Mesmo quando ela não está, está Paulo Reis
Ainda que a arte abstrata tenha renunciado à representação, nunca será demais realçar o fato de que ela leva
adiante as composições livres e informais praticadas em pinturas da natureza pelos grandes artistas do fim do
século XIX. Meyer Schapiro
A redefinição do espaço da pintura contemporânea perpetrada por Daniel Senise nestes
seus anos de atuação, nos faz refletir sobre o significado real de ser um artista na pósmodernidade. Vendo suas obras e comparando com outras de artistas de sua geração,
fica a pergunta: será que é preciso apenas para a arte contemporânea viver de boutades,
alegorias ou sorrisos de escárnio mediante as circunstâncias em que as obras são
apresentadas? Daniel Senise mesmo sendo o artista maduro, dono de uma autonomia
estética ímpar, se permite a experimentar e a elaborar jogos visuais que somente
uma pessoa com um mÌnimo de conhecimento da história da arte, para perceber suas
referências. Enquanto alguns artistas preferem a periferia da citação e, com isso, esboçam
apenas um jogo ilusório, Senise mergulha em sua pesquisa, extraindo mais que um jogo
visual, uma epifania.
A característica inerente essencial ao ato estético em Daniel Senise é o de poder
compartilhar da sua leitura, de suas matizes com as pessoas. Ou seja, através de seu
vocabulário compartilhado das idéias e imagens já existentes, pois tudo que está ou não
está na tela, está em algum lugar da arte, é o elo entre o ponto de vista do artista e o ponto
de vista do público. Trata-se de uma mão dupla de associações e necessidades. O que Paulo
Herkenhoff chama atenção como símbolos de um excesso de conhecimento da história da
arte, “resolvidos numa memória pós-metafísica , pois o fundo vazio, antes do símbolo,
jaz como o deserto da abstração da história da arte”. Para o crítico a iconologia de Daniel
Senise, que pode nascer de um fragmento de um quadro, é vestígio da história da arte,
“é um símbolo readymade”.
Se no passado Daniel Senise foi capaz de apoderar de fragmentos de imagens de Rafael,
Fra Angelico, de Hobbema, de Goya, de Wistler ou de Caspar David Friedrich, para
construir uma representação além da mera referência, dando autonomia à sua criação,
mesmo hoje esse atributo lhe é especial. Dotado de forte imaginação e destreza técnica,
o artista empreende muitas vezes uma pintura repleta de referências impossíveis de se
reconhecer sem antes conhecer. A imagética perpetrada por Senise não é simbolista, nem
tão pouco icônica, é, antes de tudo indicial.
O princípio lógico da arte para o artista é essencialmente o problema da imagem
cognoscível. Isto é: reúne e coordena dentro de um quadro as diferentes categorias dos
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signos que aquela arte pretende demonstrar. São imagens no sentido teórico do termo,
também icônicos, analógicos, mas, sobretudo plásticos, pois suas formas, cores e
organização espacial são uma marca sua. Daniel nos ajuda com sua arte a buscar, numa
interação do sentido da visão com o fundo da mente, decifrar no consciente o que está
sendo visto, de forma sistemática, mas também prazerosa.
Sua arte é calcada no efeito da aparição, pois a imagem é reconhecível, e da desaparição,
onde a imagem mistura-se a outras imagens, criando um efeito diferenciado da sua
gênese. Se arte pós-moderna é calcada na citação, muitas vezes tem sido muito alto o
preço pago por alguns artistas por suas experimentações visuais. Devido à atual tendência
da pós-modernidade em fazer referências e compreender as profundezas verbais de uma
obra, a arte dos anos oitenta pagou por banalizar clássicos, como fizeram Francesco
Clemente e Sandro Chia. Daí a questão: se outros fizeram melhor porque refazê-los desta
maneira? Apenas por citação? Qual a necessidade desta obra existir, então?. O problema
da referência está longe de ser novo, ela mergulha nas próprias raÌzes da tradição da
arte ocidental, pois Michelangelo, Rafael, Vermeer e outros tantos fizeram referências à
pintores de suas admirações, contudo suas obras são admiradas por elas próprias.
O artista propõe em suas pinturas mais que um estudo de caso da pintura. Para o artista
e teórico Marco Veloso a arte de Daniel Senise é a “proposição da arte como arte, da arte
como contexto para o comentário dos possÌveis contextos para a arte. O que também
o crítico Ivo Mesquita irá ressaltar como inicial em sua obra, onde as pinturas, desde o
principio, estabeleceram uma relação direta com a história da arte. Com o universo das
imagens e os seus modos de construção e percepção. Para Mesquita o trabalho de Daniel
Senise retém as lições da história, mas sem deixar de criticar a dimensão idealista da
tradição. “O legado deixado por ele é formado por imagens gastas pelo tempo, bandagens e
oxidações, superfÌcies às quais jà se infrigiu toda ordem de operação e discurso. Como em
uma paisagem calcinada. O que se vê são vestígios de coisas”.
Como nesta série de interiores, em que o artista retoma sua pintura arrancada do solo,
remontando ao começo de suas pinturas. O artista colou no chão do seu ateliê de Nova
York, no chão da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, e no chão de
um museu nos EUA, tecidos (cretone) que mais tarde foram arrancados do piso. Esses
tecidos, com toda sua carga de pigmento, pó, sujeira, passos, foram cortados em “fatias”,
mas que ainda deixavam entrever uma coloração cor de carne escura, amarronzada,
tomadas ao longo do tempo de sua exposição ao solo, da sua hibernação involuntária.
Posteriormente essas fatias foram coladas a outras telas, desta vez elaborada como um
espaço arquitetônico desejado pelo artista. Esses espaços foram “criados”, tomados de
espaços já existentes, como o Die Art Center, o Centro Galego de Arte Contemporânea,
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a Casa Lange, em Krefeld (cidade onde Beyus nasceu) e as Cavalariças do Parque Lage ou
de um corredor de acesso ao seu ateliê. Outros, Daniel tomou das pinturas de Velásquez
e Rafael. Em ambos os procedimentos, esses espaços são reais, pois uma pintura
reproduz um interior de um espaço existente retratado pelo artista. Contudo, os espaços
arquitetônicos criados para museus estão destinados a exibição da arte. Os espaços dentro
da arte são espaços de uma pintura para serem localizadas nos espaços de exposição. É
neste moto contínuo que se desenvolve o jogo indicial.
O procedimento de “pintar” sobre uma superfície para depois colar sobre outras, nos faz
lembrar os pintores da antiguidade. Antes da renascença executavam suas pinturas em
tecidos e depois colavam sobre as paredes para criar afrescos. São então, espaços pictóricos
da representação antes de serem históricos, o que para Daniel contém a história da
história da pintura. Esse jogo pode parecer perigoso e instável para alguns artistas, mas
em Daniel Senise o resultado é primoroso. O artista nos faz penetrar em outro espaço
virtual da representação. Toda a série de interiores que o artista vem desenvolvendo, seja
a representação de um espaço do museu, da escola de arte, do ateliê ou ainda de uma
obra de Saenredam, é uma prova que Daniel não se afastou do seu território do teatro da
pintura. Do teatro das sensações mutiladas, dos monumentos sombrios, ambientados
numa atmosfera de catástrofe e terror noturno, oferecendo como dispositivo retórico e
cenográfico, conforme nos alertou o crítico Wilson Coutinho, ainda no seu começo
como pintor.
Essa série de interiores é como um retorno ao seu início dos anos oitenta.
Nietzscheanamente Daniel vive retornando em suas obsessões: pintura e história da arte.
Um risco para artistas carentes de temáticas ou com medo de desviar-se do acalentado
como descoberta. Convém lembrar, no entanto, que Daniel Senise, com formação em
engenharia, esteve sempre perto de construções, interiores, colunas, frontões e que
estes elementos apareciam dispersos em sua encenação. Desde sempre a sua pintura se
interessou pela expressão do espaço fechado e fez do tema uma alegoria da cultura, uma
construção humana em oposição à pintura da natureza, mimese da criação divina.
Como artista ciente da natureza da arte e de seu papel como criador, Daniel Senise, corre
os riscos de uma aventura controlada pela experiência do exercício cotidiano, do embate
da pintura nos tempos atuais. Isso nos esclarece que a qualidade de sua obra não é porque
mantém a segurança de roteiros a priori. Como artista inquieto, elabora alternativas para
a sua pintura extraídas do seu próprio território. Fenômeno que faz de sua pintura uma
figuração abrangente, repleta de referências à arte e à história, aliando um alto padrão de
destreza artística com refinado resultado plástico. Com sua arte, Daniel Senise nos ajuda
a atravessar o mar incomum da especialização temática encontrada nos artistas de sua
geração. O que por si só, constitui uma característica notável da sua pintura.
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