METODISMO:
RELEITURA LATINO-AMERICANA
José Miguez Bonino
Co-edição:
Editora UNIMEP
Faculdade de Teologia (Editeo)
Publicação de 1883
Tradução: Adesses Antônio Oliveira Araújo
OBS: O presente livro é resultado de Conferências proferidas na Semana
Wesleyana em maio de 1882 na Faculdade de Teologia-SP.
I CAPÍTULO
FOI O METODISMO UM MOVIMENTO LIBERTADOR?
Quem somos, como cristãos evangélicos metodistas na América Latina? Afinal de
contas, é importante tal pergunta? Não é suficiente identificarmo-nos como “cristãos
latino-americanos”?
A pergunta não é apenas retórica. Tem, ao contrário, dois aspectos importantes.
Um tem a ver com a urgência das situações que enfrentamos em nosso continente:
enquanto são assassinados dezenas de milhares de camponeses, indígenas e jovens;
enquanto governos ditatoriais condenam milhões à miséria e à fome com seus planos
econômicos , enquanto o ferrolho dos interesses multinacionais se fecha sobre o futuro
de nossos povos, tem sentido determo-nos a investigar história e tradições do século
XVI, ainda que para legitimar nossas lutas do presente? Seria necessária ou útil tal
legitimação? Não nos basta o questionamento do Evangelho e a urgência da situação?
O outro tem que ver com a nossa verdadeira identidade de “metodistas” latinoamericanos. Existe, realmente, uma tal identidade que nos distinga como metodistas?
Não será artificial a tentativa de reconhecermo-nos em modelos de supostos
antepassados com os quais não temos quase nenhuma vinculação? Mais do que buscar
uma linhagem histórica na Inglaterra dos Lordes, não estaremos sendo chamados para
nos identificarmos plenamente com a realidade atual de nosso povo?
Em principio, creio que as duas observações são corretas. A investigação de nossa
“herança metodista” – como costumamos chama-la – não pode ser nem nossa primeira
propriedade nem nossa lealdade derradeira. Nossa identidade não se forja
primeiramente numa identificação com o passado, mas na realização de tarefas
presentes e no compromisso com um projeto histórico.
Entretanto – e aqui começamos com uma resposta positiva – tão pouco se forja
“sem”o passado. “Há momentos na história das pessoas e dos povos, particularmente
em tempos de crises”, escreveu John Mackay em 1943, “quando a memória do ontem
abre um caminho para o amanhã, quando o despertar de um sentido de herança se
converte em poderoso determinante de um destino” (1). Pode o passado wesleyano, a
herança histórica metodista, ter para nós essa significação? Essa pergunta mereceria
uma resposta mais profunda e documentada do que a que posso tentar aqui (*). Mas
gostaria ao menos de fazer três colocações a respeito.
A primeira é que nossa identidade como metodistas latino-americanos está, de fato,
só muito indiretamente vinculada com a gênese do wesleyanismo, devido à mediação da
experiência histórica norte-americana. Ainda que ela nos transmita a tradição teológica
de Wesley, o faz seletivamente, conforme as ênfases que se desenvolveram no
metodismo norte-americano e muito particularmente na “fronteira”, onde o metodismo
realizou uma verdadeira epopéia pastoral e evangelizadora que o marcou em sua
organização, em suas modalidades teológicas e litúrgicas e sobre tudo em seu “ethos”
cultural. Basta visitar a congregação ou uma assembléia metodista britânica e outra
americana para notar a grande diferença.
Com raras exceções (ou em pequenos grupos com clara consciência histórica) o
metodismo norte-americano é a matriz do nosso metodismo. Necessariamente, pois –
como noutros casos- uma volta ad fontes provoca uma certa crise em nossa identidade
atual.
A segunda observação me parece ainda mais significativa e se refere ao nosso
ingresso na vida latino-americana ocorrido especialmente no último quarto de século
passado. Historicamente, isso acontece com o projeto “civilizador” ou “modernizante”
de nossas elites liberais. Reconhece-se o protestantismo como portador, no plano
religioso, dessa modernidade – liberdade, democracia, cultura, ciência – a que se aspira.
É a religião da transição da sociedade tradicional para a moderna. E o protestantismo
assume essa identidade, não só por atribuição, mas também por convicção. Tanto as
propostas das sociedades missionárias como os concílios evangélicos latino-americanos
são fartos em afirmações da missão evangélica que coincidem inteiramente com o
projeto liberal modernizador (2).
Aqui começa-se a notar uma relevância desta história devido ao entrelaçamento de
duas circunstâncias –sobre as quais trataremos mais adiante.
A primeira é que a história original do metodismo situa-se, precisamente, num
momento crucial de passagem da sociedade inglesa para o mundo novo: a revolução
industrial. Qual foi o papel do metodismo nessa transformação constitui-se numa
pergunta significativa em relação com nossa própria história metodista latinoamericana.
A segunda circunstância é a atual crise (por certo surgida já há algum tempo) desse
projeto em nosso continente. Que significam nossas origens, tanto na Inglaterra do
éculo XVIII como na América Latina do século XIX, para nossa missão numa
conjuntura histórica em que se faz necessário superar esse projeto e buscar uma nova
configuração de nossa sociedade?
A observação anterior força uma terceira consideração: É possível e necessária uma
releitura de nossa tradição (tanto original quanto latino-americana) a fim de poder
participar significativamente nessa busca de um novo horizonte histórico para nossos
povos? A História – desde a própria história bíblica – nos mostra a importância de tais
releituras, mediante as quais uma experiência história significativa descobre, numa
conjuntura nova, uma “reserva de sentido” e põe em movimento um grupo humano,
servindo de inspiração e estímulo para um novo projeto histórico.
Esta observação nos mostra a ambigüidade da tarefa que enfrentamos nestes dias.
Ou pode ser um retrocesso ao passado em busca de uma identidade que nos permita
resistir às mudanças e perplexidades do presente, uma memória que nos livre de criar
um projeto, ou pode ser um chamado a uma re-interpretação da história que nos
desbloqueie e nos permita participar nessas mudanças, uma memória que evoque um
chamado e uma missão.
Que boa parte do confessionalismo que renasce com vigor em nossa época pertence
ao primeiro caso parece muito evidente. Corremos um grave perigo de sermos
incorporados nessa dinâmica. Por isso só podemos empreender essa empreitada com
extrema cautela e modéstia, com um profundo sentido crítico, criando as defesas
necessárias para evitar desvios que levam, necessariamente, ao isolamento e à
esterilidade.
Dentro destes parâmetros, buscaremos alguns pontos de partida para a tal re-leitura.
Um trabalho mais aprofundado exigiria uma visão histórica e uma análise teológica não
só do metodismo wesleyano original como também de sua evolução posterior nos
Estados Unidos e seu estabelecimento em nosso continente. Durante estes dias nos
limitaremos ao primeiro ponto; algumas investigações, certamente bastante superficiais,
na gênese do metodismo britânico e mais particularmente em João Wesley mesmo.
O tema se presta a vários enfoques. Um seria sócio-histórico: Que representou o
metodismo para a sociedade britânica do século XVIII e começos do século XIX?
Procurar-se-ia ver em tal caso as relações mútuas entre a sociedade e a igreja, como fez,
por exemplo Ernest Troeltsch em sua obra monumental (3). Nesse campo há numerosos
trabalhos – embora freqüentemente com hipóteses e resultados diferentes (4). Só muito
de leve tocaremos neste aspecto na primeira apresentação.
Um segundo enfoque poderia ser através da “doutrina social” de Wesley – seu
conceito da sociedade, do trabalho, da propriedade, do Estado. Também aqui há muito
material que só utilizaremos ocasionalmente.
Finalmente, permanece a possibilidade de nos questionarmos sobre o significado, a
nível sócio-histórico, da própria doutrina e religiosidade wesleyana, à semelhança da
tentativa de Max Weber de detectar a influência da doutrina e piedade calvinistapuritana no desenvolvimento do capitalismo. É nesse campo – particularmente no que
se refere à conversão, à santificação e à eclesiologia – que pretendemos nos deter mais.
Noutras palavras, nos perguntamos não somente qual é o conteúdo conceptual da
teologia wesleyana, mas também qual é o “ethos” que reflete e impulsiona,
especialmente no que tem de mais original e próprio.
A PREOCUPAÇAO SOCIAL DE WESLEY
A relação de Wesley e seu movimento com a vida social e política da Grã-Bretanha
tem sido e continua sendo objeto de apaixonada discussão. O que dificilmente se
poderia discutir, entretanto, é o evidente interesse de Wesley pelos problemas sociais da
sua época, tanto a partir das condições deploráveis que suas constantes viagens lhe dão
ampla oportunidade de comprovar e que descreve com realismo e paixão, como em
relação aos ideais morais que considera implícitos em suas convicções religiosas.
Não é de se estranhar que, numa concepção decididamente ativa da fé como a que
caracteriza Wesley, a preocupação pela condição das pessoas o tenha impulsionado a
criar de formas concretas de ação social. Assim, como diz Madron, citando a Sherwin:
“A velha fundição de Londres, por exemplo, transformou-se num verdadeiro
crisol de projetos – casa de misericórdia para viúvas, escola para meninos,
dispensário para enfermos, bolsa de trabalho e agência de emprego, cooperativa de
crédito e agência de empréstimo, sala de leitura e igreja” (5)
A coleta de fundos e sua distribuição entre as pessoas necessitadas é uma atividade
regular nas sociedades wesleyanas. E a preocupação não se limita aos integrantes das
mesmas. Ao contrário, inclui especificamente uma organização (Straugers’ Friend
Society) “totalmente para assistência, não de nossa sociedade, mas de pobres, enfermos
e solitários alheios a ela” (6).
Sua análise da crise social de seu país – que retomaremos em seguida – o leva a ver
o desemprego como a raiz da miséria. Por isso desenvolve uma série de projetos
destinados a criar fontes de trabalho e inclusive a capacitar as pessoas para melhor se
desempenharem nele. (7)
Também, não falta em Wesley a nota profética relativa aos graves problemas da
nascente sociedade industrial. Destacamos dois deles como amostra. O primeiro é a
pobreza, a respeito da qual Wesley se manifesta frequentemente, de modo particular em
seu tratado “Thoughts on The Present Scarcity of Previsions” (Works, 11/53ss): Ali,
Wesley não se limita a comprovar a terrível situação em que muita gente se encontra,
senão que rechaça as explicações tradicionais da pobreza como destino ou como
conseqüência de preguiça ou vício.
Tais explicações, diz ele, são “perversas e diabolicamente falsas”. Denuncia a
privatização da propriedade (“enclousure laws”) que deixa milhares de camponeses sem
terra. Critica a avareza que busca prosperar a qualquer preço. Por isso lhe preocupa a
situação dos metodistas que prosperam economicamente e correm o risco de “por seu
coração” nas riquezas. Sobretudo denuncia os lucros obtidos de negócios em que o
homem é aviltado, como venda de bebidas alcoólicas e outros nos quais é explorado,
como a usura, as casas de penhores, os preços exorbitantes e uma concorrência desleal
pela qual cada um “procura arruinar o negócio do próximo para fazer prosperar o seu”.
Nenhuma forma de exploração provoca tão radicalmente sua condenação como o
tráfico de escravos. Seus “Thoughts upon Slavery” (Works, 11pp. 59-79) tiveram uma
ampla circulação e influência. Neles denuncia “a execrável soma de todas as vilanias
que se chama habitualmente o comércio de escravos” (Journal, 5, pp. 445-446). Uma
vilania cuja raiz econômica não é difícil de descobrir:
“É vosso dinheiro que paga o traficante, e por meio dele o capitão do navio e os
carniceiros africanos. Vós sois, portanto, culpáveis, sim, principalmente culpáveis
por todas essas fraudes, espoliações e assassinatos. Vós sois a mola que põe todo o
resto em movimento; eles não moveriam um dedo sem vós; portanto, o sangue de
todos eles... cai sobre vossas cabeças” (8).
Em nenhum dos casos, porém, vê Wesley o caráter estrutural dos males que
denuncia. Na obra que mencionamos anteriormente sobre a pobreza, Wesley faz uma
descrição sombria – que às vezes nos recorda a descrição de “a condição da classe
operária na Inglaterra em 1844” de Engels, quase um século mais tarde. Mais ainda,
trata de analisar a situação, de buscar dados (estatísticas, preços, condições de mercado),
coisa nada comum para um líder religioso.
Entretanto, quando tenta achar as causas e s remédios, fica totalmente dentro das
premissas do sistema mercantilista, totalmente alheio às causas estruturais da crise. É
totalmente incapaz de ver nela as dores de parto de um novo modelo de produção e de
uma nova organização da sociedade e consequentemente não atenta para o fato de que a
pobreza que descreve e denuncia como “compra e venda de sangue e carne” é o
sacrifício inevitável que os deuses da nova ordem exigem.
Seria absurdo culpar a Wesley por essa falha. Nesse tempo Adam Smith trabalhava
em sua “Riqueza das Nações”, que apareceria três anos depois. David Ricardo nascera
no ano anterior. Porém, a classe social que pagaria o custo inicial da riqueza das nações
(imperiais) começava a formar-se. Alguns dessa classe ingressaram nas sociedades de
Wesley; outros foram indiretamente influenciados por seu movimento; o fator religioso
chegaria a ser elemento integrante de suas consciências; alguns dos líderes da classe
seriam moldados por esse fator. E o fato de o metodismo ter sido incapaz de lhes
descobrir a realidade de sua condição como classe social tem que ser levado em conta
ao avaliar o peso social do movimento.
AS IDÉIAS SOCIAIS DE WESLEY
Diversos autores têm destacado que a preocupação de Wesley pela problemática
social não se esgota em iniciativas assistenciais ou filantrópicas, mas tenta uma reflexão
teológica derivando dela certas conseqüências concretas.
Thomas Madron, por exemplo, examina as premissas teológicas do conceito
wesleyano de “propriedade”. Aqui, a posição de Wesley se enquadra numa antiga
tradição cristã, que ele formula quase nos mesmos termos de Agostinho: tudo pertence a
Deus, único legítimo “titular” de toda propriedade. Há, concomitantemente, um direito,
concedido por Deus aos homens, de apropriação de bens, sempre que cumpram duas
condições: que sejam adquiridos legitimamente e que sejam empregados corretamente.
Quem não procede assim, perde esse direito – não é, portanto, um direito inalienável.
Wesley, entretanto, aprece avançar sobre estas afirmações tradicionais, pelo menos
em três sentidos.
Em primeiro lugar, baseando-se na idéia – também tradicional – de uma
“propriedade comum” como a ideal, como aconteceu na igreja primitiva, aspira a que as
sociedades metodistas possam vir a praticar uma comunhão de bens. Já na primeira
Conferência Anual (1744), ao estabelecer algumas regras práticas para aliviar a situação
dos mais necessitados, aponta nessa direção: “Até que tenhamos todas as coisas em
comum, cada membro trará, uma vez por semana, honestamente, tudo que possa para
um fundo comum” (9).
As três famosas regras – ganhar tudo que puder, economizar tudo que puder, dar
tudo que puder – adotadas mais tarde seriam, segundo Madron, “um compromisso,
desenvolvido depois de 1744, entre o que Wesley considerava um ideal e o que
aparentemente era possível”, devido à oposição que o ideal do comunismo primitivo
encontrava entre alguns. A terceira das regras, pois, a de “dar tudo que puder” deve ser
considerada a chave hermenêutica da totalidade (10).
Por outro lado, diferentemente de seu compatriota e contemporâneo Locke, Wesley
rechaça a idéia de uma propriedade privada “absoluta” e considera que a comunidade
mantém um direito sobre a propriedade individual. A força da idéia da propriedade
como uma “administração” concedida por Deus se estende à de uma propriedade social
no uso da propriedade. Isto o leva, finalmente, a admitir e até a reclamar uma
intervenção do Estado em questões da ordem econômica, principalmente quanto à
regulamentação das “enclousure laws” que estavam permitindo o monopólio das terras
comuns que eram agora privatizadas. Inclusive, propõe medidas como a limitação do
preço do arrendamento da terra.
A evidência alegada por Madron e outros pareceria reforçar a afirmação de que
Wesley não compartilha da ideologia liberal que John Locke, Adam Smith e outros iam
definindo com precisão cada vez maior. Mas essa divergência de percepção ocorre das
falhas sociais do liberalismo econômico? Representa verdadeiramente uma crítica
profética à ordem econômica emergente? Ou se trata de uma reação “conservadora” que
considera que as idéias liberais subvertem uma ordem divina e imutável que se
identifica com as estruturas políticas e econômicas tradicionais?
Não é nosso propósito esclarecer essa questão, pois nos parece, do nosso ponto de
vista, que não é a mais importante. De fato, como no caso dos reformadores do século
XVI, não nos importa saber se suas idéias representavam a modernidade que nasce ou
os restos do mundo medieval que agoniza, mas determinar qual foi o peso histórico dos
movimentos a quem deram origem. Mais do que a preocupação por uma clara
identificação das idéias sociais de Wesley, devemos perguntar-nos agora pelos efeitos
reais do metodismo na sociedade de sua época.
OS EFEITOS DO METODISMO
Qual foi a importância e o rumo das conseqüências sociais do despertar metodista na
sociedade inglesa, continua sendo uma questão disputada. Parece-me, entretanto, que
quando olhamos o desenvolvimento em seu conjunto, da época de Wesley até à
consolidação do movimento e sua expansão interna e externa durante as primeiras
décadas do século XIX, e no contexto do desenvolvimento da sociedade e do império
britânicos, justifica-se a tese que Bernard Semmel resumiu da seguinte maneira:
“A sociedade moderna necessita da transformação de amplas camadas
populacionais, de uma passividade inerte que caracteriza seu estado na sociedade
tradicional para outro em que as personalidades sejam suficientemente fortes e lhes
permita emergir de um estado de subordinação para outro de relativa independência...
No século XVIII, a Inglaterra mostrou-se capaz de realizar essa transformação de
forma relativamente pacífica... Eu gostaria de investigar como o caráter específico do
‘homem novo’ concebido e em certa medida criado pelo arminianismo evangélico de
Wesley, poderia ter cooperado – é tudo o que podemos dizer com segurança – para
estender uma ponte entre as ordens tradicional e moderna sem convulsões tumultuosas,
ao mesmo tempo que promoviam os ideais que seriam mais úteis à nova sociedade”
(12)
Na origem desta posição se acha a conhecida tese do historiador francês Elie Halévy
(1870-1938) que em sua História do povo Inglês no século XVIII sustentou que a
Inglaterra foi poupada da revolução a que as contradições de sua política e economia
poderiam ter conduzido pela influência estabilizadora da religião evangélica,
particularmente o metodismo. Tal “milagre” se teria operado pela doutrina e disciplina
metodistas que infundiram nos líderes do proletariado e na pequena burguesia
emergentes uma inclinação para a ordem, contra a violência e a favor do gradualismo. A
propósito, tem sido destacada muitas vezes a importância da presença de lideres de
classe e pregadores leigos metodistas na liderança sindical inglesa.
Semmell aprofunda a análise em dois sentidos. Primeiramente, ao concentrar a
influência da religiosidade metodista não tanto em determinadas virtudes, mas na
conformação de uma personalidade básica que corresponde às demandas do mundo
moderno. Em segundo lugar, ao mostrar como, posteriormente, o movimento metodista
integrou-se na sociedade imperial britânica, canalizando para a expansão missionária as
energias de um importante setor da população. Ainda que seja possível fazer-se diversas
correções nestas análises, parece justificado afirmar-se que, a nível simbólico da
ideologia (religiosa), a orientação ética e as formas de expressão, o despertar metodista
parece ter cumprido um papel significativo nas novas relações políticas e sociais que
emergiam na Grã-Bretanha com a consolidação de um novo modo de produção.
Historicamente, o metodismo parece ter servido para incorporar setores significativos
do proletariado britânico que surgia à ideologia liberal burguesa, o que garantiu a
consolidação do sistema capitalista e reforçou sua expansão imperialista.
Na medida em que esta hipótese – embora com qualidade e restrições – deva ser
considerada válida, volta a colocar-se para nós a temática que assinalávamos no
começo. Já que pareceria, depois de um século, que o metodismo latino-americano
(junto com outras igrejas evangélicas) cumpriu, dentro de suas limitações, um papel
semelhante no esforço de transição de nossas sociedades da sociedade tradicional para a
moderna. É este um caráter inerente à natureza do metodismo? É uma conseqüência
implícita em sua doutrina? Está a teologia, a piedade, a “ideologia religiosa” metodista
forçosamente vinculada à ideologia e ao projeto liberal? Por quê e de que modo? É
concebível uma releitura dessa tradição? Há uma potencialidade distinta na doutrina e
na piedade metodistas?
Estas são perguntas necessárias para a compreensão da nossa missão no mundo de
hoje. E nos obrigam a ler cuidadosa e contextualmente (primeiramente em seu próprio
contexto histórico e depois no nosso) as linhas teológicas e de piedade desenvolvidas no
movimento metodista original. Entretanto, essa questão não deve constituir-se num
esforço reivindicatório. Devemos partir de um movimento reivindicatório. Devemos
partir de um reconhecimento da ambigüidade, tanto do movimento metodista original
como de nossas igrejas. Só num sentido limitado, no que diz respeito à transição para a
sociedade moderna, pode o metodismo original ser considerado um movimento
libertador. E é nessa mesma perspectiva que devemos considerar nossa própria história
na América Latina. Só quando admitimos esta realidade e nos despojamos de toda
tentativa de glorificar nosso passado podemos voltar-nos para a tarefa de refletir sobre
nossa herança teológica com uma consciência tranqüila e com perspectivas de utilidade.
É o que trataremos de fazer a seguir.
NOTAS
(*) O presente artigo e o presente livro é resultado de conferencias proferidas na
Semana Wesleyana de 1982, na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista no Brasil.
Daí a razão porque o autor se declara sem condições de aprofundar uma resposta
documentada (Nota do Tradutor)
1) Heritage and Destiny (New York, Macmillam Co, 1943), p.l.
2) Poder-se-ia mostrar como essa relação não só externa senão que corresponde à
própria mensagem e à religiosidade que esta evangelização propaga. Para um
desenvolvimento maior desta idéia veja-se o meu artigo “História e Missão”, em
Protestantismo e Liberalismo na América Latina (São José, SBL-DEI, 19 3 1983).
3) Die Soziallehren der Christlichen Kirthen und Gruppen (Tubingen, 1923).
Ver sobretudo as observações metodológicas no começo, ampliadas em seus
ensaios sobre sociologia religiosa.
4) Uma bibliografia inicial sobre o tema aparece no livro editado por Theodore
Runyon, Sanctification and Liberation (Nashville, Abingdon Press, 1981, pp. 245-251).
5) Thomas W. Madron, “John Wesley on Economics” em Theodore Runyon (ed.),
Sanctification and Liberation, p. 113.
Para uma descrição ampla destes diversos projetos, ver Eric Mc Coy North, Early
Methodist Philantropy (New York, Methodist Book Concern, 1914).
6) Journal (London, Epworth Press, 1916, Vol. 8, p. 49).
7) Oscar Sherwin, John Wesley, Friend of People (New York, Twayne Publisher,
1961, p. 132).
8) Toda esta seção mereceria uma leitura cuidadosa para ver como Wesley rechaça
uma a uma todas as desculpas – que se trata de uma necessidade econômica, que
proporciona ais africanos os benefícios da civilização. Especialmente rechaça a piedade
com que os escravocratas pretendem encobrir sua ação.
9) The Bennet Minutes of The First Conference, em Richard M. Cameron,
Methodism and Society in Historical Pespective (New York, Abington Press, 1961), pp.
69-70, citado por Madron op. cit. p. 108.
10) Ibid. p. 109, Madron cita várias evidências de que Wesley nunca abandonou
totalmente a idéia de uma comunhão de bens, a tal ponto que Thomas Coke viu-se
obrigado, logo após a morte de Wesley, a fazer uma declaração oficial negando que tal
idéia formara parte da doutrina metodista. Fundamentado nisso, Madron argumenta
contra a inclusão de Wesley na “ética puritana” ligada ao desenvolvimento do
capitalismo na famosa tese de Max Weber. Aqui seria necessário distinguir entre uma
intencionalidade de Wesley e a efetiva operação do metodismo neste campo.
O desenvolvimento posterior, que Madron mesmo documenta, tende a mostrar que,
independente da opinião do fundador, o metodismo se situou na linha que Max Weber
lhe atribuiu.
11) Esta é a tese defendida por John Kent em “Methodism and Social Change in
Britain”, na mencionada obra Santificação e Libertação, pp. 63ss.
Ainda que eu não compartilhe de algumas das colocações do autor, creio que sua
observação sobre as concepções sociais de Wesley são basicamente corretas.
12) Bernard Semmel, The Methodist Resolution (New York, BAsic Books, 1973),
pp. 8-9 (o grifo final é nosso).
II CAPÍTULO
CONVERSÃO, HOMEM NOVO E COMPROMISSO
Uma das questões teológicas que surge, inevitavelmente, em nosso propósito latinoamericano de assumir, segundo a nossa fé, um compromisso com a história de nosso
povo, é a antiga pergunta sobre a relação entre a ação de Deus – seus efeitos salvíficos –
e nossas ações, projetos, ideologia e conflitos humanos.
Se a fé tem de ser vivida na história, como história, não podemos imaginar um
sujeito humano “transcendental” que se relacione com Deus separadamente do sujeito
humano histórico que atua no plano temporal. Nem podemos imaginar uma ação
transcendental de Deus que opera na história fora de, ou nos vazios da corrente de
processos que os seres humanos são sujeitos.
A teologia protestante tradicional tem estado, tão preocupada em evitar qualquer
“titanismo”, qualquer tentação de sacralizar a obra humana à custa da transcendência
divina, que nos parece correr o risco de esvaziar a ação humana de qualquer significado
teológico. A referência a Deus só opera relativizando, limitando todo processo humano,
restringindo o significado de toda ação humana ao campo do penúltimo e, portanto,
explícita, ou implicitamente ao dispensável, ao opcional ou ao menos, em última
palavra, ao não significativo.
Na história do Protestantismo, parece-me que Wesley aporta um elemento novo em
sua doutrina e prática da conversão e santificação. A viva discussão a respeito tem
girado habitualmente em torno da pergunta se Wesley foi verdadeiramente protestante
ou se sua doutrina da graça e santificação está “eivada”de catolicismo. Assim, creio que
o tema fica limitado a uma questão confessional. Para nós é mais importante tratar de
entender a contribuição que Wesley possa dar à pergunta teológica que propomos –
sejam quais forem suas relações com as supostas “ortodoxias” católicas ou protestantes
a respeito.
QUE BUSCAVA WESLEY?
Os biógrafos de Wesley têm debatido apaixonadamente a relação entre as suas lutas
e “resoluções” em 1725 e a experiência de Aldersgate de 1738 (1). Tenho para mim que
a chave do ministério e da teologia de Wesley achava-se mais na unidade e
convergência das duas experiências do que no seu contraste e descontinuidade.
Até 1725, efetivamente, Wesley agoniza sobre a questão do sujeito cristão ativo – o
“sócio” autêntico e genuíno de Deus no pacto. Que é um verdadeiro cristão, um cristão
sério e comprometido? Em termos de conteúdo específico de uma vida cristã ativa, não
nos parece que tenha inventado muito. Mais sintetizou a prática ascética, filantrópica e
devocional que a melhor literatura de sua época lhe oferecia. Não alterou grandemente
esses conteúdos, que chegaram às gerações metodistas futuras – para seu benefício... e
muitas vezes para sua desgraça! Mas em 1738 verificou-se para ele, existencialmente,
uma resposta mais profunda e decisiva: a antiga percepção paulina e protestante e que é
Deus mesmo quem cria esse sujeito autêntico e genuíno, o verdadeiro “sócio” do pacto:
o sujeito cristão ativo é um dom.
É, sem dúvida, a resposta de Lutero. Mas à pergunta de Wesley. Wesley não está
prioritariamente preocupado em “acalmar a um Deus irado” mas ansioso a respeito de
como servi-lo plenamente. Consequentemente – se posso permitir-me uma licença
teológica – Wesley recebeu de Lutero uma doutrina “da santificação pela graça
mediante a fé”. A santificação continua sendo para ele a meta da redenção e da vida
cristã. Há que pregar a fé porque é a única porta de acesso – ou mais corretamente o
único caminho viável – para ingressar-se no âmbito da santificação e avançar por ele.
Creio que esta progressão destaca-se em todos os grandes sermões de Wesley. A
partir desta interpretação gostaria de considerar, primeiramente, o tema da conversão e a
seguir o da santificação (embora seja evidente que essa separação a respeito de Wesley
é artificial e só pode ser feita com propósitos didáticos).
O que em termos biográficos temos chamado a unidade e a convergência das
experiências de 1725 e de 1738, poderíamos transpô-lo em chave teológica como a
integração de graça e amor. Nesse sentido, toda a teologia de Wesley nos parece uma
soteriologia que, dentro do marco protestante clássico, mas sem submissão servil ao
mesmo, trata de articular justificação e santificação de tal maneira que a vitória da graça
se revele e se realize na operação do amor (2)
A FORMULAÇÃO WESLEYANA DA CONVERSÃO
Deus se propõe a criar um povo santo e este propósito chega a ser uma realidade
atual, experimentada, visível, quando homens e mulheres se voltam para Ele com fé.
Talvez se possa resumir assim a mensagem de Wesley. Estas são as boas novas. E são,
verdadeiramente, boas novas para os pobres da terra – para as massas miseráveis dos
deserdados que se amontoam nos novos centros industriais e mineiros, absorvidos pela
crise do nascimento do capitalismo industrial moderno, vítimas impotentes do
capitalismo industrial moderno, vítimas impotentes da anomia social. Não somente
eram aceitos por Deus como também podiam ser “feitos de novo” – receber um poder e
uma dignidade efetivos, visíveis, inerentes, mensuráveis. Podiam chegar a ser sujeitos
conscientes e ativos de uma nova vida. Suas obras contavam; sua vontade era livre.
Numa sociedade em que o triunfo se constituía no significado da vida, oferecia-se o
mais alto triunfo possível – acessível a todos mediante a fé. O ingresso nessa realidade é
a “conversão”.
A maior parte dos estudiosos da teologia de Wesley concordam que ele identifica
conversão com regeneração (3). Ainda que algumas passagens justifiquem um certa
distinção, as discussões wesleyanas mais características do tema da regeneração podem
ser tomadas legitimamente par apresentar seu conceito de conversão. Em geral,
podemos situá-lo dentro da estrutura doutrinal clássica protestante do ordo salautis. As
ênfases distintivas de Wesley me parecem agrupar-se – com relação ao que dissemos
acima – em torno de dois focos: a questão da continuidade e singularidade e a questão
da “consciência” ou “experiência” da regeneração.
A Wesley apraz explicara regeneração utilizando a analogia do “nascimento” quase
em forma alegórica (4). Dois fatos se destacam nessa alegoria:
De um lado o caráter decisivo da regeneração. Há um “antes” e um “depois”. A
conversão marca uma volta decisiva (conversio, no sentido original) do pecado para
Deus.
Sabemos que Wesley abraçou por algum tempo a idéia (que Pedro Bohler lhe havia
ensinado) do caráter instantâneo dessa mudança, mas logo vacilou a respeito para
admitir uma variedade de possibilidades. Mas jamais duvidou que havia uma mudança,
uma volta decisiva, uma diferença qualitativa criada por este ato de Deus e do homem,
chamado conversão ou regeneração.
Mas a analogia sublinha também a continuidade: é a mesma pessoa. Há uma vida
anterior ao nascimento – com os mesmos órgãos de percepção e sentimento – que agora
se torna atual e operosa pelo poder do Espírito.
Mais importante ainda, a analogia é ampliada para referir-se ao permanente
crescimento até a plena maturidade.
A conversão, desse modo, olha para trás, para uma humanidade real ainda que
impotente, e olha para a frente, para uma maturidade humana ainda que imperfeita mas
cada vez mais plena (até que lhe conceda, nesta vida ou na vindoura, uma perfeição
total, a realidade completa do amor).
O próprio Wesley não relacionou de maneira consistente a conversão à doutrina
agostiniana da graça preveniente, que ele mesmo introduzira. Mas William B. Pope –
sem dúvida o teólogo sistemático mais consistente da tradição wesleyana até o presente
século – o faz de maneira que dá à conversão um lugar próprio e distintivo, colocando-a
no umbral da nova vida, como movimento pelo qual o homem, no poder dessa graça
preveniente que em virtude da expiação que “rodeia e abarca”a humanidade inteira é
acessível a todos, coopera com a graça salvífica de Deus, volvendo-se do pecado para
Deus. Neste sentido, a conversão o ponto de encontro da busca humana e a graça de
Deus, “o pátio exterior do templo cristão”. Entretanto Pope não limita sua interpretação
ao âmbito estritamente religioso, mas antes, olhando a conversão também sob a
perspectiva ética, afirma uma continuidade entre a operação do amor sob a graça
preveniente e a transformação que o eleva ao amor da santificação. Por certo que nos
movemos aqui num terrenos próximo a uma das possíveis – e recentemente dominantes
– interpretações da doutrina católica romana. Mas isso não deve inibir-nos – como
sustentaremos mais adiante – de prestar atenção a este significativo propósito.
Tanto para Wesley como para Pope a conversão corresponde mais estritamente ao
começo da vida cristã, como um “salto” decisivo inicial, diríamos “qualitativo”. Mas
ambos admitem um uso mais geral do termo para referir-se às “crises de crescimento”
da vida cristã. Esta vacilação me parece documentar uma vez mais a dupla ênfase em
singularidade e continuidade que, tanto na esfera religiosa como ética, caracteriza a
doutrina wesleyana da conversão.
O outro aspecto é a bem conhecida ênfase na “experiência”, a consciência que
acompanha a conversão: o homem é consciente da nova situação em que se encontra. O
novo nascimento testemunha-se a si mesmo à consciência, com uma auto-evidência que
não necessita de provas externas, como não é necessário que nos provem qual é a luz do
sol e qual a das estrelas. Entretanto não se trata de um mero sentimento subjetivo: deve
ser reforçado pela qualidade de vida, a disposição e a concreta realização de atos de
amor naqueles que o Espírito testemunha sua presença e operação. Assim, a regeneração
verifica-se a nível consciente tanto em sua dimensão religiosa como ética. E em ambas
há novidade e continuidade. Na minha opinião, o ponto central se acha, no fim das
contas, na consciência moral, que é por sua vez confirmada e elevada a um novo plano
de auto-compreensão e de realização.
Se estas observações são válidas podemos resumir a doutrina wesleyana e da
conversão tomando em conjunto os seguintes elementos:
a) ela se situa na perspectiva da busca humana de excelência moral;
b) gira em torno do poder capacitador da graça;
c) culmina no aperfeiçoamento da luta moral do homem, mas não mediante um
mero crescimento quantitativo mas mediante uma mudança qualitativa
produzida pela graça de Deus;
d) vincula a experiência ética prévia do homem ao seu subseqüente crescimento na
graça, e maneira que o homem novo (regenerado) é ao mesmo tempo a
plenificação e a instalação do homem velho (não regenerado);
e) invoca a consciência subjetiva – reivindicada pela ação correspondente – desta
transformação fundamental.
AS CONDIÇÕES PARA REPENSAR A DOUTRINA WESLEYANA
A meu ver seria um grave erro, carregado de conseqüência negativa, a tentativa de
transferir diretamente para a nossa situação o ponto de vista wesleyano da conversão.
De fato, quando se tenta fazê-lo, como em algumas “campanhas evangelísticas”, o que
resulta é uma caricatura do original. E não poderia ser de outro modo, porque as
condições presentes impõem às concepções e formulações anteriores uma conotação
muito diferente. É necessário, pois, empreender uma concepção. E esta deve atender,
pelo menos, três conjuntos de fatores.
A nível teológico é necessário superar o caráter formal das articulações doutrinárias
de Wesley com relação a pontos decisivos: a cristologia, a noção de amor e a própria
concepção de Deus. Num estudo sério e ponderado, John Deschner tratou de ler a
cristologia de Wesley “no melhor sentido possível”. Apesar disso, tem que reconhecer
várias falhas graves. Uma delas, que nos interessa particularmente aqui, é a falta de
interesse de Wesley sobre a humanidade de Jesus Cristo como realidade histórica
concreta, omissão agravada por uma ênfase abstrata na lei em relação ao ofício profético
e por sua dificuldade em reconhecer plenamente a realidade da humilhação. Como
veremos, estas deficiências se refletem na forma de conceber aquilo que é o centro da
doutrina wesleyana da santificação, a saber, a noção de amor. É possível indicar a razão
dessas deficiências. Wesley podia pressupor o conteúdo dessas doutrinas. Portanto, o
que se tornava urgente era vitalizar e dar eficácia a um “esquema de salvação” cujo
embasamento teológico poderia dar-se por assentado.
A renovação bíblica e teológica dos últimos cinqüenta anos – para não falar dos
estudos crítico-históricos que a precederam e a fizeram possível – obriga-nos a variar
decisivamente a perspectiva. O que tem que ser profundamente revisado é o conteúdo
da visão com que estes esquemas teológicos operavam. O Deus das Escrituras, o Jesus
dos Evangelhos, o conteúdo da salvação, o contexto da compreensão bíblica do amor,
estão longe de coincidir com os significados “recebidos” do século XVIII. O tema
central é em que Deus cremos, quem é o Cristo redentor, que amor nos é oferecido e
requerido como substância do Reino que irrompe? Noutras palavras, temos que repensar
como conteúdos (e não só formalmente) de que e para que nos convertemos. O simples
ato de que temos que formular tais conteúdos em termos do Reino e da história da
salvação, da proclamação do jubileu da graça de Jesus, da esperança de novos céus e
nova terra – mais do que em termos estáticos e metafísicos característicos de boa parte
da tradição – introduz uma mudança decisiva na concepção da conversão.
O segundo conjunto de fatores tem que ver com as pressuposições filosóficas,
psicológicas e sociológicas das formulações do século XVIII. Já vimos como os
condicionamentos sociais da época afetaram o metodismo nascente. A visão da vida, o
ethos, o modelo humano que surge com o mundo moderno tornados possíveis e
requeridos pelas novas condições econômicas e sociais canalizam as energias do
avivamento religioso. Ao afirmar tal coisa, não desconhecemos os elementos proféticos
da mensagem metodista aos quais já nos referimos. Mas em que pese esses elementos, é
preciso reconhecer que o modelo humano em termos do qual se vive a experiência da
conversão e da nova vida é o que corresponde ao indivíduo eficiente e produtivo da
sociedade industrial. A ascensão econômica e social do metodismo testifica essa
simbiose.
Não obstante os poderosos movimentos filosóficos que têm lugar na Grã-Bretanha
do século XVIII, a conceitualidade (conceptualidade) teológica se move mais
amplamente na perspectiva metafísica aristotélica do escolasticismo (católico ou
protestante). Aqui somente me interessa assinalar a peculiar relação que se percebe
nessa perspectiva entre ser e atuar. Tanto com relação a Deus como ao homem,
concebe-se um “ser” em si, que por conseguinte “atua” ou “se manifesta”. O ethos da
evangelização de Wesley parece desafiar esta concepção, mas sua teologia segue presa a
ela. Consequentemente, faz-se possível conceber uma conversão ou regeneração que
tem lugar num plano metafísico e só depois é “refletida” ou “atuada” na história – numa
espécie de “segundo momento”. Não se trata agora de polemizar contra esta concepção.
Basta assinalar que, quaisquer que hajam sido seus valores na interpretação do
Evangelho em diálogo com uma certa concepção filosófica, não é nem radicalmente
bíblica nem adequada à nossa situação. Nem a Bíblia parece interessar-se num “ser” de
Deus que estaria além ou separado de sua cão nem concebe – como tão pouco o faz o
pensamento moderno – uma pessoa humana constituída à parte das ações e relações da
existência histórica.
A observação anterior deve ser ampliada em relação com as noções de interioridade
e subjetividade. Na idéia metodista tradicional de conversão, a consciência subjetiva é
concebida em forma individual e auto-contida. A mudança religiosa tem lugar num
“santuário interior”, “a sós com Deus”, como se diz. Esta crítica pode parecer arbitrária
à luz das repetidas afirmações de Wesley sobre “uma santidade social”, seu rechaço de
“uma religião solitária” e as medidas práticas que toma para assegurar o crescimento
comunitário em fé e santidade. Mas creio que uma exegese cuidadosa dos contextos em
que tais expressões aparecem mostrará que a sociedade não é, para Wesley, um conceito
antropológico, mas só um arranjo conveniente para o crescimento do indivíduo.
Finalmente, é a alma individual que é salva, santificada, aperfeiçoada. A comunhão
é, em última análise, um externum subsidium. Tais idéias são, no mínimo, uma ficção à
luz do que hoje sabemos da psicologia humana – do subconsciente, dos símbolos, dos
mecanismos ideológicos. A consciência não é uma área “privada”, mas o foco de um
reflexo processo que inclui relações históricas, no tempo e no espaço. Nossa consciência
de nós mesmos (auto-crítica) se plasma em termos das representações sociais e dos
símbolos dominantes de uma sociedade (ou de grupos de domínio dentro dela).
Nossa “audição” de uma “mensagem” é mediada pelo “código” predominante em
nosso meio. Qualquer “conversão” concreta é uma resposta a um desafio mediado, no
qual certa forma de consciência e certa práxis já estão pressupostas. A menos que o
desafio se refira explicitamente a tais formas de consciência e conduta, só conseguirá
reforçá-las inconscientemente. Não há conversão no vazio.
Estas observações críticas não têm por objeto depreciar a conversão ou minimizar
sua importância. Muito ao contrário, ao por em relevo as limitações inerentes à época
em que se plasmou, indicam uma busca da maneira como a conversão possa readquirir
seu lugar e significado central na responsabilidade evangelizadora da Igreja na
atualidade. Tal coisa me parece urgente e decisiva para o Cristianismo no momento
presente.
NOTAS PARA UMA RELEITURA
Do ponto de vista fenomenológico – ou fenomênico – desejaria definir a conversão
como o encontro entre uma condensação da mensagem cristã como chamado (apelo) e
uma resposta pessoal consciente e comprometida. A conversão caracteriza-se, pois, por
uma consciência – como afirmava a tradição metodista – tanto em relação com o
conteúdo da mensagem como uma auto-consciência de compromisso em uma nova
relação e condição.
Ontologicamente (se posso usar o termo) a conversão é o processo pelo qual Deus
se incorpora ao homem, em sua existência pessoal, para uma participação ativa e
consciente em seu pacto com a humanidade, tal como tem sido testificado, renovado e
assegurado em Jesus Cristo.
Para que este chamado seja significativo, tem que ser articulado em termos de uma
problemática que corresponda ao nível das necessidades e esperanças do ser humano de
hoje, tanto pessoal como coletivamente. Isso não significa, por certo que a mensagem
deva aceitar a validez ou adotar os conteúdos e características que tais esperanças e
expectativas possam tomar. Uma cuidadosa observação do Novo Testamento nos
mostraria que a centralidade de Jesus Cristo e o chamado à fé para Ele se expressam, no
Novo Testamento, em marcos de referência substancialmente distintos e às vezes
aparentemente contraditórios (pense-se nos sinóticos, no quarto evangelho, em Paulo,
em Hebreus). Jesus Cristo é sempre o mesmo, porém não na identidade estática dos
objetos ou dos eventos “concluídos” mas na identidade dinâmica do Espírito vivente –
como bem o atesta a história da Igreja.
Em nossa particular situação latino-americana (ainda que não só aqui) o homem
experimenta, individual e coletivamente, sua existência como que bloqueada
artificialmente, aprisionada por razões estruturais e ideológicas que lhe impedem sua
realização material e espiritual.
A mensagem cristã não pode responder a essa situação evitando o nó central do
problema e oferecendo qualquer saída substitutiva ou escapista. Cristo viria a
transformar-se assim em um soter de um culto de mistério ou um eon de uma seita
gnóstica (algo que o Novo Testamento rechaça radicalmente mais que mais de uma vez
voltou a infiltrar-se no anúncio da mensagem). Ao contrário, uma mensagem autêntica
deve relacionar a totalidade da mensagem cristã às condições objetivas e subjetivas do
nosso mundo. Jesus Cristo é o modelo e o Mediador de uma verdadeira vida humana –
pessoal e coletiva – não um meio para alcançar alguma exaltação subjetiva sobrehumana!
A meta da conversão não é mera assimilação de uma mensagem ou o assentimento
formal a uma doutrina, mas “a criação de uma nova criatura”. Este é um lugar comum
que poucos negariam. Não obstante, é constantemente contra-dito no processo
evangelizador tal como frequentemente acontece. Espera-se que o povo responda com
formas – geralmente muito padronizadas – de resposta aceitando uma formulação
verbal. O que ocorre (sociológica e psicologicamente falando) nestes casos é
simplesmente que uma pessoa aceita (por uma série de razões) sua incorporação numa
comunidade religiosa. Noutras palavras, a comunidade se reproduz a si mesma mediante
a evangelização. No Novo Testamento, ao contrário, se não me equivoco, o chamado à
conversão é um convite ao discipulado, seja como o chamado do próprio Jesus para
segui-lo ou a forma apostólica de participação mediante a fé na comunidade messiânica,
que é o povo que anuncia e testemunha o Reino vindouro. O Evangelho não pode girar
em torno de si mesmo como uma auto-reprodução. Seu centro não pode ser outro que
não o Reino mesmo. Consequentemente envolve uma comunidade comprometida com
um discipulado ativo no mundo.
No metodismo primitivo, esse compromisso comunitário com o Evangelho em meio
das condições concretas de seu mundo é claramente perceptível. O chamado tinha um
conteúdo concreto testemunhado nas “Regras Gerais”. Isto era o que significava
concretamente “seguir a Cristo” para a comunidade e o que homens e mulheres eram
convidados a fazer no poder do Espírito. Era o rosto presente e discernível da “nova
criatura”. É óbvio que se tratava de uma imagem ligada a uma época. E que como tal
não pode nem deve ser reproduzida fora de sua época. Tal onipresença histórica não é
um defeito: foi seu valor e importância.
Em contraposição, nosso chamado evangelizador é muitas vezes vazio: então os
homens o enchem, talvez inconscientemente, com os esteriótipos dominantes do que
significa ser “religioso” – as imagens aceitas, estandardizadas, ideologicamente
carregadas de piedade. Como tais, aceitam-nas ou as rechaçam. A menos que a
comunidade evangelizadora confronte o desafio de um testemunho específico pertinente
às condições atuais, a evangelização está condenada a ser um mero instrumento de
reprodução e sacralização das condições desumanizantes nas quais o homem vive. Em
termos muito simples, a evangelização deve tratar a questão: que significa, concreta e
especificamente, seguir a Cristo, em pensamento e ação, no mundo de hoje?
A tomada de consciência ou o processo de uma autoconsciência numa nova situação
é um processo social-pessoal e auto-reflexivo. A psicologia e a sociologia modernas têm
demonstrado isso claramente. Não há consciência puramente individual ou vazia de um
conteúdo de ação. A evangelização tem, portanto, que se relacionar com a forma em que
grupos humanos situam-se a si mesmos no mundo, suas cosmovisões, suas formas de
representação social, sua consciência de classe e de grupo, seus modos de ação. Isto
significa que a conversão pode produzir-se em resposta a uma mensagem verbalmente
articulada ou a uma determinada práxis comunitária dos crentes. Finalmente, ambas as
coisas hão de produzir-se. Mas a consciência pode do reconhecimento de um conteúdo
conceptual para uma forma de vida, ou de um compromisso assumido com uma práxis
comunitária para a aceitação da autocompreensão (com referência à mensagem)
implícita nela. Por isso nos confrontamos novamente com a centralidade de uma
comunidade praticante, como comunidade comprometida numa ação específica no
mundo, como a “forma de Cristo” na qual se fundem a articulação verbal e a articulação
“atuada” e portanto o processo de conversão pode ter lugar. Esta afirmação não
diminuiu a centralidade da ação do Espírito Santo. Porque – segundo me parece – o que
diferencia o Espírito Santo dos “espíritos” mágicos é que aquele opera mediante
mediações históricas. Tal parece ser o significado da Encarnação e da Igreja.
“...cada vez me convenço mais de que a compreensão da conversão é
verdadeiramente a questão central para as igrejas em nossa época. A conversão,
entendida como fora da história ou apartada dela, deve ser reapropriada e
compreendida em relação direta com essa história” (5)
Assim formula o jornalista e teólogo neo-evangélico Jim Wallis a convicção que o
leva a escrever sua obra sobre o tema. Concordo totalmente com ele. As observações
críticas que temos formulado têm por objetivo, precisamente, aclarar o caminho para
uma evangelização digna da radicalidade do Evangelho e da urgência de nosso tempo.
Para citar novamente Wallis:
“Para isto é a evangelização. Seu propósito é chamar para a conversão e fazelo em sua integridade. A questão em jogo mais controvertida no mundo, e ainda na
Igreja, é se seguiremos a Jesus e nos colocaremos sob a insígnia de seu Reino. O
evangelista propõe essa questão e a dirige ao coração de cada indivíduo e da
sociedade. A evangelização confronta a cada pessoa com a decisiva eleição por
Jesus e o reino e desafia a opressão da velha ordem com o poder libertador da
nova. O Evangelho do Reino provoca uma mudança fundamental em cada vida e é
um aguilhão em qualquer ordem social, do primeiro século ou do século vinte” (6).
NOTAS
1) Sabe-se que M. Piette considera as resoluções de 1725 a verdadeira conversão de
Wesley, relacionada com seu descobrimento de Taylor e Kempis e sua decisão de
dedicar toda sua vida a Deus.
Piette, John Wesley in the Evolution of Protestantism (New York, Sheed and Ward,
1937), pp. 305-312.
Veja-se também A. Léger, La jeunesse de Wesley (Paris, Machette, 1910), pp. 77-82
et passim. Em linha contrária às obras de Cell, Cannon, etc.
2) Uma comprovação da centralidade dessa unidade para Wesley pode ser vista no
estudo de suas controvérsias. Com efeito, sua atitude geralmente “latitudinária” para as
disputas teológicas torna-se combatida quando percebe que esta relação graça-amor se
acha ameaçada, seja por uma graça que “se fecha sobre si mesma”sem tornar a vida
moral inerentemente necessária (calvinismo, quietismo, antinomianismo) seja porque
escamoteia a graça, exaltando excessivamente o poder da vida ética (moralismo,
legalismo).
3) Em toda esta secção nos abstivemos de dar referências bibliográficas que seriam
incompletas ou extremamente trabalhosas. Recomendamos ao leitor as obras clássicas
de Cannon, Lidstrom, etc., que oferecem abundante bibliografia.
4) Veja-se, entre outras referências, as notas em João 3; o sermão XLV: II, 2 e o
sermão XIX: I, 8-10.
5) Jim Wallis, The Call to Conversion (San Francisco, Harper and Row, 1981), p.
XVI.
III CAPÍTULO
JUSTIFICAÇÃO, SANTIFICAÇÃO E PLENITUDE
Tem o metodismo identidade teológica própria? Há em Wesley uma contribuição
singular para a compreensão do Evangelho? O tema tem sido frequentemente debatido.
Os que têm tentado deduzir do fundador do metodismo uma teologia sistemática não
têm obtido maior êxito. Trata-se de desinteresse, de latitudinarismo teológico ou
simplesmente de uma mente de segunda classe, incapaz de pensar profundamente? Por
outro lado, Wesley mostra uma curiosidade intelectual muito ampla, leituras extensas da
História, Teologia e piedade – incluindo seu grande interesse, por exemplo, pelos padres
gregos ou pelos místicos espanhóis.
É verdade que habitualmente se impacienta diante das sutis distinções teológicas,
especialmente quando conduzem a polêmicas que lhe parecem desviar a atenção da
questão fundamental. Entretanto, quando crê ver em perigo o que no seu entender é
central ao Evangelho, não vacila em lançar-se na batalha com toda sua enorme energia.
Quais são estar coisas “centrais” pelas quais está disposto a lutar?
Se retomarmos o tema proposto no começo do capítulo precedente, buscaremos esse
centro na relação entre justificação e santificação: como constitui esse novo “sujeito”,
sócio digno e fiel de Deus em seu pacto? Essa pergunta tem, por sua vez, duas
pressuposições. Uma é a teológica: Deus tem um propósito de renovação que abarca a
totalidade da humanidade e do universo, o que ele chama, às vezes, “o designo
grandioso da salvação da humanidade” (the Grand design for the salvation of mankind).
A outra pressuposição é de ordem pastoral: o anúncio desse plano e o convite para
participar ativamente nele – a evangelização e o chamado para a conversão – são a
tarefa pela qual se mede a fidelidade do cristão e da Igreja. Tudo que se relacione com
esta tarefa não é negociável, articulus stantis et cadentis ecclesiae.
Um dos mais eruditos e penetrantes estudiosos de Wesley, o professor Albert
Outler, situa a peculiaridade da teologia de Wesley – dentro deste horizonte de
evangelização – em:
“...sua doutrina da graça de Deus (a presença ativa de seu amor a existência
humana) na qual a preocupação dominante é uma síntese vital da ênfase evangélica
na soberania de Deus e a ênfase católica na participação ativa do homem: uma
mescla dinâmica de previdência, justificação, regeneração e santidade (1).”
Outros intérpretes, como Lindstrom, Newton Flew, Sangster, preferem enfocar a
peculiaridade do metodismo a partir da doutrina da santificação e da perfeição. Teodore
Runyon me parece explicitar bem a unidade de ambos os temas nestas palavras:
“Quando a perfeição cristã vem a ser a meta do indivíduo, nasce a esperança
fundamental de que o futuro possa superar o presente. Concomitantemente,
manifesta-se uma insatisfação a respeito de todo o estado presente – uma
insatisfação que provê a ponta crítica necessária para manter em movimento o
processo de transformação individual (2).
Neste capítulo nos propomos a explorar brevemente estes dois aspectos de um único
tema: o sujeito e a obra humana numa teologia evangélica da salvação.
O GRANDIOSO PLANO DA SALVAÇÃO DA HUMANIDADE
“Para Wesley”, dizíamos no começo, “a santidade segue sendo (a partir da
experiência de Aldersgate (*) a meta da redenção e da vida cristã”. Daí a necessidade de
manter uma estranha unidade de justificação e santificação. Certamente, esta é também
a intenção dos Reformadores: “Assim como Cristo não pode ser dividido em partes,
argumentava Calvino, também são inseparáveis estas duas coisas, a saber, a justiça e a
santificação, uma vez que as recebemos juntas e solidariamente nele”(3). Mas os
reformadores parecem haver achado impossível construir defesas que impedissem um
deslize subseqüente, que nos tempos de Wesley havia chegado a tal consistência que
uma testemunha insuspeitável como Karl Barth não pode evitar dizer, precisamente em
relação a Zinzendorf (com quem Wesley manteve uma dura discussão sobre o tema, a
ponto de leva-lo a separar-se da comunidade morávia), que “neste monismo a
necessidade de boas obras só se mantém em forma letárgica e espasmódica” (4).
O próprio Barth suscita a questão da natureza desta unidade e se pergunta se é
possível estabelecer uma ordem – um prius e um posterius – nesta relação, não no
sentido cronológico mas em termos de correlação teológica. Sua resposta (como poderia
ser outra?) é que:
“...no simul (na simultaneidade) da vontade e ação única de Deus, a
justificação é primeira como a base e segunda como pressuposição; a santificação
é primeira como meta e segunda como conseqüência, e portanto, ambas são
superiores e ambas subordinadas” (5).
É uma formulação teológica excelente, que Wesley haveria aprovado cordialmente.
Mas na dialética de sua piedade e de sua pregação, a preocupação que mais o envolvia
era o “plano grandioso” – a ordem de intenção. E aqui a santificação tem uma
indiscutida primazia. Deus se propõe a criar um povo santo, “e esta intenção se torna
realidade atual, visível, experimentada quando os homens e as mulheres se voltam a ela
na fé”.
Não é difícil resumir brevemente os elementos centrais do ensino wesleyano sobe
isso. O pecado corrompeu toda a raça humana, empanando a imagem moral de Deus no
homem, corrompendo a totalidade do seu ser e tornando-o incapaz de corrigir-se e de
voltar-se para Deus. O pecado não causou somente a corrupção da espécie humana,
senão que lhe desfigurou a própria natureza. A conseqüência última é a morte espiritual
e física do homem.
Entretanto, a humanidade não ficou em estado de total impotência moral. A graça
preveniente, conseqüência universal da expiação, devolve ao homem um certo
discernimento moral, a possibilidade de reconhecer a lei de Deus (ainda que não de
guardá-la) e de responder ao convite do Evangelho. Noutras palavras, Deus restitui ao
homem pecador, pela graça, uma dose de livre arbítrio. As boas ações realizadas nessa
liberdade são, pois, fruto da graça e não admitem mérito algum.
A salvação é inteiramente obra de Deus, totalmente livre e devida somente ao seu
amor “misericordioso, ilimitado, sem discriminação e imerecido” (6). Realiza-se pelo
sacrifício vicário de Cristo, cujos méritos, recebidos por graça mediante a fé, nos
proporcionaram a redenção. A fé salvadora é “uma segura confiança... de que Cristo
morreu por meus pecados, que me amou e se deu a si mesmo por mim” (7). Esta
justificação significa o perdão dos pecados – original e atuais – e a regeneração, a saber,
uma troca em nossa alma, pela qual passamos do pecado para uma vida de justiça. A
santificação começa imediatamente depois da justificação e opera uma transformação
pela qual nossa mente carnal é transformada à semelhança do “sentir que houve em
Cristo Jesus”, ou seja, que as motivações, pensamentos e ações tornam-se motivadas
pelo amor.
Normalmente, esta experiência de justificação (perdão) está acompanhada por uma
consciência de haver “nascido de novo”, de ser “filho por adoção”. O Espírito Santo
testemunha para e com nosso espírito. Ainda que o renascido não cometa faltas
externas, persiste nele um resto de pecado, que a santificação vai paulatinamente
vencendo até chegar à “perfeição” (“plena santificação” ou “a grande salvação”). Esta
pode ser alcançada nesta vida, seja progressivamente ou instantaneamente, ou ser
recebida no momento da morte. Em todo caso, a perfeição continua sendo uma
aspiração e uma bênção que se espera da graça divina. Não significa perfeição absoluta
no sentido de infabilidade moral, senão que todas as ações e pensamentos são nascidos
do amor de Deus “derramado pelo Espírito em nossos corações”.
AS BOAS OBRAS
Faz-se necessário retomar alguns aspectos deste sumário, que nos permitam captar
melhor sua importância para nosso propósito. O primeiro tem que ver com a idéia de
uma “dupla” justificação: a primeira, inteiramente pela fé, no momento da conversão, e
a segunda “não sem obras”, no juízo final. Esta idéia de uma “dupla justificação” –
expressão em si mesma suspeita para o protestantismo desde a época da Reforma –
parece colocar a Wesley decididamente fora do campo protestante. Creio que o
problema deve ser colocado noutros termos. Wesley jamais imagina uma operação
humana autônoma, à parte da graça de Deus. Consequentemente exclui totalmente a
idéia do mérito. Não há, neste ponto, nenhuma discrepância com os reformadores; com
Lutero a insistir que a verdadeira fé é um princípio ativo que “não pode deixar de fazer
boas obras”, ou com Calvino, para quem a fé nos inclui “em Cristo”, não só em forma
forense, mas de maneira ativa e efetiva pela obra do Espírito Santo. Talvez,
simplificando, poderíamos dizer que, onde os reformadores insistem, criticamente: “sem
Cristo não pode haver obras boas”, Wesley formula, positivamente: “Em Cristo, há boas
obras”.
A distinção, todavia, é importante. Tem que ver, por uma parte, com dois “estados”
de ânimo distintos que obedecem a duas situações espirituais e históricas diversas. Os
reformadores, particularmente Lutero, vivem a busca medieval de salvação do poder do
diabo, da ira e da morte. Wesley, ao contrário, sente a necessidade moderna de achar-se
a si mesmo como “pessoa” – nova, útil, ativa. Na crise da instituição eclesiástica e do
sistema sacramental medieval, os reformadores encontram em Deus mesmo a segurança
de salvação: Deus, que se pôs em nosso favor em Jesus Cristo (Lutero) , que desde a
eternidade nos destinou para sermos seus (Calvino) – é Ele, e não nossa vacilante
consciência ou a instituição eclesiástica, o suporte seguro de nossa vida.
Consequentemente é necessário excluir qualquer outra “mediação” que possa
reintroduzir nossa salvação no terreno lamacento da ambigüidade humana. No começo,
durante e no fim da carreira, não há outra segurança a não ser a graça divina.
O que os reformadores não observaram é que procedendo assim, introduziram uma
perigosa dicotomia, cujas graves conseqüências não tardariam a se fazer sentir. Por uma
parte, a ação de Deus e a ação humana eram colocadas como “simétricas”e
contrapostas. Para afirmar a primeira, era necessário desqualificar a segunda.
Consequentemente, toda afirmação da segunda resultava em detrimento da primeira.
Assim, o que quis ser uma afirmação da salvação, “não pelas obras”, veio a ser “sem
obras”, quando não “apesar das obras”. Este deslize é o que horroriza a Wesley no
quietismo morávio e o faz reagir escandalizado quando lê, no Comentário de Lutero a
Gálatas o que ele considera uma linguagem “blasfema a respeito das obras e da lei de
Deus” (Journal, 15 de junho, 1941). Por outra parte, as boas obras aparecem em
determinada ortodoxia protestante tardia como separadas da vontade do homem
concreto adjudicadas ao Espírito Santo, que assim vem a ser, não a presença encarnada
do poder e da iniciativa divina, mas um “sujeito substitutivo” do homem em sua
realidade histórica. Com razão o teólogo reformado Otto Weber diz que, numa
orientação,
“...se tornariam as obras em si mesmas, separadamente da pessoa e já não se
afirmaria que “um homem bom e piedoso faz obras boas e piedosas”, senão que
“espera passivamente que o Espírito as faça nele”. A pessoa seria assim deixada de
lado como pessoa. Teríamos aqui um docetismo pneumatológico” (8).
Como propor o tema das obras sem comprometer a prioridade da ação divina nem
anular o sujeito humano? Numa aguda crítica à teologia protestante com respeito à
relação entre salvação e História, Juan Luis Segundo lembra que “o desaparecimento,
desde a Reforma, da noção de mérito na teologia protestante, parece ter minado a
possibilidade de uma teologia da História”. A razão: Considerando que a noção de
mérito (quer dizer, “o valor eterno” do esforço e da intenção justa”) era o único que
dava à ação histórica um valor relacionado com o Reino, com o seu desaparecimento
“este último laço de união entre ambos é cortado pela teologia da salvação só pela fé,
pelos méritos exclusivos de Cristo” (9).
Poderia alegar-se que na noção de “vocação” de Lutero se ajunta um novo vínculo,
ou que o valor do “terceiro uso da lei”, em Calvino, cumpre esse mesmo fim.
Entretanto, não há dúvida de que, historicamente, o Protestantismo não teve defesas
contra essa religiosidade da “graça barata”que Bonhoeffer teve que denunciar. Juan Luis
Segundo não pretende, por certo, retomar a noção de mérito e reconhece plenamente a
importância da gratuidade da salvação que defenderam os reformadores. Mas o
problema persiste e Juan Luis invoca a possibilidade de superá-lo em uma “síntese
fecunda e libertadora”:
“A fé liberta o homem da preocupação da lei para que possa lançar-se a um
amor criador e não fique paralisado pelo problema da segurança e da salvação
individuais, cujo único critério estático, pode ser a lei. Porém, esta entrega do
nosso destino a Deus não deve levar a pensar que Deus tem interesse em que o
deixemos trabalhar só, como se toda colaboração nossa fosse um definhamento
para a sua glória. Pelo contrário, o Deus cristão é um Deus que, amando, necessita
ser amado. Necessita de nossa criatividade para a sua obra e por isso pede que lhe
entreguemos nosso próprio destino” (10).
A meu ver a noção moderna de “trabalho alienado” pode ajudar-nos a ver mais
claramente o problema. De fato, se entende melhor a polêmica paulina-luterana contra
as “obras” e os “méritos” quando observamos que o que atacam é um “uso” das obras
como um produto do homem que se converte em coisa, numa “moeda”que serve para
transigir as relações com Deus e com o próximo . Tal coisificação das obras “em si
mesmas” despersonaliza as relações com Deus e com o próximo. As “obras” se
interpõem entre o homem e Deus: é possível por elas estabelecer um pacto com Deus no
qual não estaríamos pessoalmente involucrados – quer dizer, donde estaria ausente a fé
em seu caráter pessoal de “ficucia”. E estaria ausente, precisamente, porque a “obra”
ficou separada de seu autor, é uma “prestação” religiosa ou moral, objetivada em
relação a uma lei (11). Ao contrário, tanto Paulo quanto Lutero conhecem uma “obra do
amor” ou “obras da fé” que são a pessoa mesma como sujeito ativo envolta numa
relação pessoal de entrega a Deus e ao próximo.
Não cabe, neste caso, a noção de mérito como se as obras tivessem um “valor de
intercâmbio”, mas cabe, sim, a noção de “significado”, ou “validez” das obras como
inseparáveis da pessoa que as realiza e como incorporadas ao propósito e à ação de
Deus. Realmente, assim consideradas como “a pessoa mesma em seu caráter de sujeito
ativo”, as obras são a única manifestação histórica da pessoa, são o testemunho da
historicidade concreta da obra de Deus, como afirmação do Cristo juanino. “Crede-me
pelas obras mesmo” (João 10:38; cf. 5:31-36 et passim) ou a polêmica afirmação de
Tiago: “eu, por minhas obras, te mostrarei minha fé” (Tiago 3:18).
A luta de Wesley em defesa da santificação tem, na minha opinião, o valor de
reivindicar este caráter ativo da pessoa crente e de rechaçar qualquer separação de fé e
amor. Entretanto, o marco teológico do ordo salutis é uma camisa de força de que
Wesley foi incapaz de desfazer-se. Sem discutir o valor da intenção original dessa
noção, a mesma se tornara, nas mãos do escolasticismo protestante, numa rígida
seqüência de momentos que, ao invés de desenvolver a riqueza da graça única e
múltipla de Deus, forçava a experiência cristã a um padrão pré-estabelecido.
Prontamente o ordo foi psicologizado numa série de “despertamentos espirituais e ações
e estados de tipo religioso e moral” (12). Wesley ficou preso nesta rede. Havendo
deixado atrás a justificação como um “momento”, era inevitável que caísse na
armadilha da dupla justificação – fazendo uma distinção entre uma salvação “final” –
pondo assim em perigo o próprio coração da fé. A justificação e também a santificação
vêm a ser, então, uma série de momentos quase desligados, sempre precários e
ameaçados pelo pecado. Portanto se obscurecem e se distorcem tanto a unidade do
sujeito humano como a unidade do sujeito humano como a unidade e fidelidade da
graça de Deus. A formulação wesleyana da santificação e da perfeição tornam-se
psicologicamente insustentáveis. Além disso, espiritualmente, abre as portas a uma
doentia escrupulosidade ou a uma igualdade perniciosa soberba. O fato de que Wesley
não tenha se tornado vítima de nenhuma das duas coisas em sua própria vida espiritual
só prova – como no caso de muitos outros santos – que sua piedade é muito melhor que
sua teologia.
O FANTASMA DO SINERGISMO
Posições como a de Wesley têm sido estigmatizadas pela teologia protestante como
o conceito desqualificador de “sinergismo” (neste caso, o “arminianismo” como
“separação” do Calvinismo). Albert Outler mostrou com clareza que o conceito
wesleyano continua uma afirmação teológica tradicional, que no Ocidente sofreu as
conseqüências da polêmica agostiniana. O conceito de “sinergismo”, perfeitamente
ortodoxo na tradição oriental, veio a ser identificado com a versão “pelagiana” do
mesmo (versão que tínhamos até há pouco tempo, dada exclusivamente por seus
adversários), e interpretada no mesmo esquema “simétrico” a que nos referimos
anteriormente, pelo qual toda “cooperação” humana subtraia a glória e a ação de Deus
(13).
Esta exclusão sem rodeios de todo sinergismo, de toda participação humana ativa na
obra de Deus, tem sido fatídica para o protestantismo. Como sublinhou Juan Luiz
Segundo no artigo mencionado, tem impedido de dar à ação humana um lugar
intrínseco na obra de Deus de fazer presente seu Reino. Traduzido na discussão
teológica contemporânea como “reserva escatológica”, este monergismo de morte não
só torna relativa como vulgariza a ação histórica pela justiça e a faz, transformando-a
num exercício de valor derivativo, transitório, intranscendente, a criação de um mero
cenário onde ocorre o verdadeiramente importante – a salvação da “alma” – cenário
destinado a desaparecer.
Pode afirmar-se um “sinergismo” que não atente contra a prioridade permanente da
graça? A pergunta é, como sugerimos, de crucial importância para uma teologia latinoamericana. Albert Outler assinalou numa direção, a meu ver, correta e frutífera, ao
distinguir entre um “sinergismo contratual”, o que Wesley havia herdado na tradição do
“facere quod in se est” – a saber, “se um homem se comporta de acordo com seu acesso
à salvação tem o status de um direito” – e um “sinergismo do pacto” (convenantal
synergism) no qual “tanto a graça preveniente como a salvadora são reconhecidas como
as atividades coordenadas e providenciais do único Deus verdadeiro de amor” que
estabeleceu um pacto com os homens. Poderia ser discutido se Wesley realmente
percebeu e estabeleceu claramente a diferença entre ambas as formas de compreender a
colaboração de Deus e do homem. O importante é advertir que esta segunda concepção
representa uma possibilidade legítima de abordar positivamente um problema teológico
de importância práxica decisiva.
O tema se delineia para nós num plano antropológico, como o problema da
constituição do sujeito-humano. Mas, na América Latina, a pergunta antropológica tem
que ser feita a partir da condição da não-pessoa, quer dizer, daqueles que têm sido
despojados - objetiva e subjetivamente, individual e cooperativamente – da qualidade
de sujeito de sua própria existência, de gestores de sua história. Consequentemente, a
operação e o significado da graça de Deus devem explicitar-se em resposta a essa
problemática: Como Deus reconstitui o sujeito humano? Como a graça opera uma dêsalienação desse sujeito – também objetiva e subjetiva, individual e coletivamente? Um
dos elementos dessa resposta tem que ser a des-alienação do próprio conceito de graça.
Noutras palavras, as formas de “auxílio religioso” (sacramental ou evangelístico)
resultam muitas vezes em coadjuvantes para a possibilidade de ser “sujeito” em relação
com o divino.
Uma reflexão que procure responder às perguntas propostas deve situar-se no
contexto teológico mais amplo da relação entre Deus e o homem. Essa relação que Deus
mesmo quis e suscitou desde a criação, é o que chamamos “pacto”. Ao criar o homem,
Deus se suscita um “sócio” (menor), constituindo-se a si mesmo, por esse mesmo ato,
em “sócio”(maior), com um propósito que é conteúdo dessa relação. Esse propósito que
é o conteúdo dessa relação. Esse propósito pode ser definido em função de sua
manifestação exterior e objetiva – a reconstrução do mundo – ou em sua dinâmica
interior e motivadora – o exercício ágape. A redenção deve ser vista, portanto, em
relação a esse horizonte: é nele que devem situar-se os grandes feitos da reconciliação,
justificação e santificação. A alienação fundamental da existência humana é a quebra
desse pacto, isto é, a um só tempo, a destruição de sua dinâmica e motivação - o ágape
– e d seu projeto – a construção do mundo. Nela, o homem renuncia a sua condição de
sujeito, tanto em relação com Deus como em relação com o mundo e com o seu
próximo.
Entretanto, Deus não desfaz seu pacto. Logo, não se pode falar teologicamente de
um homem “sem Deus”- a própria ira de Deus é sinal de sua fidelidade, de sua decisão
de não deixar o homem só, de sustentá-lo como responsável, apesar de sua alienação.
Essa fidelidade de Deus ao seu propósito (o ágape e a construção do mundo), que inclui
sua ira, é o que chamamos “graça” – a unilateralidade de um pacto que só é honrada por
um de seus membros. E que é assim honrado para reintegrar o sócio infiel e restaura-lo
à sua relação ativa. Por isso, noções tais como “o homem fora da graça” são construções
teológicas (instrumentos teóricos) úteis às vezes para a reflexão, mas nunca realidades
empíricas. No contexto dessa relação, podemos falar de um “sinergismo”, de uma
cooperação do homem com Deus, mantida pela graça constante de Deus, que nunca
reduz seu “sócio” – ainda que infiel – a um objeto. Ao contrário, dirige-se a ele e o
convida a responder e a atuar, e volta a abrir-lhe permanentemente as portas para
colaborar em seu propósito.
A TOTALIDADE DA RAÇA HUMANA
Ao falar da “insatisfação” com o presente que a idéia da “perfeição” de Wesley
introduz, Runyon acrescenta: “Além disso, esta insatisfação é facilmente transferível do
âmbito do indivíduo para o da sociedade... onde oferece uma persistente motivação para
a reforma à luz de ‘um caminho mais perfeito’ que transcende qualquer status quo”
(14). Tal ampliação do conceito de perfeição é requerida, segundo Runyon, pelo próprio
conceito de Reino de Deus de Wesley. Este, com efeito, insiste em que o Reino já
começa a realizar-se na terra. Duas citações nos confirmam esta afirmativa. A primeira
provém de suas Notas sobre no Novo Testamento (comentando Mateus 3:2 - “o Reino
dos Céus está próximo”):
“Há de formar-se uma sociedade... para que subsista, primeiramente na terra, e
depois com Deus na glória. Em algumas passagens da Escritura a expressão se
aplica mais particularmente ao estado terrenal (do Reino); noutras significa
somente o estado glorioso. Mas na maior parte, inclui a ambos.”
A segunda citação comenta a petição do Pai Nosso (“venha teu Reino, faça-se tua
vontade”):
“...o significado é que todos os habitantes da terra, toda a raça humana, faça a
vontade do Pai que está nos céus, tão voluntariamente como os santos anjos; que o
façam continuamente... e perfeitamente... Noutras palavras, oramos para que nós e
toda a humanidade façam a vontade de Deus em todas as coisas” (15).
A perfeição cristã é concebida em termos ativos: não se trata meramente de se abster
do mal, mas de comprometer-se com o bem. Por isso, os metodistas não devem
separar-se do mundo (como o fariam os místicos ou quietistas), mas “levedar tudo que
os rodeia”. A doutrina da perfeição ficaria assim vinculada a uma visão da renovação de
toda a criação. A citação seguinte descreve muito bem essa visão do “plano glorioso” –
o triunfo pleno do amor:
“suponhamos agora que a plenitude do tempo chegou... Que perspectiva se
abre! As guerras terão cessado sobre a terra... não se levanta mais irmão contra
irmão; nenhum país ou cidade está dividida contra si mesma, arrancando-se suas
próprias entranhas... não há opressão que ‘enfureça até o sábio’, não há extorsão
que ‘esmague o rosto do pobre’, não há roubo nem injúria, não há saque nem
injustiça, porque todos estão satisfeitos com o que têm! Assim, ‘a justiça e a paz se
beijaram’... E com a retidão ou justiça, também se acha a misericórdia... E cheios
de gozo e paz, crendo e unidos em um só corpo, por um Espírito, todos se amam
como irmãos, têm um mesmo coração e uma mesma alma. ‘E ninguém diz que algo
é propriamente seu’. A ninguém falta nada, porque todos amam o seu próximo
como a si mesmos” (16).
O mesmo Runyon deplorava que esta visão não haja frutificado no movimento
metodista. Isso atribui, em parte, à falta de consistência do próprio Wesley que, noutras
articulações da doutrina da perfeição – especialmente no conhecido “A plain account of
Christian Perfection”- dá uma visão muito mais individualista e moralista da perfeição,
que levou ao legalismo e ao “orgulho espiritual” muitas vezes vinculado a esta doutrina.
Por outra parte, dada a posição política conservadora de Wesley, todo progresso social é
concebido como uma mera extensão e correção das instituições e estruturas existentes.
Inclusive o parágrafo citado não deixa de manifestar em sua “visão utópica” rasgos
conservadores e teocráticos. Possivelmente teria que aprofundar a crítica. Parece-nos,
com efeito, que apesar destas afirmações, Wesley não superou uma antropologia
individualista, que concebe as relações humanas como extrínsecas à pessoa, um campo
onde esta exercita sua virtude. Isso obedece, como dissemos anteriormente, a seu
desconhecimento do caráter estrutural da vida humana. Dadas as circunstâncias
históricas e as próprias limitações ideológicas e teológicas, é difícil imaginar que o
metodismo pudesse haver cumprido um papel muito distinto do que realmente teve na
Grã-Bretanha dos séculos XVIII e XIX.
Não se trata, pois de reivindicar um suposto papel “revolucionário” do metodismo
ou “libertador” de sua teologia. O que nos interessa, sim, é observar uma temática
teológica particularmente significativa frente aos problemas de uma práxis histórica
libertadora na América Latina. Mais precisamente, Wesley propõe, dentro da teologia
protestante, tratando de manter a fidelidade ao teocentrismo cristológico da mesma, uma
problemática ineludível para uma teologia que queira assumir um compromisso sério
com um projeto histórico de libertação: Que liberdade de ação fecunda, a nível
histórico, tem o homem, individual e coletivamente? Que valor transcendente, que
significação escatológica, tem um projeto humano? Que possibilidade de progresso para
a justiça e amor do Reino se pode esperar na História? Que relação pode haver entre o
Reino de Deus como ato divino escatológico e a ação humana – entre a salvação como
empreendimento ou vocação?
Wesley se nega a dar uma resposta unilateral que exclua o segundo termo destas
perguntas e condene o homem à intranscendência em sua existência real e histórica. Tal
antropologia lhe parece indigna da universalidade da graça e do poder do amor divino.
A articulação de suas respostas, dentro do marco das categorias teológicas de sua
época está muito longe de satisfazer-nos. O projeto histórico com o qual o metodismo
entrelaçou sua espiritualidade de origem, que se assemelha bastante ao de nossas
próprias origens evangélicas latino-americanas, já não representa para nós uma
possibilidade libertadora. Mas as perguntas que se atreveu a propor à sua tradição
teológica seguem sendo fecundas para nosso quefazer teológico e pastoral hoje na
América Latina.
NOTAS
(*) Nota do tradutor: A experiência religiosa mais significativa de Wesley ocorreu
no dia 24/05/1738 na Rua Aldersgate, em Londres; chamada também de “a experiência
do coração aquecido”.
1) Albert C. Outler, “Methodist Theological Heritage: a study in perspective”, em
Paul Minus (ed.), Methodist Destiny in an Ecumenical Age (Nashville, Abingdon Press,
1969), p. 49.
2) T. Runyon, Sanctification and Liberation (op. cit.), p. 10.
3) Institutes 3:11,6.
4) K. Barth, Kirchliche Dogmatik, IV;2, p. 504.
5) Ibid., p.502.
6) Rupert Davies, “Justification, sanctification and the liberation of the person”, em
Runyon (ed.) Sanctification and Liberation (op. cit.) p. 68.
7) Works, 5, pp. 605.
8) Otto Weber, Grundlagen der Dogmatik (Neukirchen, Verlag der Buchhandlung
des Erziehungsvereins, 1962) II, p. 363.
9) Liberación de la Teologia (Buenos Aires, Carlos Lohlé, 1975), pp. 160-161.
10) Ibid., p. 172.
11) Quem primeiramente chamou minha atenção sobre este paralelo entre a idéia
paulina de “obras” e a noção de “trabalho alienado” foi K. Lenkensdorf numa tese não
publicada sobre a teologia do apóstolo Paulo apresentada na Universidade do México.
Veja-se meu livro “Ama e faze o que quiseres” (Buenos Aires, Editora La Aurora,
1971) pp. 41ss; “Doing Theology in a Revolutionary World (Philadelphia, Fortress
Press, 1975) pp. 110-111. Recentemente, no artigo acima, elaborou a mesma analogia
(op. cit. pp. 22-30).
12) Runyon sustenta que Wesley não cai na armadilha de fixar o ordo como
seqüência e que é isso que lhe permite manter a prioridade da graça sobre o significado
das obras. A justificação pela fé não seria para ele “um ponto de partida que marca o
curso do futuro que será construído”, mas o centro em torno do qual “gira a dança da
vida” (op. Cit. P. 36). A figura me parece muito significativa para caracterizar uma
correta compreensão da unidade de justificação e santificação. Porém, duvido que se
possa afirmar que Wesley manteve conscientemente essa unidade em termos tão claros.
13) Veja-se Outler, op. cit., pp. 49-66. Outler faz uma significativa história do
problema, sublinhando a definição de Ambrosiaster, “Facenti quod in se est, Deus non
denegat gratiam”, para mostrar que há uma afirmação teológica e antropológica firmada
nestes termos que deve ser relacionada com a ênfase agostiniana – reformada. “Que
Wesley foi sinergista dificilmente se pode negar, a menos que o “sinergismo” seja
definido em termos exclusivamente pelagianos” (p. 58).
14) Op. cit. p. 10.
15) Works, 5, p. 337.
16) Works, 5,m p. 46.
IV CAPÍTULO
A ECLESIOLOGIA WESLEYANA
... Uma Igreja que nasce do povo?
Temos visto que, embora com suas ambigüidades, Wesley manifestou um interesse
pela condição do povo pobre e buscou formas (basicamente assistenciais) de aliviá-la.
Também tratamos de mostrar que sua intuição teológica, ainda que limitada pelos
condicionamentos ideológicos e teológicos de sua época, propõe uma problemática
frutífera para nossa reflexão teológica latino-americana. Porém, nem o Wesley
“reformador social” nem o Wesley “teólogo” tocam o centro de sua preocupação e de
seu trabalho. É na pastoral, com a qual responde às exigências do povo e aos problemas
que estas suscitam para a igreja, que encontraremos o verdadeiro gênio do metodismo
primitivo.
Como Wesley a concebe, a missão do metodismo não é outra que a de “levedar toda
a massa” (da igreja) a fim de que se estenda “a santidade bíblica por todo o país”.
Começa sua tarefa como pregador. Mas muito depressa se dá conta de que a
necessidade pastoral excede o mero anúncio oral ou a conversão individual: Há que
criar as condições e estruturas nas quais possa tomar forma concreta essa “santidade”
que a Escritura exige na qual o novo “sujeito” que nasce com a conversão/regeneração
cresça e frutifique. Por isso nos voltamos agora para a eclesiologia de Wesley, em busca
de elementos que possam ser significativos para nossa situação. (1)
A ECLESIOLOGIA EXPLÍCITA DE WESLEY
Wesley não se preocupou por formular uma eclesiologia compreensiva. Para ele,
bastava a que sua Igreja definia (a Igreja da Inglaterra). Por isso podemos resumir muito
rapidamente suas afirmações eclesiológicas explícitas mais significativas. Parte
frequentemente do artigo XIII dos “Trinta e Nove Artigos” e se detém na expressão
“congregação de fiéis” (“faithful”) para destacar que se trata de uma “fé viva”, “uma
segura confiança” e não meramente “crença” ou adesão formal. Ainda que a ênfase na
fides qua não elimine a importância da “reta doutrina”, Wesley se inclina por um
mínimo de exigência – aquelas doutrinas que são centrais para a mensagem – deixando
um amplo campo para as “opiniões” diversas.
Entretanto, não se trata de uma visão puramente subjetivista. De maneira alguma
exclui da Igreja aquelas que vivem sua fé um tanto formalmente, sem aquela
experiência viva do Espírito, e segue mantendo a validade do batismo (infantil) como
acesso objetivo à família da Igreja. A Igreja da Inglaterra (Anglicana) segue sendo para
ele um lugar aberto onde a graça de Deus, objetivamente presente no ministério e nos
sacramentos, se faz acessível aos homens a fim de conduzi-los à plena maturidade de
santificação que é o verdadeiro propósito da redenção.
A atitude de Wesley no tema do ministério, intimamente ligada à sua relação com a
Igreja Anglicana, corrobora e completa este quadro. Wesley, efetivamente, aceita a
tríplice ordem de sua igreja – ainda que, com o tempo, chegue a considerá-la
conveniente e legítima mas não “essencial”. Seu propósito é exercer seu ministério
dentro da Igreja. Por isso trata por todos os meios de estimular em seus seguidores, e
depois nos pregadores leigos que o acompanham, a assídua participação nos
sacramentos e cultos da Igreja.
Quando a situação se torna tensa, insiste: “não nos separemos da Igreja... a menos
que sejamos expulsos” (Works, 8, p. 408). A afirmação repete-se frequentemente e as
ações são coerentes com elas. Mas também se deixa ouvir outro acento: “não podemos,
em sã consciência, descuidar a presente oportunidade de salvar almas enquanto
vivamos” (ibid., p. 281). Há um preço que não está disposto a pagar ainda pela unidade:
“...sei que Deus nos tem confiado uma dispensação de evangelho; sim, minha
própria salvação depende de prega-la. Se, pois, não posso permanecer na Igreja
sem deixar de fazê-lo, sem desistir de pregar o evangelho, me veria na necessidade
de abandona-la ou de perder minha própria alma” (Works, 6, p. 408).
E isso o que finalmente ocorre: vacilantemente, Wesley consente em estabelecer
uma igreja autônoma nos Estados Unidos e toma, na Grã-Bretanha, medidas com
respeito a pregadores e sacramentos que conduzirão, inevitavelmente, à separação (que
ele mesmo, entretanto, nunca consente).
Podemos assim resumir brevemente a eclesiologia explícita de Wesley:
1) Wesley modela a doutrina da Igreja com base na definição clássica da
mesma em termos da fé, da pregação da palavra e da ministração dos sacramentos;
2) Entretanto, estes elementos se acham, em tensão na eclesiologia wesleyana:
por uma parte, a fé viva – que quer dizer, uma fé consciente, provida do testemunho
do Espírito, ativa no amor – é sublinhada como requisito de vinculação à Igreja; por
outra, se reconhece uma comunidade mais ampla que esta qualificação, uma
comunidade vinculada ao batismo e à eucaristia, ainda que só dotada de uma fé
“formal”;
3) A mesma tensão se manifesta com relação à pura Palavra de Deus: se bem
que Wesley insista na doutrina, particularmente no que diz respeito à mensagem a
anunciar, está disposto a certa latitude em matéria de opiniões – deixando um amplo
campo de divergências ainda dentro de suas próprias sociedades;
4) A dimensão de ordem eclesiástica entra subordinadamente em sua definição
de igreja: aceita a ordem episcopal e os três graus do ministério de sua igreja e os
considera os mais convenientes, escriturísticos e razoáveis, mas não os únicos de
direito divino nem constitutivos da essência da Igreja;
5) Quando a estrita obediência à ordem ameaça a missão de Wesley crê haver
recebido de Deus, não vacila na decisão.
Encontramos, pois, em Wesley, uma eclesiologia clássica protestante com
elementos católicos fortemente sublinhados. Porém, tudo isso tem sido colocado no
contexto de uma paixão evangelizadora e missionária. Na crise social e religiosa de sua
época, Wesley chama a igreja para entrar na nova época que se abre como uma força de
evangelização. Sua igreja não está em condições de responder a esse chamado e o
conflito não pode ser evitado. Mas não é somente isto: a ênfase missionária introduz
uma tensão nos próprios elementos da definição eclesiológica. Ainda sem plena
consciência disso, Wesley coloca a totalidade do que constitui a Igreja como tal – a
correção da doutrina, a prática sacramental e sobre tudo a ordem eclesiástica – a serviço
da proclamação evangelizadora. Num sentido proclama na prática uma
instrumentalidade da Igreja para sua missão. Tal impostação introduz uma tensão na
definição clássica – protestante ou católica da Igreja, que está concebida em termos de
sua realidade interior e não de vinculação com o mundo não crente. Wesley não
percebeu a amplitude do problema teológico e prático que traçava. Conservador e “tory”
que era, creu que todo seu movimento podia entrar no marco da concepção tradicional
das coisas. A tensão ficou sem resolver-se teologicamente e praticamente: é a tensão
entre uma definição introvertida e uma concepção missionária da Igreja. Esse problema
segue sendo nosso problema (não só metodista) também hoje.
A ECLESIOLOGIA IMPLÍCITA
Em sua nota a Atos 5:11, Wesley oferece outra definição da Igreja: “uma
companhia de pessoas, chamadas pelo Evangelho, inseridas em Cristo mediante o
batismo, animadas pelo amor, vinculadas entre si por toda sorte de fraternidade e
disciplinadas pela morte de Ananias e Safira”. A definição está tomada do Gnomon de
Bengel, mas Wesley sublinha a expressão “unidas entre” si por toda sorte de
fraternidade”, acrescentando-lhe “animadas pelo amor”. A insistência na fraternidade
(ou “comunhão” = fellowship) como elemento básico de definição da Igreja aparece
noutras passagens de Wesley, não tanto como definição teológica, mas como exigência
pastoral, que depois sustenta bíblica e teologicamente.
Esta ênfase está plasmada na estrutura das organizações metodistas com suas
“classes”, “grupos” (bands) e finalmente as “Conferências”. Tem-se assinalado
frequentemente que esta organização se inspira nos grupos morávios (ainda que só os
grupos, não as classes nem as conferências). Entretanto, estas eram principalmente
meios de participação e expressão da experiência interior, as “Regras” wesleyanas para
seus grupos refletirem um propósito diferente.
Efetivamente, a primeira parte das regras consiste em “proibições” que apontam
para uma forma devida condizente com o Evangelho na situação imperante (tal como
Wesley o entende): descuido do Dia do Senhor, embriaguez, regateio, vaidade,
excessos. A segunda parte expressa a mesma preocupação, mas agora em forma ativa,
como estímulo mútuo à ação do bem na sociedade, o serviço ao próximo: esmolas,
conduta exemplar, tratamento correto com o próximo.
Finalmente, a terceira parte exorta à participação assídua na Igreja e aos meios de
graça: culto público, celebração da Ceia do Senhor, reunião dos grupos, assistência
diária ao ministério da Palavra, a leitura bíblica e a oração pessoal e familiar. O
elemento de “mutualidade” caracteriza os “grupos” (“No ‘grupo’ cada indivíduo é meu
monitor e eu sou monitor dele”). A dimensão pastoral, por outra parte, está presente das
classes. De todos se requer um compromisso total. Wesley encontrou assim uma relação
pessoal, face a face, numa sociedade que a indústria começava a despersonalizar.
As condições que se requerem dos membros e líderes não estão fora de suas
possibilidades, ainda que requeiram dedicação. Assim, eles são construídos em agentes
ativos e responsáveis de seu próprio crescimento.
Num parágrafo, quando trata de justificar esse sistema, Wesley nos dá um excelente
resumo de sua “eclesiologia implícita”. Aqui o citamos in extenso:
“...só quando estamos vinculados em unidade (knit together) temos ‘o alimento
dEle e crescemos que vem de Deus’. Não há momento algum em que o membro
mais débil possa dizer ao mais forte, ou o mais forte ao mais débil: ‘não tenho
necessidade de ti”. Por isso, nosso bendito Senhor não enviou os discípulos
sozinhos quando eles se achavam em seu estado mais débil, mas de dois em dois.
Quando se tornaram um pouco fortalecidos, não na solidão mas permanecendo com
ele e uns com os outros, lhes ordenou esperar (não separados, mas ‘reunidos,
juntos’) a ‘promessa do Pai’. E estavam ‘todos unânimes no mesmo lugar’ quando
receberam o dom do Espírito Santo. No mesmo capítulo se menciona expressamente
que, quando ‘foram acrescentados três mil almas a eles’, todos os que criam
estavam juntos e perseveravam não só ‘na doutrina dos apóstolos’ mas também ‘na
comunhão (fellowship) e no partir do pão’ e estavam ‘unânimes na oração”. Na
mesma linha é a descrição que o grande Apóstolo dá de como foi ensinado por
Deus, ‘para a perfeição dos santos, para a edificação do corpo de Cristo’ até o fim
do mundo. Segundo o Apóstolo Paulo, todos os que tenham e chegar ‘à unidade da
fé, a varão perfeito, à medida da estatura da plenitude de Cristo’ devem ‘crescer
juntos nele, de quem todo o corpo, composto e bem ligado entre si (ou fortalecido)
por aquilo que cada conjuntura provê, segundo a operação eficaz na medida de
cada parte, dá crescimento do corpo para edificação do mesmo em amor’” (Works,
14, pp. 333-334).
A passagem mostra as dimensões do conceito wesleyano de “comunhão”. Em
primeiro lugar, a necessidade de “estar junto” como condição do crescimento em Cristo.
No cristianismo, insiste, só há uma “santidade social”, que se alcança por uma
contribuição mútua ao crescimento conjunto – isto é para Wesley, caracteristicamente,
tanto uma verdade escritural como uma constatação prática. Em segundo lugar, esta
comunhão é pastoral e dinâmica. Não se trata do mero consolo espiritual e da
participação das mútuas experiências – o elemento predominante nos grupos morávios –
mas de crescimento, mútuo estímulo para fazer o bem e atenção mútua. Em terceiro
lugar, e por último, a comunidade deve ser concreta, organizada e visível – “num lugar”,
“estar juntos” – sem descuidar os elementos materiais: a contribuição monetária para as
necessidades de todos e para a caridade com os de fora. Finalmente, a comunidade
mesma é um elemento de evangelização; a comunidade é parte do processo missionário;
passando de caráter de “cenáculo” que tem a comunidade morávia para o de “quartel” a
serviço de toda a Igreja e, mais ainda, a serviço de toda a população. Missão e
comunidade se unem, e este é outro elemento constitutivo da eclesiologia wesleyana.
A RENOVAÇÃO DA IGREJA
Agora gostaríamos de explorar crítica e construtivamente a significação desta
prática pastoral e eclesiológica esboçada em Wesley, perguntando-nos por seu
significado atual: a renovação da Igreja, a missão no mundo e o ecumenismo.
Discutiremos os dois primeiros temas nesse capítulo, deixando o último para o capítulo
seguinte.
A tradição protestante clássica (assumida, de certa maneira, pela Igreja Católica
Romana na teologia conciliar) entende a renovação da Igreja como obra da Palavra de
Deus: só esta pode devolver ao rosto da Igreja a sua verdadeira imagem. Na tradição
pietista a renovação é fruto de um renascimento interior do crente e de uma renovação
na vida prática. No primeiro caso, o caminho é a submissão à Palavra, não meramente
como a letra da Bíblia mas como a mensagem do juízo e da misericórdia de Deus. No
segundo, não se trata tanto da apropriação do conteúdo objetivo da Palavra como da
qualidade do fervor e da piedade cristã: não basta “retornar” à Palavra, é preciso
“avivar” a fé. Nada seria tão insensato como opor entre si ambas as visões ou
estabelecê-las como disjuntiva. A oposição entre “reforma” e “avivamento” gera
corrupção teológica: uma oposição entre a segunda e a terceira pessoas da Trindade,
cuja atuação é isolada e contraposta. E por sua vez, cria-se uma corrupção na prática –
uma ortodoxia rígida, vazia de vida, “fogo pintado na parede”, no dizer de Wesley, ou
melhor, um Espírito que atua só subjetivamente, confundindo-se com as emoções ou
com um esquema de normas morais que habitualmente refletem com demasiada
exatidão o ideal moral da época, ou as necessidades ideológicas do sistema.
Wesley recusa-se a dissociar os elementos que representam ambas as tradições – os
objetivos, como a Palavra, os sacramentos, a ordem; e os subjetivos, como a
experiência, a santidade interior, a meditação, a comunhão fraternal. A “ecclesiola”
(comunhão concreta) é sua forma de vincular concretamente ambos os elementos. Por
usa vez, imprime-lhe um caráter ativo: o grupo é uma reserva de “comprometidos”
(compare-se o serviço de Pacto), dispostos a penetrar em situações novas, a escutar
ordens novas de Deus. É a escola de um apostolado leigo, na qual o crente não se
instala numa salvação obtida mas se alista numa missão que lhe exige um constante
crescimento pessoal e uma permanente relação com os demais.
Potencialmente temos aqui o que Leonardo Boff tem dito das CEBs (Comunidades
Eclesiais de Base), uma “re-invenção da igreja”, a dinâmica de uma igreja que nasce “de
baixo” – não como se tem dito numa crítica superficial, como se pretendesse uma igreja
formada pelo puro quefazer humano, mas nascida do Espírito Santo a partir da vida
comunitária do povo crente. Mais ainda, dada a composição social do metodismo
primitivo, os grupos metodistas poderiam ter vindo a tornar-se um poderoso elemento
de transformação social, alimentando o nascente movimento operário e sendo
igualmente alimentado por ele. Estas promessas só se insinuaram debilmente como
tendências e em pouco tempo resultaram frustradas. Conspiraram para isso fatores
externos e internos, certamente vinculados entre si. A análise dos primeiros escapa às
nossas possibilidades neste momento. Dos segundos, creio ser possível analisar três que
me parecem decisivos:
A) Em que pese a importância que os leigos tiveram na vida do metodismo
primitivo, Wesley nunca lhes concedeu um papel verdadeiramente decisivo na
condução do movimento, tanto pela autoridade quase ilimitada que exerceu
pessoalmente durante sua vida como pela estrutura “piramidal” que deu ao que seria a
Igreja Metodista; o pregador leigo foi um agente, mas a condução foi elitista e clerical;
B) O conservadorismo político de Wesley, seu temor de toda desordem ou
perturbação, transmitiu-se à condução do movimento metodista; quando se insinuaram
tendências críticas, quando certos líderes leigos vincularam-se a linhas sindicais mais
radicais, a liderança metodista, por persuasão ou repressão, os dispersou e não permitiu
que sua influência operasse sobre a massa do metodismo – carentes de uma teologia
verdadeiramente profética e de uma compreensão dos fatores estruturais, as tendências
mais comprometidas não puderam resistir à rápida marcha da Igreja Metodista para uma
opção de classe burguesa;
C) Na Inglaterra do século XIX que construía rapidamente seu império, as energias
metodistas se voltaram para a obra missionária, desprendendo-se da problemática
interna de sua própria sociedade (2).
Devemos deixar de lado qualquer julgamento anacrônico de um fenômeno histórico
que deve ser relacionado com seus próprios parâmetros. Mas interessa, sim, re-pensar
esse processo em nossa situação, na qual aparecem modelos eclesiais que guardam
notáveis analogias com aquele. As deficiências de ordem teológica e de compreensão
sócio-analítica que subtraíram possibilidades ao metodismo numa importante
conjuntura histórica não deixam de insinuar-se também hoje, ao mesmo tempo que
também se deixa ver o potencial de renovação transformadora da Igreja e na sociedade
de nossos movimentos.
Os temas desta reflexão são necessariamente dois: a problemática eclesiológica
proposta por uma igreja que “nasce de baixo”, na qual o povo é sujeito eclesial ativo, e a
relação entre renovação eclesial a partir do povo (e mais especificamente do povo pobre
e oprimido) e da transformação da sociedade. Em ambas as problemáticas, tanto o êxito
como as debilidades do movimento metodista primitivo tornam-se valiosos para nós.
IGREJA E RENOVAÇÃO HUMANA
A renovação wesleyana toca outro ponto crucial: a relação entre Igreja e Missão. Na
tradição da igreja “constantiniana”, que dizer, a igreja reconhecida e situada na estrutura
política e social, o corpo eclesiástico começou a ser definido cada vez mais em termos
jurídicos e institucionais. Isso ocorria, por uma parte, à semelhança da estrutura estatal
de que fazia parte, e por outra, pelas próprias necessidades inerentes ao fato de operar,
em alguma medida, como o “órgão” religioso de uma estrutura total de poder.
Na Inglaterra Hannoveriana as discussões eclesiológicas centraram-se sobre esse
tema: o problema dos “limites” da Igreja, a saber quem são os sujeitos legítimos de
autoridade. Inclusive os elementos objetivos – pregação, culto, sacramentos – tendem a
ser considerados principalmente de maneira formal, mais em termos de sua
“legitimidade”, “autorização” e “validade” que pelo seu conteúdo como realidade
espiritual.
A situação histórica, entretanto, modifica-se: no mundo moderno, a autoridade da
Igreja em termos legais é ineficaz. Tanto para a burguesia que surge como para as
massas proletárias, num mundo que seculariza-se, pouco importa quem é a “legítima
autoridade” na Igreja. Se a religião há de ter algum peso será por sua possibilidade de
responder às necessidades percebidas pelo homem. Por isso nasce o metodismo e por
isso, ante a incapacidade da Igreja da Inglaterra de compreender a nova problemática, se
produz a ruptura.
Mas a circunstância histórica envolve também um caráter teológico. A Igreja, de
fato, em termos bíblicos, é um momento de misericórdia de Deus que se estende até o
homem, um movimento de Deus em Jesus Cristo, pela obra do Espírito Santo, para a
renovação da vida humana, uma “missão” divina através da instrumentalidade ativa de
um povo escolhido para ser “testemunha”. Quando a Igreja é concebida nestes termos,
as questões estruturais não desaparecem nem se tornam irrelevantes, porque esse
movimento de Deus para a humanidade é concreto e visível, incorporado numa
humanidade e numa história, e portanto sob as condições de existência institucional e de
fator social. Mas cobram um sentido distinto, sim, porque são “relativizadas” enquanto
“relacionadas”: não são fins mas os “modos” da ação de Deus na humanidade indicados
por Deus e, portanto, inerentes à missão.
É evidente que Wesley não percebeu isto teologicamente. Sua definição da Igreja,
como temos visto, é tradicional. Mas notamos como a visão evangelizadora rompe os
modelos da definição tradicional, subordinando, com efeito, a estrutura jurídicoinstitucional à proclamação da mensagem. Talvez o teólogo americano Olin Curtis
(1815 – 1918) seja um dos poucos metodistas que tem tentado resumir a doutrina da
Igreja com base no impulso missionário concebido como a dinâmica da graça de Deus
que busca o homem. Curtis situa a Igreja no movimento que parte do propósito
universal da expiação – o eixo central da igreja – e a realidade escatológica do Reino,
onde Deus há de reinar na plena manifestação de sua santidade soberana, sobre o
cosmos inteiro, redimido para ser espelho de seu próprio ser.
Nesse movimento, a Igreja é “o laboratório do Reino”, o lugar onde o alcance
cósmico da expiação se faz visível na busca e na concepção da fé.
Não nos interessa, agora, seguir o pensamento de Curtis que, influenciado pelo
hegelianismo que havia bebido de seu mestre Martensen e pelas circunstâncias
eclesiásticas de sua época tende a exagerar as exigências em favor da Igreja, a qual vê
quase como a “encarnação” do Espírito na História. Mas é preciso destacar duas coisas:
em primeiro lugar, a vinculação entre Reino e Igreja, fazendo desta última um
instrumento do primeiro e, como conseqüência, o estabelecimento de uma unidade entre
historia da salvação e história humana. Nem Curtis muito menos Wesley, trabalharam
estes temas com profundidade. Se o tivessem feito, ter-se-iam visto obrigados a tratar de
“ler” a história contemporânea à luz desse “propósito universal” e buscado interpretar
concretamente o que significava ser “laboratório do Reino” à luz dessa leitura.
A evangelização, reconhecidamente a medula de toda a obra wesleyana, teria
alcançado, em tal caso, uma dimensão mais abrangente, ultrapassando o âmbito
“religioso” para significar não como mera conseqüência mas intrinsecamente – como
convite a participar no “laboratório de Reino” – um compromisso com a renovação da
vida humana em todos seus aspectos.
As pequenas comunidades seriam nesse caso, um sujeito eclesial ativo, em cujo seio
se gestam as visões sob a inspiração da Palavra, numa comunhão ativa e em
solidariedade com o mundo, e se inspiram e se promovem as tarefas que impulsionam a
cidade humana em direção à realidade escatológica que interpela e desafia – o Reino.
Creio que é nesta direção que buscamos nós, hoje, na América Latina, nossa
articulação eclesiológica .
NOTAS
1) Nesta mesma Cátedra tratei de analisar os aspectos mais importantes de
eclesiologia de Wesley, em 1964. Por isso não nos voltamos aqui sobre o conjunto de
temas eclesiológicos, mas apenas compilamos alguns elementos.
2) Esta é a tese defendida por Semmel na obra mencionada. Ainda que talvez não
tenha o peso decisivo que lhe adjudica o autor, seguramente se trata de um fator
importante, e a evidência que Semmel acumula em defesa de sua tese não deixa de ser
significativa.
V CAPÍTULO
CONSERVAR O METODISMO?
EM BUSCA DE UM GENUÍNO ECUMENISMO
O mero anúncio do nome “metodismo” suscita uma série de perguntas difíceis na
América Latina: Que significa para um grupo de latino-americanos vincular sua
identidade com um momento do desenvolvimento religioso da Inglaterra (e
eventualmente dos Estados Unidos)? Como conceber a missão de tal grupo religioso
num momento em que a fé cristã – majoritariamente apresentada na América Latina
pelo catolicismo – busca em nossos países achar uma práxis e uma articulação
especificamente vinculadas a seu contexto? Se há um testemunho “evangélico” (no
sentido de relação com a Reforma numa acepção ampla do termo), em que há de
contribuir a busca que assinalamos? Que sentido tem retomar uma linha parcial como a
do metodismo? Noutras palavras: Que significa “na periferia do mundo” ser parte de
uma comunidade religiosa cujos centros, origem e maiorias pertencem ao “centro”?
Como entender-se como metodista à luz de Medellín e Puebla? Que sentido tem uma
“identidade metodista” no momento em que se constitui o Conselho Latino-Americano
de Igrejas (CLAI)?
Por outra parte, não há dúvida de que no mundo ecumênico do Atlântico Norte
voltam a adquirir impulso os movimentos confessionais (ou “comunhões cristãs
mundiais” – World Christian Communions, como se costuma chamá-las). Por uma
diversidade de razões que não vamos analisar agora, consolidam-se as estruturas
confessionais e se fazem esforços para vinculá-las às “igrejas de ultramar”, como se
costumava chamá-las. Trata-se de uma oportunidade ou de uma tentação? Qual é a
matriz de nossa consciência cristã de metodistas latino-americanos? É a busca cristã
latino-americana? É o protestantismo latino-americano? É o metodismo mundial? Ou,
como se relacionam entre si estas diversas instâncias?
Nossa apresentação de hoje não pretende dar uma resposta a estas perguntas.
Seguindo a linha que traçamos nestas palestras, procuraremos acercar-nos do tema a
partir da história do metodismo inicial, traçar depois a interpretação dessa experiência e
concluir com algumas breves observações a respeito da América Latina.
NOSSA HERANÇA ECUMÊNICA
João Wesley e Jorge Whitefield utilizaram praticamente a mesma frase para
defender o direito de cada um pregar suas distintas formas de metodismo fora dos
limites subscritos pela lei canônica da Igreja da Inglaterra (Anglicana): “Considero o
mundo como minha paróquia” (1). Podemos deixar de lado a pergunta de quem cita a
quem (nenhum dos dois dá crédito ao outro pela frase). Poderia dizer-se, também, que o
tipo de consciência de sua “jurisdição mundial” sugerida pela expressão, insinua em
certa medida a atitude de “franco-atirador”, mais própria de um dito sectário que de uma
família eclesiástica de bons modos.
O que importa, entretanto, é outra coisa: para o metodismo primitivo o mundo não é
primeiramente o lugar onde se movem organizações, mas o lugar da missão, o cenário
sobre o qual a Igreja cumpre o mandato de anunciar o Evangelho e chamar homens e
mulheres para a conversão. O metodismo não pode esquecer (em relação consigo
mesmo como “estrutura” ou “movimento” mundial) qual é o berço de qualquer
consciência do mundo que possa adquirir.
Devemos recordar que embora Wesley tenha rechaçado a limitação que lhe
impunha a lei canônica, de maneira nenhuma rechaçou a Igreja da Inglaterra. Deu-se
conta, entretanto, que o despertar metodista precipitaria uma resposta de sua igreja.
Depois de negar qualquer intenção de separar-se dela, comenta: “Cremos, entretanto,
que (os metodistas) serão expulsos, ou que levedarão toda a Igreja” (Works, 8, p. 281).
De certa maneira, ocorreram ambas as coisas: o despertar metodista realmente
levedou, de distintas maneiras e em medidas diversas, quase todas as igrejas existentes
na Grã-Bretanha e mais além, inclusive – as igrejas metodistas atuais são só uns poucos
“pães” resultantes desse processo. Mas alguns também foram “expulsos” da Igreja
Anglicana. A parte destes resultados históricos, o que se expressa aqui tem que ver com
a vocação ecumênica do metodismo. Por sua própria origem, se bem entendemos, a
Igreja Metodista não pode considerar-se ilhada, nem perfeita em si mesma, nem
desvinculada das demais.
A função original do metodismo não pôde realizar-se plenamente nos termos em
que Wesley o concebeu. Hoje está cristalizado numa série de igrejas metodistas. Mas
essa mesma história ilustra e dramatiza a ironia e o absurdo da divisão da Igreja. Por
causa da sua própria origem, a Igreja Metodista é chamada para a superação de sua
separação, para a unidade, não meramente “espiritual”, mas de comunhão, de
comunidade, de unidade de missão e de solidariedade total – como sua própria
eclesiologia o reclama. Um “confessionalismo” metodista pareceria ser a negação mais
flagrante da natureza do movimento original de Wesley – a levedura na massa. Se as
igrejas metodistas querem ser conseqüentes consigo mesmas, não poderiam viver de
outra maneira que a de buscar constantemente sua integração na Igreja universal.
Nesta busca de catolicidade, Wesley nos assinala algumas direções. A unidade para
ele é basicamente missionária: “desejo fazer uma aliança ofensiva e defensiva com todo
o soldado de Jesus Cristo. Não só temos uma fé, uma esperança e um Senhor, como
estamos diretamente comprometidos com o mesmo combate”.
Em matéria de doutrina, recordamos a distinção de Wesley: unidade naquela
doutrina que forma o núcleo da proclamação missionária da Igreja, liberdade no que
opera para a edificação da Igreja. A distinção não é totalmente adequada:
primeiramente, porque proclamação e edificação não podem distinguir-se tão
facilmente, e depois porque a edificação há de ser, tanto quanto a proclamação,
realizada na verdade e isso obriga a mesma fidelidade doutrinal em ambas. Entretanto,
Wesley não se desinteressa da pureza doutrinal, como às vezes tem sido proclamado.
Dão testemunho disso os inflamados conflitos doutrinários em que se meteu em
diversas ocasiões. Mas o cortante rechaço de uma posição doutrinária – com respeito à
predestinação, por exemplo – não devia ser, segundo ele, obstáculo à comunhão, não
somente na igreja, mas inclusive, em suas próprias sociedades metodistas. Wesley não é
suficientemente claro com respeito aos últimos critérios dessa tolerância. Mas sua
consciência do “penúltimo” caráter da doutrina constitui um elemento de importância
nas discussões ecumênicas atuais.
Esta revitalização da doutrina corresponde igualmente em Wesley à relação
indissolúvel que ele estabelece entre comunhão na Palavra e comunhão no amor. As
evidências do caráter cristão de uma pessoa abarcam sempre, para Wesley, três campos:
a experiência consciente (a “fé viva”), a doutrina e a vida cristã (a prática ativa do
amor). É verdade que a segunda fica um pouco relegada em relação à primeira e à
terceira. Mas isto assinala, precisamente, um campo muito importante para a reflexão
ecumênica: a comunhão na fé é comunhão na práxis do amor.
AS CONDIÇÕES ECUMÊNICAS
Para tratar de re-interpretar nossa herança ecumênica faz-se necessário traçar certas
coordenadas em relação com o espaço teológico, eclesiástico e ecumênico.
Teologicamente faz-se necessário reflexionar sobre o tema da unidade tanto em seu
sentido local quanto universal. Não se deve entender nem uma nem outra como a
preservação ou imposição de uma “totalidade” dada de doutrina, jurisdição ou ordem
eclesiástica. A unidade se refere, mais precisamente a essa qualidade da atividade de
Cristo na Igreja que a impulsiona para todos e para tudo, ao movimento
pluridimensional do Espírito Uno no qual todos somos chamados à novidade de vida
direcionada ao todo para o qual ele foi enviado. Esse movimento ocorre na arena da
história humana e por conseguinte encontra sua expressão nas condições sempre
variáveis e concretas da existência histórica.
A unidade se refere, por outra parte, à busca de integridade e pleno desenvolvimento
de sua vida por parte da igreja em cada situação local assim como em toda a oikoumene
– toda a terra habitada. Tanto a “encarnação” local como a preocupação universal, a
comunhão com a universalidade devem se esforçar por cobrar visibilidade.
Uma Igreja que toma a sério a unidade – que quer ser verdadeiramente “católica”no
sentido etimológico do termo – se esforçará para que seu pensamento teológico, sua
resposta litúrgica, suas formas institucionais, seu testemunho e sua práxis no mundo
reflitam a novidade que o Espírito cria e descobre em cada nova situação, uma vez que
levam as marcas identificáveis do Cristo uno. Quer dizer, uma igreja que aspira a ser
verdadeiramente “católica” (universal, ecumênica) estará caracterizada pela disposição
de seguir a Cristo em seu ministério de paz e justiça em meio a todos os conflitos e
antagonismos da história, arriscando as pressões e tensões que tal ministério desperta na
vida da Igreja, uma vez que vive a ternura pastoral que vigia a comunhão de todos os
membros do Corpo.
Quando olhamos para o âmbito eclesiástico, a própria palavra “metodismo” nos
recordará que a História do Cristianismo tem marchado, pelo menos durante os últimos
quatro séculos, sobre os trilhos do confessionalismo. A auto-compreensão de tais
famílias confessionais constitui um problema muito complexo. Por uma parte, varia não
só de uma para outra dessas famílias, mas também dentro da história de cada uma delas.
Por outra, nossa situação presente nos conduz a uma grande perplexidade:
teologicamente, a existência confessional separada se justificaria somente pela
afirmação de que nossa confissão particular incorpora de uma maneira única a
compreensão correta do Evangelho e a plenitude da Igreja. Mas na realidade, a maior
parte das igrejas (incluindo, em certa medida, a própria Igreja Católica Romana)
vacilam muito em expressar sem qualificações tal pretensão.
Em tal situação, pareceria que desembocamos inevitavelmente numa teoria de
complementaridade que é sumamente questionável, tanto teológica como praticamente.
Segundo tal posição, cada uma das confissões existentes seria uma “parte” ou um
“ramo” da Igreja universal que se acharia (e, por conseguinte, não poderia tornar-se
visível) na soma total das famílias confessionais.
Tal ponto de vista dificilmente possa se justificar em termos do conceito de “igreja”
no Novo Testamento (para o qual as “igrejas” não são partes ou seções, mas
representação e corporificação plena da Igreja). E é teologicamente inaceitável porque
desloca a unidade e a catolicidade da Igreja e mesmo sua existência visível como Igreja
– para o âmbito de uma abstração (uma adição conceptual das Igrejas existentes) ou
para o futuro (a união esperada). Minimiza as diferenças reais e consequentemente
ameaça levar ao “indiferentismo”, o que Pio IX vira e condenara.
É diante desta situação que se tem falado frequentemente “do fim da era
confessional” (2). A existência continuada de estruturas confessionais, num momento
em que não estamos seguros de sua justificativa, cria uma intranqüilidade e má
consciência que, às vezes, se expressa em agressividade e auto-afirmação e outras,
numa vacilação e inoperosidade. O problema é particularmente agudo para o
metodismo, que nunca teve uma identidade doutrinária confessional bem definida e que
tem afirmado quase abertamente a idéia de complementaridade (3).
Nossa história protestante manifesta, além disso, outra ambigüidade. As famílias
confessionais, na verdade, têm procurado prover a medida de universalidade que as
igrejas têm podido realizar em termos de continuidade e conexionalidade histórica e
geográfica. Foram os instrumentos de transmissão da tradição doutrinal, ministerial e
litúrgica. Obedeceram à vocação missionária e estenderam a família de Deus até os
extremos da terra. Ofereceram uma família universal que abriu o horizonte dos grupos
locais e lhes deu uma fraternidade mais ampla.
Por outra parte, a honestidade nos obriga a admitir que a “universalidade” das
famílias confessionais está impregnada de artificialidade, alienação cultural, sectarismo,
dominação e rigidez que impediram ou restringiram a manifestação da “catolicidade
local” e forçaram as igrejas a uma existência separada, estreita e raquítica (4).
No plano secular, finalmente apenas é necessário assinalar que a unidade e a
catolicidade das igrejas acha expressão sempre nas condições de configurações
particulares de fatores sociais, políticos, econômicos e culturais. No caso, vale a pena
voltar a recordar como essas condições afetaram a origem e a expansão do metodismo.
A marca da Revolução Industrial é claramente visível nos valores e normas e ethos do
metodismo inicial como se observa em sua cristalização nas Regras Gerais. Igualmente,
a expansão do metodismo na esteira da expansão colonial e econômica britânica e norteamericana, foi naturalmente moldada pelos padrões geográficos e influenciados pelo
conjunto das idéias e modelos que acompanharam esses processos históricos. Essa é a
matriz do mapa eclesiástico moderno (5).
Poderíamos resumir dizendo que o “metodismo mundial” é uma realização
particular do cristianismo, plasmada no padrão confessional protestante, pelas forças do
despertar evangélico e pela expansão missionária do século XIX, que por sua vez foram
fortemente condicionados pela Revolução Industrial e pela expansão colonial e
imperialista da Inglaterra e dos Estados Unidos.
A PROBLEMÁTICA
Devemos aprofundar um pouco a problemática do metodismo, com base nas
dimensões teológicas, eclesiásticas e secular que esboçamos nas páginas anteriores.
Nosso problema é o de uma igreja confessional numa época ecumênica. Mas não penso
aqui só (ou principalmente) no ecumenismo clássico de aproximação ou união de
igrejas, mas no fato de que as correntes de teologia, piedade e atitudes éticas se movem
independentemente das plataformas confessionais.
Menos abstratamente: os crentes se unem através das fronteiras confessionais e se
enfrentam dentro das mesmas. A educação teológica, por outra parte, já não pode ser
concebida a não ser como instituições e corpos docentes e estudantis multiconfessionais
(ainda que nas instituições confessionais!).
Nasce um “ecumenismo secular” cujo eixo não são as relações das igrejas
tradicionais, mas a participação comum nas tarefas de construção da cidade humana.
Isto não significa necessariamente que nos movemos, mas significa, antes de mais nada,
que as linhas de divisão e de tensão que desdobram a diversidade e pluriformidade da
compreensão cristã da fé (e que por sua vez manifestam o mistério do pecado na igreja)
não guardam relação com as linhas confessionais.
Nosso problema é como relacionar a pluralidade da fé cristã e como exercer o
discernimento da fé que os padrões do mundo do Atlântico Norte dos séculos XVI a
XVIII cristalizaram nas famílias confessionais com a nova diversidade e disjuntivas de
nossa época. Tal coisa não pode ser uma simples reorganização de velhas ênfases e
interpretações em configurações novas, mas a emergência de formas realmente novas
que o Espírito cria e desperta.
Temos assinalado o surgimento de tendências “confessionais” que agora se
apresentam a nós como a “nova etapa do ecumenismo”. Como responderemos a este
convite, como metodistas da América Latina (portanto, do chamado Terceiro Mundo)?
Bem sabemos que falar de história universal nesta segunda metade do século XX é falar
de um mundo crescentemente unificado e crescentemente dividido. A tecnologia que
tem inter-relacionado, comunicado e unificado todas as áreas do mundo e da vida
humana tem incrementado o desequilíbrio do poder político, econômico e militar entre o
chamado “mundo desenvolvido” e o “terceiro mundo”.
Que significa em tais condições convidar-nos a centrar nossas relações, em
estruturas de unidade mundial (organismos confessionais) edificados sobre a base de um
centro na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos (Nova York, Genebra, Londres,
Roma) e que reproduzem modelos seculares?
É perverso ou exagerado pensar que a nova ênfase nas famílias confessionais
nascida e impulsionada desde o mundo do Atlântico Norte (e imposta sobre as igrejas
do Terceiro Mundo frequentemente com grande emprego de propaganda e recursos)
representa o esforço das igrejas desse mundo (por certo muitas vezes inconsciente e
bem intencionado) de retomar um poder e uma iniciativa que tiveram que compartilhar
em grande medida nos organismos interdenominacionais, onde a presença do Terceiro
Mundo se faz sentir solidariamente?
Que poderá representar em cada família confessional, constituída massivamente
pelas igrejas dos países de origem da confissão, a problemática de pequenas igrejas
“periféricas”?
O tema é sumamente grave e devemos observar sua profundidade quando se fala
facilmente de “Igreja Mundial”, de “superar as distâncias culturais, geográficas,
idiomáticas” e unir-nos numa “tradição” comum. Como se essa possibilidade fosse
simplesmente conseqüência do caráter supostamente “supranacional” de tais igrejas.
Quando as igrejas em Zimbabwe e Nicarágua, por exemplo, eram convidadas, em nome
da solidariedade cristã com as igrejas da Inglaterra ou dos Estados Unidos, a divorciar se da luta de seus países contra a escravidão segregacionista ou imperialista imposta ou
sustentada por aqueles países, quando se lhes pede que se subtraiam à tensão e paixão
que só podem sustentar nessa luta, quando se lhes sugere que a participação em tais
movimentos representa uma “ingratidão e até “heresia” – então a “unidade”invocada
não é outra coisa que alienação. Os membros dessas igrejas podem muito bem afirmar
(muito sinceramente) que “superam” o estreito nacionalismo de seus compatriotas; os
cristãos dos países poderosos podem jactar-se de uma “comunhão” “acima” das tensões.
– e ambos se enganarão a si mesmos e aos outros, e os demônios da superioridade, a
complacência, o ressentimento e a amargura prepararão sua colheita de destruição sob o
manto de uma falsa paz.
A verdadeira reconciliação não se alcança ignorando as tensões e os conflitos que
destroem a vida e a dignidade humana, mas resolvendo-os no âmbito da realidade, não
da ilusão. E isso significa participação na luta. Só igrejas que se sentem inteiramente
responsáveis por seus respectivos povos ante o Senhor, na justiça e na paz do Reino
podem contribuir para uma verdadeira reconciliação a nível internacional. Creio que é à
luz destas considerações que devemos analisar nossa participação nos movimentos
confessionais.
Mais especificamente, temos que nos perguntar o que é o metodismo em termos
confessionais. Já sugeri que o metodismo tem uma consciência confessional débil em
termos doutrinários. Wesley parece ter estado certo ao afirmar: “Não sustentamos uma
doutrina particular”. Em que se apóia pois nosso “gênio” confessional? Durante os
últimos anos se escutam vozes que sustentam que podemos compensar nossa falta de
identidade doutrinal sublinhando nossa organização aparentemente eficiente. Para
alguns é o sistema conexional de concílios, para outros o episcopado com poder de
nomeação, para outros o ministério itinerante.
O metodismo pode não ter um profundo legado teológico, mas é um movimento
estreitamente vinculado e eficiente. Se nisso residisse nossa singularidade, deveríamos
confessar-nos particularmente mal equipados para enfrentar a situação que procurei
descrever. Significaria que o metodismo está amarrado a um modelo estrutural derivado
dos padrões organizacionais da grande indústria e das corporações multinacionais (ou
concomitante com eles) – exemplos típicos de estruturas de dominação. Quaisquer que
tenham sido os méritos que este sistema possa ter tido no desenvolvimento das igrejas
metodistas, parece-me que a unificação desde a cúpula, a cadeia de mando e o princípio
de mando de heteronomia que permeiam essas estruturas as desqualificam para uma
família eclesiástica mundial em nosso tempo.
Isso não significa uma desqualificação do institucional. Não há dúvida de que a
habilidade de institucionalizar sua preocupação missionária de modo eficiente é um fato
básico de despertar metodista que tem vigência permanente.Mas creio que o
fundamentalismo institucional que insiste na organização como nossa herança distinta,
comete uma grave falácia, a saber, confundir uma forma particular de expressão com a
profunda instituição que se expressou nela.O coração da eclesiologia de Wesley – creio
– é sua vinculação da ênfase na Koinonia dos crentes e a ênfase no caráter missionário
de sua vocação. Wesley articulou esta concepção, não tanto num sistema doutrinário
como em termos de uma série de estruturas (das que já falamos) que deram expressão
visível à sua visão eclesiológica. Parece-me que só uma lealdade ignorante e mal situada
insistirá em que estas estruturas particulares são o sacramento sine qua non e infalível
do espírito metodista. Ao contrário, nossa tarefa é achar em nossa situação particular,
segundo nossas necessidades e possibilidades, as estruturas que melhor expressem e
implementem para nossa época a síntese do impulso missionário e a dimensão
comunitária da fé.
A herança que nos legou o gênio organizacional de Wesley não é a forma particular
de visibilidade que ele construiu, mas o impulso para a visibilidade. Se há uma tarefa
comum (ela consiste na busca daquelas formas locais e universais de visibilidade que
melhor expressem, em nosso mundo pós-confessional dividido e conflitivo) a vocação
missionária e comunitária do povo de Deus.
TEMAS PROSSEGUIR
Se o que tentei apresentar tem sentido, nossa missão não é “preservar” mas
“repartir” nossa herança metodista. Por conseguinte, temos que encarar nossos esforços
como os de um testamenteiro ou executor do testamento (ou executivo?) com sua dupla
tarefa: repartir a herança, de modo que ao final do processo à semelhança do
testamenteiro, nos tornemos desnecessários, depois de assegurar-nos de que os
legítimos herdeiros entraram na plena posse do que lhes corresponde. Os dois aspectos
da tarefa devem ser sublinhados. O metodismo de hoje se faria gravemente culpável se
guardasse para si o que lhe tem sido dado, ou se o dissipasse irresponsavelmente, ou o
deixasse perder. Creio que esta figura (que, certamente, tem limitações de qualquer
metáfora) pode ajudar-nos a ver vários temas concretos em nossa situação de metodistas
latino-americanos. Temas que só anuncio, como possíveis tarefas a considerar.
Em primeiro lugar, que classe de corpos confessionais necessitamos? Penso
particularmente no Conselho de Igrejas Evangélicas Metodistas da América Latina
(CIEMAL) e nas comissões ou grupos de trabalho em torno do mesmo. Creio que não
há lugar para organizações confessionais permanentes porque o serviço que as
denominações ofereceram na preservação da fé e na expansão da missão encontra hoje
adequados canais trans-confessionais ou ecumênicos. Mas devemos assegurar-nos que a
tradição, o valor e a experiência que o Espírito de Deus criou nas denominações seja
preservado nas novas estruturas. Mas não basta dizer que as estruturas denominacionais
(neste caso, latino-americanas) que criamos não são permanentes, uma vez que as
construímos de tal maneira (com ou sem consciência disso) lhes damos um caráter que
as condena à auto-perpetuação.
O que hoje sabemos das características da auto-preservação das burocracias, a
inercial das formas institucionais e o expansionismo inerente nos orçamentos deveria
levar-nos a tomar as medidas necessárias para nos protegermos contra esses riscos. A
precariedade não deve ser meramente proclamada, mas visível nas próprias estruturas e
em seu funcionamento. A agência que opera como “testamenteiro” deve ser estabelecida
de acordo com sua função: os mecanismos e o impulso para a auto-liquidação devem
estar presentes desde o começo. Esses critérios deveriam guiar as decisões com respeito
a programas, formas de comunicação e pessoal.
Um segundo tema tem que ver com a melhor forma de garantir que a “herança” seja
distribuída, quer dizer, que toda a comunidade cristã latino-americana possa receber o
que, como metodistas, tenhamos que contribuir.
Para isso é necessário, ao menos:
A) estimular as igrejas (a nível nacional e local) e facilitar-lhes que articulem e
comuniquem sua herança pastoral: a herança a transmitir não é tanto um caudal fixo
mas a recepção viva e o exercício diário dessa tradição;
B) utilizar para essa participação da vida e experiência de nossas igrejas todos os
meios e canais ecumênicos existentes, realizando com eles e por meio deles quantas
tarefas nos sejam possíveis – no nível continental isso significa uma relação constante
com o Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI), e a nível nacional ou regional
com diversas instâncias interdenominacionais;
C) a necessária tarefa de investigação e de reflexão histórica e doutrinal deve ser
fazer, na medida do possível num contexto ecumênico (ainda quando se trate da história
e da teologia metodista);
D) quando as circunstâncias (que em nosso continente se dão com freqüência por
causa do diferente desenvolvimento de uma consciência ecumênica em distintas igrejas
e regiões) nos levem a empreender tarefas ou expressar posições que não achem canais
ecumênicos, não devemos vacilar em realizar uma tarefa “pioneira”, mas devemos
tomar todas as medidas para deixar aberta a participação de outros, com pleno direito,
como co-atores dessas tarefas.
Um terceiro tema muito importante para nós é a relação ecumênica com o
Catolicismo Romano. Nossa tradição metodista é particularmente interessante a este
respeito, pois ainda que Wesley julgue às vezes com certa dureza o “Romanismo”,
mantém um enorme interesse por sua tradição espiritual (por exemplo, os místicos
espanhóis) e trata de fazer justiça, em que pese as críticas que lhe dirige, à insistência
católica numa participação ativa do homem no encontro salvífico. Para nós, entretanto,
a perspectiva de relação deve ser primeiramente “missionária” mais que doutrinária; é o
desafio do nosso continente subdesenvolvido, de nossos povos despojados, da defesa
ante a violação dos direitos humanos ou ante o avanço de regimes totalitários, é o
chamado de um povo que confessa a fé sem encontrar nela, muitas vezes, a inspiração
para uma busca ativa da justiça e da solidariedade. Essa é a matriz de nossa relação com
o Catolicismo.
Em relação com isto, o Catolicismo latino-americano não se nos mostra como uma
totalidade uniforme e unívoca, mas atravessada pelas mesmas tensões e interpelada
pelas mesmas visões que nossas igrejas. É em relação com essas situações reais – e não
meramente em nível organizacional (ainda que sem desprezar este) – que devemos
amarrar nossas relações (6).
Finalmente, devemos referir-nos a um ecumenismo que Wesley não contemplou,
mas que está implícito na idéia de “liga ofensiva e defensiva com todo soldado de Jesus
Cristo” quando esta é vinculada à missão da igreja como “laboratório do Reino”. Com
efeito, os cristãos não estamos sós ou isolados na tarefa de buscar uma vida humana
mais livre e plena. Compartilhamos de uma humanidade comum que se concretiza em
condições históricas particulares, em projetos e esforços a nível político, social, cultural
e econômico. São tais projetos e avanços puramente “seculares” ou têm significado
“teológico” em relação com o “propósito universal” de Deus e com a meta escatológica
do Reino? Na tradição wesleyana do reconhecimento de uma graça universal, fica
aberta a porta para uma compreensão da unidade que – sem eliminar a especificidade da
mensagem do Evangelho – nos impele a participar, sem falsas ilusões utópicas mas
também sem ceticismo, na empresa humana comum de libertação que é decisiva hoje
em nosso continente.
Este ecumenismo que se reúne em torno da luta pelos direitos humanos, pelos
direitos dos pobres, por uma vida humana digna, pela auto-determinação dos povos,
pelo direito do povo de decidir sobre seu destino – este ecumenismo não substitui a
reintegração da família da fé, mas é tão legítimo, cristão e necessário como aquela.
Nós os cristãos nos somamos sem reclamar privilégios, sem pretender cobrar nossos
bens por antecipação: somamo-nos tal e como somos, confiados na graça que “envolve
e rodeia” a vida da humanidade e de cada homem “desde o princípio” e até à
consumação. Como diz um dos hinos wesleyanos:
Para quem Jesus nos convocou?
para anunciarmos que sua graça é para todos,
e reivindicamos o valor de sua paixão
capaz de salvar dez mil mundos...
Ele prometeu atrair toda a humanidade para si,
sentimos sua atração desde o alto,
e anunciamos com Ele a lei da graça
e publicamos o Decreto do Amor
Unimo-nos com todos os nossos amigos
para louvar ao Deus de nossa salvação,
o Deus de amor eterno,
o Deus de graça universal.
(Works, 3, pp. 93 s)
NOTAS
1) John Wesley, Letters, I/285, 20 de março de 1739, cf. Journal de 11 de junho de
1739. George Whitefield, Letters: 10 de novembro de 1739.
2) A expressão foi utilizada pelo teólogo luterano alemão Wolfang Trilhaas, num
Congresso Luterano Latino-Americano em Lima (1965). Cf. Ekklesia (Vol. X, 22-23;
março/agosto de 1966).
3) A introdução histórica da Discipline of the Methodist Church, por exemplo, fala
dessa igreja como “a part of the Church of our Lord”.
4) Quando os luteranos argentinos se dividem em “Missouri”e “Unidos” e os
metodistas brasileiros em “livres” e “episcopais” ou os batistas “do Sul” e “do Norte”
(dos Estados Unidos) em nossos países, quando a conexionalidade força uma Disciplina
totalmente alheia às tradições culturais dos povos da Ásia, África e América Latina,
quando uma junta dos Estados Unidos concebe e escreve literatura que (traduzida em
diferentes idiomas) se supõe que deitará raízes e nutrirá a fé e a devoção de crianças e
jovens do Quênia , Ceilão, Alemanha e Venezuela – quando tudo isto ocorre é evidente
que não podemos falar de universidade e sim, da dominação universal de um padrão
cultural nacional e lingüístico (Norte-Americano ou Europeu).
5) Já temos assinalado a importância do desenvolvimento missionário na história do
metodismo. Não foi somente uma relação indireta e circunstancial entre expansão
colonial e missão: o metodismo, através de seus líderes, tomou consciência dessa
relação – perdendo, por sua vez, muito da visão crítica que Wesley mesmo havia visto
em algumas das manifestações dessa expansão (tráfico de escravos, política colonial na
índia, etc). Por isso Watson se felicita pelo fato de que a providência haja permitido que
ambos os movimentos – metodismo e expansão colonial - tenham nascido
contemporaneamente, de modo que puderam exportar “não só nossas mercadorias, mas
também nossos missionários; não só nossos fardos (balas), mas também nossas Bíblias”
(citado por Semmel, op. cit. P. 162). Com respeito à expansão americana, o tema tem
sido amplamente documentado.
6) Um estudo mais profundo deste tema deveria aprofundar a questão do papel do
protestantismo no continente onde a tradição histórica dá ao Catolicismo certas
possibilidades e responsabilidades únicas. Como cumprir essa missão sem limitar-nos a
“cavalgar” sobre a pastoral católica nem pretender “substituir” sua missão. Para avaliar
adequadamente este ponto deveríamos aprofundar também nosso conhecimento e
análise da complexa – rica e às vezes contraditória – história e realidade do Catolicismo
latino-americano.
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METODISMO: - Igreja Metodista de Vila Isabel