METODISMO: RELEITURA LATINO-AMERICANA José Miguez Bonino Co-edição: Editora UNIMEP Faculdade de Teologia (Editeo) Publicação de 1883 Tradução: Adesses Antônio Oliveira Araújo OBS: O presente livro é resultado de Conferências proferidas na Semana Wesleyana em maio de 1882 na Faculdade de Teologia-SP. I CAPÍTULO FOI O METODISMO UM MOVIMENTO LIBERTADOR? Quem somos, como cristãos evangélicos metodistas na América Latina? Afinal de contas, é importante tal pergunta? Não é suficiente identificarmo-nos como “cristãos latino-americanos”? A pergunta não é apenas retórica. Tem, ao contrário, dois aspectos importantes. Um tem a ver com a urgência das situações que enfrentamos em nosso continente: enquanto são assassinados dezenas de milhares de camponeses, indígenas e jovens; enquanto governos ditatoriais condenam milhões à miséria e à fome com seus planos econômicos , enquanto o ferrolho dos interesses multinacionais se fecha sobre o futuro de nossos povos, tem sentido determo-nos a investigar história e tradições do século XVI, ainda que para legitimar nossas lutas do presente? Seria necessária ou útil tal legitimação? Não nos basta o questionamento do Evangelho e a urgência da situação? O outro tem que ver com a nossa verdadeira identidade de “metodistas” latinoamericanos. Existe, realmente, uma tal identidade que nos distinga como metodistas? Não será artificial a tentativa de reconhecermo-nos em modelos de supostos antepassados com os quais não temos quase nenhuma vinculação? Mais do que buscar uma linhagem histórica na Inglaterra dos Lordes, não estaremos sendo chamados para nos identificarmos plenamente com a realidade atual de nosso povo? Em principio, creio que as duas observações são corretas. A investigação de nossa “herança metodista” – como costumamos chama-la – não pode ser nem nossa primeira propriedade nem nossa lealdade derradeira. Nossa identidade não se forja primeiramente numa identificação com o passado, mas na realização de tarefas presentes e no compromisso com um projeto histórico. Entretanto – e aqui começamos com uma resposta positiva – tão pouco se forja “sem”o passado. “Há momentos na história das pessoas e dos povos, particularmente em tempos de crises”, escreveu John Mackay em 1943, “quando a memória do ontem abre um caminho para o amanhã, quando o despertar de um sentido de herança se converte em poderoso determinante de um destino” (1). Pode o passado wesleyano, a herança histórica metodista, ter para nós essa significação? Essa pergunta mereceria uma resposta mais profunda e documentada do que a que posso tentar aqui (*). Mas gostaria ao menos de fazer três colocações a respeito. A primeira é que nossa identidade como metodistas latino-americanos está, de fato, só muito indiretamente vinculada com a gênese do wesleyanismo, devido à mediação da experiência histórica norte-americana. Ainda que ela nos transmita a tradição teológica de Wesley, o faz seletivamente, conforme as ênfases que se desenvolveram no metodismo norte-americano e muito particularmente na “fronteira”, onde o metodismo realizou uma verdadeira epopéia pastoral e evangelizadora que o marcou em sua organização, em suas modalidades teológicas e litúrgicas e sobre tudo em seu “ethos” cultural. Basta visitar a congregação ou uma assembléia metodista britânica e outra americana para notar a grande diferença. Com raras exceções (ou em pequenos grupos com clara consciência histórica) o metodismo norte-americano é a matriz do nosso metodismo. Necessariamente, pois – como noutros casos- uma volta ad fontes provoca uma certa crise em nossa identidade atual. A segunda observação me parece ainda mais significativa e se refere ao nosso ingresso na vida latino-americana ocorrido especialmente no último quarto de século passado. Historicamente, isso acontece com o projeto “civilizador” ou “modernizante” de nossas elites liberais. Reconhece-se o protestantismo como portador, no plano religioso, dessa modernidade – liberdade, democracia, cultura, ciência – a que se aspira. É a religião da transição da sociedade tradicional para a moderna. E o protestantismo assume essa identidade, não só por atribuição, mas também por convicção. Tanto as propostas das sociedades missionárias como os concílios evangélicos latino-americanos são fartos em afirmações da missão evangélica que coincidem inteiramente com o projeto liberal modernizador (2). Aqui começa-se a notar uma relevância desta história devido ao entrelaçamento de duas circunstâncias –sobre as quais trataremos mais adiante. A primeira é que a história original do metodismo situa-se, precisamente, num momento crucial de passagem da sociedade inglesa para o mundo novo: a revolução industrial. Qual foi o papel do metodismo nessa transformação constitui-se numa pergunta significativa em relação com nossa própria história metodista latinoamericana. A segunda circunstância é a atual crise (por certo surgida já há algum tempo) desse projeto em nosso continente. Que significam nossas origens, tanto na Inglaterra do éculo XVIII como na América Latina do século XIX, para nossa missão numa conjuntura histórica em que se faz necessário superar esse projeto e buscar uma nova configuração de nossa sociedade? A observação anterior força uma terceira consideração: É possível e necessária uma releitura de nossa tradição (tanto original quanto latino-americana) a fim de poder participar significativamente nessa busca de um novo horizonte histórico para nossos povos? A História – desde a própria história bíblica – nos mostra a importância de tais releituras, mediante as quais uma experiência história significativa descobre, numa conjuntura nova, uma “reserva de sentido” e põe em movimento um grupo humano, servindo de inspiração e estímulo para um novo projeto histórico. Esta observação nos mostra a ambigüidade da tarefa que enfrentamos nestes dias. Ou pode ser um retrocesso ao passado em busca de uma identidade que nos permita resistir às mudanças e perplexidades do presente, uma memória que nos livre de criar um projeto, ou pode ser um chamado a uma re-interpretação da história que nos desbloqueie e nos permita participar nessas mudanças, uma memória que evoque um chamado e uma missão. Que boa parte do confessionalismo que renasce com vigor em nossa época pertence ao primeiro caso parece muito evidente. Corremos um grave perigo de sermos incorporados nessa dinâmica. Por isso só podemos empreender essa empreitada com extrema cautela e modéstia, com um profundo sentido crítico, criando as defesas necessárias para evitar desvios que levam, necessariamente, ao isolamento e à esterilidade. Dentro destes parâmetros, buscaremos alguns pontos de partida para a tal re-leitura. Um trabalho mais aprofundado exigiria uma visão histórica e uma análise teológica não só do metodismo wesleyano original como também de sua evolução posterior nos Estados Unidos e seu estabelecimento em nosso continente. Durante estes dias nos limitaremos ao primeiro ponto; algumas investigações, certamente bastante superficiais, na gênese do metodismo britânico e mais particularmente em João Wesley mesmo. O tema se presta a vários enfoques. Um seria sócio-histórico: Que representou o metodismo para a sociedade britânica do século XVIII e começos do século XIX? Procurar-se-ia ver em tal caso as relações mútuas entre a sociedade e a igreja, como fez, por exemplo Ernest Troeltsch em sua obra monumental (3). Nesse campo há numerosos trabalhos – embora freqüentemente com hipóteses e resultados diferentes (4). Só muito de leve tocaremos neste aspecto na primeira apresentação. Um segundo enfoque poderia ser através da “doutrina social” de Wesley – seu conceito da sociedade, do trabalho, da propriedade, do Estado. Também aqui há muito material que só utilizaremos ocasionalmente. Finalmente, permanece a possibilidade de nos questionarmos sobre o significado, a nível sócio-histórico, da própria doutrina e religiosidade wesleyana, à semelhança da tentativa de Max Weber de detectar a influência da doutrina e piedade calvinistapuritana no desenvolvimento do capitalismo. É nesse campo – particularmente no que se refere à conversão, à santificação e à eclesiologia – que pretendemos nos deter mais. Noutras palavras, nos perguntamos não somente qual é o conteúdo conceptual da teologia wesleyana, mas também qual é o “ethos” que reflete e impulsiona, especialmente no que tem de mais original e próprio. A PREOCUPAÇAO SOCIAL DE WESLEY A relação de Wesley e seu movimento com a vida social e política da Grã-Bretanha tem sido e continua sendo objeto de apaixonada discussão. O que dificilmente se poderia discutir, entretanto, é o evidente interesse de Wesley pelos problemas sociais da sua época, tanto a partir das condições deploráveis que suas constantes viagens lhe dão ampla oportunidade de comprovar e que descreve com realismo e paixão, como em relação aos ideais morais que considera implícitos em suas convicções religiosas. Não é de se estranhar que, numa concepção decididamente ativa da fé como a que caracteriza Wesley, a preocupação pela condição das pessoas o tenha impulsionado a criar de formas concretas de ação social. Assim, como diz Madron, citando a Sherwin: “A velha fundição de Londres, por exemplo, transformou-se num verdadeiro crisol de projetos – casa de misericórdia para viúvas, escola para meninos, dispensário para enfermos, bolsa de trabalho e agência de emprego, cooperativa de crédito e agência de empréstimo, sala de leitura e igreja” (5) A coleta de fundos e sua distribuição entre as pessoas necessitadas é uma atividade regular nas sociedades wesleyanas. E a preocupação não se limita aos integrantes das mesmas. Ao contrário, inclui especificamente uma organização (Straugers’ Friend Society) “totalmente para assistência, não de nossa sociedade, mas de pobres, enfermos e solitários alheios a ela” (6). Sua análise da crise social de seu país – que retomaremos em seguida – o leva a ver o desemprego como a raiz da miséria. Por isso desenvolve uma série de projetos destinados a criar fontes de trabalho e inclusive a capacitar as pessoas para melhor se desempenharem nele. (7) Também, não falta em Wesley a nota profética relativa aos graves problemas da nascente sociedade industrial. Destacamos dois deles como amostra. O primeiro é a pobreza, a respeito da qual Wesley se manifesta frequentemente, de modo particular em seu tratado “Thoughts on The Present Scarcity of Previsions” (Works, 11/53ss): Ali, Wesley não se limita a comprovar a terrível situação em que muita gente se encontra, senão que rechaça as explicações tradicionais da pobreza como destino ou como conseqüência de preguiça ou vício. Tais explicações, diz ele, são “perversas e diabolicamente falsas”. Denuncia a privatização da propriedade (“enclousure laws”) que deixa milhares de camponeses sem terra. Critica a avareza que busca prosperar a qualquer preço. Por isso lhe preocupa a situação dos metodistas que prosperam economicamente e correm o risco de “por seu coração” nas riquezas. Sobretudo denuncia os lucros obtidos de negócios em que o homem é aviltado, como venda de bebidas alcoólicas e outros nos quais é explorado, como a usura, as casas de penhores, os preços exorbitantes e uma concorrência desleal pela qual cada um “procura arruinar o negócio do próximo para fazer prosperar o seu”. Nenhuma forma de exploração provoca tão radicalmente sua condenação como o tráfico de escravos. Seus “Thoughts upon Slavery” (Works, 11pp. 59-79) tiveram uma ampla circulação e influência. Neles denuncia “a execrável soma de todas as vilanias que se chama habitualmente o comércio de escravos” (Journal, 5, pp. 445-446). Uma vilania cuja raiz econômica não é difícil de descobrir: “É vosso dinheiro que paga o traficante, e por meio dele o capitão do navio e os carniceiros africanos. Vós sois, portanto, culpáveis, sim, principalmente culpáveis por todas essas fraudes, espoliações e assassinatos. Vós sois a mola que põe todo o resto em movimento; eles não moveriam um dedo sem vós; portanto, o sangue de todos eles... cai sobre vossas cabeças” (8). Em nenhum dos casos, porém, vê Wesley o caráter estrutural dos males que denuncia. Na obra que mencionamos anteriormente sobre a pobreza, Wesley faz uma descrição sombria – que às vezes nos recorda a descrição de “a condição da classe operária na Inglaterra em 1844” de Engels, quase um século mais tarde. Mais ainda, trata de analisar a situação, de buscar dados (estatísticas, preços, condições de mercado), coisa nada comum para um líder religioso. Entretanto, quando tenta achar as causas e s remédios, fica totalmente dentro das premissas do sistema mercantilista, totalmente alheio às causas estruturais da crise. É totalmente incapaz de ver nela as dores de parto de um novo modelo de produção e de uma nova organização da sociedade e consequentemente não atenta para o fato de que a pobreza que descreve e denuncia como “compra e venda de sangue e carne” é o sacrifício inevitável que os deuses da nova ordem exigem. Seria absurdo culpar a Wesley por essa falha. Nesse tempo Adam Smith trabalhava em sua “Riqueza das Nações”, que apareceria três anos depois. David Ricardo nascera no ano anterior. Porém, a classe social que pagaria o custo inicial da riqueza das nações (imperiais) começava a formar-se. Alguns dessa classe ingressaram nas sociedades de Wesley; outros foram indiretamente influenciados por seu movimento; o fator religioso chegaria a ser elemento integrante de suas consciências; alguns dos líderes da classe seriam moldados por esse fator. E o fato de o metodismo ter sido incapaz de lhes descobrir a realidade de sua condição como classe social tem que ser levado em conta ao avaliar o peso social do movimento. AS IDÉIAS SOCIAIS DE WESLEY Diversos autores têm destacado que a preocupação de Wesley pela problemática social não se esgota em iniciativas assistenciais ou filantrópicas, mas tenta uma reflexão teológica derivando dela certas conseqüências concretas. Thomas Madron, por exemplo, examina as premissas teológicas do conceito wesleyano de “propriedade”. Aqui, a posição de Wesley se enquadra numa antiga tradição cristã, que ele formula quase nos mesmos termos de Agostinho: tudo pertence a Deus, único legítimo “titular” de toda propriedade. Há, concomitantemente, um direito, concedido por Deus aos homens, de apropriação de bens, sempre que cumpram duas condições: que sejam adquiridos legitimamente e que sejam empregados corretamente. Quem não procede assim, perde esse direito – não é, portanto, um direito inalienável. Wesley, entretanto, aprece avançar sobre estas afirmações tradicionais, pelo menos em três sentidos. Em primeiro lugar, baseando-se na idéia – também tradicional – de uma “propriedade comum” como a ideal, como aconteceu na igreja primitiva, aspira a que as sociedades metodistas possam vir a praticar uma comunhão de bens. Já na primeira Conferência Anual (1744), ao estabelecer algumas regras práticas para aliviar a situação dos mais necessitados, aponta nessa direção: “Até que tenhamos todas as coisas em comum, cada membro trará, uma vez por semana, honestamente, tudo que possa para um fundo comum” (9). As três famosas regras – ganhar tudo que puder, economizar tudo que puder, dar tudo que puder – adotadas mais tarde seriam, segundo Madron, “um compromisso, desenvolvido depois de 1744, entre o que Wesley considerava um ideal e o que aparentemente era possível”, devido à oposição que o ideal do comunismo primitivo encontrava entre alguns. A terceira das regras, pois, a de “dar tudo que puder” deve ser considerada a chave hermenêutica da totalidade (10). Por outro lado, diferentemente de seu compatriota e contemporâneo Locke, Wesley rechaça a idéia de uma propriedade privada “absoluta” e considera que a comunidade mantém um direito sobre a propriedade individual. A força da idéia da propriedade como uma “administração” concedida por Deus se estende à de uma propriedade social no uso da propriedade. Isto o leva, finalmente, a admitir e até a reclamar uma intervenção do Estado em questões da ordem econômica, principalmente quanto à regulamentação das “enclousure laws” que estavam permitindo o monopólio das terras comuns que eram agora privatizadas. Inclusive, propõe medidas como a limitação do preço do arrendamento da terra. A evidência alegada por Madron e outros pareceria reforçar a afirmação de que Wesley não compartilha da ideologia liberal que John Locke, Adam Smith e outros iam definindo com precisão cada vez maior. Mas essa divergência de percepção ocorre das falhas sociais do liberalismo econômico? Representa verdadeiramente uma crítica profética à ordem econômica emergente? Ou se trata de uma reação “conservadora” que considera que as idéias liberais subvertem uma ordem divina e imutável que se identifica com as estruturas políticas e econômicas tradicionais? Não é nosso propósito esclarecer essa questão, pois nos parece, do nosso ponto de vista, que não é a mais importante. De fato, como no caso dos reformadores do século XVI, não nos importa saber se suas idéias representavam a modernidade que nasce ou os restos do mundo medieval que agoniza, mas determinar qual foi o peso histórico dos movimentos a quem deram origem. Mais do que a preocupação por uma clara identificação das idéias sociais de Wesley, devemos perguntar-nos agora pelos efeitos reais do metodismo na sociedade de sua época. OS EFEITOS DO METODISMO Qual foi a importância e o rumo das conseqüências sociais do despertar metodista na sociedade inglesa, continua sendo uma questão disputada. Parece-me, entretanto, que quando olhamos o desenvolvimento em seu conjunto, da época de Wesley até à consolidação do movimento e sua expansão interna e externa durante as primeiras décadas do século XIX, e no contexto do desenvolvimento da sociedade e do império britânicos, justifica-se a tese que Bernard Semmel resumiu da seguinte maneira: “A sociedade moderna necessita da transformação de amplas camadas populacionais, de uma passividade inerte que caracteriza seu estado na sociedade tradicional para outro em que as personalidades sejam suficientemente fortes e lhes permita emergir de um estado de subordinação para outro de relativa independência... No século XVIII, a Inglaterra mostrou-se capaz de realizar essa transformação de forma relativamente pacífica... Eu gostaria de investigar como o caráter específico do ‘homem novo’ concebido e em certa medida criado pelo arminianismo evangélico de Wesley, poderia ter cooperado – é tudo o que podemos dizer com segurança – para estender uma ponte entre as ordens tradicional e moderna sem convulsões tumultuosas, ao mesmo tempo que promoviam os ideais que seriam mais úteis à nova sociedade” (12) Na origem desta posição se acha a conhecida tese do historiador francês Elie Halévy (1870-1938) que em sua História do povo Inglês no século XVIII sustentou que a Inglaterra foi poupada da revolução a que as contradições de sua política e economia poderiam ter conduzido pela influência estabilizadora da religião evangélica, particularmente o metodismo. Tal “milagre” se teria operado pela doutrina e disciplina metodistas que infundiram nos líderes do proletariado e na pequena burguesia emergentes uma inclinação para a ordem, contra a violência e a favor do gradualismo. A propósito, tem sido destacada muitas vezes a importância da presença de lideres de classe e pregadores leigos metodistas na liderança sindical inglesa. Semmell aprofunda a análise em dois sentidos. Primeiramente, ao concentrar a influência da religiosidade metodista não tanto em determinadas virtudes, mas na conformação de uma personalidade básica que corresponde às demandas do mundo moderno. Em segundo lugar, ao mostrar como, posteriormente, o movimento metodista integrou-se na sociedade imperial britânica, canalizando para a expansão missionária as energias de um importante setor da população. Ainda que seja possível fazer-se diversas correções nestas análises, parece justificado afirmar-se que, a nível simbólico da ideologia (religiosa), a orientação ética e as formas de expressão, o despertar metodista parece ter cumprido um papel significativo nas novas relações políticas e sociais que emergiam na Grã-Bretanha com a consolidação de um novo modo de produção. Historicamente, o metodismo parece ter servido para incorporar setores significativos do proletariado britânico que surgia à ideologia liberal burguesa, o que garantiu a consolidação do sistema capitalista e reforçou sua expansão imperialista. Na medida em que esta hipótese – embora com qualidade e restrições – deva ser considerada válida, volta a colocar-se para nós a temática que assinalávamos no começo. Já que pareceria, depois de um século, que o metodismo latino-americano (junto com outras igrejas evangélicas) cumpriu, dentro de suas limitações, um papel semelhante no esforço de transição de nossas sociedades da sociedade tradicional para a moderna. É este um caráter inerente à natureza do metodismo? É uma conseqüência implícita em sua doutrina? Está a teologia, a piedade, a “ideologia religiosa” metodista forçosamente vinculada à ideologia e ao projeto liberal? Por quê e de que modo? É concebível uma releitura dessa tradição? Há uma potencialidade distinta na doutrina e na piedade metodistas? Estas são perguntas necessárias para a compreensão da nossa missão no mundo de hoje. E nos obrigam a ler cuidadosa e contextualmente (primeiramente em seu próprio contexto histórico e depois no nosso) as linhas teológicas e de piedade desenvolvidas no movimento metodista original. Entretanto, essa questão não deve constituir-se num esforço reivindicatório. Devemos partir de um movimento reivindicatório. Devemos partir de um reconhecimento da ambigüidade, tanto do movimento metodista original como de nossas igrejas. Só num sentido limitado, no que diz respeito à transição para a sociedade moderna, pode o metodismo original ser considerado um movimento libertador. E é nessa mesma perspectiva que devemos considerar nossa própria história na América Latina. Só quando admitimos esta realidade e nos despojamos de toda tentativa de glorificar nosso passado podemos voltar-nos para a tarefa de refletir sobre nossa herança teológica com uma consciência tranqüila e com perspectivas de utilidade. É o que trataremos de fazer a seguir. NOTAS (*) O presente artigo e o presente livro é resultado de conferencias proferidas na Semana Wesleyana de 1982, na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista no Brasil. Daí a razão porque o autor se declara sem condições de aprofundar uma resposta documentada (Nota do Tradutor) 1) Heritage and Destiny (New York, Macmillam Co, 1943), p.l. 2) Poder-se-ia mostrar como essa relação não só externa senão que corresponde à própria mensagem e à religiosidade que esta evangelização propaga. Para um desenvolvimento maior desta idéia veja-se o meu artigo “História e Missão”, em Protestantismo e Liberalismo na América Latina (São José, SBL-DEI, 19 3 1983). 3) Die Soziallehren der Christlichen Kirthen und Gruppen (Tubingen, 1923). Ver sobretudo as observações metodológicas no começo, ampliadas em seus ensaios sobre sociologia religiosa. 4) Uma bibliografia inicial sobre o tema aparece no livro editado por Theodore Runyon, Sanctification and Liberation (Nashville, Abingdon Press, 1981, pp. 245-251). 5) Thomas W. Madron, “John Wesley on Economics” em Theodore Runyon (ed.), Sanctification and Liberation, p. 113. Para uma descrição ampla destes diversos projetos, ver Eric Mc Coy North, Early Methodist Philantropy (New York, Methodist Book Concern, 1914). 6) Journal (London, Epworth Press, 1916, Vol. 8, p. 49). 7) Oscar Sherwin, John Wesley, Friend of People (New York, Twayne Publisher, 1961, p. 132). 8) Toda esta seção mereceria uma leitura cuidadosa para ver como Wesley rechaça uma a uma todas as desculpas – que se trata de uma necessidade econômica, que proporciona ais africanos os benefícios da civilização. Especialmente rechaça a piedade com que os escravocratas pretendem encobrir sua ação. 9) The Bennet Minutes of The First Conference, em Richard M. Cameron, Methodism and Society in Historical Pespective (New York, Abington Press, 1961), pp. 69-70, citado por Madron op. cit. p. 108. 10) Ibid. p. 109, Madron cita várias evidências de que Wesley nunca abandonou totalmente a idéia de uma comunhão de bens, a tal ponto que Thomas Coke viu-se obrigado, logo após a morte de Wesley, a fazer uma declaração oficial negando que tal idéia formara parte da doutrina metodista. Fundamentado nisso, Madron argumenta contra a inclusão de Wesley na “ética puritana” ligada ao desenvolvimento do capitalismo na famosa tese de Max Weber. Aqui seria necessário distinguir entre uma intencionalidade de Wesley e a efetiva operação do metodismo neste campo. O desenvolvimento posterior, que Madron mesmo documenta, tende a mostrar que, independente da opinião do fundador, o metodismo se situou na linha que Max Weber lhe atribuiu. 11) Esta é a tese defendida por John Kent em “Methodism and Social Change in Britain”, na mencionada obra Santificação e Libertação, pp. 63ss. Ainda que eu não compartilhe de algumas das colocações do autor, creio que sua observação sobre as concepções sociais de Wesley são basicamente corretas. 12) Bernard Semmel, The Methodist Resolution (New York, BAsic Books, 1973), pp. 8-9 (o grifo final é nosso). II CAPÍTULO CONVERSÃO, HOMEM NOVO E COMPROMISSO Uma das questões teológicas que surge, inevitavelmente, em nosso propósito latinoamericano de assumir, segundo a nossa fé, um compromisso com a história de nosso povo, é a antiga pergunta sobre a relação entre a ação de Deus – seus efeitos salvíficos – e nossas ações, projetos, ideologia e conflitos humanos. Se a fé tem de ser vivida na história, como história, não podemos imaginar um sujeito humano “transcendental” que se relacione com Deus separadamente do sujeito humano histórico que atua no plano temporal. Nem podemos imaginar uma ação transcendental de Deus que opera na história fora de, ou nos vazios da corrente de processos que os seres humanos são sujeitos. A teologia protestante tradicional tem estado, tão preocupada em evitar qualquer “titanismo”, qualquer tentação de sacralizar a obra humana à custa da transcendência divina, que nos parece correr o risco de esvaziar a ação humana de qualquer significado teológico. A referência a Deus só opera relativizando, limitando todo processo humano, restringindo o significado de toda ação humana ao campo do penúltimo e, portanto, explícita, ou implicitamente ao dispensável, ao opcional ou ao menos, em última palavra, ao não significativo. Na história do Protestantismo, parece-me que Wesley aporta um elemento novo em sua doutrina e prática da conversão e santificação. A viva discussão a respeito tem girado habitualmente em torno da pergunta se Wesley foi verdadeiramente protestante ou se sua doutrina da graça e santificação está “eivada”de catolicismo. Assim, creio que o tema fica limitado a uma questão confessional. Para nós é mais importante tratar de entender a contribuição que Wesley possa dar à pergunta teológica que propomos – sejam quais forem suas relações com as supostas “ortodoxias” católicas ou protestantes a respeito. QUE BUSCAVA WESLEY? Os biógrafos de Wesley têm debatido apaixonadamente a relação entre as suas lutas e “resoluções” em 1725 e a experiência de Aldersgate de 1738 (1). Tenho para mim que a chave do ministério e da teologia de Wesley achava-se mais na unidade e convergência das duas experiências do que no seu contraste e descontinuidade. Até 1725, efetivamente, Wesley agoniza sobre a questão do sujeito cristão ativo – o “sócio” autêntico e genuíno de Deus no pacto. Que é um verdadeiro cristão, um cristão sério e comprometido? Em termos de conteúdo específico de uma vida cristã ativa, não nos parece que tenha inventado muito. Mais sintetizou a prática ascética, filantrópica e devocional que a melhor literatura de sua época lhe oferecia. Não alterou grandemente esses conteúdos, que chegaram às gerações metodistas futuras – para seu benefício... e muitas vezes para sua desgraça! Mas em 1738 verificou-se para ele, existencialmente, uma resposta mais profunda e decisiva: a antiga percepção paulina e protestante e que é Deus mesmo quem cria esse sujeito autêntico e genuíno, o verdadeiro “sócio” do pacto: o sujeito cristão ativo é um dom. É, sem dúvida, a resposta de Lutero. Mas à pergunta de Wesley. Wesley não está prioritariamente preocupado em “acalmar a um Deus irado” mas ansioso a respeito de como servi-lo plenamente. Consequentemente – se posso permitir-me uma licença teológica – Wesley recebeu de Lutero uma doutrina “da santificação pela graça mediante a fé”. A santificação continua sendo para ele a meta da redenção e da vida cristã. Há que pregar a fé porque é a única porta de acesso – ou mais corretamente o único caminho viável – para ingressar-se no âmbito da santificação e avançar por ele. Creio que esta progressão destaca-se em todos os grandes sermões de Wesley. A partir desta interpretação gostaria de considerar, primeiramente, o tema da conversão e a seguir o da santificação (embora seja evidente que essa separação a respeito de Wesley é artificial e só pode ser feita com propósitos didáticos). O que em termos biográficos temos chamado a unidade e a convergência das experiências de 1725 e de 1738, poderíamos transpô-lo em chave teológica como a integração de graça e amor. Nesse sentido, toda a teologia de Wesley nos parece uma soteriologia que, dentro do marco protestante clássico, mas sem submissão servil ao mesmo, trata de articular justificação e santificação de tal maneira que a vitória da graça se revele e se realize na operação do amor (2) A FORMULAÇÃO WESLEYANA DA CONVERSÃO Deus se propõe a criar um povo santo e este propósito chega a ser uma realidade atual, experimentada, visível, quando homens e mulheres se voltam para Ele com fé. Talvez se possa resumir assim a mensagem de Wesley. Estas são as boas novas. E são, verdadeiramente, boas novas para os pobres da terra – para as massas miseráveis dos deserdados que se amontoam nos novos centros industriais e mineiros, absorvidos pela crise do nascimento do capitalismo industrial moderno, vítimas impotentes do capitalismo industrial moderno, vítimas impotentes da anomia social. Não somente eram aceitos por Deus como também podiam ser “feitos de novo” – receber um poder e uma dignidade efetivos, visíveis, inerentes, mensuráveis. Podiam chegar a ser sujeitos conscientes e ativos de uma nova vida. Suas obras contavam; sua vontade era livre. Numa sociedade em que o triunfo se constituía no significado da vida, oferecia-se o mais alto triunfo possível – acessível a todos mediante a fé. O ingresso nessa realidade é a “conversão”. A maior parte dos estudiosos da teologia de Wesley concordam que ele identifica conversão com regeneração (3). Ainda que algumas passagens justifiquem um certa distinção, as discussões wesleyanas mais características do tema da regeneração podem ser tomadas legitimamente par apresentar seu conceito de conversão. Em geral, podemos situá-lo dentro da estrutura doutrinal clássica protestante do ordo salautis. As ênfases distintivas de Wesley me parecem agrupar-se – com relação ao que dissemos acima – em torno de dois focos: a questão da continuidade e singularidade e a questão da “consciência” ou “experiência” da regeneração. A Wesley apraz explicara regeneração utilizando a analogia do “nascimento” quase em forma alegórica (4). Dois fatos se destacam nessa alegoria: De um lado o caráter decisivo da regeneração. Há um “antes” e um “depois”. A conversão marca uma volta decisiva (conversio, no sentido original) do pecado para Deus. Sabemos que Wesley abraçou por algum tempo a idéia (que Pedro Bohler lhe havia ensinado) do caráter instantâneo dessa mudança, mas logo vacilou a respeito para admitir uma variedade de possibilidades. Mas jamais duvidou que havia uma mudança, uma volta decisiva, uma diferença qualitativa criada por este ato de Deus e do homem, chamado conversão ou regeneração. Mas a analogia sublinha também a continuidade: é a mesma pessoa. Há uma vida anterior ao nascimento – com os mesmos órgãos de percepção e sentimento – que agora se torna atual e operosa pelo poder do Espírito. Mais importante ainda, a analogia é ampliada para referir-se ao permanente crescimento até a plena maturidade. A conversão, desse modo, olha para trás, para uma humanidade real ainda que impotente, e olha para a frente, para uma maturidade humana ainda que imperfeita mas cada vez mais plena (até que lhe conceda, nesta vida ou na vindoura, uma perfeição total, a realidade completa do amor). O próprio Wesley não relacionou de maneira consistente a conversão à doutrina agostiniana da graça preveniente, que ele mesmo introduzira. Mas William B. Pope – sem dúvida o teólogo sistemático mais consistente da tradição wesleyana até o presente século – o faz de maneira que dá à conversão um lugar próprio e distintivo, colocando-a no umbral da nova vida, como movimento pelo qual o homem, no poder dessa graça preveniente que em virtude da expiação que “rodeia e abarca”a humanidade inteira é acessível a todos, coopera com a graça salvífica de Deus, volvendo-se do pecado para Deus. Neste sentido, a conversão o ponto de encontro da busca humana e a graça de Deus, “o pátio exterior do templo cristão”. Entretanto Pope não limita sua interpretação ao âmbito estritamente religioso, mas antes, olhando a conversão também sob a perspectiva ética, afirma uma continuidade entre a operação do amor sob a graça preveniente e a transformação que o eleva ao amor da santificação. Por certo que nos movemos aqui num terrenos próximo a uma das possíveis – e recentemente dominantes – interpretações da doutrina católica romana. Mas isso não deve inibir-nos – como sustentaremos mais adiante – de prestar atenção a este significativo propósito. Tanto para Wesley como para Pope a conversão corresponde mais estritamente ao começo da vida cristã, como um “salto” decisivo inicial, diríamos “qualitativo”. Mas ambos admitem um uso mais geral do termo para referir-se às “crises de crescimento” da vida cristã. Esta vacilação me parece documentar uma vez mais a dupla ênfase em singularidade e continuidade que, tanto na esfera religiosa como ética, caracteriza a doutrina wesleyana da conversão. O outro aspecto é a bem conhecida ênfase na “experiência”, a consciência que acompanha a conversão: o homem é consciente da nova situação em que se encontra. O novo nascimento testemunha-se a si mesmo à consciência, com uma auto-evidência que não necessita de provas externas, como não é necessário que nos provem qual é a luz do sol e qual a das estrelas. Entretanto não se trata de um mero sentimento subjetivo: deve ser reforçado pela qualidade de vida, a disposição e a concreta realização de atos de amor naqueles que o Espírito testemunha sua presença e operação. Assim, a regeneração verifica-se a nível consciente tanto em sua dimensão religiosa como ética. E em ambas há novidade e continuidade. Na minha opinião, o ponto central se acha, no fim das contas, na consciência moral, que é por sua vez confirmada e elevada a um novo plano de auto-compreensão e de realização. Se estas observações são válidas podemos resumir a doutrina wesleyana e da conversão tomando em conjunto os seguintes elementos: a) ela se situa na perspectiva da busca humana de excelência moral; b) gira em torno do poder capacitador da graça; c) culmina no aperfeiçoamento da luta moral do homem, mas não mediante um mero crescimento quantitativo mas mediante uma mudança qualitativa produzida pela graça de Deus; d) vincula a experiência ética prévia do homem ao seu subseqüente crescimento na graça, e maneira que o homem novo (regenerado) é ao mesmo tempo a plenificação e a instalação do homem velho (não regenerado); e) invoca a consciência subjetiva – reivindicada pela ação correspondente – desta transformação fundamental. AS CONDIÇÕES PARA REPENSAR A DOUTRINA WESLEYANA A meu ver seria um grave erro, carregado de conseqüência negativa, a tentativa de transferir diretamente para a nossa situação o ponto de vista wesleyano da conversão. De fato, quando se tenta fazê-lo, como em algumas “campanhas evangelísticas”, o que resulta é uma caricatura do original. E não poderia ser de outro modo, porque as condições presentes impõem às concepções e formulações anteriores uma conotação muito diferente. É necessário, pois, empreender uma concepção. E esta deve atender, pelo menos, três conjuntos de fatores. A nível teológico é necessário superar o caráter formal das articulações doutrinárias de Wesley com relação a pontos decisivos: a cristologia, a noção de amor e a própria concepção de Deus. Num estudo sério e ponderado, John Deschner tratou de ler a cristologia de Wesley “no melhor sentido possível”. Apesar disso, tem que reconhecer várias falhas graves. Uma delas, que nos interessa particularmente aqui, é a falta de interesse de Wesley sobre a humanidade de Jesus Cristo como realidade histórica concreta, omissão agravada por uma ênfase abstrata na lei em relação ao ofício profético e por sua dificuldade em reconhecer plenamente a realidade da humilhação. Como veremos, estas deficiências se refletem na forma de conceber aquilo que é o centro da doutrina wesleyana da santificação, a saber, a noção de amor. É possível indicar a razão dessas deficiências. Wesley podia pressupor o conteúdo dessas doutrinas. Portanto, o que se tornava urgente era vitalizar e dar eficácia a um “esquema de salvação” cujo embasamento teológico poderia dar-se por assentado. A renovação bíblica e teológica dos últimos cinqüenta anos – para não falar dos estudos crítico-históricos que a precederam e a fizeram possível – obriga-nos a variar decisivamente a perspectiva. O que tem que ser profundamente revisado é o conteúdo da visão com que estes esquemas teológicos operavam. O Deus das Escrituras, o Jesus dos Evangelhos, o conteúdo da salvação, o contexto da compreensão bíblica do amor, estão longe de coincidir com os significados “recebidos” do século XVIII. O tema central é em que Deus cremos, quem é o Cristo redentor, que amor nos é oferecido e requerido como substância do Reino que irrompe? Noutras palavras, temos que repensar como conteúdos (e não só formalmente) de que e para que nos convertemos. O simples ato de que temos que formular tais conteúdos em termos do Reino e da história da salvação, da proclamação do jubileu da graça de Jesus, da esperança de novos céus e nova terra – mais do que em termos estáticos e metafísicos característicos de boa parte da tradição – introduz uma mudança decisiva na concepção da conversão. O segundo conjunto de fatores tem que ver com as pressuposições filosóficas, psicológicas e sociológicas das formulações do século XVIII. Já vimos como os condicionamentos sociais da época afetaram o metodismo nascente. A visão da vida, o ethos, o modelo humano que surge com o mundo moderno tornados possíveis e requeridos pelas novas condições econômicas e sociais canalizam as energias do avivamento religioso. Ao afirmar tal coisa, não desconhecemos os elementos proféticos da mensagem metodista aos quais já nos referimos. Mas em que pese esses elementos, é preciso reconhecer que o modelo humano em termos do qual se vive a experiência da conversão e da nova vida é o que corresponde ao indivíduo eficiente e produtivo da sociedade industrial. A ascensão econômica e social do metodismo testifica essa simbiose. Não obstante os poderosos movimentos filosóficos que têm lugar na Grã-Bretanha do século XVIII, a conceitualidade (conceptualidade) teológica se move mais amplamente na perspectiva metafísica aristotélica do escolasticismo (católico ou protestante). Aqui somente me interessa assinalar a peculiar relação que se percebe nessa perspectiva entre ser e atuar. Tanto com relação a Deus como ao homem, concebe-se um “ser” em si, que por conseguinte “atua” ou “se manifesta”. O ethos da evangelização de Wesley parece desafiar esta concepção, mas sua teologia segue presa a ela. Consequentemente, faz-se possível conceber uma conversão ou regeneração que tem lugar num plano metafísico e só depois é “refletida” ou “atuada” na história – numa espécie de “segundo momento”. Não se trata agora de polemizar contra esta concepção. Basta assinalar que, quaisquer que hajam sido seus valores na interpretação do Evangelho em diálogo com uma certa concepção filosófica, não é nem radicalmente bíblica nem adequada à nossa situação. Nem a Bíblia parece interessar-se num “ser” de Deus que estaria além ou separado de sua cão nem concebe – como tão pouco o faz o pensamento moderno – uma pessoa humana constituída à parte das ações e relações da existência histórica. A observação anterior deve ser ampliada em relação com as noções de interioridade e subjetividade. Na idéia metodista tradicional de conversão, a consciência subjetiva é concebida em forma individual e auto-contida. A mudança religiosa tem lugar num “santuário interior”, “a sós com Deus”, como se diz. Esta crítica pode parecer arbitrária à luz das repetidas afirmações de Wesley sobre “uma santidade social”, seu rechaço de “uma religião solitária” e as medidas práticas que toma para assegurar o crescimento comunitário em fé e santidade. Mas creio que uma exegese cuidadosa dos contextos em que tais expressões aparecem mostrará que a sociedade não é, para Wesley, um conceito antropológico, mas só um arranjo conveniente para o crescimento do indivíduo. Finalmente, é a alma individual que é salva, santificada, aperfeiçoada. A comunhão é, em última análise, um externum subsidium. Tais idéias são, no mínimo, uma ficção à luz do que hoje sabemos da psicologia humana – do subconsciente, dos símbolos, dos mecanismos ideológicos. A consciência não é uma área “privada”, mas o foco de um reflexo processo que inclui relações históricas, no tempo e no espaço. Nossa consciência de nós mesmos (auto-crítica) se plasma em termos das representações sociais e dos símbolos dominantes de uma sociedade (ou de grupos de domínio dentro dela). Nossa “audição” de uma “mensagem” é mediada pelo “código” predominante em nosso meio. Qualquer “conversão” concreta é uma resposta a um desafio mediado, no qual certa forma de consciência e certa práxis já estão pressupostas. A menos que o desafio se refira explicitamente a tais formas de consciência e conduta, só conseguirá reforçá-las inconscientemente. Não há conversão no vazio. Estas observações críticas não têm por objeto depreciar a conversão ou minimizar sua importância. Muito ao contrário, ao por em relevo as limitações inerentes à época em que se plasmou, indicam uma busca da maneira como a conversão possa readquirir seu lugar e significado central na responsabilidade evangelizadora da Igreja na atualidade. Tal coisa me parece urgente e decisiva para o Cristianismo no momento presente. NOTAS PARA UMA RELEITURA Do ponto de vista fenomenológico – ou fenomênico – desejaria definir a conversão como o encontro entre uma condensação da mensagem cristã como chamado (apelo) e uma resposta pessoal consciente e comprometida. A conversão caracteriza-se, pois, por uma consciência – como afirmava a tradição metodista – tanto em relação com o conteúdo da mensagem como uma auto-consciência de compromisso em uma nova relação e condição. Ontologicamente (se posso usar o termo) a conversão é o processo pelo qual Deus se incorpora ao homem, em sua existência pessoal, para uma participação ativa e consciente em seu pacto com a humanidade, tal como tem sido testificado, renovado e assegurado em Jesus Cristo. Para que este chamado seja significativo, tem que ser articulado em termos de uma problemática que corresponda ao nível das necessidades e esperanças do ser humano de hoje, tanto pessoal como coletivamente. Isso não significa, por certo que a mensagem deva aceitar a validez ou adotar os conteúdos e características que tais esperanças e expectativas possam tomar. Uma cuidadosa observação do Novo Testamento nos mostraria que a centralidade de Jesus Cristo e o chamado à fé para Ele se expressam, no Novo Testamento, em marcos de referência substancialmente distintos e às vezes aparentemente contraditórios (pense-se nos sinóticos, no quarto evangelho, em Paulo, em Hebreus). Jesus Cristo é sempre o mesmo, porém não na identidade estática dos objetos ou dos eventos “concluídos” mas na identidade dinâmica do Espírito vivente – como bem o atesta a história da Igreja. Em nossa particular situação latino-americana (ainda que não só aqui) o homem experimenta, individual e coletivamente, sua existência como que bloqueada artificialmente, aprisionada por razões estruturais e ideológicas que lhe impedem sua realização material e espiritual. A mensagem cristã não pode responder a essa situação evitando o nó central do problema e oferecendo qualquer saída substitutiva ou escapista. Cristo viria a transformar-se assim em um soter de um culto de mistério ou um eon de uma seita gnóstica (algo que o Novo Testamento rechaça radicalmente mais que mais de uma vez voltou a infiltrar-se no anúncio da mensagem). Ao contrário, uma mensagem autêntica deve relacionar a totalidade da mensagem cristã às condições objetivas e subjetivas do nosso mundo. Jesus Cristo é o modelo e o Mediador de uma verdadeira vida humana – pessoal e coletiva – não um meio para alcançar alguma exaltação subjetiva sobrehumana! A meta da conversão não é mera assimilação de uma mensagem ou o assentimento formal a uma doutrina, mas “a criação de uma nova criatura”. Este é um lugar comum que poucos negariam. Não obstante, é constantemente contra-dito no processo evangelizador tal como frequentemente acontece. Espera-se que o povo responda com formas – geralmente muito padronizadas – de resposta aceitando uma formulação verbal. O que ocorre (sociológica e psicologicamente falando) nestes casos é simplesmente que uma pessoa aceita (por uma série de razões) sua incorporação numa comunidade religiosa. Noutras palavras, a comunidade se reproduz a si mesma mediante a evangelização. No Novo Testamento, ao contrário, se não me equivoco, o chamado à conversão é um convite ao discipulado, seja como o chamado do próprio Jesus para segui-lo ou a forma apostólica de participação mediante a fé na comunidade messiânica, que é o povo que anuncia e testemunha o Reino vindouro. O Evangelho não pode girar em torno de si mesmo como uma auto-reprodução. Seu centro não pode ser outro que não o Reino mesmo. Consequentemente envolve uma comunidade comprometida com um discipulado ativo no mundo. No metodismo primitivo, esse compromisso comunitário com o Evangelho em meio das condições concretas de seu mundo é claramente perceptível. O chamado tinha um conteúdo concreto testemunhado nas “Regras Gerais”. Isto era o que significava concretamente “seguir a Cristo” para a comunidade e o que homens e mulheres eram convidados a fazer no poder do Espírito. Era o rosto presente e discernível da “nova criatura”. É óbvio que se tratava de uma imagem ligada a uma época. E que como tal não pode nem deve ser reproduzida fora de sua época. Tal onipresença histórica não é um defeito: foi seu valor e importância. Em contraposição, nosso chamado evangelizador é muitas vezes vazio: então os homens o enchem, talvez inconscientemente, com os esteriótipos dominantes do que significa ser “religioso” – as imagens aceitas, estandardizadas, ideologicamente carregadas de piedade. Como tais, aceitam-nas ou as rechaçam. A menos que a comunidade evangelizadora confronte o desafio de um testemunho específico pertinente às condições atuais, a evangelização está condenada a ser um mero instrumento de reprodução e sacralização das condições desumanizantes nas quais o homem vive. Em termos muito simples, a evangelização deve tratar a questão: que significa, concreta e especificamente, seguir a Cristo, em pensamento e ação, no mundo de hoje? A tomada de consciência ou o processo de uma autoconsciência numa nova situação é um processo social-pessoal e auto-reflexivo. A psicologia e a sociologia modernas têm demonstrado isso claramente. Não há consciência puramente individual ou vazia de um conteúdo de ação. A evangelização tem, portanto, que se relacionar com a forma em que grupos humanos situam-se a si mesmos no mundo, suas cosmovisões, suas formas de representação social, sua consciência de classe e de grupo, seus modos de ação. Isto significa que a conversão pode produzir-se em resposta a uma mensagem verbalmente articulada ou a uma determinada práxis comunitária dos crentes. Finalmente, ambas as coisas hão de produzir-se. Mas a consciência pode do reconhecimento de um conteúdo conceptual para uma forma de vida, ou de um compromisso assumido com uma práxis comunitária para a aceitação da autocompreensão (com referência à mensagem) implícita nela. Por isso nos confrontamos novamente com a centralidade de uma comunidade praticante, como comunidade comprometida numa ação específica no mundo, como a “forma de Cristo” na qual se fundem a articulação verbal e a articulação “atuada” e portanto o processo de conversão pode ter lugar. Esta afirmação não diminuiu a centralidade da ação do Espírito Santo. Porque – segundo me parece – o que diferencia o Espírito Santo dos “espíritos” mágicos é que aquele opera mediante mediações históricas. Tal parece ser o significado da Encarnação e da Igreja. “...cada vez me convenço mais de que a compreensão da conversão é verdadeiramente a questão central para as igrejas em nossa época. A conversão, entendida como fora da história ou apartada dela, deve ser reapropriada e compreendida em relação direta com essa história” (5) Assim formula o jornalista e teólogo neo-evangélico Jim Wallis a convicção que o leva a escrever sua obra sobre o tema. Concordo totalmente com ele. As observações críticas que temos formulado têm por objetivo, precisamente, aclarar o caminho para uma evangelização digna da radicalidade do Evangelho e da urgência de nosso tempo. Para citar novamente Wallis: “Para isto é a evangelização. Seu propósito é chamar para a conversão e fazelo em sua integridade. A questão em jogo mais controvertida no mundo, e ainda na Igreja, é se seguiremos a Jesus e nos colocaremos sob a insígnia de seu Reino. O evangelista propõe essa questão e a dirige ao coração de cada indivíduo e da sociedade. A evangelização confronta a cada pessoa com a decisiva eleição por Jesus e o reino e desafia a opressão da velha ordem com o poder libertador da nova. O Evangelho do Reino provoca uma mudança fundamental em cada vida e é um aguilhão em qualquer ordem social, do primeiro século ou do século vinte” (6). NOTAS 1) Sabe-se que M. Piette considera as resoluções de 1725 a verdadeira conversão de Wesley, relacionada com seu descobrimento de Taylor e Kempis e sua decisão de dedicar toda sua vida a Deus. Piette, John Wesley in the Evolution of Protestantism (New York, Sheed and Ward, 1937), pp. 305-312. Veja-se também A. Léger, La jeunesse de Wesley (Paris, Machette, 1910), pp. 77-82 et passim. Em linha contrária às obras de Cell, Cannon, etc. 2) Uma comprovação da centralidade dessa unidade para Wesley pode ser vista no estudo de suas controvérsias. Com efeito, sua atitude geralmente “latitudinária” para as disputas teológicas torna-se combatida quando percebe que esta relação graça-amor se acha ameaçada, seja por uma graça que “se fecha sobre si mesma”sem tornar a vida moral inerentemente necessária (calvinismo, quietismo, antinomianismo) seja porque escamoteia a graça, exaltando excessivamente o poder da vida ética (moralismo, legalismo). 3) Em toda esta secção nos abstivemos de dar referências bibliográficas que seriam incompletas ou extremamente trabalhosas. Recomendamos ao leitor as obras clássicas de Cannon, Lidstrom, etc., que oferecem abundante bibliografia. 4) Veja-se, entre outras referências, as notas em João 3; o sermão XLV: II, 2 e o sermão XIX: I, 8-10. 5) Jim Wallis, The Call to Conversion (San Francisco, Harper and Row, 1981), p. XVI. III CAPÍTULO JUSTIFICAÇÃO, SANTIFICAÇÃO E PLENITUDE Tem o metodismo identidade teológica própria? Há em Wesley uma contribuição singular para a compreensão do Evangelho? O tema tem sido frequentemente debatido. Os que têm tentado deduzir do fundador do metodismo uma teologia sistemática não têm obtido maior êxito. Trata-se de desinteresse, de latitudinarismo teológico ou simplesmente de uma mente de segunda classe, incapaz de pensar profundamente? Por outro lado, Wesley mostra uma curiosidade intelectual muito ampla, leituras extensas da História, Teologia e piedade – incluindo seu grande interesse, por exemplo, pelos padres gregos ou pelos místicos espanhóis. É verdade que habitualmente se impacienta diante das sutis distinções teológicas, especialmente quando conduzem a polêmicas que lhe parecem desviar a atenção da questão fundamental. Entretanto, quando crê ver em perigo o que no seu entender é central ao Evangelho, não vacila em lançar-se na batalha com toda sua enorme energia. Quais são estar coisas “centrais” pelas quais está disposto a lutar? Se retomarmos o tema proposto no começo do capítulo precedente, buscaremos esse centro na relação entre justificação e santificação: como constitui esse novo “sujeito”, sócio digno e fiel de Deus em seu pacto? Essa pergunta tem, por sua vez, duas pressuposições. Uma é a teológica: Deus tem um propósito de renovação que abarca a totalidade da humanidade e do universo, o que ele chama, às vezes, “o designo grandioso da salvação da humanidade” (the Grand design for the salvation of mankind). A outra pressuposição é de ordem pastoral: o anúncio desse plano e o convite para participar ativamente nele – a evangelização e o chamado para a conversão – são a tarefa pela qual se mede a fidelidade do cristão e da Igreja. Tudo que se relacione com esta tarefa não é negociável, articulus stantis et cadentis ecclesiae. Um dos mais eruditos e penetrantes estudiosos de Wesley, o professor Albert Outler, situa a peculiaridade da teologia de Wesley – dentro deste horizonte de evangelização – em: “...sua doutrina da graça de Deus (a presença ativa de seu amor a existência humana) na qual a preocupação dominante é uma síntese vital da ênfase evangélica na soberania de Deus e a ênfase católica na participação ativa do homem: uma mescla dinâmica de previdência, justificação, regeneração e santidade (1).” Outros intérpretes, como Lindstrom, Newton Flew, Sangster, preferem enfocar a peculiaridade do metodismo a partir da doutrina da santificação e da perfeição. Teodore Runyon me parece explicitar bem a unidade de ambos os temas nestas palavras: “Quando a perfeição cristã vem a ser a meta do indivíduo, nasce a esperança fundamental de que o futuro possa superar o presente. Concomitantemente, manifesta-se uma insatisfação a respeito de todo o estado presente – uma insatisfação que provê a ponta crítica necessária para manter em movimento o processo de transformação individual (2). Neste capítulo nos propomos a explorar brevemente estes dois aspectos de um único tema: o sujeito e a obra humana numa teologia evangélica da salvação. O GRANDIOSO PLANO DA SALVAÇÃO DA HUMANIDADE “Para Wesley”, dizíamos no começo, “a santidade segue sendo (a partir da experiência de Aldersgate (*) a meta da redenção e da vida cristã”. Daí a necessidade de manter uma estranha unidade de justificação e santificação. Certamente, esta é também a intenção dos Reformadores: “Assim como Cristo não pode ser dividido em partes, argumentava Calvino, também são inseparáveis estas duas coisas, a saber, a justiça e a santificação, uma vez que as recebemos juntas e solidariamente nele”(3). Mas os reformadores parecem haver achado impossível construir defesas que impedissem um deslize subseqüente, que nos tempos de Wesley havia chegado a tal consistência que uma testemunha insuspeitável como Karl Barth não pode evitar dizer, precisamente em relação a Zinzendorf (com quem Wesley manteve uma dura discussão sobre o tema, a ponto de leva-lo a separar-se da comunidade morávia), que “neste monismo a necessidade de boas obras só se mantém em forma letárgica e espasmódica” (4). O próprio Barth suscita a questão da natureza desta unidade e se pergunta se é possível estabelecer uma ordem – um prius e um posterius – nesta relação, não no sentido cronológico mas em termos de correlação teológica. Sua resposta (como poderia ser outra?) é que: “...no simul (na simultaneidade) da vontade e ação única de Deus, a justificação é primeira como a base e segunda como pressuposição; a santificação é primeira como meta e segunda como conseqüência, e portanto, ambas são superiores e ambas subordinadas” (5). É uma formulação teológica excelente, que Wesley haveria aprovado cordialmente. Mas na dialética de sua piedade e de sua pregação, a preocupação que mais o envolvia era o “plano grandioso” – a ordem de intenção. E aqui a santificação tem uma indiscutida primazia. Deus se propõe a criar um povo santo, “e esta intenção se torna realidade atual, visível, experimentada quando os homens e as mulheres se voltam a ela na fé”. Não é difícil resumir brevemente os elementos centrais do ensino wesleyano sobe isso. O pecado corrompeu toda a raça humana, empanando a imagem moral de Deus no homem, corrompendo a totalidade do seu ser e tornando-o incapaz de corrigir-se e de voltar-se para Deus. O pecado não causou somente a corrupção da espécie humana, senão que lhe desfigurou a própria natureza. A conseqüência última é a morte espiritual e física do homem. Entretanto, a humanidade não ficou em estado de total impotência moral. A graça preveniente, conseqüência universal da expiação, devolve ao homem um certo discernimento moral, a possibilidade de reconhecer a lei de Deus (ainda que não de guardá-la) e de responder ao convite do Evangelho. Noutras palavras, Deus restitui ao homem pecador, pela graça, uma dose de livre arbítrio. As boas ações realizadas nessa liberdade são, pois, fruto da graça e não admitem mérito algum. A salvação é inteiramente obra de Deus, totalmente livre e devida somente ao seu amor “misericordioso, ilimitado, sem discriminação e imerecido” (6). Realiza-se pelo sacrifício vicário de Cristo, cujos méritos, recebidos por graça mediante a fé, nos proporcionaram a redenção. A fé salvadora é “uma segura confiança... de que Cristo morreu por meus pecados, que me amou e se deu a si mesmo por mim” (7). Esta justificação significa o perdão dos pecados – original e atuais – e a regeneração, a saber, uma troca em nossa alma, pela qual passamos do pecado para uma vida de justiça. A santificação começa imediatamente depois da justificação e opera uma transformação pela qual nossa mente carnal é transformada à semelhança do “sentir que houve em Cristo Jesus”, ou seja, que as motivações, pensamentos e ações tornam-se motivadas pelo amor. Normalmente, esta experiência de justificação (perdão) está acompanhada por uma consciência de haver “nascido de novo”, de ser “filho por adoção”. O Espírito Santo testemunha para e com nosso espírito. Ainda que o renascido não cometa faltas externas, persiste nele um resto de pecado, que a santificação vai paulatinamente vencendo até chegar à “perfeição” (“plena santificação” ou “a grande salvação”). Esta pode ser alcançada nesta vida, seja progressivamente ou instantaneamente, ou ser recebida no momento da morte. Em todo caso, a perfeição continua sendo uma aspiração e uma bênção que se espera da graça divina. Não significa perfeição absoluta no sentido de infabilidade moral, senão que todas as ações e pensamentos são nascidos do amor de Deus “derramado pelo Espírito em nossos corações”. AS BOAS OBRAS Faz-se necessário retomar alguns aspectos deste sumário, que nos permitam captar melhor sua importância para nosso propósito. O primeiro tem que ver com a idéia de uma “dupla” justificação: a primeira, inteiramente pela fé, no momento da conversão, e a segunda “não sem obras”, no juízo final. Esta idéia de uma “dupla justificação” – expressão em si mesma suspeita para o protestantismo desde a época da Reforma – parece colocar a Wesley decididamente fora do campo protestante. Creio que o problema deve ser colocado noutros termos. Wesley jamais imagina uma operação humana autônoma, à parte da graça de Deus. Consequentemente exclui totalmente a idéia do mérito. Não há, neste ponto, nenhuma discrepância com os reformadores; com Lutero a insistir que a verdadeira fé é um princípio ativo que “não pode deixar de fazer boas obras”, ou com Calvino, para quem a fé nos inclui “em Cristo”, não só em forma forense, mas de maneira ativa e efetiva pela obra do Espírito Santo. Talvez, simplificando, poderíamos dizer que, onde os reformadores insistem, criticamente: “sem Cristo não pode haver obras boas”, Wesley formula, positivamente: “Em Cristo, há boas obras”. A distinção, todavia, é importante. Tem que ver, por uma parte, com dois “estados” de ânimo distintos que obedecem a duas situações espirituais e históricas diversas. Os reformadores, particularmente Lutero, vivem a busca medieval de salvação do poder do diabo, da ira e da morte. Wesley, ao contrário, sente a necessidade moderna de achar-se a si mesmo como “pessoa” – nova, útil, ativa. Na crise da instituição eclesiástica e do sistema sacramental medieval, os reformadores encontram em Deus mesmo a segurança de salvação: Deus, que se pôs em nosso favor em Jesus Cristo (Lutero) , que desde a eternidade nos destinou para sermos seus (Calvino) – é Ele, e não nossa vacilante consciência ou a instituição eclesiástica, o suporte seguro de nossa vida. Consequentemente é necessário excluir qualquer outra “mediação” que possa reintroduzir nossa salvação no terreno lamacento da ambigüidade humana. No começo, durante e no fim da carreira, não há outra segurança a não ser a graça divina. O que os reformadores não observaram é que procedendo assim, introduziram uma perigosa dicotomia, cujas graves conseqüências não tardariam a se fazer sentir. Por uma parte, a ação de Deus e a ação humana eram colocadas como “simétricas”e contrapostas. Para afirmar a primeira, era necessário desqualificar a segunda. Consequentemente, toda afirmação da segunda resultava em detrimento da primeira. Assim, o que quis ser uma afirmação da salvação, “não pelas obras”, veio a ser “sem obras”, quando não “apesar das obras”. Este deslize é o que horroriza a Wesley no quietismo morávio e o faz reagir escandalizado quando lê, no Comentário de Lutero a Gálatas o que ele considera uma linguagem “blasfema a respeito das obras e da lei de Deus” (Journal, 15 de junho, 1941). Por outra parte, as boas obras aparecem em determinada ortodoxia protestante tardia como separadas da vontade do homem concreto adjudicadas ao Espírito Santo, que assim vem a ser, não a presença encarnada do poder e da iniciativa divina, mas um “sujeito substitutivo” do homem em sua realidade histórica. Com razão o teólogo reformado Otto Weber diz que, numa orientação, “...se tornariam as obras em si mesmas, separadamente da pessoa e já não se afirmaria que “um homem bom e piedoso faz obras boas e piedosas”, senão que “espera passivamente que o Espírito as faça nele”. A pessoa seria assim deixada de lado como pessoa. Teríamos aqui um docetismo pneumatológico” (8). Como propor o tema das obras sem comprometer a prioridade da ação divina nem anular o sujeito humano? Numa aguda crítica à teologia protestante com respeito à relação entre salvação e História, Juan Luis Segundo lembra que “o desaparecimento, desde a Reforma, da noção de mérito na teologia protestante, parece ter minado a possibilidade de uma teologia da História”. A razão: Considerando que a noção de mérito (quer dizer, “o valor eterno” do esforço e da intenção justa”) era o único que dava à ação histórica um valor relacionado com o Reino, com o seu desaparecimento “este último laço de união entre ambos é cortado pela teologia da salvação só pela fé, pelos méritos exclusivos de Cristo” (9). Poderia alegar-se que na noção de “vocação” de Lutero se ajunta um novo vínculo, ou que o valor do “terceiro uso da lei”, em Calvino, cumpre esse mesmo fim. Entretanto, não há dúvida de que, historicamente, o Protestantismo não teve defesas contra essa religiosidade da “graça barata”que Bonhoeffer teve que denunciar. Juan Luis Segundo não pretende, por certo, retomar a noção de mérito e reconhece plenamente a importância da gratuidade da salvação que defenderam os reformadores. Mas o problema persiste e Juan Luis invoca a possibilidade de superá-lo em uma “síntese fecunda e libertadora”: “A fé liberta o homem da preocupação da lei para que possa lançar-se a um amor criador e não fique paralisado pelo problema da segurança e da salvação individuais, cujo único critério estático, pode ser a lei. Porém, esta entrega do nosso destino a Deus não deve levar a pensar que Deus tem interesse em que o deixemos trabalhar só, como se toda colaboração nossa fosse um definhamento para a sua glória. Pelo contrário, o Deus cristão é um Deus que, amando, necessita ser amado. Necessita de nossa criatividade para a sua obra e por isso pede que lhe entreguemos nosso próprio destino” (10). A meu ver a noção moderna de “trabalho alienado” pode ajudar-nos a ver mais claramente o problema. De fato, se entende melhor a polêmica paulina-luterana contra as “obras” e os “méritos” quando observamos que o que atacam é um “uso” das obras como um produto do homem que se converte em coisa, numa “moeda”que serve para transigir as relações com Deus e com o próximo . Tal coisificação das obras “em si mesmas” despersonaliza as relações com Deus e com o próximo. As “obras” se interpõem entre o homem e Deus: é possível por elas estabelecer um pacto com Deus no qual não estaríamos pessoalmente involucrados – quer dizer, donde estaria ausente a fé em seu caráter pessoal de “ficucia”. E estaria ausente, precisamente, porque a “obra” ficou separada de seu autor, é uma “prestação” religiosa ou moral, objetivada em relação a uma lei (11). Ao contrário, tanto Paulo quanto Lutero conhecem uma “obra do amor” ou “obras da fé” que são a pessoa mesma como sujeito ativo envolta numa relação pessoal de entrega a Deus e ao próximo. Não cabe, neste caso, a noção de mérito como se as obras tivessem um “valor de intercâmbio”, mas cabe, sim, a noção de “significado”, ou “validez” das obras como inseparáveis da pessoa que as realiza e como incorporadas ao propósito e à ação de Deus. Realmente, assim consideradas como “a pessoa mesma em seu caráter de sujeito ativo”, as obras são a única manifestação histórica da pessoa, são o testemunho da historicidade concreta da obra de Deus, como afirmação do Cristo juanino. “Crede-me pelas obras mesmo” (João 10:38; cf. 5:31-36 et passim) ou a polêmica afirmação de Tiago: “eu, por minhas obras, te mostrarei minha fé” (Tiago 3:18). A luta de Wesley em defesa da santificação tem, na minha opinião, o valor de reivindicar este caráter ativo da pessoa crente e de rechaçar qualquer separação de fé e amor. Entretanto, o marco teológico do ordo salutis é uma camisa de força de que Wesley foi incapaz de desfazer-se. Sem discutir o valor da intenção original dessa noção, a mesma se tornara, nas mãos do escolasticismo protestante, numa rígida seqüência de momentos que, ao invés de desenvolver a riqueza da graça única e múltipla de Deus, forçava a experiência cristã a um padrão pré-estabelecido. Prontamente o ordo foi psicologizado numa série de “despertamentos espirituais e ações e estados de tipo religioso e moral” (12). Wesley ficou preso nesta rede. Havendo deixado atrás a justificação como um “momento”, era inevitável que caísse na armadilha da dupla justificação – fazendo uma distinção entre uma salvação “final” – pondo assim em perigo o próprio coração da fé. A justificação e também a santificação vêm a ser, então, uma série de momentos quase desligados, sempre precários e ameaçados pelo pecado. Portanto se obscurecem e se distorcem tanto a unidade do sujeito humano como a unidade do sujeito humano como a unidade e fidelidade da graça de Deus. A formulação wesleyana da santificação e da perfeição tornam-se psicologicamente insustentáveis. Além disso, espiritualmente, abre as portas a uma doentia escrupulosidade ou a uma igualdade perniciosa soberba. O fato de que Wesley não tenha se tornado vítima de nenhuma das duas coisas em sua própria vida espiritual só prova – como no caso de muitos outros santos – que sua piedade é muito melhor que sua teologia. O FANTASMA DO SINERGISMO Posições como a de Wesley têm sido estigmatizadas pela teologia protestante como o conceito desqualificador de “sinergismo” (neste caso, o “arminianismo” como “separação” do Calvinismo). Albert Outler mostrou com clareza que o conceito wesleyano continua uma afirmação teológica tradicional, que no Ocidente sofreu as conseqüências da polêmica agostiniana. O conceito de “sinergismo”, perfeitamente ortodoxo na tradição oriental, veio a ser identificado com a versão “pelagiana” do mesmo (versão que tínhamos até há pouco tempo, dada exclusivamente por seus adversários), e interpretada no mesmo esquema “simétrico” a que nos referimos anteriormente, pelo qual toda “cooperação” humana subtraia a glória e a ação de Deus (13). Esta exclusão sem rodeios de todo sinergismo, de toda participação humana ativa na obra de Deus, tem sido fatídica para o protestantismo. Como sublinhou Juan Luiz Segundo no artigo mencionado, tem impedido de dar à ação humana um lugar intrínseco na obra de Deus de fazer presente seu Reino. Traduzido na discussão teológica contemporânea como “reserva escatológica”, este monergismo de morte não só torna relativa como vulgariza a ação histórica pela justiça e a faz, transformando-a num exercício de valor derivativo, transitório, intranscendente, a criação de um mero cenário onde ocorre o verdadeiramente importante – a salvação da “alma” – cenário destinado a desaparecer. Pode afirmar-se um “sinergismo” que não atente contra a prioridade permanente da graça? A pergunta é, como sugerimos, de crucial importância para uma teologia latinoamericana. Albert Outler assinalou numa direção, a meu ver, correta e frutífera, ao distinguir entre um “sinergismo contratual”, o que Wesley havia herdado na tradição do “facere quod in se est” – a saber, “se um homem se comporta de acordo com seu acesso à salvação tem o status de um direito” – e um “sinergismo do pacto” (convenantal synergism) no qual “tanto a graça preveniente como a salvadora são reconhecidas como as atividades coordenadas e providenciais do único Deus verdadeiro de amor” que estabeleceu um pacto com os homens. Poderia ser discutido se Wesley realmente percebeu e estabeleceu claramente a diferença entre ambas as formas de compreender a colaboração de Deus e do homem. O importante é advertir que esta segunda concepção representa uma possibilidade legítima de abordar positivamente um problema teológico de importância práxica decisiva. O tema se delineia para nós num plano antropológico, como o problema da constituição do sujeito-humano. Mas, na América Latina, a pergunta antropológica tem que ser feita a partir da condição da não-pessoa, quer dizer, daqueles que têm sido despojados - objetiva e subjetivamente, individual e cooperativamente – da qualidade de sujeito de sua própria existência, de gestores de sua história. Consequentemente, a operação e o significado da graça de Deus devem explicitar-se em resposta a essa problemática: Como Deus reconstitui o sujeito humano? Como a graça opera uma dêsalienação desse sujeito – também objetiva e subjetiva, individual e coletivamente? Um dos elementos dessa resposta tem que ser a des-alienação do próprio conceito de graça. Noutras palavras, as formas de “auxílio religioso” (sacramental ou evangelístico) resultam muitas vezes em coadjuvantes para a possibilidade de ser “sujeito” em relação com o divino. Uma reflexão que procure responder às perguntas propostas deve situar-se no contexto teológico mais amplo da relação entre Deus e o homem. Essa relação que Deus mesmo quis e suscitou desde a criação, é o que chamamos “pacto”. Ao criar o homem, Deus se suscita um “sócio” (menor), constituindo-se a si mesmo, por esse mesmo ato, em “sócio”(maior), com um propósito que é conteúdo dessa relação. Esse propósito que é o conteúdo dessa relação. Esse propósito pode ser definido em função de sua manifestação exterior e objetiva – a reconstrução do mundo – ou em sua dinâmica interior e motivadora – o exercício ágape. A redenção deve ser vista, portanto, em relação a esse horizonte: é nele que devem situar-se os grandes feitos da reconciliação, justificação e santificação. A alienação fundamental da existência humana é a quebra desse pacto, isto é, a um só tempo, a destruição de sua dinâmica e motivação - o ágape – e d seu projeto – a construção do mundo. Nela, o homem renuncia a sua condição de sujeito, tanto em relação com Deus como em relação com o mundo e com o seu próximo. Entretanto, Deus não desfaz seu pacto. Logo, não se pode falar teologicamente de um homem “sem Deus”- a própria ira de Deus é sinal de sua fidelidade, de sua decisão de não deixar o homem só, de sustentá-lo como responsável, apesar de sua alienação. Essa fidelidade de Deus ao seu propósito (o ágape e a construção do mundo), que inclui sua ira, é o que chamamos “graça” – a unilateralidade de um pacto que só é honrada por um de seus membros. E que é assim honrado para reintegrar o sócio infiel e restaura-lo à sua relação ativa. Por isso, noções tais como “o homem fora da graça” são construções teológicas (instrumentos teóricos) úteis às vezes para a reflexão, mas nunca realidades empíricas. No contexto dessa relação, podemos falar de um “sinergismo”, de uma cooperação do homem com Deus, mantida pela graça constante de Deus, que nunca reduz seu “sócio” – ainda que infiel – a um objeto. Ao contrário, dirige-se a ele e o convida a responder e a atuar, e volta a abrir-lhe permanentemente as portas para colaborar em seu propósito. A TOTALIDADE DA RAÇA HUMANA Ao falar da “insatisfação” com o presente que a idéia da “perfeição” de Wesley introduz, Runyon acrescenta: “Além disso, esta insatisfação é facilmente transferível do âmbito do indivíduo para o da sociedade... onde oferece uma persistente motivação para a reforma à luz de ‘um caminho mais perfeito’ que transcende qualquer status quo” (14). Tal ampliação do conceito de perfeição é requerida, segundo Runyon, pelo próprio conceito de Reino de Deus de Wesley. Este, com efeito, insiste em que o Reino já começa a realizar-se na terra. Duas citações nos confirmam esta afirmativa. A primeira provém de suas Notas sobre no Novo Testamento (comentando Mateus 3:2 - “o Reino dos Céus está próximo”): “Há de formar-se uma sociedade... para que subsista, primeiramente na terra, e depois com Deus na glória. Em algumas passagens da Escritura a expressão se aplica mais particularmente ao estado terrenal (do Reino); noutras significa somente o estado glorioso. Mas na maior parte, inclui a ambos.” A segunda citação comenta a petição do Pai Nosso (“venha teu Reino, faça-se tua vontade”): “...o significado é que todos os habitantes da terra, toda a raça humana, faça a vontade do Pai que está nos céus, tão voluntariamente como os santos anjos; que o façam continuamente... e perfeitamente... Noutras palavras, oramos para que nós e toda a humanidade façam a vontade de Deus em todas as coisas” (15). A perfeição cristã é concebida em termos ativos: não se trata meramente de se abster do mal, mas de comprometer-se com o bem. Por isso, os metodistas não devem separar-se do mundo (como o fariam os místicos ou quietistas), mas “levedar tudo que os rodeia”. A doutrina da perfeição ficaria assim vinculada a uma visão da renovação de toda a criação. A citação seguinte descreve muito bem essa visão do “plano glorioso” – o triunfo pleno do amor: “suponhamos agora que a plenitude do tempo chegou... Que perspectiva se abre! As guerras terão cessado sobre a terra... não se levanta mais irmão contra irmão; nenhum país ou cidade está dividida contra si mesma, arrancando-se suas próprias entranhas... não há opressão que ‘enfureça até o sábio’, não há extorsão que ‘esmague o rosto do pobre’, não há roubo nem injúria, não há saque nem injustiça, porque todos estão satisfeitos com o que têm! Assim, ‘a justiça e a paz se beijaram’... E com a retidão ou justiça, também se acha a misericórdia... E cheios de gozo e paz, crendo e unidos em um só corpo, por um Espírito, todos se amam como irmãos, têm um mesmo coração e uma mesma alma. ‘E ninguém diz que algo é propriamente seu’. A ninguém falta nada, porque todos amam o seu próximo como a si mesmos” (16). O mesmo Runyon deplorava que esta visão não haja frutificado no movimento metodista. Isso atribui, em parte, à falta de consistência do próprio Wesley que, noutras articulações da doutrina da perfeição – especialmente no conhecido “A plain account of Christian Perfection”- dá uma visão muito mais individualista e moralista da perfeição, que levou ao legalismo e ao “orgulho espiritual” muitas vezes vinculado a esta doutrina. Por outra parte, dada a posição política conservadora de Wesley, todo progresso social é concebido como uma mera extensão e correção das instituições e estruturas existentes. Inclusive o parágrafo citado não deixa de manifestar em sua “visão utópica” rasgos conservadores e teocráticos. Possivelmente teria que aprofundar a crítica. Parece-nos, com efeito, que apesar destas afirmações, Wesley não superou uma antropologia individualista, que concebe as relações humanas como extrínsecas à pessoa, um campo onde esta exercita sua virtude. Isso obedece, como dissemos anteriormente, a seu desconhecimento do caráter estrutural da vida humana. Dadas as circunstâncias históricas e as próprias limitações ideológicas e teológicas, é difícil imaginar que o metodismo pudesse haver cumprido um papel muito distinto do que realmente teve na Grã-Bretanha dos séculos XVIII e XIX. Não se trata, pois de reivindicar um suposto papel “revolucionário” do metodismo ou “libertador” de sua teologia. O que nos interessa, sim, é observar uma temática teológica particularmente significativa frente aos problemas de uma práxis histórica libertadora na América Latina. Mais precisamente, Wesley propõe, dentro da teologia protestante, tratando de manter a fidelidade ao teocentrismo cristológico da mesma, uma problemática ineludível para uma teologia que queira assumir um compromisso sério com um projeto histórico de libertação: Que liberdade de ação fecunda, a nível histórico, tem o homem, individual e coletivamente? Que valor transcendente, que significação escatológica, tem um projeto humano? Que possibilidade de progresso para a justiça e amor do Reino se pode esperar na História? Que relação pode haver entre o Reino de Deus como ato divino escatológico e a ação humana – entre a salvação como empreendimento ou vocação? Wesley se nega a dar uma resposta unilateral que exclua o segundo termo destas perguntas e condene o homem à intranscendência em sua existência real e histórica. Tal antropologia lhe parece indigna da universalidade da graça e do poder do amor divino. A articulação de suas respostas, dentro do marco das categorias teológicas de sua época está muito longe de satisfazer-nos. O projeto histórico com o qual o metodismo entrelaçou sua espiritualidade de origem, que se assemelha bastante ao de nossas próprias origens evangélicas latino-americanas, já não representa para nós uma possibilidade libertadora. Mas as perguntas que se atreveu a propor à sua tradição teológica seguem sendo fecundas para nosso quefazer teológico e pastoral hoje na América Latina. NOTAS (*) Nota do tradutor: A experiência religiosa mais significativa de Wesley ocorreu no dia 24/05/1738 na Rua Aldersgate, em Londres; chamada também de “a experiência do coração aquecido”. 1) Albert C. Outler, “Methodist Theological Heritage: a study in perspective”, em Paul Minus (ed.), Methodist Destiny in an Ecumenical Age (Nashville, Abingdon Press, 1969), p. 49. 2) T. Runyon, Sanctification and Liberation (op. cit.), p. 10. 3) Institutes 3:11,6. 4) K. Barth, Kirchliche Dogmatik, IV;2, p. 504. 5) Ibid., p.502. 6) Rupert Davies, “Justification, sanctification and the liberation of the person”, em Runyon (ed.) Sanctification and Liberation (op. cit.) p. 68. 7) Works, 5, pp. 605. 8) Otto Weber, Grundlagen der Dogmatik (Neukirchen, Verlag der Buchhandlung des Erziehungsvereins, 1962) II, p. 363. 9) Liberación de la Teologia (Buenos Aires, Carlos Lohlé, 1975), pp. 160-161. 10) Ibid., p. 172. 11) Quem primeiramente chamou minha atenção sobre este paralelo entre a idéia paulina de “obras” e a noção de “trabalho alienado” foi K. Lenkensdorf numa tese não publicada sobre a teologia do apóstolo Paulo apresentada na Universidade do México. Veja-se meu livro “Ama e faze o que quiseres” (Buenos Aires, Editora La Aurora, 1971) pp. 41ss; “Doing Theology in a Revolutionary World (Philadelphia, Fortress Press, 1975) pp. 110-111. Recentemente, no artigo acima, elaborou a mesma analogia (op. cit. pp. 22-30). 12) Runyon sustenta que Wesley não cai na armadilha de fixar o ordo como seqüência e que é isso que lhe permite manter a prioridade da graça sobre o significado das obras. A justificação pela fé não seria para ele “um ponto de partida que marca o curso do futuro que será construído”, mas o centro em torno do qual “gira a dança da vida” (op. Cit. P. 36). A figura me parece muito significativa para caracterizar uma correta compreensão da unidade de justificação e santificação. Porém, duvido que se possa afirmar que Wesley manteve conscientemente essa unidade em termos tão claros. 13) Veja-se Outler, op. cit., pp. 49-66. Outler faz uma significativa história do problema, sublinhando a definição de Ambrosiaster, “Facenti quod in se est, Deus non denegat gratiam”, para mostrar que há uma afirmação teológica e antropológica firmada nestes termos que deve ser relacionada com a ênfase agostiniana – reformada. “Que Wesley foi sinergista dificilmente se pode negar, a menos que o “sinergismo” seja definido em termos exclusivamente pelagianos” (p. 58). 14) Op. cit. p. 10. 15) Works, 5, p. 337. 16) Works, 5,m p. 46. IV CAPÍTULO A ECLESIOLOGIA WESLEYANA ... Uma Igreja que nasce do povo? Temos visto que, embora com suas ambigüidades, Wesley manifestou um interesse pela condição do povo pobre e buscou formas (basicamente assistenciais) de aliviá-la. Também tratamos de mostrar que sua intuição teológica, ainda que limitada pelos condicionamentos ideológicos e teológicos de sua época, propõe uma problemática frutífera para nossa reflexão teológica latino-americana. Porém, nem o Wesley “reformador social” nem o Wesley “teólogo” tocam o centro de sua preocupação e de seu trabalho. É na pastoral, com a qual responde às exigências do povo e aos problemas que estas suscitam para a igreja, que encontraremos o verdadeiro gênio do metodismo primitivo. Como Wesley a concebe, a missão do metodismo não é outra que a de “levedar toda a massa” (da igreja) a fim de que se estenda “a santidade bíblica por todo o país”. Começa sua tarefa como pregador. Mas muito depressa se dá conta de que a necessidade pastoral excede o mero anúncio oral ou a conversão individual: Há que criar as condições e estruturas nas quais possa tomar forma concreta essa “santidade” que a Escritura exige na qual o novo “sujeito” que nasce com a conversão/regeneração cresça e frutifique. Por isso nos voltamos agora para a eclesiologia de Wesley, em busca de elementos que possam ser significativos para nossa situação. (1) A ECLESIOLOGIA EXPLÍCITA DE WESLEY Wesley não se preocupou por formular uma eclesiologia compreensiva. Para ele, bastava a que sua Igreja definia (a Igreja da Inglaterra). Por isso podemos resumir muito rapidamente suas afirmações eclesiológicas explícitas mais significativas. Parte frequentemente do artigo XIII dos “Trinta e Nove Artigos” e se detém na expressão “congregação de fiéis” (“faithful”) para destacar que se trata de uma “fé viva”, “uma segura confiança” e não meramente “crença” ou adesão formal. Ainda que a ênfase na fides qua não elimine a importância da “reta doutrina”, Wesley se inclina por um mínimo de exigência – aquelas doutrinas que são centrais para a mensagem – deixando um amplo campo para as “opiniões” diversas. Entretanto, não se trata de uma visão puramente subjetivista. De maneira alguma exclui da Igreja aquelas que vivem sua fé um tanto formalmente, sem aquela experiência viva do Espírito, e segue mantendo a validade do batismo (infantil) como acesso objetivo à família da Igreja. A Igreja da Inglaterra (Anglicana) segue sendo para ele um lugar aberto onde a graça de Deus, objetivamente presente no ministério e nos sacramentos, se faz acessível aos homens a fim de conduzi-los à plena maturidade de santificação que é o verdadeiro propósito da redenção. A atitude de Wesley no tema do ministério, intimamente ligada à sua relação com a Igreja Anglicana, corrobora e completa este quadro. Wesley, efetivamente, aceita a tríplice ordem de sua igreja – ainda que, com o tempo, chegue a considerá-la conveniente e legítima mas não “essencial”. Seu propósito é exercer seu ministério dentro da Igreja. Por isso trata por todos os meios de estimular em seus seguidores, e depois nos pregadores leigos que o acompanham, a assídua participação nos sacramentos e cultos da Igreja. Quando a situação se torna tensa, insiste: “não nos separemos da Igreja... a menos que sejamos expulsos” (Works, 8, p. 408). A afirmação repete-se frequentemente e as ações são coerentes com elas. Mas também se deixa ouvir outro acento: “não podemos, em sã consciência, descuidar a presente oportunidade de salvar almas enquanto vivamos” (ibid., p. 281). Há um preço que não está disposto a pagar ainda pela unidade: “...sei que Deus nos tem confiado uma dispensação de evangelho; sim, minha própria salvação depende de prega-la. Se, pois, não posso permanecer na Igreja sem deixar de fazê-lo, sem desistir de pregar o evangelho, me veria na necessidade de abandona-la ou de perder minha própria alma” (Works, 6, p. 408). E isso o que finalmente ocorre: vacilantemente, Wesley consente em estabelecer uma igreja autônoma nos Estados Unidos e toma, na Grã-Bretanha, medidas com respeito a pregadores e sacramentos que conduzirão, inevitavelmente, à separação (que ele mesmo, entretanto, nunca consente). Podemos assim resumir brevemente a eclesiologia explícita de Wesley: 1) Wesley modela a doutrina da Igreja com base na definição clássica da mesma em termos da fé, da pregação da palavra e da ministração dos sacramentos; 2) Entretanto, estes elementos se acham, em tensão na eclesiologia wesleyana: por uma parte, a fé viva – que quer dizer, uma fé consciente, provida do testemunho do Espírito, ativa no amor – é sublinhada como requisito de vinculação à Igreja; por outra, se reconhece uma comunidade mais ampla que esta qualificação, uma comunidade vinculada ao batismo e à eucaristia, ainda que só dotada de uma fé “formal”; 3) A mesma tensão se manifesta com relação à pura Palavra de Deus: se bem que Wesley insista na doutrina, particularmente no que diz respeito à mensagem a anunciar, está disposto a certa latitude em matéria de opiniões – deixando um amplo campo de divergências ainda dentro de suas próprias sociedades; 4) A dimensão de ordem eclesiástica entra subordinadamente em sua definição de igreja: aceita a ordem episcopal e os três graus do ministério de sua igreja e os considera os mais convenientes, escriturísticos e razoáveis, mas não os únicos de direito divino nem constitutivos da essência da Igreja; 5) Quando a estrita obediência à ordem ameaça a missão de Wesley crê haver recebido de Deus, não vacila na decisão. Encontramos, pois, em Wesley, uma eclesiologia clássica protestante com elementos católicos fortemente sublinhados. Porém, tudo isso tem sido colocado no contexto de uma paixão evangelizadora e missionária. Na crise social e religiosa de sua época, Wesley chama a igreja para entrar na nova época que se abre como uma força de evangelização. Sua igreja não está em condições de responder a esse chamado e o conflito não pode ser evitado. Mas não é somente isto: a ênfase missionária introduz uma tensão nos próprios elementos da definição eclesiológica. Ainda sem plena consciência disso, Wesley coloca a totalidade do que constitui a Igreja como tal – a correção da doutrina, a prática sacramental e sobre tudo a ordem eclesiástica – a serviço da proclamação evangelizadora. Num sentido proclama na prática uma instrumentalidade da Igreja para sua missão. Tal impostação introduz uma tensão na definição clássica – protestante ou católica da Igreja, que está concebida em termos de sua realidade interior e não de vinculação com o mundo não crente. Wesley não percebeu a amplitude do problema teológico e prático que traçava. Conservador e “tory” que era, creu que todo seu movimento podia entrar no marco da concepção tradicional das coisas. A tensão ficou sem resolver-se teologicamente e praticamente: é a tensão entre uma definição introvertida e uma concepção missionária da Igreja. Esse problema segue sendo nosso problema (não só metodista) também hoje. A ECLESIOLOGIA IMPLÍCITA Em sua nota a Atos 5:11, Wesley oferece outra definição da Igreja: “uma companhia de pessoas, chamadas pelo Evangelho, inseridas em Cristo mediante o batismo, animadas pelo amor, vinculadas entre si por toda sorte de fraternidade e disciplinadas pela morte de Ananias e Safira”. A definição está tomada do Gnomon de Bengel, mas Wesley sublinha a expressão “unidas entre” si por toda sorte de fraternidade”, acrescentando-lhe “animadas pelo amor”. A insistência na fraternidade (ou “comunhão” = fellowship) como elemento básico de definição da Igreja aparece noutras passagens de Wesley, não tanto como definição teológica, mas como exigência pastoral, que depois sustenta bíblica e teologicamente. Esta ênfase está plasmada na estrutura das organizações metodistas com suas “classes”, “grupos” (bands) e finalmente as “Conferências”. Tem-se assinalado frequentemente que esta organização se inspira nos grupos morávios (ainda que só os grupos, não as classes nem as conferências). Entretanto, estas eram principalmente meios de participação e expressão da experiência interior, as “Regras” wesleyanas para seus grupos refletirem um propósito diferente. Efetivamente, a primeira parte das regras consiste em “proibições” que apontam para uma forma devida condizente com o Evangelho na situação imperante (tal como Wesley o entende): descuido do Dia do Senhor, embriaguez, regateio, vaidade, excessos. A segunda parte expressa a mesma preocupação, mas agora em forma ativa, como estímulo mútuo à ação do bem na sociedade, o serviço ao próximo: esmolas, conduta exemplar, tratamento correto com o próximo. Finalmente, a terceira parte exorta à participação assídua na Igreja e aos meios de graça: culto público, celebração da Ceia do Senhor, reunião dos grupos, assistência diária ao ministério da Palavra, a leitura bíblica e a oração pessoal e familiar. O elemento de “mutualidade” caracteriza os “grupos” (“No ‘grupo’ cada indivíduo é meu monitor e eu sou monitor dele”). A dimensão pastoral, por outra parte, está presente das classes. De todos se requer um compromisso total. Wesley encontrou assim uma relação pessoal, face a face, numa sociedade que a indústria começava a despersonalizar. As condições que se requerem dos membros e líderes não estão fora de suas possibilidades, ainda que requeiram dedicação. Assim, eles são construídos em agentes ativos e responsáveis de seu próprio crescimento. Num parágrafo, quando trata de justificar esse sistema, Wesley nos dá um excelente resumo de sua “eclesiologia implícita”. Aqui o citamos in extenso: “...só quando estamos vinculados em unidade (knit together) temos ‘o alimento dEle e crescemos que vem de Deus’. Não há momento algum em que o membro mais débil possa dizer ao mais forte, ou o mais forte ao mais débil: ‘não tenho necessidade de ti”. Por isso, nosso bendito Senhor não enviou os discípulos sozinhos quando eles se achavam em seu estado mais débil, mas de dois em dois. Quando se tornaram um pouco fortalecidos, não na solidão mas permanecendo com ele e uns com os outros, lhes ordenou esperar (não separados, mas ‘reunidos, juntos’) a ‘promessa do Pai’. E estavam ‘todos unânimes no mesmo lugar’ quando receberam o dom do Espírito Santo. No mesmo capítulo se menciona expressamente que, quando ‘foram acrescentados três mil almas a eles’, todos os que criam estavam juntos e perseveravam não só ‘na doutrina dos apóstolos’ mas também ‘na comunhão (fellowship) e no partir do pão’ e estavam ‘unânimes na oração”. Na mesma linha é a descrição que o grande Apóstolo dá de como foi ensinado por Deus, ‘para a perfeição dos santos, para a edificação do corpo de Cristo’ até o fim do mundo. Segundo o Apóstolo Paulo, todos os que tenham e chegar ‘à unidade da fé, a varão perfeito, à medida da estatura da plenitude de Cristo’ devem ‘crescer juntos nele, de quem todo o corpo, composto e bem ligado entre si (ou fortalecido) por aquilo que cada conjuntura provê, segundo a operação eficaz na medida de cada parte, dá crescimento do corpo para edificação do mesmo em amor’” (Works, 14, pp. 333-334). A passagem mostra as dimensões do conceito wesleyano de “comunhão”. Em primeiro lugar, a necessidade de “estar junto” como condição do crescimento em Cristo. No cristianismo, insiste, só há uma “santidade social”, que se alcança por uma contribuição mútua ao crescimento conjunto – isto é para Wesley, caracteristicamente, tanto uma verdade escritural como uma constatação prática. Em segundo lugar, esta comunhão é pastoral e dinâmica. Não se trata do mero consolo espiritual e da participação das mútuas experiências – o elemento predominante nos grupos morávios – mas de crescimento, mútuo estímulo para fazer o bem e atenção mútua. Em terceiro lugar, e por último, a comunidade deve ser concreta, organizada e visível – “num lugar”, “estar juntos” – sem descuidar os elementos materiais: a contribuição monetária para as necessidades de todos e para a caridade com os de fora. Finalmente, a comunidade mesma é um elemento de evangelização; a comunidade é parte do processo missionário; passando de caráter de “cenáculo” que tem a comunidade morávia para o de “quartel” a serviço de toda a Igreja e, mais ainda, a serviço de toda a população. Missão e comunidade se unem, e este é outro elemento constitutivo da eclesiologia wesleyana. A RENOVAÇÃO DA IGREJA Agora gostaríamos de explorar crítica e construtivamente a significação desta prática pastoral e eclesiológica esboçada em Wesley, perguntando-nos por seu significado atual: a renovação da Igreja, a missão no mundo e o ecumenismo. Discutiremos os dois primeiros temas nesse capítulo, deixando o último para o capítulo seguinte. A tradição protestante clássica (assumida, de certa maneira, pela Igreja Católica Romana na teologia conciliar) entende a renovação da Igreja como obra da Palavra de Deus: só esta pode devolver ao rosto da Igreja a sua verdadeira imagem. Na tradição pietista a renovação é fruto de um renascimento interior do crente e de uma renovação na vida prática. No primeiro caso, o caminho é a submissão à Palavra, não meramente como a letra da Bíblia mas como a mensagem do juízo e da misericórdia de Deus. No segundo, não se trata tanto da apropriação do conteúdo objetivo da Palavra como da qualidade do fervor e da piedade cristã: não basta “retornar” à Palavra, é preciso “avivar” a fé. Nada seria tão insensato como opor entre si ambas as visões ou estabelecê-las como disjuntiva. A oposição entre “reforma” e “avivamento” gera corrupção teológica: uma oposição entre a segunda e a terceira pessoas da Trindade, cuja atuação é isolada e contraposta. E por sua vez, cria-se uma corrupção na prática – uma ortodoxia rígida, vazia de vida, “fogo pintado na parede”, no dizer de Wesley, ou melhor, um Espírito que atua só subjetivamente, confundindo-se com as emoções ou com um esquema de normas morais que habitualmente refletem com demasiada exatidão o ideal moral da época, ou as necessidades ideológicas do sistema. Wesley recusa-se a dissociar os elementos que representam ambas as tradições – os objetivos, como a Palavra, os sacramentos, a ordem; e os subjetivos, como a experiência, a santidade interior, a meditação, a comunhão fraternal. A “ecclesiola” (comunhão concreta) é sua forma de vincular concretamente ambos os elementos. Por usa vez, imprime-lhe um caráter ativo: o grupo é uma reserva de “comprometidos” (compare-se o serviço de Pacto), dispostos a penetrar em situações novas, a escutar ordens novas de Deus. É a escola de um apostolado leigo, na qual o crente não se instala numa salvação obtida mas se alista numa missão que lhe exige um constante crescimento pessoal e uma permanente relação com os demais. Potencialmente temos aqui o que Leonardo Boff tem dito das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), uma “re-invenção da igreja”, a dinâmica de uma igreja que nasce “de baixo” – não como se tem dito numa crítica superficial, como se pretendesse uma igreja formada pelo puro quefazer humano, mas nascida do Espírito Santo a partir da vida comunitária do povo crente. Mais ainda, dada a composição social do metodismo primitivo, os grupos metodistas poderiam ter vindo a tornar-se um poderoso elemento de transformação social, alimentando o nascente movimento operário e sendo igualmente alimentado por ele. Estas promessas só se insinuaram debilmente como tendências e em pouco tempo resultaram frustradas. Conspiraram para isso fatores externos e internos, certamente vinculados entre si. A análise dos primeiros escapa às nossas possibilidades neste momento. Dos segundos, creio ser possível analisar três que me parecem decisivos: A) Em que pese a importância que os leigos tiveram na vida do metodismo primitivo, Wesley nunca lhes concedeu um papel verdadeiramente decisivo na condução do movimento, tanto pela autoridade quase ilimitada que exerceu pessoalmente durante sua vida como pela estrutura “piramidal” que deu ao que seria a Igreja Metodista; o pregador leigo foi um agente, mas a condução foi elitista e clerical; B) O conservadorismo político de Wesley, seu temor de toda desordem ou perturbação, transmitiu-se à condução do movimento metodista; quando se insinuaram tendências críticas, quando certos líderes leigos vincularam-se a linhas sindicais mais radicais, a liderança metodista, por persuasão ou repressão, os dispersou e não permitiu que sua influência operasse sobre a massa do metodismo – carentes de uma teologia verdadeiramente profética e de uma compreensão dos fatores estruturais, as tendências mais comprometidas não puderam resistir à rápida marcha da Igreja Metodista para uma opção de classe burguesa; C) Na Inglaterra do século XIX que construía rapidamente seu império, as energias metodistas se voltaram para a obra missionária, desprendendo-se da problemática interna de sua própria sociedade (2). Devemos deixar de lado qualquer julgamento anacrônico de um fenômeno histórico que deve ser relacionado com seus próprios parâmetros. Mas interessa, sim, re-pensar esse processo em nossa situação, na qual aparecem modelos eclesiais que guardam notáveis analogias com aquele. As deficiências de ordem teológica e de compreensão sócio-analítica que subtraíram possibilidades ao metodismo numa importante conjuntura histórica não deixam de insinuar-se também hoje, ao mesmo tempo que também se deixa ver o potencial de renovação transformadora da Igreja e na sociedade de nossos movimentos. Os temas desta reflexão são necessariamente dois: a problemática eclesiológica proposta por uma igreja que “nasce de baixo”, na qual o povo é sujeito eclesial ativo, e a relação entre renovação eclesial a partir do povo (e mais especificamente do povo pobre e oprimido) e da transformação da sociedade. Em ambas as problemáticas, tanto o êxito como as debilidades do movimento metodista primitivo tornam-se valiosos para nós. IGREJA E RENOVAÇÃO HUMANA A renovação wesleyana toca outro ponto crucial: a relação entre Igreja e Missão. Na tradição da igreja “constantiniana”, que dizer, a igreja reconhecida e situada na estrutura política e social, o corpo eclesiástico começou a ser definido cada vez mais em termos jurídicos e institucionais. Isso ocorria, por uma parte, à semelhança da estrutura estatal de que fazia parte, e por outra, pelas próprias necessidades inerentes ao fato de operar, em alguma medida, como o “órgão” religioso de uma estrutura total de poder. Na Inglaterra Hannoveriana as discussões eclesiológicas centraram-se sobre esse tema: o problema dos “limites” da Igreja, a saber quem são os sujeitos legítimos de autoridade. Inclusive os elementos objetivos – pregação, culto, sacramentos – tendem a ser considerados principalmente de maneira formal, mais em termos de sua “legitimidade”, “autorização” e “validade” que pelo seu conteúdo como realidade espiritual. A situação histórica, entretanto, modifica-se: no mundo moderno, a autoridade da Igreja em termos legais é ineficaz. Tanto para a burguesia que surge como para as massas proletárias, num mundo que seculariza-se, pouco importa quem é a “legítima autoridade” na Igreja. Se a religião há de ter algum peso será por sua possibilidade de responder às necessidades percebidas pelo homem. Por isso nasce o metodismo e por isso, ante a incapacidade da Igreja da Inglaterra de compreender a nova problemática, se produz a ruptura. Mas a circunstância histórica envolve também um caráter teológico. A Igreja, de fato, em termos bíblicos, é um momento de misericórdia de Deus que se estende até o homem, um movimento de Deus em Jesus Cristo, pela obra do Espírito Santo, para a renovação da vida humana, uma “missão” divina através da instrumentalidade ativa de um povo escolhido para ser “testemunha”. Quando a Igreja é concebida nestes termos, as questões estruturais não desaparecem nem se tornam irrelevantes, porque esse movimento de Deus para a humanidade é concreto e visível, incorporado numa humanidade e numa história, e portanto sob as condições de existência institucional e de fator social. Mas cobram um sentido distinto, sim, porque são “relativizadas” enquanto “relacionadas”: não são fins mas os “modos” da ação de Deus na humanidade indicados por Deus e, portanto, inerentes à missão. É evidente que Wesley não percebeu isto teologicamente. Sua definição da Igreja, como temos visto, é tradicional. Mas notamos como a visão evangelizadora rompe os modelos da definição tradicional, subordinando, com efeito, a estrutura jurídicoinstitucional à proclamação da mensagem. Talvez o teólogo americano Olin Curtis (1815 – 1918) seja um dos poucos metodistas que tem tentado resumir a doutrina da Igreja com base no impulso missionário concebido como a dinâmica da graça de Deus que busca o homem. Curtis situa a Igreja no movimento que parte do propósito universal da expiação – o eixo central da igreja – e a realidade escatológica do Reino, onde Deus há de reinar na plena manifestação de sua santidade soberana, sobre o cosmos inteiro, redimido para ser espelho de seu próprio ser. Nesse movimento, a Igreja é “o laboratório do Reino”, o lugar onde o alcance cósmico da expiação se faz visível na busca e na concepção da fé. Não nos interessa, agora, seguir o pensamento de Curtis que, influenciado pelo hegelianismo que havia bebido de seu mestre Martensen e pelas circunstâncias eclesiásticas de sua época tende a exagerar as exigências em favor da Igreja, a qual vê quase como a “encarnação” do Espírito na História. Mas é preciso destacar duas coisas: em primeiro lugar, a vinculação entre Reino e Igreja, fazendo desta última um instrumento do primeiro e, como conseqüência, o estabelecimento de uma unidade entre historia da salvação e história humana. Nem Curtis muito menos Wesley, trabalharam estes temas com profundidade. Se o tivessem feito, ter-se-iam visto obrigados a tratar de “ler” a história contemporânea à luz desse “propósito universal” e buscado interpretar concretamente o que significava ser “laboratório do Reino” à luz dessa leitura. A evangelização, reconhecidamente a medula de toda a obra wesleyana, teria alcançado, em tal caso, uma dimensão mais abrangente, ultrapassando o âmbito “religioso” para significar não como mera conseqüência mas intrinsecamente – como convite a participar no “laboratório de Reino” – um compromisso com a renovação da vida humana em todos seus aspectos. As pequenas comunidades seriam nesse caso, um sujeito eclesial ativo, em cujo seio se gestam as visões sob a inspiração da Palavra, numa comunhão ativa e em solidariedade com o mundo, e se inspiram e se promovem as tarefas que impulsionam a cidade humana em direção à realidade escatológica que interpela e desafia – o Reino. Creio que é nesta direção que buscamos nós, hoje, na América Latina, nossa articulação eclesiológica . NOTAS 1) Nesta mesma Cátedra tratei de analisar os aspectos mais importantes de eclesiologia de Wesley, em 1964. Por isso não nos voltamos aqui sobre o conjunto de temas eclesiológicos, mas apenas compilamos alguns elementos. 2) Esta é a tese defendida por Semmel na obra mencionada. Ainda que talvez não tenha o peso decisivo que lhe adjudica o autor, seguramente se trata de um fator importante, e a evidência que Semmel acumula em defesa de sua tese não deixa de ser significativa. V CAPÍTULO CONSERVAR O METODISMO? EM BUSCA DE UM GENUÍNO ECUMENISMO O mero anúncio do nome “metodismo” suscita uma série de perguntas difíceis na América Latina: Que significa para um grupo de latino-americanos vincular sua identidade com um momento do desenvolvimento religioso da Inglaterra (e eventualmente dos Estados Unidos)? Como conceber a missão de tal grupo religioso num momento em que a fé cristã – majoritariamente apresentada na América Latina pelo catolicismo – busca em nossos países achar uma práxis e uma articulação especificamente vinculadas a seu contexto? Se há um testemunho “evangélico” (no sentido de relação com a Reforma numa acepção ampla do termo), em que há de contribuir a busca que assinalamos? Que sentido tem retomar uma linha parcial como a do metodismo? Noutras palavras: Que significa “na periferia do mundo” ser parte de uma comunidade religiosa cujos centros, origem e maiorias pertencem ao “centro”? Como entender-se como metodista à luz de Medellín e Puebla? Que sentido tem uma “identidade metodista” no momento em que se constitui o Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI)? Por outra parte, não há dúvida de que no mundo ecumênico do Atlântico Norte voltam a adquirir impulso os movimentos confessionais (ou “comunhões cristãs mundiais” – World Christian Communions, como se costuma chamá-las). Por uma diversidade de razões que não vamos analisar agora, consolidam-se as estruturas confessionais e se fazem esforços para vinculá-las às “igrejas de ultramar”, como se costumava chamá-las. Trata-se de uma oportunidade ou de uma tentação? Qual é a matriz de nossa consciência cristã de metodistas latino-americanos? É a busca cristã latino-americana? É o protestantismo latino-americano? É o metodismo mundial? Ou, como se relacionam entre si estas diversas instâncias? Nossa apresentação de hoje não pretende dar uma resposta a estas perguntas. Seguindo a linha que traçamos nestas palestras, procuraremos acercar-nos do tema a partir da história do metodismo inicial, traçar depois a interpretação dessa experiência e concluir com algumas breves observações a respeito da América Latina. NOSSA HERANÇA ECUMÊNICA João Wesley e Jorge Whitefield utilizaram praticamente a mesma frase para defender o direito de cada um pregar suas distintas formas de metodismo fora dos limites subscritos pela lei canônica da Igreja da Inglaterra (Anglicana): “Considero o mundo como minha paróquia” (1). Podemos deixar de lado a pergunta de quem cita a quem (nenhum dos dois dá crédito ao outro pela frase). Poderia dizer-se, também, que o tipo de consciência de sua “jurisdição mundial” sugerida pela expressão, insinua em certa medida a atitude de “franco-atirador”, mais própria de um dito sectário que de uma família eclesiástica de bons modos. O que importa, entretanto, é outra coisa: para o metodismo primitivo o mundo não é primeiramente o lugar onde se movem organizações, mas o lugar da missão, o cenário sobre o qual a Igreja cumpre o mandato de anunciar o Evangelho e chamar homens e mulheres para a conversão. O metodismo não pode esquecer (em relação consigo mesmo como “estrutura” ou “movimento” mundial) qual é o berço de qualquer consciência do mundo que possa adquirir. Devemos recordar que embora Wesley tenha rechaçado a limitação que lhe impunha a lei canônica, de maneira nenhuma rechaçou a Igreja da Inglaterra. Deu-se conta, entretanto, que o despertar metodista precipitaria uma resposta de sua igreja. Depois de negar qualquer intenção de separar-se dela, comenta: “Cremos, entretanto, que (os metodistas) serão expulsos, ou que levedarão toda a Igreja” (Works, 8, p. 281). De certa maneira, ocorreram ambas as coisas: o despertar metodista realmente levedou, de distintas maneiras e em medidas diversas, quase todas as igrejas existentes na Grã-Bretanha e mais além, inclusive – as igrejas metodistas atuais são só uns poucos “pães” resultantes desse processo. Mas alguns também foram “expulsos” da Igreja Anglicana. A parte destes resultados históricos, o que se expressa aqui tem que ver com a vocação ecumênica do metodismo. Por sua própria origem, se bem entendemos, a Igreja Metodista não pode considerar-se ilhada, nem perfeita em si mesma, nem desvinculada das demais. A função original do metodismo não pôde realizar-se plenamente nos termos em que Wesley o concebeu. Hoje está cristalizado numa série de igrejas metodistas. Mas essa mesma história ilustra e dramatiza a ironia e o absurdo da divisão da Igreja. Por causa da sua própria origem, a Igreja Metodista é chamada para a superação de sua separação, para a unidade, não meramente “espiritual”, mas de comunhão, de comunidade, de unidade de missão e de solidariedade total – como sua própria eclesiologia o reclama. Um “confessionalismo” metodista pareceria ser a negação mais flagrante da natureza do movimento original de Wesley – a levedura na massa. Se as igrejas metodistas querem ser conseqüentes consigo mesmas, não poderiam viver de outra maneira que a de buscar constantemente sua integração na Igreja universal. Nesta busca de catolicidade, Wesley nos assinala algumas direções. A unidade para ele é basicamente missionária: “desejo fazer uma aliança ofensiva e defensiva com todo o soldado de Jesus Cristo. Não só temos uma fé, uma esperança e um Senhor, como estamos diretamente comprometidos com o mesmo combate”. Em matéria de doutrina, recordamos a distinção de Wesley: unidade naquela doutrina que forma o núcleo da proclamação missionária da Igreja, liberdade no que opera para a edificação da Igreja. A distinção não é totalmente adequada: primeiramente, porque proclamação e edificação não podem distinguir-se tão facilmente, e depois porque a edificação há de ser, tanto quanto a proclamação, realizada na verdade e isso obriga a mesma fidelidade doutrinal em ambas. Entretanto, Wesley não se desinteressa da pureza doutrinal, como às vezes tem sido proclamado. Dão testemunho disso os inflamados conflitos doutrinários em que se meteu em diversas ocasiões. Mas o cortante rechaço de uma posição doutrinária – com respeito à predestinação, por exemplo – não devia ser, segundo ele, obstáculo à comunhão, não somente na igreja, mas inclusive, em suas próprias sociedades metodistas. Wesley não é suficientemente claro com respeito aos últimos critérios dessa tolerância. Mas sua consciência do “penúltimo” caráter da doutrina constitui um elemento de importância nas discussões ecumênicas atuais. Esta revitalização da doutrina corresponde igualmente em Wesley à relação indissolúvel que ele estabelece entre comunhão na Palavra e comunhão no amor. As evidências do caráter cristão de uma pessoa abarcam sempre, para Wesley, três campos: a experiência consciente (a “fé viva”), a doutrina e a vida cristã (a prática ativa do amor). É verdade que a segunda fica um pouco relegada em relação à primeira e à terceira. Mas isto assinala, precisamente, um campo muito importante para a reflexão ecumênica: a comunhão na fé é comunhão na práxis do amor. AS CONDIÇÕES ECUMÊNICAS Para tratar de re-interpretar nossa herança ecumênica faz-se necessário traçar certas coordenadas em relação com o espaço teológico, eclesiástico e ecumênico. Teologicamente faz-se necessário reflexionar sobre o tema da unidade tanto em seu sentido local quanto universal. Não se deve entender nem uma nem outra como a preservação ou imposição de uma “totalidade” dada de doutrina, jurisdição ou ordem eclesiástica. A unidade se refere, mais precisamente a essa qualidade da atividade de Cristo na Igreja que a impulsiona para todos e para tudo, ao movimento pluridimensional do Espírito Uno no qual todos somos chamados à novidade de vida direcionada ao todo para o qual ele foi enviado. Esse movimento ocorre na arena da história humana e por conseguinte encontra sua expressão nas condições sempre variáveis e concretas da existência histórica. A unidade se refere, por outra parte, à busca de integridade e pleno desenvolvimento de sua vida por parte da igreja em cada situação local assim como em toda a oikoumene – toda a terra habitada. Tanto a “encarnação” local como a preocupação universal, a comunhão com a universalidade devem se esforçar por cobrar visibilidade. Uma Igreja que toma a sério a unidade – que quer ser verdadeiramente “católica”no sentido etimológico do termo – se esforçará para que seu pensamento teológico, sua resposta litúrgica, suas formas institucionais, seu testemunho e sua práxis no mundo reflitam a novidade que o Espírito cria e descobre em cada nova situação, uma vez que levam as marcas identificáveis do Cristo uno. Quer dizer, uma igreja que aspira a ser verdadeiramente “católica” (universal, ecumênica) estará caracterizada pela disposição de seguir a Cristo em seu ministério de paz e justiça em meio a todos os conflitos e antagonismos da história, arriscando as pressões e tensões que tal ministério desperta na vida da Igreja, uma vez que vive a ternura pastoral que vigia a comunhão de todos os membros do Corpo. Quando olhamos para o âmbito eclesiástico, a própria palavra “metodismo” nos recordará que a História do Cristianismo tem marchado, pelo menos durante os últimos quatro séculos, sobre os trilhos do confessionalismo. A auto-compreensão de tais famílias confessionais constitui um problema muito complexo. Por uma parte, varia não só de uma para outra dessas famílias, mas também dentro da história de cada uma delas. Por outra, nossa situação presente nos conduz a uma grande perplexidade: teologicamente, a existência confessional separada se justificaria somente pela afirmação de que nossa confissão particular incorpora de uma maneira única a compreensão correta do Evangelho e a plenitude da Igreja. Mas na realidade, a maior parte das igrejas (incluindo, em certa medida, a própria Igreja Católica Romana) vacilam muito em expressar sem qualificações tal pretensão. Em tal situação, pareceria que desembocamos inevitavelmente numa teoria de complementaridade que é sumamente questionável, tanto teológica como praticamente. Segundo tal posição, cada uma das confissões existentes seria uma “parte” ou um “ramo” da Igreja universal que se acharia (e, por conseguinte, não poderia tornar-se visível) na soma total das famílias confessionais. Tal ponto de vista dificilmente possa se justificar em termos do conceito de “igreja” no Novo Testamento (para o qual as “igrejas” não são partes ou seções, mas representação e corporificação plena da Igreja). E é teologicamente inaceitável porque desloca a unidade e a catolicidade da Igreja e mesmo sua existência visível como Igreja – para o âmbito de uma abstração (uma adição conceptual das Igrejas existentes) ou para o futuro (a união esperada). Minimiza as diferenças reais e consequentemente ameaça levar ao “indiferentismo”, o que Pio IX vira e condenara. É diante desta situação que se tem falado frequentemente “do fim da era confessional” (2). A existência continuada de estruturas confessionais, num momento em que não estamos seguros de sua justificativa, cria uma intranqüilidade e má consciência que, às vezes, se expressa em agressividade e auto-afirmação e outras, numa vacilação e inoperosidade. O problema é particularmente agudo para o metodismo, que nunca teve uma identidade doutrinária confessional bem definida e que tem afirmado quase abertamente a idéia de complementaridade (3). Nossa história protestante manifesta, além disso, outra ambigüidade. As famílias confessionais, na verdade, têm procurado prover a medida de universalidade que as igrejas têm podido realizar em termos de continuidade e conexionalidade histórica e geográfica. Foram os instrumentos de transmissão da tradição doutrinal, ministerial e litúrgica. Obedeceram à vocação missionária e estenderam a família de Deus até os extremos da terra. Ofereceram uma família universal que abriu o horizonte dos grupos locais e lhes deu uma fraternidade mais ampla. Por outra parte, a honestidade nos obriga a admitir que a “universalidade” das famílias confessionais está impregnada de artificialidade, alienação cultural, sectarismo, dominação e rigidez que impediram ou restringiram a manifestação da “catolicidade local” e forçaram as igrejas a uma existência separada, estreita e raquítica (4). No plano secular, finalmente apenas é necessário assinalar que a unidade e a catolicidade das igrejas acha expressão sempre nas condições de configurações particulares de fatores sociais, políticos, econômicos e culturais. No caso, vale a pena voltar a recordar como essas condições afetaram a origem e a expansão do metodismo. A marca da Revolução Industrial é claramente visível nos valores e normas e ethos do metodismo inicial como se observa em sua cristalização nas Regras Gerais. Igualmente, a expansão do metodismo na esteira da expansão colonial e econômica britânica e norteamericana, foi naturalmente moldada pelos padrões geográficos e influenciados pelo conjunto das idéias e modelos que acompanharam esses processos históricos. Essa é a matriz do mapa eclesiástico moderno (5). Poderíamos resumir dizendo que o “metodismo mundial” é uma realização particular do cristianismo, plasmada no padrão confessional protestante, pelas forças do despertar evangélico e pela expansão missionária do século XIX, que por sua vez foram fortemente condicionados pela Revolução Industrial e pela expansão colonial e imperialista da Inglaterra e dos Estados Unidos. A PROBLEMÁTICA Devemos aprofundar um pouco a problemática do metodismo, com base nas dimensões teológicas, eclesiásticas e secular que esboçamos nas páginas anteriores. Nosso problema é o de uma igreja confessional numa época ecumênica. Mas não penso aqui só (ou principalmente) no ecumenismo clássico de aproximação ou união de igrejas, mas no fato de que as correntes de teologia, piedade e atitudes éticas se movem independentemente das plataformas confessionais. Menos abstratamente: os crentes se unem através das fronteiras confessionais e se enfrentam dentro das mesmas. A educação teológica, por outra parte, já não pode ser concebida a não ser como instituições e corpos docentes e estudantis multiconfessionais (ainda que nas instituições confessionais!). Nasce um “ecumenismo secular” cujo eixo não são as relações das igrejas tradicionais, mas a participação comum nas tarefas de construção da cidade humana. Isto não significa necessariamente que nos movemos, mas significa, antes de mais nada, que as linhas de divisão e de tensão que desdobram a diversidade e pluriformidade da compreensão cristã da fé (e que por sua vez manifestam o mistério do pecado na igreja) não guardam relação com as linhas confessionais. Nosso problema é como relacionar a pluralidade da fé cristã e como exercer o discernimento da fé que os padrões do mundo do Atlântico Norte dos séculos XVI a XVIII cristalizaram nas famílias confessionais com a nova diversidade e disjuntivas de nossa época. Tal coisa não pode ser uma simples reorganização de velhas ênfases e interpretações em configurações novas, mas a emergência de formas realmente novas que o Espírito cria e desperta. Temos assinalado o surgimento de tendências “confessionais” que agora se apresentam a nós como a “nova etapa do ecumenismo”. Como responderemos a este convite, como metodistas da América Latina (portanto, do chamado Terceiro Mundo)? Bem sabemos que falar de história universal nesta segunda metade do século XX é falar de um mundo crescentemente unificado e crescentemente dividido. A tecnologia que tem inter-relacionado, comunicado e unificado todas as áreas do mundo e da vida humana tem incrementado o desequilíbrio do poder político, econômico e militar entre o chamado “mundo desenvolvido” e o “terceiro mundo”. Que significa em tais condições convidar-nos a centrar nossas relações, em estruturas de unidade mundial (organismos confessionais) edificados sobre a base de um centro na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos (Nova York, Genebra, Londres, Roma) e que reproduzem modelos seculares? É perverso ou exagerado pensar que a nova ênfase nas famílias confessionais nascida e impulsionada desde o mundo do Atlântico Norte (e imposta sobre as igrejas do Terceiro Mundo frequentemente com grande emprego de propaganda e recursos) representa o esforço das igrejas desse mundo (por certo muitas vezes inconsciente e bem intencionado) de retomar um poder e uma iniciativa que tiveram que compartilhar em grande medida nos organismos interdenominacionais, onde a presença do Terceiro Mundo se faz sentir solidariamente? Que poderá representar em cada família confessional, constituída massivamente pelas igrejas dos países de origem da confissão, a problemática de pequenas igrejas “periféricas”? O tema é sumamente grave e devemos observar sua profundidade quando se fala facilmente de “Igreja Mundial”, de “superar as distâncias culturais, geográficas, idiomáticas” e unir-nos numa “tradição” comum. Como se essa possibilidade fosse simplesmente conseqüência do caráter supostamente “supranacional” de tais igrejas. Quando as igrejas em Zimbabwe e Nicarágua, por exemplo, eram convidadas, em nome da solidariedade cristã com as igrejas da Inglaterra ou dos Estados Unidos, a divorciar se da luta de seus países contra a escravidão segregacionista ou imperialista imposta ou sustentada por aqueles países, quando se lhes pede que se subtraiam à tensão e paixão que só podem sustentar nessa luta, quando se lhes sugere que a participação em tais movimentos representa uma “ingratidão e até “heresia” – então a “unidade”invocada não é outra coisa que alienação. Os membros dessas igrejas podem muito bem afirmar (muito sinceramente) que “superam” o estreito nacionalismo de seus compatriotas; os cristãos dos países poderosos podem jactar-se de uma “comunhão” “acima” das tensões. – e ambos se enganarão a si mesmos e aos outros, e os demônios da superioridade, a complacência, o ressentimento e a amargura prepararão sua colheita de destruição sob o manto de uma falsa paz. A verdadeira reconciliação não se alcança ignorando as tensões e os conflitos que destroem a vida e a dignidade humana, mas resolvendo-os no âmbito da realidade, não da ilusão. E isso significa participação na luta. Só igrejas que se sentem inteiramente responsáveis por seus respectivos povos ante o Senhor, na justiça e na paz do Reino podem contribuir para uma verdadeira reconciliação a nível internacional. Creio que é à luz destas considerações que devemos analisar nossa participação nos movimentos confessionais. Mais especificamente, temos que nos perguntar o que é o metodismo em termos confessionais. Já sugeri que o metodismo tem uma consciência confessional débil em termos doutrinários. Wesley parece ter estado certo ao afirmar: “Não sustentamos uma doutrina particular”. Em que se apóia pois nosso “gênio” confessional? Durante os últimos anos se escutam vozes que sustentam que podemos compensar nossa falta de identidade doutrinal sublinhando nossa organização aparentemente eficiente. Para alguns é o sistema conexional de concílios, para outros o episcopado com poder de nomeação, para outros o ministério itinerante. O metodismo pode não ter um profundo legado teológico, mas é um movimento estreitamente vinculado e eficiente. Se nisso residisse nossa singularidade, deveríamos confessar-nos particularmente mal equipados para enfrentar a situação que procurei descrever. Significaria que o metodismo está amarrado a um modelo estrutural derivado dos padrões organizacionais da grande indústria e das corporações multinacionais (ou concomitante com eles) – exemplos típicos de estruturas de dominação. Quaisquer que tenham sido os méritos que este sistema possa ter tido no desenvolvimento das igrejas metodistas, parece-me que a unificação desde a cúpula, a cadeia de mando e o princípio de mando de heteronomia que permeiam essas estruturas as desqualificam para uma família eclesiástica mundial em nosso tempo. Isso não significa uma desqualificação do institucional. Não há dúvida de que a habilidade de institucionalizar sua preocupação missionária de modo eficiente é um fato básico de despertar metodista que tem vigência permanente.Mas creio que o fundamentalismo institucional que insiste na organização como nossa herança distinta, comete uma grave falácia, a saber, confundir uma forma particular de expressão com a profunda instituição que se expressou nela.O coração da eclesiologia de Wesley – creio – é sua vinculação da ênfase na Koinonia dos crentes e a ênfase no caráter missionário de sua vocação. Wesley articulou esta concepção, não tanto num sistema doutrinário como em termos de uma série de estruturas (das que já falamos) que deram expressão visível à sua visão eclesiológica. Parece-me que só uma lealdade ignorante e mal situada insistirá em que estas estruturas particulares são o sacramento sine qua non e infalível do espírito metodista. Ao contrário, nossa tarefa é achar em nossa situação particular, segundo nossas necessidades e possibilidades, as estruturas que melhor expressem e implementem para nossa época a síntese do impulso missionário e a dimensão comunitária da fé. A herança que nos legou o gênio organizacional de Wesley não é a forma particular de visibilidade que ele construiu, mas o impulso para a visibilidade. Se há uma tarefa comum (ela consiste na busca daquelas formas locais e universais de visibilidade que melhor expressem, em nosso mundo pós-confessional dividido e conflitivo) a vocação missionária e comunitária do povo de Deus. TEMAS PROSSEGUIR Se o que tentei apresentar tem sentido, nossa missão não é “preservar” mas “repartir” nossa herança metodista. Por conseguinte, temos que encarar nossos esforços como os de um testamenteiro ou executor do testamento (ou executivo?) com sua dupla tarefa: repartir a herança, de modo que ao final do processo à semelhança do testamenteiro, nos tornemos desnecessários, depois de assegurar-nos de que os legítimos herdeiros entraram na plena posse do que lhes corresponde. Os dois aspectos da tarefa devem ser sublinhados. O metodismo de hoje se faria gravemente culpável se guardasse para si o que lhe tem sido dado, ou se o dissipasse irresponsavelmente, ou o deixasse perder. Creio que esta figura (que, certamente, tem limitações de qualquer metáfora) pode ajudar-nos a ver vários temas concretos em nossa situação de metodistas latino-americanos. Temas que só anuncio, como possíveis tarefas a considerar. Em primeiro lugar, que classe de corpos confessionais necessitamos? Penso particularmente no Conselho de Igrejas Evangélicas Metodistas da América Latina (CIEMAL) e nas comissões ou grupos de trabalho em torno do mesmo. Creio que não há lugar para organizações confessionais permanentes porque o serviço que as denominações ofereceram na preservação da fé e na expansão da missão encontra hoje adequados canais trans-confessionais ou ecumênicos. Mas devemos assegurar-nos que a tradição, o valor e a experiência que o Espírito de Deus criou nas denominações seja preservado nas novas estruturas. Mas não basta dizer que as estruturas denominacionais (neste caso, latino-americanas) que criamos não são permanentes, uma vez que as construímos de tal maneira (com ou sem consciência disso) lhes damos um caráter que as condena à auto-perpetuação. O que hoje sabemos das características da auto-preservação das burocracias, a inercial das formas institucionais e o expansionismo inerente nos orçamentos deveria levar-nos a tomar as medidas necessárias para nos protegermos contra esses riscos. A precariedade não deve ser meramente proclamada, mas visível nas próprias estruturas e em seu funcionamento. A agência que opera como “testamenteiro” deve ser estabelecida de acordo com sua função: os mecanismos e o impulso para a auto-liquidação devem estar presentes desde o começo. Esses critérios deveriam guiar as decisões com respeito a programas, formas de comunicação e pessoal. Um segundo tema tem que ver com a melhor forma de garantir que a “herança” seja distribuída, quer dizer, que toda a comunidade cristã latino-americana possa receber o que, como metodistas, tenhamos que contribuir. Para isso é necessário, ao menos: A) estimular as igrejas (a nível nacional e local) e facilitar-lhes que articulem e comuniquem sua herança pastoral: a herança a transmitir não é tanto um caudal fixo mas a recepção viva e o exercício diário dessa tradição; B) utilizar para essa participação da vida e experiência de nossas igrejas todos os meios e canais ecumênicos existentes, realizando com eles e por meio deles quantas tarefas nos sejam possíveis – no nível continental isso significa uma relação constante com o Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI), e a nível nacional ou regional com diversas instâncias interdenominacionais; C) a necessária tarefa de investigação e de reflexão histórica e doutrinal deve ser fazer, na medida do possível num contexto ecumênico (ainda quando se trate da história e da teologia metodista); D) quando as circunstâncias (que em nosso continente se dão com freqüência por causa do diferente desenvolvimento de uma consciência ecumênica em distintas igrejas e regiões) nos levem a empreender tarefas ou expressar posições que não achem canais ecumênicos, não devemos vacilar em realizar uma tarefa “pioneira”, mas devemos tomar todas as medidas para deixar aberta a participação de outros, com pleno direito, como co-atores dessas tarefas. Um terceiro tema muito importante para nós é a relação ecumênica com o Catolicismo Romano. Nossa tradição metodista é particularmente interessante a este respeito, pois ainda que Wesley julgue às vezes com certa dureza o “Romanismo”, mantém um enorme interesse por sua tradição espiritual (por exemplo, os místicos espanhóis) e trata de fazer justiça, em que pese as críticas que lhe dirige, à insistência católica numa participação ativa do homem no encontro salvífico. Para nós, entretanto, a perspectiva de relação deve ser primeiramente “missionária” mais que doutrinária; é o desafio do nosso continente subdesenvolvido, de nossos povos despojados, da defesa ante a violação dos direitos humanos ou ante o avanço de regimes totalitários, é o chamado de um povo que confessa a fé sem encontrar nela, muitas vezes, a inspiração para uma busca ativa da justiça e da solidariedade. Essa é a matriz de nossa relação com o Catolicismo. Em relação com isto, o Catolicismo latino-americano não se nos mostra como uma totalidade uniforme e unívoca, mas atravessada pelas mesmas tensões e interpelada pelas mesmas visões que nossas igrejas. É em relação com essas situações reais – e não meramente em nível organizacional (ainda que sem desprezar este) – que devemos amarrar nossas relações (6). Finalmente, devemos referir-nos a um ecumenismo que Wesley não contemplou, mas que está implícito na idéia de “liga ofensiva e defensiva com todo soldado de Jesus Cristo” quando esta é vinculada à missão da igreja como “laboratório do Reino”. Com efeito, os cristãos não estamos sós ou isolados na tarefa de buscar uma vida humana mais livre e plena. Compartilhamos de uma humanidade comum que se concretiza em condições históricas particulares, em projetos e esforços a nível político, social, cultural e econômico. São tais projetos e avanços puramente “seculares” ou têm significado “teológico” em relação com o “propósito universal” de Deus e com a meta escatológica do Reino? Na tradição wesleyana do reconhecimento de uma graça universal, fica aberta a porta para uma compreensão da unidade que – sem eliminar a especificidade da mensagem do Evangelho – nos impele a participar, sem falsas ilusões utópicas mas também sem ceticismo, na empresa humana comum de libertação que é decisiva hoje em nosso continente. Este ecumenismo que se reúne em torno da luta pelos direitos humanos, pelos direitos dos pobres, por uma vida humana digna, pela auto-determinação dos povos, pelo direito do povo de decidir sobre seu destino – este ecumenismo não substitui a reintegração da família da fé, mas é tão legítimo, cristão e necessário como aquela. Nós os cristãos nos somamos sem reclamar privilégios, sem pretender cobrar nossos bens por antecipação: somamo-nos tal e como somos, confiados na graça que “envolve e rodeia” a vida da humanidade e de cada homem “desde o princípio” e até à consumação. Como diz um dos hinos wesleyanos: Para quem Jesus nos convocou? para anunciarmos que sua graça é para todos, e reivindicamos o valor de sua paixão capaz de salvar dez mil mundos... Ele prometeu atrair toda a humanidade para si, sentimos sua atração desde o alto, e anunciamos com Ele a lei da graça e publicamos o Decreto do Amor Unimo-nos com todos os nossos amigos para louvar ao Deus de nossa salvação, o Deus de amor eterno, o Deus de graça universal. (Works, 3, pp. 93 s) NOTAS 1) John Wesley, Letters, I/285, 20 de março de 1739, cf. Journal de 11 de junho de 1739. George Whitefield, Letters: 10 de novembro de 1739. 2) A expressão foi utilizada pelo teólogo luterano alemão Wolfang Trilhaas, num Congresso Luterano Latino-Americano em Lima (1965). Cf. Ekklesia (Vol. X, 22-23; março/agosto de 1966). 3) A introdução histórica da Discipline of the Methodist Church, por exemplo, fala dessa igreja como “a part of the Church of our Lord”. 4) Quando os luteranos argentinos se dividem em “Missouri”e “Unidos” e os metodistas brasileiros em “livres” e “episcopais” ou os batistas “do Sul” e “do Norte” (dos Estados Unidos) em nossos países, quando a conexionalidade força uma Disciplina totalmente alheia às tradições culturais dos povos da Ásia, África e América Latina, quando uma junta dos Estados Unidos concebe e escreve literatura que (traduzida em diferentes idiomas) se supõe que deitará raízes e nutrirá a fé e a devoção de crianças e jovens do Quênia , Ceilão, Alemanha e Venezuela – quando tudo isto ocorre é evidente que não podemos falar de universidade e sim, da dominação universal de um padrão cultural nacional e lingüístico (Norte-Americano ou Europeu). 5) Já temos assinalado a importância do desenvolvimento missionário na história do metodismo. Não foi somente uma relação indireta e circunstancial entre expansão colonial e missão: o metodismo, através de seus líderes, tomou consciência dessa relação – perdendo, por sua vez, muito da visão crítica que Wesley mesmo havia visto em algumas das manifestações dessa expansão (tráfico de escravos, política colonial na índia, etc). Por isso Watson se felicita pelo fato de que a providência haja permitido que ambos os movimentos – metodismo e expansão colonial - tenham nascido contemporaneamente, de modo que puderam exportar “não só nossas mercadorias, mas também nossos missionários; não só nossos fardos (balas), mas também nossas Bíblias” (citado por Semmel, op. cit. P. 162). Com respeito à expansão americana, o tema tem sido amplamente documentado. 6) Um estudo mais profundo deste tema deveria aprofundar a questão do papel do protestantismo no continente onde a tradição histórica dá ao Catolicismo certas possibilidades e responsabilidades únicas. Como cumprir essa missão sem limitar-nos a “cavalgar” sobre a pastoral católica nem pretender “substituir” sua missão. Para avaliar adequadamente este ponto deveríamos aprofundar também nosso conhecimento e análise da complexa – rica e às vezes contraditória – história e realidade do Catolicismo latino-americano.