ENTRE LUZES E CORES: UMA REFLEXÃO SOBRE O SENTIDO DA IMAGEM NA IMAGINÁRIA BARROCA BRASILEIRA Maria de Fatima Costa Garcia de Mattos Universidade de Sao Paulo. Brasil Combinar, (re)(des)combinar, ordenar, (re)(des)ordenar, propor, desvelar. A complexidade na arte apresenta-se como um grande cenário de ocorrências, onde podemos estabelecer as mais diversas relações. Nos seus vários níveis de realidade encontramos o viés de uma totalidade que se apresenta por ser construída, para que possamos avançar além dos aspectos materiais, culturais, psicológicos e sociais, para enfim, a nossa identidade. Perceber a qualidade da obra de arte, presente nos seus conteúdos expressivos, traduzidos em imagens, ícones ou símbolos, que fazendo a identidade coletiva reconhecem a alteridade legitimando as diferenças, permite-nos desvelar a realidade do artista, seu universo de sonhos, emoções e fantasias, que também constituem a subjetividade humana. Este poder atuante da imagem, ao longo da história, leva-nos a algumas reflexões. Que ela tenha um poder atenuante ou de êxtase, mágico ou excêntrico, seja ela fixa, animada, colorida ou preto e branco, em tecido, madeira ou pedra, fato é, que ela provoca em nós, observadores, uma reação que nos faz agir e reagir e muitas vezes, refletir. Não só em relação à História da Arte, porém mais precisamente em nível de representação da imagem na sua mais ampla acepção, “coisas” que representam outras “coisas”, somos levados a entender/conceber através de uma nova leitura, este poder localizado, que certamente se modifica com o tempo. O olhar não é o mesmo, dilui-se no inconsciente coletivo de acordo com a época em que está inscrita a representação da imagem, seja ela pessoal ou metafórica. E aqui ela não se encerra, porque ela não é finita, mas é um meio quando operacionaliza de forma consciente ou inconsciente a mágica desta imagem que, na verdade, não reside nela mas no olhar de quem a vê . Este poder de restauração de sentimento através da imagem, seja ele de fé ou de poder político, é confiado ao imaginário humano enquanto processo mental e não de magia. Seria, talvez, quando a magia se afasta realmente, e a representação mais forte e o apelo emocional que ela carrega, violentam o olhar humano, modificando o sentimento. Questão desafiadora e, muitas vezes ambígua na sua abordagem, a imagem permeia o estudo da História da Arte, das religiões, como também da história social, porque não nos é possível reunir uma quantidade de formas expressivas de uma determinada época sem a devida compreensão de seu papel e da sua representação no momento em que a sua interseção ideológica e artística, não passam de um cruzamento de via rápida. Para o homem do Ocidente a imagem é o seu melhor produto. Ela cumpre o papel de garantia, de sacralização de um personagem e seu tempo, enquanto media o inconsciente coletivo de uma comunidade com o cosmos, como sociedades que se interagem, a de pessoas visíveis que se contrapõem e/ou se completam com as forças invisíveis. 479 Figura 1: Nossa Senhora das Dores (autor desconhecido). Madeira dourada e policromada. Catedral Basílica. Salvador. A contemporaneidade da arte escapa ao tempo e ao espaço, pois a sua vitalidade está no seu caráter e não na sua idade. É epocal, porque o nosso limite (e dele faz parte o inconsciente religioso) não tem idade, porque a própria morte não ultrapassa esse limite. Só assim, entendemos a perenidade das imagens sacras, bem como daquelas que simbolizam ou eternizam as figuras de poder, uma vez que causam emoção. A imagem é um poder simbólico que cria vínculos entre pessoas e grupos sociais, fortalecendo a memória histórica e criando identidade. Desta forma entendida, explica o sentimento coletivo e a necessidade de sua preservação, do contrário, seriam meros documentos que o tempo se incumbiria de fazer perder o seu valor. É neste sentido, como o homem Barroco entendeu o mundo - como representação e que este estudo também o faz, como "cenário de representação" onde nele se insere a Imaginária Barroca, protagonista da explosão da forma interior, que extrapolou os limites da relação obra/autor, para atingir o seu clímax na composição da obra de arte. Nas suas formas clássicas, a curva, a elipse, a instabilidade, a "dobra" (Deleuze,2000), o "nó e o labirinto" o "limite e o excesso" (Calabrese, 1987) encontram-se num jogo lúdico onde a própria cena é feita de liberdade e excessos extasiados que protagonizam a existência humana, na imaginária Barroca. A veste nos é oferecida como proposta de reflexão. O constante esvoaçamento do tecido reflete-se na busca da renovação do espírito humano, do homem em conflito, que se expõe e se abre para teatro do mundo. No seu desdobrar, de que o panejamento barroco é mestre, inebria o olhar de quem vê e sente o envolvimento que isso traduz. É essa "dobra que vai ao infinito (...), a dobra em toda a sua compreensão e extensão: dobra conforme dobra" (Deleuze:2000), que se abre através dos sentidos, que vaza pelos lados da obra, que não se enquadra porque não tem medida, que extrapola os limites, que não se limita porque não é finita e porque infinito, é o seu limite. Não se trata apenas da vestimenta mas, as dobras parecem deixar de lado os seus suportes, seja ele o tecido, a pedra ou o papel, quando os seus limites ( se 480 é que existem! ) transbordam para o exterior, deixando para nós, meros espectadores visuais, o eterno diálogo entre o ver e olhar. Infinito como a espiral que na sinuosidade do contorno, que a madeira esculpida se retorce e faz, dá vida à matéria inerte, eleva-se rasgando o infinito do tempo e dos "mundos", que se redobra e desdobra. Este labirinto humano do ser, que o ornamento excessivo do Barroco preenche, abrindo vãos e cobrindo feridas que o retorcer da imagem denota. Santana Ensinando, de Antonio Francisco Lisboa, Aleijadinho. Madeira policromada e dourada. Originária da Igreja de Nossa Senhora do Pilar. Museu do Ouro. Sabará. Santa Madalena, atribuída a Francisco Xavier de Brito Madeira policromada medindo, 61x44x34 Museu de Arte Sacra. São Paulo A plasticidade da imagem identifica-se, então, na sua liberdade. No que tangencia às dobras enquanto pertinencia à matéria, esta se torna matéria de expressão. Esta "dobra de matéria ou textura", esta maleabilidade da estrutura, que independe do suporte é também a mesma do sentimento, que se depara com a instabilidade constante do movimento, que é a própria instabilidade do ser. Revolver os "mundos" internos, é buscar no infinito deste ser a razão da vida humana. Se a imagem para o homem moderno é o seu melhor produto, a velocidade da imagem e a perecibilidade do omento são balizadores do tempo em que esta imagem se renova. Assim é o movimento da espiral. Aquela "espiral do tempo" que prenunciando o movimento, sentido, sentimento e razão, podemos reproduzi-la no entendimento da coluna torça ou salomônica, que ao se retorcer, continua formando o movimento que ascende e busca sempre mais, numa profundidade constante que contamina o próprio movimento; é esta impressão de vir-a-ser, de inquietude, como se o Barroco sempre tivesse tido medo de proferir a última palavra, diz Wolfflin (1989). 481 Coluna Salomônica. Catedral Basílica. Salvador.. Bibliografía CALABRESI, Omar. A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1987. DELEUSE, Gilles. A Dobra. Leibnitz e o Barroco. Papirus, 2000. DEBRAY, Régis. Vida e Morte da Imagem. Uma História do olhar no Ocidente.Petrópolis:Vozes,1994. MARCONDES, Neide. Bernini. O êxtase religioso em dobras e catástrofes. São Paulo: Arte& Ciência, 2000. VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 1996. WOLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais de História da Arte . São Paulo: Martins Fontes, 1989. 482