Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Prematuridade: um estudo sobre a psicodinâmica familiar das mães acompanhantes de bebês prematuros BRUNA BURNEIKO ALVES MEIRA Assis 2005 BRUNA BURNEIKO ALVES MEIRA Prematuridade: um estudo sobre a psicodinâmica familiar das mães acompanhantes de bebês prematuros Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientadora: Profa. Dra. Marlene Castro Waideman Assis 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP M514p Meira, Bruna Burneiko Alves Prematuridade: um estudo sobre a psicodinâmica familiar das mães acompanhantes de bebês prematuros / Bruna Burneiko Alves Meira. Assis, 2005 233 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Família – Aspectos psicológicos. 2. Maternidade. 3. Pré- maturos. 4. Unidade de Tratamento Intensivo. 5. Psicanálise. 6. Psicologia hospitalar. I. Título. CDD 616.8915 BRUNA BURNEIKO ALVES MEIRA Prematuridade: um estudo sobre a psicodinâmica das mães acompanhantes de bebês prematuros Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Data da Aprovação: Banca Examinadora _______________________________ Dra. Marlene Castro Waideman – UNESP Assis _______________________________ Dra. Maria Luisa Louro de Castro Valente – UNESP Assis ______________________________ Dr. Manoel Antonio dos Santos – USP Ribeirão Preto AGRADECIMENTOS Aos meus pais pelo incentivo constante na busca de meus ideais; Ao Marcelo pela compreensão e paciência ao longo da realização das várias etapas desta dissertação; À minha orientadora, Profa. Dra. Marlene Castro Waideman por ter acreditado em meu trabalho e me auxiliado nos momentos de dúvida e apreensão; Às Profas. Dras. Maria Luisa Louro de Castro Valente e Olga Maria Piazentin Rolin Rodrigues pelas valiosas observações e contribuições durante o exame de Qualificação; À Profa. Dra. Tânia Gracy Martins do Valle por ter despertado em mim a vontade de alcançar novos conhecimentos e o prazer no processo de pesquisa; Aos pequeninos bebês prematuros e suas mães acompanhantes que se disponibilizaram tão prontamente a colaborar com seus relatos, num momento tão delicado como o representado pelo processo de hospitalização numa Unidade de Tratamento Intensivo (U.T.I. Neonatal), tornando possível a realização deste estudo; E a todos aqueles que de uma forma ou de outra contribuíram para a elaboração e realização desta investigação. “Em se tratando de maternidade, há lições a serem aprendidas quando se olha para o outro, e a primeira e mais vital delas é que existem muitas maneiras de ser mãe. A maternidade é modelada pela cultura, pode ser adaptativa e pode ser flexível. Quando entendermos e aceitarmos isso, poderemos tirar a viseira coletiva que nos impede de ver, além das fronteiras da nossa versão mitificada da maternidade, outras realidades e novas soluções” (FORNA, 1999, p.31-32). MEIRA, B. B. A. Prematuridade: um estudo sobre a psicodinâmica familiar das mães acompanhantes de bebês prematuros. Assis, 2005. 233p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. RESUMO Sabemos que a dinâmica da mulher e, sobretudo, a dinâmica familiar sofrem intensas transformações com a chegada de uma criança, uma vez que a decisão de ter um filho é resultante da interação de uma série de motivos, conscientes e inconscientes. Neste sentido, a gravidez representa uma transição existencial importante não somente na vida da mulher, mas na vida familiar como um todo, pois envolve mudanças significativas, reorganizações e aprendizagens. No entanto, o que ocorre quando o nascimento de um filho se dá de forma prematura? Como se comportam essa mãe e essa família que haviam se preparado para uma seqüência gestacional natural e abruptamente, por fatores que parecem ser externos e extrínsecos à dinâmica materna e à dinâmica familiar, se vêem diante da situação de prematuridade? O objetivo desta pesquisa consistiu em estudar aspectos da psicodinâmica familiar de mães acompanhantes de bebês prematuros, a partir de seu ponto de vista. Para tanto, foram realizados encontros com quatro mães que estavam acompanhando seus bebês num hospital público de Assis (SP), aplicando entrevista semi-estruturada e aberta, a partir de alguns itens norteadores previamente definidos. Constitui-se uma pesquisa de caráter qualitativo, desenvolvida através do Método Psicanalítico, tomando-se como referencial teórico os conceitos psicanalíticos e as contribuições da Teoria de Família para análise dos dados. Os resultados sugeriram a prevalência de sentimentos ambíguos quanto à prematuridade, tanto para as mães como para o grupo familiar em geral. Da mesma forma, a vivência do papel materno diante da prematuridade sugeriu ligações com a história familiar de cada uma das mães na relação com suas próprias mães. O prematuro pareceu assumir um papel regulador dentro da família. Tanto o nascimento prematuro como a vivência do processo de hospitalização, representaram fatores que podem contribuir para a continuidade do sentimento de coesão e grupalidade e para o resgate da identidade familiar. O presente estudo aponta para a importância dos processos de humanização no ambiente hospitalar, bem como para a necessidade de ampliação da atuação do psicólogo hospitalar junto à equipe multiprofissional, ao paciente e à família também na prevenção dos sofrimentos decorrentes dos processos de hospitalização. Palavras-chave: Família – aspectos psicológicos; maternidade; prematuros; Unidade de Tratamento Intensivo; psicanálise; psicologia hospitalar. MEIRA, B. B. A. Prematurity: A study on familiar psychodynamic of mothers accompanying premature infants. Assis, 2005. 233 p. (Dissertation on Psychology) – Faculdade de Ciências e Letras, Assis Campus, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. ABSTRACT We know that woman’s dynamic and, mostly, familiar dynamic suffer intense transformations when a baby comes, since the decision of having a child is resultant from the interaction of a series of reasons, whether conscious or unconscious. Therefore, pregnancy represents an existential transition, relevant not only in a woman’s life, but in family’s life as a whole, because it involves significant changes, reorganizations and learning. However, what happens when a child is born prematurely? How this mother and this family behave, since they had been prepared themselves to follow a natural gestational sequence and abruptly, due to a factor that seems external and extrinsic to the motherly and familiar dynamic, they face the situation of prematurity? The objective of this research consisted in study the aspects of familiar psychodynamic of mothers accompanying premature infants, as of they point of view. Thereunto, it was performed appointments with four mothers accompanying their children in a state hospital in Assis (SP, Brazil), having an open and semi-structured interview, starting from some directional items defined previously. It was a qualitative research, developed through Psychoanalytic Method, having as theoretical reference the psychoanalytical concepts and the contributions of Family Theory in order to analyze the data. Results suggested that ambiguous feelings prevail as related to prematurity, as for mothers and for the familiar group in general. Thus, the experience of mother role before prematurity suggested bounds with familiar history of each mother in the relationship with their own mothers. The premature infant seemed to take a regulated role inside the family. The premature birth, as well as the experience of hospitalization process, represents factors which can contribute to continue the group and cohesion feeling and to rescue the familiar identity. This study indicates the importance of humanization processes in the hospital environment, as well as the need of increase hospital psychologist acting upon multi-professional team, upon the patient and the family, also as related to avoid the suffering arising from hospitalization processes. Key-words: Family – psychologic aspects; motherhood; premature; Intensive Care Unit; psychoanalysis; hospital psychology. SUMÁRIO PALAVRAS INICIAIS 10 1- INTRODUÇÃO 14 2- ASPECTOS PSICOLÓGICOS DA GESTAÇÃO 22 2.1- Algumas considerações sobre os aspectos psicológicos da gestação 22 2.2- O recém-nascido pré-termo (prematuro) 43 2.3- Reações parentais ao nascimento de um bebê pré-termo 53 3- A FAMÍLIA E AS ABORDAGENS PSICANALÍTICAS 62 4- OBJETIVOS 83 4.1- Objetivo geral 83 4.2- Objetivos específicos 83 5- ASPECTOS METODOLÓGICOS 84 5.1- Método 84 5.2- Local, instrumento e procedimentos para coleta de dados 88 5.3- Aspectos éticos 92 6- APRESENTAÇÃO DAS FAMÍLIAS 94 1- Primeiro caso: A família Cruz 94 2- Segundo caso: A família Soares 111 3- Terceiro caso: A família Alves 131 4- Quarto caso: A família Pereira 147 7- DISCUSSÃO 165 8- CONSIDERAÇÕES FINAIS 215 9- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 219 10- ANEXOS 227 10 PALAVRAS INICIAIS O meu interesse pelo tema do presente estudo, surgiu a partir de um trabalho de pesquisa realizado no setor de Pediatria de um hospital do interior paulista, mais precisamente na cidade de Presidente Prudente. Nessa época, estava atuando nesse setor, realizando atendimentos e acompanhamentos psicológicos com as crianças internadas, assim como seus familiares acompanhantes, constituídos, em sua grande maioria, por mães. Este fato, aliado às minhas percepções advindas da prática profissional hospitalar, sensibilizou-me e comecei a mudar o enfoque que, comumente, é apresentado diante da doença e da situação de hospitalização. Geralmente, diante dessas situações, somos levados a direcionar nosso olhar primeiramente ao doente, à pessoa que está internada, em sofrimento e acometida por uma enfermidade. Neste caso, em se tratando de crianças hospitalizadas, preferi direcionar meu olhar àquelas que permaneciam lado a lado com os pacientes, dedicando-se exclusiva e exaustivamente a essa tarefa: as mães acompanhantes. Concomitantemente com a prática profissional hospitalar, nessa época eu também freqüentava o curso de Especialização em Psicologia da Saúde oferecido pela UNESP de Bauru, onde deveríamos desenvolver uma pesquisa para a elaboração de uma monografia como requisito para a obtenção do título de especialista na área. Surgia, então, uma oportunidade de poder estudar o que mais chamava a atenção em minha atuação: a situação materna diante da hospitalização de um filho. Decidi então enfocar nessa pesquisa dois aspectos que me eram muito nítidos no 11 contato com as acompanhantes: a questão do estresse enfrentado pelas mesmas e os aspectos sócio-emocionais inter-relacionados com o estresse1. Minha preocupação principal era investigar e descobrir quais eram os conflitos surgidos no âmbito familiar das mães acompanhantes, qual era a sua natureza, a quais questões estavam relacionados, quais recursos estavam sendo mobilizados para lidar com tais conflitos, se esses recursos estavam sendo suficientes e por quê. De forma geral, senti necessidade de me aprofundar nessas questões, procurando realizar novas descobertas, para que fosse possível, a partir disso, buscar novas e mais eficientes intervenções psicológicas no âmbito hospitalar. Um dos instrumentos utilizados para a coleta de dados foi o Teste do Desenho em Cores da Família (T. D. C. F.) concebido inicialmente por Maggi em 1970, o qual se caracteriza como uma técnica projetiva gráfica. Sua interpretação advém da análise de determinados sinais gráficos e de respostas significativas do questionário sobre o desenho realizado, apoiando-se num quadro referencial para a análise do T. D. C. F., nos critérios objetivos entre T. D. C. F. e Teoria Sistêmica da Família e na classificação das categorias de interação familiar em função do nível de desadaptação destas categorias. As categorias da interação familiar a serem observadas diante da aplicação deste instrumento são as referentes à comunicação, regras, papéis, liderança, conflitos, afeição, individuação, integração e auto-estima, ou seja, como todas essas categorias estavam sendo vivenciadas no interior das famílias estudadas. 1 MEIRA, B. B. A.; VALLE, T. G. M. Nível de estresse das acompanhantes de pacientes internados no setor pediátrico e os aspectos sócio-emocionais inter-relacionados. In: NEME, C. M. B.; RODRIGUES, O. M. P. R. (orgs). Psicologia da saúde: perspectivas interdisciplinares, São Carlos: Rima, 2003. p. 193-222. 12 Dentre os resultados obtidos com este instrumento, um dos aspectos que mais me chamaram a atenção, foi o fato de que a categoria interacional referente à resolução de conflitos dentro do âmbito familiar das mães acompanhantes foi a que se apresentou unanimente disfuncional. Dito de outra forma, 100% dos sujeitos estudados manifestaram dificuldade em resolver os conflitos surgidos no contexto familiar de forma funcional. Foi inevitável que uma série de outros questionamentos surgissem a respeito desse resultado em particular, desta categoria apontada pela pesquisa realizada como a mais disfuncional, ou seja, a categoria referente à resolução de conflitos. As mães estavam no hospital em virtude do acompanhamento de um filho, eram mães acompanhantes, estavam naquele momento ali, como mães acompanhantes. Mas, tanto as mães como seus filhos, faziam parte de uma estrutura maior, a estrutura familiar. Os meus questionamentos, então, apontavam na direção de realizar uma investigação mais aprofundada com o intuito de se compreender o que a hospitalização e todas as suas vivências particulares representavam e como incidiam nesta estrutura maior, nesta família que contava com um membro doente e com uma mãe acompanhante. Tomando como ponto de partida a questão dos conflitos e a ótica materna, decidi mergulhar num universo fascinante e envolvente, o universo da própria maternidade, no momento da maternidade, ou seja, no momento do parto. Desse modo, diante da possibilidade de continuar as investigações na dissertação de Mestrado, passei a delinear um projeto de pesquisa onde fosse possível investigar e compreender melhor tais questões. 13 Sob esse prisma, optei por estudar em mães de bebês prematuros, aspectos de sua dinâmica emocional e familiar a partir de seu ponto de vista. No presente trabalho, procuraremos nos dedicar à abordagem desses aspectos, acompanhando as mães que vivenciam essas questões de forma bastante íntima e única. É interessante pontuar que a opção pelo estudo da dinâmica materna e familiar em âmbito hospitalar, ocorreu após a constatação de que geralmente trabalhos realizados nesse âmbito tendem a eleger como foco principal os pacientes, conforme ressaltado anteriormente. Da mesma forma, a opção teórica e metodológica feita por mim para fundamentar e operacionalizar minha proposta de trabalho, ocorreu por se tratar de um estudo qualitativo; elegi para tanto, o Método Psicanalítico, tomando-se como referencial teórico os conceitos psicanalíticos e a Teoria de Família como um princípio norteador, pois a mesma pode oferecer grandes contribuições à abordagem não somente da psicodinâmica materna e sim da psicodinâmica familiar como um todo. 14 1- INTRODUÇÃO Sabemos que a dinâmica materna e, sobretudo, a dinâmica familiar, sofrem intensas transformações com a chegada de um filho, uma vez que a mulher que até então exercia na relação o papel social basicamente limitado à situação de esposa/companheira, passa a assumir então o papel materno. De maneira análoga, a relação diádica marido/mulher transcende com o nascimento do filho para uma relação triádica. No entanto, o que ocorre quando o nascimento de um filho se dá de forma prematura? Como se comportam essa mãe e essa família que haviam se preparado para uma seqüência gestacional natural e, abruptamente, por fatores que muitas vezes parecem ser externos e extrínsecos à dinâmica materna e à dinâmica familiar, vêem-se diante da situação de prematuridade? A partir da revisão bibliográfica, identificamos que apenas recentemente os estudos brasileiros têm-se voltado mais para os familiares dos pacientes e para a equipe de saúde. Nos detivemos especialmente nos estudos voltados para a importância da ligação estabelecida entre mãe e filho desde os primeiros momentos após o nascimento. Neste sentido, o papel exercido pela figura materna na adaptação da criança e os cuidados maternos dispensados a ela durante a infância, ou seja, as interações precoces entre mãe e bebê constituem as matrizes nas quais se constrói o desenvolvimento infantil. 15 De forma geral, a presença da mãe age como um facilitador para um conjunto significativo de aspectos do desenvolvimento do bebê. Esses aspectos envolvem tanto características emocionais como sensório-perceptivas e cognitivas, construídas a partir do elo criado entre ambos, mãe e bebê. Devido ao tema de nossa pesquisa, detivemo-nos ainda nos estudos que focalizam o vínculo mãe-filho e dinâmica materna, especificamente em situação de prematuridade e hospitalização em U.T.I. neonatal, bem como àqueles que abordam a eficácia do Método Mãe-Canguru (M.M.C.), como uma intervenção hospitalar capaz de proporcionar maior contato entre mãe e bebê prematuro, cujo objetivo é a estimulação do vínculo entre ambos e a participação familiar como um todo. Consideramos importante destacar que ao buscarmos pesquisas relativas a este tema, percebemos que aquelas realizadas por profissionais de enfermagem são as que mais se destacam, ressaltando a importância dos enfermeiros na atuação junto da mãe e seu bebê prematuro. Entretanto, entendemos ser fundamental também a atuação paralela de uma equipe multiprofissional que conte com a presença de um psicólogo para auxiliar não somente a mãe, mas todo o grupo familiar a lidar com os conflitos e angústias advindos da situação de prematuridade. Neste sentido, ressaltamos o estudo de Gandra (2002), que focaliza a importância de se ter especial atenção a um trabalho de apoio psicológico ao recémnascido prematuro através de seus pais, mobilizando seus recursos internos para enfrentarem uma situação tão difícil, pois além da delicada situação do filho, muitas vezes são também alvo de uma pressão social que os rotula de insensíveis ou desumanos por evitarem o vínculo com seu bebê. 16 Dentre os trabalhos consultados, destacamos os de Scochi et al. (2003), que descrevem as ações da enfermagem realizadas em unidades neonatais de risco em um hospital-escola do interior de São Paulo, no sentido de favorecer o vínculo e o apego mãe-filho. Os autores consideram que o acesso e permanência dos pais e as visitas dos demais familiares aos bebês de risco, têm favorecido o estabelecimento do vínculo e apego mãe-filho e família, observando-se maior interação, em especial da mãe e maior interesse no aprendizado dos cuidados para com o bebê. Nesta perspectiva, encontramos valiosas contribuições sobre o Método MãeCanguru em Guimarães (2001); Fonseca (2002); Furlan et al. (2003); Silva (2003) e Toma (2003). Estes autores salientam que este método pode ser considerado um instrumento facilitador do vínculo mãe-bebê e da amamentação, bem como uma estratégia de humanização nos cuidados da enfermagem, uma vez que o impacto do nascimento prematuro e da hospitalização em U.T.I. neonatal revela que não somente a criança, mas também a sua família tem necessidades especiais. Igualmente, através deste programa de intervenção, a mãe pode diminuir seu sofrimento, sua ansiedade e os conflitos em geral, vivenciados por ela, frente ao nascimento de um filho prematuro. Sobre os fatores de alto risco e ansiedade em mães de recém-nascidos prétermo, Valle (2002) pontua que na gravidez de alto risco, a ansiedade materna é um aspecto que deve ser levado em conta, por ocasião do nascimento de um recémnascido pré-termo, pois a visão de um filho hospitalizado em U.T.I. neonatal mobiliza uma série de fantasias aterrorizantes, similares às fantasias primevas. Este estudo, realizado no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, teve como objetivo investigar os tipos de ansiedade materna e o equilíbrio psíquico, bem como refletir ainda sobre medidas de prevenção da doença, promoção e 17 preservação da saúde física e mental, com repercussões na família e na sociedade. Foram registrados e analisados os graus de ansiedade materna antes e após o parto, na primeira visita à U.T.I. neonatal e ao iniciar o aleitamento materno na sala do Projeto Mãe-Canguru. A autora do estudo ressalta que as consultas terapêuticas realizadas com as vinte mães participantes, possibilitou-lhes entrar em contato com as fantasias inconscientes representadas por desejos inconscientes, sentimentos e mecanismos de defesa, bem como fortalecer o vínculo da dupla mãe e bebê, abreviando o período de internação, o que implica em menor custo hospitalar. Belli (1999) procurou investigar as representações sociais das mães com filho internado em U.T.I. neonatal na Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no município do Rio de Janeiro, identificando duas categorias e seus respectivos temas: 1- A constatação do filho real: a fragilidade do filho, uma realidade difícil, uma vivência única e compartilhada e, 2- A hospitalização do filho: U.T.I. como lugar de risco e recuperação, o risco de vida, a esperança de vida, uma realidade de espera, a superação de barreiras. Este estudo indica que a experiência vivenciada pelas mães de recém-nascido prematuro ou doente, internado em U.T.I. neonatal constitui-se, efetivamente, num processo de (re) significação de suas representações sociais, sendo que este movimento possibilita a participação legítima e efetiva das mães junto ao filho durante a hospitalização, e que proporciona elementos para estas mães vivenciarem tal experiência. Ainda sobre a hospitalização em U.T.I. neonatal, identificamos três importantes contribuições em Pauli e Bousso (2003), Rossatto – Abede e Ângelo (2002) e Pedroso 18 (2001). Os dois primeiros estudos contribuem no sentido de enfatizar a presença da equipe de enfermagem como um importante fator para a vivência materna e familiar no contexto de acompanhamento hospitalar, enfocando as crenças que permeiam a assistência da equipe de enfermagem. Os estudos indicaram que, dentre os profissionais da equipe de saúde, a enfermeira, mesmo encontrando dificuldades, parece estar abandonando a crença de que a U.T.I. é uma unidade tecnicista, passando a buscar estratégias para prestar uma assistência mais humanizada. Pedroso (2001), procurou desvendar o significado do cuidar da família para a equipe de enfermagem, sendo que o profissional de enfermagem na U.T.I. neonatal tem o bebê como centro de seus cuidados e a família como um elo para o cuidado da criança após a alta, havendo a necessidade de, através de suas intervenções, contribuir para que a família se torne apta nos cuidados com a criança. Prosseguindo em nosso levantamento bibliográfico quanto à situação materna diante da hospitalização/ doença e do acompanhamento hospitalar, encontramos interessantes produções científicas que demonstram o crescente interesse na realização de pesquisas acerca destas temáticas. Sugano et al. (2003) realizaram uma pesquisa qualitativa na Unidade de Internação Pediátrica de um Hospital Escola do município de São Paulo, para verificar como as mães acompanhantes identificavam a enfermeira e outros componentes da equipe de enfermagem e conhecer suas percepções acerca dos cuidados prestados pela equipe. Na primeira categoria, constatou-se a dificuldade materna na identificação da equipe de enfermagem e, na segunda categoria, constatou-se que a atividade de enfermagem era percebida como subordinada à área médica. Os autores concluíram que o cuidado realizado por essa equipe, apesar de ser visto como positivo, ainda 19 precisa ser apresentado às mães como profissional e autônomo, a fim de superar a visão estereotipada da enfermagem. Encontramos em Dias (2000), aportes referentes ao apego mãe-filho como base para a assistência de enfermagem neonatal, abordando as necessidades emocionais do binômio mãe e filho nas relações do processo de desenvolvimento da criança. A relevância deste binômio encontra-se no elevado valor da relação simbiótica para a saúde física e emocional da criança, considerando que a atuação da enfermagem no processo de hospitalização exerce influências consideráveis sobre a formação do vínculo materno. Como resultado deste estudo, que consistiu na análise de trinta e quatro estudos científicos publicados na literatura internacional no período de 1995 a 2000, evidenciouse que o apego pode ser tanto positivo como negativamente afetado por diferentes variáveis psicossociais e que, a enfermagem, ao prestar assistência materno-infantil, deve considerar que a preocupação com apego começa muito precocemente. Oliveira (1998), realizou um estudo com mães acompanhantes objetivando a compreensão das interações vivenciadas e significados atribuídos à experiência da hospitalização. Dos resultados alcançados, emergiu o fenômeno: “indo em busca de uma solução”, que representa as tentativas da mãe resolver o problema da criança antes da hospitalização e, “atravessando uma situação difícil”, que caracteriza a fase em que a mãe vivencia a hospitalização junto do filho internado. A partir destes fenômenos identificou-se a categoria central: “vivenciando com o filho uma passagem difícil e reveladora”. De forma similar, observamos uma ocorrência que se repetiu por diversas vezes: averiguamos que vários estudos realizados sobre a prematuridade referem-se à área 20 da Enfermagem, o que pode sugerir ser este um campo bastante fértil e que merece uma exploração maior dentro da Psicologia (BELLI, 1999; DIAS, 2000; FONSECA, 2002; FREITAS, 2001; FURLAN et al., 2003; JANICAS, 2001; KESSERLING, 2001; PEDROSO, 2001; ROSSATTO-ABEDE e ANGELO, 2002; SCOCHI et al., 2003; SOARES, 2000; TOMA, 2003). Convém mencionar que durante o processo de levantamento bibliográfico, não identificamos produções com a proposta de analisar como objetivo central a psicodinâmica familiar em relação à prematuridade, o que constitui um dos nossos objetivos no presente trabalho. Por isso nossa preocupação em focalizar não somente a dinâmica materna, mas a familiar como um todo. Assim, organizamos nosso trabalho de forma a oferecer inicialmente uma visão geral acerca dos aspectos psicológicos da gestação, como se dá a adaptação ao papel materno e algumas contribuições da Teoria Psicanalítica sobre a interação mãe-bebê. Para tanto, lançamos mão das contribuições de três autores específicos que trabalharam com essa temática em seus estudos: René Spitz, Donald Winnicott e John Bolwby. Posteriormente, nos dedicaremos especificamente à situação de prematuridade, enfocando a classificação dos bebês pré-termo, a etiologia e fatores desencadeantes de partos prematuros, a gestação de risco e bebês de risco e ainda o atendimento hospitalar e intervenções junto ao bebê recém-nascido pré-termo. Em seguida, nos dedicaremos à reflexão sobre as reações parentais ao nascimento de um bebê prematuro, trazendo os aspectos psicológicos que se relacionam à hospitalização infantil como um todo, para posteriormente nos direcionarmos às reações parentais diante do nascimento de um bebê pré-termo. 21 Num segundo momento, focalizaremos as abordagens psicanalíticas ou psicodinâmicas de família, através de três de seus representantes – Pincus e Dare, Isidoro Berenstein e, mais especificamente, Alberto Eiguer. Acreditamos que esses autores poderão nos fornecer subsídios para tentarmos compreender de forma mais aprofundada a psicodinâmica familiar diante da situação de prematuridade; uma vez que partimos do pressuposto de que mãe e bebê prematuro pertencem a um universo que está muito além dos muros hospitalares: a família, com sua organização, funcionamento, cultura, estrutura, enfim com seu passado, presente e futuro. Desta forma, após a realização da fundamentação teórica de nosso estudo, buscaremos elucidar os aspectos metodológicos, no que tange aos objetivos propostos, local em que desenvolvemos a pesquisa, instrumento para coleta de dados e os procedimentos adotados para tal. Reservamos ainda neste tópico, um espaço especial para os aspectos éticos que envolvem a pesquisa com seres humanos. A seguir, apresentaremos as histórias das quatro famílias participantes do estudo – família Cruz, família Soares, família Alves e família Pereira – para posteriormente discutirmos os conteúdos alcançados com as entrevistas realizadas e finalizarmos tecendo algumas considerações finais. 22 2- ASPECTOS PSICOLÓGICOS DA GESTAÇÃO 2.1- Algumas considerações sobre os aspectos psicológicos da gestação Quando uma criança é concebida, percebe-se tanto na mãe quanto no pai, uma organização de fantasias ou expectativas ligadas à concepção e ao desenvolvimento da criança. Do ponto de vista biológico, a gravidez se inicia com a concepção. Do ponto de vista psicológico, entretanto, há uma história pregressa que envolve a mãe e o pai na qual já se encontram reservados alguns padrões de relacionamento a serem estabelecidos com a chegada desta criança. O nascimento de um bebê representa um dos eventos mais desafiadores na vida de um ser humano, talvez o mais desafiador deles. Representa uma oportunidade para o crescimento pessoal e maturidade, bem como uma oportunidade excitante para promover o desenvolvimento e ser responsável por outro ser humano: é uma chance de perpetuação, uma oportunidade de “tornar-se uma família”. Paralelamente ao contexto da fantasia familiar, há um significado psicológico específico da gestação para a mãe, que poderá facilitar ou dificultar na construção de suas relações de maternagem. Igualmente, a gravidez representa uma transição existencial que faz parte do processo normal do desenvolvimento. As transições são marcos importantes na vida de uma pessoa, que envolvem mudanças significativas, reorganizações e aprendizagens. Ter um filho, assim como iniciar uma vida profissional, casar-se, descasar-se, 23 aposentar-se, são exemplos de situações de transição que podem ou não ser vividas como crises. De acordo com as proposições de Maldonado (1985), a transição proporcionada pela gravidez envolve a necessidade de reestruturação e reajustamento em várias dimensões. Em primeiro lugar, verifica-se a mudança de identidade e uma nova definição de papéis – a mulher passa a se olhar de forma diferente. No caso da mulher primípara, a gestante além de ser filha e ser mulher, passa a ser mãe; mesmo no caso da multípara, verifica-se uma certa mudança de identidade, uma vez que ser mãe de um filho é diferente de ser mãe de dois e assim por diante, pois com a vinda de cada filho toda a composição da rede de intercomunicação familiar se altera. A complexidade das mudanças provocadas pela chegada de um bebê não se restringe apenas às variáveis psicológicas e bioquímicas, os fatores sócio-econômicos também são fundamentais. Numa sociedade em que, principalmente nas áreas urbanas, a mulher costumeiramente trabalha fora, também é responsável pelo orçamento familiar e cultiva interesses diversos, o fato de ter um filho acarreta conseqüências bastante significativas. Privações reais, sejam afetivas ou econômicas, aumentam a tensão, podem intensificar a regressão e a ambivalência, aspecto este que voltaremos a examinar. A preocupação com o futuro pode aumentar as necessidades da gestante e intensificar sua frustração, gerando, conseqüentemente, raiva e ressentimento que a impedem de encontrar gratificação na gestação. É importante salientarmos que a decisão de ter um filho é resultante da interação de vários motivos, conscientes e inconscientes. Deste modo, as respostas à pergunta “a que veio esta criança” pode contemplar uma vasta gama de motivos, como aponta Maldonado (1985): aprofundar e dar uma expressão criativa a uma relação homem- 24 mulher importante; concretizar o desejo de transcendência e continuidade, elaborando a angústia de morte e a esperança da imortalidade (simbolizado pela manutenção do nome da família); manter um vínculo muitas vezes já desfeito; competir com outros membros da família (quem teve os filhos primeiro ou quem tem o maior número de filhos); dar um filho para a própria mãe, quando a mulher passa a comportar-se frente ao filho como uma irmã mais velha, renunciando ao exercício da função materna para “indenizar” a própria mãe, quando esta não conseguiu ter todos os filhos que desejava ou quando perdeu algum; preencher o vazio de um companheiro ou garantir que não vai permanecer sozinha (motivação comum entre mulheres solteiras); busca de extensão de si próprio, o filho com a missão de preencher desejos e lacunas na vida dos pais. Soifer (1980), postula a existência de várias etapas pelas quais a gestante passa, da concepção ao puerpério, esclarecendo os vários surtos de ansiedade específica apresentados, bem como as fantasias subjacentes a cada momento. Para esta autora, toda gestação implica inicialmente num sentimento de ambivalência básica: de um lado, o desejo de ter a criança, ou seja, sua aceitação; de outro, a rejeição à gravidez, ou seja, o temor da gestante ser destruída pela gestação. Desta forma, quando uma concepção se realiza e é mantida, o desejo de ser mãe é predominante à rejeição. Salienta-se que as mensagens de aceitação ou rejeição, embora possam ser explicitadas verbalmente, constituem-se basicamente de processos inconscientes. Ampliando um pouco mais a análise do sentimento de ambivalência materna, Parker (1997), aponta que este sentimento é uma experiência compartilhada de diversas formas por todas as mães, na qual coexistem lado a lado, em relação aos 25 filhos, sentimentos de amor e ódio. A autora propõe em sua obra “A mãe dividida: a experiência da ambivalência na maternidade”, que grande parte do sentimento de culpa ao qual as mães estão habituadas origina-se na dificuldade de enfrentar os sentimentos complexos e contraditórios provocados pela ambivalência materna. Para ela, a cultura ocidental desempenha um papel primordial na produção da dificuldade, praticamente proibindo o tipo de discussão plena e análise que poderiam revelar a contribuição oculta que a vivência da ambivalência na maternidade poderia dar ao exercício criativo da própria maternidade. O amor é, naturalmente, uma emoção mais fácil de admitir do que o ódio; ele é aceito como parte integrante das mães. A ausência de amor é reputada como catastrófica [...]. Mas para a maioria das mães, na maior parte do tempo, o ódio fica extremamente invisível – escondido, mascarado, contido – mas nunca obliterado pelo amor à criança [...]. A mãe não odeia conscientemente a criança. E, de fato, tanto o amor quanto o ódio estão enraizados no inconsciente, mas o amor tem por assim dizer, mais pronto acesso à luz (PARKER, 1997, p.22 – 23). Os principais processos inconscientes que em sua opinião tornam problemática a admissão da ambivalência são os mecanismos de projeção e identificação. A projeção fornece um meio de comunicação de inconsciente para inconsciente, entre mãe e filho que pode ser benigno ou maligno. Em sua forma maligna, envolve partes contraditórias ou indesejáveis do eu que são expelidas e projetadas em outras pessoas, às quais são atribuídos vários papéis na subjetividade da pessoa. Se uma mãe projeta inconscientemente aspectos repudiados de si mesma em seu filho, percebe então no filho esses aspectos repudiados nela mesma. 26 Nem sempre as projeções podem se revestir de qualidades problemáticas. Uma mãe pode, por exemplo, atribuir ao feto características que ela aprecia ou admira e posteriormente, observar com satisfação que a criança manifesta essas qualidades. A projeção pode ainda se relacionar à sensação familiar, na qual as mulheres sentem que estão reproduzindo, ou repudiando, no próprio estilo de maternidade, o tratamento que receberam de suas próprias mães. Assim, a imagem que uma mulher tem de sua mãe é determinada por sua experiência de ser criança, uma experiência poderosamente evocada pela presença da própria filha ou filho. Quando uma mulher torna-se mãe, uma identificação com a própria mãe pode ser revivida, ou seja, uma mulher pode sentir-se arrastada de volta para uma identificação com um ser do qual ela pode estar lutando longamente para se separar, por exemplo. Adormecidos há muito tempo, os medos, desejos e ressentimentos em relação à mãe podem ser despertados pela condição de mãe em que ela mesma se encontra. Roziska Parker reconhece o impacto, sobre uma mãe, da maternidade exercida por ela, mas não acredita que isso determine de maneira direta a natureza de seu desempenho maternal. Os sentimentos em relação à sua mãe e em referência a seu ego infantil poderão influenciar o estilo de maternidade de uma mulher, mas não de modo previsível. [...] inúmeras circunstâncias se combinam para afetar a resposta de uma mulher à maternação, variando de seu processo inconsciente, sua saúde física, sua situação sócioeconômica e familiar, a disponibilidade de apoio emocional, até, naturalmente, as contribuições psicológicas específicas de sua prole (PARKER, 1997, p. 107). 27 Na concepção desta autora, as experiências específicas da maternidade produzem inevitavelmente flutuações do sentimento presente na ambivalência. A ambivalência materna não é uma condição estática, mas sim uma experiência dinâmica de conflito perante as oscilações sentidas por uma mãe, em épocas diferentes do desenvolvimento da criança e pode variar de uma criança para a outra. Assim, a ambivalência, em si mesma, não constitui significativamente o problema; a questão principal é o modo como uma mãe administra a culpa e a angústia provocadas pela ambivalência. De maneira sintética, Parker (1997) conclui que contra o reconhecimento da ambivalência que se origina na mãe, a cultura ocidental se defende pela difamação ou idealização desta: “uma mãe difamada é simplesmente odiosa e não tem amor para desperdiçar com a criança. A mãe idealizada é incapaz de odiar, é constante e é irreal” (PARKER, 1997, p. 41). A cautela da sociedade em relação à ambivalência materna, alimentada talvez pelos medos infantis de perda, dos quais ela se defende através da idealização ou difamação das mães, acaba gerando um contexto que infla a culpa materna, tornado a ambivalência, muitas vezes, incontrolável. Ao lado da ambivalência, um outro sentimento que se faz presente de modo peculiar na maternidade e, sobretudo durante a gestação é a ansiedade e os conflitos advindos da forma como a gestante lida com tal sentimento. À medida que o final da gestação e momento do parto se aproximam, se houve o predomínio de ansiedade na gestação, podem se acirrar alguns conflitos básicos na dinâmica materna. Rappaport et al. (1981), distinguem três desses conflitos: o temor de morte passa a não ser somente uma fantasia de transição de gerações, mas também um temor específico de morrer no parto; o desenvolvimento rápido do feto provoca 28 alterações bruscas no esquema corporal materno, causando sensações de estranheza, interferindo na organização espaço-temporal, atualizando nas futuras mães núcleos psicóticos de despersonalização e, a interrupção das relações sexuais que poderiam ocorrer freqüentemente neste período final, podendo, enfim, contribuir para a elevação da ansiedade. Torna-se necessário enfatizar que a vida psíquica da criança não parte de um marco zero com o seu nascimento. As estruturas psíquicas paternais e maternais, bem como os conflitos evolutivos não resolvidos de cada um deles serão atualizados durante a gestação e terão importância fundamental nas expectativas ou fantasias parentais. A criança crescerá com o amor e as fantasias positivas que seus pais depositaram nelas, mas também poderá reagir e sofrer as crises decorrentes do lugar persecutório que ocupa nas fantasias parentais. Este fato nos leva a concluir que, a possibilidade de se compreender tanto a dinâmica saudável quanto patológica de uma criança está intrinsecamente relacionada à compreensão da dinâmica familiar e, consequentemente, as fantasias familiares, ligadas a essa criança desde a sua concepção até o seu nascimento. A partir das considerações expostas acima, a compreensão da psicodinâmica familiar das mães acompanhantes de bebês nascidos prematuramente, será o foco de nossas atenções na presente pesquisa. a) A adaptação ao papel materno Com a transição proporcionada pelo parto, a mulher, aos poucos, passará a lidar com o aspecto real da figura do bebê recém-nascido; o que inevitavelmente fará com que ela dê continuidade à adaptação ao papel materno, processo esse que já havia tido 29 início com a concepção. Rubin (apud BURROUGHS, 1995), afirma que a adaptação ao papel materno consiste em duas fases: fase do aceitar e a fase do assumir. A primeira fase se inicia imediatamente com o parto, tendo a duração de aproximadamente dois dias. Durante essa fase, a mãe necessita de cuidados e proteção, sendo que sua atividade é caracterizada pela passividade e dependência, aceitando o que lhe é oferecido, cumprindo o que lhe indicam, aguardando as ações dos profissionais da equipe de saúde mais do que tomando iniciativas próprias. Não raro haverá a necessidade da mãe relembrar várias vezes o trabalho de parto em busca de detalhes desconhecidos. A revisão desses detalhes poderá auxiliar na preparação para a próxima gestação. Nos primeiros dias, freqüentemente, a mãe fala muito, apresentando uma certa euforia, o que poderá reduzir sua capacidade de concentrar-se em novas informações. De forma geral, a fase da aceitação representa o período no qual a nova mãe aceita os cuidados e apoio dos outros, coincidindo com sua permanência no hospital. Por volta do terceiro dia do puerpério, a mãe estará pronta para afirmar sua independência e sua autonomia. É o início da fase do assumir: a mãe toma as iniciativas, prontifica-se para suas novas responsabilidades, enfim, tenta ser uma “boa mãe”. Nessa fase, encontra-se presente um grande componente de ansiedade; freqüentemente a mãe fica exausta com seu novo papel, troca seu comportamento independente novamente pela dependência. Nessa etapa, seu corpo está sofrendo modificações físicas significativas que colaboram para a sua sensação de fadiga. O leite começa a aparecer e a mãe pode apresentar dúvidas sobre sua capacidade de amamentar seu filho com sucesso. 30 Pode-se afirmar de modo geral que a adaptação ao papel materno é o processo pelo qual o comportamento materno se alinha com a identidade da mulher enquanto mãe. A formação da identidade materna ocorre em cada nascimento, à medida que a ligação entre criança e mãe se forma. Salientamos que talvez esse seja o aspecto essencial do papel e identidade maternos: a questão do vínculo e da ligação afetiva e psicológica que se estabelece entre mãe e bebê, por isso, voltaremos a examinar esse aspecto com maior profundidade mais adiante. Em suma, a transição para a maternidade constitui-se como um processo comportamental complexo. Disso deduz-se que os pais que estiverem mal preparados para as mudanças nos relacionamentos, no estilo de vida e nos papéis relacionados com a integração de um novo membro na família, apresentarão maior dificuldade para enfrentarem a transição necessária. O nível de maturidade da mulher, o contato reduzido da mãe com a criança no caso de prematuros, a falta de um sistema de apoio, ou a saúde prejudicada da mãe são fatores que, segundo Burroughs (1995), podem interferir na adaptação da mulher ao papel materno. Considerando a complexidade existente no processo de transição para a maternidade, Rappaport et al. (1981), reiteram que a qualidade do vínculo mãe-criança não depende somente de características de personalidade da mãe, mas também daquelas trazidas pelo bebê já ao nascer e da interação entre esses fatores. As contribuições de Brazelton (1988), sugerem que a essência do papel de pai ou mãe não repousa sobre aquilo que se faz com o bebê, mas principalmente no intercâmbio, no feedback intensamente gratificante que se pode estabelecer entre o bebê e si mesmo. Os diferentes modos para adquirir esse intercâmbio são numerosos e altamente individualizados. 31 O autor afirma que um dos melhores recursos para que se adquira um bom papel como pai ou mãe certamente está na liberdade de conhecer a si mesmo, de seguir as próprias inclinações, sendo que os melhores sinais para se saber quando se está no caminho certo com o bebê, são aqueles fornecidos pelo próprio bebê. O apego e os cuidados parentais, segundo a concepção de Brazelton, não são temas simplesmente relacionados aos cuidados, mas também aos processos de aprendizado sobre como lidar com uma vasta gama de sentimentos que podem incluir a cólera, a frustração, o desejo de fugir do papel e, até mesmo de abandonar a criança. Talvez se não existissem esses sentimentos negativos de desapontamento, frustração e fracasso, os sentimentos de sucesso não seriam tão compensadores para os pais. Ao longo da revisão bibliográfica sobre a questão do papel materno, confrontamo-nos com interessantes contribuições. Alves (1993), investigou a construção social da maternidade e a sexualidade enquanto componentes da identidade feminina em onze mulheres grávidas de classe baixa, na cidade de Maringá, estado do Paraná. Essa autora constatou que, para algumas mulheres do grupo estudado, ser mãe é um componente do ser mulher, um papel social a mais a ser desempenhado por ela – a mulher; enquanto que para outro grupo, ser mãe é a essência de suas identidades sexuais, visto que para elas, o ser mãe está igualado ao ser mulher. O estudo realizado por Stasevskas (1999), buscou a compreensão do que um grupo de quinze jovens mães pensava sobre ser mãe, considerando as influências histórico-sociais. Essa autora concluiu que tanto o desejo de ser mãe como a maneira de sê-lo sofre influências muito antigas e ainda muito atuantes, o que, neste momento 32 de transição dos papéis sociais, faz com que se crie um descompasso entre a antiga e a atual condição de mulher também no seu modo de ser mãe. Destacamos o estudo efetuado por Mazzini (2003), que objetivou a compreensão de como se efetiva a construção da identidade materna em dez adolescentes gestantes/ mães primíparas, de camadas populares, atendidas pelo Centro de Saúde Reprodutiva e Núcleo de Adolescentes da cidade de Piracicaba, interior do estado de São Paulo. Entre os resultados alcançados pela autora acerca da construção da identidade materna na adolescente grávida, encontra-se um em particular que corrobora as idéias expostas acima, ou seja, de que o processo de construção da identidade feminina, iniciado na família, é mantido pela ação sócio-cultural, e vinculado ao papel de reprodutora: ser mulher é ser mãe. Acrescentando à vivência do papel materno a questão de gênero, Chodorow (2002), faz uma crítica à teoria psicanalítica. Segundo sua concepção, essa teoria define um relacionamento mãe-filho de determinada qualidade, argumentando que as bases para a participação da mãe neste relacionamento foram lançadas em seu relacionamento inicial com a própria mãe. Contudo, as bases para o cuidado infantil, são também estabelecidas no relacionamento inicial do menino com a mãe. O primeiro relacionamento gera uma situação relacional básica e cria capacidades potenciais de cuidar por todos aqueles que foram cuidados por mães, e também um desejo de recriar este relacionamento. O enfoque da autora sobre o relacionamento mãe-filho na sociedade industrial ocidental revela as atitudes e expectativas conscientes e inconscientes que todas as pessoas – masculinas e femininas – possuem de suas mães em particular e das 33 mulheres em geral. Essas expectativas integram-se na reprodução da maternidade, mas as expectativas não são suficientes para explicá-la ou assegurá-la. Nancy Chodorow (2002), argumenta que o relacionamento com a mãe difere sob aspectos sistemáticos para meninos e meninas, com início no primeiro período. O desenvolvimento da maternidade em meninas – e não em meninos – resulta de experiências relacional-objetais diferenciais, e dos modos como essas experiências são internalizadas e organizadas. O desenvolvimento no período infantil, e em particular o surgimento e resolução do complexo edípico, acarretam reações psicológicas, necessidades e experiências diferentes, as quais, no caso dos meninos, eliminam ou reduzem as possibilidades relacionais para o cuidado paterno e materno, enquanto que, no caso das meninas, mantêm-nas alertas e as amplificam. Ao considerarmos as questões referentes ao papel materno e à maternidade como um todo, é inegável que este tema, ainda hoje se configure como um tema sagrado, cercado de tabus e mistérios: parece-nos extremamente difícil questionar o amor materno. Anteriormente aos estudos citados acima, podemos encontrar na década de oitenta, uma autora que propôs e realizou um estudo sobre o sentimento de amor materno como algo natural e sempre presente na mulher. Para Badinter (1985), há a necessidade de constatar que existem demasiadas exceções quanto à regra “universal” do amor materno. O amor no reino humano, não pode ser visto simplesmente como uma norma, pois nele intervém inúmeros fatores que não a respeitam. Ao contrário do reino animal, que permanece imerso na natureza e submetido ao determinismo, o humano (no caso a 34 mulher), é um ser histórico, o único ser capaz de simbolizar, o que o eleva acima da esfera puramente animal. [...] à idéia de ‘natureza feminina’, que cada vez consigo ver menos, prefiro a de uma multiplicidade de experiências femininas, todas diferentes, embora mais ou menos submetidas aos valores sociais cuja força calculo. A diferença entre a fêmea e a mulher reside exatamente nesse ‘mais ou menos’ de sujeição aos determinismos. A natureza não sofre tal contingência e essa originalidade nos é própria (BADINTER, 1985, p.16). A autora acrescenta que o amor materno é apenas um sentimento humano e que como todo sentimento, é incerto, frágil e imperfeito. [...] observando-se a evolução das atitudes maternas, constata-se que o interesse e a dedicação à criança se manifestam ou não se manifestam. As diferentes maneiras de expressar o amor materno vão do mais ou menos, passando pelo nada, ou quase nada (BADINTER, 1985, p.2223). A conclusão de Badinter refere-se, portanto, ao fato de que o amor materno não é um sentimento que sempre fez parte da natureza intrínseca feminina; é um sentimento construído, que se desenvolve sob a influência das variações sócioeconômicas da história, e pode existir ou não, dependendo da época e das circunstâncias materiais em que vivem as mães. Encontramos correlações com os pressupostos contidos nas reflexões de Elizabeth Badinter nas obras de Roziska Parker (1997) e Aminatta Forna (1999). Conforme enfocamos anteriormente, Parker (1997) salienta a dificuldade inerente à sociedade ocidental em lidar com o sentimento de ambivalência materna, bem como o 35 tabu criado acerca dessa temática, o qual modula as representações culturais do ser mãe e os dispositivos sociais da maternidade. Ainda que as definições de feminilidade como uma identidade vivida para as mulheres tenham ganhado, graças ao movimento feminista, certa flexibilidade no decorrer das últimas décadas, o ideal feminino em relação à maternidade permaneceu estático através dos tempos. Para a autora, a representação da maternidade ideal é ainda, quase que exclusivamente, composta de espírito de renúncia, amor irrestrito, conhecimento intuitivo na criação de filhos e um prazer genuíno em cuidar de crianças. Forna (1999), também aborda aspectos semelhantes na obra “Mãe de todos os mitos: como a sociedade modela e reprime as mães”. Para esta estudiosa, o mito contemplado na maternidade é o mito da “mãe perfeita”, aquela que deve ser devotada não somente aos filhos, mas a seu papel de mãe; aquela que compreende, que oferece amor total e que se entrega totalmente; aquela que deve ser capaz de enormes sacrifícios, ser fértil e ter instinto maternal, enfim, é aquela que deve incorporar todas as qualidades tradicionalmente associadas à feminilidade como acolhimento, ternura e intimidade. A ideologia que acompanha o mito da mãe perfeita só pode conceber uma maneira de ser mãe, um estilo de maternidade exclusiva, aprisionada, mãe em tempo integral. Apesar das mudanças no trabalho e na vida de milhões de mulheres, apesar de falarem na era ‘pósfeminismo’, a atitude em relação as mulheres continua colada na idade das trevas. [...] A visão da maternidade idealizada ainda permeia todos os aspectos da vida, da divisão do trabalho doméstico às leis trabalhistas, às normas legais e políticas, e continua a se infiltrar na cultura popular, em livros, televisão, filmes e jornais (FORNA, 1999, p. 11-12). 36 Com efeito, Forna também enfoca um outro sentimento que se faz presente na dinâmica da maternidade, a culpa, a qual aparece paralelamente à imagem idealizada da maternidade. Segundo sua concepção, a culpa ficou tão fortemente associada à maternidade que passou a ser considerada como um sentimento natural, sendo que na realidade, as mães sentem-se culpadas porque a sociedade as faz se sentirem assim. Aminatta Forna postula que em cada sociedade há uma tendência em acreditar que existe somente um modo de criar filhos, que é o modo adotado naquela cultura. Entretanto, assim como Badinter, salienta que a maternidade é um constructo social e cultural que decide não só como criar filhos, mas também quem é o responsável pela criação dos mesmos. A instituição da maternidade, ou seja, a construção cultural e social de como a mãe deve criar os filhos, é a estrutura que promove e sustenta o mito da Mãe Perfeita, ao qual todas devem aspirar. Em certo nível, a Maternidade é uma idéia abstrata, não uma realidade. Não descreve como a maioria das mulheres são mães, desejam ser mães ou se podem ser mães. Em toda parte, mas principalmente na moderna sociedade ocidental, a maternidade é produto do tempo, do lugar e circunstância. Mas hoje, aqui e agora, o mito da maternidade é apresentado como atemporal, universal e natural (FORNA, 1997, p.301). Rosa (2001), realizou uma pesquisa sobre a percepção do papel materno em mulheres de diferentes gerações. Os sujeitos desta pesquisa foram três mulheres-mães pertencentes a três gerações diferentes: a primeira contando com sessenta e dois anos no momento da entrevista para a coleta de dados, a segunda com quarenta e oito anos e a terceira com trinta e seis anos de idade, todas pertencentes à classe média. Os resultados alcançados pela autora, parecem confirmar as concepções das três autoras expostas acima. A pesquisadora afirma que durante muito tempo o 37 fenômeno “ser mãe” vinha sendo abordado como algo instintivo, natural, e que portanto, deveria estar desvinculado das condições sociais e psíquicas de cada mulher. Contudo, atualmente, observa-se que as práticas educacionais, os modelos, as normas a que estiveram submetidas e que permearam o processo de socialização das mulheres têm influenciado e delineado a conduta destas no papel de mãe. Além disso, segundo ela, o momento histórico, com seus aspectos sócio-econômicos, amplia ou restringe a possibilidade dos indivíduos vivenciarem papéis sociais. O ponto culminante entre as produções de Alves (1993), Badinter (1985), Chodorow (2002), Forna (1999), Mazzini (2003), Parker (1997) e Rosa (2001), é a concepção de que tanto o sentimento de amor materno como a própria adaptação ao papel materno são aprendidos e construídos pelas mulheres ao longo de suas histórias de vida. Este processo de construção segundo as autoras, é fortemente modelado pelas condições culturais e sociais em que estão inseridas, as quais ditam as maneiras mais “adequadas” e “ideais” de vivenciarem a experiência da maternidade. b) A interação entre o bebê e sua mãe: algumas contribuições da Teoria Psicanalítica A interação entre o bebê e sua mãe nos primeiros meses e anos de vida como determinante fundamental de certas características de personalidade mais ou menos permanentes que se manifestam no processo de desenvolvimento de uma criança, tem sido um tema amplamente estudado dentro da ciência psicológica e mais especificamente dentro da Teoria Psicanalítica (DE FELICE, 1999; FALSETTI, 1990; GOMES, 2001; GRANATO, 2000; KIMURA, 1993; MOURA e RIBAS, 2000; PICCININI et al. 2001; RIBAS e MOURA,1999; ZAMBERLAN, 2002) . 38 Na literatura especializada, Sigmund Freud é considerado o introdutor do tema na Psicologia, pois em sua obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” publicada em 1905, teria teorizado como os padrões de conduta dos pais são preponderantes para a formação de ansiedades e neuroses infantis. Erikson (1971, 1972) ressaltou o tipo de atmosfera emocional criada pelos pais desde a mais tenra idade, como fundamental para o desenvolvimento de uma personalidade saudável e bem estruturada. Klein (1973) salientou o tipo de relacionamento criança-seio que, no decorrer do primeiro ano de vida, lentamente se transforma numa relação mais complexa, criança-mãe, como a base para um desenvolvimento saudável ou patológico da personalidade. Quanto a esta temática, priorizaremos três autores da corrente psicanalítica que consideramos apresentarem os conceitos mais primordiais em se tratando da ligação entre o bebê e sua mãe, para, posteriormente, avançarmos nessa questão inserida na situação de prematuridade. São eles: René Spitz, Donald W. Winnicott e John Bolwby. As contribuições de Spitz, nesse sentido, referem-se às idéias das relações objetais, as quais são definidas por ele como as relações entre um sujeito e um objeto; sendo considerado sujeito o recém-nascido, o qual está inicialmente em estado de nãodiferenciação com sua mãe e, por isso, não existe objeto nem relações objetais no universo do recém-nascido. Essas se desenvolverão progressivamente durante o primeiro ano de vida. São distinguidos três estágios no desenvolvimento das relações objetais: o estágio pré objetal ou “sem objeto”; o estágio precursor do objeto e o estágio do próprio objeto libidinal. (SPITZ, 1991). Destes três estágios propostos por Spitz, enfocaremos o primeiro deles, denominado estágio pré objetal, visto que ele é característico do recém-nascido. O 39 autor explica que esse estágio é marcado pela não-diferenciação, pois a percepção, a atividade e o funcionamento do recém-nascido estão insuficientemente organizados em áreas que são indispensáveis à sobrevivência tais como metabolismo, alimentação, circulação, entre outros. Nesse estágio, o bebê não consegue distinguir uma “coisa” de outra: não consegue distinguir uma coisa (externa) de seu próprio corpo e não experimenta o meio que o cerca como sendo separado dele mesmo; assim o recémnascido também percebe o seio que o alimenta como parte de si mesmo. Diante disso, podemos perceber a importância da figura materna para esse processo do estabelecimento das relações objetais nos estágios propostos por Spitz. O mesmo autor analisa o processo de comunicação entre mãe e filho, afirmando que, consciente ou inconscientemente, cada parceiro dessa díade percebe o afeto do outro e, por sua vez, responde com afeto, numa troca recíproca e contínua. Para ele, o desenvolvimento da percepção afetiva e das trocas afetivas precede todas as outras funções psíquicas, as quais irão desenvolver-se, subseqüentemente, a partir dos fundamentos fornecidos pela troca afetiva. Com isso, visto que a experiência afetiva no quadro das relações mãe-filho age no primeiro ano de vida como um caminho inicial para o desenvolvimento de todos os outros setores, o estabelecimento do precursor do objeto libidinal também se inicia com a conexão com as “coisas” (SPITZ, 1991). Um segundo ponto a ser destacado dentro das contribuições de Spitz, são os resultados de seus estudos acerca da privação materna. O autor salienta que os atrasos de desenvolvimento comumente encontrados em crianças institucionalizadas, são atribuídos à ausência de contato, ausência de afetividade, enfim, ausência da figura materna (SPITZ, 1945). 40 Donald Winnicott, foi pediatra antes de se tornar psicanalista e psiquiatra infantil, continuando a exercer a clínica pediátrica durante a maior parte de sua vida profissional. Winnicott (1999) esclarece que, durante as primeiras semanas de vida do bebê, os estágios iniciais dos processos de amadurecimento têm sua primeira oportunidade de se tornarem as experiências do bebê. O autor destaca a importância de um ambiente de facilitação criado pela presença da figura materna, o qual deve ser humano e pessoal, com características suficientemente boas para que o bebê possa alcançar seus primeiros resultados favoráveis. Para Winnicott, o apoio oferecido pelo ego materno facilita a organização do ego do bebê, afirmando que a mãe possui um tipo de identificação extremamente sofisticada com o bebê, na qual ela se sente muito identificada com ele, embora permaneça adulta. O bebê, por outro lado, identifica-se com a mãe nos momentos de contato. Do ponto de vista do bebê, nada existe além dele próprio e, portanto, a mãe é, inicialmente, parte dele; processo este denominado pelo autor de identificação primária. Outro conceito importante apresentado pelo autor, é o referente à mãe suficientemente boa, a qual oferece uma base positiva para o bebê, criando assim os fundamentos da força de caráter e da riqueza da personalidade do indivíduo; permitindo-o lançar-se no mundo de uma forma criativa ao desfrutar tudo aquilo que o mundo tem a lhe oferecer, inclusive o legado cultural (WINNICOTT, 1999). Igualmente importante é o conceito de holding (segurar) desenvolvido pelo autor: para ele, o protótipo de todos os cuidados para com o bebê resume-se ao ato de segurá-lo. Na experiência comum de segurar adequadamente o bebê, a mãe pode ser capaz de atuar como um ego auxiliar para o bebê, criando assim condições satisfatórias para o desenvolvimento psicológico deste. 41 Finalizaremos esta sessão com o terceiro autor a ser apresentado por nós, John Bolwby e suas contribuições acerca das relações mãe-filho, desenvolvendo a teoria do apego. A compreensão da resposta de uma criança à separação ou perda de sua figura materna gravita em torno do vínculo que a liga a essa figura. A proposta apresentada pelo autor é a de que o vínculo da criança com sua mãe é um produto da atividade de um certo número de sistemas comportamentais que tem a proximidade com a mãe como um resultado previsível. Observando o comportamento de apego em diversas espécies, Bolwby em seu livro “Apego”, concluiu que não existe outra espécie que não seja a humana, onde o comportamento de apego demore tanto a aparecer. Contudo, nenhuma forma de comportamento é acompanhada por sentimento mais forte do que o comportamento de apego; sendo que as figuras para as quais ele é dirigido são amadas e a chegada delas é saudada com alegria. Enquanto uma criança está na presença incontestada de uma figura principal de apego ou a tem ao seu alcance, sente-se segura e tranqüila; sendo que a ameaça de perda dessa figura gera ansiedade e, uma perda real, tristeza profunda e cólera. Outra idéia defendida por ele é a de que quando um bebê nasce, está equipado com um certo número de sistemas comportamentais prontos para serem ativados, sendo que entre esses sistemas já existem alguns que fornecem as bases para o desenvolvimento ulterior do comportamento de apego. Este comportamento é dirigido para uma figura em particular, a figura materna. As perturbações do comportamento de apego podem ser de diversos tipos, as resultantes de cuidados maternos precários, as que resultam de cuidados dispensados à criança por uma sucessão de diferentes pessoas, as decorrentes do excesso de 42 cuidados e ainda, as que resultam de distorções no padrão de cuidados maternos que a criança recebeu ou está recebendo (BOLWBY, 1990). Cabe ressaltar que Bolwby também focalizou em seus estudos acerca do apego, a angústia de separação em referência à figura materna, bem como os problemas relativos ao luto e ao desgosto e dos processos defensivos que a angústia e a perda podem originar (BOLWBY, 1984). Assim, o que se acredita ser essencial à saúde mental, tanto do bebê quanto da criança pequena, é que tenham a vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe (ou figura substituta que desempenhe o papel materno de forma permanente, regular e constante), na qual ambos encontrem prazer e satisfação. É esta relação complexa enriquecida de inúmeras maneiras pelas relações com o pai e com os irmãos e irmãs, que está na base da personalidade e saúde mental (BOLWBY, 1988). Em oposição a essa situação, tem-se o que Bolwby nomeou de privação da mãe, a situação na qual uma criança não encontra esse tipo de relação. Os efeitos perniciosos da privação materna variam de acordo com o grau da mesma. A privação parcial traz consigo a angústia, uma exagerada necessidade de amor, fortes sentimentos de vingança e, em conseqüência, culpa e depressão. A privação total tem efeitos de alcance ainda maior sobre o desenvolvimento da personalidade e pode mutilar totalmente a capacidade de se estabelecer relações com outras pessoas (BOLWBY, 1988). O ponto culminante entre as concepções destes três autores é aquele referente à importância da presença materna junto ao recém-nascido desde os primeiros momentos de vida, constituindo-se como desenvolvimento psíquico ulterior do bebê. um importante requisito para o 43 Acreditamos que tais idéias, ainda que se refiram aos bebês nascidos a termo, oferecem subsídios para a compreensão da dinâmica interacional entre o bebê prematuro e sua mãe, bem como da dinâmica familiar em seus aspectos mais globais. 2.2- O recém-nascido pré-termo (prematuro) a) Classificação dos recém-nascidos pré-termo A classificação clássica dos recém-nascidos com base apenas no peso ao nascer: pré-termo (menos de 2500g) ou a termo, não parecia satisfatória, pois não fornecia indícios acerca da maturidade dos bebês. A nova classificação para os recémnascidos, baseada na idade gestacional e no peso ao nascer proposta por Burroughs (1995) é a seguinte: - pré-termo: criança nascida antes do final de 37 semanas (37 semanas e 6 dias) de gestação, independente do peso ao nascer; - termo: criança nascida entre a 38a semana e 42a semanas de gestação, independente do peso ao nascer; - baixo peso ao nascer: qualquer criança pesando menos do que 2500g ao nascer; - pequeno para a idade gestacional (PIG): qualquer recém-nascido cujo peso está abaixo do 10o percentil (de acordo com a curva de crescimento intra-uterino), independente da idade gestacional; podendo ser pré-termo, a termo ou pós-termo; 44 - adequado para a idade gestacional (AIG): qualquer recém-nascido cujo crescimento intra-uterino tenha sido normal (de acordo com a curva de crescimento intra-uterino) para a duração da gestação; - grande para a idade gestacional (GIG): qualquer recém-nascido cujo peso está acima do 90o percentil (de acordo com a curva de crescimento intra-uterino), independente da idade gestacional; - retardo do crescimento intra-uterino: retardo no crescimento fetal por qualquer razão e, - pós-termo: criança nascida após 42 semanas de gestação, independente do peso ao nascer. A Organização Mundial de Saúde (O.M.S.) considera prematuros os recémnascidos com menos de 37 semanas completas de gestação (AVERY, 1978; BURROUGHS, 1995; FILHO e CORRÊA, 1990; GOETZMAN e WENNBERG, 1992; KLAUSS e FANAROFF, 1982; MARBA e FILHO, 1998; PEIXOTO, 1981; RAMOS et al., 1986). É possível também classificar os diferentes graus de prematuridade segundo Avery (1978) e Peixoto (1981) em: - recém-nascido prematuro limítrofe: nascido entre 37-38 semanas de gestação, geralmente pesando entre 2500g e 3250g. São considerados normais e a termo, sendo cuidados em berçário de normais. Apresentam como maiores problemas a instabilidade de temperatura corpórea, problemas de sucção no início da vida, icterícia, entre outros; - recém-nascido moderadamente prematuro: nascido entre 31-36 semanas de gestação, com peso superior a 2.500g, sendo que o peso dos menores recém-nascidos nesta categoria é de 1500g. Apresentam como maiores problemas a ruptura prematura 45 de membranas, anoxia neonatal (falta de oxigenação), icterícia, alterações metabólicas, anemia, problemas com a manutenção da temperatura corporal, infecção, entre outros; - recém-nascido extremamente prematuro: nascido entre 24-30 semanas de gestação, com peso usualmente entre 500 a 1500g. A sobrevida desta categoria é ainda pequena, sendo as causas principais de morte: anoxia grave, infecção amniótica, doença das membranas hialinas, crises de apnéia, entre outras. Avery (1978), elucida que as crianças que nascem antes do termo, independentemente de seus pesos de nascimento, estão sujeitas a várias patologias que podem complicar seu período neonatal. Deste modo, conclui-se que a mortalidade neonatal aumenta progressivamente com o aumento do grau de prematuridade, ocasionando seqüelas que podem afetar o crescimento de crianças que nasceram prematuramente por muitos meses ou anos após seu nascimento. b) Etiologia e fatores desencadeantes de partos prematuros Tudo deve ser feito para assegurar que uma criança nasça a termo, bem desenvolvida e saudável. Contudo, apesar de todo o cuidado dispensado, existem crianças que nascem prematuramente. Ainda hoje, sabe-se pouco sobre os fatores que desencadeiam partos prematuros. De maneira sintética, Schmitz et al. (2000), acreditam que haja relações com a nutrição, raça, idade materna, gemelaridade (gestação de gêmeos) e morbidade perinatal. Peixoto (1981), ratifica esse aspecto ao acentuar a dificuldade em se estabelecer a etiologia da prematuridade, colocando em termos gerais que o fator causal pode ser identificado em apenas 40% dos casos, os quais incluem complicações específicas 46 como toxemia, hemorragias e prenhez múltipla, excluindo outros fatores relevantes como os sócio-econômicos, nutricionais e genéticos assiduamente relacionados à prematuridade. Se tais fatores forem levados em conta, a porcentagem de partos prematuros com etiologia conhecida se tornaria consideravelmente maior. Levando-se em conta esta segunda categoria de fatores relevantes à prematuridade apontados por Peixoto (1981) e acentuados por Goetzman e Wennberg (1992), encontramos ainda em Filho e Corrêa (1990), alguns apontamentos acerca da epidemiologia da prematuridade. Estes últimos autores assinalam que em alguns casos é possível reconhecer esses fatores relevantes antes da concepção, em outros casos durante a gestação e não raro, somente quando o trabalho de parto prematuro já se iniciou. Na análise do parto prematuro enfocam-se os seguintes fatores: - características físicas da mãe: idade, altura e peso; - hábitos de vida: tabagismo, alcoolismo, drogas, promiscuidade sexual, trabalho excessivo e fatigante; - condições sócio-econômicas: quando desfavoráveis, associam-se freqüentemente ao parto prematuro, ao crescimento intra-uterino retardado e ao recém-nascido de baixo peso; - antecedentes ginecológicos: alterações nos órgãos genitais; - antecedentes obstétricos: história anterior de parto prematuro, aborto, entre outros; - fatores de risco relacionados à prenhez atual: alguns fatores de risco surgem após a concepção e se agravam no decurso da prenhez. Relacionam-se ao feto, aos anexos da gravidez ou à própria gestante e, - fatores iatrogênicos: prematuridade provocada pelo médico. 47 c) Gestação de alto risco e bebês de alto risco A identificação precoce da população de alto risco associada a uma maior proporção de eventos perinatais desfavoráveis, tornou-se uma prioridade no sistema de assistência obstétrica. Entre as principais determinantes da morbidade e mortalidade estão: idade materna, raça, nível sócio-econômico, nutrição, história obstétrica anterior, doenças associadas e problemas gestacionais presentes, conforme mencionamos anteriormente. O desenvolvimento normal do feto pode ser ameaçado por uma infinidade de fatores, quer isoladamente, quer em combinação com outros. As complicações maternas (fatores obstétricos) possuem um papel ameaçador, entretanto, a importância maior é dada aos fatores ambientais (condições sociais desfavoráveis, deficiências nutricionais entre outras). Uma interação entre muitos desses fatores ocorre e afeta adversamente a taxa de mortalidade perinatal e a qualidade dos sobreviventes. Tais fatores resultam na identificação de gestações de alto risco e de crianças de alto risco (GOETZMAN e WENNBERG, 1992; KLAUSS e FANAROFF, 1982). Conforme preconizado por Klauss e Fanaroff (1982), uma gestação de alto risco é aquela na qual o feto tem uma chance aumentada de morrer, quer antes ou após o nascimento, ou de ser incapacitado. Alguns fetos podem ser lesados precocemente, outros tardiamente; muitas crianças nascem prematuramente ou serão incomumente pequenas para a idade gestacional. Algumas serão grandes demais ou terão permanecido no útero por um período de tempo muito prolongado. A criança de alto risco é, portanto, aquela – independentemente da idade gestacional ao nascer ou do peso – cuja existência extra-uterina é comprometida por numerosos fatores (pré-natal, natal ou pós-natal) e que está necessitando de cuidados 48 especiais. Assim, a prevenção da patologia neonatal, passa inicialmente pela prevenção da gestação de alto risco. Marba e Filho (1998), mencionam que os tópicos habitualmente enfatizados em relação à prevenção da gestação de alto risco são: - a prevenção da gestação indesejada; - a detecção de doenças crônicas que interferem na evolução da gestação; - a prevenção de doenças infecciosas passíveis de vacinação como a rubéola, por exemplo; - a prevenção do uso de substâncias tóxicas; - a tentativa de evitar a paridade excessiva; - a ocorrência de gestação em idades inadequadas (menor que 18 anos e maior que 35 anos) e, - o intervalo adequado entre gestações sucessivas. Os autores ainda consideram que o comparecimento precoce aos ambulatórios de pré-natal tem se mostrado um dos fatores fundamentais no sucesso do tratamento das gestantes de alto risco; uma vez que a detecção precoce da gestação de risco permite não apenas interferir positivamente em sua evolução como, principalmente, realizar o encaminhamento de tais gestantes aos centros de maior complexidade, para que os partos possam ocorrer nesses locais, resultando em melhor atendimento para as mães e para os recém-nascidos. d) Atendimento ao recém-nascido pré-termo Os pesquisadores Filho e Corrêa (1990), salientam que as implicações da prematuridade não se resumem à sua devastação perinatal, envolvem também as 49 dificuldades no atendimento imediato ao recém-nascido, à necessidade de cuidados especiais nos primeiros meses de vida e os riscos de seqüelas físicas e mentais. De imediato, o recém-nascido pré-termo exige condições específicas para seu atendimento como um espaço físico próprio, equipamentos adequados, pessoal médico e de enfermagem treinado para cuidar desse tipo de paciente e ainda recursos laboratoriais que permitam a realização de todos os exames complementares que se fizerem necessários. A permanência do recém-nascido pré-termo no hospital pode ser prolongada e onerosa. Mesmo após a alta hospitalar, ele continuará exigindo cuidados especiais por um tempo prolongado. Retomamos neste momento as idéias de Burroughs (1995) para destacar os cuidados específicos destinados ao recém-nascido pré-termo a fim de nos conscientizarmos do complexo quadro que se apresenta em termos hospitalares; uma vez que o fator mais comum à mortalidade neonatal é a situação de prematuridade. A aparência geral do recém-nascido pré-termo é de extrema fragilidade, combinada com seu choro fraco, quase inaudível. Somado a isso, sua pele é freqüentemente enrugada, sensível e fina; é um bebê magro, com pouca gordura subcutânea e linhas do crânio proeminentes. A seguir, enumeramos de acordo com as proposições de Burroughs (1995) as diversas áreas onde o recém-nascido pré-termo pode apresentar os maiores déficits e que serão foco de atenção e cuidados hospitalares: - sistema orgânico: a criança pré-termo apresenta diversos problemas físicos que devem ser considerados durante o atendimento, necessitando de atenção especial. Em geral, são transferidas para hospitais que possuam uma Unidade de Tratamento Intensivo para pré-termos (U.T.I. neonatal); 50 - sistema respiratório: apresenta-se funcional e estruturalmente imaturo, sendo suscetível a apnéia e sofrimento respiratório; - termorregulação: perda de calor maior do que o recém-nascido a termo, capacidade de produzir calor limitada devido à ausência de gordura subcutânea e atividade muscular débil; - sistema cardiovascular: tendência a persistir em circulação fetal, podendo apresentar um atraso no fechamento do ducto arterial ou reabertura de circulação fetal; - sistema digestivo: reflexo de sucção fraco, esvaziamento lento do estômago e motilidade intestinal reduzida com propensão à hipoxia; - função hepática e metabólica: reservas deficientes de glicogênio, gorduras, vitaminas e minerais ao nascer, enfrentando problemas como hipoglicemia e hipocalcemia; - sistema renal: problemas na retenção de líquidos, edema, capacidade diminuída de concentrar urina e reter água, estando mais propenso à desidratação; - sistema imunológico: o bebê pré-termo não permaneceu tempo suficiente no útero para adquirir as imunidades passivas da mãe, estando com isso mais suscetível às infecções. Uma das imagens mais associadas ao recém-nascido pré-termo é aquela referente à sua permanência em incubadoras e berços aquecidos. Isso se deve a um dos fatores numerados acima: o déficit quanto a termorregulação. Determinados fatores podem intervir na regulação da temperatura corporal desses bebês, como a falta de mecanismo de produção de suor, de vasoconstrição e exercício muscular dinâmico para equilibrar a temperatura. O problema relacionado à manutenção de temperatura dessas crianças fez com que a ciência e a termologia moderna desenvolvessem equipamentos apropriados apara atingir tal finalidade. Assim, 51 atualmente existem vários tipos de incubadoras que podem oferecer além do ambiente termocontrolado, umidade e oxigênio necessários para cada criança em particular (SHIMITZ et al., 2000). Sobre as U.T.I.s neonatais, Marba e Filho (1998), ressaltam que esses serviços, introduzidos no Brasil a partir da década de 60 e principalmente de 70, representaram uma acentuada queda nas taxas de mortalidade e redução a níveis bastante baixos das seqüelas importantes para esse tipo de paciente. Após a passagem do recém-nascido pré-termo pela U.T.I. neonatal, muito provavelmente o mesmo passará por uma segunda categoria de cuidados denominada Alojamento Conjunto (A. C.). O A. C. é um sistema de assistência hospitalar prestada à mãe e ao recémnascido juntos e simultaneamente, com o objetivo principal de fortalecer o vínculo mãefilho e estimular o aleitamento materno. A retomada do A. C. na assistência hospitalar ocorreu no início dos anos 50, tendo como principal motivo a diminuição dos índices de infecção que ocorria nos berçários tradicionais. No Brasil, apesar de fazer parte das normas de assistência obstétrica e pediátrica a serem observadas em todas as unidades médico-assistenciais desde 1985, sua regulamentação ocorreu através da portaria 1016 do Ministério da Saúde de 26/08/93 (MARBA e FILHO, 1998). De acordo com esses autores, os objetivos principais do A. C. são: - aumentar os índices de aleitamento materno; - estabelecer vínculo mãe-filho; - orientar a mãe no cuidado ao recém-nascido; 52 - reduzir a incidência de infecção em recém-nascidos, pois a permanência do bebê ao lado da mãe, sendo alimentado ao seio diminui a probabilidade de ser infectado por germes hospitalares; - Estimular a participação dos pais nos cuidados com o recém-nascido e, - Propiciar maior tranqüilidade à mãe. Recomenda-se que sejam encaminhados ao A. C., recém-nascidos com boa vitalidade, boa capacidade de sucção e de controle térmico. Contudo, os recémnascidos pré-termo não apresentam essas características, passando por um sistema especial de Alojamento Conjunto para a fase de pré-alta, denominado Alojamento Conjunto Tardio (A. C. T.). O A. C. T. tem como objetivos propiciar o aleitamento materno exclusivo na alta hospitalar e sua duração por tempo prolongado, estabelecer vínculo afetivo entre mãe/ prematuro e orientar a mãe em todos os cuidados com o neonato. O tempo de internação em A. C. T. dependerá da interação estabelecida entre mãe e filho, do ganho de peso do recém-nascido e da segurança da mãe, quanto à amamentação e aos cuidados para com o recém-nascido pré-termo. Normalmente, este período varia de três a sete dias dependendo da disponibilidade e quantidade de leite materno e capacidade de sucção neonato. A principal dificuldade encontrada durante a internação em A. C. T. é a ansiedade materna em relação aos problemas apresentados durante a amamentação, como a sonolência, sucção vagarosa, a perda de peso nos neonatos nos primeiros dias de amamentação, a pouca quantidade de leite e o desejo materno de receber alta o mais rápido possível. Para diminuir a ansiedade materna, Marba e Filho (1998) consideram essencial o trabalho conjunto de uma equipe médica e de enfermagem 53 preparada para fornecer à mãe o apoio e a tranqüilidade que inicialmente são necessários para que ela supere esse obstáculo. Neste contexto, a equipe médica e de enfermagem poderá ainda observar detalhadamente vários aspectos da interação entre a mãe e seu bebê e interação familiar como um todo, levantando problemas e apontando casos onde essa dinâmica não esteja ocorrendo de modo adequado, podendo então, solicitar a intervenção do psicólogo hospitalar. De acordo com Gandra (2002), a intervenção psicológica nestes casos pode variar desde a solicitação de um atendimento psicológico, no caso de mães que apresentem sintomas depressivos muito exacerbados, ou qualquer sintomatologia de âmbito emocional, até a intensificação da assistência às mães com dificuldades na amamentação, passando por levar ao pediatra/obstetra informações mais detalhadas do estado físico de seus pacientes. 2.3- Reações parentais ao nascimento de um bebê pré-termo a) Aspectos psicológicos relacionados à hospitalização infantil Ao situarmos as reações parentais frente ao nascimento de um bebê pré-termo, é inevitável considerarmos também, todas as intercorrências referentes à hospitalização (U.T.I. neonatal) desta criança e seus reflexos na dinâmica psicológica de seus pais. Sempre que uma criança adoece, o estresse criado diante desta situação envolve a família como um todo. Embora a doença seja aguda, crônica ou fatal, tratada 54 no hospital ou em casa, isto terá impacto não somente na criança doente, mas em toda a sua família. Um estressor como esse produz uma situação para a qual a família teve pouco ou nenhum tempo para se preparar e cujos problemas terá que enfrentar. A doença e a situação de hospitalização como um todo, podem se tornar uma crise para a criança e para a família, dependendo de suas percepções sobre o evento, do suporte disponível e de suas habilidades prévias para lutar contra as dificuldades. Se a doença e/ou a hospitalização for vivenciada como crise, o grupo passará por um período de desorganização, com redução na habilidade para desempenhar os papéis usuais. O número de privações enfrentadas por cada membro da família irá determinar seu impacto sobre a mesma, de modo que perante o evento de crise, a família poderá se fortalecer ou enfraquecer (HYMOVICH, 1976). Seguindo as proposições de Schmitz et al. (2000), inúmeros são os problemas enfrentados pelos pais ao internar seu filho: - medo realístico ou irrealístico da doença e do desconhecido; - sentimentos de culpa e/ou ambivalência para com a criança; - insegurança e ausência de controle sobre o ambiente hospitalar, rotinas, pessoas, procedimentos e equipamentos; - modificações nas rotinas de vida e de atendimento das necessidades do filho doente; - medo de perder o afeto do filho; - insegurança quanto à mudança de comportamento do filho e desconhecimento de procedimentos ligados à sua recuperação; - problemas financeiros, sociais e afetivos vinculados à doença e à hospitalização da criança e, - padrões comportamentais solicitados aos pais diferentes dos habituais. 55 Os mesmos autores ainda ressaltam que em função dos problemas vivenciados, a família e em especial a mãe, normalmente com maior vinculação afetiva à criança, pode estar sob efeito de ansiedade. Este fato agrava-se à medida em que, habitualmente, a sociedade e a própria mãe crêem que toda a responsabilidade do cuidado da criança deva ser seu e que ela deva ser um modelo de sacrifício e devoção, como já trabalhamos anteriormente no item referente à adaptação ao papel materno. Assim, o sentimento de falha em relação à maternidade e à paternidade pode determinar sentimentos de culpa, confusão, inadequação e infelicidade (SCHMITZ et al., 2000). Especificamente sobre a situação de prematuridade, encontramos nas produções de Brunner e Suddarth (1980), que a hospitalização do recém-nascido e lactente pode interromper os estágios iniciais de desenvolvimento da relação mãe-filho, podendo comprometer sua ligação; uma vez que o hospital, ao diminuir a responsabilidade da mãe no cuidado da criança, interfere no conhecimento que ela terá das necessidades do filho, das formas de satisfazê-lo e das interações retroalimentadoras do amor mãe-filho. Assim, apresentaremos em seguida uma visão geral sobre as reações parentais ao nascimento de uma criança prematura. b) Uma visão geral das reações parentais ao nascimento de um bebê pré-termo Retomamos a idéia de que as ações e reações paternas e maternas em relação a seu filho se originam de uma combinação complexa de sua própria herança genética, da forma pela qual a criança reage aos pais, de uma longa história de relações interpessoais com suas famílias e entre si, de experiências passadas com a presente ou com gestações anteriores, da absorção de práticas e valores culturais e, 56 provavelmente o mais importante: de como cada um deles foi criado por seus próprios pais e mães. O comportamento materno ou paterno de cada mulher e homem, bem como a capacidade de cada um suportar e enfrentar situações estressantes, diferem enormemente e dependem da combinação desses fatores. Discutimos anteriormente, quando nos referimos aos aspectos psicológicos da gestação, alguns fatores psicológicos referentes ao nascimento de um bebê a termo, ou seja, pontos pertinentes a uma gestação e parto normais, sem a presença de nenhuma intercorrência; para, a partir disso, podermos considerar os aspectos psicológicos referentes a uma situação em particular: a prematuridade. Essa situação, indubitavelmente acarretará uma série de sentimentos e conflitos para os pais deste bebê. Nestas últimas décadas em especial, as pesquisas começaram a se voltar para o estudo da maneira pela qual os pais de um bebê pré-termo lidam para satisfazer as necessidades deste bebê imaturo, sonolento, imprevisível e frágil; observando atentamente a dinâmica complexa e confusa que estes pais enfrentam quando o nascimento prematuro os leva a uma Unidade de Tratamento Intensivo (U.T.I. neonatal). Salienta-se que as visitas dos pais em U.T.I.s neonatal, foram permitidas somente a partir da década de 60, sendo que até esse período, o bebê prematuro no berçário, permaneceu intocável e distante. Apesar de experimentarem um contato mais íntimo com seu bebê, os pais vivenciam um estado de tensão prolongado. Contudo, os pais acreditam que a oportunidade de ter esse contato com seus filhos na U.T.I. neonatal é preciosa, apesar da sua ansiedade (KLAUSS e KENNELL, 1993). 57 Seguindo este raciocínio, Avery (1978) considera a vivência do estresse associado ao nascimento prematuro, o que pode causar respostas mal adaptativas nas mães consideradas dentro de limites normais de ajuste da personalidade. O autor esclarece que ao invés do procedimento hospitalar rotineiro no nascimento normal de um bebê a termo, há uma atmosfera de condições de emergência, o que traz uma apreensão geral acerca do destino da criança. Após o parto, a mãe demonstra uma preocupação aumentada sobre a normalidade de seu filho, o qual é imediatamente removido dela e colocado em um berçário de cuidados especiais; sendo que, geralmente torna-se bastante difícil ter uma boa visão da criança na incubadora. [...] a mãe do prematuro encara o futuro com o sentimento de ter falhado em sua gestação, uma preocupação pela sua capacidade de cuidar de seu filho e uma expectativa de que no futuro haverá o aparecimento de anormalidades na criança como uma conseqüência de seu nascimento prematuro (AVERY, 1978, p. 973). Encontramos em Klauss e Kennell (1993), uma vasta descrição de estudos de diversos autores acerca, principalmente, das reações maternas quanto à prematuridade. Prught (apud KLAUSS e KENNELL, 1993), realizou uma série de observações perspicazes e sensíveis com estas mães; observando que durante os primeiros meses de vida do bebê, a ansiedade e a culpa eram as duas emoções mais aparentes nas mães durante esse período. A ansiedade originava-se da apreensão quanto à sobrevivência de seu filho durante a hospitalização, ao passo que a culpa referia-se ao temor de ter feito ou deixado de fazer algo durante a gestação, causando 58 a prematuridade; assim como ao fato de não poder cuidar de seu bebê tão habilmente quanto uma enfermeira. Prught também enfatizou que é essencial que a mãe veja o bebê prematuro tão logo seja possível após o nascimento, a fim de que sejam minimizadas as fantasias assustadoras e que se possa auxiliar a mãe a lidar com qualquer “lacuna emocional” (alheamento de sentimentos que qualquer nova mãe experimenta durante o início de seu relacionamento com o bebê). Klauss e Kennell (1993), discutem também informações preciosas advindas de entrevistas com mães de bebês prematuros onde se observou três problemas principais em relação às mesmas: problemas de auto-estima (sentimento de fracasso, inadequação, incapacidade, inferioridade, insuficiência; de modo que o nascimento prematuro representava um severo golpe à auto-estima das mães, às suas capacidades de maternagem e ao seu papel feminino); problemas de culpa (autoacusações de terem sido más mães, exposto seus filhos a uma grande tensão, forçando-os para fora de seu útero protetor) e problemas de separação (sensações de vazio, amputamento, de modo que quanto mais tempo persistia o período de espera, mais profundamente se configurava o retraimento do investimento materno sobre a criança). Esta dupla de autores salientados acima, ainda enfoca as valiosas contribuições de Kaplan e Mason na década de 60, principalmente na esquematização de quatro tarefas psicológicas que a mãe de um bebê prematuro deve dominar para estabelecer um relacionamento saudável com seu filho: 59 1- a mãe deve preparar-se para uma possível perda do filho cuja vida está em risco. Este “luto antecipatório” envolve a retirada do relacionamento previamente estabelecido com a criança no útero; 2- a mãe deve encarar e conscientizar-se de seu “fracasso” em dar à luz a um bebê normal e a termo; 3- a mãe deve reassumir o processo que foi interrompido de relacionamento com seu bebê e, 4- a mãe deve procurar entender o quanto um bebê prematuro difere de um bebê normal em termos de necessidades especiais e padrões de crescimento. Há evidências de que, quando mães da espécie humana são separadas de seus filhos durante as primeiras horas e dias após o parto, elas podem apresentar dificuldades na formação de seu vínculo. As mães de prematuros que passam suas primeiras semanas de vida em U.T.I.s neonatal são especialmente vulneráveis. Cabe enfatizar que a grande maioria das mulheres do mundo ocidental sonha com o filho esperado, idealizado: a criança no retrato mental da mãe freqüentemente possui antes do parto, uma imagem específica, mas a criança real nunca é exatamente como a mãe havia imaginado. Durante os primeiros dias após o parto, a mãe deve ajustar o retrato mental à imagem do bebê real, e, isso é especialmente significativo em se tratando de bebês prematuros (KLAUSS e FANAROFF, 1982). A respeito do apego, Brazelton (1988), elucida que as respostas maternas previsíveis inicialmente na situação de prematuridade são aquelas em que as mães sentem necessidade de fugir, esconder-se, proteger-se sob uma depressão ou, ainda, alienar-se para evitar os cuidados com o neonato. Entretanto, são observados cinco 60 estágios propostos pelo autor para que os pais possam ver o bebê como seu e possam confiar em si mesmos para trabalhar e se relacionar com ele: 1- os pais relacionam-se com seu bebê através de relatórios médico-laboratoriais fornecidos pela equipe médica, os quais podem fornecer coragem se os índices melhoram ou sofrimento e devastação diminuem; 2- os pais observam e se encorajam com o comportamento reflexo e automático que vêem quando uma enfermeira ou médico perturba o bebê; qualquer movimento se torna um grande feito, embora os pais não tentem provocar estas reações espontaneamente; 3- os movimentos mais responsivos do bebê são observados, por exemplo, se o bebê se vira em direção à voz de uma enfermeira, os pais o vêem como algo que está se transformando numa pessoa; os pais ainda não ousam estimular o bebê por si mesmos; 4- o próximo estágio se inicia quando os pais ousam produzir movimentos de resposta espontaneamente. Este é o início de sua visão de si mesmos como pais deste bebê, podendo ver-se responsáveis por suas respostas e, 5- o quinto e último estágio é aquele onde os pais realmente ousam pegar o bebê, segurá-lo, balançá-lo ou mesmo alimentá-lo: neste ponto os pais adquiriram um vínculo com o filho. Antes disso, viam o bebê como um objeto amedrontador e frágil e, a si mesmos, como perigosos a essa criatura. Soifer (1980), aponta que a higiene mental do parto prematuro deve abranger não somente a mulher e seus conflitos inconscientes, que certamente influenciam bastante, mas também a investigação da relação conjugal, familiar e sócio-econômica, procurando proporcionar o apoio e ajuda necessários. Do mesmo modo, uma vez produzido o nascimento precoce, a família deve ser adequadamente amparada, pois o 61 fato em si demonstra que a mesma se acha em crise, e que se trata de uma crise entre a tendência produtiva e outra que leva à inércia como única defesa. A proteção deve incluir a possibilidade de ambos os pais permanecerem ligados ao filho, de modo direto e, não somente através de um vidro, para que esse filho possa realmente ser o fruto concreto e a tradução da tendência ativa vitoriosa. Segundo a autora, uma ação contrária pode desencadear situações prejudiciais, podendo-se inclusive, chegar à dissolução do casamento e da família (SOIFER, 1980). Deste modo entendemos que a experiência da maternidade em geral e, mais particularmente, a experiência da prematuridade, configura-se como um processo singular tanto para a figura materna como para a família em seu aspecto mais amplo. O nascimento prematuro de um bebê, por englobar uma série de expectativas, ansiedades, fantasias e temores específicos no interior do grupo familiar, exigirá a mobilização deste grupo para lidar com esta situação em particular. Por este motivo, dedicaremo-nos no presente trabalho, à investigação da psicodinâmica familiar diante da prematuridade, procurando estudar não somente como a figura materna vivencia este processo, mas como esta mãe acompanhante e seu grupo familiar enfrentam as vicissitudes de terem um bebê recém-nascido pré-termo internado em uma U.T.I. neonatal. 62 3- A FAMÍLIA E AS ABORDAGENS PSICANALÍTICAS A família se constitui numa unidade presente em qualquer sociedade, sendo praticamente impossível imaginar qualquer forma de organização social carente de algum tipo de estrutura familiar. A partir de seu funcionamento, a família determina a definição e a conservação das diferenças humanas, dando forma objetiva aos papéis distintos, mas mutuamente relacionados: pai, mãe, filho, irmão, irmã; papéis básicos em qualquer cultura. Embora o criador da Teoria Psicanalítica, Sigmund Freud não tenha teorizado deliberadamente sobre a família, em suas considerações ele apresenta rudimentos de uma teoria psicológica das relações sociais, através de uma análise das interações familiares determinadas por relações extrafamiliares e, ao mesmo tempo, determinantes dessas mesmas relações. A família é o vínculo das experiências em que a Psicanálise está envolvida. Freud procura decompor o indivíduo em suas relações familiares essenciais, ainda que inconscientes. A proeza da Psicanálise está em desmascarar a ilusão do individualismo, da natureza auto-suficiente e autônoma da experiência e motivações pessoais. As características mais pessoais e particulares da vida íntima do indivíduo permanecem obscuras, somente se tornando mais significativas quando remetidas à origem no corpo medicamente significante da família, podendo-se afirmar que a família se constitui como o segredo do indivíduo (POSTER, 1979). Diante disso, percebemos que uma das principais contribuições de Sigmund Freud é que a formação da estrutura mental de um indivíduo se dá na infância. Ainda 63 considerando as idéias desenvolvidas por Poster (1979) sobre este ponto, o foco sobre a infância permitirá a Freud ir muito além da estrutura normal da consciência de seu tempo, além de sua racionalidade e de suas defesas, autorizando-o a explorar os domínios do inconsciente, da sexualidade, dos atos falhos e chistes, a analisar a lógica e os mecanismos da consciência não-racional e a demonstrar a importância de sua ubiqüidade. De forma sintética, é possível reconhecer que um dos pilares básicos da Teoria Psicanalítica configura-se na importância dada à qualidade das relações afetivas entre pais e filhos na constituição emocional, psíquica e da personalidade ulterior do indivíduo, conforme mencionamos em pontos anteriores de nosso trabalho e que, a partir deste momento, será enfocado diretamente no que se refere à família. Na presente pesquisa enfocaremos as abordagens psicanalíticas de família, também conhecidas como psicodinâmicas. Neste tipo de abordagem, enfatiza-se o passado, a história, tanto como causa de um sintoma quanto como meio de modificá-lo. Os sintomas apresentados pelos membros da família são vistos como decorrentes de experiências passadas, encontrando-se num âmbito externo à consciência; sendo utilizado o método da interpretação como meio de se atingir tais experiências e conteúdos das mesmas (FÉRES-CARNEIRO, 1996). Devido à nossa proposta, na presente investigação enfocaremos as contribuições de três autores específicos das abordagens psicanalíticas em família: Lily Pincus e Christopher Dare, Isidoro Berenstein e, mais especificamente, Alberto Eiguer. 64 a) Lily Pincus e Christopher Dare Esses autores possuem um grande interesse na trama inconsciente dos sentimentos, desejos, crenças e expectativas que unem os membros de uma família entre si e aos seus passados individuais e familiares. Pincus e Dare se interessam particularmente pelos efeitos dos segredos e dos mitos na dinâmica familiar, ressaltando que os segredos podem pertencer a um membro da família ou serem compartilhados com outros membros ou, ainda, endossados pelos membros da família de geração em geração até se tornarem um mito. A partir da prática clínica, eles mostram como os segredos mais freqüentemente encontrados no interior da família e mais cuidadosamente escondidos são aqueles que nascem de sentimentos ou fantasias incestuosas. Em suma, para eles, os segredos familiares referem-se aos momentos mais marcantes do ciclo vital: nascimento, sexo e morte (PINCUS e DARE, 1981). Os estudos desses autores baseiam-se em princípios gerais que representam as maneiras de encarar qualquer relacionamento. O primeiro deles refere-se ao fato de que as motivações que levam as pessoas a se casarem são inconscientes. Por isso, raramente é possível saber, questionando-se diretamente, qualquer razão do porquê da escolha do parceiro, ou qual a natureza da união. No casamento, há um contrato velado, um acordo inconsciente, onde processos de projeção e identificação constituem partes essenciais. O segundo princípio que norteia esse pensamento é que nos relacionamentos duradouros e importantes há, geralmente, uma complementaridade das necessidades, 65 desejos e medos que fazem parte da vida a dois. O acordo que mantém a complementaridade é inconsciente e, geralmente, também implica no uso de projeção. O terceiro deles é o de que muitos anseios e medos que fazem parte do “contrato secreto” do casamento provém, principalmente dos relacionamentos da infância. Isto equivale ao fato de que todas as pessoas tendem a vivenciar padrões repetitivos de relacionamento que são motivados pela persistência dos desejos numa forma de fantasia inconsciente e derivados da maneira pela qual as primeiras necessidades dos parceiros foram satisfeitas. O quarto e último princípio proposto pelos autores sobre a relação conjugal é o de que estes padrões repetitivos de relacionamento são derivados da época em que a criança vivencia a intensidade de seus anseios em relação aos pais, ao mesmo tempo em que reconhece que esses formam uma díade, um casal do qual ela é excluída, ou seja, da vivência do Complexo de Édipo. Parece-nos pertinente determo-nos um pouco mais nas proposições de Pincus e Dare, devido ao fato de explanarem algumas idéias acerca da chegada de um bebê na família. Para ambos os pais, a tarefa da paternidade evocará sentimentos que surgiram no início de suas próprias experiências, ao ter que partilhar sua mãe durante a infância. Enquanto a nova mãe pode recapturar o sentido de uma proximidade a dois em relação ao bebê, o novo pai terá que lutar com o sentimento de perda até que a família possa, encontrando um lugar para ele, criar um novo relacionamento a três. O grau ao qual cada parceiro tenha ou não sido bem sucedido na luta desta mesma tarefa na infância se refletirá na capacidade adulta do casal em readaptar-se à essa nova situação. 66 Por mais que uma mulher tenha desejado um filho, haverá sempre aspectos negativos que terão que ser encarados tanto na gravidez quanto na maternidade. Os autores afirmam que a gravidez obriga a pessoa a ser mulher e mãe, e qualquer fantasia que não esteja totalmente consciente que expresse relutância em assumir estes papéis, precisa ser renunciada (PINCUS e DARE, 1981). Outra idéia importante apresentada pelos autores e que se revela relevante para o nosso trabalho, é a de que a maioria das novas mães se sentem mais próximas de suas próprias mães, com quem poderão compartilhar o segredo da maternidade. Se essas novas mães tiverem internalizado uma imagem de boa mãe, este relacionamento poderá auxiliar nas adaptações necessárias (PINCUS e DARE, 1981). Uma última pontuação acerca das considerações destes mesmos autores, refere-se à chegada de um novo bebê como um fato que poderá estimular as necessidades infantis tanto no pai quanto na mãe, fazendo com que a identificação e a competição do homem com o bebê dificulte, para ele, assumir o papel de pai. b) Isidoro Berenstein Por outro lado, Berenstein dedica-se ao estudo da estrutura das relações familiares e análise da organização inconsciente dos grupos familiares, apoiando-se em duas bases teóricas. A primeira delas e a principal é a Psicanálise, através da teoria do inconsciente e do recalque, do Complexo de Édipo e da construção de um mundo interno baseado na representação da relação emocional com os objetos. A segunda delas é o Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, a qual dedica-se a análise estrutural, às estruturas sociais enquanto objetos independentes da consciência dos homens e ao estudo das regras de comunicação social inconscientes. 67 Com isso, apreendemos que a família é composta por muito mais do que aquilo que está aparente em primeira instância, a instância consciente. A família possui em seu interior uma variedade de modelos que regem seu funcionamento, seu tipo de organização, sua estrutura, os quais muitas vezes não aparecem de forma tão clara, tão próxima da consciência de seus membros. Ao contrário, estes modelos são em sua essência inconscientes, sendo que a tendência do grupo familiar é justamente reprimilos. As relações familiares, assim como em outro âmbito as relações escolares, trabalhistas e as sociais em geral constituem o diverso, o singular, o explícito e perceptível pela consciência; a estrutura familiar constitui o unificador, geral, o implícito, ou seja, o inconsciente (BERENSTEIN, 1988, p.68). A estrutura inconsciente familiar, portanto, constitui uma espécie de sustentáculo elementar que norteia a família, onde são construídos os modelos de relacionamento através do tempo. Estes modelos aparecem sob a forma de expressões verbais mantidas através do tempo, símbolos, mitos familiares, regras, conflitos, enfim, tudo aquilo que se refere à cultura familiar e, por se tratar da cultura, encontramos íntimas ligações com o aspecto histórico. Uma vertente dos estudos deste autor se volta à situação de doença mental vista por um ângulo mais global, ou seja, a consideração da família do doente mental como um sistema, desenfocando com isso a problemática individual. Para Berenstein, somente reconstruindo o contexto no qual a doença mental adquire sentido, é que se torna possível atribuir-lhe significado apropriado como mensagem inconsciente, lembrando que este contexto inclui as características mentais do paciente assim como 68 as características da estrutura familiar como uma relação dentro de um sistema (BERENSTEIN, 1988). Cabe ressaltar suas importantes contribuições para o estudo da família ao se voltar para a estrutura inconsciente das relações familiares, enfatizando os nomes próprios e as noções de espaço e tempo familiar. As regras que determinam a formação do nome próprio são muitas, assim como a indicação de um determinado nome pode denotar uma multiplicidade de referências: um sentimento familiar ou religioso, à moda, à praticidade ou para denominar um representante familiar significativo. Sobre os nomes próprios, Berenstein (1988) pontua que estes indicam uma relação entre o receptor e o doador do nome e que muitas vezes, denota a expressão de indicadores de um nível altamente inconsciente sobre o sistema de relações entre ambos: receptor e doador. Através da análise de um nome próprio, é possível seguir um determinado indivíduo através da história pelo uso do mesmo nome, se o nome próprio pertence ao ramo materno ou paterno e perceber também se existe algum tipo de regra seguida para a escolha do nome. De um modo geral, o tipo de nome e sua pertinência ao ramo materno ou paterno pode estabelecer um modo de equilíbrio na estrutura latente da família. Igualmente, a emergência dos nomes também se refere à história particular de cada grupo familiar, conforme acabamos de mencionar. Berenstein sinaliza que em algumas ocasiões, para que possamos compreender a significação dos nomes, temos que nos remontar até as circunstâncias histórico-genéticas em que o nome foi concebido e adquirido, mantendo-se como uma particularidade estrutural. 69 Assim, o sistema dos nomes próprios torna-se significativo desde a estrutura inconsciente da família e pode informar sobre o tipo de equilíbrio e origem dessa estrutura; uma vez que o nome é uma marca de identificação não somente da pessoa, mas de todo um grupo familiar e de um momento histórico. Há uma verdadeira restrição para o grau de liberdade existente na adjudicação do nome. Este pré-existe ao indivíduo e o aguarda durante o tempo necessário para poder encontrar na criança o sustentáculo do nome (BERENSTEIN, 1988, p.128). Em relação ao espaço familiar, o autor esclarece que todo grupo familiar ocupa um espaço de características variáveis; estável ou instável, grande ou pequeno, de maneira que o espaço habitável está subdeterminado por variáveis econômicas, demográficas, sociais e psicológicas. Cada família concebe seu espaço de forma diferente e o estudo desta dimensão poderá fornecer dados sobre a organização inconsciente do grupo. Em termos gerais, o espaço serve para estabelecer representações de distância, onde a distância espacial pode ser uma projeção da distância afetiva ou um modelo encobridor da mesma, por exemplo. Podemos verificar as representações de distância, bem como a tolerância em relação ao corpo dos outros através de sua projeção na relação espacial entre os membros do grupo familiar. Concretamente, isso se traduz na observação da situação familiar de alguns pacientes portadores de afecções incuráveis como o câncer ou a AIDS em tratamento domiciliar (e mesmo na situação de prematuridade e hospitalização da mãe e do bebê), onde é possível verificar a redução do contato e a separação do paciente acometido 70 dos demais membros do grupo familiar. Esta “segregação” do membro doente reflete-se na organização da casa, pela reclusão deste num quarto que, dessa forma, passa a ficar isolado e dividido do resto. De modo semelhante, as representações de distância e a tolerância em relação à proximidade do outro, se fazem presentes ao observarmos os lugares geralmente fixos ocupados por cada um dos membros à mesa e a distância variável do restante dos membros. Mesmo entre um casal, observamos que cada um dos membros, ocupa habitualmente, um mesmo lado da cama, fixando no espaço a representação de seu próprio corpo e a relação com o corpo do casal. De qualquer modo, ainda que a configuração espacial apareça na consciência dos membros como fruto do acaso, pode existir uma rigorosa determinação inconsciente para a mesma. De acordo com o que nos traz Berenstein, o diagrama do espaço familiar, ou seja, a maneira como cada família distribui e organiza seu espaço é, antes de tudo, uma representação das relações familiares e do conjunto de imagens, idéias e lembranças das relações familiares tal como existem no inconsciente de seus membros. Em suma, podemos conceber o espaço familiar como uma dimensão onde se cristalizam as relações familiares e os mecanismos de produção das relações entre seus membros. Considerando o tempo familiar, Berenstein postula que cada família ordena seus acontecimentos vividos num tempo que retém todas as características da estrutura familiar. Todo grupo familiar sistematiza e ordena seu tempo em relação aos modelos mais próximos da consciência dos membros. A história de uma família aparece como o 71 relato dos acontecimentos significativos que incidiram em sua constituição e em seu desenvolvimento. Quando os membros de uma família relatam sua história enquanto grupo, lembram conscientemente de alguns acontecimentos passados que consideram importantes e que se encontram inscritos, gravados por eles na memória, mas se esquecem também de alguns episódios e ocultam outros, possivelmente não menos importantes. Os acontecimentos lembrados são ordenados a partir da organização atual da família e, segundo Berenstein, podem muitas vezes contribuir para explicar algumas de suas contradições. As famílias, assim como os países, apagam de sua história os acontecimentos indesejáveis ou os conservam, mas colocados num outro tempo, com o que adquirem um significado diferente do original. Podem também, de comum acordo, empalidecer acontecimentos significativos ocorridos, reavivar fatos pouco significativos e mesmo acrescentar outros realmente não acontecidos para dar coerência à sua história (BERENSTEIN, 1988, p.190). O tempo subdivide-se em quatro tipos: o tempo convencional, que seria aquele marcado pelos relógios ou calendários de acordo com as convenções, segmentado em horas, minutos, segundos, dias, semanas, meses e anos; o tempo biográfico ou cronológico, que corresponderia ao tempo evolutivo, com direcionalidade, não reversível, referindo-se a acontecimentos passados; o tempo mítico, que consistiria no estabelecimento de uma relação causal entre acontecimentos passados graças a um tipo de relação, dispondo de uma relação temporal antes-depois, implicando numa ordenação teórica dos acontecimentos empíricos para explicar causalmente as vicissitudes do grupo familiar de acordo com alguma teoria explicativa, geralmente 72 encobridora; e o tempo inconsciente, que seria aquele que é não-evolutivo, reversível, mantendo numa mesma estrutura os acontecimentos ocorridos em diferentes épocas, agrupadas num modelo regulador que lhe dá sentido, em termos gerais seria aquele tempo constituído pelo sujeito, pelo observador. Pontuamos ainda em relação ao tempo familiar, que o autor também sistematiza a divisão temporal em etapas relacionadas ao desenvolvimento da estrutura familiar: etapa de conexão com a família materna (coincidente com o namoro), etapa da aliança (baseada na relação conjugal como casal sexuado, onde se fixam novas regras de acordo, tanto conscientes como inconscientes) e, por fim, a etapa da filiação (definida como a etapa onde aparecem os filhos tidos ou adotados compondo inquestionavelmente uma estrutura familiar). Assim como os nomes próprios, o espaço e tempo familiar são importantes dimensões que retém propriedades dos grupos familiares, os quais vivem esse tempo e habitam esse espaço. Por serem dimensões socialmente pautadas, abarcam propriedades inconscientes. Berenstein alerta que talvez a dimensão temporal, mais que a espacial seja capaz de oferecer subsídios para o estudo de relações causa-efeito da estrutura inconsciente familiar, utilizando para isso o relato da sucessão dos acontecimentos históricos, mesmo que para a consciência dos membros, essa sucessão aparentemente apresente poucos significados ou correlações. Consideramos ainda primordiais para a compreensão da família num ponto de vista psicanalítico, as idéias trazidas por Puget e Berenstein (1993) referentes à constituição do casal. Nessa obra, os autores pontuam que o vínculo de casal ocupa um espaço virtual, sendo seu limite definido por um modelo sociocultural: todo sujeito atual ou futuro 73 ocupará na matriz inconsciente do casal o lugar de esposo ou esposa, quaisquer que sejam as denominações que cada cultura possa atribuir a essas posições. O termo casal (matrimonial) designa uma estrutura vincular entre duas pessoas de sexos diferentes a partir de um momento dado, quando estabelecem o compromisso de fazer parte de toda a sua amplitude. Deste modo, o casal possui elementos definitórios que permitem referir-se a ele como uma unidade ou estrutura, sendo considerado tradicionalmente como a origem da família, do ponto de vista evolutivo e convencional. Os mesmos autores enfatizam que psicanaliticamente, poderíamos pensar em casal enquanto indivíduos que se desprendem de sua família de origem, de onde se originam os modelos a serem seguidos. Leva-se em conta aqui, o desejo de diferentes egos de uma família, de perpetuar-se no tempo através da transmissão do desejo de ter filhos, transformado no desejo de constituir uma família, mediante vínculos de aliança. A marca de uma primeira contradição fundamental para a constituição do casal (matrimonial) surge da dificuldade do mundo psíquico de cada um de seus membros, derivada da resolução trabalhosa, difícil, nem sempre terminada, da separação de seus vínculos familiares (PUGET e BERENSTEIN, 1993, p.4). Puget e Berenstein limitam quatro parâmetros definitórios para especificar o vínculo diádico do casal: cotidianidade, projeto vital compartilhado, relações sexuais e tendência monogâmica. Destes quatro parâmetros, interessa-nos, particularmente, devido à natureza de nossa investigação, o projeto vital compartilhado. O primeiro projeto vital de um casal é o desejo de compartilhar um espaço-tempo vincular, onde o início de sua realização se dá quando o casal procura adquirir uma 74 linguagem com significado compartilhado, onde ambos os egos do casal utilizam significantes com um significado específico. Este vínculo inicial por sua vez, criará outros vínculos, os quais mais tarde se reeditarão perante a situação de paternidade. Mais uma das proposições dos autores que consideramos ser de extrema importância, e que já foi trabalhada em outra parte de nosso estudo, sem dúvida é a referente à questão dos vínculos (PUGET e BERENSTEIN, 1993). Como já trabalhamos este conceito ao abordar a dinâmica mãe-filho, trabalharemos o mesmo conceito enfocando agora a dinâmica específica do casal. O termo vínculo origina-se do latim vinculum, de vincire: atar, significando, pois, a união ou atadura de uma pessoa ou coisa com outra. É também utilizado para expressar a ação de unir, juntar, ou sujeitar com ligaduras e nós. Esta definição sugere a idéia, quando aplicada aos casais, de uma relação estável; uma vez que toda relação matrimonial parece estar associada à fantasia de ser estável no tempo e no espaço. Sendo assim, um vínculo é estabelecido a partir de estipulações equivalentes a um contrato inconsciente, realizando-se mediante acordos e pactos inconscientes. Os acordos inconscientes seriam o resultado de um tipo de combinação entre os aspectos compartilháveis, partindo de cada um dos espaços mentais do sujeito, onde se configura uma nova organização ou unidade mental e vincular. Os pactos inconscientes, pelo contrário, seriam provenientes do espaço mental incompartilhável dos egos de cada um dos parceiros que compõem o casal. Complementando suas concepções acerca dos acordos inconscientes, esses autores ainda ressaltam uma das questões mais centrais não somente na relação de casal, mas na própria Psicanálise: o Complexo de Édipo. Segundo Puget e Berenstein, o acordo inconsciente inclui o ego infantil, em sua modalidade de resolução do 75 Complexo de Édipo, pois na escolha do casal e, consequentemente, no acordo inconsciente estabelecido entre seus componentes, o ego infantil está sempre em busca de algum tipo de complementaridade, seja pelas identificações, seja pelas escolhas de objeto (a quem ter) ou pelas realizações de objetos (fazer como quem). c) Alberto Eiguer O terceiro autor a ser abordado por nós em relação às teorias psicanalíticas de família é Alberto Eiguer. Iniciaremos nossa explanação sobre alguns princípios norteadores trazidos por ele mencionando seu pensamento acerca da família. Quando se aborda a questão da vida familiar, o mais importante não é defini-la em percurso ou em termos de duração de anos, mas sim em termos de trajetória inconsciente do vínculo do casal, do vínculo filialparental, do vínculo de consangüinidade. Isto é, sob a evolução, no inconsciente de cada um dos membros da família, do apego ao outro na especificidade dos vínculos (EIGUER, 1985, p. 72). Uma das hipóteses centrais da obra de Eiguer é a concepção de que a família é composta de membros que têm, em grupo, modalidades de funcionamento inconsciente diferentes de seu funcionamento individual, os quais se manifestam através do que o mesmo concebeu como organizador inconsciente do psiquismo familiar (EIGUER, 1985, 1997). Em sua perspectiva, este organizador se define como uma formação coletiva, para qual contribuem os psiquismos pessoais, que concentra um jogo de representações psíquicas específicas do membro familiar e um denominador comum de emoções freqüentemente exaltadoras. 76 Fator de maturação e apaziguamento, o organizador familiar implica um salto progressivo na consolidação dos vínculos recíprocos, ou seja, a família tornar-se-á, por causa do organizador, um grupo constituído por indivíduos que possuem uma representação inconsciente deste grupo, no interior de seu próprio aparelho psíquico. Eiguer delineia três organizadores da vida familiar inconsciente: a escolha do objeto no momento de instalação da relação amorosa e no plano inconsciente, a partilha dos objetos – constituição do mundo interior grupal, em outros termos, é o Édipo de cada parceiro que intervém neste organizador e são os objetos parentais interiorizados que constituem o núcleo do inconsciente familiar; o eu familiar, dividido em três suborganizadores que correspondem ao sentimento de pertença, habitat interior, e o ideal do ego familiar e, os fantasmas partilhados ou interfantasmatização, onde se destaca o fantasma inconsciente da cena primitiva ou primária. Com relação ao primeiro organizador inconsciente – a escolha do parceiro, podemos observar que esta escolha numa relação amorosa não ocorre por acaso; inconscientemente há um alívio econômico, agindo concomitantemente com um mecanismo defensivo. Os parceiros entrecruzam objetos inconscientes, de modo que a relação sentimental se alimente da descoberta de um parceiro que, além de parceiro, é o resultado do amor infantil. O objeto inconsciente de um se entrecruza com o objeto inconsciente do outro e os dois objetos acumulados inauguram um mundo objetal partilhado, adotando assim uma dimensão organizadora: “A constituição da escolha do parceiro, provavelmente, dará forma à organização inconsciente específica da família, à interação entre os cônjuges e entre pais e filhos” (EIGUER, 1985, p.37). Dentro desta perspectiva, três modos de escolha objetal são apontados: 77 - Escolha narcisista ou simétrica, caracterizando-se como a busca de um objeto (um outro) que se assemelhe àquilo que o indivíduo é, foi ou gostaria de ser. É uma relação onde prevalece a onipotência entre os parceiros, sendo eless incapazes do reconhecimento para com o outro, incapazes de aceitar que ambos possam se enganar, enfim, uma relação muito pouco gratificadora. - Escolha anaclítica ou assimétrica, caracterizando-se como sendo uma escolha regressiva em relação à etapa da dissolução do Complexo de Édipo, onde há uma relação complementar infantilizante para um e parental para o outro. - Escolha edípica ou dissimétrica, relacionando-se a uma escolha mais adulta, própria das estruturas neuróticas e normais. Esta escolha é feita buscando-se alguém que seja o oposto do pai do outro sexo. Considerando o segundo organizador inconsciente – o eu familiar, podemos constatar que o mesmo é entendido como o investimento perceptual de cada membro da família, permitindo-lhe reconhecê-la como sua, dentro de uma dimensão espaçotemporal. Os três componentes do eu familiar seriam: - O sentimento de pertença, o qual abarca os sentimentos que cada membro da família experimenta em relação ao conjunto do grupo, ou seja, a sensação de ser considerado e tratado de modo diferenciado do que ocorre nos outros grupos que não a família; a recordação de um passado comum, um tipo de intercomunicação conhecida e identificada. Além disso, este sentimento de pertença se alimenta de percepções inconscientes, causadas pelo reconhecimento das reações dos demais membros diante de um determinado dizer e de um determinado agir. 78 - O habitat interior, conceito este trabalhado inicialmente por Isidoro Berenstein, como descrevemos anteriormente. Este autor ressaltou o interesse do habitat como “pele” real e fantasmática da família. Compreendemos por habitat interior, o espaço entendido por cada membro familiar na relação estabelecida com o outro, buscando um lugar geográfico comum que possa aliviar o temor de um desmembramento: o lar, a casa familiar. Edificando-se no interior do inconsciente grupal, o habitat torna-se, então, uma representação partilhada, a base do reconhecimento grupal. Enquanto que o sentimento de pertença remete à identidade familiar, verificamos que o habitat interior remete à imagem corporal do “corpo familiar”. Contudo, tanto o sentimento de pertença quanto o habitat podem ser conservados por cada membro da família, mesmo que esses estejam vivendo em locais distintos e bem afastados. - O ideal do ego, contrariamente à pertença e ao habitat, que possuem como base o passado, esse, baseia-se no futuro. A utilização da noção de ideal do ego ao psiquismo familiar supõe o encontro, o conluio dos ideais pessoais dos membros da família, distinguindo-se do ideal do ego de cada um dentro desse grupo. O ideal do ego familiar refere-se, portanto, aos projetos de progresso social, cultural, educacional ou habitacional para a família. Convém pontuar que o ideal do ego familiar aparece como um importante organizador dos vínculos e da estabilidade do grupo, pois permite o trabalho do mesmo em direção à satisfação de pulsões, projetando e traçando planos, bem como estratégias para operacionalizá-los e alcançá-los. O terceiro organizador inconsciente – a interfantasmatização, pode ser considerado como o ponto de encontro dos fantasmas individuais de cada membro, 79 próximos por seu conteúdo. Refere-se, portanto, à criação de um espaço transicional de intercâmbios, de humor, de criatividade, de relatos das histórias pessoais de cada um e de seus ancestrais. Eiguer ordena duas instâncias para a ocorrência da interfantasmatização: - A dupla oscilação, a qual se refere à instância onde o fantasma originário aparece como o responsável pela manutenção de um relacionamento, estando intimamente relacionada à situação edípica, evocando os fantasmas de castração e sedução. - A interfantasmatização como fonte tanto de conflitos como de criatividade, de modo que a forma elegida pela família ao lidar com a ilusão ou desilusão conjunta, poderá determinar a coesão do grupo. Observamos deste modo, que a vida fantasmática se organiza progressivamente no tempo, recebendo as contribuições das sucessivas etapas do ciclo de vida familiar, sendo que a vivência do Complexo de Édipo será a responsável pela organização do encontro conjugal e suas ramificações fantasmáticas é que permitirá a evolução da família rumo à procriação dos filhos. Assim, o fantasma da cena primitiva ou primária permitirá organizar as etapas ulteriores e fundar definitivamente a família (EIGUER, 1985). Assim como Berenstein, Alberto Eiguer também se dedica ao estudo da construção da temporalidade pelo grupo familiar. Vamos nos deter um pouco mais nesse ponto, pois acreditamos que o fator tempo é um dos primeiros que se sobressaem quando abordamos a temática da prematuridade, uma vez que o parto prematuro e o nascimento prematuro de um bebê infringem a temporalidade no sentido de quebrar com a regra primordial da concepção: aguardar os nove meses de gestação. 80 Eiguer menciona que, assim como a representação do tempo é um produto do inconsciente, a construção do sentido do tempo também se refere às capacidades de elaboração coletiva da família. Para o autor, uma família normal deveria ser capaz de integrar a noção de passagem, de evolução histórica, com seus períodos plenos e seus períodos vazios, com suas crises e respectivas superações. Projetar-se no futuro, olhar o passado situando suas transformações, apesar da imprecisão e deformação dos fantasmas inconscientes é uma das funções da construção da temporalidade pela família. Com isso, podemos perceber a ligação presente na questão da construção da temporalidade familiar (e seus significados) e as crises, períodos, passagens, enfim, com o ciclo familiar de um modo geral. Para Eiguer, esta relação é enfatizada à medida que toda crise implica na perda momentânea e quase inevitável do horizonte temporal, ou seja, a ruptura se acompanha de um sentimento de eternidade, onde o tempo parece não mais passar. A noção de ciclo familiar torna-se interessante aqui, pela possibilidade de ser repensada sob a ótica da noção de estrutura ou do funcionamento inconsciente familiar. Todo ciclo implica em um nascimento, uma vida e uma morte, onde se embutem os conceitos de crise, trauma e luto. No interior do grupo familiar, é possível distinguir dois tipos de traumas familiares: os traumas cíclicos, ou seja, acontecimentos ligados ao ciclo histórico como o casamento, nascimento dos filhos, entrada na escola, adolescência, afastamento dos filhos, entrada na idade adulta. Por serem traumas evolutivos, trazem à tona, para seus membros, os traumas inerentes à sua própria constituição, ligados às vivências na família de origem. 81 O segundo tipo refere-se aos traumas não-cíclicos, que são próprios da existência pessoal ou familiar como por exemplo, mudanças de residência, de cidade, perda de emprego ou doença física. Em meio ao trauma, desencadeia-se uma crise, onde atuam fundamentalmente seus efeitos sobre a identidade familiar, havendo uma ruptura entre passado e presente do grupo. Visto desta forma, as reações familiares diante dos traumas são em suma, fundamentais para a introjeção da experiência recente (EIGUER, 1985). Ao nos aprofundarmos neste ponto, notamos que o próprio trauma e a crise são vivenciados de maneira cíclica, por meio de fases, etapas a serem assimiladas, elaboradas e transpostas no interior da família. Para resumir, podemos dizer que a crise: a-) reatualiza os antigos problemas familiares; b-) desvenda os equilíbrios precários; c-) desperta emoções e angústias; d-) implica um certo luto pela antiga maneira de viver; e-) provoca a modificação das regras a partir de então inadaptadas; f-) permite a definição de novas perspectivas (EIGUER, 1985, p.73). Esses três autores trabalhados acima – Pincus e Dare, Isidoro Berenstein e Alberto Eiguer podem nos fornecer importantes contribuições frente àquilo que nos propomos no presente estudo, buscar uma compreensão mais aprofundada da psicodinâmica familiar frente a prematuridade do nascimento de um bebê. Partimos do pressuposto de que tanto as mães acompanhantes quanto seus bebês fazem parte de uma estrutura maior que é a família e, que, mesmo não estando presente durante a hospitalização, continua a existir e, muitas vezes, a povoar as lembranças e preocupações maternas. 82 Compartilhamos da noção de que a vida, a dinâmica, a existência, as percepções, a cultura, enfim, a estrutura familiar não existe como algo solto no tempo e no espaço. Como já mencionamos no início de nosso trabalho, a vida familiar não parte de um marco zero; ao contrário, se do ponto de vista biológico, a gravidez se inicia com a concepção, do ponto de vista psicológico, há uma história pregressa que envolve a mãe e o pai, na qual já se encontram reservados alguns padrões de relacionamento a serem estabelecidos com a chegada desta criança. E a história pregressa, os padrões de relacionamento e os modelos a serem seguidos, ao nosso ver, nem sempre estão próximos da consciência dos membros de um grupo familiar. Assim, acreditamos que as reflexões trazidas por esses autores acerca dos componentes inconscientes dos vínculos familiares nos permitirão abordar a constituição, funcionamento e estrutura familiar inconsciente através da análise das continuidades e descontinuidades entre passado, presente e futuro, possibilitando-nos uma maior compreensão sobre a psicodinâmica familiar das mães de bebês prematuros. E isto, sem dúvida, poderá contribuir para a ampliação do trabalho de humanização no contexto hospitalar e para a atuação do psicólogo hospitalar como profissional de saúde inserido na equipe multiprofissional, seja através de grupos de orientação a pais e corpo técnico, objetivando não somente o tratamento e acompanhamento das disfunções e conflitos já existentes, mas também se preocupando em prevenir o surgimento de angústias e sofrimentos que podem decorrer dos processos de hospitalização. 83 4- OBJETIVOS 4.1- Objetivo geral Na presente pesquisa pretendemos estudar aspectos da psicodinâmica familiar de mães acompanhantes de bebês prematuros, a partir de seu ponto de vista. 4.2- Objetivos específicos - Compreender como a mãe acompanhante lida com a prematuridade da criança recém-nascida. - Analisar como a mãe acompanhante vivencia o papel materno e a relação com seu filho prematuro. - Avaliar o papel ou lugar que esta criança ocupa no interior do grupo familiar. - Averiguar quais são as expectativas da família para o futuro desta criança. 84 5- ASPECTOS METODOLÓGICOS 5.1 Método Um dos pressupostos fundamentais da Psicologia é que através desta ciência, buscam-se novos meios para a compreensão do humano, seus comportamentos e seu psiquismo. Fundamentamos nosso trabalho no Método Psicanalítico, tomando como referencial teórico os conceitos psicanalíticos e a Teoria de Família através das concepções dos autores Lily Pincus e Christopher Dare, Isidoro Berenstein e Alberto Eiguer, por compreendermos que esse método pode oferecer um caminho fecundo para a busca de possíveis significações para aprofundar a compreensão desses processos de subjetivação. Tanto o método quanto o referencial psicanalítico demonstram ser instrumentos propícios quando nos propomos a realizar uma análise qualitativa de dados, ou seja, instrumentos que oferecem a possibilidade de imersão na subjetividade e nos significados quanto às vivências pessoais dos sujeitos estudados. Ao procurarmos os sentidos que não se fazem visíveis num primeiro momento, podemos vislumbrar, graças ao uso da interpretação, uma forma de atingir e compreender o que está latente, o que está inconsciente. Ao optarmos pelo referencial teórico da Psicanálise, pretendemos preservar sua peculiaridade enquanto método da investigação da subjetividade humana e, portanto, 85 preservar a característica da singularidade do ser humano e da produção de sua subjetividade. Diante disso, utilizaremos o referencial psicanalítico e a Teoria de Família, tanto para abordar a dinâmica emocional e familiar das mães, como para a coleta de dados (entrevista) e para o tratamento dos mesmos (interpretação, no sentido psicanalítico, como sendo um recurso para se atingir os conteúdos latentes que repousam no inconsciente destas genitoras). No campo psicanalítico, a entrevista faz parte do processo psicoterápico e tem se mostrado igualmente, como um instrumento privilegiado da pesquisa psicanalítica. Na clínica, os primeiros contatos com o paciente são realizados por intermédio de entrevistas, as quais atendem a vários objetivos, desde o diagnóstico até a indicação de psicoterapia. É conveniente pontuarmos, no entanto, que tanto na situação de psicoterapia quanto na pesquisa, não é a entrevista que é psicanalítica, mas sim o método de investigação que é psicanalítico. Influenciada pela Psicanálise, a entrevista psicológica tornou-se um instrumento largamente utilizado nas pesquisas psicológicas e nas ciências humanas em geral. Bleger (1989), realizou um importante estudo sobre a entrevista psicológica definindo-a como um instrumento fundamental do método clínico, sendo portanto, uma técnica de investigação científica em Psicologia. Esse tipo de entrevista, inspirado no modelo clínico proposto pelo mesmo autor é constituído por uma relação entre duas pessoas, a qual acaba por ter uma dinâmica própria, permitindo a observação de aspectos da personalidade do entrevistado: “[...] a entrevista funciona como uma situação onde se observa parte da vida do paciente que se desenvolve em relação a nós e frente a nós” (BLEGER, 1989, p.15). 86 Deste modo, além de atentar para o valor dos comportamentos não verbais que emergem durante a entrevista, o autor ainda assinala que a entrevista sempre representa uma experiência vital muito importante para o entrevistado, significando com freqüência, uma das únicas possibilidades de se falar o mais sinceramente de si mesmo com alguém que não o julgue, mas acima de tudo o compreenda. Podemos concluir que durante o processo de entrevista, o pesquisador assume uma postura de escuta e aceitação incondicional aos conteúdos trazidos pelos sujeitos, podendo ampliar toda a significação destes conteúdos a níveis mais aprofundados do que aqueles percebidos inicialmente, além de receber indícios preciosos dos fenômenos psicanalíticos descritos como transferência (reações do paciente/ entrevistado em relação ao terapeuta/ entrevistador) e contratransferência (reações do terapeuta/ entrevistador em relação ao paciente/ entrevistado). Objetivamos, então, contemplar aquilo que está claro e é trazido pelas mães e, paralelamente, desvelar aquilo que não é percebido num primeiro momento. Para que isso seja possível, consideramos, ainda imprescindível propiciarmos um ambiente de segurança e respeito à livre expressão das mães, de modo que se crie um caminho de escuta, valorizando não somente a relação estabelecida com o “sujeito objeto de estudo” em si, mas visualizando o ser humano com o qual nos confrontamos no momento da coleta de dados, bem como sua história e suas peculiaridades. No presente estudo, partimos da premissa de que o grupo familiar é entendido como uma estrutura que se estabelece por intermédio de relações subjetivas e inconscientes. Por isso, nossa opção por um estudo da psicodinâmica familiar de orientação psicanalítica, utilizando como método de investigação um estudo diacrônico e sincrônico, proposto por Alberto Eiguer (1985). Este autor propõe um roteiro para 87 tanto; contudo, salientamos que nossa abordagem consistirá nos temas lançados por ele e que considerarmos serem pertinentes para nossa proposta de pesquisa. Estudo diacrônico (dados sobre a história e a pré-história familiares) História: • como os pais do bebê prematuro se conheceram; • como se deu a escolha do parceiro; • reações dos avós frente à escolha; • dados sobre o noivado e casamento; • arranjo da vida do casal; • crises enfrentadas pelo casal; • os filhos no desejo dos pais; • dados sobre a gravidez e nascimento; • o prenome dado ao bebê; • aleitamento e cuidados iniciais e, • função paterna. Pré-história: • descrição sumária dos traços dos avós e, • posição de cada pai em sua própria frátria. Estudo sincrônico (dados sobre a interação familiar) Interação: • a situação social da família; • relações no trabalho e instituições; 88 • vínculos com o resto da família e com os amigos; • dados sobre o habitat; • conflitos familiares; • o poder: decisões, regras e liderança; • o estudo dos papéis familiares; • papel da maternidade na família; • a comunicação no grupo; • a importância dos segredos e, • expectativas dos pais para o futuro dos filhos. 5.2- Local, instrumento e procedimento para coleta de dados a) Local A coleta de dados ocorreu num Hospital situado na cidade de Assis, cidade do interior paulista, com cerca de 94.000 habitantes, localizada na região oeste do estado de São Paulo. No intuito de manter o sigilo e preservar a identidade das mães que participaram deste estudo, não especificaremos o nome da instituição onde realizamos a coleta de dados. Essa instituição onde buscamos nossos sujeitos de estudo, foi inaugurada na década de noventa, caracterizando-se como uma instituição estadual com 100% dos atendimentos realizados através do S.U.S. (Sistema Único de Saúde). 89 O Hospital onde coletamos os dados representa nos dias de hoje, um dos grandes hospitais da cidade que presta serviços de alta complexidade para toda a região, oferecendo atendimentos clínicos, cirúrgicos e serviços de apoio em praticamente todas as especialidades. A Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (U.T.I. neonatal), setor escolhido para a coleta de dados da presente investigação, oferece além dos cuidados intensivos aos bebês de risco, um Alojamento para as mães acompanhantes se instalarem e poderem acompanhar a evolução do quadro de seus filhos. Os cuidados aos bebês de risco ou pré-termos, neste hospital, seguem a seguinte ordem: após o nascimento, o bebê é removido imediatamente para o setor de U.T.I. neonatal, sendo que sua mãe fica instalada no Alojamento para acompanhantes tendo livre acesso ao bebê e podendo ausentar-se conforme sua necessidade. Posteriormente, quando o quadro se estabiliza, o bebê ganha peso e é removido dos aparelhos, segue-se uma segunda categoria de cuidados denominada Cuidados Intermediários ou Berçário (similar ao Alojamento Conjunto descrito anteriormente), onde o contato mãe-bebê é mais próximo. Com isso, a mãe pode estar mais próxima de seu bebê, podendo segurá-lo no colo e amamentá-lo, para, finalmente, fazerem parte do Projeto Mãe-Canguru. Este hospital realiza um trabalho neste sentido desde sua inauguração, de modo que no presente, volta-se à Humanização e Excelência dos Serviços, o que torna imprescindível a presença do acompanhante durante atendimentos ambulatoriais, prénatal, trabalho de parto, parto normal, internações, U.T.I. neonatal, Projeto MãeCanguru com os recém-nascidos em Cuidados Intermediários, entre outros. 90 b) Instrumento Para a coleta de dados, utilizamos um roteiro de entrevista semi-estruturada e aberta baseando-se nas proposições de Bleger (1989) e mais especificamente Eiguer (1985), de acordo com o que descrevemos anteriormente. c) Procedimentos Acreditamos ser importante esclarecer que não estabelecemos critérios para a seleção e escolha dos sujeitos desta pesquisa; a participação foi voluntária e aleatória, tendo em vista a falta de um consenso sobre a etiologia e os fatores desencadeantes de partos prematuros, conforme elucidamos em outro ponto deste estudo. Participaram da coleta de dados quatro mães acompanhantes de bebês prematuros internados na U.T.I. neonatal instaladas nos quartos do Alojamento. Nenhuma das quatro participantes fazia parte do Alojamento Conjunto (onde são acomodados no mesmo quarto mãe e bebê) ou Projeto Mãe-Canguru (o qual estava desativado na época em virtude de reformas no espaço físico). Foram realizadas quatro visitas ao hospital para a coleta de dados, sendo que com a primeira e segunda família foi realizado apenas um encontro e com a terceira e quarta família dois encontros para esclarecermos alguns dados que não haviam ficado claros num primeiro momento. A U.T.I. neonatal e o Alojamento das mães ficam no mesmo andar e, todas as vezes que a pesquisadora adentrava este espaço, apresentava-se às acompanhantes que ali estavam, expondo também o motivo de sua visita à Unidade. É importante salientarmos que houve uma grande receptividade por parte de todas as mães instaladas no Alojamento. Mesmo aquelas que estavam acompanhando 91 bebês não prematuros na U.T.I. neonatal, demonstraram curiosidade acerca da pesquisa e o desejo de conversarem com a pesquisadora sobre seus sentimentos e processo de hospitalização de seus filhos. Após identificar as mães que poderiam participar da coleta de dados (acompanhantes de bebês prematuros internados na U.T.I. neonatal), a pesquisadora convidou as que estavam interessadas em contribuir com a pesquisa para a realização da entrevista. As entrevistas com a primeira, segunda e quarta mãe foram coletadas em um dos quartos do Alojamento que se encontrava vago; sendo que, com a terceira mãe, a entrevista ocorreu numa sala de televisão que estava vazia naquele momento. No encontro com as participantes, o procedimento de coleta de dados se deu através de duas etapas. Na primeira delas foi realizada a apresentação da pesquisadora, bem como o estabelecimento de um rapport inicial com as genitoras. Foram esclarecidos os objetivos do estudo, assim como a efetuação da leitura juntamente com as entrevistadas, do termo de consentimento livre e esclarecido, solicitando-lhes que, em concordando com os termos do documento, assinasse-o (ANEXO A). Durante esta etapa, esclarecemos sobre as normas de pesquisa com seres humanos, sigilo ético e ainda informamos sobre a gravação dos relatos em fitas k-7, para posterior transcrição e melhor aproveitamento dos dados. Na segunda etapa, após o preenchimento da ficha de identificação das mães (ANEXO B), foi solicitado que cada uma delas falasse livremente sobre sua história familiar, bem como sobre o futuro desejado para a família e para o bebê, seguindo o roteiro do estudo diacrônico e sincrônico proposto por Eiguer (ANEXO C). Após a realização de cada uma das entrevistas, a pesquisadora agradeceu a colaboração das mães, solicitando que as mesmas fossem com ela até a U.T.I. 92 neonatal e mostrassem seus bebês. Neste momento, a pesquisadora pôde observar através de um vidro de proteção as mães adentrarem a Unidade, aproximarem-se de seus bebês nas incubadoras e acariciarem os mesmos. Finalizando o processo de coleta de dados, após nos despedirmos das mães acompanhantes, dirigimo-nos até o posto de enfermagem da Unidade, solicitando às profissionais da equipe de enfermagem alguns dados dos prontuários dos bebês referentes ao nascimento (para verificarmos de quantas semanas haviam nascido) e ao diagnóstico (para sabermos se existia alguma intercorrência além da prematuridade). Neste contato com as profissionais de enfermagem, após um dos encontros realizados com as mães acompanhantes para aplicação do roteiro de entrevista, obtivemos a informação de que o bebê do quarta família apresentada na presente pesquisa havia falecido, em virtude de malformação congênita. 5.3- Aspectos éticos A participação das entrevistadas foi de caráter voluntário, sendo que as mesmas foram alertadas que poderiam se recusar a participar da coleta ou retirar seu consentimento e interromper a participação na pesquisa, sem que isto acarretasse prejuízos ou penalidades. Todos os relatos foram gravados e, posteriormente, minuciosamente transcritos e guardados em seguida em local seguro, mantendo sigilo quanto à identidade e informações coletadas. 93 Da mesma forma, para assegurarmos o sigilo e preservarmos a identidade das famílias participantes, optamos por adotar nomes fictícios, buscando preservar no entanto, o sentido dado ao significado de cada um deles. Os aspectos éticos do estudo foram pautados nas normas regulamentadoras do Conselho Nacional de Saúde (C. N. S.), resolução 196/96 sobre pesquisas envolvendo seres humanos (Brasil, 2000). De acordo com estas normas, todas as informações devem ser obtidas mediante consentimento livre e esclarecido, no qual em sua elaboração, procuraremos contemplar as especificações apontadas pelo C. N. S. 94 6- APRESENTAÇÃO DAS FAMÍLIAS 1- Primeiro caso: A Família Cruz José Paulo Mãe da filha de José Vanda Ap. 27 anos 39 anos Primeira filha de José P. † † Joana 8 anos † Gabriela Ap. prematura Figura 1: Genograma da família Cruz Representação dos três abortos sofridos por Vanda: o primeiro aos dois meses de gestação, o segundo aos oito meses e o terceiro sem período mencionado. História Vanda tinha quinze anos quando conheceu José Paulo, doze anos mais velho que ela, seu primeiro e único namorado. Na época, ela, a filha mais velha de cinco filhos, morava com seus pais e irmãos quando começou a se interessar pelo vizinho. Trocaram olhares e logo se apaixonaram. Pouco tempo se passou até começarem a namorar, namoro este que durou um ano. A diferença de idade foi algo que não incomodou Vanda ou seus pais. Ao contrário, esta diferença parece ter sido um fator de atração, uma qualidade que lhe chamou a atenção. 95 “[...] na verdade, eu nunca me interessei por outra pessoa, não que eu tenha preconceito por pessoas mais novas do que eu, porque ele é doze anos mais velho que eu”. Esta qualidade colaborou para que em seu íntimo, percebesse que José Paulo representava muito mais que um namorado. “[...] eu vi nele tudo, até um pai eu vi nele. Por ele ser mais velho, ter mais experiência, ser trabalhador, mesmo ele não tendo estudo, ele tem um coração imenso”. O casal iniciou sua vida sexual e durante a primeira relação sexual, apesar de usarem o preservativo masculino, Vanda engravidou. “Nós namoramos pouco tempo, um ano, e na minha primeira relação eu fiquei grávida [...] Mas a vontade de ser mãe já era tanta, antes do casamento, eu não sei explicar [...] Eu sempre tive esse ‘troço’ de ser mãe, desde pequena, sempre, sempre [...] Minha primeira relação foi com ele, nós até nos prevenimos, mas essa vontade de ter filho, de querer uma criança”. Embora a gravidez não tivesse sido planejada, reagiram de forma positiva à notícia. “Eu sabia que ia acontecer, na verdade, a gente fazia e queria, tinha aquela vontade mesmo de ser pai e ser mãe. Então a gente nem se preocupava com isso. A verdade é bem essa, tanto é que quando eu fiquei grávida, a gente ficou muito feliz”. Os planos em relação à maternidade já povoavam os sonhos de Vanda há muito tempo, enquanto que José Paulo já vivera a experiência da paternidade com o nascimento de uma filha, fruto de um relacionamento anterior. 96 Após cerca de um ano namorando e, frente à gravidez, o casal decidiu que morariam juntos. Se por um lado esta decisão foi bem recebida pela família de origem de Vanda, o mesmo não ocorreu com a família de José Paulo. Sobretudo sua irmã e sua mãe demonstraram alguma resistência em assimilar o novo arranjo de vida do filho, que agora decidira juntar-se a Vanda. “Meus pais aceitaram, eles ficaram muito felizes. Os pais dele aceitaram também [...] A mãe e a irmã são bem apegadas a ele, nós sempre nos demos bem, só que teve um ‘ciuminho’, elas não aceitavam muito que estavam perdendo”. “[...] com o casamento, muda um pouco. Tudo que elas ganhavam, ele passou a dar para mim, as coisas [...] Elas ficaram com muito ciúme, mas era uma coisa que eu sentia que não tinha perigo”. Segundo sua concepção, esta resistência persiste até os dias de hoje, pois a saída do filho caçula da casa dos pais representava uma perda. “Eles nunca jogaram isso na minha cara, mas eu tenho tudo isso dentro de mim, eles se sentem como se tivessem perdido ele”. Um sentimento de competição e rivalidade é inferido ao retomar as relações com os familiares do companheiro. “Infelizmente, eu penso assim, que um pacote de arroz que seria para eles, passou a ser para mim. Felizmente ou infelizmente, é a realidade. Casou, tem fim, tem que repartir, mas eles não sentem isso. Até uma roupa que você coloca e chega lá na casa deles, o pessoal repara e eu não estou trabalhando né?”. 97 Ainda é mencionada a tensão enfrentada junto à cunhada, amiga da mãe da primeira filha de José Paulo, que acreditava que seu irmão deveria unir-se a mãe de sua primeira filha. Para enfrentar esta adversidade e conseguir aceitar a garota e sua mãe, as quais, inevitavelmente, faziam parte da vida de seu marido, Vanda recorreu à religião. “[...] até para eu conseguir digerir a filha dele foi a mão de Deus. Ainda assim, eu consegui dar a volta por cima, amar a mãe dela, amar a menina mesmo, consegui olhar para a cara da mãe dela, consegui superar tudo isso”. Ao relembrar a decisão de se unirem e as reações apresentadas por ambas as famílias, algumas vivências referentes a sua própria família de origem são retomadas, mais especificamente sobre o relacionamento conjugal de seus pais. De acordo com seu ponto de vista, seus pais não ofereceram um modelo de relacionamento satisfatório, em virtude da infidelidade de seu pai. Este episódio acabou se tornando algo extremamente difícil de ser aceito por toda a família, configurando um tema delicado de ser abordado. “Para falar bem a verdade, eles não foram bem assim um exemplo de casal. Eles vivem junto porque minha mãe suportou muita coisa do meu pai, até traição [...]”. Por não ter tido oportunidade de conversar sobre o assunto na época e nem mesmo posteriormente, Vanda menciona certo receio em tocar neste tema, que para ela se tornou uma espécie de tabu, um segredo da intimidade de seus pais. Deste modo, arrisca-se a interpretar a atitude do pai e prever as reações de sua mãe. 98 “Eu nunca cheguei a perguntar, eu fiquei sabendo, eu nunca tive coragem de perguntar nada para ele [...] Ela foi quem sofreu bem com o meu pai. Mas eles nunca demonstraram nada para a gente”. “Eu acho que meu pai se sente muito arrependido [...] Se ele fez alguma coisa para a minha mãe, ela sempre nos preveniu disso, nos protegeu. Eu não tenho muita vontade, curiosidade, até porque eu vejo que se eu tocar no assunto eles vão sofrer muito”. Além da infidelidade paterna, um outro ponto que parece dificultar o relacionamento com sua família de origem é o jeito tímido, reservado e distante característico de seus pais. “Realmente, você tem toda aquela carência [...] Eu sinto toda uma carência, por exemplo, eles são pessoas boas, nunca me faltou nada, nunca. Por eles serem pessoas simples, eles são pessoas simples demais, nunca passaram a mão na cabeça, demonstraram afeto”. “Quando chega o aniversário, acho que eles esquecem, sei lá, não tem isso [...] Eu nunca recebi um ‘parabéns’ da minha mãe, nem por isso ela deixa de me amar. É o jeito dela, é a simplicidade dela”. A religião surge como uma importante fonte de apoio e segurança para família. A presença de Deus e os princípios cristãos ajudaram Vanda a se fortalecer e lidar melhor com as dificuldades de relacionamento, ser uma pessoa mais aberta. “Eu era mais parecida com a minha mãe no jeito de ser, mas o fato de você se envolver na igreja, fazer leitura na missa, a gente tem que subir lá em cima, se expor. Então a gente vai ficando menos tímida, isso faz muito bem para o nervosismo, para o medo. É terrível, porque através do medo, você deixa de fazer muita coisa”. A família também menciona a importância da fé na superação de conflitos e crises, especialmente na vida a dois. 99 “Quando a gente passa por alguma dificuldade, a gente se une mais, a gente consegue conversar, acabaria tudo virando briga se não fosse Deus. Se não fosse Deus, a oração, realmente a gente teria separado sim, como muitos outros acabam se separando”. Da mesma forma, salientam que, apesar de sempre terem passado por dificuldades financeiras, devido ao fato de José Paulo trabalhar como pedreiro, ser autônomo, atualmente possuem alguns bens como carro e casa própria, conseguidos através de muito esforço. Assim, após a decisão de morarem juntos, o casal viveu momentos de grande felicidade com a gravidez. Estavam aceitando a idéia, imaginando as mudanças físicas, o crescimento do ventre de Vanda. Entretanto, a gravidez foi interrompida no segundo mês de gestação devido a um aborto espontâneo. “Na verdade, nem os médicos sabem o que aconteceu, nem eu e nem os médicos. A gente ficou sem saber o que aconteceu, comecei a sangrar, deu hemorragia”. Passaram-se dois anos até que uma nova gravidez fosse confirmada. Durante este período o casal se fortaleceu e decidiu oficializar a união. Este primeiro aborto sofrido, bem como a própria decisão de oficializar a união são experiências marcadas novamente pelos pressupostos católicos, os quais auxiliaram o casal a reafirmar seus sentimentos, enfrentar a perda conjuntamente e para que fosse percebido o real sentido de se compartilhar a vida com outra pessoa. “[...] no primeiro ano nós amigamos, eles falam que eu casei três vezes sabe? Primeiro a gente amigou, aí eu perdi. Nós sofremos juntos, ficamos juntos. Depois de dois anos que eu perdi o primeiro, nós arrumamos o segundo”. 100 “[...] depois foi no civil e depois na igreja. Depois disso foi que comecei a ter consciência do que é o casamento, o sacramento, o matrimônio. Não é só casar, não é só vestido de noiva, é bem mais que isso”. A felicidade com a segunda gravidez foi interrompida no oitavo mês de gestação, quando Vanda perdeu novamente seu bebê, devido a um episódio de pré-eclâmpsia. Esta passagem é lembrada com tristeza e angústia por parte da família, uma vez que o bebê estava prestes a nascer, sabiam que seria um menino, haviam escolhido seu nome, preparado seu enxoval, enfim, teciam planos e expectativas para este bebê que não chegou a “nascer”. “O segundo bebê foi mais preocupante, eu tenho certeza que foi préeclampsia. Infelizmente não deu tempo. A gravidez do menino eu não tomei remédio porque eu nem imaginava que ia ter pressão alta”. “A gente já tinha escolhido o nome, ele ia chamar Gabriel. Ele que escolheu o nome”. Várias fantasias mescladas ao sentimento de impotência e preocupação passaram a reger a vida do casal, sobretudo a de Vanda, que ao se deparar com o segundo aborto espontâneo, viu seu sonho de tornar-se mãe mais uma vez adiado. “Você imagina um monte de coisa, que você não vai conseguir ser mãe de jeito nenhum, que vai ser impossível. Aí você começa a desesperar mesmo”. “As médicas daqui do hospital perguntaram porque a gente não tinha levado para lá, mas naquele tempo a gente não sabia nada né, há 10 anos atrás [...] não tem tudo que tem hoje, a gente estava tão longe daqui, os médicos lá da nossa cidade também não sabiam o que poderia acontecer e a medicina está mais avançada hoje”. 101 Apesar das tentativas frustradas em conseguir levar a gravidez adiante, o casal não desistia de ter filhos. Vanda ficou grávida pela terceira vez e desta vez, após nove meses completos, deu a luz à tão sonhada criança, uma menina que chamaram de Joana. Desde o início da gestação não houve qualquer intercorrência que sugerisse indícios de um novo aborto ou a necessidade de um parto prematuro, ao contrário, foi uma gravidez tranqüila, lembrada com satisfação, cercada de cuidados e boas perspectivas. “O terceiro bebê foi a Joana, correu tudo bem, desde o começo foi tudo normal. Quis subir a pressão, só que estava no tempinho de nascer, mas não teve problema nenhum porque o pulmãozinho dela já estava bem, não precisou de U.T.I., não precisou de nada, nasceu na nossa cidade, cesárea, correu tudo bem”. “[...] teve todo aquele cuidado, eu tirava um pouco de sal da comida, tomava o remédio que o médico receitou, vitaminas, enfim, foi completamente diferente de todos”. A respeito da escolha do nome do bebê, o casal não havia pensado em nomes masculinos, sendo que o nome Joana foi escolhido pelo pai. Ambos haviam combinado que se fosse um menino, o pai escolheria o nome e se menina, a escolha caberia a mãe. O fato de terem gerado uma menina pareceu não incomodar a mãe, a qual relaciona o sucesso da gestação da primeira filha ao sexo da mesma. “Eu ouvi falar num programa de televisão que essa doença, ‘préeclampsia’, geralmente a menina tem mais força do que o homem, eu não sei explicar porque, mas a menina mulher tem mais possibilidade 102 do que o filho homem [...] E eu comecei a acreditar que é assim mesmo”. Por outro lado, pensa que talvez seu marido desejasse que tivessem gerado um menino. “Ele não fala nada, ele aceita, ele nunca falou para mim que preferia um homem, mas todo pai sonha, né?”. Joana é descrita como uma criança calma e obediente, apegada ao pai, o qual tem mais paciência para lidar com ela. A seu ver, ele se sai muito bem no papel de pai. “Eu não tenho muita paciência, eu sou mais estressada e ele, ele é maravilhoso. Como pai ele tem mais paciência com a Joana, ele procura não fazer todas as vontades dela, mas o que ele pode fazer, ele faz”. Em função da gravidez de Joana, Vanda parou momentaneamente de trabalhar fora, como doméstica, retornando após o nascimento da filha. Contudo, quando a menina completou cinco anos de idade, decidiu abandonar o emprego e dedicar-se exclusivamente aos cuidados maternos e ao lar. Aliás, a questão do trabalho fora de casa é algo que desperta certo mal-estar. Por não possuir o ensino fundamental completo e conseqüentemente uma profissão, acredita que teria que enfrentar uma jornada de trabalho prolongada e mal remunerada. Ou seja, uma dupla jornada de trabalho, pois teria os afazeres domésticos também. “Pelo fato de eu não ter terminado meus estudos, profissão, tudo [...] Não teria outro serviço para mim, eu seria doméstica mesmo ou da roça”. 103 “Se for para trabalhar fora, eu teria que ganhar muito bem para pagar alguém para cuidar da minha casa. Eu com um salário mínimo [...] aí você trabalha, trabalha e chega na sua casa e tem que fazer tudo de novo, vai ficando estressada, com marido e filho para cuidar [...]”. A escolha por dedicar-se exclusivamente aos afazeres domésticos foi apoiada e até incentivada por José Paulo. “Ele é uma boa pessoa, mas ele prefere que eu fique na casa, para que ele chegue lá e encontre tudo pronto. Para mim está sendo bom assim, porque eu já tenho muita coisa em casa para fazer”. Em contrapartida, os familiares de seu marido não demonstraram tal receptividade, pois compartilham da idéia que a esposa deve trabalhar dentro e fora do lar. Este posicionamento é retomado constantemente, gerando cobranças e aborrecimentos. “[...] Sempre tem uma conversa e outra, não tanto falando para mim, mas fica aquela conversinha assim: ‘você viu aquela mulher que trabalha, com marido e casa?’ Sabe aquelas conversinhas, dando umas indiretas? E você fica chateada [...]”. Durante um intervalo de cerca de sete anos após o nascimento de Joana, Vanda ficou grávida, perdendo o bebê em face de um terceiro aborto sofrido. Pouco tempo após este acontecimento, Vanda engravidou novamente. Frente a possibilidade de nascer outra menina, o casal chegou a aventar a hipótese de adotarem um menino, uma vez que segundo sua visão, intimamente, José Paulo desejava um filho. 104 “A gente falou que se viesse uma menininha, qualquer coisa, a gente adotaria um menininho mais para frente. Agora, pensar nisso, eu não pensei, mas ele já pensou, então é sinal de que ele quer um menininho [...]”. Esta seria então a quinta gravidez de Vanda, em meio a três anteriores, interrompidas por abortos espontâneos. Para a família, apesar das dificuldades enfrentadas, os filhos significam algo que transcende a racionalidade e o tempo presente, significam algo que vai muito mais além. “Alguns pensariam em tudo antes de ter filhos. Já pensa lá na frente, na adolescência, no sapato que tem que comprar, no estudo que tem que pagar [...] Sinceramente, se fosse para a gente pensar nisso, a gente nem teria arrumado”. “Não sei se é por causa da religião, da renovação, ver nossa vida mudada por Deus mesmo, que a gente não consegue pensar, nós dois não conseguimos pensar lá na frente”. “Filho é a alegria, a felicidade, a continuidade do nosso amor, alguém que depois você vai dar tudo, que vai cuidar de você”. O casal havia sido advertido anteriormente que esta era uma gravidez de risco, em virtude da hipertensão e abortos sofridos, fato este que implicou num acompanhamento médico regular e minucioso. Apesar do monitoramento constante e cuidados dispensados, aos sete meses de gestação, Vanda deu a luz a um bebê prematuro: Gabriela. O súbito aumento de pressão arterial que inicialmente não havia causado qualquer mal-estar, agora se transformara num momento de tensão e crise para o casal. 105 Conforme seu estado de saúde se agravava, o médico local viu-se obrigado a tomar outras medidas de urgência, como a transferência de Vanda de sua cidade para a cidade do hospital onde realizamos a coleta de dados. “[...] o doutor de lá se apavorou, ele imediatamente ligou para cá, porque eu fui fazer o ultra-som aqui, eles já resolveram dar soro, remédio, medicamento [...]. Aí eles me deixaram dez dias para ver se tinha essa necessidade de tirar [...]”. Este é um momento recordado como uma experiência estressante e confusa para o casal, principalmente diante da possibilidade de um parto prematuro. Em meio à angústia e incerteza, mesclavam-se sentimentos de medo e solidão. “Eu fiquei dez dias aqui, sozinha, nessa tensão, meu marido veio aqui, conversou com o médico e viu que era uma coisa que não tinha o que fazer, e eu sem saber o que ia fazer, desesperada, ninguém falava nada [...]”. Após dez dias de tentativas mal sucedidas no intuito de controlar a crise hipertensiva por meio de medicamentos, a notícia do parto prematuro foi confirmada. “A pressão abaixava, tirava o medicamento, subia, tacavam o medicamento, abaixava de novo [...] Até que no último eletrocardiograma do nenê, dez dias depois, eles apavoravam porque o batimento começou a cair. Então fizeram de tudo para ver se não precisava tirar, mas não teve como, tiveram que tirar mesmo [...]”. A ansiedade e a expectativa em relação ao nascimento do bebê e seu estado de saúde invadiam os pensamentos de Vanda. “Eu fiquei assustada, me deu um medo [...] Eu já tinha feito cesárea, eu já sabia como era [...] eu não sabia como ia ser, ter o nenê antes da hora, se ia chorar [...]”. 106 “Você fica preocupada, eu tive medo dela morrer, porque foi completamente diferente da Joana. A Joana tinha fôlego para chorar, e ela não, era um choro bem fraquinho”. Ao mesmo tempo em que compara o parto atual e o parto da primeira filha, outra comparação é estabelecida: a gestação atual e sua segunda gestação, aquela interrompida aos oito meses. A semelhança apontada é o episódio de aumento de pressão arterial. Entre elas há, contudo, uma diferença significativa e crucial, a possibilidade de realização do parto, ainda que prematuro de Gabriela. Um outro fato que remete a uma similaridade entre o bebê prematuro e o bebê perdido no oitavo mês é o nome inspirado na bíblia, escolhido pelos pais. Na verdade, Gabriel havia sido o nome originalmente escolhido para o segundo bebê, se este viesse a nascer. “[...] nós colocamos o nome nela agora, né. Gabriela [...] É o nome de um anjo, porque tem São Miguel, São Rafael e São Gabriel. [...] Esse anjo tem o nome de São Gabriel, e tem a ver com a Gabriela”. Diante da situação de prematuridade e hospitalização, a sensação de solidão, estranheza e impotência são constantes. A ausência do marido ao seu lado é algo que incomoda neste momento tão delicado. “Eu fico brava, mas ele está lá com a nossa filha também, ele está lá com a outra [...] Eu tenho mesmo que ter força”. “Tem dia que você chora, tem dia que você sorri. Eu acho que só por um filho seu mesmo que você conseguiria [...] Quando é seu filho, não tem como você sair de perto”. 107 Ao mesmo tempo, demonstra esperança e confiança na equipe médica e nos procedimentos adotados. “[...] tem coisa que não tem o que fazer, os médicos mesmo, você não pode interferir, não tem como, eles sabem o que é bom, eles sabem o medicamento que vai [...] O que tiver que ser, será, e eu acho que eles são profissionais. Eu vejo assim, que Deus tem um propósito para tudo isso que nós estamos passando, mas foi tudo novo, né?”. Após o parto, Gabriela foi transferida para a U.T.I. neonatal, enquanto Vanda permaneceu internada por três dias, recebendo medicação a fim de controlar a crise hipertensiva, antes de poder juntar-se as demais mães no Alojamento. Vários pensamentos e fantasias surgiram na tentativa de compreender e assimilar os novos fatos. Nesta fase, surgem a necessidade da mãe proteger seu bebê, bem como seu desespero e sofrimento ante os procedimentos comumente adotados no quadro de prematuridade. “Passava tanta coisa [...] eu fiquei quase louca aqui. Em primeiro lugar vem a minha filha, eu faria de tudo para que ela ficasse mais um pouco aqui na minha barriga”. “Eu pensava que quanto mais dias ela ficasse dentro da minha barriga [...] Eu já não tinha mais veia para tomar soro, não tinha mais lugar onde ser picada. Mas eu queria ser picada por ela, no lugar dela”. “Daí depois eu fiquei com mais sofrimento ainda, porque você não vai ver só a sua barriga, você vai ver o rostinho dela [...] Quem está sendo picada agora é ela”. Mesmo após a alta e com a pressão arterial controlada, sentia-se confusa e perplexa quanto ao estado de saúde de sua filha. Exaurida e vulnerável, teve 108 dificuldade em dirigir-se e questionar junto à equipe médica sobre o quadro de Gabriela na U.T.I. neonatal. “Eu entrava lá dentro, olhava para ela e saía, eu não tinha forças para perguntar nada [...] Eu saia anestesiada, eu tinha vontade de perguntar, mas eu não conseguia”. “Eu saía chorando porque eu não estava acostumada, nunca ninguém da minha família foi parar em U.T.I. Eu perdi filho, perdi criança, mas eu não cheguei nem a ver os que eu perdi. Então é diferente, tudo isso é novidade”. As dúvidas e a agonia perante a falta de informações sobre o quadro do bebê foram minimizadas com a chegada de José Paulo ao hospital. Atendendo ao pedido de Vanda, dirigiu-se à equipe médica para conversar com os profissionais que estavam acompanhando o caso. “Ele chegou, me perguntou o que estava acontecendo, eu falei que não tinha forças para perguntar nada. Ele falou: ‘como você não perguntou nada para o médico sobre o que estava acontecendo?’ Eu falei que não conseguia perguntar. Daí ele saiu correndo e foi lá ver ela, ele conversou direitinho”. Os médicos explicaram que Gabriela estava reagindo bem, embora tivesse perdido peso. Entretanto, isso era algo normal, principalmente em virtude dos medicamentos. Tendo conversado com a equipe, José Paulo repassou as informações a Vanda, que enfim, viu-se mais tranqüila. O casal possuía noção da gravidade do quadro, demonstrando estarem conscientes de que seria um lento e longo processo, representando inclusive um tempo de hospitalização prolongado. 109 “Eu tenho que procurar em Deus e ir me acalmando, porque agora que está começando. Eu já coloquei na minha cabeça que é bem isso, dois, três meses. Eles têm todo um procedimento, medicamento, tudo na hora certa. Eu já sei bem que é rezar e pedir a Deus, eu já sei que é bem isso que eu vou ter que enfrentar”. Quanto à amamentação, várias tentativas foram feitas no intuito de estimular a lactação e poder amamentar a primeira filha Joana. Ainda que nutrisse um grande desejo de amamentar, Vanda não pôde, não conseguiu, uma vez que não produzia leite suficiente. Após o primeiro mês de vida do bebê, atendendo às recomendações médicas, introduziu o leite em pó na dieta deste. O mesmo obstáculo estava se repetindo com Gabriela, porém, a situação atual possuía um agravante: a impossibilidade de ter a pequenina em seus braços. Mãe e filha estavam separadas por sondas, incubadoras, vidros, enfim pela atmosfera nada acolhedora de um hospital. “A Joana eu não senti muito porque ela estava comigo. Mesmo que fosse para tentar uma mamadeirinha, eu fiz com o maior carinho [...]”. Consciente dos benefícios promovidos pelo leite materno aos bebês recémnascidos, Vanda infere seu sentimento de tristeza e impotência ao se dar conta da fragilidade de seu bebê pré-termo. Ao lado da cobrança interna sobre a amamentação, prevê uma cobrança externa por parte da equipe médica. “Só que agora eu fico mais nervosa ainda porque eu sei que ela está saindo do sorinho, a primeira coisa que eles vão querer fazer é isso [...] E eu sabendo que eu estou tirando muito pouco leite [...]”. “A gente pode tentar, também não vai morrer de fome por causa disso. Eu não vou ficar me culpando, a gente fica triste. Mas eu já estou 110 sabendo que da outra foi assim. Lógico que seria bom para ela [...] Você fica meio assim, meio impotente, principalmente neste estado que ela está”. Durante a realização da entrevista, a mãe comenta que o casal havia sido orientado a evitar gestações futuras, antes mesmo da concepção de Gabriela. Receberam sugestões de fazer uma cirurgia para a ligação de trompas – laqueadura – bem como pensaram também em vasectomia. Ainda não definiram qual será o método adotado, mas esta será uma das primeiras providências a serem tomadas quando voltarem para a casa, após a alta do bebê. “Agora é se prevenir, agora é ter consciência de que realmente é uma coisa muito séria, já tentamos mais um, se der certo [...] Se não der eu acho que não dá para arrumar mais”. Para a família, é de extrema importância focalizar o momento presente antes de pensarem em planos futuros. Atualmente, estão com todas as atenções voltadas para a recuperação de Gabriela, encontram-se absorvidos nesta empreitada pela vida. “Para a minha filha que está aqui, penso em sair com ela daqui, só isso. É lógico que eu penso em muita coisa, cada passinho dela, ficar com ela lá fora, muita coisa. Mas não tem como pensar em nada agora, a não ser ela sair daqui”. 111 2- Segundo caso: A Família Soares Primeira esposa (falecida) Adriano Keila de Fátima 20 anos 29 anos Renan Alan ou Vinícius 2 anos prematuro Figura 2: Genograma da família Soares História O namoro de Keila e Adriano foi uma fase intensamente marcada por desentendimentos e segredos. O casal Soares é de origem rural. Eles se conheceram através da irmã mais velha de Keila, a qual contava com dezessete anos na época. Ambas as filhas, Keila a caçula e, Marisa, a mais velha, residiam com a avó em uma cidade do interior paulista, enquanto os demais familiares – os pais e outros três irmãos homens moravam em uma pequena cidade, próxima dali. Keila trabalhava como empregada doméstica quando Marisa lhe apresentou o primo de seu namorado. O casal começou a se conhecer, iniciando um namoro às escondidas que perdurou por cerca de oito meses. 112 “Meu pai não deixava a gente namorar. Na época eu tinha dezessete anos e eu acho que ele não aceitava porque eu era a caçula. Eu acho que ele tinha muito medo de me perder, então, ele não aceitava de jeito nenhum . [...] Sempre eu dava uma... fazia uma mentira, eu sempre saía meio escondido, eu sempre falava que ia em algum lugar, mas eu ia encontrar com ele”. Marisa, a irmã mais velha, era a única que sabia do relacionamento e também era quem auxiliava o casal nos encontros secretos, que aconteciam a cada dois ou três dias. A decisão de manter segredo sobre o assunto partiu de Keila, pois acreditava piamente que seu pai reprovaria o envolvimento caso viesse a saber do fato. Essa crença povoava os pensamentos de Keila por vários motivos: pelo fato de nunca ter namorado antes, por ser a filha mais nova e, sobretudo, porque seu pai era uma pessoa de temperamento difícil, cujo principal defeito era fazer uso de bebida vez por outra. Isso, segundo ela, criava uma série de dificuldades que se refletiam na relação e no convívio familiar. “De vez em quando ele bebe [...]. Quando ele bebe, ele fala um pouco na cabeça da minha mãe, mas ela atura, né? Fala assim, sabe, mas no outro dia ele já não lembra mais de nada, só de falar abobrinha na cabeça da minha mãe. Eu acho que nem ele mesmo sabe o que está falando. Agora nós, os irmãos... Eles não aceitam meu pai ficar falando, então já começa aquele rolo, começam a ficar bravos, começam a falar. Mas quando ele está são, é as mil maravilhas”. Ao relembrar do tempo em que morava com sua família de origem e os desentendimentos causados pela relação do pai com a bebida, Keila reflete sobre o jeito de ser de seus pais, comentando sobre as características que teria herdado dos mesmos. 113 O termo “ruim”, atribuído ao pai durante vários momentos do relato, aparece não somente em referência à figura paterna, mas como uma característica herdada, que identifica a si mesma, seu próprio jeito de ser. “[...] eu sou quase igual a minha mãe, sou meio quieta, não gosto muito de conversa, não gosto de coisa errada, não aceito, não admito. E o lado do meu pai é que eu não sou muito boa, eu sou muito ruim”. “Ruim assim, quando eu vejo coisa errada, eu quero falar, eu não agüento segurar [...]. E por outro lado, eu sou quieta porque... às vezes minha mãe também é muito quieta, às vezes eu também vejo coisa errada e fico quieta. Então fica assim, dividido. De um lado eu sou boa e de outro eu sou ruim”. Ela acredita que o jeito quieto e reservado de sua mãe criou um certo distanciamento entre ambas, uma vez que Keila também apresentava alguma resistência em chegar até sua mãe para conversar e tirar dúvidas básicas acerca de suas vivências mais íntimas, principalmente em relação à sua sexualidade e feminilidade. Mãe e filha nunca tiveram a oportunidade de conversar sobre menstruação, relações sexuais ou gravidez. Esses não eram assuntos discutidos claramente no interior de sua família de origem, pelo contrário, sempre configuraram uma espécie de assunto secreto, um tabu. A compreensão de tais temas, chegou de forma solitária, somente com as vivências práticas. “Essas coisas de relação sexual, gravidez, menstruação, eles não conversavam, eu não ouvia eles falando sobre isso, nunca foi conversado, foi aprendido sozinha mesmo, quando aconteceu”. 114 “Na verdade, eu nem sabia sobre o que era ser mãe, porque minha mãe nunca comentava comigo, nunca falava comigo, nunca me explicou. Sempre foi uma coisa meio escondida, porque eu aprendi a ser mãe mesmo, depois que eu tive um filho, eu aprendi sozinha. Eu até pensava comigo: ‘Será que é bom ser mãe, será que não é, será que eu vou saber?’. Porque nunca ninguém me falou. Então foi onde eu acabei aprendendo sozinha e agora, eu sei o que é ser uma mãe”. Para Keila, uma das características essenciais da maternidade é a força, é ser forte. Característica essa identificada e admirada em sua própria mãe. “Eu acho que uma mãe tem que ter muita força, muita força para agüentar muitas coisas. Eu percebo essa força na minha mãe, por ela ter visto tudo o que eu passei, acho que se fosse no meu lugar, eu acho que eu nem ia agüentar”. Se por um lado Keila imaginava que seu pai não aceitaria seu namoro com Adriano, quando questionada sobre a atitude do mesmo em relação a sua irmã mais velha, Marisa, o mesmo não ocorria. Aliás, a história de sua irmã também foi relembrada durante a entrevista como uma história cercada de sofrimento, turbulências e mistérios. Sua irmã morava com a avó desde os três anos de idade e, aos doze, conheceu um homem, apresentado pela a avó; envolvendo-se com ele, engravidou após pouco tempo. Esse envolvimento ocorreu contra a vontade de sua irmã, sendo praticamente obrigada pela avó a deitar-se com ele. Até os dias de hoje, este fato não foi bem assimilado pelos familiares e a avó recusa-se a tocar nesse assunto. “[...] ela teve três filhos de um homem que ela nunca amou, ela nunca chegou a amar ele, ela não sabia nem o que era um homem, uma pessoa, o amor. Desde o começo, ele saia, largava ela sozinha e quando voltava, batia nela. O apego do meu pai era mais comigo”. 115 Enquanto Keila estava namorando pela primeira vez, Adriano já havia sido casado, enviuvando após três anos de casamento. Segundo sua concepção, o jeito sincero de Adriano, aliado ao fato de ser mais velho, ter sido casado, enfim, ser mais experiente foi o que chamou a sua atenção. “[...] ele contou toda a vida dele para mim, e eu até gostei, foi onde eu me apeguei e pensei comigo: ‘ele não está mentindo, ele está contando toda a vida dele para mim’. Eu gostei dele ser aberto, sincero. Foi onde eu me apeguei nele, acabei gostando dele, eu gosto, né, e acho que vou gostar para o resto da vida”. Entretanto, um dos principais traços de Adriano e que marcaria fortemente os tempos de namoro – suas crises de ciúmes e desconfianças – ainda não havia sido percebido por Keila. Ao descrever o marido, ela novamente lança mão de um adjetivo atribuído ao pai e a ela mesma: ser “ruim”. Esse traço seria uma herança advinda de seu sogro, pai de Adriano e que, mais tarde, viria influenciar o relacionamento do casal. “[...] ele puxou mais o pai dele, meu sogro, porque o pai dele foi muito ruim com os filhos, com a mulher. [...] uma época, quando eles eram mais novos, ele bebia, brigava com os filhos, e eu acho que um pouco isso ele puxou, porque como se diz, ele é bom né, só que é bom de um lado. Um lado ele é muito bom, ele é bom de conversar , de falar com as pessoas, só que não pode deixar ele agitado, com raiva, porque quando ele vê alguma coisa errada, ele já fala, então...”. Em contrapartida, Keila não sabe explicar muito bem o que deixou seu marido atraído por ela. Ela acredita que foram seu companheirismo e sinceridade, e que ambos se apaixonaram à primeira vista. 116 “Eu perguntava o que ele tinha visto em mim, o que ele achou, porque que ele se interessou justo por mim com tantas pessoas lá fora. Ele falou para mim que tinha gostado de mim porque eu era sincera e ele se apegou muito em mim, e eu acho que foi isso, acho que o amor, quando o amor acontece... Ele falou que nunca tinha sentido por ninguém aquilo que ele estava sentindo por mim, nem pela primeira mulher dele”. O casal continuou se encontrando secretamente durante todo o namoro. Contudo, tal situação, aos poucos, foi incomodando Adriano, aflorando nele um intenso sentimento de ciúmes e desconfianças a respeito da fidelidade de Keila. Nesta fase, as brigas e desentendimentos do casal, em virtude do sentimento de Adriano, eram constantes. Esse aspecto melhorou somente após a decisão de morarem juntos. “Ele tinha muito ciúmes de mim, ele falava: ‘você tem outro, você não quer deixar eu ir conversar com o seu pai porque você tem outro’. E falava para eu largar do outro, falava desse jeito. Não era sempre que a gente se via, ele ficava mais bravo ainda quando não dava para se ver e falava: ‘você tem outro, no final de semana você vai lá e fica com ele, e aqui essa semana você fica comigo’. Eu falava para ele não ir conversar com o meu pai porque o meu pai era ruim, ele não ia aceitar”. As tentativas de explicar o porquê do temor em fazer tal revelação ao seu pai eram infrutíferas frente a idéia fixa de Adriano. No entanto, ele somente foi capaz de compreender os motivos de Keila quando, finalmente, após oito meses de namoro, confrontou-se com o tão temido sogro para pedi-la em namoro. “Quando eu tentei falar para o meu pai que eu estava namorando, nossa, ele ficou uma fera, sabe? Mandou eu sair do meu serviço, mandou eu ir embora, não aceitou de jeito nenhum, daí ele falou: ‘não manda o moço vir aqui porque vai acabar sobrando!’. Daí, depois de oito meses ele encarou meu pai, ele foi, pediu para o meu pai, meu pai não deixou, mas mesmo assim eu continuei namorando escondido”. 117 “Daí foi onde eu fiquei brava, nervosa porque meu pai não aceitava e acabei engravidando, engravidei eu tinha dez meses de namoro. Não tinha nada pronto, casa nada, fui morar com a sogra, com a mãe dele. Meu pai logo aceitou, ficou bravo no começo mas aceitou”. A primeira gravidez ocorreu quando contavam com dez meses de namoro. O casal não fazia uso de qualquer método contraceptivo e, por Keila não ter um ciclo menstrual regulado, o atraso na menstruação foi visto como algo normal, natural. Passados cerca de quatro meses da última data em que deveria ter menstruado, um sentimento de preocupação levou Keila a conversar com sua irmã. Marisa alertoulhe da possibilidade de gravidez frente a um lapso de tempo tão significativo, recomendando-lhe que realizasse um teste de gravidez. “Ela me pegou, me levou, fiz o exame, depois de três dias ela foi buscar o resultado para mim, e o resultado deu positivo, é claro, né?” Diante da confirmação da gravidez, o casal teria um segundo empecilho a enfrentar além da desaprovação do namoro; agora, esperavam um filho. Como dar tal notícia aos pais de Keila, principalmente ao pai que se recusava a aceitar o relacionamento da filha? Sentimentos de medo, insegurança e decepção foram inferidos ao retomar a passagem da confirmação da gravidez. Medo e insegurança pelo temor do posicionamento paterno frente à notícia e decepção porque, em seu íntimo, Keila sabia que aquele filho havia sido muito mais desejado por Adriano do que por ela. “Ele queria muito um filho, ele queria muito. Ele até falava para mim: ‘eu vou roubar você, você vai casar comigo, nós vamos embora’. Ele fazia 118 planos de fugir, só que eu tinha muito medo. Ele falava: ‘nós vamos fugir, escondido ou sem esconder, mas vamos fugir’ “. “Foi muito difícil, eu sofri muito. A gente não se prevenia, eu ainda queria tomar remédio, só que ele não deixava. Ele queria muito ter um filho, esse era o sonho dele. E quando ele me falava isso, eu pensava que era bom, que era uma boa idéia, só que o medo, né? Eu tinha muito medo do meu pai, medo de acontecer alguma coisa, medo de não aceitarem, o meu pai falava que se acontecesse alguma coisa, eu morava com a minha avó, minha avó que ia se danar”. Deste modo, a gravidez não planejada repercutiu de forma contrastante em ambos os cônjuges. Por um lado, Adriano almejava ter um filho, esse era seu maior sonho; enquanto que, para Keila, ter uma criança naquele momento poderia representar seu pior pesadelo. Diante dessa situação, a possibilidade de realizar um aborto foi cogitada. “Foi muito difícil, nossa... Eu até pensei em ... abortar. Eu pensei: ‘vou abortar, ver se eu tento tirar’. Eu pensei nisso porque eu fiquei com muito medo”. Seguindo os conselhos da irmã Marisa e pensando no desejo de Adriano de ser pai, Keila acaba afastando a idéia de interromper a gravidez. O próximo passo seria contar a novidade ao companheiro. Este foi um momento bastante difícil, pois se sentia decepcionada consigo mesma e com Adriano também, chegando a acreditar que o mesmo possuía uma parcela de culpa frente ao ocorrido. “[...] para mim, Deus o livre, foi uma decepção danada, decepção por medo, né? Era muito medo que eu tinha, decepção com ele, porque eu não queria que ele fizesse aquilo. Eu falava para ele que eu não queria, que não era a hora ainda, só que ele... . Eu ficava brava com ele, eu xinguei ele por telefone e falei: ‘a culpa é sua, agora você é que vai levar!”. 119 As tentativas de esconder a gravidez de seus pais e de sua avó, com quem residia na época, foram mal sucedidas; além de sentir um mal-estar generalizado e enjôos freqüentes, o ventre de Keila crescia a olhos vistos, pois já estava no quarto mês de gestação. Foi quando sua avó percebeu algo errado, puxou sua blusa e imediatamente deu-se conta do que estava acontecendo. “Ela perguntou se eu estava, eu acabei mentindo e falei que não. Ela falou: ‘você não vai me enganar, eu sei que você está mesmo grávida’. Eu falei: ’eu estou mesmo grávida, não vou mentir, só que eu quero que por enquanto fique meio quieto’. Eu queria dar a notícia para o meu pai e para a minha mãe, só que ela não agüentou. Ela ligou no dia seguinte para a minha mãe e já soltou a bomba!”. A notícia da gravidez deixou a mãe de Keila desconcertada e nervosa. Combinaram então que a mãe comunicaria a novidade ao pai, pois Keila, sua irmã e sua mãe temiam as reações do pai e que, segundo suas previsões, não seriam nada acolhedoras. Contrariando às expectativas, seu pai reagiu de forma um pouco diferente do que imaginavam com a chegada de um neto. Mesmo tendo reagido de forma menos severa, ainda assim deixou bem claro o seu posicionamento quanto à gravidez e como deveriam ficar as relações familiares a partir dali. “Minha mãe foi lá, contou para ele e ele falou: ‘nossa, mas como foi acontecer uma coisa dessas ?’. Eu pensei que ele ia fazer uma tempestade, só que eu acho que de tanto nervo que ele ficou, ele ficou mais calmo do que eu esperava. Eu imaginava que ele ia matar o meu marido, porque ele sempre falava que não queria, que não aceitava [...]”. 120 Segundo a vontade do pai, Keila não deveria mais vê-lo e nem sequer passar perto do portão da casa de sua família de origem. Grávida, praticamente expulsa da casa dos pais e sem poder retornar a casa da avó, Keila e Adriano resolvem morar juntos na casa dos pais de Adriano, numa fazenda. Os pais de Adriano são descritos como pessoas simples, humildes, do meio rural como ela e sua família de origem. A ausência de receptividade e acolhimento por parte de seus familiares foi recompensada pelos de Adriano, que a receberam de braços abertos, em especial a mãe dele, sua sogra. “Eu fui acostumando com a idéia da gravidez, fui acostumando a morar com a sogra porque ela é muito boa demais, nós nunca tivemos uma discussão, a gente se dá muito bem. Ela não parece uma sogra, ela parece minha segunda mãe”. Keila acredita que a gravidez inesperada precipitou os planos de união do casal. Haviam conversado sobre o assunto e Adriano em especial, nutria o desejo de oficializar a união na época em que namoravam, mas o pai de Keila se opunha, alegando que a filha era muito nova e que não assinaria os papéis do casamento em hipótese alguma. Os planos referentes à oficialização da união aparecem até os dias de hoje no imaginário de Adriano, o qual planeja guardar dinheiro para tanto. Para Keila, entretanto, esse aspecto já não possui a mesma importância, já não tem o mesmo significado que tivera nos tempos de namoro. “Eu acho que agora que a gente tem filho, não compensa. Sei lá, eu quero casar sim, mas eu fico meio insegura por ter filho, eu acho que 121 não é mais aquela coisa bonita, não vai mais ter graça. Eu penso assim, mas ele já pensa diferente”. Com a união do casal, a mudança de casa e a gravidez, Keila parou de trabalhar fora como empregada doméstica e Adriano permaneceu trabalhando no meio rural com criações de animais como vacas, cavalos e carneiros. Essa modificação no arranjo de vida do casal foi sentida de forma ambígua e conformista. “[...] eu fico contente de um lado porque ele está me ajudando, está fazendo uma coisa que é coisa de homem. E por outro eu já fico triste porque eu quero trabalhar para ajudar ele, é bom a gente poder ajudar. É bom porque aumenta as coisas, dá mais coisas para os filhos da gente, mas enfim... se eu não posso, fazer o quê?’’. Assim, a função provedora ficou exclusivamente a cargo de Adriano, o qual acreditava que o sustento da família devia ficar aos cuidados do homem. Esse comportamento é percebido como uma demonstração de cuidado, afeto e proteção por Keila. “Eu até queria trabalhar fora de novo, mas ele fala que se ele amigou comigo, é para ele tratar de mim, e não para eu precisar trabalhar. Ele sempre fala para mim: ‘é, você trabalhava, só que antes não tinha eu, agora como eu sou o marido, quem vai sustentar você e os filhos, sou eu’”. A primeira gestação foi marcada por recorrentes sensações de mal-estar, enjôos e tonturas. A aceitação da mesma, segundo Keila, deu-se somente no último trimestre. “Eu fui acostumando, estava gostando de ter um filho, de ser o primeiro. Até que eu fui acostumando, chegou num ponto, uns sete, oito meses que eu falei: ‘ah, eu estou contente, seja lá o que Deus quiser, vou ter esse filho, vou cuidar e vai dar tudo certo’”. 122 Decorridos os nove meses de gestação, nascia de parto normal o primeiro filho do casal, um menino. Adriano havia pensado em chamar o bebê de Vinícius, pois era um nome que ele e sua mãe achavam bonito. Já Keila não gostava desse nome, queria um nome curto e de fácil pronúncia como Alan ou Caio. O bebê contava com cinco dias de vida, quando ao assistir uma telenovela, Adriano viu um ator e gostou de seu nome – Renan – comunicando a Keila sobre o nome escolhido por ele. Apesar do casal não chegar a pensar sobre o sexo do bebê, em outras épocas de sua vida, Keila relata que já havia cogitado nomes para o caso de gerarem uma menina, Vitória ou Patrícia Carolina. “Vitória porque eu acho que foi uma vitória o que aconteceu na minha vida, porque eu sofri muito no começo da minha gravidez, fiquei com muito medo, então eu acho que ter um filho é uma vitória. Patrícia Carolina foi por causa da minha irmã, para fazer um gosto dela”. Renan é descrito como uma criança esperta, arteira, difícil de obedecer e bastante apegada ao pai, o qual tem mais paciência com ele. Enquanto o pai tenta chamar a atenção do garoto, apontando as coisas erradas, conversando ou colocando de castigo, a mãe logo perde a paciência e acaba dando umas boas palmadas. Keila encontra algumas dificuldades na educação de Renan, principalmente por ser novo ainda e não entender as coisas direito. Muitas das tentativas do casal de impor limites acabam virando engraçadas cenas, onde pai e mãe se entregam ao riso. “Por ele ser muito novinho ainda, ele não entende, então o que acontece? Ele acaba saindo, acaba falando muito e a gente acaba dando risada, a gente como pai e como mãe acaba derretendo”. 123 Após o nascimento de Renan, o casal começou a fazer uso de contraceptivos – pílula anticoncepcional – a fim de evitarem uma nova gestação, pois ambos os membros do casal não desejavam uma nova criança naquele momento. “[...] ele falava para mim que não queria ter mais, ele não queria e eu também não. Eu pensava comigo que eu até queria, mas não tão já porque o outro estava muito novo, então eu achava que não compensava ter uma gravidez adiantada porque eu ia sofrer, né? Ele falava para mim: ‘evita, evita’. Eu também evitava, mas o que aconteceu?”. Apesar de usando a pílula de modo correto e regular, no término da última cartela, não foi possível comprar novamente o medicamento, devido à distância da fazenda onde a família morava e a farmácia da cidade mais próxima. “[...] como a gente morava em outra fazenda, era muito longe para chegar na cidade. Eu estava tomando o remédio certinho, na hora que eu não pude comprar, porque eu não pude ir na cidade, no dia que era para mim tomar, eu não tinha o remédio”. “Eu fiquei sem o remédio e fui no médico para poder comprar, o médico falou assim: ‘olha, você está regulada, certinho, não pode tomar o remédio agora, no meio do período. Você espera descer um mês e aí começa tudo de novo’. Eu falei que estava tudo bem, mas no meio deste período, eu acabei ficando grávida, acho que foi nesses quinze dias que eu fiquei sem [...]”. Esta seria a segunda gravidez de Keila. Novamente, predominaram os sentimentos de medo, ansiedade e ambivalência, tal como na primeira gestação. Além de acreditar que aquele não era o momento mais propício para terem outro filho, uma de suas principais preocupações era com relação à amamentação de Renan, que na época estava com um ano e quatro meses de idade. 124 Para a família Soares, a concepção é vista sob dois enfoques aparentemente opostos. Por um lado, aparece como uma dádiva, um “presente de Deus” e pelo outro, representa uma espécie de desafio ao qual precisam se “acostumar”. Assim, tanto na confirmação da gravidez de Renan como na última, há um lento processo de assimilação e aceitação da chegada de um novo membro, até que a família possa lidar realmente com este novo arranjo de vida. “[...] eu fiquei muito nervosa e ele também: ‘nossa, não era para ter acontecido, mas em todo caso, já aconteceu, não podemos fazer nada, deixa que venha’. [...] parece que foi uma coisa, acho que foi Deus quem mandou, porque a gente nada faz sem Deus [...]. Chegou um ponto que a gente tinha que se acostumar, só que não entrava na cabeça que eu estava de novo, eu tinha o outro muito novinho, eu pensava no outro. Ficava com medo dele ficar doente se tirasse ele do peito, se parasse de amamentar, porque eu não podia mais amamentar, eu estava grávida”. “Há um tempo atrás ele ficou sabendo que eu estava grávida de novo, ele não ficou assim, muito contente, porque não estava nos nossos planos ter um filho tão já perto do outro, só que agora ele acostumou”. A receptividade da gestação para o casal e mais especificamente para Keila assemelhava-se uma vez mais à primeira gravidez, quando surgem idéias de interrompê-la por meio de um aborto provocado. Este ponto, aliás, foi fruto de uma séria desavença entre os parceiros. “Eu pensei assim: ‘vou ver se eu consigo tirar, porque eu já tenho o outro, novinho, para mim, ter outro agora, vai ser difícil’. Eu só pensava, imaginava. Mas um dia eu cheguei a comentar com o meu marido, nossa, ele ficou louco de bravo comigo, xingou, falou: ’vai que você pega um remédio e não dá certo, vai que prejudica você e o bebê’. Daí eu pensei comigo: ‘vai que vai ser pior?’. Então eu achei melhor deixar como estava”. 125 Esta segunda gravidez também foi marcada por episódios de mal-estar, tonturas, enjôos e sono excessivo. O acompanhamento pré-natal foi iniciado somente por volta do sexto mês de gestação, sendo que Adriano procurava estar ao lado da esposa durante as visitas médicas sempre que podia. “Eu comecei a fazer pré-natal certinho, só que eu já estava de seis meses. Eu sabia e não sabia que estava grávida, eu tinha até medo de ter muita certeza por causa do meu outro filho [...]. Nessa última gravidez quem me acompanhava era o meu marido, ele mesmo queria entrar e conversar com o médico. [...] ele me ajudou muito, todo lugar que eu ia, ele ia junto, tanto que eu ia nos postos fazer o pré-natal, ele ia junto”. Por volta do sétimo mês, Keila começou a sentir fortes dores na barriga, sem entender o motivo. Pouco tempo se passou até que numa certa manhã, ao acordar e levantar de sua cama, Keila teve a sensação de estar urinando involuntariamente. Assustada, chamou sua sogra que estava passando uma temporada em sua casa para ajudá-la nos afazeres domésticos e nos cuidados com Renan. A sogra advertiu que aquele líquido não era urina e sim o líquido proveniente da bolsa que havia rompido. Este seria um primeiro indício da necessidade de se realizar um parto prematuro aos sete meses de gestação. “[...] eu levantei da cama normal, do jeito que eu levantei, eu vi uma água escorrendo, só que para mim, eu estava fazendo xixi na calça, eu não sabia. Eu falei para a minha sogra que eu estava fazendo xixi na calça e não estava sentindo, ela falou que achava que não era, que achava que a bolsa tinha estourado. Eu falei: ‘nossa, mas não pode, não é não’. Ela perguntou que tipo de líquido era, se tinha algum cheiro e eu falei que era um líquido grosso e que o cheiro não era muito bom”. 126 Com o rompimento da bolsa, Keila foi levada ao hospital mais próximo da fazenda onde moravam, sendo transferida para a cidade de Assis dois dias depois. Já em Assis, a notícia do parto prematuro foi confirmada, causando apreensão, temor, ansiedade e várias expectativas em relação ao estado de saúde do bebê ao nascer. “[...] eu estava com muito medo, meu Deus, eu pensava comigo: ‘será que vai sair bem, será que vai sair perfeito, será que não vai chegar a morrer, por ser novinho demais?’”. A preocupação preponderante do casal era saber se o bebê sobreviveria após o parto e, se o fato de ser prematuro, poderia causar alguma espécie de dano posterior à criança. “Eu falava: ‘será que não vai acontecer nada, será que ele agüenta?’. Meu marido ficou com medo também , aquele desespero, e agora? Ele falava: ‘nossa, não era para ter vindo antes, e agora, será que...’. Ele tinha medo de vir com problema, por ser prematuro, tinha medo de vir e não agüentar”. Mesmo não tendo apresentado qualquer problema de saúde durante a gestação que indicasse uma gravidez de risco ou a necessidade de um parto prematuro, Keila acredita que a prematuridade se deu em virtude de esforços físicos e de uma forte gripe contraída poucas semanas antes. “Eu desconfio que eu carreguei muito peso no começo, eu carregava o meu outro filho, que é bem gordinho, então acho que acabou prejudicando. Daí, logo no final eu tive uma gripe muito forte, acabei tossindo e acho que forçou. Eu fui no médico e ele falou: ‘olha, essa tosse aí está prejudicando sua barriga, quanto mais você tosse, mais seu bebê desce para baixo’. Daí, não teve jeito, eu tive parto normal, não agüentou mesmo, ele quis vir adiantando, acabou nascendo”. 127 Após o parto, o bebê foi transferido para a U.T.I. neonatal, enquanto Keila, após a alta, instalou-se no Alojamento com as demais mães. Inicialmente, sem entender muito bem o que estava se passando, a prematuridade deixou-lhe receosa, apreensiva, temerosa frente ao destino do bebê que agora estava distante dela, cercado pelas sondas e pelos vidros da incubadora. “[...] eu fiquei com muito medo, passava tudo na minha cabeça, eu pensava: ‘meu Deus, ficou por sete meses aqui na minha barriga e agora eu vou perder meu filho?’. É muita dor demais”. “Eu vi ele com os aparelhos, tudo, nossa, eu sofri muito, eu fiquei muito nervosa, eu não acreditava, eu tinha dó, tinha medo de acontecer alguma coisa com ele, tinha medo de perder ele, tinha medo dele não agüentar”. À medida em que o bebê da família Soares foi tendo uma boa evolução na U.T.I. neonatal, aos poucos foram sendo retirados alguns aparelhos como a sonda de alimentação. Esse foi um importante passo em direção à recuperação relembrado por Keila. Frente a isso, sentia-se menos aflita e mais confiante por estar mais próxima de seu filho, pegá-lo no colo e, sobretudo, por poder amamentá-lo em seu seio. “[...] ele estava se alimentando pela sonda, estava com soro na veia, é muito difícil pensar, ver ele nessa situação. Mas agora eu já estou mais calma, porque ele já saiu do soro, já saiu da sonda e eu estou amamentando ele no peito. O médico falou logo logo ele já pega alta e pode vir junto comigo, nossa, é um alívio para mim”. “Eu estou com bastante leite, ele mama bem até. Quando eu vejo ele [...]. Agora eu me sinto mais aliviada, porque antes eu estava insegura, com medo de perder ele, mas agora, como eu vi que ele tirou os aparelhos, que está mamando em mim, acho que eu estou com mais força”. 128 Até o momento da realização da entrevista, o casal ainda não havia escolhido o nome do bebê. Se fosse uma menina, Keila manteria os nomes que haviam sido cogitados anteriormente: Vitória ou Patrícia Carolina; enquanto que Adriano, apesar de não mencionar nomes femininos, gostaria de colocar Lílian, nome sugerido por sua mãe. “[...] um dia ele falou que queria colocar Lílian, mas foi a minha sogra também que indicou. Ela falou para ele que era um nome bonito. Aí eu falei que não achava feio, que achava bonito, mas era melhor esperar e ver o que era. Agora, veio menino e eu não sei, estou esperando ele para a gente conversar, porque eu mesmo, não quero tomar a decisão sozinha”. A mãe relata que gostaria que tivessem uma menina, pois assim teriam um casal de filhos. O pai, por outro lado, comemorou o nascimento de um menino, pois o mesmo acreditava que uma menina poderia, posteriormente, trazer alguma dificuldade para o casal em relação a criação de dois filhos de sexos diferentes. “Ele gostou que foram dois meninos, porque ele sempre falava que uma menina não ia muito bem não, porque já tinha um menino, talvez brincassem de coisa que não deve, pode ficar pelada, agora menino... . Ele pensava na diferença, então ele achava que não era bom”. Com relação ao nome do bebê, o casal divergia, tal como na primeira gestação. Pela vontade de Keila, deveriam chamá-lo de Alan, e pela vontade de Adriano, deveriam chamá-lo de Vinícius. “Eu pensei em Alan porque começava com a letra do nome do meu marido e é quase igual ao nome do outro, então fica pequeno e parecido. Agora, Vinícius, eu não sei de onde ele tirou, nem deu tempo de perguntar, e a gente nem conversou sobre isso durante a gravidez. 129 Daí, ficou assim, está sem nome, ou Vinícius ou Alan, vai depender dele”. A relação com a família de origem de Keila foi retomada pouco tempo após o nascimento do primeiro filho Renan. O casal voltou a freqüentar a casa dos pais dela normalmente. A família Soares não possui um círculo de amigos, sendo que as relações estabelecidas fora do lar voltam-se praticamente para as famílias de origem de Keila e Adriano. “Amigo, essas coisas a gente não tem, nem da parte dele porque ele é assim uma pessoa muito quieta, insegura, ele não gosta de pessoas que bebem, fumam, ele detesta bêbado, ele não gosta de porta de bar. Eu também não, então a gente se volta mais para a família, amigos mesmo, não tem, é mais a família”. Keila relata que pouco tempo antes da entrevista, o casal mudou-se da casa dos pais de Adriano, onde residiam desde a primeira gravidez de Keila para uma outra fazenda, em que Adriano passou a trabalhar. Apesar de gostar de morar na casa da fazenda onde estão agora, de ser um lugar bonito e agradável, a família Soares sente falta de ter um lugar que seja seu de fato. “A casa não é nossa, ele arranjou emprego lá e a gente foi morar lá. Só que às vezes eu sinto falta da gente não ter uma casa nossa, um lugar nosso [...]. Eu sinto porque e se um dia a gente precisar mudar, não vai ser minha, eu não vou poder colocar uma coisa aqui, outra ali, às vezes não pode né? Então é difícil a gente não ter uma coisa realmente da gente”. 130 Quando pensam no futuro dos filhos, o maior desejo do casal é que os mesmos possam crescer, tornarem-se pessoas fortes e que possam construir sua própria família. A alta hospitalar do bebê prematuro e sua recuperação representam um importante desafio, constituindo um momento especial, aguardado ansiosamente pela família Soares. “Espero que eles cresçam com saúde, com força, que tenham uma casa, uma vida, que arrume uma pessoa que faça feliz. É tudo o que a gente quer, que eles não sofram, que siga o rumo deles, que sejam pessoas boas, que vivam com a mulher, que tenham os seus filhos também. Para o meu filho que está aqui, que ele saia dessa situação, que viva bem, cresça bem, pegue bastante saúde, desejo que ele saia logo daqui, porque eu não vejo a hora de ir embora”. 131 3- Terceiro caso: A Família Alves Mário Ricardo Angelina Ap. 36 anos 23 anos André Ricardo prematuro Figura 3: Genograma da família Alves História Angelina teve uma história de vida inconstante. De origem humilde, morava com sua mãe, seu padrasto e outros dois irmãos desta segunda união. Não chegou a conhecer seu pai biológico e não demonstrou, ao longo de sua vida, qualquer interesse em saber sobre seu paradeiro. “[...] eu não tenho pai, esse, eu não considero, ele fez igual ao pai do meu filho, fez e...”. “Um dia, um estranho chegou na casa da minha tia, me pegou no colo e falou: ‘ oi minha filha’. Eu falei: ‘opa, tira eu do colo que eu não sou sua filha! O senhor é um estranho para mim, tira eu do colo que eu não sou sua filha não!’ ”. 132 Quando contava com seis anos de idade, sua mãe veio a falecer, dois dias após o parto de seu irmão mais novo. Poucas são as lembranças que restaram da figura materna, apenas que era uma mulher muito atraente. “[...] faz muitos anos, muito, muito tempo. Ela era uma morena, alta, de cabelo longo, preto, sobrancelha preta, parecia uma índia. Ela era calma igual eu, calmíssima. Muito namoradeira, é só isso”. A morte da mãe foi um acontecimento pouco explorado pelos familiares junto aos filhos. Poucos detalhes e informações foram compartilhados. Por ter escutado na época alguns comentários sobre o acontecimento, Angelina acabou construindo uma explicação sobrenatural para justificar a perda repentina. Apesar de ter sido informada que a morte se deu em virtude de complicações no parto, para ela, sua mãe fora alvo de “trabalhos espirituais”. Por ser uma mulher muito bela e que inevitavelmente chamava a atenção dos homens, sua mãe fora vítima da inveja e do mau agouro das próprias companheiras, aquelas que se diziam suas amigas. “Ela morreu dois dias depois do parto, se eu não me engano, naquela época, falavam que era aquela doença de amarelão, tirícia, mas eu acho que foi é coisa feita mesmo”. “Naquela época, existia bastante isso, e até hoje ainda existe. Porque eu ouvi comentários, minha tia fala que fizeram alguma coisa. Naquela época tinha muito olho gordo, eles não gostavam, ela incomodava. Não sei, acho que ela era muito namoradeira demais, bonita, inveja das próprias colegas. É por isso que eu falo, amizade, é melhor ficar sozinho do que mal acompanhado”. 133 Após a morte de sua mãe, passou a morar com uma tia, permanecendo com a mesma até os dezesseis anos, enquanto que o irmão do meio continuou com o padrasto e o irmão caçula foi morar com sua avó. O contato com o irmão caçula é mais próximo, enquanto que com o irmão do meio, a relação é mais distante, devido ao envolvimento deste com as drogas e o álcool. “Eu tenho contato com o irmão mais novo, agora com o do meio [...]. Ele só dá trabalho, não liga para nada, está perdido, na perdição. Então eu abandonei, me afastei, só para passar nervoso? Então não adianta ficar correndo atrás”. Sua tia é descrita como uma pessoa ambígua, com qualidades e defeitos, sendo que os defeitos, segundo ela, se sobressaem. O aspecto positivo refere-se ao acolhimento por parte da tia, que a recebeu em sua casa, dando-lhe abrigo e alimentação. O aspecto negativo refere-se à agressividade e distanciamento emocional. Praticamente não havia diálogo entre ambas ou demonstrações de carinho e afetividade por parte da tia, que ainda é descrita como uma pessoa autoritária, rude e violenta. “Eu estou falando para você que a minha tia era boa mas também era ruim. Ela me dava o que comer, o que dormir, ela me dava tudo, me dava casa. Só que também me dava surra, ela me batia sem motivo. Então a relação com ela era assim, quando eu era menor, não era aquelas coisas [...]. Me batia sem motivo, me espancava sem motivo. Ela não conversava comigo, não tinha dessas coisas”. “O meu tio, marido dela, era um coitado, comia na mão dela. Ela batia sem motivo, parecia que queria descontar na gente a raiva que ela tinha dos outros. Batia porque não estava fazendo o que ela queria, na hora que ela queria”. 134 Cansada dos maus tratos e da vida que vinha levando, resolve sair de casa para morar sozinha aos dezesseis anos de idade. A decisão de construir uma nova vida longe da presença inconstante da tia é percebida como um importante marco na vida de Angelina. Agora, além de não precisar mais conviver com as agressões, ela dava um importante passo rumo ao que seria primordial para ela: a independência. “Eu sempre fui uma pessoa independente. Desde quando eu saí da casa da minha tia, eu sou independente. Eu saía da casa da minha tia, do portão para fora, eu já era independente, não dependia mais de ninguém. Eu mesma fui levando a minha vida, fui morando sozinha, fui trabalhando, fui pagando aluguel, morando na casa de colega [...]”. “[...] vixe, eu trabalhei a minha vida toda, tenho até mão grossa, olha só. Imagina, eu fazia de tudo, ajudava meu tio a montar muro, depois entrei nas usinas, de tudo um pouco eu já fiz, fui até pedreira”. “[...] a minha vida é um livro aberto, todo mundo sabe, eu não gosto de mentira”. Deste modo, Angelina passou algum tempo morando sozinha. Ao conseguir emprego numa usina de corte de cana conhece Ednéia, que viria ser sua melhor amiga e que dividiria uma casa com ela, ajudando-a financeiramente. Ednéia resolve sair de casa e morar sozinha após o falecimento de sua mãe, convidando Angelina para morarem juntas. Mais tarde, ambas passariam a morar com um tio aposentado de Angelina. Até os dias de hoje, Angelina, seu tio, sua colega Ednéia e o filho dela, Emerson de oito anos de idade, residem todos juntos num imóvel comprado pelo tio. Ao relembrar do nascimento de Emerson e da própria criança, Angelina sente-se feliz. A relação entre ambos é bastante estreita, visto que foi praticamente ela quem 135 criou o garoto, enquanto sua mãe trabalhava fora. A chegada de Emerson auxiliou a exercitar seu lado maternal. “Tudo que eu aprendi nesta vida, eu aprendi sozinha. Eu aprendi a lavar roupa sozinha, eu aprendi a fazer a compra sozinha, eu aprendi a fazer as coisas olhando os outros fazerem [...]. Eu fui aprender a fazer as coisas quando eu cuidei daquele menino, quando eu tive que ser mãe para ele, ali naquela hora, enquanto ela não podia ser. Tive que aprender tudo ali na hora, lendo, vendo, olhando. Minha vida foi baseada assim, só olhando, tentando, fazendo, querendo fazer, fazia, do meu jeito, mas fazia”. O relacionamento com o garoto é tão especial, que Angelina se sente um pouco mãe dele. “Eu morava na casa da Ednéia quando ela engravidou, então a gestação dela toda eu fiquei na casa dela. Quando ela ganhou nenê, eu que cuidei dele desde que ele nasceu, até no hospital, eu peguei ele no colo, eu praticamente... .Ele até me chamou de mãe, até de mãe”. A convivência dentro do lar é vista como boa de maneira geral, apesar de algumas brigas e desentendimentos. Essas situações são resolvidas por meio do diálogo e, quem acaba assumindo a liderança é Angelina. Aliás, foi ela quem ensinou Ednéia a fazer as tarefas domésticas como cozinhar, arrumar a casa, fazer compras e lavar roupas. “A gente convive bem, sempre tem um bate-boca, mas resolve, né? [...] Eu sou a cabeça da casa, eu não gosto de discutir, não gosto de briga, não gosto de nada disso, comigo é na conversa. [...] Sou eu que tomo as decisões em casa, em matéria de compra, se eu vejo que tem alguma coisa errada ali, eu chamo a atenção. [...] as prestações mesmo, eu não gosto que atrasa, então eu boto consciência na cabeça deles, entende? Não é porque eu estou desempregada que eu não vou dar ordem também, né?”. 136 “Eu sou o pai, sou a mãe, tudo. [...] O meu tio não apita muito dentro de casa, ele é mais mandado do que apitado, quem apita lá sou eu e quando não sou eu, é ela. [...] Coisa errada, eu não gosto de ver coisa errada, não gosto de mentira e coisa errada. Eu chamo a atenção do pessoal, eles não gostam muito, mas tem que gostar. Porque eu falo, se não gostar, pega a malinha e zarpa, some daqui”. Foi neste contexto, residindo com seu tio, sua colega e o filho dela que Angelina conheceu seu vizinho Mário Ricardo. Foram se conhecendo, iniciando assim uma amizade. Conversavam, trocavam intimidades, experiências e, aos poucos, foi surgindo um interesse recíproco. “Nós éramos só amigos, de confidências, sabe? Ele conversava comigo as coisas dele, eu conversava com ele sobre as minhas coisas e assim ia. E aí eu me interessei e ele também já estava afim, então rolou”. O casal começou a se encontrar sem, contudo, firmarem um compromisso mais sério. Angelina não tinha a intenção de namorar, pois para ela, não valeria a pena investir naquele relacionamento. “Só ficamos, ficamos umas quatro ou cinco vezes e aí aconteceu. Nós não chegamos a ter um namoro. Não valia a pena levar adiante. E ainda fez um filho em mim, sem autorização. Quando eu descobri, nossa, eu quis morrer com aquilo, nossa, eu xinguei ele tanto”. Os relacionamentos anteriores deixaram um rastro de desapontamento em seu coração e, por causa disso, aquele seria mais um namoro que terminaria da mesma forma que os anteriores, decepcionando Angelina. Desses relacionamentos, um em especial marcou suas lembranças, foi quando estava namorando com um rapaz e decidiram ficar noivos. A relação transcorria normalmente, até Angelina pressentir que algo estava errado em relação ao noivo. 137 “[...] eu namorava com ele só que eu tinha aquele aperto, você sente que tem alguma coisa errada, você sente aquele pressentimento. Eu sentia pressentimento de que tinha alguma coisa errada ali. Eu chegava da roça, ia estudar, ele ia junto e a prima dele junto. Ia nós três e ele morava no fundo da casa da prima”. Sentia um forte aperto no peito sem saber ao certo o porquê daquilo, a única certeza é que algo de errado estava acontecendo. Esses presságios levaram Angelina a romper o noivado com o rapaz. Mais tarde, ela viu suas suspeitas serem confirmadas: o noivo a estava traindo com uma prima dele. “Um dia eu fui trabalhar e briguei com uma mulher lá na roça, cheguei nervosa em casa, ele chegou no portão, eu tirei a aliança, joguei no meio da rua e falei: ‘você nunca mais pisa o pé no meu portão, vai embora, vai’. Eu nem sabia o porquê eu tinha feito aquilo, eu coloquei na cabeça e não falei para ninguém. E ele vinha atrás de mim, só que vinha atrás e estava papando a prima. Você entende o coração como é que estava? O pressentimento fala, eu não sou trouxa, aí depois foi só decepção, né?”. Se por um lado, Angelina já havia tido alguns relacionamentos anteriores, Mário seria o seu primeiro parceiro sexual. O casal selou uma espécie de pacto em relação à prevenção da gravidez, combinando que ela faria a “tabelinha”, enquanto que ele interromperia a relação sexual momentos antes da ejaculação. Entretanto, não foi exatamente isso o que ocorreu durante a última relação sexual do casal, pois Mário não cumpriu a sua parte conforme o que havia sido acordado. “Eu fiz a minha parte, mas ele não cumpriu a parte dele e isso, eu nunca vou perdoar. Ele me desrespeitou, infringiu todas as leis, que era não ficar grávida, eu não queria de jeito nenhum, mas agora já está feito, fazer o quê?”. 138 Angelina havia sido bem clara quanto ao seu posicionamento em relação a concepção. A maternidade nunca fora alvo de sonhos ou planos até então. Para ela, o fato de ter trinta e seis anos, problemas de saúde, uma condição sócio-econômica desfavorável e ainda a tão prezada independência, configuravam uma situação onde um filho decididamente não se encaixava. “Eu não queria ficar grávida, queria não. Eu não posso ter liberdade, eu não posso trabalhar [...]. Eu tenho um problema muito forte de dor de cabeça, escoliose, infecção na bexiga. Eu não posso fazer esforço, eu tenho vários problemas de saúde”. “Eu sempre falava para ele: ‘eu vou ficar com você, mas eu não quero filho, você sabe que eu tenho problema’. Eu explicava para ele que eu tinha vários problemas, que eu não tenho condições de cuidar de um filho, de tratar”. “Eu nunca quis ter filho, eu não sei porque. Acho que é pelas condições que eu não tinha para cuidar e eu imaginava que mais para frente, quando eu arrumasse uma pessoa, juntasse, casasse, aí sim, né? Aí sim, até poderia, teria uma pessoa para cuidar, para ajudar, eu não imaginava, eu não pensava em ter filhos”. Se Angelina não tinha planos de engravidar e apresentava uma resistência em assimilar o novo fato, Mário por sua vez, parecia estar lidando melhor com a idéia. Ao retomar a confirmação da gravidez e a figura do pai do bebê, sua postura e entonação mudam radicalmente durante a entrevista. Sente-se enganada, frustrada e tomada de ira ao relembrar que Mário não cumprira a sua parte no acordo estabelecido em relação à contracepção. “Ele falava que queria um filho, só que ele queria o filho mas não queria assumir a mãe, entende? Eu não sei porque ele queria tanto um filho. Eu não sei se é para se mostrar, porque ele é muito mentiroso. Tudo 139 que ele fala, ele pensa que é verdade. Você fala com ele, ele não olha dentro do seu olho para falar, ele abaixa a cabeça, tipo falso, dissimulado. Para ele, era uma aventura”. Ainda assim, a gravidez alimentou uma esperança de que os dois pudessem se reaproximar e até mesmo ficar juntos. Contudo, à medida em que o tempo foi se passando, Angelina percebia que as atitudes de Mário não correspondiam às suas expectativas. “No começo eu até gostei, sabe? Eu gostei porque ele falava para mim que não estava com ninguém, que estava sozinho. Só que eu não sou trouxa, eu não sou tonta, só de olhar, ele conversa com a gente e não olha no olho, então eu já sabia que ele estava mentindo. Sabe quando você conversa com a pessoa e sente aquela angústia? Você vê que a pessoa está mentindo? [...] eu pensei que ele ia melhorar depois disso, só que em vez de melhorar, piorou, entende?”. O sentimento de desilusão com o comportamento de Mário foi aumentando à medida em que percebia que o mesmo, agora, estava mais ausente e indiferente que antes. Vendo-se solitária e cansada da indefinição do parceiro, decide afastá-lo definitivamente da sua vida e da do bebê que estava esperando. “Senti mais responsabilidade só para mim. Daí eu peguei e falei: ‘bom, já que a responsabilidade é só para mim, então vamos em frente, deixa ele de lado’. Vou pensar só no meu filho, para que eu vou pensar nele, ele não merece”. Invadida pela emoção, deixa-se levar pelo desejo de vingança. Muito amargurada e cheia de rancores, Angelina envolve-se numa pesada discussão, rompendo relações com Mário e com a família de origem dele. 140 “[...] ele passava por mim e fingia que eu era invisível, já começou por isso. Quando eu contei para ele e a barriga começou a aparecer, ele começou a me desprezar. Esperei a mãe dele chegar e falei assim: ‘o seu filho é um sem vergonha, um safado, ele não presta, para mim ele é um moleque, ele não tem atitude. Ele ficou aí na sua casa com uma fulana, transando o dia inteirinho, a tarde todinha dentro da sua casa e a senhora acha isso correto? Fazendo fusquinha na minha cara? Não é porque eu não estou casada com ele que ele não vai me respeitar’”. “[...] ela olhou para a minha cara e disse: ‘você sabia que ele era assim e agora você quer segurar ele? Você sabia que ele era biscateiro e agora quer segurar ele? ‘. Eu falei assim: ‘a senhora está enganada, eu não quero segurar ele, eu não gosto dele, eu jamais vou morar com ele, eu só quero uma coisa dele, a pensão do meu filho, o resto que se dane, que se lixe!’”. Além de ter exposto o que sentia para a mãe de Mário, Angelina também fez questão de dirigir-se ao próprio para dizer-lhe o que a incomodava pessoalmente. “Eu peguei ele no meio da rua e falei: ‘olha, para mim você é um moleque, um sem vergonha, um covarde, um safado. E faz um favor para mim? Pega aquelas coisas que você comprou para o seu filho e leva lá na zona para as biscates, que são mais bem tratada do que eu. Quer saber de uma coisa? Nunca mais olha para a minha cara e não conversa mais comigo não’”. O distanciamento de Mário e de sua família de origem durante a gestação e após o nascimento do bebê, seria essencial para poupar-lhe de aborrecimentos e cobranças no futuro. “Eu cortei com a família inteira, se eu deixasse que eles conversassem comigo, eles não iam mais me deixar em paz, na fofoca, na mentira. [...] eles dão o berço para você e falam que te deram os móveis inteiros da casa, então eu cortei com a família inteira”. No decorrer da gestação, Angelina não apresentou qualquer problema mais sério, o único incômodo citado era o enjôo. E assim se passaram os dois primeiros 141 trimestres. No final do sexto mês de gestação, começou a apresentar um quadro de hipertensão arterial inédito até então. Sentindo-se mal, decide procurar um pronto-socorro em sua cidade, preocupando o médico. Esse, Dr. André, era o mesmo que estava fazendo seu acompanhamento pré-natal. O quadro começava a se agravar, chegando a apresentar sintomas convulsivos, o que mobilizou o médico a providenciar sua transferência para a cidade de Assis. Já em Assis, a equipe médica constatou que os batimentos cardíacos do bebê estavam acelerados e que isso colocava ambos, mãe e bebê, em risco de vida. A única saída encontrada seria a realização de um parto prematuro. “O médico falou assim para mim: ‘você acha que o seu bebê está bom na sua barriga?’. Eu falei: ‘eu não sei, eu acho que sim’. Aí ele falou assim: ‘você acha que ele está bom, mas ele não está, ele está com os batimentos cardíacos muito fortes, então nós vamos ter que tirar ele’. Eu falei: ‘ai meu Deus, lá vai eu, sozinha’. Na hora que eles estavam fazendo cesárea, minha tia chegou”. A prematuridade é lembrada como uma experiência difícil, cercada de apreensão, expectativas e fantasias. “[...] dá um aperto, um medo, sei lá, tudo pode acontecer. Então a gente bota um monte de coisa na cabeça, medo dele não nascer chorando ou medo de não dar certo a operação”. Nascia então o filho de Angelina, um garotinho que foi chamado de André Ricardo. Em meio ao parto inesperado, ao nascimento de um bebê tão frágil e à 142 passagem pelo hospital, Angelina reprime seus sentimentos para que os mesmos não interfiram em seu estado de saúde. “Dá um pouquinho de medo, porque a hora que a gente vai conversar com o médico, vem a situação. Eu seguro para não chorar, porque se eu chorar, não vai adiantar, vai me dar dor de cabeça, dor no corpo, vou passar mal, minha pressão vai subir e eu vou voltar a ficar internada de novo”. Várias tentativas foram feitas no intuito de minimizar a ansiedade e a angústia provenientes desta delicada situação, como a distração frente a programas de televisão e músicas no rádio colocado no quarto das acompanhantes, assim como conversas com suas colegas de quarto. “Se eu começar a pensar, aí eu choro sozinha no quarto. Eu faço de tudo para não pensar, eu não penso, a hora que vem aquela coisinha assim na minha cabeça, eu não penso”. Angelina permaneceu internada dois dias após ter dado à luz ao pequenino André, para que sua pressão arterial pudesse ser estabilizada, enquanto que o bebê foi removido para a U.T.I. neonatal. O contato entre mãe e filho ocorreu apenas após a alta de Angelina. Frente ao estado de seu bebê e todos os procedimentos a que estava sendo submetido, Angelina relata não ter muitos temores. De acordo com suas palavras, as leituras específicas efetuadas e as informações obtidas durante a gestação, contribuíram para que pudesse encarar a situação de forma mais tranqüila. “[...] eu não fiquei assustada e nem com medo, sabe por que eu não fico assim? Porque eu leio muito livro de medicina, entendeu? Eu sou 143 mais assim, eu entendo mais as coisas, eu sou mais informada, eu gosto de ler livro de medicina, coisa de médico, de gestante, eu li. Eu tenho um livro de gestante, em casa, eu lia bastante para saber o que ia acontecer. Eu já sou mais cabeça fresca. Não adianta a gente ficar nervosa”. Quanto ao sexo do bebê, a certeza de que seria um menino já estava presente desde o início da gravidez. Mais uma vez, esta certeza veio por meio de pressentimentos. Apesar de estar certa sobre o sexo do bebê, Angelina relata que se tivesse gerado uma menina, esta seria bem-vinda. A respeito da escolha dos nomes, se fosse menina, já o havia escolhido. Gostaria que se chamasse Kelen, como a jogadora de vôlei da equipe do Brasil que estava disputando um torneio na época. Em contrapartida, se fosse um menino, não havia nome algum nos pensamentos de Angelina. Colocaria qualquer nome, desde que não coincidisse com nomes escolhidos por Mário ou sua família de origem; uma vez que os familiares do pai do bebê e ele mesmo estavam traçando uma série de planos futuros para a criança, inclusive como iria se chamar. O nome André foi escolhido por Angelina, aparentemente ao acaso, durante uma visita de Mário ao bebê. Ao ser questionada por ele sobre qual seria o nome escolhido para registrar o garoto, Angelina verbalizou o primeiro que veio a sua mente naquele momento. “Foi assim, na hora, o pai dele veio para registrar, foi no quarto e falou: ‘qual o nome que você vai por no seu filho?’. Eu não tinha nenhum nome em mente, eu nem tinha pensado. Eu olhei bem para a cara dele e falei: ‘vai chamar André’. Veio assim, do nada”. 144 Posteriormente, deu-se conta de que André era o nome de uma pessoa conhecida, era o mesmo nome de seu médico, o que estava acompanhando seu prénatal e que havia lhe atendido quando sua pressão arterial se alterou no pronto-socorro de sua cidade. “Você nem imagina, quando eu falei para ele colocar André que caiu a ficha. André era o meu médico, que ficou nervoso comigo para mandar eu para cá. ‘Dr. André, Dr. André’. Ai caiu a ficha, ai que eu me toquei, fui ver que era o Dr. André, foi o momento, ali na hora. Porque eu arrumei um nome para ele não colocar o nome dele, que ele queria, entendeu? Eu só não queria que eles penetrassem, porque eles já estavam planejando nomes”. A necessidade de solicitar informações sobre a evolução do quadro de André é praticamente inexistente segundo a mãe, visto que no momento da realização da entrevista, já haviam se passado cerca de trinta dias do parto prematuro e da hospitalização do bebê na U.T.I. neonatal. Esse período foi de extrema importância para a adaptação de Angelina, que passou a observar mais de perto a rotina e os procedimentos hospitalares adotados, adquirindo maior intimidade com a equipe de saúde. “Eu já sou da casa, eu nem preciso ficar perguntando que os médicos e enfermeiras falam tudo que eu quero saber. E outra, eu fico observando se tirou isso, aquilo, o leite entrando pela sonda. Mas isso tudo é um processo, falta muito depois disso”. Ao passo que resgatava forças e adotava estratégias próprias de enfrentamento em relação à prematuridade e hospitalização, Angelina ainda não estava conseguindo lidar de forma semelhante com Mário. 145 “Eu estou com muita raiva dele, eu não posso nem ver ele. Eu conversei com ele, ele entrou na minha família para falar mentira, falou para a minha prima e para a minha família que gostava de mim, que me amava, que queria morar comigo [...]. Ele falou para a minha tia que a gente tinha que se unir para cuidar do nosso filho. Eu olhei para a cara dele e falei: ‘unido ou separado?’. Ele falou que era separado. Ah, minha filha, para que ele foi falar isso?”. A frustração em relação à atitude de Mário levou novamente a um desapontamento com o sexo masculino de forma geral, tal qual ocorrera na época da traição do antigo noivo. Para ela, os homens não valorizam mulheres que se dedicam ao lar, maternidade ou mesmo aquelas que estão acompanhando o processo de hospitalização dos filhos. “Você pode ter certeza que a maioria das mulheres que estão aqui, os maridos delas estão dando valor nas mulheres lá fora. Nenhuma tem valor aqui dentro. As que vivem na zona, na porta de boteco, aquelas tem valor”. Por outro lado, manifesta o desejo de ter um companheiro futuramente e poder desfrutar deste relacionamento e ainda gerar outros filhos, desde que este companheiro seja um homem diferente de Mário. “Se eu arrumar uma pessoa decente, que viva comigo de verdade, que me ame, que goste de mim, eu terei outros filhos com certeza. Uma pessoa que vai até entrar na sala de operação comigo, isso eu não vou negar. [...] mas um dia ele vai sofrer, ele vai penar por tudo que ele fez”. Quanto aos planos para o bebê, há a intenção de criá-lo sem a presença paterna, exigindo do pai apenas aquilo que é do filho por direito, a pensão alimentícia. Neste sentido, todos os esforços estão voltados para oferecer a André a melhor assistência possível, dentro das condições de Angelina. 146 “Ele vai ser bem tratado, bem vestido, vai andar igual a um príncipe, não vai faltar nada para ele. Vai ser só eu e ele e ele e eu, papai vai ser só visita”. 147 4- Quarto caso: A Família Pereira Valter idade não confirmada mais velho Simone Ap. 21 anos Maria Clara prematura Figura 4: Genogama da família Pereira História Simone era a sétima de oito filhos. Aos dez anos de idade, apenas ela e sua irmã caçula residiam com seus pais, sendo que os outros irmãos já haviam se casado. Foi nessa época que Simone presenciou a morte de sua mãe, vítima de um enfarte fulminante. Ao retomar esse episódio, emergem uma série de emoções e lembranças que ainda marcam de forma significativa sua dinâmica. Para ela, a relação com sua mãe nunca fora das melhores, além de sentir-se rejeitada e inferiorizada perante os outros irmãos, a bebida era um outro fator que contribuía para que ambas se distanciassem ainda mais. 148 “A minha mãe bebia e eu também fui muito rejeitada pela minha mãe, não é que eu estou falando mal, Deus tem ela no céu, mas a gente sente as coisas, a gente não é boba nem nada. Ela não ligava mesmo, ela falava para os outros que eu não era filha dela. Ela não gostava de mim porque ela quase morreu quando eu nasci, então ela não gostava de mim por causa disso. Mas eu tenho alguma culpa? Eu não tinha culpa não”. “Ela sempre me batia bastante, sempre me xingava, agora eu não sei se é por causa da bebida, ou se ela bebia porque o meu pai também, por causa da angústia, do sofrimento que ela passava, só que ela descontava a raiva dela em mim, nos outros ela não batia, era só em mim, ela só pegava no meu pé”. O fato de ter visto a mãe agonizando desencadeou uma reação semelhante a um choque emocional. Naquele momento, Simone não conseguiu esboçar reação alguma, não derramou uma lágrima sequer. Somente após algum tempo é que conseguiu chorar, mas mesmo assim continuou impressionada com aquilo, sentindo fortemente a presença materna. “Ela morreu dentro de casa, eu vi ela morrer, eu tinha dez anos, eu lembro tudo certinho. Deu enfarte nela e eu estava dormindo, a gente estava tudo dormindo. Aí ela pegou e começou a se estremecer e morreu nos braços do meu pai e meu pai deixou ela com a gente ainda, enquanto ele foi atrás de funerária”. “Só que eu fiquei meio assim, eu lembro que eu não consegui chorar, eu chorei depois que passou alguns meses, depois que eu estava mais grandinha. Aí que eu comecei a chorar. Eu não sei se é porque ela fazia aquilo comigo que eu não conseguia chorar, todo mundo chorava e eu não. Eu não senti medo, eu não senti nada, só que depois, parecia que eu estava vendo ela dentro de casa, andando, mexendo nas coisas, fazendo comida”. Após o falecimento da mãe, Simone promete a si mesma que não aceitaria ver seu pai vivendo com outra mulher. Assim, ela e sua irmã mais nova começaram a tomar 149 conta dos afazeres domésticos ainda que não soubessem muito bem como proceder quanto à limpeza e organização da casa ou à comida. Passado um curto espaço de tempo da morte de sua mãe, seu pai resolve juntarse a uma pessoa, trazendo-a para morar com ele e com as duas meninas. Simone acredita que a segunda esposa de seu pai exercia uma influência tão forte sobre ele a ponto do mesmo ficar contra os próprios filhos. Deste modo, além da promessa feita por ela e da personalidade da segunda esposa, um outro fato que contribuía para a não aceitação desta segunda união por parte de Simone era que a segunda esposa exigia que ela e sua irmã caçula a chamassem de “mãe”. Isso causou um sentimento de revolta em Simone. “Mãe é uma só, nunca que eu vou chamar de mãe alguém que meu pai dava o carinho que não dava para a minha mãe. Eu não aceito. Por mais que a minha mãe fosse ruim, eu gostava dela, eu cuidava dela”. As desavenças se agravaram e Simone acabou saindo da casa de seu pai. Morou na casa de vários parentes até que uma tia assumiu os cuidados e levou-a para morar com ela. Na época em que se mudou para a casa da tia, conheceu Valter, amigo de seus primos que costumava visitar a casa freqüentemente. Quando o conheceu, Simone estava envolvida com outro rapaz. Estavam namorando, mas apesar deste rapaz parecer ser um bom moço, ela não estava verdadeiramente apaixonada por ele. Um sentimento mais intenso começava a surgir por Valter. “Foi assim, primeiro eu namorava um rapaz, aí não deu certo, eu comecei a gostar dele, eu já gostava dele. Ele não saia da casa da 150 minha tia, porque os meus primos eram todos solteiros, ele ia lá conversar. Mas ele também sentia interesse por mim, só que tinha vergonha de chegar em mim, então ele mandava recado pelos outros. E eu como namorava o outro, não tinha jeito, não tinha nem como, né?”. “Aí eu comecei a sair com ele e larguei do outro. Eu gostava dele, mas não gostava do outro, o outro era bonzinho, era boa pessoa. Então eu ficava achando: ‘não gosto, não adianta, né?’. Não é aquela pessoa para a gente ficar junto. Aí eu larguei dele”. Mesmo tendo alguns relacionamentos anteriores, Simone nunca havia tido relações sexuais com os demais namorados, sua primeira vez foi com Valter. Sobre este tipo de assunto, relata que tinha medo de engravidar e vergonha de falar disso com os namorados. Procurava evitar tais situações, além de acreditar que os namorados poderiam “aproveitar-se” dela, ou seja, ter relações sexuais e, posteriormente, não assumirem um relacionamento mais sério. Tendo isso em mente, evitava sua primeira relação sexual a todo custo, principalmente ao se recordar das recomendações da tia que havia lhe pedido que “não aprontasse”. Entretanto, a primeira experiência sexual ocorreu com o então namorado Valter, após uma série de cobranças dele neste sentido. “Eu saia, eu fugia enquanto dava, até que um dia ele me prensou na parede e perguntou se eu gostava dele, então eu tive que fazer”. Simone não fazia uso de métodos contraceptivos. Frente à possibilidade de engravidar, questionou se Valter possuía o preservativo masculino para usarem naquele momento. Este, por sua vez, disse que não possuía nenhum preservativo, afirmando que “se fizesse uma vez só, não engravidava” e que Simone não deveria se preocupar com aquilo. 151 A virgindade de Simone foi descoberta pelo parceiro frente ao rompimento do himem e os indícios de sangue no lençol. Valter demonstrou surpresa, pois acreditava que Simone “era mais experiente, que já havia feito isso antes”. A medida em que o tempo foi passando, Simone percebeu um atraso significativo no ciclo menstrual, além de enjôos e algumas modificações corporais. A suspeita de gravidez fez com que procurasse um posto de saúde sozinha e fizesse um exame de sangue, deparando-se com o resultado positivo quanto à gravidez. A primeira pessoa a saber da confirmação foi Valter, que passou a cobrar a revelação da notícia a sua tia. Contudo, o temor frente às reações nada acolhedoras desta impediam-na de contar a novidade. Por outro lado, a tia começou a perceber que a sobrinha andava quieta, preocupada e que não estava usando os absorventes comprados para ela. Estas percepções levaram-na a questionar o que se passava com Simone que, frente a isso, viu-se praticamente obrigada a revelar a realidade. De fato, a reação da tia não foi das mais tranqüilas. “Ela ficou brava, xingou e falou que então tinha que juntar”. O namoro do casal foi breve, durando cerca de três meses. Após a confirmação da gravidez, decidiram morar juntos. Esta decisão, na verdade, foi praticamente imposta pelos familiares de Simone, sobretudo seus primos. “[...] eu fiquei grávida e eu tive que ir morar com ele, porque meus primos não iam aceitar eu barriguda dentro de casa”. 152 “A minha tia, se dependesse dela, ela não queria que eu fosse morar com ele, é que minha tia também depende dos meus primos [...]. Quem tem que dar dinheiro para comprar as coisas, é meu primo que chama Pedro, é ele que controla as coisas em casa, e como meu primo falou: ‘olha, se ela ficar, eu vou ter que sair’, não tinha condição, os outros iam ficar falando de nós”. O casal passou a morar numa pequena casa nos fundos da casa da mãe de Valter. Simone relata que gostaria de ter oficializado a união, mas o parceiro ainda nutria dúvidas a respeito. “Minha tia perguntou porque a gente não casava no cartório, mas ele não quis. Ele falou que não queria casar porque não sabia se ia dar certo, então ele já ficou com essa intenção na cabeça. Eu queria casar, mas como eu vou obrigar a pessoa a casar na marra? Minha tia sempre ficou do meu lado, ela falava que era para eu decidir. Se dependesse dela, eu estava morando até hoje com ela, mas ficava mal para os filhos. Ela falava que o povo era muito fuxiqueiro, então, para ela não passar vergonha, ela falava: ‘você vai ter que ir, como é que vai ficar a nossa fama?’”. Se por um lado Simone estava lidando melhor com a gravidez e se acostumando à vida de casada, tanto Valter como sua família de origem não estavam agindo da mesma forma. A medida em que convivia de forma mais íntima com o agora marido, algumas mudanças no comportamento deste passaram a ser mais evidentes. “Eu pensava que ele gostava de mim, porque quando eu estava namorando, ele era de um jeito, aí depois que casou, ele se tornou outro tipo de pessoa, mais diferente”. Dentre as principais mudanças observadas estavam o distanciamento e indiferença para com a companheira e o uso freqüente de álcool. O uso da bebida 153 gerava preocupação por parte da mãe de Valter, que passou a controlar a vida do filho e do casal, sobretudo em relação aos honorários. A postura da sogra gerou desconforto e apreensão em Simone. “O problema dele é que ele é uma pessoa que trabalha, só que a mãe dele domina o dinheiro dele, ele dá o dinheiro para a mãe dele sabe por que? Porque ele bebia e ainda bebe [...]. Mas de primeiro, eu estava grávida e em vez dele dar apoio para mim sabe?”. “Quando eu precisei, ninguém, só minha tia que me dava apoio, porque da família dele, ninguém dava, só ficavam me xingando. Ele chegava bêbado em casa e ficava gritando na minha cabeça, não me dava carinho nem nada. E aí eu fiquei muito nervosa, porque você sabe, a gente fica muito sensível quando fica grávida. A gente sozinha, com filho na barriga e ainda sem experiência também. Com um marido que fica só com os colegas bebendo”. Com isso, as atitudes do marido estavam se assemelhando às atitudes de alguém que lhe fora muito próximo no passado e que havia marcado sua infância e suas vivências ao longo dos anos de modo bastante peculiar: a mãe de Simone. “[...] eu tinha medo de morar com ele porque ele bebia e eu tenho trauma com esse negócio de bebida. A minha mãe bebia muito sabe, vivia brigando com o meu pai, tinha muita bebida naquele meio, no meio daquele povo, sabe? Eu peguei trauma”. Com o passar do tempo, as intervenções da mãe de Valter junto ao casal passaram a ser cada vez mais freqüentes. A mesma não estava lidando muito bem com a gravidez de Simone e com a união de seu filho, gerando assim, uma série de discussões e desentendimentos. 154 As desavenças estavam na maior parte das vezes relacionadas à falta de prevenção pelo casal em relação à concepção. Um outro ponto onde as interferências da sogra também se faziam presentes era com relação ao dinheiro. Temendo que o filho gastasse seu salário em bares, a mãe passou a administrar suas economias, determinando a quantia a ser utilizada pelo casal em seu lar. O posicionamento adotado pela sogra incomodou Simone, que passou a ver sua vida pessoal controlada e, cada vez mais, dependente da figura da mãe do marido. Para não se indispor com Valter e ainda mais com sua família, Simone decide não intervir nessa dinâmica sufocante. “A mãe dele tira o dinheiro dele , pega o dinheiro dele e vai fazer compra para nós. [...] como ela não confia nele porque ele tem o costume de sair e ficar moendo dinheiro com os amigos e com cerveja. Desde solteiro, ela nunca confiou nele, ela acha que ele é irresponsável, tem medo de soltar o cheque na mão dele. E nisso, quem sofre sou eu, eu preciso das coisas e tenho que ficar pedindo para ela, a gente fica sem graça né? Eu achava que quem casa, quer ter as suas coisas né?”. “Eu acho que a mãe dele fica controlando nós. [...] ele nunca vai crescer se ela ficar fazendo isso, ele nunca vai ser independente. Ele fala assim: ‘tem a minha mãe para cuidar de tudo para mim, por que eu vou ficar esquentando a cabeça?’. É isso que eu tentei explicar para ela, mas ela não entende, ela acha que eu estou sendo ambiciosa. Mas eu não vou me intrometer, se eu brigar com ela, ele fica contra mim e fica pior para o meu lado, entendeu? E eles falam o que eles querem”. Assim, o uso constante de bebida e as reações advindas disso, passaram a ser um problema freqüente na vida de Simone e Valter, instaurando uma crise no relacionamento do casal. Ainda que pedisse para que ele não abusasse do consumo, seus pedidos não eram atendidos. Isso levava Simone a sentir-se cada vez mais nervosa e carente, além 155 de começar a enxergar certos traços de imaturidade no comportamento do companheiro. Na tentativa de absorver toda essa dinâmica e assimilar tal instabilidade, Simone procura explicações que justificassem o desinteresse do marido em relação a ela, à gravidez e à união do casal. “Eu ia falar para ele que eu não gostava que ele bebia e que ele fumava. [...] ele achava que eu estava muito chata demais, falava que eu ficava pegando muito no pé dele, e no fim, ele não ficava mais comigo, eu ficava mais sozinha do que com ele. [...] ele não é uma pessoa muito ligada a mim, mas eu não sei se é vergonha, sei lá, porque ele é muito tímido. Eu não entendo, às vezes eu fico achando que é por causa de mim, ou talvez um pouco mimado quando criança, sei lá”. “Quando ele chegava bêbado, eu ficava com medo porque ele ficava gritando e a gente quando está grávida, não pode ficar passando nervo e eu passava muito nervo, sentia muita falta de ar, ficava com medo. E ele não me dava atenção, não me dava o carinho que eu precisava, não gostava de ficar dentro de casa. [...] eu ia conversar com ele das coisas do casamento e ele não se interessava. Para ele parecia que o casamento era uma brincadeira de casinha, que não era para levar a sério. Mas, sei lá o que se passava na cabeça dele”. Um intenso sentimento de decepção é inferido quando retoma o momento em que a notícia da gravidez é dada a Valter, o qual não reagiu da forma que ela esperada. “Eu fui falar para ele e você sabe o que é a pessoa parece não gostar? Ele não gostou, ele falava que se acontecesse alguma coisa, ele ia assumir, mas na hora, eu pensei que ele ia ficar feliz sabe, porque eu acho que todos os homens iam ficar felizes, só que ele não ligou. Eu fiquei chateada porque é duro para a gente. Aí eu imaginei: ‘vou ter que cuidar sozinha’. Sabe que quando eu fiquei grávida ele não passou a mão na minha barriga. Eu tive que pegar a mão dele e passar na minha barriga. Sabe o que é você sentir que tem um filho e o próprio marido está rejeitando?”. 156 Em contrapartida, nas fantasias da futura mãe, os filhos possuem um lugar especial e representam um acontecimento importante na vida de um casal. Ainda que não tivesse vivenciado uma relação maternal carinhosa e acolhedora, existe a crença de que tal experiência exerceu poucas influências em seus planos quanto à maternidade. “Eu fui uma criança assim, que não tive muito carinho, então era para eu nascer assim, meio revoltada com criança né? Porque quando a gente geralmente sofre, não quer nem ver criança na frente da gente. Só que eu não, eu sempre fui amorosa, sempre cuidei muito de criança, cuidava das crianças dos outros, dos meus sobrinhos, sempre gostei, sabe?”. “[...] eu pensava, eu queria muito ter um filho, sempre gostei muito de criança, e eu para mim, eu não ligava, entendeu? Eu gostava muito, eu passava a mão na minha barriga, da minha parte, o que eu podia fazer, eu fazia. Só que você sabe, a gente mora com uma pessoa, já viu, né?”. Diante das dificuldades enfrentadas, Simone cogita a possibilidade de uma separação. Entretanto, o desejo de ter filhos e de constituir uma família fala mais alto. Ela acredita que com o passar do tempo, seu marido se conscientize e mude seu jeito de agir, passando a assumir mais pontualmente o papel de companheiro e pai. “[...] eu penso assim na minha cabeça, que a gente ter um filho sozinha é difícil, porque eu acho que um filho, igual ao primeiro filho da gente, acho que precisa do pai e da mãe, não é? Eu pensava em largar dele, minha tia falava para eu largar dele e tocar a minha vida, só que eu pensava no nenê, porque depois ia crescer e ia perguntar para mim: ‘cadê o meu pai?’. Ai eu ia ficar sem jeito de falar: ‘ai, eu larguei do seu pai porque ele era isso e isso’. Então eu falei: ‘talvez com o tempo ele mude, depois de nascer, talvez ele mude’”. 157 Ao mesmo tempo, há a sensação de que Valter, talvez, tenha escolhido permanecer ao seu lado por causa do filho que estava por vir. Essa sensação puxa novamente Simone para a realidade, distanciando-a dos sonhos e expectativas de ter um casamento feliz. “Parece que eu estou morando com uma pessoa que está comigo por causa da criança. Você sabe o que é você deitar no colo da pessoa, fazer carinho e você sentir, parece que a pessoa te rejeita, parece que se sente incomodada de você relar nela? Porque ele é assim. Sabe o que é a pessoa ficar olhando para cima, você estar conversando e parece que a pessoa está querendo mudar de assunto? Que só está com você por obrigação?”. “Quando eu namorava, eu sentia, parecia que ele gostava de mim, só que depois que descobriu que eu estava grávida, mudou. Ele achava que o casamento era uma brincadeira, que só tinha que por as coisas em casa, malemá ainda, não levava a sério, sabe o que é a pessoa não conversar com você sobre o casamento, sobre a gravidez, não ficar feliz, se você falar do filho, parece que incomoda? Ele fala: ‘eu sei, eu sei’, e muda de assunto. É o jeito que ele fazia”. Esse estado de coisas perdurou durante toda a gestação de Simone. Quando questionada sobre a gestação em si, ela relata que sentia dores e enjôos constantes, falta de apetite e falta de ar ante aos mínimos esforços. Ao lado dos sintomas físicos, o sentimento de raiva e nervoso diante das vicissitudes do momento eram marcantes. Ao realizar as primeiras consultas médicas em sua cidade de origem, foi advertida de que aquela era uma gravidez de risco e que deveria ficar de repouso absoluto. “[...] eu passava muita raiva, sozinha ainda, muita raiva. O médico já tinha falado para mim que era para eu ficar de repouso, porque era perigoso eu perder a criança, era para eu ficar bastante de repouso”. 158 As recomendações médicas não foram bem recebidas pela família de origem de Valter, sobretudo sua mãe, a qual não acreditava no risco ou necessidade de repouso. Sendo assim, a tia com que Simone residia anteriormente, decide levar a sobrinha para sua casa. “Eu passava muito mal porque eu ficava muito tempo sozinha, tinha que ir para a casa da minha tia longe, eu andava muito e eu tinha que ficar lavando roupa porque eu não tinha máquina. A família dele ficava brava comigo, eu tinha que lavar as roupas dele, de roça, na mão. [...] a família dele não entendia, achava que eu estava com frescura, achava que eu não estava fazendo o serviço ali”. “Um dia eu estava deitada porque não estava me sentindo muito bem, essa mulher fez o maior escândalo na minha porta. Eu me assustei, ela entrou lá dentro e eu sempre acordava tarde porque eu ficava com nervo porque ele bebia. Aí aquele dia eu estava com tanta raiva que eu falei: ‘a gente não tem mais sossego na casa da gente não?’. Ela saiu da minha casa, fez o maior escândalo, falou que eu tinha xingado ela, tinha ofendido ela. As filhas dela falaram: ‘ai mãe, deixa essa peste aí que morra!’. Como se eu fosse a ruim da história, eu não tinha liberdade para dormir, eu não podia ficar assistindo televisão, eu não podia nada”. Os sintomas físicos e a atmosfera familiar conturbada nutriam fantasias e especulações sobre a normalidade da gestação, ainda que seu médico tivesse afirmado que suas queixas não deveriam ser motivo de preocupação. “Porque a minha gravidez foi meio esquisita, eu sentia umas dores meio esquisitas dentro de mim, muita falta de ar, não é normal isso. Eu tinha muita falta de ar à toa, na sombra, dentro de casa, deitada. Meu pé inchava sozinho, minha barriga estava muito inchada. [...] eu não achava a minha gravidez normal, igual as outras. Minha barriga ficou brilhosa, muito grande demais, brilhosa, muito esquisita. [...] depois que eu fiquei grávida eu também tive um pouco de febre, mas também é um pouquinho de nervo também, porque mulher nesse estado, não pode passar raiva”. 159 No final do último trimestre de gestação, por volta da trigésima quarta semana, Simone teve um sangramento com rompimento da bolsa logo a seguir. Ao chegar no hospital da cidade de origem, a equipe decide transferi-la para a cidade Assis. Já em Assis, a equipe constata a necessidade de internar Simone e realizar o parto prematuro. Segundo ela, a realização do parto demorou várias horas desde a internação e ao início das contrações, sendo que esta demora ocorreu pela insistência da equipe em realizar um parto normal. Várias tentativas foram feitas para que o nascimento do bebê ocorresse sem a necessidade de cesárea. Ao relembrar daquele momento cercado de espera e incerteza, bem como a insistência da equipe, Simone narra todo o incômodo e sofrimento vivenciado frente àquela delicada situação. “[...] elas queriam fazer normal e eu não conseguia ganhar normal, eu fazia força e a criança não nascia. A criança em vez de descer para baixo, subia para cima, era uma coisa estranha, né? Subia para cima e eu sentia muita falta de ar [...]. A médica insistia no parto normal, vinha um e enfiava a mão, vinha outro e enfiava a mão, foi uns três toques e nada”. “Minha tia falava: ‘vocês vão acabar matando a menina’. Eu achava que eu não ia ganhar normal, eu não estava sentindo dor, eu só sentia aquele sangue. Eu falei para a mulher que eu estava sangrando e ela falava que era assim mesmo e que tinha que esperar a dor. Mas nunca que a dor vinha e o sangue estava aumentando, colocaram soro por causa da dor e aí eu quase morri. Eu acho que não era para ganhar normal, mas eles ficavam insistindo”. Posteriormente, a equipe tentou realizar o parto por fórceps. Além da aflição e desconforto deste procedimento extremamente invasivo, Simone era incapaz de entender o que estava se passando. Chegou a cogitar que tudo aquilo estava sendo fruto de alguma omissão ou erro médico. 160 “Quando a gente ganha nenê, por que ficar enfiando aquele ferro na gente? Não tem que ser com a mão? Elas enfiaram aquele ferro em mim, deram injeção. Depois eu pensei: ‘mas eu nunca vi isso’. Minha tia viu, elas fazendo aquilo na cara da minha tia, ela viu aquela confusão e achou melhor deixar quieto. Demorou muito o parto. Eu pensei em perguntar para a médica o que tinha acontecido, mas eu tenho medo que se foi por erro dela, depois ela não vai querer falar, né?” Decorridas várias horas da internação e das primeiras tentativas obstétricas, finalmente Simone deu à luz uma menina, Maria Clara. Logo após o nascimento a mãe estava exausta, apresentando um quadro febril que foi medicado em seguida. Tendo estabilizado o quadro, Simone foi transferida para o Alojamento do hospital, enquanto que seu bebê foi imediatamente removido para a U.T.I. neonatal, sem qualquer contato com a mãe. A experiência da prematuridade ainda representa para Simone um desafio a ser transposto e compreendido. É extremamente difícil entender o que desencadeou o parto prematuro. Na busca de explicações para o acontecimento, sentimentos de perplexidade, culpa e frustração emergem durante o relato. “Eu não sei porque minha filha nasceu desse jeito, acho que é porque eu estava passando muita raiva. Às vezes eu fico pensando, porque a gente se culpa, né? Só porque eu fiquei passando muito nervoso a minha filha nasceu desse jeito? Eu fico pensando assim, fico me perguntando, sabe? Eu passei muito nervoso com a família dele, eles viraram a cara para mim”. “Eu não entendo porque aconteceu isso com a minha filha. Tanto que eu me cuidei. Eu fico pensando, tem tantas mães que bebem, fumam maconha essas coisas e os filhos dela nascem perfeitos e só o da gente que nasce assim. Tem vez que eu não entendo, eu fico pensando e ainda a gente tem que ficar presa dentro desse hospital, eu fico com a minha cabeça cheia de coisa”. 161 De forma semelhante, a vivência do processo de hospitalização, evocam na mãe sensações de vazio, solidão e impotência. Simone tem vontade de retornar à sua cidade de origem e passar alguns momentos em sua casa, mas sabe que seu bebê precisa dela. “Eu me sinto sozinha, eu vim para cá nesse hospital, eu tenho que ficar agüentando a barra sozinha [...]. Eu vou lá na U.T.I visitar ela, coitadinha, dá dó em mim. Eu tinha planejado tanta coisa para a minha filha, eu ficava conversando com ela dentro da minha barriga, falava assim para ela que quando ela nascesse eu ia cuidar bem dela, eu ia dar carinho. A filha da gente sofre e a gente nem pode tocar, nem pegar, nem trocar, nem pode dar de mamar, vixe, é uma dor. Eu até que sou forte, tem uma mães que ficam chorando”. “Eu entrego na mão de Deus, eu falo assim: ‘se for para ser minha, vai ser, se não for para ser, fazer o quê’. Eu entrego na mão de Deus. [...] da minha parte, eu não tomava remédio nenhum para tirar, quando eu fiquei grávida eu fiquei feliz da vida. Eu até entrei num cursinho para fazer as coisinhas dela. Mas daí eu passava nervoso, ficava meia tensa”. A preocupação com o estado delicado da filha e o fato de não poder tê-la em seus braços e oferecer seus cuidados, deixam Simone triste e desorientada. Ainda que questione junto aos médicos sobre o estado clínico da criança e sua evolução, as respostas obtidas pouco contribuem para elucidar as dúvidas e minimizar a tensão. “Eu vejo as outras criancinhas, com as mães trocando, ai eu já começo a chorar, sentindo falta, sabe? Eu fico triste, mas fazer o quê, Deus sabe o que faz. [...] os médicos falam que ela não está bem, que está com infecção, alguma coisa de intestino por dentro. Eles tentaram dar as coisas para ela comer mas nem o medicamento eles estavam conseguindo, estava mal do intestino. Eu perguntei e eles falaram que ela nasceu assim, com o intestino mal formado”. 162 Após alguns dias do nascimento de Maria Clara, Simone recebeu a primeira visita do marido Valter. Segundo ela, esta e as visitas posteriores ocorreram devido aos conselhos da tia, a qual insistia para que o pai do bebê mudasse seu comportamento frente ao nascimento da criança, orientando Valter a ser um pai e um marido mais presente. “Minha tia conversou com ele e falou: ‘olha, você tem que dar mais atenção para ela, porque é duro para ela, tem que ver que o filho é seu também, não é só dela’. [...] agora que aconteceu isso com a menina, ele está dando mais atenção, está mudando. Acho que de tanto minha tia conversar com ele. [...] eu acho que ele está mudando, porque ele vai lá dentro da U.T.I., olha ela, vê tudo que aconteceu com ela. Ele não está muito aquelas coisas, mas está tentando mudar, tomara que mude, né?”. O sexo do bebê foi descoberto por volta do quarto mês de gestação. Ao saber que seria uma menina, Simone sentiu-se realizada. Desde os tempos de solteira, quando ainda cuidava das sobrinhas, ficava imaginado o momento em que poderia cuidar da própria filha, arrumando-a com vestidos e amarrando seus cabelos. A mesma realização, entretanto, não ocorreu com Valter. Apesar de não querer ter filhos naquele momento, o mesmo desejava que aquela criança que Simone carregava em seu ventre fosse do sexo masculino. Para ele, cuidar de meninos era mais fácil que cuidar de meninas, que eram do sexo diferente do seu. “[...] ele não gostou muito não, ele queria que fosse moleque, ele queria que fosse menino de qualquer jeito. Ele não se conformava, ele dizia que só ia acreditar que era menina mesmo no dia que nascesse”. Sobre a escolha do nome do bebê, o casal combinou que se fosse um menino, a escolha ficaria a critério do pai e se menina, a critério da mãe. Caso nascesse um 163 menino, Valter gostaria que se chamasse Sílvio, pois era um nome que começava como o nome da mãe – Simone. A escolha do nome do bebê ficou então a cargo de Simone. Havia pensado em diversos nomes, mas nenhum era do gosto de seu marido. A família de Valter sugeriu que o bebê se chamasse Diana, mas este nome por sua vez, não agradou Simone. A mãe resolveu então chamar a pequenina de Maria Clara. Havia escutado este nome numa canção romântica de uma banda jovem de muito sucesso. “O nome fui eu mesma que tive a idéia, eu gostava muito daquela música, eu era fã daquela música, uma música bonita. [...] de nenhum nome ele gostava, ainda nem desse ele gostou, falou que era feio. Mas todo mundo gostou do nome, todo mundo adora o nome dela. Todo mundo fala que o nome é lindo, aí de tanto os outros falarem que a menina também é linda, ele acabou se conformando”. “Eu achei o nome bonito e falei: ‘vai esse nome mesmo’. Todo mundo gostou, a minha família achou bonito, mas a família dele não gostou muito não. Eles queriam que colocasse Diana. Eles falaram que era mais bonito, mais fácil de falar, falaram que o outro era muito difícil e eu falei que não era não, que era facinho de falar”. Quando questionada sobre os planos para o futuro, sobre os sonhos e expectativas, Simone fala daquilo que espera para a filha e para o marido. Mais uma vez, surge o desejo de que Maria Clara possa alcançar aquilo que Simone não pôde, como os estudos e, principalmente, aquilo que lhe deixaria muito feliz e que lhe faz mais falta, uma família. “Eu planejo que ela cresça, que aprenda as coisas, que aprenda a ler, que tenha um serviço. Que o pai dela tenha juízo, ajude a cuidar dela, que ela saia deste hospital sã e salva. Que ele tenha mais juízo, que me dê mais carinho, para a gente ter uma família, é isso que é o meu 164 sonho. Porque eu sempre queria, desde solteira, e queria ter uma família, eu queria viver em paz”. “Eu sofri demais, o que eu sofri com a minha família e agora o que eu estou sofrendo com a minha filha. Eu queria viver um pouco em paz, que antes de eu morrer eu tenha um pouco de paz e um pouco de felicidade na minha vida”. A felicidade para Simone é algo que nunca esteve presente em sua história de vida. Mais recentemente, ao juntar-se a Valter, sonhava com um casamento repleto de cumplicidade e carinho; porém, à em medida que o tempo foi passando, viu seus planos ruírem como um castelo de areia. Quando engravidou de Maria Clara, também sonhava com a parentalidade ideal, cercada de cuidados e dedicação. Tais sonhos também se dissolveram frente à experiência da prematuridade e da postura de Valter enquanto pai. “Eu nunca tive felicidade na minha vida, não sabia o que era ter alegria na vida. [...] sempre teve um flagelamento, porque quando eu estava com a minha filha, Deus fez isso com a coitadinha. Eu queria ver ela saindo daqui boa, para eu poder tocar ela, ver ela andando. Ver meu marido largando de beber, ter um pouco de juízo. É duro você viver numa vida que você tem que ficar pedindo as coisas para as pessoas, pedir para a pessoa mudar e ela não está nem aí. Ou muda ou então a gente vai ter que largar, viver sozinha”. 165 7- DISCUSSÃO No intuito de facilitar a apreensão da discussão dos resultados obtidos, optamos por organizar nossas reflexões nos seguintes eixos temáticos: a) a escolha do parceiro: como os pais se conheceram, reações dos avós frente a escolha e o arranjo de vida do casal; b) mitos e segredos na dinâmica familiar: traços dos avós, comunicação e conflitos no grupo; c) os filhos no desejo dos pais: o papel da maternidade, a gravidez, o nascimento e os cuidados iniciais; d) os papéis familiares e suas relações com o poder no interior do grupo; e) o sexo e o prenome dado a criança; f) as noções de tempo e espaço familiar; g) o eu familiar: sentimento de pertença, habitat interior e ideal do ego e, h) a interfantasmatização. a) A escolha do parceiro: como os pais se conheceram, reações dos avós frente a escolha e o arranjo de vida do casal Um primeiro apontamento sobre a escolha dos parceiros nas famílias participantes da pesquisa é que o encontro entre os mesmos foi de certa forma facilitado por serem vizinhos ou por serem próximos de algum familiar do parceiro do sexo oposto. Este encontro e conseqüente envolvimento dos parceiros parece ter causado reações adversas em suas famílias de origem, sobretudo em seus pais, avós dos prematuros. Em linhas gerais, podemos apontar que as adversidades demonstradas pelos pais dos parceiros, ou seja, pelos avós dos bebês prematuros se voltam 166 principalmente para as companheiras (Vanda, Angelina e Simone), com exceção do segundo caso apresentado (família Soares), onde fica nítida a dificuldade de aceitação do avô do bebê prematuro em relação a Adriano, o companheiro escolhido por Keila. A reação dos avós dos bebês prematuros frente à escolha do (a) companheiro (a), seja os avós paternos (os pais de José Paulo, Mário e Valter) ou os avós maternos (os pais de Keila), pode afetar o arranjo de vida do casal. Notamos que em alguns casos, a presença e interferência das avós maternas dos bebês prematuros (sobretudo as mães de Mário e Adriano) é tão marcante a ponto de criar dificuldades não somente no relacionamento com as mães dos prematuros, mas dificuldades que se refletem no relacionamento do próprio casal. Assim, a figura dos avós presentes (e os ausentes também) passa a assumir posições relevantes na psicodinâmica dos grupos familiares em questão. Por ser este um ponto crucial em nossa proposta de estudo, examinaremos este aspecto mais detalhadamente um pouco mais adiante. Acompanhando a história das famílias participantes da pesquisa, somos levados a verificar a relação existente na escolha do parceiro pelos casais Vanda e José Paulo (família Cruz), Keila e Adriano (família Soares), Angelina e Mário (família Alves) e Simone e Valter (família Pereira). Observamos que Vanda, Keila e Simone procuraram sanar suas carências afetivas através do envolvimento com uma pessoa mais velha que elas, depositando grande parte de suas expectativas na relação conjugal. Angelina, por sua vez, envolveu-se com uma pessoa bem mais nova que ela, mas ainda assim, podemos averiguar que ela também depositou grandes expectativas na relação conjugal. 167 Isto nos remete às idéias trazidas por Pincus e Dare (1981), ao afirmarem que as motivações que levam as pessoas a se unirem é, na maior parte das vezes, inconsciente. Assim, instala-se uma espécie de contrato velado, um acordo inconsciente entre os parceiros, regido por processos de projeção e identificação. Neste acordo inconsciente que envolve a dinâmica do casal existem, também, outros princípios que abarcam uma complementaridade de necessidades, desejos e medos, os quais derivam dos relacionamentos da infância de ambos os parceiros. Especificamente no caso da família Cruz (primeiro caso) e da família Pereira (quarto caso), encontramos a projeção das necessidades infantis de Vanda/ Simone em José Paulo/ Valter e a identificação com aspectos dos parceiros almejados por elas na condição infantil e inconsciente: cuidado, carinho, atenção e aceitação incondicional. Na família Soares (segundo caso), também encontramos a projeção de necessidades infantis de Keila em Adriano e a identificação com aspectos do parceiro almejados por ela na condição infantil e inconsciente. Contudo, neste caso em particular, observamos que Adriano representa a figura heróica associada aos pais da infância. Como num conto de fadas, esse herói luta bravamente para proteger, salvar e conquistar algo ou alguém. Em relação à família Alves, notamos que a necessidade e o desejo se referem sobretudo à busca de uma figura masculina, uma vez que Angelina nunca teve contato com seu pai, nem sequer chegou a conhecê-lo. Aliás, essa ausência da figura masculina proporciona um desapontamento com o sexo masculino de forma geral, pois todos os homens que passaram pela vida de Angelina, inclusive Mário, imprimiram em seu inconsciente um padrão, uma espécie de 168 lei, um mito de que “homens não prestam”, que não valorizam as mulheres tidas como “corretas”. Percebemos que a escolha mútua do casal, se concebida dentro do primeiro organizador inconsciente do psiquismo familiar trazido por Eiguer (1985), ocorre sob a forma de uma escolha objetal anaclítica ou dissimétrica em todas as famílias observadas; os Cruz, os Soares, os Alves e os Pereira. Este tipo de escolha é caracterizada como uma escolha regressiva, onde ambos os parceiros buscam um no outro um apoio semelhante ao oferecido pelas figuras parentais. Ao analisarmos a escolha do parceiro, notamos uma similaridade na dinâmica da família Cruz (primeiro caso) e família Soares (segundo caso). Ambas têm em comum uma complementaridade de necessidades infantis no que se refere à figura paterna. Assim, os maridos vivenciam inconscientemente papéis paternais e as mulheres, papéis filiais. No caso da família Cruz, mesmo José Paulo sendo fortemente ligado à sua família de origem, tendo uma filha de um outro relacionamento, sendo doze anos mais velho e um homem sem estudos, ainda assim é visto como uma pessoa maravilhosa, com um coração imenso na fala de Vanda. Talvez as qualidades apontadas no parceiro, pudessem ser atribuídas a uma importante figura de sua infância, seu pai. Em contrapartida aos defeitos do pai, ou às qualidades não tão evidentes deste, Vanda escolhe um companheiro que, ao seu ver, não possui defeitos. Em relação à família Soares, Keila escolhe um parceiro ciumento e possessivo, semelhante ao pai infantil que teme perder a filha caçula e, na tentativa de evitar esta 169 perda, proíbe seus namoros. Adriano, por sua vez, dispõe-se a enfrentar as vicissitudes e temores representados pela reprovação da autoridade paterna real frente ao envolvimento do casal, propondo inclusive fugir secretamente com a namorada. Quando decide juntar-se a Adriano, parece-nos que Keila procura substituir o pai verdadeiro – o pai “ruim” – e todas as suas representações por um pai idealizado – o pai “bom”, o pai “herói” – aquele que oferece apoio e amor incondicional, além da coragem e determinação. Já na família Alves e na família Pereira, a dinâmica inconsciente que envolve a escolha do parceiro aparece de outra forma, as companheiras assumem um papel maternal ao passo que os companheiros é que ficam na condição de filhos. Na família Alves, percebemos em vários momentos, que Angelina se coloca como uma verdadeira líder, é ela quem comanda, quem decide, enfim, quem detém o poder e a autoridade. É ela quem cobra Mário dos posicionamentos e das responsabilidades, enquanto que o mesmo, permanece como um adolescente inconseqüente e aventureiro. Ao analisarmos a situação da família Pereira, também notamos traços de uma escolha com claras nuanças regressivas. Assim como a família acima, percebemos que Simone adota o papel maternal, enquanto que Valter parece permanecer imerso na vivência infantil de uma criança descompromissada, irresponsável e dependente. Complementando esta ótica, existe ainda a presença da figura materna real (mãe de Valter), interferindo e controlando a vida do casal e competindo com Simone. E mais, inconscientemente, Simone escolhe um parceiro que tem o defeito mais abominado por ela – o alcoolismo, exatamente o mesmo vício pertencente à distante mãe da infância, aquela que a comparava, agredia e a rejeitava. 170 b) Mitos e segredos na dinâmica familiar: traços dos avós, comunicação e conflitos no grupo Considerando os mitos e segredos na dinâmica familiar das famílias participantes deste estudo, apreendemos a existência de uma ligação com alguns traços dos avós dos bebês prematuros que interferem na comunicação do grupo, gerando com isso conflitos pessoais e interpessoais no dinamismo das mães acompanhantes. Freqüentemente, os segredos abarcam temas e assuntos de difícil acesso para os avós dos prematuros, principalmente para as avós, mães das mães entrevistadas. Isso contribui para a perpetuação dos segredos que acabam se transformando em mitos e tabus para as filhas que agora também são mães. Ao nos remetermos às afirmações de Pincus e Dare (1981) acerca dos efeitos dos segredos e mitos na dinâmica familiar, os quais pontuam que os segredos familiares referem-se aos momentos mais marcantes do ciclo vital como nascimento, sexo e morte, vemos uma correlação com o passado de todas as mães entrevistadas. Na família Cruz (primeiro caso), parece-nos que Vanda investe não somente na escolha de um parceiro adequado, capaz de oferecer-lhe segurança e carinho, como também em manter um bom casamento, mais especialmente em não repetir a história do casamento de seus pais, marcado pela infidelidade paterna, pela submissão materna e pelo segredo gerado em torno deste tema. É no intuito de evitar a repetição do padrão de relacionamento dos pais que Vanda acaba mergulhando numa contradição: a submissão e dependência frente à figura masculina, e a contrastante importância atribuída à mesma, é algo constante em sua história. A figura masculina emerge seja sob a égide da perfeição intocável do cônjuge, seja sob sua ausência, representada pelo pai infiel e pelo filho homem tão 171 sonhado, perdido pelo casal. Posteriormente, voltaremos a examinar este aspecto mais detalhadamente. Assim como assuntos que envolviam o sexo (infidelidade paterna) se tornaram um segredo e um tabu para a família acima, na família Soares, notamos ligações dos segredos familiares com o nascimento e o sexo. Temos que a própria constituição da família Soares configurava um segredo, pois o casal Keila e Adriano, namorou vários meses às escondidas, encontrando-se secretamente por medo da desaprovação paterna. Além disso, Keila deixa claro que os assuntos referentes à menstruação, relações sexuais e gravidez nunca puderam ser conversados abertamente com sua mãe. Segundo ela, a compreensão dessas temáticas ocorreu de forma solitária, com as vivências práticas. Isto corrobora as afirmações de Pincus e Dare acerca dos segredos familiares, ou seja, ao analisarmos a situação da família Soares, percebemos o quanto os momentos mais marcantes do ciclo de vida humano como nascimento e sexo transformaram-se em segredo no interior da família de origem de Keila. Se na família Cruz e na família Soares os segredos referem-se ao nascimento e ao sexo, na família Alves (terceiro caso) e na família Pereira (quarto caso), os segredos possuem uma estreita ligação com outro momento fundamental do ciclo de vida, apontado por Pincus e Dare (1981): a morte. Os mistérios envolvendo a morte e as vivências frente a perda da mãe de Angelina e da mãe de Simone aparecem de forma evidente nos relatos, ratificando o que a dupla de autores postula quanto aos segredos e mitos familiares. 172 c) Os filhos no desejo dos pais: o papel da maternidade, a gravidez, o nascimento e os cuidados iniciais Conforme salientamos no início do segundo capítulo, “Aspectos psicológicos da gestação”, a decisão de ter um filho é resultante da interação de uma série de motivos, conscientes e inconscientes. As respostas à pergunta “a que veio esta criança”, ou seja, a representação dos filhos no desejo dos pais pode contemplar uma vasta gama de motivos, como aponta Maldonado (1985): aprofundar e dar uma expressão criativa a uma relação homemmulher importante; concretizar o desejo de transcendência e continuidade; manter um vínculo muitas vezes já desfeito; competir com outros membros da família; “dar” um filho para a própria mãe; preencher o vazio de um companheiro ou garantir que a mãe não vai permanecer sozinha; busca de extensão de si próprio, entre outros tantos. Dessa forma, o significado da concepção, gestação e da parentalidade, enfim o significado dos filhos no desejo dos pais e as respostas ao questionamento “a que veio esta criança”, apresenta variações em cada uma das famílias estudadas e correlações com aquilo que propõe a autora mencionada acima. Se a decisão de ter um filho é o resultado de várias motivações, conscientes e inconscientes, devemos nos aprofundar então na situação especifica elegida como foco do presente estudo, a prematuridade. Analisando as motivações (ou desmotivações) inconscientes presentes na situação da prematuridade por parte das mães, um primeiro ponto que merece ênfase quanto ao significado da gestação e papel da maternidade é o sentimento de ambivalência. 173 Observamos que no primeiro e no segundo caso (família Cruz e Soares), a chegada concreta dos filhos era adiada em face dos abortos espontâneos sofridos por Vanda e dos abortos planejados por Keila. Neste sentido, os abortos podem indicar uma divergência entre a fala consciente, o desejo de ser mãe, e o conteúdo latente, a rejeição à maternidade. Se analisarmos a psicodinâmica da família Soares mais detalhadamente, verificamos que os filhos, apesar de existirem na realidade, custam a tomar forma no inconsciente parental. Prova disso é a ausência de diálogo dos pais durante a gravidez e após o nascimento, sobre a escolha de um nome para os bebês, tanto para o primeiro como para o segundo. Levando-se em conta o terceiro caso (família Alves) e os conteúdos trazidos por Angelina durante a entrevista, notamos que a rejeição à gravidez é ainda mais evidente que nas famílias anteriores. Em algumas passagens ela lança mão de várias justificativas para não querer ter filhos, como sua idade, seus problemas de saúde, sua condição sócio-econômica desfavorável e a tão prezada independência. Para Simone (família Pereira), esse filho possui um importante papel na superação das vivências traumáticas na infância com a maternidade. Como ela mesma nos coloca, por tudo aquilo que passou junto de sua mãe, ela poderia nutrir um sentimento de revolta e repulsa em relação a crianças e filhos. Todavia, ela relata o contrário, Simone pretende, enquanto mãe, dar tudo aquilo que não teve oportunidade de receber enquanto filha. Soifer (1980), esclarece que toda gestação implica inicialmente num sentimento de ambivalência básica: de um lado, o desejo de ter a criança, ou seja, sua aceitação; de outro, a rejeição à gravidez, ou seja, o temor da gestante ser destruída pela 174 gestação. Desta forma, quando uma concepção se realiza e é mantida, o desejo de ser mãe é predominante à rejeição. Se analisarmos a situação de prematuridade, podemos pensar numa primeira instância que as concepções dos bebês foram mantidas (pois eles nasceram), indicando que o desejo de ser mãe foi predominante à rejeição. Todavia, é exatamente a não manutenção da gestação e o parto prematuro que nos fornecem indícios de uma dinâmica um pouco mais complexa. Na verdade, as gestações não foram mantidas, elas foram interrompidas por fatores aparentemente externos às mães (como o fato de ter contraído uma forte gripe, ter carregado peso ou ter passado nervoso). Simbolicamente, na esfera inconsciente, o que estaria levando as mães a terem seus bebês prematuramente? Por que não conseguiam “esperar” os nove meses de gestação e acabavam “expulsando” os filhos de seus ventres? Por que a maternidade por vezes tão almejada em alguns relatos, é colocada em perigo frente a uma gestação de risco e um bebê de risco? As respostas a tais questionamentos podem encontrar expressão e significado na análise do sentimento de ambivalência materna. Recorrendo novamente aos pressupostos de Soifer (1980), podemos supor que a prematuridade parece indicar uma rejeição inconsciente à gestação e à maternidade, uma vez que a concepção não é mantida até o bebê atingir a maturidade. Tal aspecto é corroborado ao retomarmos os estudos de Parker (1997), acerca da ambivalência materna. Este sentimento é uma experiência compartilhada de diversas formas por todas as mães, na qual coexistem lado a lado, em relação aos filhos, sentimentos de amor e ódio. 175 A autora propõe que grande parte do sentimento de culpa ao qual as mães estão habituadas origina-se na dificuldade de enfrentar os sentimentos complexos e contraditórios provocados pela ambivalência materna. Deste modo, podemos vislumbrar que a prematuridade poderia representar o sentimento de ambivalência materna levado ao extremo. Roziska Parker (1997), ainda acentua que inerentes ao sentimento de ambivalência materna estão os mecanismos psíquicos de projeção e identificação. Segundo esta autora, a projeção fornece um meio de comunicação de inconsciente para inconsciente, entre mãe e filho que pode ser benigno ou maligno. Em sua forma maligna, envolve partes contraditórias ou indesejáveis do eu que são expelidas e projetadas em outras pessoas, às quais são atribuídos vários papéis na subjetividade da pessoa. Se uma mãe projeta inconscientemente aspectos repudiados de si mesma em seu filho, percebe então no filho esses aspectos repudiados nela mesma (PARKER, 1997). Esta concepção acerca do mecanismo de projeção aplicado à maternidade ilustrado pela autora é particularmente importante para a apreensão da psicodinâmica familiar das acompanhantes. A vivência da prematuridade leva as mães a se confrontarem com suas próprias limitações enquanto mães, ao se depararem com a fragilidade de seus bebês e delas mesmas ante à tal vicissitude – a visão do recém-nascido prematuro, o processo de hospitalização e a atmosfera de urgência e perigo representados pela U.T.I. neonatal – simbolizam os aspectos indesejáveis, repudiados do eu que são expelidos e atribuídos a outras pessoas, no caso aos bebês prematuros. É o drama pessoal inscrito na 176 subjetividade de cada mãe que toma forma, é o sentimento de fracasso, de rejeição interna que se extrapola e se traduz na concepção inacabada. Talvez por isso as mães sejam impelidas a buscar uma série de justificativas para a necessidade da realização do parto prematuro. Comumente nos relatos, podemos verificar algumas fantasias no intuito de justificar ou compreender a necessidade da realização de um parto prematuro. Principalmente nas famílias Soares e Pereira este aspecto fica claro quando observamos as falas de Keila, ao referir que a prematuridade pudesse ter sido causada por uma forte gripe contraída e por ter carregado peso durante a gravidez, e as falas de Simone, ao referir o estado de raiva e tensão vivido junto ao companheiro. Com efeito, as mães projetam no externo algo que está presente em sua própria subjetividade. Como uma mãe pode rejeitar um filho, querer “expulsá-lo” antes dele estar pronto para nascer, sem que isso represente um risco para ambos, mãe e bebê? No plano da consciência e da cultura ocidental (aspecto este que será examinado posteriormente), tal reação não encontra expressão, mas no plano inconsciente sim. A imaturidade do bebê é a representação da imaturidade das próprias mães, ou seja, a prematuridade dos bebês representa a “pré-maturidade” das mães. Além da tentativa de atribuir o parto prematuro a causas externas, um outro ponto onde o mecanismo de projeção também aparece de forma evidente é a visão que as mães das famílias Soares, Alves e Pereira, ou seja, Keila, Angelina e Simone respectivamente, possuem acerca da relação sexual e da conseqüente fecundação, concepção e gestação. Para elas, o ato sexual e a gravidez parecem estar exclusivamente relacionados à figura masculina. A figura feminina parece exercer uma postura passiva e submissa, 177 ao passo que o homem exerce uma postura ativa, sendo considerado como o “responsável” e até mesmo o “culpado” pela gravidez. Mais uma vez, percebemos o mecanismo de projeção ratificando a atribuição dos aspectos inaceitáveis do eu ao externo, como afirma Parker (1997). Segundo seus relatos, nenhuma das três mães tinha intenções de ficar grávida, não haviam planejado a gravidez e, no caso de Angelina, mais especificamente, nem sequer desejava ter um filho. A gravidez ocorre então pela falta da pílula anticoncepcional que não pôde ser adquirida, pelo rompimento do trato estabelecido ou ainda pelas instruções de que se fizesse apenas uma vez, não teria problema. Deste modo, as acompanhantes projetam a “responsabilidade” da gravidez ao externo, uma vez que conscientemente, não podem assumir sua “irresponsabilidade” e, sobretudo, o sentimento de rejeição à maternidade e à gestação. A projeção pode ainda se relacionar de acordo com Parker (1997), à sensação familiar, na qual as mulheres sentem que estão reproduzindo, ou repudiando, no próprio estilo de maternidade, o tratamento que receberam de suas próprias mães. De maneira análoga, quando uma mulher se torna mãe, uma identificação com a própria mãe pode ser revivida; despertando medos, desejos e ressentimentos em relação à sua mãe, pela condição de mãe em que ela mesma se encontra. Estes dois aspectos – a projeção através da sensação de reproduzir ou repudiar o tratamento das mães e a identificação com as próprias mães – parecem ficar bem claros ao considerarmos os relatos das mães acompanhantes e suas histórias de vida. No caso de Vanda e Keila, apesar de desfrutarem da presença concreta de suas mães, relataram não desfrutar ou não compartilhar de uma intimidade maior com as 178 mesmas; ainda que estivessem presentes fisicamente, sentiam-se distantes emocionalmente. Segundo elas, nunca tiveram demonstrações claras de afeto ou oportunidade de conversar mais abertamente sobre questões relacionadas à feminilidade, sexualidade e até mesmo sobre a maternidade. Angelina e Simone tiveram oportunidade de desfrutar da presença concreta de suas mães durante poucos anos, perdendo as mesmas ainda na infância. A perda da figura materna desencadeou em suas dinâmicas uma série de sentimentos confusos e mecanismos para lidarem com a ausência de uma figura tão importante e significativa. Angelina apresenta uma certa resistência em retomar a figura de sua mãe durante a entrevista, demonstrando recordar-se apenas de algumas características físicas como a bela aparência e de alguns traços como a calma e o sucesso entre os homens. Após a morte da mãe vai morar com uma tia que, segundo ela, é uma pessoa ambígua, “boa” e “ruim” ao mesmo tempo. Na tentativa de elaborar a perda de sua mãe e a dolorosa vivência ao lado da tia, Angelina parece acreditar que não pode contar com mais ninguém a não ser com ela mesma e começa a fazer de tudo para ser uma pessoa “independente”. Talvez por este motivo um filho não tenha espaço em seus planos, pois além de todas as justificativas lançadas para tanto, ainda poderia estar sujeita a perder sua independência. Para Simone, a figura materna também evoca sentimentos contraditórios. A mãe real é aquela que diz que Simone não é sua filha, aquela que a compara, diminui, agride e está constantemente sob o efeito do álcool. Ao mesmo tempo, esta mãe é importante e insubstituível, a ponto de Simone jurar para si mesma que não aceitaria ver seu pai ao lado de mulher alguma, afinal “mãe é uma só”. Ainda assim, esta mãe 179 nos coloca que, mesmo tendo passado por tudo que passou enquanto filha com sua mãe, sempre desejou também ser mãe. Assim, o significado dos filhos no desejo das mães das famílias entrevistadas, parece guardar nítidas correlações com aquilo que foi vivenciado por elas mesmas na condição de filhas, ou seja, as acompanhantes apontam “falhas” e evidenciam o repúdio ao estilo de maternidade exercido por suas mães, ratificando as colocações de Parker (1997). Ao passo em que esse mecanismo se instala, podemos refletir que em se tratando da situação da prematuridade, as mães acompanhantes acabam sendo “arrastadas” inconscientemente para a identificação com suas próprias mães, pessoas que elas criticam e que não gostariam de estar tão próximas, sobretudo em relação à maternidade. Verificamos que a ocorrência comum entre os dados coletados é justamente a vivência de uma relação mãe-filha por vezes insatisfatória ou até mesmo negativa e que não deverá ser repetida pelas acompanhantes com seus filhos. Todavia, diante do parto prematuro, as mães entrevistadas acabam repetindo o estilo de maternidade de suas mães, ou seja, inconscientemente, a prematuridade representa um “fracasso” quanto à maternidade (a capacidade de gerar um bebê a termo, “maduro” e saudável), o mesmo “fracasso” que elas apontam em suas mães ao longo da entrevista, constituindo-se assim como uma espécie de legado a ser transmitido psiquicamente ao longo das gerações. Uma vez que os medos, desejos e ressentimentos em relação à mãe podem ser despertados pela condição de mãe em que elas mesmas se encontram (PARKER, 180 1997), torna-se muito difícil a não confrontação com a limitação e o “fracasso” de suas mães ante a vivência da prematuridade. Sinteticamente, podemos conceber a seguinte reflexão a fim de tentarmos apreender o esquema inconsciente que envolve os mecanismos de projeção e identificação apontados por Parker (1997) aplicando-os na situação de prematuridade: as mães “expulsam” seus bebês antes de estarem prontos porque talvez elas mesmas não estejam prontas para serem mães. Elas geram bebês imaturos porque elas mesmas são imaturas e não se sentem responsáveis pelos bebês (e por isso atribuem ao externo, como trabalhamos anteriormente). Dessa forma, as acompanhantes repetem a história da “irresponsabilidade” e “fracasso” de suas mães transmitidas psiquicamente a elas na atualidade, agora não mais como filhas, mas sim como mães. Da mesma forma que a análise do sentimento de ambivalência pode nos fornecer indícios importantes para a compreensão do significado dos filhos no desejo dos pais e o papel da maternidade, a ansiedade e os conflitos advindos da forma como o gestante lidou com tal sentimento, também pode ser relevante para os objetivos lançados na presente investigação. Verificamos que o sentimento de ansiedade foi constantemente trazido pelas acompanhantes em diversos momentos da entrevista. A ansiedade se fez presente inicialmente frente à confirmação da gravidez, no decorrer da gestação, frente à notícia da realização do parto prematuro (gestação de risco e bebê de risco) e durante o processo de hospitalização. Rappaport et al. (1981), apontam que, muitas vezes, à medida em que o final da gestação e o momento do parto se aproximam, se houve o predomínio de ansiedade na gestação, podem se acirrar alguns conflitos básicos na dinâmica materna. 181 Dos três conflitos distinguidos pelos autores, aquele que parece se fazer mais presente entre as acompanhantes é o temor de morte, ou seja, o parto prematuro ativou no psiquismo das mães a fantasia específica de morte durante a realização do parto. Poderíamos supor que o predomínio da ansiedade levando à ocorrência específica deste conflito básico – o temor de morte – refletiria uma espécie de “castigo” para as mães, devido à rejeição inconsciente da gestação e dos filhos, como trabalhamos em outro ponto deste eixo temático. Ao nos aprofundarmos na questão da adaptação ao papel materno, salientamos que a vivência da prematuridade abrevia a fase de transição provocada pelo parto e posterga o contato com a figura real do recém-nascido. Assim sendo, as mães de bebês prematuros poderão sofrer interferências na adaptação ao papel materno como nos mostra Burroughs (1995), além de não terem a oportunidade de vivenciar as duas fases inerentes à adaptação ao papel materno – fase do aceitar e do assumir – propostas por Rubin (apud BURROUGHS, 1995). Ainda sobre a adaptação ao papel materno, se retomarmos os estudos efetuados por Alves (1993) sobre a construção social da maternidade e sexualidade enquanto componentes da identidade feminina em onze mulheres de classe baixa, numa cidade do interior do estado do Paraná e as conclusões provenientes de sua investigação, apreendemos que o discurso consciente das mães acompanhantes parece se encaixar no segundo grupo de mulheres, onde o ser mãe representa a essência de suas identidades femininas. Quanto à influência do momento histórico e das variáveis sócio-econômicas na maternidade dentro do grupo de mães acompanhantes que participaram do presente estudo, observamos que as concepções de Stasevskas (1999), Mazzini (2003) e Rosa 182 (2001) podem ilustrar os conteúdos que emergiram durante a realização das entrevistas. A primeira autora buscou a compreensão do que um grupo de quinze jovens mães pensava sobre ser mãe, considerando as influências histórico-sociais e concluiu que tanto o desejo de ser mãe quanto a maneira de sê-lo sofrem influências muito antigas e ainda muito atuantes, criando um descompasso entre a antiga e a atual condição de mulher também no seu modo de ser mãe (STASEVSKAS, 1999). Os resultados alcançados pela segunda estudiosa acerca do processo de construção da identidade materna em mulheres gestantes, apontam que seu início ocorre na própria família, sendo mantido pela ação sócio-cultural e estando estreitamente relacionado à reprodução (MAZZINI, 2003). A terceira autora concluiu através de um estudo sobre a percepção do papel materno em três mulheres de diferentes gerações que as práticas educacionais, os modelos e as normas a que as mulheres estiveram submetidas parecem influenciar e delinear suas condutas no papel de mãe, além de constatar que o momento histórico com suas variáveis sócio-econômicas pode ampliar ou restringir a possibilidade dos indivíduos vivenciarem papéis sociais (ROSA, 2001). Os achados de Chodorow (2002), que acrescenta à vivência do papel materno a questão de gênero, caminham no mesmo sentido das contribuições das quatro autoras discutidas acima – Alves (1993), Stasevskas (1999), Mazzini (2003) e Rosa (2001). Seu enfoque sobre o relacionamento mãe-filho na sociedade industrial ocidental revela as atitudes e expectativas conscientes e inconscientes que todas as pessoas – masculinas e femininas – possuem de suas mães em particular e das mulheres em 183 geral, sendo que essas expectativas integram-se na reprodução da maternidade (CHODOROW, 2002). Em suma, parece-nos que os aspectos levantados pelas produções acima descritas estão muito presentes na dinâmica das entrevistadas, manifestando-se claramente em seu discurso. A identidade materna e a maternidade como um todo aparecem fortemente ligadas à identidade feminina, ao ser mulher; enquanto que o ser mulher em várias falas significa ser mãe (sobretudo nos casos das famílias Cruz, Soares e Pereira e menos no caso da família Alves). Igualmente, o ser mulher e o ser mãe guardam nítidas relações com aquilo que foi vivenciado dentro do grupo familiar (na relação com as próprias mães) e com aquilo que é almejado pela cultura e sociedade. Focalizando a adaptação ao papel materno em situação de prematuridade e seus desdobramentos no inconsciente materno, somos levados a refletir um pouco mais sobre as influências que a cultura e a sociedade ocidental exercem neste sentido. Vimos que as mães parecem projetar no externo algo que está presente em sua subjetividade. A rejeição inconsciente é simbolizada pela “expulsão” de uma criança antes do tempo completo de gestação, sendo que no plano da consciência e na cultura ocidental tal rejeição não consegue encontrar expressão. Talvez por este motivo é que as mães participantes de nossa coleta de dados tenham a necessidade de pontuar a aspiração e satisfação por terem se tornado mães (principalmente nos casos de Vanda da família Cruz e Simone da família Pereira) e a preocupação com o destino de seus bebês prematuros. As dificuldades em lidar com o sentimento de rejeição à maternidade como um todo e ao próprio filho podem ser devido ao mito instaurado acerca desta temática em 184 nossa sociedade, presente nas concepções de Badinter (1985), Parker (1997) e Forna (1999). A primeira autora discute a criação de um mito acerca do “amor materno”, ou seja, o amor materno como um sentimento natural e instintivo, presente em todas as mulheres nas mais diversas épocas da história da humanidade, desconsiderando-se as variações sócio-econômicas da história na construção deste sentimento (BADINTER, 1985). A segunda autora postula que a representação da “maternidade ideal” ainda é exclusivamente composta de espírito de renúncia, amor irrestrito, conhecimento intuitivo na criação de filhos e um prazer genuíno em cuidar de crianças. Para ela, a cultura ocidental desempenha um papel primordial na produção da dificuldade de enfrentar os sentimentos complexos e contraditórios provocados pela ambivalência materna, praticamente proibindo o tipo de discussão plena e análise que poderiam revelar a contribuição oculta que a vivência da ambivalência na maternidade poderia dar ao exercício criativo da própria maternidade (PARKER, 1997). Forna (1999), explica que o mito contemplado na maternidade é o mito da “mãe perfeita”, aquela que deve ser devotada não somente aos filhos, mas ao seu papel de mãe; aquela que compreende, que oferece amor e que se entrega totalmente; aquela que deve ser capaz de enormes sacrifícios, ser fértil e ter instinto maternal, enfim, é aquela que deve incorporar todas as qualidades tradicionalmente associadas à feminilidade como acolhimento, ternura e intimidade. A autora também enfoca outro sentimento que se faz presente na dinâmica da maternidade – a culpa, a qual aparece paralelamente à imagem idealizada da maternidade. Segundo sua concepção, a culpa ficou tão fortemente associada à 185 maternidade que passou a ser considerada como um sentimento natural, sendo que na realidade, as mães sentem-se culpadas porque a sociedade as faz se sentir assim (FORNA, 1999). Notamos que o sentimento de culpa aparece de forma evidenciada nos relatos das mães, sobretudo em relação ao primeiro caso (Vanda da família Cruz), segundo caso (Keila da família Soares) e quarto caso (Simone da família Pereira). Seguindo nossa linha de análise, a culpa pode emergir como uma espécie de “punição” para a “rejeição” dos filhos. Observamos um forte desejo de proteção em relação ao bebê, as mães acreditam que se tivessem ficado com ele durante mais tempo em seus ventres, poderiam ter proporcionado maior proteção e, talvez, evitado todas as intercorrências posteriores. Especificamente para Simone, a culpa aparece de maneira ainda mais clara ao evocar o sempre presente desejo de ser mãe, as carícias e conversas com a filha ainda em seu útero e o fato de ter tido todos os cuidados necessários à gravidez, enfim, ter feito tudo o que cabia a ela. Diante da realização do parto prematuro, vemos que o mesmo desencadeou reações e expectativas parecidas em todas as mães entrevistadas. Sentimentos como frustração, solidão, angústia, culpa, impotência, estranheza, apreensão, temor e ansiedade apareceram de forma significativa, tais como apontam os estudos de Avery (1978), Klauss e Fanaroff (1982), Brazelton (1988), Klauss e Kennell (1993), e Valle (2002). Da mesma forma, tais sentimentos também se evidenciaram em relação ao processo de hospitalização, a visão do bebê prematuro na U.T.I. neonatal e a expectativa quanto a estabilização do quadro e alta hospitalar, como mostram as 186 produções de Hymovich (1976), Brunner e Suddarth (1980), Belli (1999) e Shimitz et al. (2000). Considerando que a interação mãe-bebê nos primeiros meses e anos de vida influencia de maneira notável certas características de personalidade mais ou menos permanentes que se manifestam no processo de desenvolvimento de uma criança, somos levados a refletir sobre as contribuições de Spitz, Winnicott e Bolwby acerca do vínculo do bebê com sua mãe, aplicando-as a prematuridade. Spitz (1991), afirma que no processo de comunicação entre mãe e filho, cada parceiro consciente ou inconscientemente percebe o afeto do outro e responde com afeto, numa troca recíproca e contínua. Para Winnicott (1999), além do apoio oferecido pelo ego materno facilita a organização do ego do bebê, a “mãe suficientemente boa” também poderá oferecer uma base positiva para o desenvolvimento psíquico deste, através dos cuidados e da experiência comum de “segurar” seu bebê (holding). Os estudos de Bolwby (1984, 1988, 1990) sobre o comportamento de apego indicam que enquanto uma criança está na presença incontestada de uma figura principal de apego, ou a tem a seu alcance (mãe ou figura substituta que desempenhe o papel materno de forma permanente, regular e constante), sente-se segura e tranqüila; sendo que a ameaça de perda dessa figura gera ansiedade e uma perda real, tristeza profunda e cólera. A partir desses pressupostos, deparamo-nos com o fato de que a situação de prematuridade pode influenciar de maneira singular o processo de comunicação entre mãe e filho e o intercâmbio das trocas afetivas como coloca Spitz. Igualmente, a ausência de contato inicial entre mãe e bebê acarretada pelo processo de hospitalização, pode dificultar a atuação do ego materno como um suporte, 187 uma base positiva para a organização do ego do recém-nascido, além de exercer influências no estabelecimento do vínculo e apego entre ambos. Assim, a transferência do prematuro para a U.T.I. neonatal momentos após a realização do parto, impede mães e filhos de desfrutarem de um contato mais íntimo, o das mães “segurarem” seus filhos e oferecerem o “holding”, prejudicando aquilo que Winnicott e Bolwby consideram essencial para o desenvolvimento psicológico ulterior da criança. Retomando as vivências das acompanhantes com suas mães, é possível estabelecermos um paralelo se levarmos em conta as colocações de Spitz, Winnicott e Bolwby. Apreendemos que a comunicação consciente e inconsciente na díade mãefilha, as trocas afetivas, o apoio oferecido pelo ego materno, enfim o holding e o apego não foram vivenciados de forma significativa ou positiva nos quatro casos apresentados. Uma vez que a “mãe suficientemente boa” não foi internalizada pelas acompanhantes, é provável que as mesmas encontrem alguma dificuldade em reproduzirem este comportamento, este “ideal” com seus filhos. d) Os papéis familiares e suas relações com o poder e no interior do grupo familiar Retomando a discussão realizada no eixo temático anterior, percebemos que a vivência dos papéis familiares e do materno em especial (e os conflitos existentes nesta adaptação), demonstra relações com as expectativas culturais e sociais (ALVES, 1993; BADINTER, 1985; FORNA, 1999; MAZZINNI, 2003; PARKER, 1997; ROSA, 2001), as quais se pautam nas diferenças de gênero (CHODOROW, 2002). Deste modo, ao observarmos os quatro grupos familiares, somos levados a concordar com esses posicionamentos. 188 Na família Cruz, vislumbramos que Vanda está buscando corresponder às solicitações externas que lhes são feitas. Estas solicitações aparecem sob a forma do desempenho dos papéis sociais comumente atribuídos à mulher: ser uma esposa exemplar e uma cuidadosa mãe. Daí resultam os conflitos mediante a dificuldade de conceber e parir uma criança e à impossibilidade de amamentar. Esta última dificuldade gera preocupação e sentimentos de angústia e impotência. Em contrapartida, enquanto procura atender às solicitações do parceiro, deixa a desejar nas solicitações feitas por parte da família de origem de José Paulo, que enxergam nela uma ameaça. Mesmo realizando escolhas diferentes das expectativas dos sogros e cunhados, expectativas essas que remontam desde a época do namoro e casamento e, principalmente, àquelas referentes à figura feminina – mulher deve ser esposa, mãe e ajudar nas despesas da casa trabalhando fora – ainda assim, há a necessidade de aceitação e aprovação junto dos familiares de José Paulo. Esta necessidade de aceitação e aprovação junto dos familiares do companheiro também ocorre na família Pereira. Em seu relato, Simone evidencia as desavenças enfrentadas junto da família de origem de Valter, principalmente com a mãe dele. Para que não se crie um mal-estar ainda maior, ela prefere permanecer calada a argumentar com sua sogra sobre suas interferências na vida financeira e até mesmo afetiva do casal. Em relação às atividades desenvolvidas fora do lar, as três mães, com exceção de Angelina, cedem aos apelos dos maridos e decidem parar de trabalhar fora para se dedicarem aos afazeres domésticos e à maternidade. Vanda e Keila trazem isso 189 durante a entrevista, referindo que mesmo desejando continuar com suas atividades fora do lar, concordam com a proposta dos companheiros de deixarem seus empregos. Angelina por sua vez, faz questão de salientar em sua fala que sempre foi “independente”; sempre trabalhou, pagou suas contas e que ela “é o pai, é a mãe, é tudo” em sua casa. Se ela é a provedora, é quem faz compras, quem lidera e “quem apita”, demonstrando características tidas como “masculinas” em nossa cultura, seguindo esta lógica, ser “mãe” (ser “feminina”), não é um papel que pode encontrar expressão em seu imaginário. Tal ocorrência nos faz refletir novamente sobre como ainda se faz presente na sociedade atual a mentalidade patriarcal quanto ao desempenho das funções e papéis no interior do grupo familiar. A diferença de gênero é nítida, o homem ainda é visto como o responsável pelo sustento, o provedor. A mulher, por sua vez, ainda é vista como a principal responsável pelos cuidados com os filhos, e mais, as cobranças quanto a maternidade perfeita perduram até os dias de hoje, como já discutimos. Aplicando os pressupostos de Eiguer (1985), sobre o primeiro organizador inconsciente do psiquismo familiar – a escolha do parceiro – à questão dos papéis familiares e suas relações com o poder no grupo familiar, ainda que a escolha mútua dos casais pareça pender para uma relação complementar infantilizante para um e paternal para o outro, podemos apreender que a situação de prematuridade aparece para ambos os parceiros das famílias estudadas como uma oportunidade de transcender esta expectativa inconsciente, pois cada um, diante da crise instaurada, está procurando vivenciar os papéis familiares de uma forma diferenciada, com exceção da família Alves. 190 A prematuridade levou os grupos familiares, de forma geral, a se reorganizarem e buscar um novo arranjo para lidar com a situação. As mães precisaram adaptar-se ao clima de incerteza e rotinas hospitalares, aceitar o auxílio de outrem no cuidado com demais filhos e suas casas e aprender a acompanhar a evolução do quadro médico dos bebês prematuros sozinhas, com mais independência e iniciativa. Os maridos, em especial José Paulo e Adriano, precisaram assumir de forma mais pontual os cuidados paternos e domésticos na cidade de origem da família e Valter está caminhando nesse sentido, está “melhorando”, nos termos de Simone. Consideramos pertinente neste ponto, fazer uma referência a Puget e Berenstein (1993, p.4), ao abordar aquilo que rege a constituição de um casal ao seu ver. A marca de uma primeira contradição fundamental para constituição de um casal (matrimonial) surge da dificuldade psíquica de cada um de seus membros, derivada da resolução trabalhosa, difícil, nem sempre terminada da separação de seus vínculos familiares. Se psicanaliticamente poderíamos pensar em casal enquanto indivíduos que se desprendem da família de origem, de onde se originam modelos a serem seguidos, constatamos que as famílias estudadas ainda estão percorrendo este caminho. Nas famílias Cruz (primeiro caso) e Soares (segundo caso), ambos os parceiros estão trabalhando no sentido de se desligarem das famílias de origem e estabelecerem com as mesmas uma relação mais madura, menos simbiótica. Nas famílias Alves (terceiro caso) e Pereira (quarto caso), no entanto, não constatamos a mesma ocorrência; a relação conjugal ainda é bastante influenciada e permeada pelas figuras das famílias de origem dos maridos. 191 e) O sexo e o prenome dado à criança As expectativas quanto ao sexo do bebê prematuro nos quatro casos estudados aponta para uma direção convergente, observamos nas falas conscientes e nos conteúdos latentes a vontade, principalmente dos pais, de gerar um bebê do sexo masculino. Ainda que durante os relatos, as mães não apontem preferências de forma direta, em algum ponto a preferência pelo sexo masculino aparece. Na família Cruz, tal aspecto é bastante claro, conforme pontuamos anteriormente. Na família Soares, apesar da mãe verbalizar que havia planejado nomes femininos e que para ela o sexo não faria diferença, é possível apreender que o nascimento de um filho foi visto com um certo alívio para Adriano. Para Angelina, a certeza de ter um filho homem sempre esteve presente, pois a mesma intuía, pressentia desde o início da gestação que seria um menino. Já para a família Pereira, o nascimento de uma menina criou um atrito entre as expectativas do casal. Uma menina e todos os mimos como vestidos e fitas no cabelo já povoavam os sonhos de Simone há muito tempo, e que, frente ao nascimento, viu seu sonho realizado, enquanto que para Valter, o fato de ser pai, principalmente de uma menina, representava uma difícil realidade a ser assimilada. A ocorrência comum quanto às expectativas do sexo do bebê nos leva a refletir sobre dois pontos: o temor inconsciente da repetição (transmissão psíquica) e as questões de gênero. Parece-nos que, para as mães, a experiência da maternidade é única, sendo menino ou menina, ainda que inconscientemente almejem gerar uma criança que esteja em conformidade com as expectativas paternas e, talvez, com suas próprias 192 expectativas. Tendo gerado filhos meninos, o risco de repetição da história de “rejeição”, “fracasso” e sofrimento quanto à maternidade (na relação com suas próprias mães e agora, elas mesmas enquanto mães), como um forte elemento de transmissão psíquica, torna-se mais distante do que se tivessem gerado filhas meninas. Para os pais, todavia, encontramos o desejo de perpetuação, resquícios de uma mentalidade patriarcal e talvez até mesmo machista. Para eles, é importante e decisivo ter um filho homem, pois uma filha mulher acarretaria cuidados diferenciados e redobrados durante o processo educativo. A escolha (ou não escolha) do nome dos filhos certamente não parece ter ocorrido ao acaso nas famílias estudadas, conforme postula Isidoro Berenstein: “A indicação de um nome próprio pode se referir a um sentimento familiar, a um sentimento religioso, à moda, à praticidade ou serve para denominar um representante familiar significativo” (BERENSTEIN, 1988, p.125). A família Cruz decidiu colocar o mesmo nome destinado aquele bebê perdido aos oito meses de gestação. Gabriel, e a decisão de chamarem o novo bebê de Gabriela coube ao pai, que também escolhera o nome da primeira filha, Joana, ainda que o casal tivesse estabelecido que a escolha ficaria a cargo do pai se menino e da mãe, se menina. A partir destes dados, observamos de forma nítida que a escolha dos nomes dos filhos pelo casal acaba se referindo também à história deste grupo, e ao tipo de estrutura familiar do mesmo. Apesar do acordo estabelecido entre pai e mãe quanto à escolha dos nomes – se menino ou menina – mesmo tendo gerado duas meninas, a escolha coube ao pai. 193 Percebemos novamente traços da forte presença masculina no interior da família com o homem à frente das decisões, poder e liderança. Levando-se em consideração o acordo estabelecido entre o casal para a escolha do nome dos filhos, o mesmo mecanismo se repete no segundo caso (família Soares). Keila nos afirma que “não queria tomar a decisão sozinha”, que preferia aguardar a presença de Adriano para decidirem sobre o nome do bebê prematuro. Analisando a decisão da família Cruz, temos que o nome Gabriel remete-nos a um ente espiritual que, segundo a religião católica habita os céus, é o nome de um anjo. Quando pensamos na figura de um anjo, é praticamente impossível não nos lembrarmos do “anjo da guarda”, ou do adjetivo que atribuímos às pessoas generosas e de bom coração: “aquela pessoa é um anjo”. Assim, anjo, angelical, tornam-se sinônimos de proteção e bondade. De forma similar, anjos são entidades assexuadas, tanto podem ser meninos como podem ser meninas. Aqui reside a peculiaridade da escolha do nome de um anjo para o bebê prematuro: Gabriel, agora pode tornar-se Gabriela e este nome pode sugerir expectativas positivas de serenidade e generosidade. Gabriela também parece exercer a função de proteção e manutenção da continuidade da família, a proteção da estrutura familiar que se centra quase que exclusivamente nas funções sociais de parentalidade; uma vez que o casal dificilmente poderá gerar uma nova criança. Por outro lado, percebemos que no imaginário do casal, falta um filho do sexo masculino. O casal decide então colocar o mesmo nome daquele bebê homem perdido agora em Gabriela. Poderíamos pensar se, inconscientemente, a escolha deste nome não indicaria novamente uma gestação que “não daria certo”, uma nova perda para o casal, mais um “anjinho” (vide expressão popular usada frente a morte de crianças 194 pequenas) para o casal? Se seguirmos este pensamento, verificamos que a própria condição do nascimento prematuro de seu bebê, concretiza esta “lógica inconsciente”, esta gestação que “não deu certo”; uma vez que o relato de Vanda é marcado por várias passagens que demonstram seu receio, temor e angústia frente a possibilidade de perder o bebê prematuro. Ainda sobre a importância atribuída aos nomes próprios para a compreensão das nuanças inconscientes presentes na dinâmica familiar, podemos apontar as relações existentes não somente nos prenomes dados às filhas, bem como o próprio sobrenome da família, Cruz. Igualmente, à medida em que fazemos associações ao imaginarmos e visualizarmos um anjo, também associamos a imagem de uma cruz ao sofrimento da figura central da religião católica, Jesus Cristo. Podemos traçar um paralelo entre a saga final deste personagem e as vivências da família Cruz em relação à paternidade e à maternidade. Toda a trajetória dos Cruz em gerar e conceber filhos é marcada por dificuldades, o que pode nos remeter à própria trajetória de Jesus e seu calvário, caminhando com a cruz sobre os ombros rumo à sua própria morte. Resta-nos um questionamento: conceber, gerar e dar à luz um filho, diante de tantas tentativas frustradas poderia representar um calvário, um martírio para a família Cruz também? Arriscamo-nos a responder este questionamento. Embora tenham passado por experiências difíceis e frustrantes neste sentido, e que poderiam representar um martírio para a família, ainda assim os Cruz triunfaram e conseguiram gerar duas meninas. O sofrimento, o martírio, agora parece apontar para uma outra direção, a luta pela sobrevivência de um bebê prematuro, Gabriela, na U.T.I. neonatal. 195 Voltando ao segundo caso, a escolha do nome dos filhos na família Soares coube a Adriano, ainda que Keila houvesse cogitado nomes femininos, no caso de gerarem uma menina. Os nomes cogitados por ela trazem indicadores interessantes. O nome Vitória e a justificativa citada por ela em seu depoimento parece indicar um movimento de progressão quanto a aceitação da maternidade. Os outros nomes femininos cogitados – Patrícia Carolina e Lílian – indicam um movimento de regressão, no sentido de manutenção da dependência e aspectos infantis presentes em seu dinamismo inconsciente, já que seriam nomes desejados por outras pessoas, sua irmã e sua sogra. Por fim, o casal gerou dois meninos. Diante da escolha de nomes para os mesmos, verificamos aquilo que já salientamos antes, o casal nunca havia conversado sobre nomes durante a gravidez. O nome do primeiro filho foi escolhido aparentemente ao acaso, quando Adriano assistia a uma telenovela e viu o nome de um ator que lhe chamou a atenção, Renan. Este nome refere-se a um ator jovem de muito sucesso na ocasião da realização da entrevista. Talvez, no imaginário de Adriano, colocar o mesmo nome de um galã televisivo em seu filho, pudesse suscitar expectativas de que a criança futuramente pudesse ter sucesso, principalmente junto às mulheres. Novamente, se faz notar uma tendência patriarcal no inconsciente familiar do grupo em questão. Quanto ao bebê prematuro, até o momento da coleta de dados, o casal não havia decidido sobre seu nome. Mais uma vez fica clara a dificuldade do casal em lidar com a aceitação da chegada de um filho no plano inconsciente. 196 No terceiro caso, notamos que na família Alves, a escolha do nome do bebê prematuro é algo que reforça ainda mais os conceitos de Berenstein (1988), acerca dos indicadores inconscientes presentes no momento da escolha. Angelina e Mário, tal qual a família Soares nunca chegaram a conversar sobre o nome do bebê. Entretanto, a escolha coube exclusivamente a Angelina, que em seu relato frisou que colocaria qualquer nome desde que não fosse o indicado por Mário ou algum sugerido pela família de origem dele. Da mesma forma que na família Soares, Angelina já havia pensado em um nome feminino, Kelen, jogadora de voleibol da seleção brasileira, que disputava um importante torneio na época. Quais seriam os significados inconscientes presentes na homenagem que Angelina queria prestar ao bebê se fosse uma menina? Seguramente, temos que o nome escolhido, de uma atleta da seleção brasileira, indica a expectativa de que essa criança fosse uma vencedora. Tal qual em qualquer esporte, as características básicas presentes nos jogadores são a garra, a força, a perseverança e, sobretudo, o desejo de vencer. Contudo, a expectativa de gerar um filho “vencedor” foi frustrada, em face da realização de um parto prematuro, da visão de um bebê internado na U.T.I. neonatal, dentro de uma incubadora, frágil e pequenino. Visto de outro ângulo, o bebê prematuro pode também ser encarado como um vencedor, pois mesmo diante de todas as vicissitudes enfrentadas, o pequeno André continuava a lutar pela vida, ele estava vencendo uma partida, rumo a conquista de um campeonato. Já estava sem a sonda de alimentação e já era amamentado no seio da mãe quando ouvimos o depoimento de Angelina. 197 Aliás, a escolha do nome André para o filho de Angelina nos chama a atenção de modo particular. Foi uma escolha feita aparentemente ao acaso, no intuito de evitar nomes da vontade de Mário ou de sua família de origem. Segundo Angelina, quando solicitada acerca do nome do bebê, respondeu o primeiro que veio a sua mente, André Ricardo. Ainda que tivesse afirmado que não colocaria nomes da vontade de Mário no bebê, vemos que o segundo nome escolhido coincide com o segundo nome do pai da criança, Ricardo. Isso denota uma disparidade entre o discurso consciente e o conteúdo presente no inconsciente de Angelina. A afirmação categórica sobre a decisão de distanciar-se da figura de Mário se perde frente à escolha do segundo nome de seu filho. .Conforme suas palavras, disse o primeiro nome ocorrido em seus pensamentos e, posteriormente, deu-se conta de que era o mesmo nome do médico que a havia acompanhado e feito exame pré-natal em sua cidade de origem. A homenagem que em sua fala aparece como sendo ao acaso, guarda uma interessante ligação inconsciente com o dono do nome. A medicina é a ciência da prevenção, tratamento e cura dos sintomas e doenças, enquanto que o médico é tido como alguém que restabelece a saúde, que cuida, remedeia o mal, presta socorro, auxilia, aconselha. Devemos lembrar de que durante toda a história da humanidade e até os dias de hoje em algumas culturas, a medicina foi e ainda é exercida por pessoas fortemente ligadas as atividades religiosas, com dons, poderes espirituais e dotados de grande sabedoria, como os sacerdotes. 198 Além disso, a relação estabelecida entre médico e paciente e vice-versa também contempla uma série de conteúdos emocionais que merecem destaque. É uma relação antes de tudo paternal, onde o médico é o cuidador e o paciente o que recebe seus cuidados; o médico também assume a representação do respeito, saber e autoridade. É uma relação fortemente marcada por processos de projeção, onde grandes expectativas são depositadas na figura do médico por parte do paciente, enfim, por tudo o que acabamos de frisar é uma relação altamente suscetível aos processos de transferência e contratransferência. Por toda a trajetória de Angelina, vemos que o médico, Dr. André aparece como uma figura paterna em sua dinâmica psíquica inconsciente. Angelina busca o desconhecido pai da infância em todos os homens com que teve algum tipo de envolvimento e se frustra ao perceber que todos os homens são iguais, “não prestam”, não valorizam as mulheres “corretas”, não merecem ter com ela um relacionamento mais sério, dito de outra forma, nenhum permanece ao seu lado, como seu pai. Angelina engravida, mesmo contra a sua vontade e, neste ato, percebe o quanto foi traída e enganada pelo pai do bebê. Mais uma decepção com o sexo masculino. Todavia, foi nesse contexto que Angelina encontrou o ausente pai da infância, o médico, com todas as características que um pai idealizado deve ter: ser cuidadoso, atencioso, preocupado, sábio. Talvez, este filho que não havia sido desejado possa representar uma ruptura no mito instaurado acerca da figura masculina de que “homens não prestam”. Aliás acreditamos que este mito já havia sido abalado quando Angelina descobriu um homem que “presta”, que não a decepcionou, pelo contrário, a acolheu e cuidou dela: o médico 199 Dr. André, que mais tarde foi agraciado com a homenagem a um outro homem que “presta”, o pequenino André Analisando a escolha do nome no quarto caso (a filha da família Pereira), temos que como no caso dos Cruz e dos Soares, a escolha se relaciona diretamente com o sexo da criança: se menino, os pais escolhem, e se meninas, a escolha cabe as mães. Simone relata que escolheu o nome Maria Clara por ser fã da música e por gostar muito do nome. Ao atentarmos para a mensagem presente na canção, verificamos que é uma declaração de amor de um jovem a uma jovem que não corresponde aos seus apelos apaixonados. Se compararmos os conteúdos da letra com a história de Simone, veremos uma clara correlação com seu relacionamento conjugal. Na verdade, ela gostaria de ser uma “Maria Clara” para Valter, queria ser desejada, amada, cortejada, querida. Ainda que ele não fosse quem ela sempre sonhou, como diz a música, e realmente não é, Simone aceitaria Valter. Assim, hipotetizamos que o nome da filha do casal traz ainda na fantasia de Simone toda a esperança de que seu companheiro mude, como ela mesma nos coloca; ela espera que, conforme o tempo se passe, Valter mude e comece a dar mais atenção a ela e ao bebê. Assim como a expectativa do jovem apaixonado da canção em relação ao seu objetivo, é a expectativa de Simone em relação a Valter. Com isso, a filha do casal, para Simone, exerce um importante papel regulador dentro do grupo, sendo a portadora de inúmeras projeções maternas, pois o casal e a família se formaram em virtude de sua existência. 200 Desta forma, ao contemplarmos a escolha dos nomes dos filhos nos quatro grupos familiares, somos levados a concordar com as proposições de Berenstein (1988). O autor explica que a escolha de um nome próprio pode indicar uma relação significativa entre o receptor e o doador do nome, e que muitas vezes denota a expressão de indicadores inconscientes sobre o sistema de relação entre ambos, informando inclusive o tipo de equilíbrio e origem da estrutura inconsciente da família. O nome próprio refere-se a um indivíduo determinado e permite, além do mais, segui-lo através da história pelo uso do mesmo nome próprio. [...] Existe a crença de que os indivíduos portadores do mesmo nome têm uma relação em comum (BERENSTEIN, 1988, p.126 - 127). f) As noções de tempo e espaço familiar De acordo com as proposições de Isidoro Berenstein, ainda estão presentes outros dois conceitos ao lado dos nomes próprios que nos auxiliam na compreensão da trama inconsciente presente no dinamismo familiar de um grupo, são as noções de espaço e tempo familiar. O espaço familiar serve para estabelecer representações de proximidade e distância no interior do grupo, onde a distância espacial pode servir para representar a distância afetiva. Temos que o espaço humano, freqüentemente, pode conter a representação inconsciente do próprio corpo, prolongado no âmbito espacial e da distância na qual um sujeito permite a aproximação do objeto. O espaço nos permite recuperar dimensões psicológicas e, neste sentido, pode ser considerado como uma linguagem. [...] A significação da distância que regula o intercâmbio entre os membros de um grupo familiar corresponde mais a um modelo inconsciente do que às 201 explicações e modelos conscientes dos membros particularidade (BERENSTEIN, 1988, P. 155 – 156). sobre esta Notamos que o espaço familiar das famílias estudadas foi intensamente modificado em função da situação de hospitalização de mães e bebês prematuros. A partir da notícia da internação, instaurou-se dentro dos grupos uma distância real entre a mãe e os demais membros, ficando esta isolada e dividida do restante. Isso foi sentido de forma peculiar por todas elas. A vivência das acompanhantes diante desses fatos nos lembra o que foi discutido no eixo temático “os filhos no desejo dos pais: o papel da maternidade, a gravidez, o nascimento e os cuidados iniciais”, sobretudo as concepções de Shimitz et al. (2000), ao apontarem que em nossa cultura, tanto a sociedade como a própria mãe, exigem que esta última assuma grande parte da responsabilidade dos cuidados com os filhos hospitalizados e que isso pode determinar sentimentos de culpa, confusão, inadequação e infelicidade. Por outro lado, ao passo que a hospitalização resultou no distanciamento dos demais membros, de seus lares e de suas cidades de origem, houve também uma aproximação entre Vanda, Keila, Angelina e Simone e seus respectivos bebês prematuros, exigindo-lhes neste momento uma dedicação maior à maternidade diante desta delicada situação. Esta proximidade foi sentida de maneira positiva pelas mães entrevistadas, pois as vivências proporcionadas em face da prematuridade e conseqüente hospitalização estão ao mesmo tempo exigindo-lhes um trabalho de (re) significação de sentimentos e cognições, conforme ilustram as proposições de Belli (1999), Oliveira (1998) e Valle (2002). 202 Relembramos que a proximidade é de extrema importância para o trabalho de ajuste entre o “filho idealizado” e o “filho real” (KLAUSS e FANAROFF, 1982), bem como para o progressivo desenvolvimento do vínculo e apego entre ambos (BOWLBY, 1990; DIAS, 2000; PAULI e BOUSSO, 2003; ROSSATTO – ABEDE e ANGELO, 2002; SCOCHI et al., 2003; SPITZ, 1991; WINNICOTT, 1999). Ainda em relação ao espaço familiar, outro fato torna-se claro numa época um pouco mais remota que a atual, o momento em que se formaram os casais Vanda e José Paulo, Angelina e Mário e Simone e Valter (primeiro, terceiro e quarto caso, respectivamente). Retrocedendo um pouco no tempo, observamos que na ocasião do início do namoro Vanda e José Paulo e Angelina e Mário eram vizinhos; ao passo que Simone encontrava-se com Valter freqüentemente na casa de sua tia, onde residia na época, quando o mesmo costumava visitar seus primos. Isso pode denotar uma aproximação espacial e afetiva no passado e que perdura até os dias de hoje no caso de Vanda e José Paulo, sendo que para Angelina e Mário e Simone e Valter, o que antes representava uma aproximação, transformou-se nos dias de hoje em uma distância quase que intransponível. Considerando a aproximação espacial das famílias Soares e Pereira em relação às famílias de origem dos maridos, somos levados a concordar com as colocações de Berenstein (1988), ao salientar que o espaço nos permite recuperar dimensões psicológicas e, neste sentido, pode ser considerado como uma linguagem. A aproximação espacial é vivenciada de forma positiva por Keila, que se mostra grata e satisfeita por ter sido recebida e acolhida pela família de origem de Adriano no momento da gravidez (família Soares). Para Simone, entretanto, a aproximação espacial é vivenciada de forma extremamente negativa, uma vez que segundo ela, o 203 fato de ter a sogra como vizinha traz uma série de inconvenientes, sobretudo a dependência e o controle de sua intimidade (família Pereira). Em suma, verificando a organização do espaço familiar das famílias Cruz, Soares, Alves e Pereira, averiguamos a proximidade com o que Berenstein postula acerca da maneira como cada grupo organiza seu espaço. Para ele, essa organização é antes de tudo, uma representação das relações familiares e do conjunto de imagens, idéias e lembranças das relações familiares tal como existem no inconsciente de seus membros. Em relação ao tempo familiar, Berenstein (1988), esclarece que cada família ordena os acontecimentos vividos num tempo que retém todas as características da estrutura familiar. Considerando que a história de uma família surge como o relato dos acontecimentos significativos que incidiram em sua constituição e em seu desenvolvimento, notamos que no primeiro caso (família Cruz), seu tempo familiar, sua história gira em torno das concepções, das gestações. Enfim, gira em torno do nascimento (ou não) dos filhos. No segundo e quarto caso (família Soares e Pereira), por outro lado, verificamos que o tempo familiar parece estar pautado não nas gestações, mas sim no período de namoro, na etapa referente à formação do casal, ou seja, na etapa de conexão com a família materna, conforme a designação usada por Berenstein (1988). Este período aparece de forma evidenciada nos relatos das duas mães, Keila e Simone. A primeira narra toda a trajetória do namoro com Adriano e todas as agruras enfrentadas pelo casal para ficarem juntos: os segredos, a reprovação paterna, a 204 expulsão de casa, a gravidez. Já Simone se firma nos bons momentos vivenciados ao lado daquele Valter que nos dias de hoje, segundo ela, não existe mais. Analisando a situação de Angelina, da família Alves, o tempo aparece relacionado com as modificações vivenciadas desde a morte de sua mãe: as várias casas, as várias pessoas com quem conviveu, os empregos e a progressiva conquista de sua “independência”. Da mesma forma, podemos pontuar a temporalidade neste terceiro caso de acordo com o surgimento das figuras masculinas ao longo de sua vida: seu pai, seu noivo, seu tio, Mário, seu médico e, por fim, seu filho. Caminhando neste sentido, verificamos que a leitura dos acontecimentos significativos na história do grupo familiar permite perceber certas regularidades entre as seqüências dos acontecimentos: as gestações de Vanda, a etapa do namoro de Keila e Simone e as modificações causadas pela perda materna e a passagem de figuras masculinas, no caso de Angelina. Uma vez que a análise do tempo consciente nos permite fazer inferências sobre a estrutura familiar inconsciente, oferecendo configurações estáveis e instáveis, correspondentes a modelos encobridores e ainda assim bastante informativos conforme conceitua Eiguer (1985), podemos redesenhar o tempo familiar dos Cruz, dos Soares, dos Alves e dos Pereira num novo modelo de tempo inconsciente, representado pela relação inconsciente entre a família conjugal e a família materna, de acordo com aquilo que é trazido pelas mães ao abordarem as relações com sua família de origem, aspecto este discutido no eixo temático “os filhos no desejo dos pais: o papel da maternidade, a gravidez, o nascimento e os cuidados iniciais”. Encontramos também nas produções de Eiguer (1985), que a temporalidade se inscreve no inconsciente familiar através das representações oscilantes entre a 205 memória do passado e do futuro. Se para este autor, toda crise implica na perda momentânea e quase inevitável do horizonte temporal, de modo que a ruptura se acompanha de um sentimento de eternidade, onde o tempo parece não mais passar, verificamos que o tempo familiar dos grupos estudados parece estancado no momento presente, ou seja, na última gestação, no nascimento prematuro dos bebês, acontecimento este vivenciado como crítico para os casais e para as famílias como um todo. g) O eu familiar: sentimento de pertença, habitat interior e ideal do ego É neste ponto que se faz presente a idéia referente ao segundo organizador inconsciente do psiquismo familiar mencionado por Eiguer (1985): o eu familiar. Este segundo organizador é entendido como o investimento que cada membro de um grupo familiar faz em sua própria família, percebendo e reconhecendo esta família como sua, tanto na dimensão espacial quanto na temporal. Um dos componentes do eu familiar seria o sentimento de pertença, ou seja, a noção consciente e inconsciente de pertencimento a uma determinada família, a noção de identidade familiar. Este aspecto pode ser nitidamente identificado nas famílias Cruz e Soares, quando o casal anseia pela recuperação dos bebês prematuros e quando Vanda e Keila têm a certeza da continuidade da vida familiar, mesmo estando ausentes fisicamente, mesmo sentindo a falta dos esposos, elas sabem que eles estão na cidade de origem cuidando de seus outros filhos; sabem também que podem contar com suas sogras e sua mãe, no caso de Vanda. Este desejo de superar as adversidades quanto à 206 crise causada pela prematuridade, juntos, enquanto um grupo, é que caracteriza o sentimento de pertença. O sentimento de pertença familiar, de grupalidade, torna-se bastante evidente ainda quando analisamos a ligação da família Cruz com a religião. Praticamente todos os nomes próprios deste grupo são homenagens a santos da religião católica: Aparecida, José, Paulo, Gabriela. Para os Cruz, irem juntos à missa, rezarem, participarem dos movimentos católicos, enfim, a crença traduz uma forma concreta de consolidar o sentimento de pertença. Entre os quatro grupos familiares participantes da pesquisa, o aspecto referente ao sentimento de pertença foi menos caracterizado pelas famílias Alves (terceiro grupo) e Pereira (quarto grupo), já que com estes, não verificamos que o nascimento prematuro e a hospitalização puderam mobilizar de forma significativa o grupo. Aliás, podemos notar a presença de conflitos referentes à dinâmica das acompanhantes e dos casais anteriores a ocorrência da prematuridade e hospitalização. Sendo assim, ao analisarmos o eu familiar e o sentimento de pertença nas famílias Alves e Pereira, podemos supor que a dificuldade encontrada no presente pode guardar ligações com as dificuldades enfrentadas no interior de sua família de origem. Angelina e Simone não tiveram oportunidade de vivenciar junto às mães e às famílias um sentimento de identidade familiar, de pertencimento, pois a perda das mães, quando ainda eram muito novas, acarretou a passagem por várias casas e várias famílias, mas nenhuma que pudesse ser caracterizada de fato como “sua família”. Se o sentimento de pertença, a familiaridade está claro para os Cruz e os Soares, apreendemos que há uma tentativa de resgatar tal sentimento entre os Alves e os Pereira, sobretudo por parte das mães, Angelina e Simone. Ainda que Angelina 207 traga em sua fala consciente toda a raiva e decepção diante da postura do parceiro, ela parece demonstrar um desejo latente de que essa união se consolidasse, no fundo ela parece nutrir o desejo de que Mário e ela pudessem formar uma família e que ele pudesse ser um participante deste grupo. De modo similar, Simone nos traz por diversas vezes a expectativa de que Valter mude, seja um bom marido e um bom pai, enfim de que ele, assim como ela, esteja inserido na família e encontre expressão na interação familiar. Um segundo componente do eu familiar refere-se ao habitat interior, o qual representa uma espécie de “pele” real e fantasmática da família, sendo entendido como o espaço ocupado por cada um dos membros na relação estabelecida com o outro. Relembramos que enquanto o sentimento de pertença trabalhado anteriormente nos remete à identidade, o habitat nos remete ao sustentáculo desta identidade, à imagem corporal, ao corpo familiar. Com efeito, o grupo composto de indivíduos, de corpos, mas nunca unidade corporal, é sem cessar, ameaçado pelo desmembramento. Psiquismo composto, este grupo ‘tem medo’ de que cada parte somática, cada indivíduo, retire seu investimento do soma coletivo. A fim de aliviar este temor, a família tenta investir um lugar geográfico real que a contenha: o lar, a casa familiar (EIGUER, 1985, p.40). Frente ao temor de desmembramento familiar causado pela prematuridade, hospitalização e possibilidade de morte, as mães retomam por diversas vezes o lar distante. Este lar é retomado por Vanda, Keila e Simone não somente no intuito de resgatar lembranças acolhedoras, mas também como uma fonte de segurança externa que pode vir a se tornar um sentimento de segurança interno para lidar com o novo, com o desconhecido. 208 A segurança encontrada neste lar, imaginário ou real, é a “pele” que une, sobretudo, as famílias Cruz e Soares; é um fator de aproximação entre cada um dos membros, o que mais se deseja neste momento é o retorno ao lar, é a possibilidade de curar esta ferida na “pele” familiar, ou melhor, é a possibilidade de ver esta ferida cicatrizada e o “corpo” familiar novamente intacto, saudável. Por outro lado, este aspecto não pôde ser observado de forma tão clara na família Alves. Para Angelina, o nascimento prematuro e a hospitalização não mobilizaram o espaço físico do lar. Ao considerarmos o habitat no segundo, terceiro e quarto caso, somos levados a refletir acerca das relações existentes entre o habitat interior e o exterior. As constantes mudanças de residência em toda a história de Angelina, bem como a saída da casa do pai e da tia no caso de Simone e a saída da casa dos pais de Keila, podem nos sugerir não somente uma desestruturação espacial familiar prévia à formação do casal, mas nos fornecer alguns indícios sobre um enfraquecimento na interiorização da noção de habitat para cada uma delas. Ainda em relação ao habitat, ao considerarmos o relato de Keila, da família Soares, vemos a dificuldade ante a ausência de um lugar para morar que seja da família de fato, pois as mudanças de emprego de Adriano afetam as instalações da família. A cada novo emprego, a cada nova fazenda que ele passa a trabalhar, toda a família Soares se desloca para acompanhá-lo. Isso deixa Keila chateada, “sentindo falta de um lugar que seja da família”, de poder arrumar sua casa de acordo com seu gosto. O terceiro componente do segundo organizador inconsciente do psiquismo familiar de Eiguer, é o ideal do ego. O sentimento de pertença e o habitat interior referem-se às épocas mais remotas, ao passado da família ou ao tempo presente, 209 enquanto que o ideal do ego abarca o futuro, por pressupor planos e expectativas tanto individuais como grupais. Com efeito, temos no ideal do ego familiar os projetos a serem efetivados, as missões a serem cumpridas, os ideais a serem atingidos pelo grupo. Para Eiguer (1985), o ideal do ego representa um importante organizador dos vínculos e da estabilidade do grupo, por possuir uma função reguladora que facilita os compromissos entre desejo e defesa. Dentro deste organizador há uma espécie de conluio, de encontro entre os ideais pessoais de cada um dos membros, sendo que, ao lado da representação de ideal do ego individual, temos a representação de ideal do ego familiar. Encontramos nas famílias observadas um primeiro ideal do ego familiar presente na evidente preocupação com um futuro próximo, a recuperação e sobrevivência dos bebês prematuros. Se a utilização da noção do ideal do ego ao psiquismo familiar supõe o encontro dos ideais pessoais de cada membro, ou seja, os projetos e planos da família, então esses planos numa primeira instância entrecruzam-se no desejo de vivenciar a tão sonhada alta dos pequeninos da U.T.I. neonatal, bem como o tão sonhado regresso das mães ao lar com os bebês em seus braços. Fundido ao ideal do ego familiar, emerge o ideal do ego pessoal de cada uma das mães. Examinando seus relatos, torna-se claro que o ideal do ego pessoal de cada uma delas se refere àquilo que, de alguma forma, mostra-se ausente em sua subjetividade ao longo de suas histórias, reiterando as idéias trabalhadas nos eixos temáticos anteriores. 210 Para Vanda, este ideal do ego pessoal é representado pelo desejo de não repetir a história do casamento de seus pais. Como já mencionamos em outros pontos do presente estudo, sua expectativa, sua missão, seu ideal é ter um outro tipo de casamento, de relação, diferente daquela assimilada pela filha Vanda. Embutido neste desejo também está a aspiração de construir uma imagem cada vez mais diferenciada de sua mãe, como pessoa e como mãe mesmo. Nos planos de Keila aparece o desejo de que os filhos tenham aquilo que ela não pode ter no momento presente, uma casa. Também aparece o desejo de que os filhos não sofram, que possam se vincular a pessoas que os façam felizes e, que, futuramente, possam ter seus próprios filhos. De modo geral, o ideal do ego pessoal e familiar para os Soares é que os filhos possam dar continuidade à família, ao sentimento familiar, à identidade familiar, como trabalhamos anteriormente. A aspiração de construir uma imagem cada vez mais diferenciada de sua mãe quanto à maternidade, assim como para Vanda, também está presente para Simone, da família Pereira (quarto caso). O ideal do ego pessoal se funde com o ideal do ego familiar para esta mãe, uma vez que grande parte dos planos futuros se volta para a estabilização dos vínculos conjugais e familiares. Ela deseja ser feliz, ter alegria, ter paz, sendo que seu maior sonho desde a época de solteira era ter uma família. Já para Angelina, o ideal do ego pessoal está imerso num sentimento de vingança e castigo em relação a Mário. Uma crença de que essa vingança possa ocorrer através do pequeno André emerge em suas palavras. Ao mesmo tempo, nutre a vontade de que no futuro possa encontrar uma pessoa e unir-se a ela, bem como ter outros filhos. 211 Assim, somos levados a pensar que as mães acompanhantes de bebês prematuros, cada uma dentro de suas especificidades, denotou estar em busca de uma projeção para um tempo distante. Há a mobilização dos ideais pessoais na tentativa de representar grupalmente aquilo que é almejado quanto ao seu destino. Este destino, todavia, está voltado para as relações familiares em todas aquelas que assentiram em participar da coleta de dados para a presente pesquisa. Sobretudo em relação a Vanda e Keila, vemos que seus ideais pessoais fundem-se em algo maior, o ideal do ego familiar. Com efeito, o conluio estabelecido entre os ideais do ego pessoais e familiares de cada uma das famílias observadas aponta para a expectativa de uma realidade próxima em que a situação crítica instalada no presente possa ser transposta e superada. A angústia, o estresse, a incerteza e a finitude cedem lugar aos planos que contemplam o resgate de uma identidade familiar, onde sentimentos de tranqüilidade, alegria, harmonia e continuidade possam redesenhar a história dos Cruz, dos Soares, dos Alves e dos Pereira. h) A interfantasmatização O terceiro organizador inconsciente do psiquismo familiar é a interfantasmatização, ou seja, o ponto de encontro dos fantasmas individuais de cada membro, próximos por seu conteúdo, onde é possível um intercâmbio entre a subjetividade de cada um, bem como de seus ancestrais. 212 Na construção subjetiva conjunta dos casais estudados, podemos identificar o ponto de encontro dos fantasmas dos parceiros sob duas vertentes. Uma delas referese aos fantasmas representados pela família de origem de cada um dos companheiros. Nesta primeira vertente que abarca os fantasmas das famílias de origem dos parceiros, a aparição do fantasma principal se dá na forma de uma metáfora em comum: “a boca”. Enquanto as famílias de origem das mães – Vanda, Keila, Angelina e Simone – assumem a forma fantasmática de uma “boca emudecida”, calada, seja pela vergonha, pelo segredo ou pela ausência; a família de origem dos companheiros – José Paulo, Mário e Valter – assumem a forma fantasmática da presença incessante, como uma “boca sugadora”, faminta, à espera de alimento. De qualquer modo, durante a análise dos conteúdos que emergiram nas entrevistas, fomos levados encarar mais profundamente as relações das acompanhantes com a maternidade em dois momentos diversos: no passado enquanto filhas e no presente, enquanto mães. Diante disso, supomos que a própria maternidade configura-se como uma experiência fantasmática, cercada de mistérios e sentimentos desconhecidos e contraditórios, principalmente para as famílias Alves e Pereira, onde as acompanhantes perderam repentinamente suas mães ainda na infância. A segunda vertente refere-se ao fantasma contido na oscilação entre a vida e a morte presente em cada etapa do ciclo familiar. Uma vez que a existência é freqüentemente marcada por um percurso cheio de acidentes dolorosos, com traumas e lutos consecutivos, a existência das famílias descontinuidades nas histórias de cada uma das mães. parece ser abalada pelas 213 Nos Cruz, isso é representado por cada aborto sofrido por Vanda; nos Soares, por cada gestação; nos Alves, por cada mudança e decepção que Angelina tem com o sexo oposto e nos Pereira pelas disparidades entre o esperado e o real. A família – organização psíquica, a família-grupo como entidade psíquica e a relativa autonomia dos componentes familiares do psiquismo predispõe-nos a pensar numa ‘existência familiar própria’: um nascimento, uma vida e uma morte. Podemos imaginar a vida de uma família confrontada historicamente com traumas, crises e lutos (EIGUER, 1985, p.72). Com efeito, se pensarmos na noção de ciclo familiar sob a ótica da estrutura ou funcionamento inconsciente, perceberemos que o ciclo com suas fases, crises e respectivas resoluções, poderá entrar em conflito com a estrutura inconsciente permanente delineada pelo grupo familiar. Se as reações familiares diante dos traumas são fundamentais para as experiências recentes de acordo com o que nos postula Eiguer (1985), notamos que a ruptura familiar causada pela crise diante da prematuridade e hospitalização serviu, no caso da família Cruz e da família Soares, para que os membros se reconhecessem mais do que nunca uns aos outros no interior do grupo, mantendo as posições anteriormente ocupadas por cada um deles. E mais, para que se reconhecessem como capazes de assumir posições diferenciadas, conforme apontamos em relação ao segundo organizador inconsciente, o eu familiar (eixo temático intitulado “o eu familiar: sentimento de pertença, habitat interior e ideal do ego”), o que, sem dúvida, é essencial para a continuidade do sentimento de coesão e grupalidade. 214 A mesma incidência, entretanto, não pôde ser observada em relação às famílias Alves e Pereira (terceiro e quarto caso). Ainda que Angelina e Simone almejassem modificações frente à gravidez e frente à prematuridade em relação aos parceiros, parece-nos que estes dois acontecimentos podem ter contribuído justamente para o contrário. Ao invés de proporcionar a continuidade do sentimento de coesão e grupalidade, tanto a gravidez como a prematuridade parecem ter representado uma ruptura na relação conjugal e familiar, de acordo com o que pontuamos em outros momentos de nossa investigação. A sustentação das fantasias grupais em torno da dialética presente no processo vital, vida – morte – vida, assim reconhecida no âmago das vivências dos grupos observados, é o que poderia mobilizar seus membros a enfrentarem as vicissitudes de um processo de hospitalização e o constante encontro com aquilo que pode ser visto como ameaçador num primeiro momento: a finitude. Não há possibilidade de vida sem a morte, assim como não há possibilidade de continuidade familiar sem a experiência de viver novos arranjos familiares diante de uma situação crítica. A finitude, aqui, não pode ser entendida no seu sentido mais estreito, mas como a transcendência de padrões de relacionamento estanque rumo à conquista de novos padrões de relacionamento no interior da família, definindo assim, novas perspectivas. 215 8- CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao finalizamos este trabalho, acreditamos ser importante salientar que o relato de cada uma das mães entrevistadas foi único, singular. Ainda que cada uma delas tenha apresentado uma construção peculiar de sua subjetividade, foi possível percebermos que várias das vivências trazidas por elas guardam pontos em comum. Ao concordarem em participar da entrevista e dar seus depoimentos sobre assuntos que abarcam sua intimidade, percebemos que a coleta de dados representou um momento especial de catarse e reflexão. A atmosfera de aceitação e livre expressão através da fala podem ter se configurado como uma oportunidade única de confrontar sentimentos e percepções. A cada relato, a cada encontro abria-se a possibilidade de adentrar num mundo novo de histórias marcadas pelo sofrimento, por sentimentos complexos, intensos e, por vezes, contraditórios: a prematuridade. Esta ocorrência aponta para a importância dos processos de humanização no contexto hospitalar e suas influências sobre a recuperação do paciente e mobilização de recursos não somente desse, mas de todo o grupo familiar em que está inserido. Percebemos a necessidade de se favorecer a criação de um espaço no ambiente hospitalar onde seja possível a troca de experiências, bem como a implantação de ações interventivas que envolvam a equipe multiprofissional como um todo. A atuação do psicólogo hospitalar como profissional de saúde inserido na equipe multiprofissional, deve ser do mesmo modo ampliada, seja através de grupos de 216 orientação a pais e profissionais, objetivando não somente o tratamento e acompanhamento das disfunções e conflitos já existentes, mas também se preocupando em prevenir o surgimento de sofrimentos que podem decorrer dos processos de hospitalização. Assim, estaríamos mais próximos de oferecer um atendimento humanizado de fato, contribuindo para a redução de angústias, minimização do estresse e até mesmo abreviação do período de hospitalização e com isso, os gastos hospitalares. Somos levados a refletir sobre o impacto causado pela experiência da prematuridade não somente na psicodinâmica das mães acompanhantes, mas em todo o grupo familiar. Percebemos que esta vivência envolve todos os membros da família; quer seja no tempo passado ou presente, de forma direta ou indireta, sendo da família atual ou de origem, todos são mobilizados diante desta delicada situação. Quando analisamos os desdobramentos e as representações da prematuridade no psicodinamismo das famílias observadas, vemos que a situação presente foi capaz de evocar um tempo distante representado pelo passado e, simultaneamente, lançar o grupo rumo a um tempo futuro, cercado de planos e expectativas. A forma como as mães acompanhantes e suas respectivas famílias lidam com a prematuridade indicou a prevalência de sentimentos ambíguos; ao mesmo tempo em que almejam a recuperação do bebê prematuro e alta hospitalar, são confrontados com suas fragilidades tanto pessoais como grupais e levados a encarar a possibilidade real de finitude. A vivência do papel materno e a relação com o bebê pré-termo, também sugeriu ligações com aquilo que foi vivido pelas mães acompanhantes na condição de filhas, ou seja, a construção do papel materno parece ter sido influenciada, pela história familiar 217 de cada uma delas. E essa história familiar apontou para um sentimento em comum encontrado na relação mães-filhas e que parece se reeditar na relação mães-bebês prematuros: a ambivalência materna em sua forma extrema, simbolizada pela “rejeição” inconsciente à maternidade. O papel ou lugar que o bebê prematuro ocupa no interior do grupo familiar apresentou variações em cada uma das famílias observadas, se levarmos em conta a narrativa consciente. Por outro lado, ao lançarmos um olhar mais subjetivo, contemplando os significados inconscientes, vemos que esta criança parece assumir um papel regulador dentro do grupo. O nascimento dos bebês prematuros e o processo de hospitalização para as acompanhantes, apareceram como fatores que podem contribuir para a continuidade do sentimento de coesão e grupalidade e para o resgate da identidade familiar. As expectativas em relação ao futuro dos bebês prematuros se referiram àquilo que de alguma forma mostrou-se ausente na dinâmica das mães ao longo de suas histórias de vida. Todas as famílias estudadas, porém, possuem a expectativa de uma realidade próxima em que a situação crítica instalada no presente possa ser transposta e superada; onde sentimentos de tranqüilidade, alegria, harmonia e continuidade possam redesenhar a história dos Cruz, dos Soares, dos Alves e dos Pereira. Lembramos que a vida familiar não parte de um marco zero; ao contrário, do ponto de vista psíquico existe toda uma história pregressa que envolve a mãe e o pai na qual já se encontram reservados alguns padrões de relacionamento a serem seguidos com a chegada de um bebê. A história pregressa, os padrões de relacionamento e os modelos a serem seguidos, ao nosso ver, nem sempre estão próximos da consciência dos membros de um grupo familiar. 218 Este aspecto ilustra como a identificação dos componentes inconscientes dos vínculos familiares pode nos auxiliar na compreensão da constituição, funcionamento e estrutura familiar, quando nos propomos a analisar as continuidades e descontinuidades entre passado, presente e futuro. No decorrer da realização da análise dos dados coletados, averiguamos o surgimento de outros temas que extrapolam os objetivos propostos por nós no presente estudo e que mereceriam uma investigação mais aprofundada, como por exemplo, as questões de gênero, o ideal de amor romântico, a transmissão psíquica de elementos inconscientes entre as gerações no que se refere à maternidade e prematuridade e o próprio sentimento de ambivalência materna. Sendo assim, não tivemos a pretensão de esgotar as reflexões acerca da prematuridade e seus desdobramentos na psicodinâmica familiar. Nossa proposta foi desenvolver um trabalho que procurasse contemplar não somente a figura materna, como comumente encontramos nas produções sobre o assunto, mas sim, o grupo familiar como um todo, com as especificidades e a subjetividade que lhe são próprias. 219 9- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, R. das N. Maternidade: um estudo com mulheres grávidas em Maringá. São Paulo: 1993. 92 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Instituto de PsicologiaUniversidade de São Paulo. AVERY, G. B. (coord.) Neonatologia: fisiopatologia e cuidado do recém-nascido. Porto Alegre: Artes Médicas, 1978. BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BELLI, M. A. de J. Mães com filho internado na UTI neonatal: um estudo sobre representações sociais. São Paulo: 1999. 130 f. 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Serei entrevistada sobre informações pessoais, por meio de um roteiro com temas sobre o assunto da pesquisa, elaborado e aplicado por uma pesquisadora com preparo adequado para utilizar o instrumento proposto. Meu relato será gravado em fita cassete e depois transcrito, ficando sob a responsabilidade da pesquisadora. Estou ciente de que poderei participar de mais de um encontro com a pesquisadora para a coleta de dados, caso apenas um não seja o suficiente para obtenção de informações consideradas importantes para a pesquisa. 2. A pesquisadora está obrigada a esclarecer questões ou dúvidas sobre os procedimentos ou sobre a metodologia da pesquisa durante a coleta de dados. 3. Minha participação é voluntária e eu posso me recusar a participar ou retirar meu consentimento e interromper minha participação neste projeto, sem prejuízos ou penalidades. 229 4. Sei que não receberei nenhuma compensação financeira pela minha participação, bem como não terei nenhuma despesa em relação aos procedimentos envolvidos com a pesquisa. 5. Sei ainda que minha participação não acarretará nenhum tipo de desconforto ou risco para a minha pessoa. 6. Autorizo a utilização dos dados fornecidos em minha entrevista, para finalidades de publicação científica e didática. 7. Sei que minha identidade será mantida em sigilo, de modo que todos os nomes citados sejam modificados, evitando assim uma exposição direta sobre os dados por mim fornecidos. Assis, ___________________________ de _________________________ Paciente Pesquisadora Pesquisadora responsável: Bruna Burneiko Alves Meira. Endereço residencial: Telefone: de 200 . 230 ANEXO B- FICHA DE IDENTIFICAÇÃO DAS ENTREVISTADAS Primeiro encontro – data: I- Dados da mãe: Nome: Local de origem: Data de nascimento: Idade: Local de nascimento: Estado: Nacionalidade: Sexo: Cor: Religião: Grau de escolaridade: Profissão: Estado civil: Renda familiar: II- Dados do bebê: Nome: 231 Local de origem: Data de nascimento: Local de nascimento: Estado: Nacionalidade: Sexo: Diagnóstico médico (segundo prontuário): Nascimento: ____ semanas e ____ dias. Setor: Filiação (pai): Data de nascimento: Idade: Profissão: 232 ANEXO C- ROTEIRO DE ENTREVISTA Para alcançar os dados da história e pré-história familiares: • Como os pais do bebê prematuro se conheceram. • Como se deu a escolha do parceiro. • Quais foram as reações dos avós frente à escolha. • Dados sobre o noivado e casamento. • Arranjo da vida do casal. • Crises enfrentadas pelo casal. • Qual o significado e a imagem dos filhos para os pais. • Dados sobre a gravidez e nascimento. • Escolha do nome do bebê. • Aleitamento e cuidados iniciais. • As funções paternas. • Descrição sumária dos traços dos avós e, • Posição de cada pai em sua própria família. - Para alcançar a interação familiar: • Qual é a situação social da família. • Como são as relações no trabalho e instituições. • Como se dão os vínculos com o resto da família e com os amigos. • Dados sobre o habitat da família. • Conflitos familiares. 233 • Como se dão as relações de poder na família: decisões, regras e liderança. • Papéis familiares. • Qual o papel da maternidade na família. • Como se dá a comunicação no grupo. • Qual é a importância dos segredos para o grupo familiar. • Quais as expectativas dos pais para o futuro dos filhos.