7º Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade
23 a 26 de maio de 2012, UFPR, Curitiba (PR)
Grupo de Trabalho: Ensino e Educação em Direitos Humanos
DIVERSIDADE RELIGIOSA e EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NA CULTURA DA
ESCOLA: desafios e perspectivas
Elcio Cecchetti (UFSC e UNOCHAPECÓ)i
Lilian Blanck de Oliveira (FURB)ii
1 Palavras Iniciais
A diversidade cultural é uma das características marcantes que identificam,
caracterizam e desafiam as sociedades latino-americanas. Diferentes etnias, povos e
culturas (com)vivem cotidianamente, expressando formas de pensamento peculiares,
produções e elaborações simbólicas variadas e identidades ricas e diversificadas. Mas, essa
intensa gama cultural presente nos diferentes espaços sociais, por um lado, confere uma
riqueza impar de saberes, conhecimentos e relações, mas, por outro, registra em sua
historia inúmeros conflitos, intolerâncias e violações de todas as espécies produzidas e/ou
alimentadas por questões culturais, onde os direitos humanos não são promovidos de forma
igualitária para todos.
Dentre a multiplicidade de expressões culturais dessas sociedades, encontram-se
inúmeras crenças, movimentos e tradições religiosas, configurando uma inesgotável
diversidade religiosa. No entanto, a convivência entre diferenças religiosas mostra-se como
problemática complexa e desafiadora. Historicamente constituída por interações, imposições
e hibridismos, a variedade de culturas e crenças religiosas exige atenção e esforços
conjuntos para minimizar preconceitos, discriminações, intolerâncias e violências praticadas
contra o Outro.
O reconhecimento da diversidade cultural e religiosa é uma das garantias para a
promoção dos direitos humanos e, por isso, educar em direitos humanos é uma das
responsabilidades que a escola precisa assumir, buscando garantir o direito de livre
pensamento, consciência e religião, incluindo a liberdade de mudar ou de não seguir
qualquer crença religiosa. Assim, refletir, questionar e provocar a percepção e adoção de
outros olhares e leituras para com a diversidade religiosa na cultura da escola constitui-se
em uma das tarefas imprescindíveis na atualidade.
2 DIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS
O processo de desenvolvimento humano é múltiplo, imprevisível e diverso. Cada
sujeito se constitui como ser singular e, ao mesmo tempo, plural, no seio de uma ou de
várias culturas, por meio de tramas de relações tecidas com o Outro1, o mundo e o sagrado,
produzindo símbolos, conhecimentos, práticas e significados que dão sentido à sua vida e
ao contexto no qual está inserido.
Pela ação e interação dos sujeitos, as culturas adquirem formas diversas através do
tempo e do espaço, configurando e (re)organizando sua própria cosmovisão. Essa
diversidade se manifesta nas originalidades e diversidades que caracterizam os diferentes
grupos e sociedades, constituindo patrimônio cultural dos mais valiosos, uma vez que
servem de referência para a construção das identidades pessoais e sociais (UNESCO,
2001).
No processo de humanização, cada sujeito se apropria e participa da produção
cultural. Segundo Langon (2003), a cultura compreende não apenas os modos de se
relacionar com o mundo, com os demais integrantes do seu ou de outros grupos, mas é
fonte de constituição de sentido para cada um dos seus membros. Para Teixeira (2001, p.
183), as culturas configuram mundos simbólicos que ordenam e vinculam o visível, o
concreto, a um conjunto de significados, segundo as lógicas de cada cosmovisão.
Funcionam como um
[...] “mapa” que delimita a forma como se lê, se sente e se experiencia o
mundo e a vida, “fazendo dizer as coisas mais do que elas são”. Ao
demarcar uma certa maneira de ver, de sentir, de perceber, de
compreender, de interpretar e significar o mundo, a cultura define uma
certa maneira de ser e de agir, um modo de vida, instaurando a diversidade
cultural.
Através de sua dimensão comunicativa e criativa, as culturas desencadeiam um
processo intenso e constante de interação e intercâmbio entre sujeitos e sociedades
diferentes, tornando a diversidade cultural uma das maiores característica do gênero
humano. Para Geertz (1989), os humanos são artefatos culturais, uma vez que suas idéias,
valores, ações e emoções são produtos culturais produzidos a partir de tendências,
capacidades e disposições com as quais nascem. As culturas fornecem o vínculo e as
possibilidades entre o que os sujeitos são capazes de se tornar e o que eles realmente se
tornam.
1
O termo “Outro” (com a inicial em maiúsculo) quer representar os “Outros” e “Outras”, que para Lévinas (2005),
representa aquele que não pode ser contido, que conduz para além de todo contexto e do ser. O Outro não pode
ser reduzido a um conceito; é rosto, presença viva que interpela, convoca, desafia e constrói.
Portanto, a diversidade cultural é uma das fontes do desenvolvimento humano, pois
amplia os horizontes e sentidos. O desaparecimento dessa diversidade, para Langon (2003,
p. 79),
[...] significaria o desaparecimento da capacidade humana de dar respostas
variadas ao novo; seria a ruptura de uma das condições de possibilidade
de reprodução da vida humana. O desaparecimento de uma dessas
identidades culturais representa o empobrecimento da humanidade
enquanto fecha um dos caminhos abertos, enquanto faz perder uma das
possibilidades. A riqueza humana depende da preservação da diversidade
de suas identidades culturais e de cada identidade cultural. (Grifos do
autor).
A diversidade cultural se expressa de maneira muito intensa na América Latina, pois
seus primeiros habitantes, os povos indígenas, eram povos distintos entre si. Mais tarde, em
decorrência do processo de colonização européia, espanhóis, portugueses, alemães,
italianos, açorianos, gregos, judeus, ciganos, dentre outras etnias, por meio de processos de
intercambio e hibridações, acentuaram ainda mais a diversidade cultural das sociedades
latino-americanas. Ao mesmo tempo, o grande contingente de africanos trazidos como
escravos e o intenso fluxo migratório de povos do Oriente Médio e do Continente Asiático,
intensificaram ainda mais esse processo de diversificação cultural.
Integram o universo simbólico de cada grupo sociocultural latino-americano inúmeras
manifestações, expressões, crenças, movimentos e tradições religiosas, ora influenciando,
ora sendo influenciadas pelas culturas. O aspecto religioso é um dos elementos a compor as
“lentes” pela qual cada sociedade “vê” o mundo, contribuindo na formação de determinada
cosmo-visão, onde ritos, mitos, símbolos, festas, celebrações, textos, crenças e doutrinas,
dentre outros, estão intrinsecamente relacionados os demais campos sociais, tais com a
econômica, política, direito e educação. Esses sistemas simbólicos de abrangência social e
cultural assumem a tarefa de significar a totalidade do mundo e do humano, por meio das
atribuições de valores de sagrado e profano, puro e impuro, ético e não-ético, imanente e
transcendente constituindo-se em referenciais na organização da vida pessoal e social.
Diferentes religiosidades, crenças, movimentos, filosofias, religiões, dentre outras,
contribuem e, por vezes, determinam os modos de como o ser humano se define e se
posiciona no mundo, orientando o relacionamento com seus semelhantes, com a natureza e
o sagrado, constituindo fontes de conhecimentos e saberes que são incorporados e
transmitidos por sujeitos, possibilitando diferentes experiências religiosas. Essas diferentes
vivências integram o substrato cultural dos povos, constituindo-se em fontes de
conhecimentos a instigar, desafiar e subsidiar o cotidiano das gerações.
O conhecimento religioso, encontrado nas mais diferentes formas de religiosidades,
credos e tradições religiosas, se constitui como um dos referenciais utilizados pelos sujeitos
para (re)construir caminhos e dar respostas às diferentes situações e desafios da vida
cotidiana, contribuindo para a configuração das identidades pessoais e sociais.
Deste modo, a diversidade religiosa manifesta-se nas sociedades e na cultura da
escola através de uma multiplicidade de comportamentos, atitudes, valores, símbolos,
significados, linguagens, roupas e sinais sagrados, bem como nos referenciais e princípios
éticos utilizados pelos sujeitos para realizar suas escolhas em relação ao outro, ao mundo e
à vida.
Entretanto, face ao complexo processo histórico de formação cultural das sociedades
latino-americanas, ao longo da história, a convivência entre seres/grupos humanos diversos
tem sido marcada por conflitos, intolerâncias e violências em relação às inúmeras diferenças
de origem, nacionalidade, etnia, gênero, classe social, cultura, religião, orientação sexual,
pensamento, geração, linguagem, entre outras.
Especialmente no campo religioso, a variedade de identidades, tradições e
religiosidades nem sempre foram/são compreendidas como aspectos positivos. Por
repetidas vezes, desde o passado colonial explorador até a atualidade, a diversidade
cultural e religiosa foi utilizada como elemento de diferenciação e subalternização de
sujeitos e sociedades, submetendo muitos povos e culturas a processos de exclusão e
desigualdade.
Este
é
um
problema
extremamente
complexo
porque
tal
fato
costumeiramente não carrega motivações exclusivamente religiosas, mas se aglutinam
razões de ordem econômica, social e política.
No campo social, expressões, movimentos e tradições religiosas são movidos por
interesses particulares ou de grupos específicos, os quais detêm o poder de desenvolver e
instaurar processos de libertação e/ou opressão; autonomia e/ou dependência; participação
e/ou alienação. O religioso, assim como a linguagem, pode endossar, subverter os sentidos
e alienar os sujeitos. Aspectos do mundo religioso, ao serem submetidos aos interesses de
grupos particulares, podem produzir sentidos e significados que legitimam preconceitos,
discriminações e violências de alguns sobre Outros.
Para Martini (1995, p. 35), o dogmatismo religioso, consiste em fazer com que
“indivíduos e grupos se projetem numa ilusória infinitude ao pretenderem realizar em si
próprios a totalidade”. Esta postura impulsiona o surgimento da exclusão e do preconceito,
grandes responsáveis pelos conflitos religiosos, que frequentemente estampam manchetes
dos meios de comunicação em vários continentes, dentre eles na América-Latina.
Diante dessa problemática, é imprescindível assegurar a liberdade de culto e
estabelecer que nenhum sujeito pode ser descriminado por motivo de qualquer natureza.
Preserva-se, assim, o direito subjetivo de consciência, tanto para professar quanto para não
professar credo algum. A diversidade religiosa deve ser reconhecida, não como expressão
da limitação humana ou fruto de uma realidade conjuntural passageira, mas como riqueza e
valor:
A diferença deve suscitar não o temor, mas a alegria, pois desvela caminhos
e horizontes inusitados para a afirmação e crescimento da identidade. A
abertura ao pluralismo constitui um imperativo humano e religioso. [...]
Reconhecer o pluralismo religioso de princípio, e não apenas de fato,
significa descobrir significado positivo das diversas tradições religiosas [...]
(TEIXEIRA, 2002, p. 164).
Considerando que a promoção da dignidade humana perpassa, entre outros pontos,
pelo respeito e reconhecimento das diferentes formas de religiosidades, tradições e/ou
movimentos religiosos, bem como, daqueles que não seguem forma alguma de religião ou
crença religiosa, é primordial a construção de processos educativos que disponibilizem o
conhecimento, respeito e valorização da diversidade cultural religiosa, particularmente na
cultura da escola.
3 DIVERSIDADE RELIGIOSA NA CULTURA DA ESCOLA
Enquanto seres socioculturais, os sujeitos se singularizam pela trama de relações,
através das quais elaboram/constroem conhecimentos, símbolos e significados, bem como
se apropriam e produzem elementos de auto-identificação e pertencimento. A escola, lugar
de trânsito, encontros e desencontros de e entre culturas, constitui-se, portanto, em um
espaço de diversidade.
Cotidianamente, meninos e meninas, homens e mulheres, cada qual com suas
práticas, vivências e conhecimentos provenientes de contextos socioculturais distintos portadores de diferentes identidades, crenças, sonhos e projetos - constroem e são
construídos pela cultura da escola.
A(s) identidade(s) de cada escola é constituída e organizada sob diferentes lógicas,
uma vez que os sujeitos interagem por redes de relações, conflitos e negociações, gerando
diferentes movimentos no seu interior, tornando-a heterogênea e, ao mesmo tempo,
singular.
Neste sentido, pode-se afirmar em consonância com Sousa e Cardoso, que cada
escola tem uma cultura(s) própria(s), denominada de cultura da escola, resultado da
combinação de quatro dimensões:
a)
Dimensão da arquitetura escolar: o espaço físico e o modo de sua ocupação não
são neutros. Desde o formato da construção predial até a alocação dos espaços, há uma
intencionalidade que acaba por interferir na circulação, funções, condições de uso e
permanência em cada espaço. A arquitetura da escola expressa uma determinada
concepção educativa, no qual os sujeitos atribuem sentidos e significados, conferindo uma
identidade particular ao estabelecimento escolar;
b)
Dimensão do contexto: constituída pela conjuntura histórica, geográfica, social e
cultural na qual a escola está situada, uma vez que sujeitos socioculturais são constituídos,
em parte, pela cultura da comunidade/grupo ao qual pertencem;
c)
Dimensão dos sujeitos: consiste na rede complexa das relações tecidas
cotidianamente por sujeitos alocados em diferentes contextos no interior da escola. Essas
relações se efetivam por alianças, conflitos, transgressões, acordos, apropriações,
resistências, experiências e confrontos, que acabam por tonalizar, criar e configurar
cotidianamente a cultura de cada escola;
d)
Dimensão da cultura escolar: designa um conjunto de saberes cognitivos e
simbólicos que, selecionados, organizados e rotinizados, constituem habitualmente objeto
de transmissão deliberada em todas as escolas, por meio de currículos e documentos
oficiais. Esses elementos refletem os interesses de grupos socialmente hegemônicos da
sociedade, que se manifestam por um conjunto de disposições, normas e regras, que
tendem a unificar e (con)formar a ação dos sujeitos.
Para Lobrot (1992) a cultura escolar é um produto provisório de uma longa cadeia de
jogos de poder ideológicos, organizativos e sociais, resultado de “desvios” que impuseram
finalidades utilitárias à escola. O “desvio da escola” ocorre quando grupos dirigentes
decidem que a escola não tem por objetivo o pleno desenvolvimento dos sujeitos, mas sim
outras funções de natureza transitiva e utilitária, que podem variar segundo os interesses
dos grupos hegemônicos em cada época.
Analisando a cultura escolar presente na maior parte das escolas do Ocidente,
Lobrot (idem) identifica os principais “desvios” impostos à escola em três momentos distintos
na história: o primeiro teve início nas primeiras décadas da Idade Média, perdurando até o
fim no século XIV, período em que se atribuiu à escola a finalidade exclusiva de dar a
conhecer a doutrina e os dogmas cristãos católicos; o segundo estendeu-se do século XIV
ao XVIII, quando a escola assumiu a responsabilidade pela socialização e pelo ensino dos
valores morais exaltados pela aliança entre burguesia e protestantismo (civilidade, decência,
moderação, honestidade, trabalho, adaptação social, conformidade); o terceiro momento,
iniciado no século XIX se caracteriza pela adoção dos pressupostos do racionalismo
científico moderno, privilegiando técnicas e conteúdos voltados para o mundo do trabalho
capitalista.
Para Lobrot (idem), durante todo o século XX, os sistemas escolares não só
favoreceram a formação de grupos dominantes e dominados, mas converteram-se em
produtores de desigualdades e diferenças ao assimilarem educandos de culturas e
contextos
socioculturais
distintos,
sem
modificar-se
para
levar
em
conta
suas
singularidades. Os educandos foram/são expostos a um tipo de tratamento padronizado e
universalizante, de forma a apenas se diferenciar em função de seu trabalho ou
rendimentos/aproveitamento escolar (meritocracia).
A cultura escolar, portanto, seleciona traços identitários potencialmente desejáveis e
a partir desta definição premia alguns e silencia/ignora outros. Uma grande parte do tempo
escolar é empregada em estabelecer rotinas, manter a ordem e o controle, modelar não só
as dimensões cognitivas, mas também os comportamentos, atitudes e relações com seu(s)
corpo(s), pares e entornos (CECCHETTI, 2008).
Na atualidade, a cultura escolar ainda vem desempenhando a função de (con)formar
os sujeitos aos padrões de racionalização e burocratização de uma sociedade urbanoindustrial, transmitindo/legitimando uma única linguagem (a científica) e único padrão
identitário/cultural (branco – masculino – cristão - urbano), a partir do qual seleciona,
constitui, classifica e hierarquiza o escolarizável e o escolarizado, desconsiderando e
negando a diversidade cultural. Em suma, a escola pública não foi configurada para levar
em conta a diversidade cultural e religiosa, mas para manter as relações de uma cultura
universalizante e dominadora.
No entanto, os imperativos da cultura escolar não se efetivam completamente na
cultura da escola. Existem contradições e resistências. Os sujeitos “filtram” as
determinações, permitindo certa autonomia e fluidez. Isso faz da escola um território
marcado pelos confrontos de interesses, pois, de um lado, como estabelecimento oficial do
sistema educacional, precisa efetivar o currículo oficial e, para isso, precisa hierarquizar
espaços, dividir tempos, atribuir funções, separar os sujeitos por níveis, legitimar um tipo de
saber, definir relações sociais e forjar identidades de acordo com os interesses do sistema.
Mas, por outro, os sujeitos que nela estudam ou trabalham, interagem entre si,
transformando o espaço escolar em um mundo próprio: com ritmos e ritos, linguagens e
imaginários, modos de regulação e de transgressão (CECCHETTI, 2008).
Neste “jogo”, diferentes relações, vivências e significados do mundo religioso estão
em pauta. Isso porque a diversidade cultural manifesta-se também no aspecto religioso na
cultura da escola, pois são elementos identitários que configuram os sujeitos e influenciam
suas atitudes, valores e referenciais utilizados nas diferentes situações e desafios
cotidianos. Entretanto, a diversidade religiosa, não raro, aparece como um fato conflituoso
na cultura da escola, justamente por existirem práticas e relações permeadas por tentativas
de invisibilização, silenciamentos e preconceitos relacionados às diferentes crenças
religiosas e não-religiosas.
Recentes pesquisas apontam que o currículo oficial, legitimado pela cultura escolar,
parece estar longe de acolher a diversidade cultural e religiosa, pois ambos são resultados
de uma seleção de elementos simbólicos dos grupos/culturas hegemônicos, onde certos
componentes são mais valorizados, enquanto que outros são ocultos, ignorados e
exotizados. Cecchetti (2008) identificou, em uma investigação da cultura de uma escola
pública de Florianópolis/SC, a existência de preconceitos e discriminações relacionados a
algumas identidades e expressões religiosas. Apontou que alguns ritos e ritmos da escola
colaboram para a manutenção dos rótulos e preconceitos perante algumas crenças
religiosas e que o calendário escolar restringe-se a comemorar datas e festas religiosas
estritamente vinculadas ao Cristianismo. Registrou, ainda, a existência de brincadeiras,
apelidos e estereótipos que veiculam discriminações, e relações de poder que produzem
exclusões e desigualdades. As identidades que não correspondem ao padrão estabelecido
são representadas como inferiores, desviantes, anormais ou exóticas.
Corrobora para isso a adoção de um currículo oficial marcado por ausências de
estudos e discussões sobre a diversidade religiosa de modo científico e respeitoso, o que
contribui para a manutenção da dominação cultural de algumas identidades sobre outras.
Muitas vezes, a problemática é abordada por discussões superficiais e/ou pejorativas e,
geralmente, questões ligadas ao termo religioso, ou são menosprezados em relação ao
conjunto dos demais conhecimentos transmitidos/produzidos pelas escolas, ou são
analisados a partir de uma perspectiva monocultural e confessional. Isso demonstra a
necessidade de desconstruir e desnaturalizar estereótipos, preconceitos e silenciamentos
presentes na cultura da escola, pois a adoção de uma única perspectiva dá margem ao
entendimento das diferenças como desvio, anormalidade, deficiência e inferioridade.
O não reconhecimento da diversidade religiosa e a existência do preconceito
religioso na cultura da escola interferem, e muito, no desempenho escolar dos educandos,
refletindo no seu desempenho social fora dos muros da escola. Isso porque imagens, autoimagens e estereótipos negativos influenciam na produção das identidades de cada um, de
forma positiva ou negativa (DAYRELL, 2001).
Esse fato exige atenção e esforços conjuntos no sentido de erradicar conflitos e
relações de poder geradas por grupos hegemônicos, que buscam produzir identidades e
diferenças na intenção de manter privilégios, por meio de processos de normalização do
outro e anulação das diferenças.
Neste sentido, é de fundamental importância que a diversidade religiosa seja tratada
na cultura da escola com propriedade e conhecimento. Mas, não se trata de acrescentar
meramente alguns conteúdos, ou seja, incluir algumas perspectivas visando minimizar
situações delicadas percebidas no cotidiano (SACRISTÁN, 1995). Trata-se sim, do
desenvolvimento de processos educativos que objetivem a construção de conhecimentos e
atitudes que reconheçam e valorizem as diferentes expressões e identidades religiosas. Ou
seja: o desenvolvimento de práticas pedagógicas subsidiadas pelo conhecimento e pela
sensibilidade diante qualquer discriminação religiosa no trato cotidiano, pelo respeito à
identidade na alteridade dos diferentes, pela admiração percebida na delicadeza do
encontro com as diferentes expressões religiosas, pela possibilidade da descoberta de
afinidades entre os diferentes, pela conscientização dos sujeitos se flagrarem também como
diferentes num universo de diferentes (OLIVEIRA, 2006).
Incorporar, na cultura da escola, a temática da diversidade cultural e religiosa,
significa muito mais do que um elogio às diferenças. Representa não somente fazer uma
reflexão mais densa sobre as particularidades das culturas/grupos sociais, mas, alterar
relações de poder, redefinir escolhas, tomar novos rumos (GOMES, 2003). Reconhecer a
diversidade de culturas, identidades e religiosidades, exige sensibilidade diante de qualquer
discriminação no trato cotidiano, evitando atitudes e preconceitos a determinados grupos
sociais, culturais, étnicos ou religiosos.
4 DIVERSIDADE RELIGIOSA E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
A educação é apontada como uma das formas basilares a inibir barbáries como a de
Auschwitz, Sete Missões, Bósnia, Ruanda, Iraque, Congo, Palestina, entre outras, e a
possibilitar a assunção de seres humanos construtores e interventores históricos, capazes
de promover mais vida num constante processo de libertação.
As temáticas dos direitos humanos e da diversidade cultural têm interpelado e
desafiado sujeitos, instituições, programas e projetos educacionais em seus discursos e
práticas relacionados às diferenças. Por isso, diferentes vozes tem se expressado por todo o
planeta em defesa de uma educação em e para os direitos humanos, que encaminhe
vivências mais fraternas, solidárias e humanas, tanto na esfera mais ampla, a cultural,
quanto no aspecto mais estrito, o religioso. A própria Declaração Universal dos Direitos
Humanos (ONU, 1948), proclamada em 1948, reservou um dos seus artigos para combater
a intolerância religiosa:
Artigo XVIII: Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou
crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino,
pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em
público ou em particular.
Mas tarde, em 1981, a Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU, 1981), ao
perceber a continuidade do desprezo e a violação dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais, em particular, do direito a liberdade de pensamento, consciência e religião,
proclamou a Declaração para Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e
Discriminação com Base em Religião ou Crença. Nesta, a Assembléia da ONU afirmou ser
essencial a compreensão, reconhecimento e respeito da diversidade religiosa, bem como
responsabilizou os seguidores das diferentes crenças, filosofias e doutrinas religiosas e nãoreligiosas a contribuírem na consecução da paz mundial, justiça social e amizade entre os
povos:
Artigo 2º
§1. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou
convicções por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou
particulares.
§2. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por "intolerância e
discriminação baseadas na religião ou nas convicções" toda a distinção,
exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou nas convicções e
cujo fim ou efeito seja a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o
exercício em igualdade dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais.
Artigo 3º
A discriminação entre os seres humanos por motivos de religião ou de
convicções constitui uma ofensa à dignidade humana e uma negação dos
princípios da Carta das Nações Unidas, e deve ser condenada como uma
violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados
na Declaração Universal de Direitos Humanos e enunciados
detalhadamente nos Pactos internacionais de direitos humanos, e como um
obstáculo para as relações amistosas e pacíficas entre as nações.
[...]
Artigo 5°
[...]
§3. A criança estará protegida de qualquer forma de discriminação por
motivos de religião ou convicções. Ela será educada em um espírito de
compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade
universal, respeito à liberdade de religião ou de convicções dos demais e
em plena consciência de que sua energia e seus talentos devem dedicarse ao serviço da humanidade.
Uma educação em e para os direitos humanos requer a construção e mediação de
saberes e conhecimentos que contemplem, respeitem e integre as diversidades, entre elas a
diversidade cultural religiosa. O direito à diferença se constitui em um direito inalienável do
ser humano. Formar com e para o respeito, acolhida e interação com as diferenças
pressupõe aportes e práticas formadoras, que se pautem essencialmente por e em
exercícios de alteridade.
Admitir vida em plenitude tal como estabelecida no Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos; no Pacto Internacional em Direitos Econômicos Sociais e Culturais
(PIDESC); na Constituição da República Federativa Brasileira de 1988; na Declaração
Universal dos Direitos do Humanos; e na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural
(DUDC) pressupõe a observação e prática de ações que respeitem os direitos do ser
humano,
concebido
como
ser
social
e
histórico
em
constante
crescimento
e
desenvolvimento; ser de direitos à formas de vida que assegurem integralmente suas
necessidades individuais e coletivas (REIS e OLIVEIRA, 2011).
Segundo o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) (BRASIL,
2007) a escola é um espaço social privilegiado da ação pedagógica e da prática/vivência
dos direitos humanos. É lugar de estruturação de concepções de mundo e de consciência
social, circulação e consolidação de valores, promoção da diversidade cultural e de
formação para a cidadania. É espaço de reconhecimento da pluralidade e alteridade, da
criatividade, do debate de idéias e do respeito, promoção e valorização da diversidade.
Nesta perspectiva, a escola tem a função de desenvolver uma cultura de direitos
humanos, exercitada cotidianamente através do entendimento mútuo, respeito e
responsabilidade entre os diferentes sujeitos. Em outras palavras,
[...] a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais
da educação básica e permear o currículo, a formação inicial e continuada
dos profissionais da educação, o projeto político pedagógico da escola, os
materiais didático-pedagógicos, o modelo de gestão e a avaliação (PNEDH,
2006, p. 24).
Isso porque uma educação em direitos humanos pode contribuir para que cada
sujeito se conscientize dos seus direitos, da forma mais adequada de reivindicá-los e
assuma, em dignidade e compromisso, seus deveres. Essa consciência pressupõe e requer
uma construção e aplicação de conhecimentos, que contemplem, respeitem e reconheçam
as diversidades (THOMAZ, 1995).
Esse processo pressupõe a aceitação de outras formas de ser, pensar, fazer e viver.
Essa mudança de paradigma implica em a) romper com conceitos cristalizados e práticas
estigmatizadoras; b) (re)conhecer a existência de diversas racionalidades; c) exercitar o
diálogos e promover encontros e relações positivas com o Outro; d) execrar o analfabetismo
epistemológico e monocultural que impede o (re)conhecimento da diversidade religiosa; e)
sensibilizar educadores e educandos diante de qualquer discriminação étnico-cultural ou
religiosa no contexto familiar, social e escolar.
A prática da educação em direitos humanos requer a mudança de processos
educativos pautados no monoculturalismo universalizante e o desenvolvimento de
processos educacionais que busquem atender a complexidade das culturas e das relações
humanas, integrando a diversidade de identidades culturais, em exercícios de pesquisa e
práticas
pedagógicas
críticas
e
criativas.
Assim,
é
necessário
extirpar
lógicas,
epistemologias e valores que legitimam historicamente atitudes e práticas de exclusões e
desigualdades.
Este processo pressupõe o uso de outro enfoque epistemológico e metodológico, de
perspectiva intercultural, que possibilite conceder voz e vez a todos os marginalizados e/ou
excluídos por padrões e exigências de culturas hegemônicas, impulsionando um profundo
redimensionamento das relações de poder.
Propiciar tempos, espaços e lugares para a construção de relações respeitosas e
acolhedoras entre diferentes culturas, possibilitando que cada sujeito/grupo se desenvolva
sem sofrer com preconceitos, silenciamentos e discriminações, constituem um dos grandes
desafios à cultura das escolas brasileiras e latino-americanas. Um dos meios para
superação reside na constituição de formas de (con)vivência que reconheçam as alteridades
e assegurem o respeito à história, identidade, memória e valores de cada grupo cultural, por
meio do diálogo, da troca de experiências e da promoção dos direitos humanos.
Neste contexto, uma educação em e para os direitos humanos está comprometida com
a promoção do direito à diversidade religiosa, problematizando e desnaturalizando culturas,
epistemologias, conhecimentos, currículos, conteúdos, ritos, ritmos e processos que
colaboram para a manutenção de preconceitos e discriminações sobre crenças,
movimentos, filosofias e credos religiosos e não-religiosos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reconhecer a diversidade religiosa na cultura da escola, através de educação em e
para os direitos humanos, requer o desenvolvimento de compreensões contextualizadas e
diferenciadas de ser humano, sociedade, cultura, escola e aprendizagem, integrando a
diversidade de lógicas, conceitos e sujeitos, em exercícios de pesquisa e práticas
pedagógicas críticas e criativas, a fim de produzir rupturas e fragilizar paradigmas
padronizadores e homogeneizadores ainda presentes na educação (CECCHETTI e
OLIVEIRA, 2009).
Ouvir, acolher, valorizar, respeitar e conviver percebendo as características,
conhecimentos e construções culturais dos diferentes sujeitos como uma riqueza a ampliar e
(re)construir horizontes, incentivando trocas e parcerias, práticas e aprendizagens
recíprocas, são alguns dos desafios que se apresentam a educação na contemporaneidade.
Uma educação comprometida com a diversidade cultural e religiosa requer um
conjunto de reflexões e práticas que abordem as diferenças dentro e além dos seus espaços
e lugares. Isso exige outra forma de se relacionar e de representar o “nós” e os “Outros”,
questionando as hierarquias e os padrões culturais que impedem não só interações
enriquecedoras, mas o conhecimento dos Outros e de nós mesmos. É necessária uma
mudança de perspectiva, para que se considere o diferente em sua alteridade, abrindo
horizontes de predisposição à escuta do Outro, modificando e ampliando pontos de vista,
condição imprescindível para a convivência pacífica.
É imprescindível uma educação em e para os direitos humanos que contribua para o
exercício do diálogo, para a aceitação, colaboração mútua e reconhecimento das diferenças
culturais e religiosas, não mais vistas como obstáculos, mas, sim, como condição histórica
indispensável para uma convivência solidária e para a efetivação dos direitos humanos na
vida cotidiana.
O estudo, pesquisa e diálogo para o (re)conhecimento da diversidade cultural
religiosa se apresenta como um dos elementos para a formação integral do ser humano no
espaço educação escolar, juntamente com os demais componentes curriculares. Assume o
compromisso de refletir, discutir, analisar e organizar critérios que encaminhem vivências
fundamentadas na ética e nos direitos humanos, que se percebem e conjugam na e em
alteridade com liberdade, justiça, solidariedade e defesa do direito à diferença - referenciais
para uma educação diferenciada (OLIVEIRA, 2003).
O reconhecimento do Outro, do diferente em sua alteridade, instaura a necessidade
de outras relações na cultura da escola, que (re)conheçam e incentivem sociabilidades,
conhecimentos e saberes de todos os sujeitos e culturas. A escola deve ser o espaço/lugar
de encontro com o Outro, da convivência, da alteridade, do diálogo - elementos
desconsiderados pela cultura escolar atual e pelos interesses mercadológicos que a
produzem. São imprescindíveis pesquisas, conversas, escutas, partilhas, que acolham e
valorizem identidades pessoais e sociais, criando outras e melhores formas de
aprendizagem para e com os educadores e seus educandos.
Estes procedimentos permitem que os educandos, aos poucos, ampliem seus
conhecimentos, reflitam sobre as diversas experiências religiosas a sua volta, formulem
respostas com base de argumentação, analisem o papel dos movimentos e tradições
religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e rejeitem toda e qualquer
forma de preconceito e discriminação (OLIVEIRA e CECCETTI, 2010).
Quebrar o ritmo posto na busca da construção de uma cultura dos direitos humanos
requer a conscientização da relevância da presença do Outro no exercício educativo. Este
Outro é aquele que pode diferir na relação face-a-face, ou seja, aquele que anda diferente,
fala diferente, vê o mundo com outros olhos, tem cor da pele diferente, crê de modo
diferente, deseja e se identifica de outro modo, pertence à outra cultura, geração ou grupo
social (OLIVEIRA et al, 2007).
O despertar desta compreensão se apresenta com uma das mais importantes
contribuições da escola na atualidade na participação coletiva pela busca do término de
conflitos religiosos, violações dos direitos humanos e desrespeito à liberdade de
pensamento, consciência, religião ou de qualquer convicção – construção de uma cultura de
paz - eliminação das ideologias, colonialismos e discriminações.
No entanto, reconhecer as diferenças, respeitá-las, aceitá-las e inseri-las na cultura
da escola não é algo fácil e romântico. Nem sempre o diferente nos encanta. Muitas vezes
ele nos assusta, desafia, faz olhar para a nossa própria história, nos leva a revisar nossas
ações, opções, atitudes e valores. “Reconhecer as diferenças implica romper com
preconceitos, superar as velhas opiniões formadas sem reflexão, sem o menor contato com
a realidade do outro” (GOMES, 2003, p. 73). Assim, buscar efetivar uma educação em
direitos humanos requer, muitas vezes, pagar um preço alto pela coerência entre o que se
faz, o que se diz, o que se escreve. Ousemos/continuemos a fazê-lo!?
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Acesso em 15 jan. 2012.
i
Doutorando e mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em
Fundamentos e Metodologia do Ensino Religioso em Ciências da Religião e graduado em Ciências da ReligiãoLicenciatura em Ensino Religioso pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Articulador de Programas
de Formação Continuada e responsável pelo Ensino Religioso na Secretaria de Estado da Educação de Santa
Catarina (SED/SC). Professor de Educação Superior na Universidade Regional de Chapecó (UNOCHAPECÓ).
Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB) e Didática e Formação
Docente (FAED/UDESC). Tem experiência na área de educação, com ênfase em formação continuada de
educadores, diversidade cultural religiosa e ensino religioso. E-mail: [email protected].
ii
Doutora em Teologia, área de Educação e Religião pela Escola Superior de Teologia (EST/RS). Graduada e
especialista em Pedagogia nas Séries Iniciais e Educação Pré-Escolar pela Fundação Educacional Regional
Jaraguaense (FERJ/SC). Professora e pesquisadora no Programa de Mestrado e Doutorado em
Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau (FURB/SC). Líder do Grupo de Pesquisa
Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Tem experiência na área de culturas, religião e educação.
Atua nos temas: direitos humanos e diversidades histórico-culturais; culturas, ciência e desenvolvimento;
currículo e diferença; formação inicial e continuada de professores. E-mail: [email protected].
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Lilian Blanck Oliveira