria: La Découverte-Maspero, 1983.
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Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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reconversão de uma expansão capitalista, independente do espaço, e se firmando no
presente e imediato.
Cada vez mais, o controle de tarifas é feito por cálculo de tempo de utilização e não
por distância.
O Tempo se transformou em hegemônico e despótico. Por sua vez, o uso de
equipamentos cada vez mais rápidos, passou a exigir maior tempo de preparação, de
planejamento prévio (como previsão financeira, previsão de mercado, planos de
distribuição), todos elementos que no concreto alongam o tempo da produção.
Diante de tanta velocidade, tanta pressão, os seres humanos resistem, pois a
precisão do tempo das máquinas agride o tempo dos homens, o tempo vivido.
Na realidade diária, o ganho de tempo realizado por um processo tecnológico acaba
sendo perdido nas restrições humanas, necessárias para o seu uso. Por exemplo, o tempo de
vôo diminuiu, mas o tempo de viagem aumentou: os aeroportos foram afastados da área
urbana; o tempo de espera nos saguões dos aeroportos aumentou pelo sistema de controle e
segurança; o tempo de desembarque diminuiu, mas o tempo para atingir o outro local
aumentou, pelo mesmo processo descrito acima.
3.2.O TEMPO DOS HOMENS
Hoje, todos nós somos serviçais e prisioneiros do Tempo: pelo modelo econômico,
pela lógica do capitalismo, pelas exigências da ordem social, as cadeias do tempo
invadiram a vida privada dos indivíduos.
Mesmo o tempo fora do trabalho, o tempo pessoal, foi submetido ao mesmo
tratamento: a sociedade de consumo invadiu, programou, sincronizou tudo: zonas
turísticas, residências secundárias, artigos culturais.
O homem de hoje possui “fome de tempo”, não pode perdê-lo, dispendê-lo.
“Ganhar tempo” literalmente significa ganhar algo sobre alguém: não pode haver ganhos
de tempo sem que ocorra perdas de tempo – o tempo dos conflitos de interesses.
Na sociedade contemporânea os seres humanos introjetaram um relógio interior,
que serve de instrumento de servidão temporal. “Gerir o tempo”, ter “tempo livre”
transformou-se em anseio e pesadelo, tanto para os aposentados, como para os
desempregados; também para uma classe ociosa em busca de lazer, e para as classes mais
favorecidas.
O ser humano está preso ao Tempo: há uma forte pressão social para a programação
rígida: planos, programas, estratégias – atos asseguradores, mas também invasores.
Tudo é dominado pelo Tempo efêmero e instantâneo, até o próprio tempo pessoal –
a própria vida afetiva mascara mal a relação com o modelo econômico dominante.
A sociedade superprogramada, supersincronizada, foge à realidade profunda do
tempo vivido pelos homens, escamoteando o deslocamento unívoco no eixo da vida do
indivíduo em direção à morte. Não há o reconhecimento dos tempos diferenciados, tais
como o tempo da doença, o da juventude, o da “terceira idade”. Não há
complementaridade entre os diversos tempos, nem há relação de continuidade.
Entretanto, devemos destacar que o tempo individual é profundamente diverso do
tempo do equipamento mecânico, criando novos problemas médicos, decorrentes de: uso
incorreto da visão; ritmo de trabalho em vinte e quatro horas, atravessando dia e noite;
inversão do uso do organismo humano através das estações, que até recentemente
repousava no inverno e aproveitava o verão para o trabalho, ritmo invertido em nossos
dias, com o verão utilizado como tempo de férias, e inverno como máximo de atividade.
Desta maneira, o Tempo transformou-se em senhor dos homens.
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Coleção DOCUMENTOS
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3.3.O TEMPO COMO SENHOR
O tempo na modernidade é o tempo seqüencial, encadeado por gestos, operações,
controles, para que renda plenamente, formado, composto por séries rígidas, organizadas
em ordem imutável.
Programar o tempo é colocá-lo em ordem unívoca, em um eixo temporal linear,
dominante, inelutável, irreversível.
A sociedade sincrônica integral, como resultado da programação do tempo, isto é,
da quantificação dele, funcionando em tempo real, que é o tempo congelado do
instantâneo, sem perspectiva de duração é a nossa, dominante e hegemônica.
Cada vez mais a atividade humana vai sendo regulada pela complexidade crescente
de interconexões temporais, ampliando a sincronização que pesa sobre os trabalhadores: a
atividade regulada por números crescentes de dados temporais torna-se mais pesada,
mesmo que a duração temporal dela seja menor.
a sincronização abrange cidades, como zonas espaço-temporais monoprogramadas,
rompendo velhos conceitos e hábitos, forçando todas as pessoas a uma programação
rigorosa do tempo, tanto para o transporte diário para o trabalho, como para o desfrute do
lazer.
Este Tempo, cada vez mais compartimentado, dividido, possui valor financeiro, de
uso e consumo. Como exemplo da sociedade do instantâneo e do efêmero, temos os
relógios digitais, que mostram apenas o momento e não mais a duração, onipresentes no
espaço urbano central; a refeição em “fast food” e não mais a alimentação como ato de
civilização. Mas no mundo agrário, sempre pensado como incólume ao tempo controlador,
as colheitas agrícolas devem ocorrer mais rapidamente, para aumentar o valor do terreno, a
lucratividade da atividade, pagar os investimentos.
Na sociedade contemporânea, sincronizada globalmente, em que o Tempo e não
mais o espaço é a fronteira da expansão última do capitalismo, o “tempo real”, o tempo das
máquinas eletrônicas, domina a vida humana, regula suas atividades, determina seu próprio
valor.
Hoje, não há nação que esteja imune ao “tempo real”, pois tanto os Estados como o
desenvolvimento científico o tornaram homogêneo e dominante.
Entretanto, os seres humanos resistem, criam conflitos: as temporalidades são
justapostas mas não integradas. O tempo do repouso do corpo e da mente não está
integrado ao tempo do trabalho remunerado; da mesma forma, o tempo livre das atividades
materiais indispensáveis à continuidade da vida é o mesmo tempo do tempo lúdico – o
verdadeiro tempo livre.
Esta sociedade de “tempo real” desloca a relação com o passado, decompondo-o,
esmaga o presente no imediato e instantâneo, destrói o futuro como pluralidade de
possibilidades.
A duração torna-se um pesadelo, quase um valor negativo, se confunde com a perda
de tempo – é o pleno domínio do “presentismo”, o presente em si mesmo, reproduzindo a
si mesmo, uma sociedade fechada no intemporal, cortada do passado, cortada do futuro,
com o contador sempre no zero.
Ironicamente, esta sociedade, dominada pelo “tempo real”, transformou o ser
humano em seu servidor.
Se o sinal de partida para o desenvolvimento do capitalismo foi a transformação do
tempo que era Dom em Tempo como Servidor, nos dias atuais, Tempo é Senhor, pois os
seres humanos estão escravizados ao Tempo, são seus servidores, e, quanto mais ocupado
o tempo, tanto mais importante social e economicamente o homem é.
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IEA/USP - ESTUDOS AVANÇADOS
Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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Se o homem do Renascimento demonstrava seu poder regulando o uso do Tempo
entre trabalho e lazer, o homem contemporâneo serve ao seu senhor fielmente, seguindo
um ritmo de vida que tenta acompanhar o “tempo real” das máquinas, em suas decisões de
negócios.
Nesse ritmo acelerado do tempo, a História foi sendo esmagada: fisicamente, pela
transposição do conhecimento em dados quantificáveis e acumuláveis – os únicos que
interessam, e, concretamente, pelo crescimento exponencial infinito em tempo finito, que
leva ao esgotamento do modelo de desenvolvimento. Ela se transformou em objeto de uso
rentável: moda das antigüidades; moda de objetos autênticos; moda de simulacros baratos,
apenas modas.
A modernidade recusa o passado, ela se vê como intemporal, um fim em si mesmo.
Entretanto, os seres humanos resistem duramente à escravização total pelo Tempo:
tanto em seus locais de trabalho, como em sua vida particular, apelando ao passado com o
objetivo de procurar um outro futuro.
Há esperanças de um outro futuro formulado com uma nova divisão de trabalho:
trabalhos em tempo parcial; flexibilidade de horários; trabalhos alternados; trabalhos nas
residências e retirada progressiva do mercado de trabalho, para que o homem se torne
novamente Senhor do Tempo.
FONTE:
Instituto de Estudos Avançados
USP/S.Paulo
Série Estudos sobre o tempo – número 6
Tempo e Poder
maio de 1992
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Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores do ensino de História
setembro 1997
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TEMPO HISTÓRICO: UM BALANÇO
Raquel Glezer
Para nós, historiadores do final do século XX, a variável tempo deixou de ser um
simples elemento explicativo de casualidade, na qual um fato era explicado por outro, em
seqüência temporal, cronológica, linear, teleologicamente direcionado, e se transformou,
sob a influência das mutações que os estudos históricos sofreram, na segunda metade
deste século, em sua prática e teoria, em um elemento complexo, reconhecidamente
etnocêntrico, não linear, não teleológico, fragmentado, e podendo ocorrer em velocidades
diferentes, as temporalidades, segundo os fenômenos estudados.
Retratar a separação da História do mito, momento em que a dinâmica superou a
estática, em que os homens assumiram o lugar dos deuses como construtores de sua
história, em que a circularidade do tempo, estagnado, fixo, eterno, foi substituída pela
linearidade não é mais necessário.
Da mesma forma, a nosso ver, é redundante, já que não explica como nós
trabalhamos e concebemos o tempo histórico: retomar a temporalidade sublunar e a
presentificação dos fatos dos gregos; a Retórica romana como “mestra da vida”; a
introdução do eixo passado/presente/futuro da tradição judaico-cristã; a Filosofia Cristã
de História, tendo a História Sagrada como eixo condutor dos homens e a teleologia
escatológica do Juízo Final no horizonte; o processo de desacralização da História; a
substituição da teleologia sagrada pela profana (Razão, Progresso, Revolução); a História
como ciência, preocupada com o devir, pensando o tempo linear de casualidade primária,
disputando espaço com a História cíclica, de tempo repetitivo; a substituição do tempo da
natureza pelo tempo social; do tempo do trabalho natural pelo tempo do trabalho
industrial ; o domínio do tempo pelo homem e o domínio do homem pelo tempo.1
No processo de construção da disciplina História e da ciência no século XIX
consolidou-se a laicização, processo que vinha desde o século XVIII, houve o abandono
da Filosofia Cristã de História como processo explicativo da história da humanidade, os
homens foram vistos como direcionados pelo seu devir, mas o tempo continuou sendo a
variável controladora, elemento explicativo da casualidade.
Para os historiadores da História metódica, denominados “positivistas”,
“cientificistas”, “empíricos”, tempo era uma questão de calendário, tabelas cronológicas,
contagens comparativas. Boas fontes, tratadas de forma adequada, dariam boas datas. Ele
1
Ver:
AUERBACH, Eric. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva,
1971;
CARDOSO, Ciro Flammarion. O tempo das ciências naturais e o tempo da História. IN: Ensaios racionalistas.
Filosofia, Ciências Naturais e História. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p.25-40;
CHAUNU, Pierre. De l’histoire à la prospective. Paris: Robert Lafont, 1975;
DONATO, Ernani. História do calendário. São Paulo: Melhoramentos/INL/MEC/EDUSP, 1976.
GLEZER, Raquel. O tempo e os homens: dom, servidor e senhor. IN: CONTIER, Arnaldo D. História em
debate. São Paulo: INFOUR/CNPq, 1992;
_______. A noção do tempo e o ensino da História. LPH – Revista de História, Mariana:MG,
Dep.História/UFOP, 2 (1): 38-41, 1991;
_______. O tempo na História. IN: O tempo na Filosofia e na História. São Paulo: IEA/USP, fev. 1991, p.1419;
_______. Tempo & História: a variável inconstante. IN: Uma proposta interdisciplinar. São Paulo: IEA/USP,
maio 1991, p.10-13;
ROSSI, Paolo. Os sinais do tempo. História da terra e história das nações de Hooke a Vico. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992;
TOULMIN, S. y GOODFIELD, J. El descubrimiento del tiempo. Buenos Aires: Paid[os, 1968.
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1
Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores do ensino de História
setembro 1997
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era percebido e tratado como linear, progressivo e homogêneo. Não era um problema,
mas ao contrário, a explicação dos fatos. O encadeamento das datas e dos fatos era a
História e se explicava por si mesmo.
Todos nós conhecemos os livros que estruturaram sua organização em causas
próximas e remotas. Estas, de tão remotas, lembravam a preocupação com as origens:
como tudo começou? Estávamos a um passo de Adão e Eva, a um passo do Gênesis.
Há numerosas, famosas e repetidas anedotas sobre historiadores tão preocupados
em conhecer como tudo havia começado que passaram a vida nos arquivos, pesquisando
e juntando documentos, sem nunca escrever uma linha sobre o assunto, pois não
conseguiram atingir as causas iniciais.
Desde o final do século XIX e início deste, várias correntes interpretativas de
História questionaram a causalidade temporal primária, valorizando a relatividade da
observação, da percepção, do espírito do tempo, da construção do objeto e portanto da
cronologia, desligando a explicação do fato histórico do tempo seqüencial cronológico.
Na segunda metade deste século, os historiadores, que já haviam se definido como
cientistas sociais, separaram-se totalmente da Filosofia na questão do tempo, trabalhando
com tempo social, compreendido como o tempo construído, o tempo histórico relativo. O
problema tempo/eternidade foi abandonado. Filósofos ainda hoje discutem como os
historiadores devem/deveriam discutir e atuar na questão do tempo. Mas na prática a
discussão não nos atinge mais.
Nós abandonamos a concepção de tempo linear contínuo e homogêneo, com
calendários, cronologias e causalidade primária.
Se os problemas políticos das décadas de vinte e trinta levaram vários
historiadores a questionar o devir, a noção de progresso contínuo e homogêneo, a
Segunda Guerra Mundial com a destruição sistemática de bens e valores dos inimigos (de
ocasião), o subsequente processo da Guerra Fria e a descolonização da África e Ásia
encaminharam o processo de autocrítica da percepção temporal, do etnocentrismo
europeu e da homogeneização temporal teleológica.
A desmontagem dos impérios coloniais levou ao questionamento da periodização
clássica européia, que havia sido imposta como parte do processo colonizador e
civilizatório. As idades, eras e impérios correspondiam à herança cultural da civilização
ocidental cristã mediterrânica, significativas para seus formuladores, mas extemporâneas
para outras civilizações e outras culturas.
As experiências políticas das nações que na segunda metade deste século se
libertaram do domínio imperialista (quer europeu quer asiático) encaminharam outras
questões sobre o devir da História, até então pensado como uniforme e direcionado.
A crítica ao etnocentrismo, ao caminho unívoco da humanidade se de um lado
destruiu certezas e criou inseguranças, por outros possibilitou novos olhares, novas
perspectivas, novas interpretações.
Para os historiadores, os estruturalismos trouxeram angústias e questionamentos.
O tempo deixou de ser percebido como uniforme, unívoco e homogêneo. A relatividade
do tempo como fenômeno científico, a fragmentação do tempo que a literatura absorvera
nas décadas iniciais do século, que outras ciências já haviam introjetado, atingiu a
História.
Braudel formulou as temporalidades, velocidades diversas de tempo conforme os
fenômenos estudados: tempo curto/fatual, tempo médio/conjuntural, tempo
longo/estrutural. Com ele a História reabsorvia a noção de ciclos, vinda da Economia, de
duração variável, de percepção complexa.2
2
Ver:
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2
Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores do ensino de História
setembro 1997
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Podemos dizer que a História de tempo linear, uniforme e progressivo, no
momento em que sua marca teleológica começava a ser questionada, abarca a História
cíclica, repetitiva, que por sua vez abandonava de apogeu e decadência, passando a
marcar ciclos de atividade, que se integraram e fundiram na História com
temporalidades.3
Hoje a História cíclica deu lugar à história dos ciclos, das repetições, das
permanências. História que corre em velocidades diferentes, em níveis diversos de
fenômenos, a escolha do historiador: rápida no dia-a-dia da história fatual; média e
escalonada nas conjunturas de 5, 10, 15, 20, 25, 50 ou 100 anos, e, lenta, quase imóvel
nas permanências, nas estruturas multi seculares ou milenares.
História com temporalidades com novos objetos, novas fontes, novas questões,
novos recortes, novos enfoques: “Nouvelle Histoire” na França; “New Social History”
nos Estados Unidos; “Micro-História” na Itália, “Novo Historicismo” na Europa e
Estados Unidos.
Não que a História cíclica “tout court” tenha desaparecido, deixando alguns
seguidores saudosos de Spengler e Toynbee. Há em realização uma História Universal,
promovida pela UNESCO, cujo enfoque teórico é o da História cíclica e comparativa
entre civilizações.
Não devemos esquecer que as concepções cíclicas não desapareceram, estando
apenas submersas, talvez aguardando seu tempo de retorno. Afinal, periodicamente
recuperamos e revalorizamos historiadores de outrora, tais como Jules Michelet, na
década passada, e agora Vico, ambos vinculados à história cíclica.
Se a História dos historiadores é linear e progressiva e se apresenta como
dominante, não devemos esquecer que na literatura de ficção científica, onde o tempo é o
do futuro, a visão de História predominante é a cíclica, pois, conforme vários autores em
diversas trilogias/quatrilogias, o Futuro será do Império: um Império intergalático,
tentacular entre as estrelas, com uma aristocracia militar, disputando espaço, poder, glória
como outrora foi feito na Europa medieval.4
As discussões teóricas sobre o tempo e como os historiadores se relacionam com
ele são constantes e algumas obras recentemente foram escritas e publicadas sobre o
assunto.5
Mas os historiadores fogem de tais debates, pois aparentemente já resolveram tais
questões: a flexibilização do tempo nos estudos históricos é a marca dos estudos
contemporâneos. Dependendo do objeto que pretenda estudar o historiador estrutura a sua
periodização, escolhe os seus marcos temporais, seleciona o seu recorte, seu enfoque
teórico – metodológico e as suas fontes. Por exemplo: o século XX, breve ou longo?6
BRAUDEL, Fernand. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Phipippe II. Paris: Armand
Colin, 1949;
_______. La longue durée. IN: Écrits sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1969;
_______. O tempo do mundo. Lisboa: Teorema, 1996 (v.3 de Civilização material, economia e capitalismo,
séculos XV-XVIII).
3
Ver:
BATRA, Ravi. 1990. A grande depressão. São Paulo: Cultura, 1988.
4
Ver a quatrilogia de I.Asimov. Fundação, e a trilogia de F.Herbert. Duna.
5
Ver:
WEHLING, Arno. Tempo e história nas diferentes culturas. IN: A invenção da História: estudos sobre o
historicismo. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho/Ed.Universidade Federal Fluminense, 1994. p.51-58.
DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo:Iluminuras/Belo
Horizonte: Ed.UFMG, 1996.
REIS, José Carlos. Tempo, história e evasão. Campinas/SP: Papirus, 1994.
6
Ver:
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3
Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores do ensino de História
setembro 1997
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A introjeção da etnocentricidade do tempo, da relatividade das temporalidades, da
fragmentação, da periodização individualizada, para os historiadores solucionou os
conflitos com o tempo linear, progressivo, direcionado pelo devir. Ele não é mais a
explicação externa dos fatos históricos. O tempo histórico é a criação, seleção e opção do
historiador, tecido intricado no objeto, nas fontes, nas análises e nas interpretações.
FONTE:
ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES DO ENSINO DE
HISTÓRIA; realizado em 15 a 17 de setembro de 1997, Campinas, SP, com a
coordenação geral de Ernesta Zamboni. Campinas/SP: Gráfica da FE/UNICAMP, 1999,
p. 37 a 43.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. São
Paulo:Contraponto/EDUNESP, 1996.
HOBSBAWM, Eric.J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
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A noção do tempo e o Ensino de História