Entrevista a Silva Lopes
"Esta é a maior crise financeira dos últimos anos"
Helena Garrido
16/08/07 01:05
Para o presidente do Montepio Geral e histórico economista não há dúvidas: o crédito vai ficar mais caro para
todos.
O preço do financiamento da banca, das empresas e dos clientes em geral vai aumentar na sequência desta
crise com origem no crédito à habitação nos Estados Unidos, afirma Silva Lopes. Actualmente a presidir o
Montepio Geral, afirma que os bancos em geral andaram a medir mal o risco. A partir de agora vai aumentar a
diferença entre a taxa de juro cobrada a um cliente de elevado ricos e outro menos arriscado. Nos últimos
tempos estes ‘spreads’ estavam demasiado estreito. O que significa que, mesmo sem o BCE aumentar as
taxas de juro, o custo do financiamento pode subir, com efeitos na banca, nas empresas e nas famílias. Na
sua opinião, os lucros da banca portuguesa já não vão ser tão positivos no segundo semestre. E lembrando a
crise de 1929, considera que o sector financeiro devia ser mais regulamentado. Esta é, diz, a maior crise
financeira dos últimos anos,
Considera que Portugal corre o risco de enfrentar uma crise como a que foi desencadeada pelos Estados
Unidos com a ‘subprime’ [ crédito à habitação concedido a famílias com reduzidos rendimentos]?
Não. Como sou pessimista depois tenho sempre muitas surpresas agradáveis. Pensava que com o aumento do
desemprego iríamos ter problemas de crédito malparado na banca, por via da habitação, em grande
quantidade. O que não está a acontecer. Há alguns sinais de degradação da situação com o aumento das
taxas de juro, mas não é muito. Para mim tem sido uma surpresa.
Mas a banca portuguesa também concedeu empréstimos a famílias de rendimentos reduzidos como nos
Estados Unidos?
Não sei comparar o que se fez aqui com os Estados Unidos. A concorrência no crédito à habitação tem levado
a oferecer condições que não são positivas.
O que é que isso significa? Que a banca enfrenta elevados riscos?
Na minha opinião, a relação entre o risco e o preço [taxa de juro cobrada pelo banco] não é adequada.
Quando o risco é elevado o ‘spread’ deve ser alto. Embora os bancos tenham modelos de ‘pricing’ baseados
no risco não confio muito neles.
Isso significa que o crédito malparado não aumentou até agora mas vai subir a prazo?
Não sei. Se a tendência for a dos últimos anos, podemos estar tranquilos. Mas um problema de ‘subprime’
tem maior risco de ocorrer em Espanha. Em Portugal o que podemos é ser afectados por uma crise espanhola.
Em Espanha os bancos estão a emprestar a imigrantes, uma classe de elevado risco.
Como é que podíamos ser contagiados por Espanha?
Uma crise económica em Espanha afectava logo Portugal. E a instabilidade financeira contagia-se
rapidamente. Aliás, estou convencido que a banca portuguesa não vai apresentar lucros tão positivos no
terceiro trimestre deste ano.
A banca portuguesa depende significativamente do sector da construção, financia a construção e a compra de
casas, num circuito está fechado. O sector está em queda há cinco anos. Vemos casas à venda por todo o
lado. Como se explica que isso não seja visível nas contas dos bancos?
Os preços das casas não baixaram… Bem, nos Estados Unidos também não. Mas aqui há muito negócio
bancário de transferência de crédito à habitação.
E do lado do crédito concedido às empresas de construção?
Mas esse crédito está a abrandar. Mesmo os empréstimos para habitação estão a crescer menos. Hoje já
ninguém financia projectos marginais. A banca continua a financiar a construção de casas em Lisboa, mas à
volta da cidade não.
Mas entretanto já o fizeram no passado.
Sim, mas de uma maneira geral os construtores conseguiram vender as casas. Quando não o conseguem
damos uma dilatação do crédito. Em geral são três anos para a construção e dois para a venda das casas. E
são poucos os eu não cumprem.
Porque diz então que os resultados da banca não vão ser tão bons em Setembro?
Por causa dos mercados financeiros. Hoje o mercado de crédito, com os derivados e os diversos
intervenientes, é um edifício tão complexo que já ninguém sabe o que é aquilo. A Bear & Stearns [banco de
investimento que foi dos primeiros a ser afectado por esta crise de crédito] confessou que não sabia quanto é
que estava a perder com esta crise. Os modelos são de tal forma complexos que já ninguém sabe os seus
efeitos. Por exemplo uma família americana compra uma casa com crédito, esse crédito é vendido a outra
instituição com uma titularização, estes títulos são comprados um ‘hedge fund’ que por sua vez faz um
crédito sobre aquilo… É criada uma rede que ninguém conhece. Nos anos 90 registou-se a falência do ‘Long
Term Capital Management’ que tinha entre os seus gestores um Prémio Nobel. Os modelos matemáticos são
muito bonitos, mas falha um pormenorzinho e cai tudo. Neste momento há muitos títulos que não se
conseguem vender. E o sinal de que o problema é grave está na intervenção dos bancos centrais.
Os bancos centrais intervieram de forma muito significativa…
Esperemos que consigam resolver o problema. A minha convicção é que [com esta crise] vão acabar os
reduzidos ‘spreads’ que estamos a aplicar nos empréstimos ou que temos tido na obtenção de
financiamento. Os bancos portugueses conseguem financiamento com ‘spreads’ face às obrigações do
tesouro alemãs [bunds] de 15 a 30 pontos base. O Montepio faz emissões com ‘spreads’ de 22 pontos face às
obrigações do Tesouro alemães [‘bunds’]. Isto vai-se alargar. Nunca mais voltamos a beneficiar destas
margens. Os ‘spreads’ vão aumentar de uma forma permanente e os bancos e os clientes terão alguns
problemas com isso. O crédito aos consumidores e às empresas vai ser mais caro.
Significa que vai existir uma maior ligação entre o custo do financiamento e o grau de risco.
Sim, maior do que existia. O que acontecia até agora em todo o mundo era que a diferença entre os ‘spreads’
de dívida muito boa, com rating ‘AAA’ e menos boa, como BBB, eram de tal maneira pequena que mesmo os
devedores com risco elevado conseguiam empréstimos baratos. Daqui para a frente já não vai ser assim.
Porque diz isso?
Pelo que se passou nesta crise. Demonstrou-se que a avaliação do risco é importante. E o risco estava a ser
mal medido nos mercados financeiro e, provavelmente, na relação entre os bancos e os clientes.
Esta crise de crédito pode traduzir-se numa crise económica ou os bancos centrais conseguirão controlar o
problema?
Não sei. O problema é bastante sério. É um problema maior que a crise do ‘Long Term Capital Management’
[em 1998 que impôs uma intervenção da Reserva Federal]. E a do 11 de Setembro não foi uma crise
financeira. Esta é provavelmente a maior crise financeira dos últimos anos. Esperemos que os bancos centrais
consigam que a situação se ultrapasse. O sistema é de tal forma complicado que não se sabe bem o que pode
acontecer. Os banco centrais têm de ter o mercado mais regulado.
Mais regulado do que é hoje?
Exactamente. Têm de reforçar a regulação deixando apenas o mercado livre para quem não utiliza o dinheiro
do público. Se for milionária e quiser aplicar o dinheiro num ‘hedge fund’ extremamente arriscado, ninguém
pode impedir.
Mas se esse fundo se for financiar na banca?
Aí já não deve ser permitido. É preciso isolar as actividades de elevado risco das outras. Aliás foi o que se fez
a seguir à crise de 1929. Mais tarde é que se desregulou tudo. Sou um economista antigo, vejo as regulações
que tínhamos e que hoje já não existem e fico um bocado preocupado.
Essas regulamentações foram consideradas excessivas e desnecessárias.
Vamos ver se agora não chegamos à conclusão que afinal são necessárias.
Foi a conclusão a que se chegou em 1929, após um período de desregulamentação?
E a crise de 1929 gerou a regulamentação de que nos livrámos nos anos 80. E agora vamos ver.
Temos novos sistemas de informação como Basileia II, as NIC e ao mesmo tempo consideramos que não
conseguimos conhecer bem o que se passa dentro da caixa do sistema financeiro. Porquê?
Porque os produtos derivados nunca foram bem regulados. São de tal forma complexos que nem os próprios
administradores conseguem saber quanto estão a perder.
Como avalia o que se está a passar no BCP?
Acompanhei mal esse processo. O que vou dizer aplica-se ao governo das sociedades em geral. As grandes
companhias não familiares têm de ter um conselho de supervisão ou de administração e uma comissão
executiva. Já tivemos em Portugal casos em que o ‘charmain’ se deu bem e se deu mal com o conselho
executivo. Por exemplo, o caso da CGD em que se deram mal. Agora temos o BCP. Isto acontece. Temos
casos em que se dão bem, mas com excepção do BPI, não se sabe o que anda a fazer o ‘charmain’, nunca se
ouve falar nele. Também não me parece uma boa solução. Aqui no Montepio também estamos a estudar essa
questão da governação. O que me parece a melhor solução é a comissão executiva ser nomeada e demitida
pelo conselho de supervisão ou de administração. E este deve ser removido pela assembleia geral de
accionistas.
Foi o que foi proposto por Jardim Gonçalves na primeira assembleia geral.
Parece-me que é a prática da maioria dos outros países. Mas há outras questões que também são
importantes, especialmente num banco, que é a relação entre o conselho geral e o próprio banco. Podem-se
criar relações de cumplicidade prejudiciais para os accionistas. Daí que seja importante que as transacções
com membros do conselho de administração sejam publicitadas, o que é uma recomendação da OCDE. Além
disso o conselho de administração deve ter um grupo significativo de pessoas independentes e com uma
reputação a defender.
O debate de quem ganha o quê não é um bocado mesquinho?
Não, nem pensar, não é nada mesquinho. Uma das recomendações da OCDE é que as remunerações do
conselho de administração devem ser debatidas em assembleia geral. Tem importância porque vimos nos
Estados Unidos os executivo ‘raparem’ o dinheiro aos accionistas. E um país em que certas pessoas ganham
mil vezes mais que outros tem um problema social. Se o sector privado produz isto faz mal. Há algum critério
que justifique que o presidente de uma grande empresa portuguesa ganhe 20% mais que o seu homólogo
numa grande companhia francesa, onde também o ganho já é escandaloso? Temos casos destes em Portugal.
Há um grande debate em França, Reino Unido, nos Estados Unidos… Em Portugal não se debate nada. Vemos
por exemplo casos de gestores que ganham fortunas à frente das empresas, saem por que a empresa está a
perder dinheiro mas recebem um ‘pára-quedas dourado ’. E os accionistas ficam a ver navios. Já pensou
porque é que o BCP saiu da bolsa de Nova Iorque?
Porque não se debate da remuneração em Portugal quando o vemos acontecer noutros países?
Há mais concorrência, uma vida académica activa e jornalistas com peso.
Há mais margem para maior concentração no sector bancário?
Se não for no grupo dos cinco grandes, provavelmente há.
Discorda de Jardim Gonçalves quando diz que ainda margem para maior concentração?
Discordo. As concentrações podem ter como objectivo melhorar a eficácia ou aumentar o poder de mercado.
Há outros objectivos, como o ego de quem promove a concentração, a participação nos lucros que é maior se
a empresa for maior. Mas discuto apenas os outros factores. Quanto à eficiência, nenhum dos cinco grandes
me parece ineficiente. Não há nenhum melhor que os outros. E se um deles se tornar ineficiente deve ser
comprado por outro que não esteja no mercado português. Se um dos grandes banco for comprado pelo
Bilbao Viscaya não vejo problema. Mas se for o Santander já se levantam problemas.
Não vê problema em ser um banco estrangeiro?
Não. Essa questão dos centros de decisão nacional é um falso problema, uma hipocrisia. O Totta é um bom
exemplo: fez a fortuna de Champalimaud, de Roquette e de mais alguns. E nas mãos do Santander traz mais
problemas à economia portuguesa do que quando pertencia a Champalimaud? Penso que não. Até é um
banco mais eficiente. Hoje não há centros de decisão nacional. É engraçado ver que algumas pessoas que
assinaram aquele manifesto venderam depois as suas empresas. A privatização do Totta é um bom exemplo.
Eu aliás sou muito crítico em relação às privatizações.
Mas porquê?
Recentemente privatizou-se a REN. Se calculávamos que as acções iam subir porque não fez o Estado um
leilão?
Um dos argumentos do ministro das Finanças é que o Estado tem uma credibilidade a defender e que o valor
a que foram vendidas as empresas estabiliza a longo prazo no preço da privatização. Um dos exemplos é a
EDP. Considera um bom argumento?
Não. Todas as mais-valias que as pessoas andam à procura é tirar dinheiro aos portugueses, aos que não
subscreveram acções nas privatizações.
A bolsa portuguesa, considera que está eufórica?
No conjunto dos 27 países da UE somos a economia que cresce menos e temos a bolsa que sobe mais. Não é
preciso dizer mais nada. Os nossos PER estão elevados, não? Se tiver de investir em acções não o faço na
bolsa portuguesa.
Esta conjuntura económica portuguesa de divergência tem algum paralelo histórico?
No período posterior à II guerra mundial não há paralelo histórico. Os períodos anteriores à guerra não são
comparáveis. Desde o fim da II guerra Mundial nunca tivemos um período tão prolongado de tão fraco
crescimento como agora. Antes da guerra tivémos tempos de maior recuo. Mas a economia não tinha
qualquer semelhança com a de hoje, dependia muito das condições meteorológicas ou perturbações nas
importações.
Considera possível o regresso da convergência para breve?
Um dia acontecerá. Não sei é quando.
Não é viável a perspectiva do ministro das Finanças de que será em 2009?
É possível… É conhecido que sou pessimista. O comportamento das exportações o ano passado surpreendeume um bocado. Mas também temos de colocar a questão em perspectiva, porque em 2006 ainda perdemos
alguma quota de mercado, o que acontece desde 1990. Nas exportações e no mercado interno estamos a
perder quota de mercado há mais de 15 anos. Não soubemos reagir a este movimento de globalização, de
liberalização e de entrada dos novos membros na UE.
O Banco de Portugal revela que o perfil das exportações se tem alterado…
Estamos a registar alguma melhoria na composição das exportações, com mais tecnologia, mas tudo isso
ainda tem pouco peso. A grande fonte que tínhamos de vendas para o exterior era o investimento estrangeiro
orientado para a exportação. E como temos visto muitos deles têm saído do país. Vão surgindo novos mas
não sabemos qual é o peso dos subsídios dados pelo Estado nem o valor acrescentado nacional que criam.
Mas qual a importância disso desde que se crie valor acrescentado?
Mas que valor acrescentado é que vai criar? Duzentos empregados, eventualmente. O resto é tudo
estrangeiro: o capital, os equipamentos, os lucros vão para o exterior… O que fica cá? Nem sequer os
impostos, fica apenas a remuneração dos empregados. Qual é a elação entre este valor acrescentado e o
subsídio que se deu? Este tipo de análise não se faz, não é parte da propaganda oficial…
Era capaz de compensar subsidiar as pessoas que seriam empregadas?
Bem, uma parte desse subsídio que se dá à empresa vem da União Europeia. Mas de facto pode não ser a
melhor aplicação de recursos. Penso que devíamos ter uma política de subsídios transparente: conhecer os
objectivos, os critérios de escolha e numa democracia até se devia saber quanto é que se dá a cada projecto,
pois é dinheiro público. Por exemplo, devemos ter pago uma fortuna para a Autoeuropa cá ficar. Não
sabemos. Mas estou convencido que foi um bom investimento, o tal subsídio por causa da indução de outros
valores como entrada de tecnologia, criação de outras empresas, volume elevado de emprego… Mas gostava
de ter acesso aos cálculos, que existisse um sítio na Internet onde pudéssemos ver.
Pensa que esses estudos são feitos ou é tudo concretizado de forma discricionária?
Não sei. Isto que se tem discutido dos aeroportos, do TGV… Ouvimos falar que existem centenas de estudos
mas não sabemos nada. Conhece algum estudo global sobre o aeroporto na Ota?
Com avaliação de custos benefícios?
Exactamente. Quando dizemos que não há estudos, dizem que está na Internet, vamos lá e de facto
encontramos centenas de coisas… Mas é o itinerário do estorninho no campo do aeroporto… Não é assim
que se tomam decisões.
Mas considera que há subsídios que estão a ser dados assim?
Não sei. A opinião pública não sabe. Conhece?
O que conhecemos são anúncios esporádicos de projectos de investimento.
Mas em relação a esses projectos não sabemos qual o subsídio que se deu e a sua justificação económica.
Devíamos saber. Até acredito que muitos são positivos.
Qual é a sua opinião sobre o projecto do TGV (comboio de alta velocidade)?
No caso do TGV para o Porto nem é preciso estudos económicos. Devemos adiar o projecto. Segundo se
afirma vamos ganhar 20 minutos em relação à linha actual. Não vejo qualquer vantagem económica em gastar
aqueles mil milhões todos para isso. Ainda apor cima depois de se terem gasto já mil milhões de euros na
linha do Norte. O que não quer dizer que daqui a dez anos, com mais crescimento económico, não se possa
fazer. Não fecho a ideia até porque sou um fã de comboios.
Devia-se dar prioridade à ligação entre Lisboa e Madrid?
Essa ligação é mais por razões de prestígio nacional do que de cálculo económico. Não acredito que vamos
ter um tráfego para Madrid que possa tornar a linha rentável a curto prazo. Sou a favor porque será integrada
numa rede de transportes europeus e o orgulho nacional ficaria afectado se a linha de TGV acabasse em
Badajoz. E, como seja qual for a solução, para o aeroporto é preciso fazer um TGV, prolonga-se até à
fronteira.
Não existem razões económicas? Facilita a integração ibérica, há muitos portugueses a trabalhar em Espanha
e espanhóis em Portugal…
Não acredito que o TGV possa oferecer preços parecidos com os das companhias aéreas de ‘low cost’. O que
é fundamental é uma rede de bitola europeia para mercadorias. Há quem afirme que o TGV, sendo bitola
europeia e não sendo rentável para passageiros, será usado para mercadorias. Mas as mercadorias não
precisam de TGV. Precisam é de bitola europeia.
O que pensa do debate sobre as alternativas à Ota?
É um tema tão complexo. Tenho-me guiado pelo que os engenheiros vão dizendo. E, como em todas as
profissões, dizem coisas diferentes. Convenceram-me de que é preciso outro aeroporto. Na Ota, o que dizem
os engenheiros, é que tem custos monstruosos de remoção de solos e o problema de não poder ser
ampliado. Se isto é verdade, a escolha da Ota é um disparate. Nem percebo porque se andou a perder tanto
tempo com aquilo. Se Alcochete resolver o problema, deve escolher-se essa localização.
Há pouco dizia que não consegue antecipar o regresso da convergência. Quais são os principais
condicionalismos para um crescimento mais rápido da economia?
O grande problema está na qualificação. Muita da nossa mão-de-obra não tem qualificações para trabalhar
em indústrias modernas. E o país só pode progredir com uma mudança estrutural da sua produção de bens e
serviços transaccionáveis. Como enfrentamos a concorrência da China, da Índia, da Turquia temos de ir para
produtos de tecnologia intermédia em que a proximidade da Europa seja um factor importante. Embora aí
estamos pior que os polacos ou que os húngaros que, além da situação geográfica, têm um nível cultural
superior. Os húngaros podem não ter tantos carros como nós, nem tantos telemóveis, mas é uma vergonha a
diferença cultural entre nós e eles.
Pensa que em Portugal existiu uma inversão de valores, um excesso de valorização de casas, automóveis…
Temos uma tradição de valorizar pouco a educação. Em 1960 tínhamos taxas de analfabetismo que os outros
países europeus já tinha reduzido para valores mais baixos um século antes. Neste domínio andamos cem
anos atrasados. Ultimamente aumentámos o número de alunos, produzimos universitários de um nível muito
elevado. Em valor absoluto, comparativamente ao passado, estamos muito melhor. Infelizmente muitos dos
bons ficam lá fora. Os portugueses hoje mandam os filhos para a escola, antes não o faziam. Mas não é para
aprender é para tirar o canudo. Os pais agridem os professores porque não passam os filhos.
Não se valoriza o conhecimento…
Entre os emigrantes, por exemplo, os portugueses mandam menos os filhos para a universidade que as
outras comunidades. Há qualquer coisa de atávico de não valorizar o conhecimento, a formação. O resultado
é que temos a população activa da Europa com menos qualificações. E se olharmos para outros países
europeus… A Grécia e a Espanha estavam atrasados e ainda estão. Mas se compararmos o progresso deles
com o nosso vemos a diferença. Ando a dizer isto há muitos anos. O problema do ensino é a maior vergonha
nacional. E é por causa da qualidade. O ensino tem sido governado por grupos de interesses e não pelo
interesse nacional. Os pedagogos… Por exemplo, sem exames não conseguimos andar para a frente. Há
alguns alunos universitários que não sabem somar um meio com um terço.
E a política que esta ministra da Educação está a seguir?
Esta ministra da Educação já tomou medidas muito positivas, mas não fez tanto quanto devia fazer. Tem sido
muito atacada, o que é bom sinal. Os ministros que mais admiro no Governo são os que aparecem no fim da
classificação na opinião pública. Os ministros da Saúde, da Educação e das Finanças…
O ministro das Finanças mesmo assim não é muito impopular.
Os ministros que aparecem em primeiro lugar são em geral os dos Negócios Estrangeiros, da Cultura… que
não têm problemas com a população. Os grandes ministros estão a fazer grandes reformas. O ministro da
Saúde, por exemplo, está em último lugar.
O ministro da Saúde não tem falhado na explicação das reformas?
Se calhar quem tem falhado somos todos nós, não é só o ministro. Quando a imprensa o critica porque
fechou uma maternidade, deve perceber o que se pode fazer com o que se poupa por isso: melhorar outra
maternidade. Por exemplo, aqueles centros de saúde que estavam abertos sempre, durante a noite ia lá uma
pessoa ou outra por semana e estavam lá um médico e uma enfermeira, com certeza a dormir, e durante o
dia faltavam médicos. Acabou-se com o período nocturno e o diurno é mais eficaz. Toda a gente pensa que o
orçamento é um saco sem fundo. Não pode ser. O problema da saúde vai ser o mais grave no futuro. Vamos
ter de limitar o apoio sanitário às famílias portuguesas. As pessoas não gostam, mas tem de ser. Não há
dinheiro.
Não concorda com a baixa de impostos?
De maneira nenhuma.
Se a situação orçamental melhorar…
Mesmo que a situação orçamental melhore, há duas rubricas que aumentarão sempre: a segurança social e a
saúde. Na educação já se cortou despesa mas provavelmente ainda se pode poupar mais alguma coisa. Assim
como ainda se podem cortar despesas em muitos serviços públicos com pessoal a mais. Mas se olharmos
para o que gastamos em segurança social comparativamente a outros países europeus, e com o que está a
acontecer à mortalidade e natalidade, verificamos que a despesa vai ter de aumentar. Mesmo com as medidas
já tomadas na segurança social, uma das mais importantes adoptadas por este Governo. Bem sei que há
pessoas que defendem que se deve privatizar tudo. Mas isso é o sistema americano e eu não o quero cá.
Mesmo que o equilíbrio orçamental seja atingido em linha com o previsto no Programa de estabilidade, não é
recomendável baixar impostos por causa das perspectivas de aumento de despesa no estado social?
Claro, exactamente. Não quer dizer que não exista correcção de impostos. No IRC nós temos um problema de
competição fiscal internacional. Aliás, penso que o mundo está bastante mal. O capitalismo mundial anda
num delírio que dificilmente é sustentável.
Mas há quem defenda que se devia baixar o IRC e aumentar os impostos indirectos…
Mas se uns querem que se baixe o IVA por causa da Espanha, que tem uma das taxas mais baixas da Europa
enquanto o nosso é dos mais altos. Quanto ao IRC, não quer dizer que não sejamos obrigados a baixar por
causa da competição fiscal internacional que é terrível. Mas não está provado em parte nenhuma que a baixa
de IRC aumente o crescimento económico. Ninguém sabe qual é a taxa que corresponde à inversão na curva
de Laffer.
O Dr Carlos Tavares refere que a baixa de IRC realizada no Governo de Durão Barroso não se saldou em
queda de receitas…
Nesse caso a razão foi o aumento da eficácia fiscal. Muita gente não pagava impostos neste país. E agora
pagam.
Esta eficácia fiscal não começa a violar alguns direitos dos contribuintes?
Considero que o interesse colectivo está à frente do interesse individual. Discordo destas questões que se
levantam sobre o sigilo bancário. Como acontece noutros países, o fisco devia poder fiscalizar as contas
bancárias de forma automática. Não deve é ser qualquer um a ver as contas, têm de ser pessoas credenciadas
para esse efeito. E além disso tem de haver um processo rápido para se protestar contra ingerências abusivas
do fisco.
E os tribunais também têm de ser rápidos…
Exactamente, rápidos e justos. Mas quando o interesse colectivo está em jogo, o fisco e a judiciária deviam
ter acesso às contas bancárias. Obviamente que pode aumentar a circulação em notas.
Aumenta a economia paralela…
Sim, há esse risco. Temos de ter esse objectivo de maior eficácia fiscal com acesso a informação bancária.
Mas este sistema tem de andar em paralelo com a eficácia e rapidez nas respostas à reclamação do
contribuinte. A nossa lei nem sempre é muito clara e o fisco por vezes faz interpretações que são discutíveis
e até absurdas, ignorando as consequências das suas decisões. Tal pode levar uma empresa à falência. O
contribuinte corre o risco de ter de esperar quatro a cinco anos por uma decisão dos tribunais. Mas todos
sabemos que o progresso que se fez no fisco nos último anos é espectacular.
Pensa que foi o resultado do trabalho desenvolvido pelo director-geral Paulo Macedo que deixou agora a
função?
Claro.
Pensa que é injusto não ser possível pagar-lhe o salário que tinha?
Injusto não é a palavra. Do ponto de vista da eficácia económica, merecia aquele salário e até mais. Quando
pertenci àquela Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal defendi e escrevi que o director geral
dos impostos dirigia a empresa mais importante de Portugal e como tal devia ganhar mais que o presidente
do BCP. Nós em Portugal pagamos muito mal a uns e excessivamente bem a outros.
Concorda também com o que disse Paulo Macedo de que o primeiro-ministro e o presidente da república
ganham muito pouco?
Sim, concordo. E ganham muito pouco porque há muitos que ganham de mais no sector privado. Paulo
Macedo também disse isso. Qualquer dirigente de topo ou mesmo intermédio em algumas empresas ganha
mais que o Presidente da República.
Mas são empresas privadas, não são pagos com dinheiro dos contribuintes.
Mas o problema é que quando se tem um perfil como Paulo Macedo entre ter um lugar público ou ceder à
tentação de ir para um lugar privado onde vai ganhar dez vezes mais… O que se paga no sector público é
pouco, mas o que paga o privado é de mais. Considera-se que são as forças de mercado…
Exacto…
As forças de mercado não funcionam neste caso. Só acredito nas forças de mercado quando há concorrência
perfeita. Quando há imperfeições no mercado, não acredito. Por exemplo, liberalizámos os preços de alguns
medicamentos e agora custam o dobro. Se o mercado não funciona, pois então voltemos à regulamentação.
Mas considera que o mercado só funciona se os preços caírem?
Um mercado que só funciona com os preços ao passarem para o dobro, não considero que deva existir.
Foi uma das vozes mais críticas em relação à falta de concorrência em Portugal, nomeadamente nos sectores
das telecomunicações e da energia. Mantém essa posição?
Mantenho, continua tudo na mesma. Dizem-me que na energia nos estamos a aproximar, mas no outro dia
estive a ver umas comparações e continuamos a ser o país com os preços mais altos. Na energia como nas
telecomunicações não pode haver concorrência, têm de actuar as políticas públicas. Como nos medicamentos.
Aprendemos que a concorrência perfeita dá óptimos resultados. Mas é raro existir um mercado de
concorrência perfeita. Porque é que hoje uma empresa que não tenha um ROE [rendibilidade dos capitais
próprios] de 15% considera que não está a desenvolver um bom trabalho? Se existisse concorrência perfeita
as empresas não tinham de ter este objectivo. E não é só em Portugal, é em todo o mundo. O capitalismo está
a servir-nos mal: a distribuição do rendimento está a piorar em todo o mundo, não sabemos onde vai parar a
instabilidade no sistema financeiro e tudo de impõe pelo ‘marketing’. Aquela teoria que aprendemos de que o
consumidor é soberano já foi posta em causa há muitos anos pelo Galbraith.
Mesmo hoje com as novas tecnologias considera que a oferta não é induzida pelo consumidor?
Estou convencido que, como dizia Galbraith, as empresas é que levam o consumidor a ganhar hábitos de
consumo. Quando o consumidor resolve beber Coca-Cola em vez de ‘Pirolitos,’ como havia quando eu era
novo, é por causa da Coca-Cola não pela soberania do consumidor. Eu gostava muito dos ‘Pirolitos’ lá da
minha terra. E desapareceram. E não eram piores que a Coca-Cola.
A situação que se vive hoje no sector das telecomunicações persppectiva menos concorrência que a que se
previa antes do lançamento da OPA da Sonae sobre a PT?
Não sou especializado nessa matéria. Naquela OPA não compreendi porque é que a Autoridade da
Concorrência autorizava que a Sonae mantivesse as duas redes de telemóveis (TMN e Optimus). Na altura
considerei que se a OPA tivesse vencido era capaz de ser melhor, existiria um ganho de eficiência. Mas
entretanto a gestão da PT melhorou muito. O que defendo é que se separem as empresas.
A existência de accionistas comuns inviabiliza a concorrência?
Claro. Se os accionistas de controlo forem os mesmos nada acontece.
Mas como se pode impedir isso se estamos no domínio do sector privado.
Os americanos sabem fazer isso.
Considera que existe o risco de Portugal ter níveis de desemprego à irlandesa e à espanhola devido ao
processo de reestruturação?
Admito que não, por causa da emigração. Há muitos portugueses a emigrarem outra vez.
O perfil da emigração é o mesmo dos anos 60?
Não. Nos anos 60 quem emigrava era o camponês analfabeto. Hoje emigram muitos que têm o secundário ou
frequência do superior para trabalharem em cafés. E ganham uma miséria. E há um novo fenómeno de
emigração que é o de pessoas qualificadas.
Fala-se muito dessa emigração qualificada. Mas tem ideia se tem crescido?
Tem crescido. Aliás os meus dois filhos são exemplo disso, são os dois emigrantes. E há que fazer uma crítica
à política de bolsas de estudo. São pagas sem exigir o reembolso do dinheiro ou a obrigação de prestar
serviços em Portugal, pelo menos cinco anos. Quando era isso que devia acontecer.
Portugal tem falta de mão-de-obra qualificada mas há emigrantes e desempregados entre as pessoas com
mais qualificações. Isto é um paradoxo?
Não é. O país não criou indústria de ponta para essa tal mão-de-obra qualificada. A Irlanda atraiu muitos
laboratórios e empresas de ‘software’. Nós não temos essa capacidade, não temos um número suficiente de
pessoas qualificadas.
Mas também não há iniciativa empresarial?
Não há, mas se tivéssemos massa crítica os estrangeiros vinham para cá. Neste momento não nos podemos
queixar da falta de iniciativa empresarial. Tenho uma grande admiração pelas pequenas e médias empresas
que exportam. São os heróis da economia portuguesa, pessoas da indústria anónimas – com excepção de
Américo Amorim que exporta cortiça e Belmiro de Azevedo com a madeira, os grandes grupos não exportam
nada. Quem exporta em Portugal são as multinacionais e as pequenas e médias empresas. Mas esses não são
famosos. Famosos são os que especulam na bolsa.
A política das contas públicas está no bom caminho?
O que está a acontecer nas contas públicas ultrapassa as minhas expectativas. Não pensei que se pudesse
fazer tanto. Gostava que se fizesse mais mas penso que o que se tem feito é notável. É preciso fazer mais
nomeadamente na reforma do Estado que por vezes parece que está a enfraquecer.
O ritmo das reformas não vai abrandar por entrarmos na segunda parte do mandato?
Não sei. O primeiro-ministro, apesar de ser muito atacado, continua a ter uma posição muito forte nas
sondagens. Os portugueses não desgostam de alguém com capacidade de decisão. E como as suas decisões
são em geral correctas… Foi uma grande surpresa para mim o facto de manter a popularidade, apesar das
medidas difíceis que tomou. Espero que continue assim.
Não considera que existe alguma arrogância no governo, como afirma Mário Soares? Ou sintomas de
autoritarismo?
Não. Admito que possa haver um caso ou outro. Mas fazer disso o que é mais importante… não. Não estou
preocupado com isso. Preocupa-me mais a transformação económica e social, nomeadamente no sector
público. O que têm feito é notável. Embora considere que se tem de fazer mais.
Os governos deviam ter poder para intervir mais na política monetária como de alguma forma propôs O
presidente francês Nicolas Sarkozy?
O facto dos bancos centrais funcionarem à margem do sistema democrático preocupando-se só com a
inflação não me parece uma boa ideia.
Porquê?
Porque a moeda não serve só para a inflação. A prova disso são as intervenções recentes que os bancos
centrais fizeram, e bem. É verdade que o BCE tem tido bom senso e que as pessoas que estão nestas
instituições são bem escolhidas. Reconheço que os governos podem ter a tendência para manipular
politicamente os bancos centrais. O sistema actual deve manter-se. Mas considero que o BCE devia ser mais
parecido com o norte-americano. No sentido de prestar contas ao Parlamento e de que a inflação não é o
único objectivo. Devem preocupar-se com o crescimento mas também com o sistema financeiro. Colocar os
bancos centrais na dependência dos governos, isso não.
“Quando vou num comboio a vapor, a apanhar fuligem na cara, fico radiante!”
Fã de comboios e de ópera, não se interessa por futebol. As melhores férias da sua vida foram-lhe ‘impostas’
pelos filhos.
Como vão ser as suas férias este ano?
Vou uma semana ao Sul de França fazer uma viagem de comboio a vapor. Sou fã de comboios.
E faz colecções de comboios?
Não, sou um fã moderado. Sou filho de ferroviário, vivi perto de caminhos-de-ferro quando era miúdo.
Quando vou num comboio a vapor a apanhar fuligem na cara fico delirante.
É a sua imagem de felicidade, andar de comboio a vapor a apanhar fuligem na cara.
Exactamente.
E já andou no comboio do Douro?
Claro. Andei em todos os comboio do Douro. Aquela linha que acabou agora para Mirandela, passei lá um
mês antes da enxurrada, este ano. E tenho um neto com dois anos que tem os meus defeitos.
Também é fã dos comboios, o seu neto?
Por enquanto é. Sou economista, como sabe, e preocupo-me com os cálculos de custos e benefício. Mas
considero que temos o dever nacional de manter a linha entre a Régua e Vila real mesmo que dê prejuízo,
pela mesma razão que mantemos a Torre de Belém.
Já viajou em comboios a vapor noutros sítios do mundo?
Já.
Qual foi a que gostou mais?
Em Inglaterra. Também já andei na Turquia.
Quais foram as férias da sua vida?
As duas melhores foram as que os meus filhos me exigiram. Quando trabalhei para o Banco Mundial nos anos
80 fazia algumas missões. A certa altura fui à Turquia e o meu filho, na altura com 18 anos, exigiu ir ter
comigo e andámos lá os dois uma semana. E foi nessa altura que andei no comboio a vapor. Passados três
anos a minha filha exigiu o mesmo, estava eu na China também numa missão do Banco Mundial
Que livro está a ler?
Há um que estou a ler há algum tempo de um historiador francês, Simon Schama e que se chama ‘Citizens’. É
sobre a Revolução Francesa, um tema que gosto muito. E um outro de um economista inglês de esquerda
Andrew Glyn que ensina em Oxford, com o título ‘Capitalism Unleashed’.
Tem de ler livros de direita também.
Comprei um livro recentemente de um indiano que escreveu um livro sobre o liberalismo. Um dos autores
que é de direita e aprecio muito é o Martin Wolf. A minha economia aprendo-a no Financial Times.
Qual é o livro da sua vida?
Há muitos. Mas há um que me impressionou bastante. A História de Portugal de Oliveira Martins. Era novo
quando o li. Tinha aprendido história pelos livros oficiais, onde os reis portugueses eram todos uns heróis,
uns sábios, justos… eram todos uns super-homens. Quando li o livro de Oliveira Martins descobri que não
era assim, Foi nessa altura que li também aquele livro de Aquilino Ribeiro, ‘Misérias e Grandeza dos reis de
Portugal’.
Televisão vê?
Não. Vejo o noticiário mas o português pouco. Normalmente faço o seguinte: vejo a abertura do noticiário da
RTP e depois passo para a BBC. Em compensação vejo muitos vídeos.
Porque não vê o noticiário português?
Estar a ver um quarto de hora uma coisa qualquer que aconteceu no Benfica ou sobre a menina inglesa a
Maddie… Não tenho paciência… Não consigo a perder o meu tempo com aquilo. É possível que o noticiário da
RTP 2 seja bom, mas raramente o vejo. Antes, quando não existia concorrência, o noticiário era bom, ficava
informado. Podia ter maior parcialidade em relação ao Governo, mas ficava melhor informado. Que o futebol
apareça no fim, ainda vá lá. O problema é que aparece no princípio. Assim vejo a BBC.
Não gosta de futebol?
Não me interesso. Não sou contra.
A informação degradou-se em Portugal?
Penso que sim. Nesta área sou intervencionista. O Governo devia impor obrigações de programas de certo
nível cultural nas horas de maior audiência. A televisão é um dos factores de deseducação dos portugueses. É
claro que nos outros países também há má televisão. Mas mesmo as coisas piores em Inglaterra são vinte
vezes melhor. Não sei é como se define um programa de qualidade… Sei que precisamos que a televisão
exerça uma função educativa que não tem. Houve um nivelamento por baixo.
Cinema, costuma ir?
Não. Vejo vídeos em casa. Devia ir.
Qual é o seu filme?
‘Mon Oncle’ do Jacques Tati. Já vi três ou quatro vezes. Fabuloso, comovente.
E música, do que gosta?
Gosto bastante de ver ópera e vejo em casa. Tenho cerca de cem vídeos de ópera. Quando estou a escrever
oiço música clássica.
Usa muito a Internet?
Uso os sites de instituições internacionais como a OCDE, FMI, Banco Mundial, União Europeia
Quais os jornais que lê?
O Financial Times é o meu jornal para tudo, mesmo na opinião. Também leio o Economist mas identifico-me
mais com o Financial Times. Depois leio o Público, Diário de Notícias, Diário Económico e Jornal de Negócios.
Mas levo tanto tempo a ler o FT como os outros todos juntos. Demoro quase uma hora a ler o Financial
Times.
Da sua actividade profissional qual foi a que mais gostou?
Foi ser governador do Banco de Portugal. Entre 1975 e 1980
Foram tempos difíceis quando lá esteve.
Na altura apeteceu-me muitas vezes ir-me embora. Estar a perder 20 de dólares por dia de reservas e ter em
caixa 40 milhões de dólares de reservas não era brincadeira.
Nem dormia bem…
Foram momentos muito complicados. Mas visto à distância foram tempos muito interessantes.
Foi nessa altura que “enganou” Mário Soares com a desvalorização?
Eu também enganei mas o caso foi com Vítor Constâncio. Desde que fui para o Banco de Portugal tive uma
luta permanente porque queria desvalorizar o escudo e o governo não permitia. Havia uns conselheiros que
eram uns ignorantes. A certa altura comecei a deixar cair o escudo sem dizer nada a ninguém, não intervindo.
Mas os emigrantes descobriram isto rapidamente e começaram a não enviar as remessas. Nessa altura
tivemos de parar. Tentámos fazer uma única desvalorização mas o Governo não permitiu. Veio cá o Rocard
[Michel Rocard, primeiro-ministro francês 1988-1991]. Rocard teve um almoço comigo e Vítor Constâncio. E
nós pedimos-lhe para convencer o Mário Soares a desvalorizar o escudo. E foi assim que conseguimos
desvalorizar 15%. Desvalorizámos um pouco mais. É claro que aqueles que nos andavam a fazer a vida negra
detectaram mas o ministro das Finanças, que era o Medina Carreira, ficou do nosso lado e nós argumentámos
que era a referência internacional. Depois veio a equipa do MIT, liderada por Rudiger Dornbush num grupo de
que fazia parte o Paul Krugman. Deram a ideia da desvalorização deslizante. Mas o que eles queriam era um
ritmo de desvalorização mensal que exigia um aumento significativo das taxas de juro. E nós não queríamos.
Então ele sugeriu que antes de entrarmos no ‘crawling peg’ deixássemos cair o escudo. Assim fizemos.
Mários Soares estava no Algarve e alguém o alertou: aqueles tipos estão a desvalorizar…Telefonou ao
Constâncio que lhe disse: Foi por causa da coroa sueca. Que tinha caído e vinha nos jornais.
Perfil:
José da Silva Lopes, 75 anos, é presidente do Montepio Geral. A filha seguiu a vida académica, em Inglaterra,
e o filho é economista no FMI. Tem três netos, o mais velho com 16 anos. E mais um a caminho. O mais novo
partilha a sua paixão por comboios a vapor. Profundo conhecedor da economia portuguesa, com grande
sentido de humor, diz-se um pessimista - uma vantagem que lhe permite ter várias “surpresas agradáveis”.
Considera-se uma pessoa de esquerda. Mas escreve artigos em conjunto com Miguel Beleza. Economista
licenciado pelo actual ISEG, nasceu em Ourém e tem um lugar na história económica portuguesa. Começa a
sua carreira no serviço público no Ministério da Economia onde esteve entre 1956 e 1964, tendo integrado a
equipa de técnicos que participou nas negociações para a entrada de Portugal na EFTA em 1959 e no GATT,
actual Organização Mundial do Comércio, em 1961 Hoje é presidente do Montepio Geral. Acompanhou no
Governo, como ministro das Finanças ou secretários de Estado, e como governador do Banco de Portugal um
dos períodos mais conturbados da história económica portuguesa entre 1975 e 1980. É a si que se deve a
aplicação da desvalorização deslizante, desenhada por uma equipa que trouxe do MIT que era liderada pelo
por Rudiger Dornbush, já falecido. È ainda a si que se devem as negociações para os planos de estabilização
do FMI que impediram uma crise grave em Portugal.
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"Esta é a maior crise financeira dos últimos anos"