REGULAÇÃO E EXPANSÃO URBANA: A urbanização acelerada e desordenada do entorno de Brasília- Valparaíso da Goiás Lázaro Vinícius de Oliveira da Silva* Bianca Simoneli de Oliveira** Beatriz Ribeiro Soares*** Resumo Este artigo tem por objetivo compreender a dinâmica da urbanização de Valparaíso de Goiás, relacionando as estratégias do mercado imobiliário com o papel regulador que, a rigor, cabe ao Poder Público Municipal. Os resultados demonstraram que a omissão do Poder Público e a especulação imobiliária nos parcelamentos do solo geraram um espaço urbano irregular, carente de infraestrutura e gerador de elevado déficit habitacional qualitativo. O Plano Diretor é evasivo e prolixo, embora atenda em boa medida o Estatuto da Cidade. Palavras-chave: Urbanização. Parcelamento do Solo. Plano Diretor. 1. INTRODUÇÃO Este artigo discute a produção do espaço urbano na cidade de Valparaíso de Goiás. A escolha da cidade analisada foi motivada pela nossa participação como consultores técnicos no processo de elaboração do Plano Local de Habitação de Interesse Social – PLHIS. Trata-se de um trabalho de pesquisa que, inicialmente, não tinha vinculação acadêmica. Assim, o mesmo resulta de uma produção técnica, posteriormente, adaptada ao modelo acadêmico. Do nosso ponto de vista, este artigo enquadra-se nas discussões sobre as transformações espaciais ocorridas nos cerrados brasileiros a partir da intensificação da urbanização do estado de Goiás, que está intimamente ligada à combinação de dois fatores: a construção das atuais metrópoles de Goiânia e Brasília, entre as décadas de 1940 e 1950, e a modernização da agricultura a partir da década de 1970. Para este artigo interessam-nos, sobretudo, os reflexos e desdobramentos do acelerado processo de urbanização de Brasília sobre o território goiano nos limites com o Distrito Federal. O objetivo é compreender a dinâmica da urbanização deste município, relacionando as estratégias do mercado imobiliário com o papel regulador que, a rigor, cabe ao Poder * Mestrando em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected] ** Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. E-‐mail: [email protected] *** Profa. Dra. da Universidade Federal de Uberlândia. E-‐mail: [email protected] Público Municipal por meio da adoção de instrumentos como plano diretor, lei de parcelamento do solo urbano, dentre outros. O espaço urbano, segundo Corrêa (1997), é o resultado da ação, muitas vezes conflitante, de diversos atores sociais. Entre eles interessa-nos o Estado (especialmente o Poder Municipal), pois é a ele que cabe a função de ordenar e planejar o crescimento das cidades. Se o espaço urbano é um condicionante social, ele é também condicionado socialmente e, seja pela ação ou omissão, é principalmente por meio do Estado que se dá este condicionamento. O Estado atua de forma direta na produção do espaço urbano quando realiza obra de infraestrutura, sistema viário, equipamentos públicos e ainda quando constrói habitações de interesse social. Há também as formas de participação indireta do Estado na produção do espaço urbano. Isto ocorre, por exemplo, no caso da regularização fundiária de favelas, em que se reconhece a efetividade da função social do solo urbano e, consequentemente, legitima a ocupação inicialmente irregular. As formas mais frequentes e generalizadas, no entanto, de participação indireta do Estado na produção do espaço urbano se realizam por meio da criação de normas técnicas e jurídicas de ordenação e condicionamento das cidades. Entre estas normas estão as leis de parcelamento, zoneamento, uso e ocupação do solo urbano, as leis do sistema viário, as leis de posturas, os códigos de obras, meio ambiente, etc. Além das leis supracitadas, destaca-se para muitas cidades a existência de planos diretores, que em tese articulam todas as demais legislações, tornando coerente e lógico o conjunto de normas que disciplinam o espaço urbano. A existência de planos diretores, para as maiores cidades brasileiras, remonta as primeiras décadas do século XX. Mas é a Constituição Federal de 1988 que consolida esse instrumento técnico e jurídico, tornando-o obrigatório para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes. A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 182, atribuiu ao município a responsabilidade de executar a política de desenvolvimento urbano, seguindo as diretrizes legais fixadas por meio de planos diretores. No capítulo específico sobre política urbana (Título VII, capítulo II, artigos 182 e 183), o texto prioriza, sobretudo, a função social da propriedade e a sua relação com o direito à moradia. No âmbito da União, entre os marcos regulatórios anteriores a 1988, destacamos o papel da Lei Federal 6766/79 que, ao tratar do parcelamento do solo urbano, definiu algumas importantes diretrizes para estruturação física das cidades. Na referida legislação, fica explícito o conceito de loteamento e sua articulação com o sistema viário, que por sua vez é visto como requisito básico para a qualidade da mobilidade urbana. Após 1988, uma série de legislações foi criada para regulamentar ou complementar o texto constitucional. Nesse sentido, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), Lei Federal 9503/97, é de suma importância. Entre as suas determinações, estão as normas de ordenamento da circulação. Quanto à estruturação física das cidades, notadamente a respeito do sistema viário, o CTB estabelece com clareza a classificação e a hierarquização das vias. Nesse sentido, destacamos a interdependência entre a tipologia das vias, a circulação e o zoneamento do uso e ocupação do solo urbano Em 2001, foi sancionada outra lei federal sobre política urbana. Considerada por muitos estudiosos como um marco jurídico moderno, a lei 10.257/01, mais conhecida como Estatuto da Cidade, que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal consolidou o princípio da obrigatoriedade de Planos Diretores para algumas categorias de cidades. No caso de Valparaíso de Goiás, a análise sobre a produção de espaço urbano à luz do papel regulador do Poder Público, atentou-se especialmente para a lei federal 6766/79, que disciplina o processo de parcelamento do solo urbano. Buscamos verificar se o Poder Público Municipal agiu como deveria na avaliação e fiscalização dos parcelamentos (loteamentos) urbanos. Em outra linha de análise, buscamos identificar em que medida o plano diretor deste município atende ao Estatuto da Cidade e às normatizações do Conselho Nacional das Cidades. 2. A cidade de Valparaíso de Goiás – GO: aspectos sóciodemográficos. Valparaíso está inserida na microrregião do entorno de Brasília (Figura 01), distante 35 km do Plano Piloto da Capital Federal. Partimos da premissa de que a acelerada urbanização da microrregião e da própria cidade decorre da dinâmica interurbana de Brasília. A cidade é uma das pontas do eixo rodoviário de conurbação urbana, formado na BR 040 pelas cidades de Luziânia, Cidade Ocidental e Valparaíso de Goiás. Além desses municípios, Valparaíso faz divisa com Novo Gama. O município de Valparaíso de Goiás foi fundado em 15 de junho de 1995, quando foi emancipado do município de Luziânia (GO), de acordo com a Lei Estadual nº 12.667/95. Possui uma área territorial de 60,11 km2, sendo 100% urbano. Para uma melhor compreensão de Valparaíso de Goiás, será necessária uma breve caracterização do contexto microrregional. Assim, partimos da análise da dinâmica demográfica dos municípios limítrofes (Tabela 01). Figura 01 A microrregião é formada por vinte municípios (Figura 01), dos quais Valparaíso (132.982 habitantes em 2010, correspondente a 12,63% da população microrregional) ocupa o terceiro lugar entre os mais populosos, perdendo apenas para Luziânia (174.531 habitantes, 16,58%) e Águas Lindas de Goiás (159.378 habitantes, 15,14%). Em relação aos dados da tabela 01, é necessário destacar que a ausência de dados para 1980 e 1991 para os municípios de Cidade Ocidental, Novo Gama e Valparaíso é consequência do fato de que todos foram desmembrados de Luziânia. As emancipações ocorreram por meio de leis estaduais publicadas entre 1991 e 1995 e justificam a perda populacional de Luziânia ocorrida entre 1991 e 2000. Entre os municípios citados na tabela 01, Valparaíso apresenta a maior taxa de crescimento, isso ocorre devido a sua maior proximidade a Brasília (35 km) e ao fato de ser a primeira cidade do eixo conurbado da BR 040. Cidade Ocidental é a segunda no eixo rodoviário urbano e está distante 44 km. Luziânia é a terceira e última cidade conurbada e está a 59 km. Como se verifica no caso do eixo da BR 040, as taxas de crescimento demográfico diminuem à medida que a distância aumenta. Novo Gama está bem próximo de Brasília (38 km), mas apresenta taxa bem menor que Valparaíso. Na microrregião apenas Águas Lindas teve crescimento superior ao de Valparaíso. Tabela 01: População de Valparaíso de Goiás, municípios limítrofes e da microrregião Entorno de Brasília – 1980, 1991, 2000 e 2010 Valparaíso de Goiás recebe imigrante principalmente do Nordeste e do Centro Oeste. Essa população instala-se no município à procura do menor custo de moradia, já que o principal fator de migração é o mercado de trabalho de Brasília. Assim, podemos dizer que Valparaíso exerce o papel de cidade dormitório. Analisando as taxas de natalidade e mortalidade, percebemos que ocorre um crescimento vegetativo, que corrobora para a tendência de aumento populacional. No ano de 2008 o número de nascidos vivos no município foi de 734 pessoas, o que resulta em uma taxa de natalidade de 6,07%. Paralelamente, o número de óbitos registrados foi de 150, resultando em uma taxa de mortalidade de 1,24%, no mesmo ano. Diante dessas informações, notamos um crescimento vegetativo positivo de 4,83%. A densidade demográfica observada no município é elevada. Em 2000 eram 1.578,14 habitantes por km2 e em 2010 são 2.197,14. Esse valor é o mais alto da microrregião e a diferença em relação aos municípios vizinhos é muito expressiva, a exemplo de Cidade Ocidental com 143,40 hab./km2 e Luziânia com 44,06 hab./km2. Nesse sentido, devemos lembrar que o município é, do ponto de vista territorial, muito pequeno para os padrões brasileiros. Este condicionante ajuda a explicar a alta densidade demográfica verificada no município e indica para uma possível tendência à verticalização e valorização imobiliária. Em relação à dinâmica econômica, a cidade tem reduzida capacidade de absorção de trabalhadores, pois abriga poucas empresas. De acordo com o Cadastro Central de Empresas de 2008 do IBGE, o município possui 1.746 empresas e um pessoal ocupado de 10.626 pessoas, dentre as quais 8.499 são assalariados. No setor secundário, ainda pouco expressivo, a especialidade é a produção de móveis. Segundo o Diagnóstico Setorial de Valparaíso, desenvolvido pelo SENAI de Goiás, o emprego informal no município é bastante significativo, representando cerca de 40% dos trabalhadores: a maior parte encontra-se no segmento de construção civil. A parte mais expressiva do PIB provém do setor terciário, que apresenta o maior valor adicionado, correspondente a 87 % do valor total. A proximidade geográfica com o Distrito Federal prejudica a dinâmica econômica, e, por conseguinte, a geração de emprego e de renda. Será necessário explorar novas atividades produtivas, bem como incentivar as existentes, além de potencializar os ganhos auferidos com o setor terciário, especialmente o comércio que ainda é muito incipiente. 3. O papel regular do Poder Público sobre o Espaço Urbano: a lei federal 6766/79 Citando Correa (1997), destacamos que o Poder Público tem o papel de regular a produção e a ocupação do espaço urbano. Neste caso,a lei federal 6766/79 já estabelecia algumas importantes diretrizes que os municípios deveriam observar nos casos de avaliação e aprovação de loteamentos urbanos. Entendemos que os loteamentos representam a principal forma de expansão do espaço urbano, parcelando as áreas não ocupadas, forçando frequentemente a ampliação do próprio perímetro urbano. Assim, é via loteamento que as cidades crescem horizontalmente à medida que incorporam novos parcelamentos do solo. Segundo o texto original da lei 6766, “considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados à edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes”, § 1º do artigo 2º. Em 1999, o texto original passou por algumas alterações e incluiu a definição de lote, vinculando-o à existência de infraestrutura básica. A definição de infraestrutura básica está colocada no parágrafo 5º do artigo 2º e foi incluída recentemente pela lei 11.455 de 2007, que alterou a lei 9.705 de 1999. De qualquer maneira, apesar das mudanças na redação, a essência da lei foi mantida, sendo considerada infraestrutura básica o conjunto das seguintes obras: equipamentos urbanos de escoamento de águas pluviais; iluminação pública; esgotamento sanitário; abastecimento de água potável; energia elétrica e vias de circulação. O texto de 1979 era mais rígido e fixava que 35% da área loteada deveriam ser doados ao município para a implantação de sistema de circulação, áreas verdes e institucionais. A reformulação realizada em 1999 por meio da lei 9.705 relativizou esta diretriz, delegando aos municípios, por meio de planos diretores, a definição dos índices que devem ser estabelecidos considerando a densidade de ocupação. Cada município deve possuir leis próprias de parcelamento do solo, mas elas devem observar o estabelecido pela lei 6766/79. Em Valparaíso, a lei complementar número 10, de abril de 2000, regulamentou os requisitos básicos para o parcelamento do solo urbano. A referida legislação foi posteriormente revisada e substituída pela lei Complementar nº 44 de 2008, atendendo às disposições do Plano Diretor de 2006. O Título II desta lei trata do zoneamento, definindo os critérios para a classificação de cada Zona. No art. 8º, é apresentado um conjunto de condições que devem ser observadas para o estabelecimento de qualquer atividade. As condições estabelecidas estão dividas em três grupos, chamados de categorias, quais sejam: condições sanitárias, urbanísticas e ambientais. Estas condições visam principalmente ao cumprimento dos requisitos legais já estabelecidos em normas federais e estaduais. O Título III da Lei trata da hierarquização das vias urbanas. O Título IV trata do uso e da ocupação do solo urbano. São estabelecidas cinco categorias de uso e ocupação: residencial, econômico, institucional, misto e usos especiais. O Título V da Lei trata do Parcelamento do solo urbano. Em relação à questão da infraestrutura dos loteamentos/parcelamentos, a lei municipal reproduz, como de praxe, o estabelecido pela lei federal. Não há restrições urbanísticas mais rígidas. No território que, desde 1995, corresponde ao município de Valparaíso de Goiás, a ação reguladora e fiscalizadora do Poder Público Municipal não foi capaz de conter o parcelamento irregular do solo, gerando um significativo déficit habitacional qualitativo por inadequação domiciliar. Os parcelamentos foram realizados sem a instalação da infraestrutura básica, sem a doação de áreas institucionais, etc. A dinâmica imobiliária foi claramente especulativa, realizada por meio de contratos de “gaveta”. Vale lembrar que o início da urbanização que evoluiu para a atual cidade de Valparaíso, ocorreu no território que era distrito de Luziânia. Sendo assim, cabia a este município utilizar seu poder de polícia para evitar as irregularidades que hoje caracterizam o espaço urbano de Valparaíso de Goiás. Os parcelamentos ocorridos até 1995 simularam o simples desmembramento, por meio da venda de fração ideal da propriedade (em tese rural), evitando a abertura de sistema viário a fim de não caracterizar a implantação de loteamento. Desta forma, verifica-se que os empreendedores (especuladores) imobiliários tinham conhecimento da legislação e que a sua forma de atuação foi deliberada e de má fé. Os parcelamentos do solo realizados em Luziânia, atual Valparaíso de Goiás, caracterizam crime contra a administração pública e a ordem econômica, nos termos da lei federal 6766/79. As medidas contra os especuladores escapam à competência administrativa do município de Valparaíso, tendo pretensa solução em demandas judiciais. Cabe neste contexto considerar a demanda social resultante da ação criminosa dos especuladores e buscar meios de atender ao déficit habitacional qualitativo, promovendo a regularização fundiária e a implantação de infraestrutura. Como lembra Corrêa (1997), o Estado é o alvo das reivindicações e demandas da população, pois a este cabe o dever e o papel de polícia no que diz respeito à regulação e controle do parcelamento, uso e ocupação do solo. Diante a incapacidade do Poder Púbico Municipal de evitar a ocupação desordenada do solo urbano de Valparaíso de Goiás, cabe agora agir no sentido de atender às demandas sociais, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida da população. É interessante observar que a ação do Estado tem reflexos sobre os demais grupos sociais, sendo que em Valparaíso o destaque é para o que denominados Grupos Sociais Excluídos. Trata-se de famílias que adquiriram lotes irregulares, perpetuando o quadro de infração à legislação, mas que não o fizeram de má fé. Incluem-se também as famílias que ocuparam áreas de terceiros, independente da condição de área pública ou privada, e que edificaram as suas moradias. Em ambos os casos, devido à situação de irregularidade fundiária e ausência de infraestrutura, por analogia, podemos considerar que muitos bairros de Valparaíso de Goiás caracterizam-se como favelas. Em Valparaíso de Goiás, os chamados grupos sociais excluídos não apresentam uma organização sistemática, com estratégias claramente definidas, de modo a permitir a sua caracterização enquanto movimento social. O grau de mobilização é baixo e o processo de ocupação das áreas não foi orquestrado por lideranças comunitárias. As ocupações ocorreram, sobretudo, em áreas de menor valor imobiliário, junto aos fundos de vales e áreas de preservação permanente de córregos. É por meio da ocupação e até da produção da favela, que os grupos sociais excluídos tornam-se, efetivamente, agentes modeladores da cidade, produzindo seu próprio espaço, como forma de sobrevivência e resistência. A sobrevivência, nestes casos, se traduz na apropriação de terrenos usualmente inadequados. Isso corresponde a uma “solução” habitacional de duplo problema: a precariedade em relação à infraestrutura que gera áreas insalubres e a questão da difícil mobilidade e acesso ao local de trabalho e de estudo. A evolução da favela até a sua transformação num bairro popular resulta, de um lado, da ação dos próprios moradores que, ao longo do tempo, vão melhorando suas residências e implantando atividades econômicas diversas e, de outro lado, advém da ação do Estado que deve implantar a infraestrutura e providenciar a regularização fundiária. Em Valparaíso de Goiás, a ocupação de áreas públicas e privadas gerou favelas que estão passando por projetos de regularização e implantação de infraestrutura, transformando-se em bairros semiurbanizados. Os incorporadores imobiliários também são importantes produtores do espaço urbano e, devido ao programa Minha Casa Minha Vida, do governo Federal, verifica-se no município a presença marcante desse segmento empresarial responsável pela produção e oferta de habitações. A ação recente dos incorporadores imobiliários está reforçando o quadro de segregação socioespacial, pois entre os seus empreendimentos predominam os condomínios verticais fechados, que acabam por criar certo isolamento dos espaços internos dos condomínios em relação ao restante da cidade. A localização destes empreendimentos é outra importante característica da dinâmica imobiliária recente, pois a maioria está instalada ao longo do eixo da rodovia BR 040, com o propósito de facilitar o deslocamento casa/trabalho entre Valparaíso e Brasília. Desta maneira os empreendimentos ocupam as poucas áreas dotadas de infraestrutura e de melhor mobilidade. A segregação socioespacial é promovida não apenas pela edificação de muros, mas também pelo valor dos imóveis e condições de financiamento. Outra importante questão está associada à valorização imobiliária, pois a oferta de terra urbanizada está diminuindo, acarretando o consequente aumento de preços. Para finalizar, a figura 02, apresenta o quadro geral de distribuição de infraestrutura. Observa-se que pequenas partes da cidade possuem água tratada, esgoto e rede pluvial nas principais vias. Figura 02 Estas áreas correspondem ao centro e seu entorno (lado leste da BR 040) e as áreas de maior concentração comercial do lado oeste da rodovia. Existem mais quatro pequenas áreas dotadas com água tratada e rede pluvial, mas sem a rede de esgoto. O restante do espaço urbano, onde se concentra a população mais pobre, não possui a infraestrutura exigida pela legislação federal. 4. O Planejamento Urbano e o Plano Diretor No Brasil, a questão do planejamento urbano está intimamente ligada à normatização jurídica. O Plano Diretor, deve ser aprovado pelo legislativo municipal e transformado em lei. Em cada município, o Plano Diretor deve considerar, sob o ponto de vista jurídico, as diretrizes da Lei Orgânica. Esta deve incorporar os princípios constitucionais, regulamentando-os na escala municipal. O que ocorre na maioria dos municípios é uma reprodução mecânica dos princípios constitucionais, tornando a Lei Orgânica genérica e sem vinculação efetiva com as demandas e potencialidades locais. A Lei Orgânica de Valparaíso de Goiás não é diferente da maioria. Em seu artigo 95, que trata da Política Urbana, está posto que as funções sociais da cidade e a garantia do bemestar de seus habitantes serão atendidas pelo Plano Diretor. Ao regulamentar no município a função social da cidade e da propriedade urbana, a Lei Orgânica faz mera reprodução dos princípios estabelecidos nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, sem nenhum detalhamento relevante. A Lei do Plano Diretor de Valparaíso é de 2006 e foi elaborada no contexto da revisão compulsória criada pela aprovação do Estatuto da Cidade em 2001. Para analisar o Plano Diretor, utilizamos como referência metodológica a Resolução no. 31/05 do Conselho Nacional das Cidades. Como nosso Estado Democrático de Direito dá à lei papel fundamental na questão do planejamento urbano, optamos por observar a adequação ou não do Plano Diretor à referida resolução, como marco jurídico. A Resolução no31 foi expedida em julho de 2005, considerando entre outros fatores que “o objetivo é definir o conteúdo da função social da cidade e da propriedade urbana, de forma a garantir o acesso à terra urbanizada e regularizada, o direito à moradia, ao saneamento básico, aos serviços urbanos e implementar uma gestão democrática e participativa” (preâmbulo da Resolução, alínea b). Novamente a legislação reforça o caráter urbanístico dos Planos Diretores, destacando a função social da propriedade e a sua estreita relação com a questão da moradia. O artigo 1º da Resolução trata especialmente da função social da cidade e da propriedade urbana, exigindo a regulamentação no município dos instrumentos urbanísticos previstos no artigo 42 do Estatuto da Cidade. Existe uma orientação em relação à questão interurbana ou regional, quando no inciso III a Resolução diz que o Plano Diretor deve conter: “os objetivos, temas prioritários e estratégias para o desenvolvimento da cidade e para a reorganização territorial do município, considerando sua adequação aos espaços territoriais adjacentes”. O artigo 2º especifica as condições para o cumprimento da função social da propriedade urbana e da cidade, reforçando o interesse da lei em combater a especulação imobiliária. De igual modo, o artigo 3º estabelece a necessidade de espacialização das áreas passíveis de aplicação dos instrumentos urbanísticos relacionados à Função Social da Cidade, incluindo o Estudo de Impacto de Vizinhança. O artigo 4º torna a estabelecer a necessidade de espacialização dos demais instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, cuja aplicação é facultativa. Em caso de interesse do município, os instrumentos deverão estar regulamentados no Plano Diretor. Já o artigo 5º trata da delimitação das chamadas Zonas Especiais, que poderão ser definidas visando tanto à habitação de interesse social, como à preservação e conservação de áreas que apresentem algum valor paisagístico, cultural ou ambiental. Os artigos 6º e 7º tratam do sistema de gestão, monitoramento e avaliação do Plano Diretor, reforçando-lhe o caráter democrático e participativo. Os artigos 8º e 9º destacam o caso das cidades com mais de 500 mil habitantes, que deverão elaborar um Plano de Transporte Urbano Integrado – denominado, na Resolução, de Plano Diretor de Transporte e de Mobilidade. Embora possa parecer mero detalhe de nomenclatura, a inclusão do conceito de mobilidade tem sido considerada um avanço, pelo menos em termos teóricos. Por último, no décimo artigo, a Resolução abre a possibilidade para a inclusão de outros temas de acordo com as necessidades locais de cada município. A estrutura do Plano Diretor de Valparaíso atende apenas parcialmente à Resolução. O mesmo está divido em cinco títulos, iniciando com a apresentação dos Princípios Fundamentais, tratando a seguir do Desenvolvimento Sustentável do Município, da Política Urbana, da Infraestrutura e dos serviços públicos. Por fim, segue o título da Implantação do Plano Diretor e do Processo de Planejamento, além das disposições gerais. O título sobre os princípios fundamentais não passam de meras repetições do que está colocado na Lei Orgânica. O texto não avança no sentido de fazer cumprir a função social da cidade e da propriedade urbana, é prolixo e enfadonho. A respeito do Desenvolvimento Sustentável, o texto diz que o mesmo será buscado a fim de obter a melhoria da qualidade de vida da população e o incremento do bem-estar da comunidade, sem estabelecer objetivos e metas específicas neste sentido. Um dos objetivos do desenvolvimento sustentável municipal é o “atendimento das necessidades da população quanto à habitação (...) com atenção especial aos segmentos que possuem necessidades especiais e às famílias mais carentes do Município” artigo 5º, inciso III da lei. É interessante observar que ideia de sustentabilidade inclui o direito a moradia, mas de que adianta princípios, sem uma política social efetiva? A ausência de praticidade, de efetividade, tem sido a marca da maioria das Leis de Planos Diretores, o que acaba por descaracterizá-las como Planos, tornado-as apenas Leis. Ainda a respeito do desenvolvimento sustentável, no Título II da Lei, estabeleceu-se uma diretriz que visa a promover a regularização fundiária e a titulação de áreas de moradores de baixa renda, sem a remoção deles, salvo nas situações em que a dinâmica natural do meio implique risco à vida da comunidade. A diretriz, se efetivada, terá efeitos positivos para a população, pois a irregularidade fundiária é um sério problema de déficit habitacional qualitativo em Valparaíso. Apesar da originalidade da diretriz e de sua vinculação à realidade socioespacial, o texto continua carente de metas e ações concretas. Tudo dependerá de regulamentação posterior. As Diretrizes para a Política Urbana visam a solucionar o processo irregular de parcelamento do solo bem como uma integração com os demais Municípios pertencentes à Região Integrada de Desenvolvimento do Entorno do Distrito Federal (RIDE). No caso da questão urbana e regional, o texto também não atende plenamente à Resolução, pois não incorpora nenhuma ação efetiva. Esta é uma matéria realmente mais complexa, pois não depende apenas de uma ou de outra administração municipal, mas do conjunto delas. Neste caso, a experiência brasileira com as aglomerações urbanas, as RIDES e mesmo as regiões metropolitanas, são prova da dificuldade imposta pelo atual Pacto Federativo e sinaliza para a sua urgente redefinição. Lembramos que Valparaíso está conurbada com três cidades goianas e com o próprio distrito federal, tendo problemas que estão intimamente lidados à dinâmica interurbana. Retomado a questão intraurbana, o artigo 31 da Lei define que o ordenamento do território do Município será baseado em macro zoneamento – definido e aplicado segundo as normas da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo. As áreas previstas no artigo 34 da Lei do Plano Diretor e que são utilizadas pela Lei de Parcelamento, uso e ocupação do solo são as seguintes: I- Zonas de Uso Misto – ZUM; II – Zonas de Adensamento Restrito – ZAR; III – Zonas Especiais de interesse Social – ZEIS; IV – Zonas Especiais de Interesse Urbano e Ambiental – ZEIUA; V – Zonas de Proteção Ambiental – ZPA; VI – Zonas de Atividades Econômicas – ZAE; VII – Zonas de Expansão Urbana – ZEU; VIII – demais Zonas e Áreas Especiais. Sobre a infraestrutura urbana e os serviços públicos, o artigo 35 apresenta os seus objetos: o sistema de captação, tratamento e distribuição de água potável; o sistema de esgotamento sanitário; as redes de macro e micro drenagem de águas pluviais; o sistema de coleta e destinação de resíduos sólidos; o sistema viário e o serviço de transporte público e os equipamentos urbanos públicos e comunitários. Por último, o Plano Diretor trata da implantação do processo de planejamento. O Capítulo II deste mesmo Título estabelece as normas para o Conselho da Cidade, reforçando a tese de gestão democrática e participativa. Após a apresentação sucinta da estrutura do Plano Diretor, restam-nos duas importantes observações. A primeira diz respeito à função social da propriedade e da cidade. Neste sentido o Plano Diretor, como na maior parte dos municípios, é evasivo, pois os três instrumentos urbanísticos destinados a essa finalidade foram citados, mas não implantados. O caráter facultativo destes instrumentos tem comprometido a própria efetividade do Estatuto da Cidade, não apenas dos planos diretores municipais. Apenas para lembrar, esses instrumentos são: o parcelamento, a edificação e a utilização compulsória; o imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo e a desapropriação com pagamentos em títulos da dívida pública. Os instrumentos obrigatórios foram regulamentados, mas se alcançarão seus fins, dependerá da atuação do Conselho da Cidade e da sociedade. Assim, chegamos à segunda observação, ou seja, a gestão democrática e participativa do Plano Diretor e do processo de planejamento. A nosso ver, a questão está relacionada ao controle social do estado, sem o qual nenhuma gestão será efetivamente democrática. A participação de segmentos da sociedade civil no Conselho da Cidade, seja em Valparaíso ou em qualquer outro município, poderá servir apenas para legitimar a ordem estabelecida, sem que isso represente algum avanço rumo a uma maior justiça social. A gestão urbana democrática e a função social da cidade estão intimamente associadas à capacidade de mobilização da população. Esta capacidade, por sua vez, está ligada a compreensão de que a cidadania se exerce por meio da participação política, atuando de forma crítica e reflexiva, visando sempre à coletividade. Neste sentido, há ainda poucas razões para otimismo, pois o nível de interesse político da população é ainda muito baixo. Os desafios para a educação geográfica, porém, são enormes. 3. Considerações Finais Os resultados demonstraram a mais absoluta ineficiência e ineficácia das prefeituras (tanto a de Luziânia, como a de Valparaíso) ao controlar o parcelamento do solo. Podemos dizer que a maioria dos agentes imobiliários atuou de maneira criminosa, produzindo loteamentos irregulares e desprovidos das mínimas condições de infraestrutura urbana. Os loteamentos/bairros apresentam várias inadequações domiciliares, gerando um significativo déficit habitacional qualitativo. Não há um processo de planejamento e o Plano Diretor assemelha-se a mero conjunto de “boas intenções”, que nem de longe busca a efetividade da função social da propriedade urbana e da própria cidade, conforme preconiza o texto constitucional. A adequação ao Estatuto da Cidade, por meio do atendimento da Resolução n. 31/05 do Conselho Nacional das Cidades, não garantiu essa questão. Embora as demandas sociais sejam expressivas, o grau de mobilização e participação política da sociedade nas políticas urbanas é insignificante. Sem a mobilização social é pouco provável que os instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade se materializem nesta ou em outras cidades. Deste modo, o cenário é pouco promissor e os problemas urbanos já existentes tendem a se agravar devido ao intenso crescimento populacional que ainda ocorre em Valparaíso. Na paisagem urbana, os condomínios de classe média começam a se destacar, agravando a segregação socioespacial. A especulação imobiliária continua sendo uma importante característica da expansão urbana verificada nas duas últimas décadas, e com o “boom” da construção civil, provocado pelo programa habitacional “Minha Casa Minha Vida”, o preço do solo urbano sofreu forte apreciação, tornando mais difícil o enfrentamento do déficit habitacional quantitativo. Referências BRASIL. Lei nº. 6766 de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras providencias. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/16766.htm< Acesso em 10 de mar. 2011. CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1993. EQUILIBRÍO, Consultoria Urbanístico Ambiental. Diagnóstico do Setor Habitacional de Valparaíso de Goiás. Valparaíso de Goiás, 2010. ESTATUTO DA CIDADE: Guia para Implementação pelos Municípios e Cidades. 2. ed. Brasília: Câmara dos deputados, coordenação de publicações, 2002. LEFEBVRE, Henri. O direito a cidade. São Paulo, Moraes, 1991. GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. São Paulo: USP, 1993. SOUZA, Marcelo Lopes de. ABC do desenvolvimento urbano. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003.