Por trás do banheiro do Papa: sonhos e desilusões na ótica humanizadora do cinema Wellington Ricardo Fioruci* RESUMO: Este artigo analisa o fi lme uruguaio El baño del papa (2007), dirigido por Enrique Fernández e César Charlone, cujo enredo projeta a distopia social dos “kileros” ou “bagayeros”, que vivem do trabalho informal de transportar bens de consumo do Brasil para a cidadezinha de Melo, no interior do Uruguai, reconstruindo ficcionalmente uma experiência histórica coletiva de desmoronamento de expectativas de trabalho na década de 1980, com o cancelamento da visita do Papa. Argumenta-se que há no discurso simbólico uma ressemantização crítica da realidade social latino-americana. Palavras-chave: Cinema. Crítica social. História. Kileros. O cinema sempre foi compreendido, sobretudo a partir dos fundamentos críticos pioneiros de Kracauer, como uma importante fonte de estudos para as representações histórico-sociais. Para o teórico alemão, o cinema suplantaria os demais meios de comunicação por sua natureza minuciosa: É claro que revistas populares e programas de rádio, best-sellers, anúncios, modismos na linguagem e outros produtos sedimentares da vida cultural de um povo também fornecem informações valiosas sobre atitudes predominantes, tendências internas difundidas. Mas o cinema excede a todas essas outras mídias (KRACAUER, 1988, p. 18). De acordo com o pensamento de Kracauer, de viés marxista, a câmera revelaria não apenas traços psicológicos particulares, mas sim a própria mentalidade coletiva de um povo. Mais tarde Deleuze, ainda na esteira das relações entre cinema e sociedade, chegará à conclusão de que o cinema nos apresenta o mundo em todas suas variações existenciais, definindo-o, pensando-o a partir de um nível fenomenológico: imagem e movimento como um único estatuto ontológico. Tendo como horizonte esta perspectiva, afirma o filósofo: “O olhar imaginário faz do real algo imaginário, ao mesmo tempo em que, por sua vez, se torna real e torna a nos dar realidade” (DELEUZE, 1990, p. 18). O discurso cinematográfico, a exemplo do literário, rematerializa a sociedade por meio de uma linguagem narrativa que tridimensionaliza a realidade por meio de efeitos óticos de movimento: “O cinema é uma representação de imagens em movimento, imagens que colocam em relação o real e o imaginário através de um mecanismo que permite uma dupla articulação da consciência, no qual o espectador percebe a ilusão, mas também o dinamismo da realidade” (CODATO, 2010, p. 53). Em uma sociedade dinâmica como a atual, regida pelo culto à linguagem visual, o cinema passa a assumir uma posição que já foi ocupada em outro momento pelo romance e pela imprensa escrita. A simbologia da imagem ocupa, neste contexto, papel significativo enquanto mecanismo de produção de sentidos. O cinema, compreendido para além da técnica e da indústria cultural que o permeia, recria na tela a sensação de revivificação da experiência: “A imagem em movimento relativiza o tempo histórico, dando-lhe um caráter atemporal. Ela torna-se um suporte que conecta o espectador ao tempo do filme, enfatizando o vivido e buscando, para significá-lo, elementos do simbólico” (CODATO, 2010, p. 53). O cinema, reconhecido como uma das vertentes mais “jovens” da arte e, em grande parte por tal motivo, mais questionável aos olhos críticos, é, em essência, também transfiguração da realidade. Nesse sentido, pode ser analisado pelo prisma hegeliano da linguagem artística, segundo o qual: Em sua mesma aparência, a arte deixa entrever algo que ultrapassa a aparência: o pensamento; ao passo que o mundo sensível e direto não só não é a revelação do pensamento implícito como ainda o dissimula numa acumulação de impurezas para que ele próprio se distinga e apareça como único representante do real e da verdade. Adestra-se em tornar inacessível o dentro que encerra o fora, isto é, na forma. Pelo contrário, em todas as suas representações, a arte põe-nos em presença de um princípio superior. Naquilo a que chamamos natura, mundo exterior, muito dificilmente o espírito se encontra, se reconhece (HEGEL, 1996, p. 41-42). Nesta perspectiva, na qual se exclui a mera organicidade do tempo histórico como conhecimento, ponto de vista tributário também do pensamento kantiano, o texto fílmico representa, ou melhor, apresenta-nos o tempo histórico como elaboração discursiva, a ponto de o historiador francês Marc Ferro, na década de sessenta do século passado, cunhar um binômio bastante expressivo: “CinemaHistória”, aparte ao já existente “Cinema e História”. Em sua abordagem inovadora, Ferro descortinava uma relação fundamental entre ambos os textos, criando uma referência para os novos historiadores: Na França, no campo da historiografia, este movimento [apologia da relação cinema-história] foi liderado por Marc Ferro, não por acaso, historiador da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, no bojo de um movimento científico e cultural que trazia, em alguma medida, os reflexos do movimento cinematográfico da Nouvelle Vague, que, junto com os outros movimentos que apareceram no pós-guerra [...] consolida definitivamente o cinema, já não mais apenas como fonte de divertimento, mas como expressão artística a mais completa (BARROS; NÓVOA, 2008, p. 25). Levando em consideração a perspectiva dos pressupostos de Ferro, o presente texto debruça-se sobre um material fílmico atual, com o intuito de articular relações críticas entre a sociedade latinoamericana e o cinema. Há poucos anos, em 2007, chegava aos cinemas uma obra com um título algo suspeito e curioso: O banheiro do papa (El baño del papa), dirigido em parceria pelos uruguaios Enrique Fernández e César Charlone, ambos neófitos no trabalho de direção. Contudo, ao contrário do que sugere o título, não se trata de obra cômica ou de deboche religioso. Tampouco se trata de um documentário afeito à corrente da história da vida privada. O filme, representante uruguaio no Oscar de 2008, concorrente à estatueta na categoria de Melhor filme estrangeiro, revela-se como um simples, mas nada simplório, exemplo de cinema ficcional a um só tempo crítico e humanizador. De forma geral, a produção é de baixo custo e utiliza, inclusive, em seu elenco, atores amadores da própria comunidade onde foi filmada a história. Com efeito, é sintomático da sensibilidade como é dirigida a película que nós espectadores não percebamos a diferença entre os atores profissionais e os amadores, afinal, Charlone e Fernández conseguem dirigir nosso olhar não apenas para o indivíduo, mas para o ser humano nele representado. Assim sendo, a história de Beto (protagonizada pelo IPOTESI, JUIZ DE FORA , v.16, n.1, p. 21-29, jan./jun. 2012 22 veterano ator César Troncoso) e de sua família (esposa e filha) conduzem-nos pelo roteiro, mas sem ofuscar o quadro maior do vilarejo no qual se inserem. O enredo é cativante e tem como ponto de partida a história de vida do próprio Fernández, nascido na cidadezinha de Melo, localizada no interior do Uruguai. O filme inicia com um texto no qual se lê em espanhol: “Los hechos de esta historia son en esencia reales y sólo el azar impidió que sucedieran como aquí se cuentan”. A partir de um processo de ficcionalização das memórias do diretor, os espectadores conhecem o trágico acontecimento que envolveu esta comunidade em 1988. Após ser anunciada pelo governo a visita do então Papa João Paulo II a Melo e, consequentemente, a vinda de turistas brasileiros, previamente calculada em torno de 40.000 a 60.000 pessoas, há um alvoroço por parte dos habitantes que sonham em melhorar de vida com a venda de comida e bebida a esses visitantes. A tragicidade reside em uma dupla armadilha do destino. O número de turistas que chegam das cidades brasileiras limítrofes é muito menor do que o previsto. Além disso, o evento dura muito pouco e, assim, o envolvimento destes estrangeiros com a comunidade é mínimo, não havendo o consumo esperado. Os sonhos construídos em torno da fantasia de consumo criada pela imprensa, constantemente alardeados pela televisão, vão se desmanchando e dando lugar a imagens de desilusão e desespero, afinal, aquelas pessoas não perderam apenas os recursos de toda uma vida na empreitada. Perderam, sobretudo, o que elas tinham de mais valioso: a esperança. O movimento da câmera, nesse sentido, como o olho narrativo a percorrer os poucos dias que separam o frenesi dos preparativos à frustração da derrocada, é substancial para sensibilizar o espectador. Sem trilha sonora ou grandes lances de enquadramento, vemos em uma sequência de planos curtos imagens de tristeza, rostos enrugados, bocas peladas, cuja função é revelar-nos o vazio dos olhares diante da inequívoca constatação de que lhes resta apenas a certeza da miséria. Essa força da imagem vem de um mecanismo que Walter Benjamin chamou de “inconsciente óptico”. Sem dúvida alguma, a câmera não é neutra, ela significa: A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. [...] Só a fotografia revela esse inconsciente óptico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional (BENJAMIN, 1985, p. 94). São notórias as críticas de Benjamin ao cinema como epígono daquilo que ele chamou de “era da reprodutibilidade técnica”. Mas a crítica e a teoria advindas de Benjamin e outros frankfurtianos deve ser pensada com cuidado, com o risco de não incorrermos em anacronismos. Em outras palavras, é preciso pensar que quase um século depois a leitura destes autores se transformou na mesma medida em que a sociedade e o cinema se transformaram. Vale, neste caso, a compreensão benjaminiana do poder que a imagem exerce sobre o espectador, não como técnica de alienação, mas sim como estratégia narrativa de sensibilização. Curiosamente, a reflexão benjaminiana a respeito do papel do historiador e do conceito de história poder-se-ia aplicar expressivamente para a leitura que o cinema faz do passado: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1994, p. 224). A partir da relação de espelhamento do cinema com a realidade fora da tela e as implicações destes jogos de espelhos na percepção do espectador, afirma Christian Metz: IPOTESI, JUIZ DE FORA , v.16, n.1, p. 21-29, jan./jun. 2012 23 Mas então com que é que se identifica o espectador durante a projeção do fi lme? É que ele tem mesmo de se identificar: a identificação na sua forma primeira deixou de ser para ele uma necessidade atual, mas no cinema - sob pena de o fi lme se tornar incompreensível [...] – continua a depender de um jogo identificatório permanente sem o qual não haveria vida social (METZ, 1980, p. 56). Metz lembra que esta “identificação contínua” do espectador com o ator se traduziria em uma espécie de “sentimento social” para Freud. Com efeito, o movimento de construção realizado pela câmera de Charlone e Fernández percorre um mundo visível, embora revele um universo invisível: mostra, por meio da concretude da imagem, os sentimentos encarnados na quimera já morta daqueles habitantes. Ao final da visita relâmpago papal, o retorno à realidade é mais cruel, pois agora a esperança está desfigurada, destruída pela certeza de um tempo presentificado pela impossibilidade da transcendência. Basicamente, este é o arco dramático que constitui a essência do filme. Visto desde uma macroperspectiva, temos delineada a ação narrativa que sintetiza a história da pequena cidade de Melo, isto é, dos preparativos que antecedem a chegada do Papa até o final de sua bênção coletiva e, por conseguinte, o retorno da população ao estágio anterior ao anúncio de sua chegada. De forma cíclica, poder-se-ia dizer, o final da narrativa encerra o retorno à condição primeira de estagnação, um beco sem saída social e econômico. Contudo, em uma perspectiva mais individual, acompanhamos a história de Beto e sua família, núcleo dramático que revela questões que transcendem a própria individualidade desta família. O protagonista está diretamente ligado à história dos demais habitantes, tão preso quanto estes a uma limitada condição social e econômica, imobilidade que é paradoxalmente poetizada no filme pelo sonho maior destes: a compra de uma motocicleta. Beto representa em sua idiossincrasia a história de um grupo populacional que vive de pequenos biscates, transportando bens de consumo de todos os tipos do Brasil para Melo, no Uruguai, onde serão vendidos a comerciantes locais. Eles são apelidados de “kileros” o “bagayeros”, por tal motivo, assim como no Brasil são denominadas “muambeiras” tais pessoas. Em ambos os casos, trata-se de um trabalho informal, de baixa remuneração e ilegal, devido a questões alfandegárias. É de certa forma uma crueldade etimológica pensar que a origem de “muamba” é africana e está relacionada à carga ou transporte dela, ou seja, remete-nos à própria escravidão. De fato, tanto no Brasil quanto no Uruguai esta atividade revela a falta de oportunidades trabalhistas dignas, muitas vezes dissimulada pela questão do subemprego, o qual tem como consequência não apenas o mascaramento da realidade social, mas, sobretudo, a exclusão. Estes cidadãos se veem entregues a um darwinismo econômico e acabam se submetendo a uma atividade que não lhes oferece qualquer garantia trabalhista ou social: não têm direito a um salário fi xo, segurodesemprego, assistência odontológica ou médica. Pior que isso, na grande maioria dos casos acabam sendo rebaixados a uma subclasse de cidadãos, já que exercem uma atividade muito próxima do crime e do baixo mundo da violência. No Brasil, o retrato deste tipo de trabalho informal, bastante ativo na fronteira entre Foz do Iguaçu (BR) e Ciudad del Este (PY), ganhou um pequeno espaço nas telas neste ano de 2011, no filme Família vende tudo (direção de Alain Fresnot). Contudo, apesar de um elenco notório, o filme não tem pretensões de debater o tema e tampouco consegue dar corpo a esta realidade. Já no filme uruguaio, embora também não seja o foco tal debate, ele surge com veemência aos olhos do público, menos pelo fato de o protagonista exercer, (sobre)viver (d)esta função, e sim por simbolizar a realidade daquela localidade esquecida pelos governantes. Nem todos os habitantes de Melo são “kileros”, mas quase IPOTESI, JUIZ DE FORA , v.16, n.1, p. 21-29, jan./jun. 2012 24 todos são vítimas da exclusão social e do isolamento político. Por isso, a anunciada visita do Papa à esquecida cidadezinha transforma-se na panaceia a alimentar o sonho geral. Dentro deste subsistema capitalista vivenciado pelos “kileros”, Beto (César Troncoso) e seus amigos estão relegados a um círculo inferior, já que são obrigados a realizar as travessias em sucateadas bicicletas, esforço cruel que lhes minora a saúde, como se vê nas dores sofridas pelo protagonista, motivo de angústia para sua esposa e filha. Neste mesmo subsistema, há poucos que realizam suas viagens de motocicleta. Estes, apesar de estarem inseridos no mesmo círculo subempregatício, representam ilusoriamente uma classe privilegiada aos olhos da maioria, representada pelo grupo de Beto. O cinema, como discurso artístico, não se limita a relatar o tempo histórico. A criticidade do discurso inerente à arte sustenta-se na reinvenção criativa e libertadora que emana de sua poeticidade: O artista é antes de mais nada um relator de seu tempo. Um relator privilegiado, que tem a condição de captar e transmitir aquilo que todos estão sentindo mas não conseguem materializar em discurso ou obra. [...] Cabe ao artista captar uma série de informações que estão no ar e codificar essas informações, através da arte, em mensagem para o público. Essa codificação não implica limitação, mas, isto sim, retransformação através de outros canais (COHEN, 2004, p. 87). O cinema é um destes canais privilegiados por meio dos quais o tempo histórico ganha outra percepção ao ser tocado pelo discurso mítico. Há uma cena no longa-metragem uruguaio que nos leva ao encontro desta leitura simbiótica entre arte e sociedade. Beto está andando em sua bicicleta, rodando sob o signo da esperança, neste caso ancorada na ideia que dá título ao filme. Ao contrário da maioria da população, ele não venderá comida ou bebida aos esperados turistas: o personagem construirá um banheiro e o alugará aos visitantes de Melo e, assim, espera arrecadar dinheiro para comprar uma moto. Imbuído deste sonho, do “banheiro do Papa”, ele abre o peito e respira fundo sobre a bicicleta, que se transforma em sua imaginação na moto desejada. No alto, sobre sua cabeça, pássaros voam livres e com rapidez pelo céu de baunilha. A câmera nos coloca, enquanto espectadores, tão próximos a Beto que parecemos tocar seus sonhos: a alegria do personagem é tocante em sua fragilidade humana. A euforia vivenciada pelo personagem, expressa de forma simbólica nesta cena, alude à euforia coletiva alimentada por toda a comunidade de Melo e que terá um final disfórico: os visitantes anunciados não virão. Uma das últimas cenas do filme, uma longa sequência entrecortada por diversos quadros nos quais vemos as barraquinhas de alimentos e bebidas às moscas, chancela a realidade daquela população, isto é, as esperanças de ascensão social e econômica via comércio não se concretizam. Ainda pior do que isso: muitos venderam o pouco que tinham para embarcar nas promessas de um futuro melhor. Neste quadro de distopia social projetado de forma crítica pela câmera, que não apenas narra, mas sim constrói sentidos, o papel ocupado pela mídia televisiva é sintomático do poder da imprensa na distorção do imaginário social. Durante a maior parte do filme, espaço temporal em que acompanhamos os preparativos para a chegada do Papa, um repórter aparece seguidamente entrevistando os cidadãos sobre suas expectativas. Contudo, fica claro que este profissional, mais do que colher depoimentos, conduz as entrevistas de forma a incentivar na população o sentimento de utopia econômica. Para tanto, divulga informações sobre um número inflado de visitantes a Melo, fomentando em cada entrevistado e telespectador uma esperança ilusória. Assim, em vez de buscar investigar as reais possibilidades econômicas desta visita, o repórter, arauto da mídia, investe no espetáculo da fantasia social sem nenhuma base crítica. IPOTESI, JUIZ DE FORA , v.16, n.1, p. 21-29, jan./jun. 2012 25 A crítica de Fernández e Charlone à imprensa fica ainda mais patente na escolha de inserir estas imagens das entrevistas a partir de fontes históricas: o cinema mostra-se, neste sentido, de cunho documental. Fernández e Charlone conectam a imagem documental e a imagem ficcional para dar corpo ao construto poético-crítico de seu filme: a arte liberta, mas também denuncia. As imagens em preto e branco montadas no corpo do filme formam um pastiche discursivo revelador da potencialidade da mídia em moldar o imaginário social. Neste sentido, a expressão “quarto poder” com a qual se caracteriza a mídia na atualidade vem ao encontro das intencionalidades da obra fílmica em questão. Cabe uma interferência teórica esclarecedora: o termo “quarto poder” teria sido criado pelo inglês Lord Macauly, por volta de 1828, e teria como função ser guardião dos cidadãos e também veículo de informações a alimentar nestes a consciência crítica, além de permitir-lhes um canal de manifestação público (IANONI, 2003). Contudo, em tempos de políticas casuístas e de mídias estreitamente vinculadas ao poder econômico e político, a questão que fica é quem protegerá o cidadão da imprensa, sobretudo televisiva, meio pelo qual a imagem torna-se um simulacro sedutor e perigoso: Em comparação com a imprensa da era liberal, os meios de comunicação de massa alcançaram, por um lado, uma extensão e uma eficácia incomparavelmente superiores e, com isso, a própria esfera pública se expandiu. Por outro lado, também foram cada vez mais desalojados dessa esfera e reinseridos na esfera, outrora privada, do intercâmbio de mercadorias; quanto maior se tornou a sua eficácia jornalístico-publicitária, tanto mais vulneráveis se tornaram à pressão de determinados interesses privados, seja individuais, seja coletivos. Enquanto antigamente a imprensa só podia intermediar e reforçar o raciocínio das pessoas privadas reunidas em um público, este passa agora, pelo contrário, a ser cunhado primeiro através dos meios de comunicação de massa (HABERMAS, 1984, p. 221). O poder desempenhado pela mídia televisiva no filme é representativo desta influência apontada por Habermas. Durante todo o filme percebemos o quanto as entrevistas conduzidas pelo repórter vão construindo uma falsa promessa de realização econômica, ilusão que se desfaz após a visita relâmpago do líder da Igreja Católica. Não se pode deixar, neste caso, de observar a crítica do filme também à Igreja, pois a aproximação entre esta e a imprensa não é fortuita, ao contrário, revela um desmascaramento das instituições que reforçam os estamentos sociais em vez de denunciá-los ou criticá-los. Trata-se em um e outro caso de variações de um discurso messiânico a mascarar as mazelas históricas da população. Um diálogo entre Carmen (Virginia Méndez), esposa de Beto, e sua vizinha revela a mão crítica dos diretores ao desmistificar o discurso religioso e denunciar o poder político: Carmen comenta: “¿Vas a hacer negocio con la visita del Papa? [...] me parece que Dios castiga estas cosas”, ao que a vizinha lhe responde com um sorriso maroto de indiferença: “Castigo? Castigo son los políticos que tenemos ahora”. Nada mais esclarecedor que tal comentário. Outra cena é bastante exemplar desta manipulação e associação discursiva: durante uma das muitas entrevistas em preto e branco recuperadas pelo filme, o repórter pergunta a alguns cidadãos sobre suas expectativas com a visita do Papa. Uma entrevistada diz que pensa vender “1.200 chorizos” com a visita papal e ainda acrescenta à pergunta do repórter sobre se teria dinheiro guardado “No, saqué un préstamo en el banco”. O repórter pergunta ainda com entusiasmo se o banco lhe cobrara uma garantia e a mulher diz que havia dado a própria casa como garantia. Sem manifestar preocupação com tal absurdo, o repórter apenas conclui “Muy bien. Pero no va a tener ningún problema para pagar IPOTESI, JUIZ DE FORA , v.16, n.1, p. 21-29, jan./jun. 2012 26 este préstamo, seguramente”. Após entrevistar alguns outros cidadãos imbuídos da mesma quimera, eis que o repórter se depara com um indivíduo que destoa dos demais em seu ceticismo, ao dizer que não venderá nada porque não crê que virá tanta gente. Com um movimento sintomático, o repórter desvia o foco da câmera para outro alucinado indivíduo e, assim, retorna ao círculo de opiniões ingênuas. Com efeito, a arte não se contenta em criticar ou revelar, ela também humaniza seus personagens e nos desvela sua complexidade. O filme coloca o espectador diante de uma interessante situação quando mostra o sonho da filha de Beto: ser repórter. A narrativa, assim, problematiza a fábula ao inverter a ótica crítica, já que coloca o indivíduo manipulado no encalço do mesmo espaço que o manipula. Obviamente, não se pode esperar que a garota adolescente, Silvia (Virginia Ruiz), questione seus próprios sonhos, afinal, a alienação sobre o papel da mídia é apenas mais um recurso dentre muitos a serviço das instituições a favor do poder. Sua certeza é de que não quer exercer a atividade do pai e seus vizinhos: “No soy y no voy a ser bagayera”. Não diz por menosprezo, conforme se depreende de sua preocupação com o pai, mas por saber da exploração que tal atividade representa. Eis sua fragilidade como indivíduo, e, mutatis mutandis, do espectador. Caberá a este durante o processo de fruição elaborar tais questões. O cinema apresenta, não dá a resposta. A câmera contribui neste processo de fruição com outra cena bastante singular do filme, momento em que a garota recita diante de uma câmera imaginária e um microfone de mentira trechos do poema da escritora Juana de Ibarbourou, “La higuera”. Uruguaia como Silvia e também vítima de seu tempo (no caso da escritora, pelo fato de ser mulher em uma sociedade preconceituosa; e, no de Silvia, pela pobreza e, consequentemente, as limitações impostas ao seu sonho), o eu lírico no texto descreve a figueira como se falasse de si próprio: “Porque es áspera y fea / porque todas sus ramas son grises / yo le tengo piedad a la higuera”. A cena é tocante e também ricamente discursiva. É quase impossível não se identificar com a garota tartamudeando em frente de sua câmera imaginária. Por outro lado, o espectador se coloca diante do texto expressivo de Ibarbouru e, ainda que este seja um interlocutor superficial, compreenderá a correlação entre a descrição da figueira e de Silvia. A breve cena encerra-se de forma magistral e pungente. Silvia conclui seu recital privado com um sorriso no rosto: “Ciruelos redondos / limoneros rectos / todos lustrosos”. Sua alegria é porque concluiu a fala com a segurança de um repórter profissional ou porque no final seu quintal dá frutos lustrosos? A arte liberta pelo olho mágico da câmera. Outro intertexto que é aproveitado no filme como discurso revelador e simbólico é a letra e a música “Camino de los quileros”, de Osiris Castillo: “Hay un camino en mi tierra del pobre que va por pan / camino de los quileros / por la sierra de Aceguá / Tal vez, sin ser tan baqueano / cualquiera lo ha de encontrar / pues tiene el pecho de piedra pero el corazón de pan”. A música evidencia a realidade dos trabalhadores “bagayeros” ou “quileros”, mas não apenas mostra, ela redimensiona sua realidade com a expressiva construção poética: “pecho de piedra pero el corazón de pan”. A câmera de Fernández e Charlone nos apresenta em várias tomadas o dia a dia desses trabalhadores debaixo de chuva e sol a enfrentar com bravura, com peito de pedra, a condição subumana e perigosa entre as fronteiras para buscar o pão. Seu coração é de pão, pois é vida: o alimento de seus espíritos. A busca pelo pão, pelo alimento, pela sobrevivência é a esperança que lhes resta e os mantêm vivos. Contudo, não bastasse a adversidade do tempo, da falta de recursos, de instrução, das mínimas condições de igualdade com que estes trabalhadores enfrentam seu cotidiano, há ainda a figura da lei plasmada no fiscal Meleyo (Nelson Lence), que oprime os trabalhadores aproveitando-se da informalidade na qual eles exercem as atividades de “kileros”. A informalidade reveste-se, assim, de ilegalidade, e serve IPOTESI, JUIZ DE FORA , v.16, n.1, p. 21-29, jan./jun. 2012 27 muito bem ao propósito do abuso de poder, cartão de visita da humilhação sofrida pelos trabalhadores, como na cena em que Valvulina (Mario Silva) é ofendido por Meleyo quando capturado. A certa altura do filme, Beto é impelido pela pressão econômica e social a trabalhar para o hipócrita Meleyo, que lhe concede regalias em troca de serviços pessoais. Estes serviços de transporte serão os mesmos pelos quais o fiscal aduaneiro persegue os trabalhadores, mas que em seu benefício são permitidos. A corrupção termina quando Beto é desmascarado pela filha em frente à esposa. A cena é significativa: o homem se cala diante de sua culpa e assim permanece à mesa por horas. A catarse do personagem é também a catarse do espectador, afinal, espelha-se no semblante ferido de Beto a própria fragilidade humana do leitor fílmico. O espectador identifica-se com a natureza frágil do personagem e reconhece na sua história casos tão similares em seu cotidiano. À diferença, contudo, do dia a dia, o personagem se culpa pelo erro e a “traição social”, algo que funciona quase como uma licença poética quando se observa a realidade fora das telas. Em definitivo, El baño del Papa é um filme essencialmente sobre sonhos, sobre a esperança humana em meio a um tempo de desesperança. Em entrevista a BBC Mundo, Charlone afirma que: No sé si es de frustraciones, creo que más bien es de sueños, la idea es que los personajes sueñan con cosas mejores. Todos los personajes, hasta el propio periodista de esa prensa medio dudosa, él también sueña en mejorar su vida, en mejorar su profesión, todos sueñan. Es una película sobre la necesidad que tenemos todos de tener algun sueño para seguir adelante, principalmente en América Latina (CHARLONE, 2007). Apesar de a força do filme residir na reconstrução dos sonhos e das esperanças de uma pequena cidade à espera de dias melhores, o fato é que a narrativa nos impregna de uma conscientização das limitações impostas pela realidade do século XX. Parafraseando o grande escritor tcheco, há esperança, mas não para nós. É uma nota ambivalente à do filme, isto é, devemos seguir lutando e, assim, mantermo-nos vivos, mas isso não nos garantirá a realização de nossos ideais, não enquanto sistemas injustos de organização política, econômica e social continuarem existindo. Outro olhar revelador do filme remete-nos ao poder dos discursos mascaradores: Igreja e mídia nada mais fazem que alimentar esperanças, em vez de nos libertarem das falsas promessas. A alienação social pode lhes servir melhor do que mentes críticas. O filme parece recuperar, neste sentido, com sua linguagem leve e a um só tempo densa e reflexiva, os clássicos do cinema neorrealista italiano, como as películas de Ugo Tognazzi e Nino Manfredi, nas quais se desvelavam as histórias de pessoas humildes, vítimas do destino inescapável. Ao final, a película uruguaia nos faz pensar sobre nós mesmos e o papel social que nos cabe em um mundo no qual ainda prevalecem sistemas de exclusão e mascaramento social. A câmera poéticodocumental nos dá condições para que possamos ver a América Latina com olhos livres, para que enxerguemos a realidade com os olhos em estado selvagem. Behind El baño del papa: dreams and disillusions through the humanizing lens of cinema ABSTRACT: This article analyses the Uruguayan film El baño del papa (2007), directed by Enrique Fernández and César Charlone, whose plot projects the social dystopia of the “kileros” ou “bagayeros”, who live on the informal work of carrying IPOTESI, JUIZ DE FORA , v.16, n.1, p. 21-29, jan./jun. 2012 28 consumers goods from Brazil to the small town of Melo, in the interior of Uruguay, while reconstructing the collective historical experience of the collapse of work expectations in the 1980s with the cancellation of the Pope’s visit. It argues that the symbolic discourse critically ressemantises Latin American social reality. Keywords: Cinema. Social criticism. History. Kileros. Nota explicativa * Professor Doutor do Departamento de Letras da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Campus Pato Branco. Referências BARROS, José D’Assunção; NÓVOA, Jorge (Org.). Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. 326 p. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. 253 p. CHARLONE, César. César Charlone: maestro de la luz. Entrevista a BBC Mundo. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/misc/newsid_7069000/7069264.stm>. Acesso em: 21 set. 2011. CODATO, Henrique. Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis. Revista Verso e reverso, Unisinos, v. 24, n. 55, p. 47-56, jan./abr. 2010. Disponível em: <http://www.unisinos.br/ revistas/index.php/versoereverso/article/view/44/8>. Acesso em: 12 jul. 2011. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. 184 p. DELEUZE, Gilles. Cinema2: imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990. 338 p. HABERMAS, Jürgen. 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