III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009
art uerj
leituras contemporâneas
Arqueologia da imagem: a tradição pictórica na obra de Daniel Senise
Leidiane Carvalho
Graduanda em história da arte pela UERJ
O artista Daniel Senise conta que teve sua formação “visual” a partir de imagens impressas e
sempre as utilizou para pensar seu trabalho, mesmo sendo elas de arte ou não. Neste artigo,
trabalho sobre este recorte – sua relação com a tradição pictórica, em que se afirma numa
posição de “gerador de símbolos”, tecendo relações com os conceitos de imagem envolvidos,
aliados à presença da memória – desde as impressões de livros às impressões dos ambientes
em que trabalha.
Daniel Senise; Imagem; Tradição Pictórica.
Daniel Senise tells that grows in contact with printed images and that always use them to think
his work, even though they were art or not. This article work on this cut - its relationship with the
pictorial tradition, which states him like a “generator of symbols,” building relationships with the
concepts of image involved, coupled with the presence of memory - from books prints to printing
the environments with which it works.
Daniel Senise; Image; Pictorial Tradition.
Estar em contato direto com um artista – seu discurso e sua obra - decerto é
de grande auxílio quando se pretende analisar seu trabalho. Entender o modo como
o artista opera abre novas possibilidades de leitura de seu trabalho, portanto acredito
ser este o primeiro ponto a ser observado neste artigo. Em seguida, é preciso pensar
a problematização de questões artísticas do passado reativadas – nas ditas “imagens
de segunda geração”, citação de imagens do consciente coletivo reapropriadas e
resignificadas por um olhar contemporâneo.
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A relação de Daniel Senise com as imagens impressas é, também,
imprescindível para este trabalho. O próprio artista diz que toda sua formação foi
permeada pelo contato com impressões (de arte ou não) e que elas influenciaram
profundamente seu modo de ver o mundo e de trabalhar. Assim, a imagens
armazenadas no “banco de dados” da história não estão estáticamente disponíveis
para a apreensão, elas se transformam e ganham novos sentidos neste trânsito, são
um território onde residem as preocupações do artista. Estas relações, por fim, serão
tecidas num estudo de caso: a pintura “Reino I”, conjuga estes fatores antes citados e
os discute, apresentando algumas questões que permeiam a obra do artista.
Premissas
Daniel Senise pinta com a textura dos lugares que ocupa. Ele produz
monotipias a partir dos locais que ocupa para trabalhar. Seu atelier, sua casa, prédios
abandonados que lhe servem de “modelo”, enfim, tudo começa pela escolha deste
local. A escolha, entretanto, não se dá pela simples aparência do lugar. Antes, este
deve ter algum vínculo com o artista. Seu uso no passado, como uma escola em que
ele estudou quando muito jovem, da qual obteve uma monotipia antes que esta fosse
demolida, ou o piso da própria casa, com suas próprias marcas cotidianas.
Esta monotipia, então, se faz pela disposição de tecido no piso escolhido – o
cretone -, sobre o qual é espalhada uma grossa camada de cola PVA. Esta ação
grava na superfície do tecido a textura do chão. Mas não só isso: a superfície em si
por vezes se desprende do piso e se agrega ao tecido, uma imagem: imagem que
presentifica o ausente, imagem como morte e lembrança, imagem como aquilo que
não está lá, mas que se presentifica simbolicamente de outra maneira, porque o
ambiente gravado não está totalmente agregado ao tecido, mas, sim, nele presente
de forma parcial; e um registro de memória: registro do que era e do que estava
naquele lugar, vestígios da presença de pessoas e animais, lembranças do artista em
relação àquele ambiente, seus motivos para estar lá e para retornar.
Na obra, portanto, não existe apenas a evocação de um lugar, mas sua
presença física, de algum modo. Os vestígios se agregam e se tornam a superfície
pictórica, constituindo uma “tinta”. Utilizo o termo entre aspas porque são vários
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metros de tecido gravados por vez e cada centímetro é diferente do outro devido à
textura do chão, por isso a cor desta “tinta” nunca é uniforme. Entretanto, ela não é
o trabalho pronto. É apenas uma das cores que o artista vai utilizar-se para compor
a obra. De cada parte daquele tecido, geralmente enorme, ele extrai uma cor que
vai entrar para sua composição. Esta cor nunca se repete, porque equivale a cada
centímetro daquele assoalho acidentado e variado em tons e texturas. Existe um
fundo, um grande corte deste tecido impresso, que servirá de base e que se adere ao
suporte, o qual têm sido de madeira ou de alumínio. Sempre em grandes dimensões,
uma vez que este fundo esteja pronto, inicia-se o processo de composição, o
desenho que Daniel Senise cria a partir da disposição de partes menores do tecido,
de acordo com uma imagem previamente escolhida por ele. Uma vez que ele compõe
o desenho, a alocação destas camadas de tinta é feita por justaposição através de
etapas que o próprio artista estabelece, e que exibem o caminho cursado pelo artista
na produção da obra, ainda que materialmente pareçam estar no mesmo plano.
Composição e espacialidade
Daniel Senise, como já dito, sempre trabalhou com imagens impressas. Passa
horas vendo e revendo livros (de arte ou não) dos quais extrai idéias para seus
trabalhos. “As apropriações da história da arte são mais que citações de imagens.
O artista aborda como questões e problemas estilísticos, que sabe serem também
dimensionados numa época que constituem”1. Trabalha com uma reapropriação e
resignificação destas imagens, trazendo-as para seu tempo, buscando entender seu
sentido no passado. Sobre o significado que estas imagens recebem, o artista declara:
Preocupo-me mais com o significado original e as possibilidades de
significados nesse novo contexto que é a minha pintura. Preocupo-me
com como essa imagem vai circular no quadro, embora não queira ter o
domínio de todas as leituras, mas ter mais ou menos a noção de qual é o
território onde vai estar circulando. (...). Até hoje não tenho uma maneira
especifica de escolher as imagens. Podem vir de situações muito
diferentes, mas o que comanda é o desejo de convivência com elas.2
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Tadeu Chiarelli dirá que a escolha da imagem será o elemento de distinção
entre os artistas a partir da geração de Senise: a referência a um “banco de dados” –
um “universo de imagens produzido pela humanidade através da história, disponível
a todos pelos meios de comunicação de massa” 3 – fornece uma gama tão ampla
que a escolha será um dado de sensível importância a ser considerado na obra, é
um elemento de distinção4 de que fala Chiarelli. Digo, ainda, que o modo como esta
imagem será resignificada na obra é outro dado de distinção. Que caminhos o artista
percorre ao incorporar esta imagem em sua obra, reconhecendo que pode não ser o
primeiro nesta incursão, porque o momento dá esta permissão – de que, abandonado
o ranço modernista da necessária novidade, ele possa retrabalhar uma imagem de
segunda, terceira, quarta geração.
A tela “Reino I”, assim, funcionará neste artigo como um exemplo para alguns
pontos do pensamento pictórico do artista, tendo sido produzida quase sete anos
depois da entrevista concedida à Glória Ferreira. Esta obra conjuga as “tintas”
produzidas pelas monotipias com imagens impressas, neste caso, pertencentes ao
universo da história da arte, somando a uma opção formal do artista pelo trabalho
com a noção de perspectiva linear. Esta, se não é uma imagem reconhecível
como a de um personagem, um quadro, um evento, etc, está, por outro lado,
gravada simbolicamente em nosso imaginário como um espaço que aprendemos a
reconhecer visualmente: aquele supostamente capaz de representa nosso mundo
em sua tridimensionalidade. Então, se em Reino I, a opção por mostrar este trabalho
perspectivo se dá pela criação de um espaço que não é totalmente apreensível por
este aparato simbólico de que dispomos e, ainda assim, conseguimos identificar a
produção de espacialidade pela perspectiva, reconhecemos que o artista trabalha
com uma “imagem de segunda geração” de Chiarelli.
A perspectiva, segundo os conceitos apresentados por Omar Calabrese em
seu texto Problemi di enunciazione astratta5, está na problematização dos “atores”
da pintura figurativa, da presença do “eu-tu/ele” na pintura (o sujeito que enuncia,
o que é enunciado, o ponto de vista do observador ideal não necessariamente
correspondente ao eu-tu/ele.), em que este recurso apresenta uma estrutura
geométrica que faz coincidir a organização do espaço com uma organização
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Reino I – 2006. Acrílica
sobre colagem em
alumínio
200 x 300 cm
ótica (que é a perspectiva em si), o que manifesta um ponto de vista subjetivo. Se
considerarmos Reino I, precisamos observar de que forma se organiza este espaço
perspectivo. A perspectiva do quadro não privilegia um ponto de vista apenas.
Existem vários pontos de fuga no quadro, que convergem para seu interior e para
seu exterior. É um espaço reconhecível pela perspectiva linear, mas não exatamente
de seu modo tradicional. O momento da enunciação, neste sentido, é dado
apenas quando se observa a obra e tenta-se localizá-la espacial e temporalmente.
Sobre o uso do espaço por Daniel Senise, Dawn Ades dirá que há um “complexo
relacionamento com a representação: a ilusão do espaço tridimensional em um nãoespaço, a superfície de múltiplas camadas, a esquiva identidade do próprio projeto”.6
Nesta obra, considero que o sujeito que enuncia se forma a partir a associação do
olhar subjetivo que, não tendo um ponto de vista ideal ou fixo, precisa passear seus
olhos pela obra numa tentativa infrutífera de lhe completar o que falta, com a mão
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do artista, seu traço, mesmo sem a presença de uma pincelada, existe a escolha
do material que, para ele, é carregado de significações, evocações e presenças
fragmentadas.
Os espaços que se projetam para o interior do quadro e para o exterior dele
se fundem nesta obra. O pintor utiliza-se de recursos que chamam os olhos para o
interior da obra, pontos de fuga muito profundos, mas, ao mesmo tempo, promove
uma abertura destes pontos e os une formando junções que saltam para o espaço
do observador, fora do quadro, ao mesmo tempo. É necessário mesmo um trabalho
de tentativa de organização do olhar para compreender de que modo estes espaços
trabalham entre si. Por vezes, eles se revezam e tomam um o lugar do outro. O
espaço se fragmenta de tal modo, que não se pode reconstruir uma espacialidade
física a partir desta virtualização. Sobre o uso da perspectiva, disse Daniel Senise:
O confronto entre a afirmação quase obvia da superfície e o seu uso de
forma virtual acontece muito no meu trabalho. Quando a uso de forma
virtual, em alguns casos, utilizo até mesmo exemplos de como desenhar
perspectiva, retirados de livros didáticos. Não é uma invenção minha.
Mas o que faz o quadro funcionar é sua capacidade de se expressar
poeticamente, e não o fato de usar essas duas maneiras, a virtual e a
física.7
Ao mesmo tempo em que promove espaços que se projetam, superficialmente,
o quadro afirma-se num plano. Conforme o artista sobrepõe os tecidos para compor
suas imagens, aqueles que estavam por baixo destes são recortados para que o
mais superficial se encaixe no corte. Assim, ao observar a tela do artista de perto,
a menos que já se conheça o método de trabalho dele, não se decifra de imediato
o modo o trabalho se monta. Ao tocá-la não é possível perceber estas camadas,
porque o artista busca uma uniformidade tal que não sugira uma trama física das
camadas, mas, antes, uma trama visual, num trompe l’oeil. Entretanto, as implicações
da monotipia, da gravação dos pisos dos ambientes, evocam ao mesmo tempo,
várias espacialidades físicas na espacialidade virtual do quadro. Como ele mesmo
afirma, porém, esta capacidade poética de se manifestar a partir da relação destes
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dois espaços é o que lhe interessa. Esta trama oculta na poética acaba por adensar a
superficialidade do quadro.
A evocação da memória pela presença dos vestígios – índices agregados à
matéria, como pegadas ou o pó de locais abandonados - tem muito o que dizer no
trabalho. Na maioria das obras em que Senise utilizou-se da monotipia, reconstruiu no
quadro o ambiente do lugar gravado – como as cavalariças do Parque Lage, salas de
museus ou o ambiente de seu atelier. Em “Reino I”, entretanto, o artista não se priva
de representar um espaço tão pouco uniforme quanto os fragmentos de tecidos que
opta por utilizar, os quais parecem ter vindo de vários locais distintos. Nesta obra são
muitos os espaços representados – tanto virtuais quanto físicos, evocando imagens
que remetem à tradição da pintura, mas a uma história da arte permeada por olhares
que se relacionam e se alteram com o passar do tempo, como dito por ele, a respeito
da representação de paisagens hoje:
(...) são camadas e camadas de leituras e representações. O original
está distante... Vai-se a vários lugares, e sabe-se exatamente como são
muitos outros por meio de uma informação visual. Sabe-se até como é a
paisagem lunar. Então, pensar em paisagem dessa maneira é diferente
de como se pensava antigamente. São mantidas coisas como a ascese,
mas o objetivo não é mais trazer o verde para o salão8.
Bibliografia
ADEAS, Dawn. Daniel Senise: vestígios. In: Daniel Senise – Ela que não está, Cosac & Naify Edições, São
Paulo, em 1998. [Catálogo]
CALABRESE, Omar. Problemi di “enunciazione astratta”. In: CORRAIN, L. e VALENTI, M. Leggere L’opera
d’arte. Bolonha: Esculápio, 1999.
CHIARELLI, Tadeu. Considerações sobre o uso de imagens de segunda geração na arte contemporânea.
In: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
FERREIRA, Glória. O vôo do bumerangue. In: Daniel Senise – Galeria Thomas Cohn Arte Contemporânea,
São Paulo, em 1999. [Catálogo]
HERKENHOFF, Paulo. Sudário e esquecimento. In: Daniel Senise – Galeria Camargo Vilaça, São Paulo,
1993. [Catálogo]
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Notas
1
HERKENHOFF, Paulo. Sudário e esquecimento. Texto publicado na exposição do artista na Galeria
Camargo Vilaça, em São Paulo, em 1993.
2
FERREIRA, Glória. O vôo do bumerangue. Texto extraído do catálogo da exposição do artista na
Thomas Cohn Arte Contemporânea, São Paulo, em 1999
3
CHIARELLI, Tadeu. Considerações sobre o uso de imagens de segunda geração na arte
contemporânea. In: BASBAUM, Ricardo. Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos,
2001. Pg. 257.
4
Idem, Pg. 266.
5
CALABRESE, Omar. Problemi di enunciazione astratta. Pg. 161 – 164.
6
ADEAS, Dawn. Daniel senise: vestígios. Texto publicado no livro do artista “Daniel Senise – Ela que
não está”, Cosac & Naify Edições, São Paulo, em 1998.
7
FERREIRA, Glória. O vôo do bumerangue. Texto extraído do catálogo da exposição do artista na
Thomas Cohn Arte Contemporânea, São Paulo, em 1999
8
FERREIRA, Glória. O vôo do bumerangue. Texto extraído do catálogo da exposição do artista na
Thomas Cohn Arte Contemporânea, São Paulo, em 1999
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