AS DIFERENTES FACES DOS AGRO(BIO)COMBUSTÍVEIS: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA ENTRE DUAS ABORDAGENS PRESENTES NO DEBATE SOBRE
OS AGRO(BIO)COMBUSTÍVEIS ∗
Fábio Dias dos Santos
Aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – Unimontes
[email protected]
GT - Economia Social e Desenvolvimento
Introdução
As mudanças climáticas anunciam que está em curso uma grave crise ambiental e
junto à essa a crise energética, dado à tendência de escassez e ao aumento dos preços dos
combustíveis fósseis e seus derivados. As duas crises apontam para o mesmo rumo, ou seja,
para a necessidade de mudança da matriz energética hegemônica – o petróleo - que é cada vez
mais rara, para outras fontes de energia, de preferência renováveis. Nesse sentido, por um
lado, a produção dos combustíveis a partir da biomassa de vegetais deveria resolver, ou pelo
menos mitigar significativamente, a crescente crise energética. Por outro, diminuir a emissão
de gases efeito estufa (GEE) contribuindo com o enfrentamento do problema do aquecimento
global. Diante disso, os agro(bio)combustíveis vêm ganhando legitimidade, sendo
apresentados pela mídia e governos de vários países, principalmente o do Brasil, como uma
solução para os graves problemas que preocupam a humanidade neste início século.
No entanto, o debate em torno dos agro(bio)combustíveis não é consensual. A
ascendente demanda mundial do produto tem contribuído para a especialização e
homogeneização do uso da terra e para a disponibilização de recursos naturais para o mercado
global, apresentando fatores que podem colocar em risco a sustentabilidade das populações e
do ambiente nos países produtores. Esse cenário tem provocado um conjunto importante e
consistente de críticas (ABRAMOVAY & MAGALHÃES, 2007), sendo essas, questões que
envolvem contribuições teóricas que vão desde o campo econômico até o campo
antropológico. Interessa-nos o viés sociológico, portanto, apresentamos nossa reflexão voltada
para a formação de duas abordagens presentes no debate, uma que se apresenta cética e
posiciona-se em oposição ao discurso de produção e uso dos agro(bio)combustíveis, e outra

Artigo apresentado no II Congresso em Desenvolvimento Social - Unimontes
1
mais moderada que opta por perspectivas de integração entre produção de alimentos e
agroenergia1.
O enfoque do comparativo sobre essas duas abordagens objetiva, sobretudo,
compreender onde cada uma se posiciona no debate dos agro(bio)combustíveis, bem como
apresentar os múltiplos significados que emergem do tema, a totalidade dos grupos sociais
envolvidos e seus interesses, que é parte integrante do nosso objeto.
Do ponto de vista metodológico, deve-se destacar a preferência deste estudo pelo
termo “agro(bio)combustíveis” e não “agrocombustíveis” ou “biocombustíveis”, tendo
relação com o cuidado que se deve ter com os sentidos e os significados dos termos no âmbito
do debate. Assim, no decorrer do trabalho, explicitaremos a discussão em torno dos conceitos,
objeto da análise sociológica, onde o processo de nomeação diferente para combustíveis
produzidos a partir da biomassa posiciona os agentes em visões e posições divergentes no
campo do debate.
No interior dessa lógica é que estão situadas as abordagens a serem investigadas
neste estudo. A investigação comparativa se propõe compreender e interpretar as teorias dos
agentes sociais inseridos em cada abordagem, bem como, entender de que forma cada uma
concebe a questão da sustentabilidade para o enfrentamento da crise ambiental.
A comparação como instrumento de investigação sociológica
De acordo com Franco (2000), podemos compreender o exercício de fazer
analogias e de comparar como processos inerentes ao ato de conhecer e de construir um
discurso sobre a realidade ou um dado processo. Ou como aponta Sartori (1994), o
conhecimento comparativo, como todo saber, sem exceção, tem como objetivo a compreensão
bem como a explicação.
Nesse sentido, existe um consenso entre os autores na direção de que a
comparação seja uma das ferramentas de construção do conhecimento que fornece a chave
para a compreensão/entendimento, explicação e interpretação dos fenômenos sociais
(SARTORI, 1994).
Segundo Franco (2000), uma das formas de conduzir o processo da comparação é
procurar ver o objeto de estudo no seu contexto, o que significa vê-lo nas suas relações com
outros objetos ou sujeitos sociais. Podemos, assim, chegar a construir o objeto científico no
âmbito do particular ou do geral, mas nunca como objeto isolado, separado daquilo que lhe dá
1
O Plano Nacional de Agroenergia considera que a agroenergia é composta por quatro grandes grupos: etanol e
co-geração de energia provenientes da cana-de-açúcar; biodiesel de fontes lipídicas (animais e vegetais);
biomassa florestal e resíduos; e dejetos agropecuários e da agroindústria.
2
significado ou da totalidade social que é o conjunto de relações onde ele se situa em um
tempo e espaço determinado e que constitui sua particularidade histórica (FRANCO, 2000).
Sendo
essa
também
uma
das
preocupações
deste
trabalho
no
âmbito
dos
agro(bio)combustíveis.
Ao reconhecer a pluralidade ou a diversidade dos fatos e acepções que recobrem
os agro(bio)combustiveis, o método comparativo põe em relevo a importância dos debates,
dos acontecimentos, da ruptura, da mobilização, da ação e, portanto, dos agentes sociais
responsáveis pela discussão em diferentes correntes.
Para Sartori (1994), o que é fundamental na comparação é a existência do que
comparar, ou seja, a investigação comparativa se fará em torno do que seja comparável entre
similitudes e diferenças, do que é compartilhado ou não compartilhado. Portanto, neste estudo
o que estamos comparando são duas abordagens inseridas no debate em torno dos
agro(bio)combustíveis, a abordagem cética, que apresenta-se em oposição a esse tipo de
agroenergia e a abordagem integralista, representada por agentes sociais e organizações que
consideram possível o funcionamento de sistemas integrados entre a produção de agroenergia
e alimentos (ABRAMOVAY & MAGALHÃES, 2007).
O suporte da sociologia histórica será fundamental nesse processo, pois nela
encontramos instrumentos metodológicos como a análise dos conceitos e o método
comparativo (FRANCO, 2000). Nessa lógica, é possível relacionar a produção dos
agro(bio)combustíveis, no Brasil, à agentes e estruturas que remontam ao período colonial,
como a cadeia de produção da cana-de-açúcar que se perpetua em um modelo de
funcionamento baseado na “grande lavoura”2, monocultora e com produção destinada ao
mercado externo. A soja, outra matéria-prima dos agro(bio)combustíveis, também esta
fundamentada nessa estrutura, embora, sua produção só tenha se expandido já na segunda
metade do século XX. No que diz respeito à análise dos conceitos, atenta-se aqui para o
processo de construção desses pelos agentes sociais no debate dos agro(bio)combustíveis.
As deferentes nomeações para os agro(bio)combustíveis
Neste processo de investigação, uma das questões que se deve observar sobre os
agro(bio)combustíveis e, que é fundamental em sociologia, é o processo de nomeação dos
elementos constitutivos do debate. A construção dos conceitos não é um mero detalhe ou um
dado da realidade, pois os grupos sociais não se nomeiam, nem nomeiam outros e nem aos
2
Conceito utilizado por Caio Prado Junior em sua obra clássica “Formação do Brasil contemporâneo”, para
designar a grande propriedade colonial produtora da cana-de-açucar em referência a pequena propriedade
voltada para a agricultura de subsistência. O autor desenvolve um comparativo entre a “grande lavoura” e a
“agricultura de subsistência” do período colonial até 1920.
3
acontecimentos por uma simples escolha do acaso, o fazem segundo seus interesses. Portanto,
cabe ao investigador estar atento a essa construção conceitual.
As diferentes denominações conceituais, “biocombustível” ou “agrocombustivel”,
para o combustível fabricado a partir da biomassa de vegetais são objeto de analise
sociológica, uma vez que o processo de nomeação envolve a ação de atribuição de
significados e de sentidos aos termos ou conceitos utilizados pelos agentes sociais.
O processo de atribuição de sentido e significados aos elementos é feito por
agentes sociais que estão inseridos numa relação de disputa e assumem posições divergentes
no espaço social. Dessa forma, a posição no espaço social traça conseqüências, pois viabiliza,
de alguma maneira, a possibilidade do agente social agir sobre aquilo que ele vê em seu
contexto, visão que está condicionada a sua posição no espaço social (BOURDIEU, 2000).
Nesse contexto, estamos diante de um processo em que, enquanto alguns agentes
sociais nomeiam os agro(bio)combustíveis, ou os combustíveis produzidos da biomassa de
vegetais, como bioenergia, outros agentes sociais, em contraposição a esta nomeação,
chamam este combustível de agroenergia. Vejamos o porquê de tal divergência.
A opção de alguns agentes sociais pelo conceito de agroenergia e/ou
agrocombustível remete ao interesse desses agentes em associar aos processos produtivos do
combustível produzido de vegetais, as condições agrárias e agrícolas em que esses
combustíveis são produzidos que aparentam ser questões técnicas, mas são, essencialmente,
questões sociopolíticas. Pois retomam processos agrários e sua interferência histórica sobre
determinados espaços sociais e territoriais. Tais agentes relacionam os modelos produtivos
dos agro(bio)combustíveis às estruturas agrárias e fundiárias. No Brasil, por exemplo, às da
cana-de-açúcar, principal matéria-prima do etanol brasileiro, que possui uma histórica
dinâmica de produção baseada na “grande lavoura”, na monocultura e na concentração
fundiária, como nos apresentou Caio Prado Jr. (1999), em sua obra clássica “Formação do
Brasil contemporâneo”.
Por sua vez, os agentes sociais que utilizam a terminologia bioenergia e/ou
biocombustíveis, tendem a concentrar-se em outro ângulo de enfoque, distinto do
anteriormente apresentado, pois sua opção pelo uso da terminologia “bio” tem o foco na
condição renovável da energia originada através da biomassa em substituição à energia dos
combustíveis fósseis.
Na perspectiva do caráter renovável do conceito de “biocombustível”, vários
setores apresentam aqueles fabricados a partir da cana-de-açúcar, milho, soja, mamona, dendê
e outras plantas como sendo o passo seguro de uma “transição vitoriosa” da civilização do
4
petróleo, ou economia do petróleo, para uma outra economia ou civilização renovável ainda a
ser definida (REBRIP, 2008). Esses agentes sociais apostam na dimensão renovável da
biomassa, utilizada para fabricação do combustível, como garantia de uma energia limpa,
verde e sustentável que contribuirá para a solução da crise ambiental e energética. Para os
países do sul, produtores da biomassa, os biocombustíveis surgem como uma nova promessa
de desenvolvimento (HOUTART, 2008).
Nesse quadro, a premissa sociológica atua como instrumento de identificação e
análise dos agentes envolvidos, suas posições e os sentidos que os mesmos atribuem as suas
teorias e práticas.
Entendida a dinâmica de estratificação e posicionamento dos agentes no quadro
do debate podemos identificar as correntes e respectivas abordagens investigadas neste
estudo.
As bases da abordagem cética
Este estudo vem, a partir do esforço investigativo, denominar como abordagem
cética o conjunto de argumentos críticos levantados por agentes sociais e organizações em
oposição à opção teórico–prática dos biocombustíveis. Para tanto, apresentaremos nesta seção
quatro dos principais argumentos que justificam tal abordagem.
Um dos argumentos utilizados em oposição à agroenergia de biomassa é o cálculo
do balanço energético dos agro(bio)combustíveis que chega a resultados baixos ou até
negativos (ABRAMOVAY & MAGALHAES, 2007). O balanço energético indica o volume
de energia consumido para produzir determinada energia. Em outras palavras, constitui o
cálculo do gasto de energia para a produção dos agro(bio)combusíveis em toda a sua escala de
produção, desde o cultivo da terra até a bomba de abastecimento nos postos revendedores.
Os produtores de biomassa para a fabricação dos agro(bio)combustíveis rebatem
as críticas apresentando um balanço positivo em sua produção, destacam as vantagens na
característica renovável da matéria-prima junto ao processo de fotossíntese desenvolvido
pelas monoculturas que atuam no sequestro de carbono da natureza. Porém, de acordo com
Weid (2009), em se tratando do etanol produzido a partir da cana-de-açúcar, o balanço
energético seria levemente positivo, isso se o bagaço e as folhas da planta (restolho) fossem
utilizados como fontes de energia para a produção do etanol. No entanto, o restolho não é
aproveitado na maioria dos canaviais, o que faz o balanço energético ficar negativo. Quando o
cálculo é feito da produção do etanol de milho o balaço energético é claramente negativo, pois
seria necessária 1,29 unidade de energia fóssil para produzir uma unidade de etanol. Sobre o
5
balanço energético para o agro(bio)diesel, Weid (2009) afirma que os dados ainda estão
limitados às principais matérias-primas como a colza (mais cultivada na Europa, dada aos
pesados subsídios concedidos pelos governos europeus) e a soja (que mantém uma grande
área cultivada no Brasil, esta é responsável por 80% da matéria-prima utilizada no país).
Segundo ele, o balanço energético da soja é negativo, entre 32% e 8%, e o da colza ainda é
pior, restando ao óleo da palma (azeite de dendê) as expectativas de balanço positivo.
O grande complicador no esforço da substituição dos combustíveis fósseis por
combustíveis renováveis é que, da forma como vêm sendo produzidos, pela agricultura
convencional do agronegócio3, dependem totalmente dos combustíveis que pretendem
substituir. Isso se deve ao processo de artificialização da produção caracterizado por grandes
extensões de monocultura que exigem o uso maciço de produtos químicos, fertilizantes e
defensivos, mecanização, transporte do produto até o mercado consumidor. Sendo cadeias que
fazem uso da queima de grandes quantidades de combustíveis. Dessa forma, quanto maior o
uso de combustíveis fósseis na produção dos agro(bio)combustíveis menos renováveis eles
serão.
Os estudos que apresentam forte crítica ao modelo produtivo em expansão dos
agro(bio)combustíveis, estão relacionados à contribuição deste na redução das emissões de
gases efeito estufa – GEE. De acordo com Weid (2009), as emissões de GEE produzidas
pelos veículos representam 14% do total das emissões mundiais, o mesmo percentual emitido
pela agricultura. Contudo, segundo o autor, diante do cenário de desmatamento e de
substituição da cobertura vegetal natural por plantações de culturas homogêneas voltadas para
os agro(bio)combustíveis, as emissões da agricultura podem chegar a 30%. Célio Bermann
(2007), aponta que o uso de agro(bio)diesel puro reduz a emissão de CO² em
aproximadamente 80%, o que provocaria um aumento das emissões de óxido nitroso (N2O)
em 13%, entendendo que o último é 300 vezes mais poluente que o CO², o resultado será
negativo (WEID, 2009).
Em contraposição a esse argumento, os defensores do etanol produzido no Brasil,
destacam que a cana-de-acúcar tem expandido suas atividades em áreas onde as matas já
haviam sido desmatadas ou degradadas na criação do gado, em regiões como São Paulo,
triângulo mineiro e centro oeste. Por outro lado, a abertura de fronteiras para a expansão da
cana-de-açúcar nessas regiões tem provocado o deslocamento das atividades anteriores
3
Estamos entendendo por agronegócio, o enfoque moderno que considera todas as empresas que produzem,
processam, e distribuem produtos agropecuários que mantém associação com a grande propriedade fundiária e
está inserido estrategicamente no capital financeiro internacional (DELGADO, 2005).
6
(pecuária e sojicultura) para outros espaços, causando o desmatamento do cerrado e da
Amazônia Legal (ASSIS & ZUCARELLI, 2007; ABRAMOVAY & MAGALHÃES (2007).
Outro argumento de destaque constitui a ameaça dos agro(bio)combustíveis à
segurança
alimentar
mundial.
Existe
a
preocupação
de
que
o
avanço
dos
agro(bio)combustíveis constitua impacto negativo para a seguridade alimentar mundial. Por
um lado, em função da diminuição da oferta e acesso a alimentos no espaço regional. Por
outro, o problema da baixa disponibilidade de produtos alimentícios no estoque dos sistemas
reguladores mundiais e, portanto, causando uma elevação dos preços.
Nesse sentido, Weid (2009) apresenta um estudo publicado em setembro de 2008
pela revista New Scientist, o estudo apontam que não existam mais do que 250 à 300 milhões
de hectares de terra cultivável em todo o mundo. Ainda de acordo com o estudo, para suprir
10% da demanda mundial de agro(bio)combustíveis até 2030 seriam necessários 290 milhões
de hectares, enquanto a demanda mundial por alimentos demandaria mais 200 milhões. Por
essa lógica, a produção de agro(bio)combustíveis provocaria uma inevitável destruição das
florestas.
A preocupação com os efeitos da produção dos agro(bio)combustíveis sobre a
produção de alimentos levou a uma reunião emergencial da FAO (Organização das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação) em 2008, no Brasil. A organização da ONU
apresenta uma duplicação dos preços dos alimentos entre 2002 e 2008, que está diretamente
ligada à produção dos agro(bio)combustíveis. O uso do milho nos EUA para a produção do
etanol impactou negativamente a produção de alimentos, pois muitos produtores de trigo
passaram a produzir milho dado aos subsídios do governo.
Outra dimensão da análise cética é a influência da produção de agroenergia no
processo de concentração fundiária e de renda. De acordo com Assis & Zucarelli (2007), a
expansão dos plantios de cana nas regiões Sudeste e Centro-Oeste tem alterado a dinâmica de
ocupação territorial. Eles destacam a questão dos arrendamentos de propriedades
improdutivas por grandes produtores como entraves aos programas de reforma agrária. O
mesmo fenômeno tem se reproduzido na produção da soja aumentado a tensão e o conflito
sobre terra na região. Com relação à concentração de renda deve-se atentar para o
envolvimento de setores automobilísticos, petroleiro e da biotecnologia no ramo dos
agro(bio)combustíveis. No setor automobilístico, por exemplo, as metas de substituição dos
combustíveis fosseis por agroenergia desviam as restrições das emissões de CO² por veículos,
evitando assim a redução das vendas que não param de crescer.
7
Por fim, argumentos ainda mais radicais da corrente cética denominam os
agro(bio)combustíveis como o novo colonialismo ou colonialismo energético. François
Houtart (2008) associa a idéia de neocolonialismo energético com a chamada revolução
energética ou transição energética. De acordo com o pesquisador, os agro(bio)combustiveis,
na verdade, atuam como estratégia de inserção de grandes corporações internacionais
interessadas na exploração de áreas agrícolas nos paises do sul para o cultivo da biomassa.
Esse processo constitui para a corrente cética uma nova dimensão da colonização, agora não
por nações ou por conflitos em torno da soberania dos estados nacionais, mas por grandes
corporações empresariais extraindo energia da biomassa em países em desenvolvimento. De
acordo com essa abordagem, esse fenômeno não se dá pela suposta característica “bio” do
produto ou, ainda, pela inserção de camadas desprivilegiadas ao processo produtivo da
agroenergia, mas fundamentalmente por estratégias de ganhos e realização da “mais valia” a
partir dessa produção.
A abordagem integralista
Neste estudo, estamos conceituando como integralistas aqueles agentes e
organizações que no conjunto do debate, em torno da agroenergia, apresentam argumentos
favoráveis à utilização da biomassa na fabricação dos combustíveis. No entanto, vale ressaltar
que essa corrente não é negligente e, está atenta às implicações negativas dos
agro(bio)combustíveis, por isso defendem sua viabilidade com uma série de condicionantes e
cautelas. Assim como os céticos, estão preocupados com a questão da segurança e soberania
alimentar e energética e, talvez, nessa questão esteja uma forte semelhança entre as duas
perspectivas, a de avaliar os agro(bio)combustíveis com uma visão crítica do processo.
Essa abordagem tem defendido argumentos que reconhecem a insustentabilidade
dos modelos hegemônicos da produção de agro(bio)combustíveis via monocultura da canade-açúcar, soja e milho. Dada à mecanização, uso de defensivos, más condições de trabalho,
concentração fundiária etc., sob o domínio de um número muito pequeno de grupos
econômicos. Porém, essa levanta os seguintes questionamentos: é possível pensar diferente?
Como buscar dentro da diversidade de situações estruturais, ambientais, políticas, econômicas
e sociais formas de contribuir com a redução das emissões de carbono? Ou estaríamos todos
determinados a destruição fora da modalidade proposta pelas grandes corporações e do
agronegócio?
Segundo a lógica da abordagem integralista, uma das possíveis respostas a estas
questões está na produção diversificada em escalas menores que agregue à produção de
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alimentos a produção de agroenergia em um sistema orientado, sobretudo, para os pequenos
produtores da agricultura familiar. Nesse sentido a abordagem condiciona as vantagens dos
agro(bio)combustíveis para uso de âmbito local, sem grandes resultados para escalas
nacionais ou internacionais.
Entre os integralistas mais destacáveis podemos citar o Prof. Ignacy Sachs
(ABRAMOVAY & MAGALHAES, 2007), contrário ao padrão tecnológico em que se apóia
a oferta de agro(bio)combustíveis predominante hoje, que está estruturado no sistema de
comodities através da produção em monoculturas voltadas essencialmente para a eficiência
econômica do processo.
De acordo com Abramovay & Magalhães (2007), a idéia central da abordagem
integralista está no estimulo à biodiversidade e no emprego de biotecnologias capazes de
potencializar sistemas integrados de produção de agroenergia e alimentos, além da idéia de
inserção de outros grupos no processo produtivo da agroenergia fora da ótica da exploração
perversa das grandes corporações.
Os autores destacam, ainda, os trabalhos de Tilman publicado na Revista Science
em 2006. O estudo apresenta grandes êxitos da produção de biomassa quando utilizados solos
mais degradados em paralelo ao uso de uma diversidade de plantas que não exigem graus
elevados de insumos nem terras férteis. Um dos indicadores mais positivos foi o fato de que a
diversidade dessas plantas amplia a capacidade de estocagem de carbono, quando comparado
com plantios homogêneos (ABRAMOVAY & MAGALHAES, 2007).
Na perspectiva integralista, a produção dos agro(bio)combustiveis pode ter seu
lado positivo quando implementada como política pública de inclusão social. No Brasil, foi
instituído no ano de 2004 o Programa Nacional de Produção de uso do Biodiesel – PNPB e o
Selo Combustível Social que, por hipótese, deve integrar agricultores familiares à oferta de
matéria-prima, que pode ser óleo ou o produto em natura. Algumas usinas, como a petrobras,
só recebe o óleo. o que exige a formação de um complexo produtivo pelos agricultores
familiares a partir da formação e estruturação de cooperativas e associações.
Abramovay & Magalhães (2007), destacam o pioneirismo do programa brasileiro
em integrar no processo produtivo do agro(bio)combustível a agentes historicamente
conflitantes e indiferentes no cenário nacional – empresas e agricultores familiares. Destacam,
também, a questão da responsabilidade social no conjunto da formação do mercado do
agro(bio)diesel, resultado da coalizão entre empresas, agricultores familiares e governo
federal. Nesse cenário, está em relevo as estratégias competitivas das empresas no cenário
nacional e internacional de aderir ao Selo Combustível Social como forma de
9
“enverdejamento” da marca. A responsabilidade social é concebida como contribuição às
mudanças nos contextos sociais em que é produzido o produto (ABRAMOVAY &
MAGALHÃES, 2007).
A abordagem integralista brasileira acredita na possibilidade de sucesso do PNPB
em contraposição ao PROALCOOL da década de 1970 que levou a problemas sociais e
ambientais pelo modelo produtivo utilizado ligado à concentração de vastas proporções de
terras, uso de agentes contaminadores do solo dentre outros. Portanto, esta corrente está crente
de que o agro(bio)combustível como política pública estimula: a diversificação produtiva; a
participação dos agricultores familiares no mercado, através da oferta de matéria-prima para a
produção do agro(bio)combustível; a responsabilidade social das empresas; a geração de
renda por parte da população que vive próximo a linha da pobreza. Contextos que colocam o
ceticismo quanto ao futuro dos agro(bio)combustíveis em dúvida (ABRAMOVAY &
MAGALHÃES, 2007).
Consensos e divergências entre as abordagens estudas
Nesta seção buscamos apresentar de forma resumida as questões centrais que o
estudo comparativo permite extrair em termos de semelhanças e divergências existentes entre
as duas abordagens estudadas.
O estudo comparativo, ao desenvolver uma análise em torno dos conceitos, tornou
possível a identificação e o posicionamento assumido pelos agentes sociais representantes das
abordagens céticas e integralistas. Nesse processo, a divergência entre as abordagens se
apresenta na preferência por termos diferentes para nomear um mesmo combustível produzido
a partir da biomassa de vegetais. Definida a diferença do posicionamento dos agentes sociais
em cada uma das respectivas abordagens, apresentamos um importante ponto de convergência
entre as duas. O mesmo se apresenta na postura crítica ao modelo hegemônico de produção de
agroenergia através das práticas do agronegócio e do mercado de comodities.
A abordagem cética conceitua os combustíveis fabricados a partir da biomassa de
vegetais como agrocombustíiveis, por sua concepção de que esse combustível constituí uma
estratégia de grupos transnacionais ligados à companhias petrolíferas, corporações
empresariais agronegócio, empresas do setor de biotecnologia e indústrias automobilísticas
para a solução em curto prazo da crise econômica no mercado global (HOUTART, 2008).
Segundo essa perspectiva analítica, contingentes enormes de agricultores da agricultura
familiar e camponesa, assim como vastas áreas de florestas nativas, sofrerão diretamente com
o avanço das monoculturas em uma reprodução de cenários coloniais.
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A aposta dos integralistas na efetividade das políticas de inclusão social no
processo produtivo dos agro(bio)combustíveis tem sofrido duras críticas dos céticos. Estes
argumentam que tais políticas e investimentos já em curso, tanto em termos de montante
quanto da natureza dos investidores, sejam políticas que estejam a reboque de um conjunto de
interesses dificilmente guiados por questões de segurança alimentar ou da promoção da
agricultura familiar como beneficiária desses programas (WILKINSON & HERRERA, 2008).
Sobre essa questão, Assis & Zucarelli (2007) apontam que a proposta de inclusão
da agricultura familiar através do PNPB pode não ter o sucesso esperado. Isso devido aos
agricultores não possuírem autonomia de produção e comércio dos produtos, a inclusão se dá
apenas na etapa de fornecimento da matéria-prima. O que não permite aos agricultores uma
participação efetiva ou controle do processo, tornando-os dependentes e reféns das condições
dos contratos com as empresas beneficiadoras dos agro(bio)combustíveis. De acordo com os
autores, o caminho alternativo dentro da proposta de integração tem o conceito de
descentralização produtiva. Alguns agentes sociais que apostam na integração estão atentos
para essa questão. Sob essa lógica, a inserção dos agricultores familiares está alicerçada na
autonomia de todas as etapas de produção do agro(bio)combustível, o que implicará no
encurtamento das distâncias entre áreas produtoras e centros consumidores (ASSIS &
ZUCARELLI, 2007).
Quanto a questão da sustentabilidade ambiental, o estudo apresenta os argumentos
da corrente cética como descrente da possibilidade de contribuição dos agro(bio)combustíveis
como agentes de redução das emissões de gases efeitos estufa, ao contrário, esta corrente
apresenta fortes indícios de insustentabilidade dos sistemas convencionais de produção dos
agro(bio)combustíveis, além de questionar as denominações conceituais para os combustíveis
fabricados através da biomassa, nos termos de “bio”, “energia limpa” ou “verde” dada a
amplitude dos impactos ambientais que provoca. Portanto, a solução para as crises ambiental
e energética, no conjunto dos argumentos da abordagem cética, está na luta pela racionalidade
no uso da energia, sobretudo nos paises mais desenvolvidos, além do investimento em novas
tecnologias, como a energia solar. Por outro lado, especialistas como François Houtart (2008)
reconhece que a agroenergia não seja um mal em si e pode contribuir como solução em
âmbito local, sob a condição de respeitar a biodiversidade, a qualidade dos solos e da água, a
soberania alimentar e a agricultura camponesa, ou seja, o oposto da lógica do capital.
A abordagem integralista comunga essencialmente da perspectiva da agroenergia
como solução para as crises no âmbito local. E, para além dessa perspectiva, a abordagem
confia na possibilidade de inclusão social através da substituição paulatina do modelo
11
produtivo da agroenergia baseada nos sistemas de monoculturas. No conjunto da abordagem
integralista sobre a contribuição dos agro(bio)combustíveis como solução para as crises em
questão, o Prof. Ignacy Sachs (REBRIP, 2008) apresenta alguns elementos estratégicos como:
a criação de uma agência reguladora que privilegie um mercado de agroenergia que releve os
critérios sociais, ambientais e econômicos; manutenção de instrumentos como o Selo
Combustível Social e o PRONAF Biodiesel; o aprimoramento de políticas trabalhistas para os
cortadores de cana; estimulo governamental às cooperativas e empreededorismo coletivo;
certificação de que o agro(bio)combustível exportado respeita regras ecológicas e sociais e a
exploração da biomassa para outros mercados além da bioenergia.
Considerações finais
O uso dos agro(bio)combustíveis tem sido amplamente difundido como o grande
axioma da sustentabilidade energética mundial sem maiores atenções para os mecanismos de
produção do mesmo. Diante disso, a análise das diferentes abordagens apresentadas neste
estudo pôde nos fornecer uma percepção mais aguçada de questões que estão subjugadas no
discurso hegemônico de substituição do consumo dos combustíveis fósseis por combustíveis
fabricados a partir da biomassa de vegetais. Destaca-se, ainda, a necessidade de
aprofundamento
no
conhecimento
dos
impactos
negativos
da
produção
dos
agro(bio)combustíveis nos moldes do agronegócio, bem como o anseio em rever a efetividade
das políticas de estímulo à produção de agroenergia que estão em curso no Brasil.
Diante do que foi apresentado é possível apreender que as abordagens estudadas
têm uma lógica própria, capaz de levar à compreensão a dinâmica em que cada uma se
apresenta no quadro do debate sobre os agro(bio)combustíveis. O consenso existente entre as
duas abordagens está em práticas e/ou políticas que apóiem a produção descentralizada do
agro(bio)combustível em âmbito local e em escalas menores fora da racionalidade
estabelecida pelos mecanismos de mercado.
Por fim, vale destacar que, naturalmente, muitas das questões em jogo não
obedecem somente ao desdobramento dos posicionamentos aqui apresentados em cada
abordagem, mas ao conjunto das posições adotadas. Esperamos, porém, que as distinções e
semelhanças ajudem a separar o peso e as implicações de distintos argumentos no intuito de
facilitar o avanço das discussões em uma visão mais detalhada dos conceitos e práticas que
estão em jogo no debate dos agro(bio)combustíveis.
Referencial bibliográfico
12
ABRAMOVAY, Ricardo; MAGALHÃES, Reginaldo. O acesso dos agricultores familiares
aos mercados de biodiesel: parcerias entre grandes empresas e movimentos sociais. São
Paulo: FIPE, Junho. 2007. Disponível em: www.usp.br/feaecon/incs/download. Acesso
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as diferentes faces dos agro(bio)combustíveis