De uma Europa surgem outras O Secretariado-Geral do Conselho publicou em 2006 em FR, EN e DE um livro sobre a visão política da Europa e, posteriormente em 2009, uma edição remodelada mais modesta, destinada ao circuito comercial. Trata-se de uma compilação de textos originais de cerca de trinta autores (do séc.XIII ao séc.XX), comentados por autores contemporâneos, todos funcionários do SGC. O propósito era pôr em evidência a diversidade de opiniões num continente em evolução política e filosófica constante. Ler os textos de grandes visionários, de Dante (1285-1321) até aos Pais Fundadores, a seguir à segunda Guerra Mundial, revela uma perspectiva muito coerente do pensamento político europeu nos últimos sete séculos. Na realidade, todos ou quase todos, para quem a Europa era o elemento fulcral da existência, arvoravam uma postura cosmopolita - na primeira acepção do vocábulo – sobre o Mundo da época em que viveram. O cantor e poeta francês Georges Brassens tê-los-ia excluído da « ... casta dos chauvinistas de roseta na lapela, palermitas nascidos algures”. O rei da Boémia e da Morávia, Georges Podiebrad (1420-1471), primeiro soberano a abjurar a fé católica, elaborou um projecto de confederação europeia preconizando manter a paz por um vasto acordo entre os Estados da cristandade, e não pela instauração da Monarquia Universal. Nese intuito, enviou uma Missão diplomática pela Europa fora, até aos confins da Península Ibérica para reunir o maior número de adeptos ao projecto. Podiebard foi excomungado pelo Papa em 1446 e faleceu sem reliazar o que pretendia. Para Crucé, (1590-1648) no Século XVI o centro do espaço político era Veneza, mas as perspectivas que deliniou no seu Novo Cynée, ultrapassavam de longe a definição. A visão de Penn (1644-1718) no Século XVII era o espaço acessível aos “outros” na descoberta de novas culturas, pelo papel determinante do Oceano entre o ponto de partida e a meta do percurso. Não há no entanto dúvidas que um certo misticismo e a mística do extase, gerada pela transcendência teocrática, limitará o horizonte de alguns actores e o seu posicionamento político. Todavia, aceder à sonhada omnia pacis continuará a ser o desígnio a atingir. Houve quem falhasse por pouco, sem nunca deixar de sonhar com ela, um punhado quase conseguiu lá chegar, frequentemente em risco de vida. Presos, humilhados, ofendidos, assassinados, nenhum alterou o rumo. Alexis Léger (1887-1975), cujo papel no pacto de Locarno em 1927 é conhecido, foi um deles. Conselheiro de Aristide Briand1 (1862-1932), foi considerado pelos nazis “o diplomata mais odiado pelo Terceiro Reich”. O governo colaboracionista de Vichy retirou-lhe a nacionalidade francesa em 1940, sendo-lhe atribuído em 1960 o prémio Nobel da Literatura com o pseudónimo da Saint-John Perse. Tal como Pessoa ao afirmar ser a língua portuguesa a sua Pátria, Léger/Perse declarou acabar por “morar” no nome. A sua obra poética, em que a viagem é de dimensão “global” e a implicação política, conciliam as duas facetas da sua personalidade. Seria possível salientar inúmeros exemplos de personagens citadas no livro, que nesta área marcaram o seu tempo e até para lá da morte, mas não é esse o meu propósito. Escolhi então Altiero Spinelli, por representar indubitavelmente o empenho político coerente e radical. Membro do Partido Comunista Italiano aos 17 anos, preso quatro anos depois, condenado a 8 anos de cadeia, amnistiado em 1937, exilado na ilha italiana de Ventotenne até à morte de Mussolini em 1943. 1 Republicano progressista, seis vezes primeiro ministro francês entre 1909 e 1931. Tendo-se afastado do PCI, Spinelli redigiu em 1941, com o jornalista Ernesto Rossi, outro antifascista exilado, o Manifesto de Ventotenne. O texto, entre outras afirmações fortes, é um requisitório contra todos os totalitarismos e as ideologias ameçadoras, bem como uma defesa sem limites de uma nova forma de estrutura europeia, pelo padrão da crítica histórica (cf. Título I.- 3 do Manifesto), em que o Homem é a referência principal. A perspectiva de Spinelli era federalista e foi em 1947 um dos fundadores do movimento. Membro da Comissão europeia de 1970 a 1976 e deputado europeu de 1976 a 1986, ano em que faleceu. A Europa e as sucessivas Europas são outras tantas facetas das várias épocas, dos (des)equilíbrios sociopolíticos, das ideologias, das divindades e das bandeiras ocasionais. No rota das utopias, o Continente gerou diversas realidades, muitas vezes decepcionantes ou mal conseguidas e, sobretudo, horríveis abominações. A leitura do Manifesto de Ventotenne evidencia a limpidez de visão dos autores que, perfeitamente conscientes da imensidão do empreendimento, concluíam: O caminho a seguir não é fácil, nem seguro, mas temos de o percorrer, e fá-lo-emos. Jorge Tavares da Silva Outubro de 2015