1 Nota de apresentação do livro Mar Misto, de Ernesto Dabó Jorge Otinta1 Mar Misto, primeiro tento poético em formato de livrosaber do músico, poeta e jurista guineense, Ernesto Dabó, um dos fundadores da célebre orquestra de música moderna guineense, Cobiana Jazz, ao lado de José Carlos Scwarz e Alui Bari. Mas, não é de música que me proponho partilhar convosco nesta noite do Dia Mundial da Poesia. Nestas parcas linhas empreenderei uma viagem pelo universo poético daboernestino. Ora, desde logo, a imagem que me vem a mente é a de um homem velho camarada das letras, antes como compositor, e mais recentemente como dramaturgo e poeta. E é assim a vida, tal como diz ele no poema Bida (p. 58): Cada un son di si fis Ticil ku kerença Libral di kemança Facil (in pon) lankon di sperança pa netos Pabia si tchuba di malkerença bin foganta suadjo, (anta sabi ou kasabi pudi bin) tchiga ntudjo, kuanta mas durba paridi. Assim, essas reverberações do poeta pelas latências da vida, só podem prevenir, sabiamente, os constantes sobressaltos que a desgraçada cena junina do sétimo dia, assim tão de repente, mas tão de repente, fez com que a padjigada acontecesse em 98, levando a que os mais velhos, 1 Jorge Otinta é ensaísta e poeta. Pós-Doutorando em Letras e Doutor em Estudos Comparados de Literaturas de língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo, Brasil, autor do livro: Representações do Intelectual: um estudo sobre Mayombe e Kikia Matcho (Editora CRV, 2012, Brasil). 2 os garandis, putis di mesiñu, bin pega guerra mufunadu na polon. Di nundé propri? I di pensa… De referir que no embate entre os dois elefantes da nossa história menina, nós as minhocas restou-nos a hibernação mais profunda no húmus do chão sagrado da nossa mátria nação. Após esta nota introdutória, passo a seguir apresentação dos tópicos da obra, começando por: à 1. VOZ INVERSA OU A INVERSÃO DA VOZ Por sermos de pensar disperso é que faz com que a massa reclame o “reerguer da flama/no cimo do poilão”, e nós “fatos estatísticos/meros rios/por onde correm poluídas promessas/de como transpor o Bojador/ somos os de quem se esquece antes da posse” (p. 31). Mas não porque sejamos meros instrumentos do apetite voraz de outrem ou que sejamos invisíveis, mas, pura e simplesmente, por que corremos como o rio, vendo-o (Fernando Pessoa, Lidya). E mais: para passar além do Bojador, tem que passar antes (e por que não, sobretudo, além da dor?), F. Pessoa, Mar Português, para deixar as saudades para trás, casamentos por realizar, amores por fazer. Tanta dor se a vida não valesse a pena, mas como vale, viva-a, caro leitor, nos interstícios do Mar Misto. 2. A AGONIA DA TRAVESSIA O poeta confessa-nos no poema Estou bem (p. 29) num diálogo de retomada da temática da taça de vinho doutro poema, Haja festa aos frutos (p. 28), a imagem da transitoriedade dos fatos, das coisas, dos homens, dos pensares e dos desejos, enfim da vida, em constante mutação. 3 Assim, no primeiro diz ao amigo ou à amiga “Canto contigo/a palavra que o tempo não quis dizer ao touro levantado/bebo contigo o vinho velho/que a maré morta/trouxe na ponta da foca”. Para, em seguida, numa beleza imagética indescritível dizer em tom profético (dou-me à tua cela/sem saber a sentença/nada é escuro nem húmido”, pois tudo vai bem, na medida do possível? Ou tudo vai porque está ele determinado a fazer com que as coisas aconteçam, mesmo que a fé e esperança insistam em levantar voos para bem longe. No segundo, traz-nos esta travessia, este movimento perpétuo, do mito do terno retorno, nas frutas que hão de se dar, para que a grande festa da liberdade (e porque não, ousadamente, da libertinagem?) possa dar-se com pompa e circunstância. Isto porque “Escorre chuva pelo dia/paredes abstratas/claras e serenas/taças ressequidas/sobem de água para o brinde cor da terra”. Entretanto, esta travessia em portos diversos flutuantes dos mares mistos da nação guineense, percebemos que “Nem sempre se dá por vontade” esta viagem interativa pelo nosso solo pátrio; por isso, há a agonia da travessia de uma margem para outra, mas ela a água Corre Pára Galga Empurra Até partir ao céu Num vapor de poupa e proa sem leme à vista Sempre que volte Haja festa aos frutos. 4 Os poemas supracitados provam que nunca é tarde para escrever, muito menos para dizer, artisticamente, àquilo que parece ser o inaudito, o proibido. Afinal esta obra singela (Mar Misto) remete-nos, necessária e obrigatoriamente, a dois autores consagradíssimos. De um lado, o Pessoa de A Mensagem, de outro, Charles Baudelaire, de As Flores do Mal. As três obras constituem-se em necessidade da regeneração, da restauração da nação e da identidade nacional. E, ao mesmo tempo, debruçam-se sobre a construção das subjetividades individual e coletiva de um povo. Ernesto Dabó consegue, com maestria, apesar de tarde, ofertar-nos uma poética culta, imagética, de alto e lato labor estilístico e literário. Assim sendo, o mal necessário (talvez inconsciente) está neste longo silêncio escritural, mas é, paradoxalmente, interessante ressalvar esta sua ousadia em desdizer o mar (misto e híbrido) do nosso caldeirão etnocultural, literariamente. 3. PALAVRAS AUSENTES DO GOSTO AGUDO As palavras que nomeiam as coisas e os homens atribuindo-lhes nova identidade também elas se ausentam, ou melhor se hibernam. É por isso que no poema Gosto Agudo (p. 20) diz-nos o poeta de Bolama, de Bissau, de Quínara e do mundo, que “calamos o passado/não por fé/mas por amor/a um presente/de aborto ausente” para que sendo únicos, segundo as exímias palavras de Dabó, possamos ter um “olhar de brilho rosado/sobrevoando lábios trémulos/tangentes à brisa do tempo nosso” (p. 19), longe das intempéries da vida. Eis porque ser único é ter amor, pois ele é o sentimento da partilha (que não nos deixa habitarmos em ilha nenhuma). Pois “egoístas são as palavras/quando se erguem em 5 labirinto/para desfolhar o amor” sem saber que este, o poeta o conhece “em cada [gesto de] partilha” (p. 18). O som onomatopaico do poema NNA NNA NNA, p. 17 (ñam-ñam) remete-nos ao tempo criança onde “Esse menino antigo ‘Ernesto’/adora(va) semear afago/em cada concha de luar na tua face/adora(va) anichar beijos/cada festinha tua/felizes quadros do tempo-criança”. 4. AMORES PLURAIS Aqui o poeta fala das margens movediças do amor na sua forma mais variada, pois da perda, pede o eu lírico, …na cabeça di punto alim sin tom nin norti Cada sóma di canua corçon bida salton …nha codê de fabur lebiam dur (p. 55). Trata-se da imagem da heterogeneidade conflituosa que move as culturas híbridas como a nossa, contrapondo, paradoxalmente, a kerensa ao sofrimento. Por isso, as suas temporalidades são sobrepostas uma na outra como as rochas, e, por isso mesmo, mescladas e superpostas. É a identidade em trânsito, um entre-lugar, “in between” dos críticos literário e cultural brasileiro e indiano Silviano Santiago e Homi Bhabha, respetivamente, querendo servir na mesma cabaça de comida as ilhas de Bolama, as ilhas de Cabo Verde e a ilha de Bissau. Sendo a primeira a ponte que une a antiga Guiné Portuguesa à atual Guiné-Bissau, como um cordão umbilical que une esta nação mestiça, do mar misto do Geba às águas atlânticas de Cabo Verde. 6 Eis porque as mães Nna Ndjai, Nna Garandi, Nna Cinho, Mamã Carmén Hernandez e Focha Maria José, só poderiam confluir-se num único porto flutuante de trânsitos peculiares: o coração do poeta Ernesto Dabó. Delas, diz o poeta por o terem dado a luz, cada uma a seu tempo e a seu modo e ao pai Bacar Dabó, pela repulsa ao ódio e ao egoísmo. De todos eles, então, podemos tirar a seguinte ilação: Sapientia et Avgebitvr Scientia. Isto é, dos mais velhos herdou a infinita sabedoria e da Ciência da Literatura o conhecimento aprimorado da poyésis da guinendade. 5. E PARA CONCLUIR… O lugar do Ernesto Dabo no mundo, é-lhe dado pelas condições objetivas de lugares outros que a imaginação poético-literária trilha (e percorre com notas dissonantes da poemúsica). Assim, temos, desde logo, no poema que inaugura a sua poética pioneira, Ilha-Mãe (p. 11-14) o seguinte dizer sobre a viagem pelo mar (Bolama) de que se trata de uma viagem a pingar, no infinito do horizonte azul (ou da kerensa azul) que Da ponta da ponte Atiram-se abraços cruzados e abertos Do mar à terra Ampla luz de amor e saudades Reencontro com a filha bela da mãe natura Milha ilha-mãe Bolama. 7 A poesia mais bela, vem da ilha materna do poeta, Bolama, a mais sedutora, a mais envolvente e a mais alegoricamente sublime, porque ela vem da poética dum sentir desconcertante. Por isso, a sua poesia é aquela poesia surda, dura, áspera, àquela que toca fundo o ser da alma humana. Viva a Poesia! E DEIXEM FALAR OS POETAS! Bissau (Centro Cultural Franco-Bissau Guineense), 21 de Março de 2013.