CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO
Humberto Costa Cezar
Voz e Escuta dos Surdos:
Um diálogo em educação sociocomunitária
Americana
2014
Humberto Costa Cezar
Voz e Escuta dos Surdos:
Um diálogo em educação sociocomunitária
Dissertação apresentada como exigência para obtenção do
grau de Mestre em Educação Sociocomunitária à
Comissão Julgadora do Centro Universitário Salesiano,
sob a orientação do Prof. Dr. Severino Antônio Moreira
Barbosa.
Americana
2014
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Cezar, Humberto Costa.
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C419v
Voz e escuta dos surdos: um diálogo em educação
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sociocomunitária / Humberto Costa Cezar. – Americana: Centro
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Universitário Salesiano de São Paulo, 2014.
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Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL/SP.
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Orientador: Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa.
Inclui bibliografia.
1. Surdos – Educação. 2. Educação sociocomunitária. I.
Título.
CDD 371.912
por Lissandra Pinhatelli de Britto – CRB-8/7539
Bibliotecária UNISAL – Campus Maria Auxiliadora
Humberto Costa Cezar
Voz e Escuta dos Surdos:
Um diálogo em educação sociocomunitária
Dissertação apresentada como exigência para obtenção do
grau de Mestre em Educação Sociocomunitária à Comissão
Julgadora do Centro Universitário Salesiano, sob a
orientação do Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa.
Banca examinadora
Profª Drª: Regiane Aparecida Rossi Hilkner
Instituição: Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL
Assinatura: ____________________________________________________________
Prof. Dr.: Francisco Evangelista
Instituição: Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL
Assinatura: ____________________________________________________________
Prof. Dr.: Severino Antônio Moreira Barbosa
Instituição: Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL
Assinatura: ____________________________________________________________
Americana - 2014
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de inspiração, e a certeza de que sempre há um norte.
À minha esposa, Deise, que há 25 anos singra as águas da vida ao meu lado. Seu
companheirismo, amizade e amor me mantém incólume sobre a nau, dando-me a alegria de
pensar que, depois de mais um dia, haverá um outro alvorecer.
Aos meus filhos, Lucas e Samuel, sempre prontos, para comigo apreciar o azul do mar ou,
quando as águas estão revoltas, me ajudar no manejo das velas e do timão.
Ao Professor Doutor Severino Antônio que, no oceano de saberes, discorre sobre as
diferentes águas navegadas por filósofos, pensadores e poetas, inspirando os tripulantes da
educação a encontrar as próprias águas, tornando audível o norte que me evocava.
Aos Professores Doutores Francisco Evangelista e Regiane Hilkner, os quais encontrei,
brevemente, num porto de passagem, a qualificação. Tempo suficiente para vocês me
indicarem, nas cartografias da diversidade, nuances inusitadas, com sabedoria e
sensibilidade.
Ao amigo Rodrigo Ferreira, que me mostrou a nau do mestrado e me estimulou a nela
adentrar. Foi a atitude que desencadeou minha viagem por águas longínquas.
Aos professores Alacy Barbosa e Ivan Almeida, meus líderes, os quais propiciaram as
condições para que eu levasse a efeito a navegação.
Aos amigos Tiago Nascimento, Ervely França, Marli Martins, Jussara Barros, Marcia
Paiva e Nadir de Oliveira, que souberam compreender as minhas ausências no trabalho,
nos momentos em que eu estava a bordo.
Aos amigos da comunidade de surdos do IASP, que me fizeram contemplar, por meio de
suas mãos, olhares e expressões, as singulares águas que, em seu curso sinuoso, irrigam os
territórios de nossa existência, qualificando-se como tributárias do grande oceano de
saberes e fazeres.
RESUMO
Esta pesquisa levada a efeito na comunidade de surdos do IASP – Instituto Adventista São
Paulo, faz-nos refletir sobre os modos pelos quais se estruturam as relações educativas
entre os sujeitos dessa comunidade, e entre eles e o mundo dos ouvintes. Em 2008, ao me
aproximar da comunidade de surdos do IASP, vislumbrei um universo rico em saberes e
fazeres; reconheci algo óbvio, mas que ignorava, os surdos têm voz e exercem a escuta;
também ignorava o fato de que o mundo os ignora. Dessas reflexões originou-se esta
dissertação que tem como tema: Voz e Escuta dos Surdos – Um Diálogo em Educação
Sociocomunitária. Embasado nas ideias de Boaventura de Sousa Santos, procurei
identificar o processo de invisibilização que leva os surdos a sobreviverem de forma
marginal. A prática do que Boaventura denomina “sociologia das ausências” traz a lume
aspectos peculiares às culturas, como a dos surdos, que são subtraídas do mundo pelo
sistema hegemônico, mas que podem ser visibilizados, partilhados por outras culturas,
suscitando saberes e fazeres que devem permear todos os âmbitos da educação. No início
desta dissertação, coloco em relevo as ideias de Morin, quando propõe uma reflexão sobre
a educação de um modo mais amplo, que nos auxilie a entender a nossa condição no
planeta, e nos capacite a utilizar a inteligência geral, de forma crítica, hábil para lidar com
o complexo e dialogar com a diversidade, sendo favorável a um modo de raciocinar livre e
aberto. Contudo, essas ideias só poderão ser levadas a efeito por meio da reforma do
pensamento. Essa reforma, proposta por Morin, faz-nos conceber de forma complexa o
mundo, e denuncia as mazelas da globalização hegemônica, a qual produz formas
padronizadas de ser e estar no mundo. Essa reflexão nos leva a perceber que é preciso
aprender a “estar aqui”, e isto implica em aprender com a partilha e a correspondência
entre culturas singulares, como a dos surdos, uma prática essencial para uma educação que
humaniza. Esta proposta recebeu luz da pesquisa de campo, por meio da qual procurei
compreender e dialogar com as vozes dos surdos, seus olhares, sorrisos, expressões
corporais e suas histórias. Percebi que eles sofrem um processo de invisibilização, mas
também verifiquei que há um empenho dos membros da comunidade de surdos do IASP no
sentido de visibilizar seus saberes e fazeres, agregando outros surdos e ouvintes que
fortalecem a comunidade, derrubando muros de separação e construindo pontes, para que
haja tráfego entre as diversidades, numa atmosfera de respeito e amor.
Palavras-chave: Educação Sociocomunitária; comunidade de surdos; diversidade;
diálogos.
6
ABSTRACT
The present research, carried out among the deaf community members at IASP - Instituto
Adventista São Paulo, makes us reflect on the ways which are structured the educational
relations between the subjects of this community, and between the subjects of this
community and the world of listeners. In 2008, as I approached the deaf community at that
school, a whole new world of knowledge and practice was set before me: I was able to
clearly recognize that the deaf people have voice and listening exercise. I also found out
that they are not given any attention by those around them. This dissertation has originated
from such reflections, and its subject is “The Deaf People and Their Voices and Hearing –
Dialogues on Social Community Education”. I took into account the ideas of Boaventura
de Sousa Santos to snapshot the invisibility process that results on the deaf’s marginalized
survival. Boaventura names such practices “sociology of absences”, disclosing peculiar
aspects of their cultures, subtracted from our world’s hegemony. On the other hand, there
are aspects in their culture that can be clearly shown and shared by other cultures,
knowledge and practices that should permeate all education. At the beginning of this
dissertation, I highlight the ideas of Morin as he proposes a reflection on Education that
will enable us to understand our condition in the world and to use our general intelligence
in a critical and skillful way. This way we can deal with complex situations and dialogue
with diversity and be favorable to a free and open way of thinking. Such ideas, though,
can only be carried out through thought reform. Such a reform, proposed by Morin, helps
us grasp the concept of a complex world and bring to light the wounds caused by
hegemonic globalization, patterning our life in the world. His reflections lead us to realize
that we need to learn about sharing, harmonizing and joining unique cultures such as the
deaf, which would be essential for a humanizing education. The proposal of the present
research was visibilized through field research and the dialogues, the voices, looks, smiles,
body language and stories of the deaf. I was able to witness their invisibilization, and could
also see that the deaf community at IASP has made efforts to make their deeds and
knowledge visible, bringing together deaf and non deaf people from inside and outside the
community, breaking down barriers, building bridges among diversities in a loving and
respectful atmosphere.
Keywords: Social community education; deaf community; diversity; dialogue.
7
[...] temos o direito a ser iguais sempre que
a diferença nos inferioriza; temos o direito
a ser diferentes sempre que a igualdade nos
descaracteriza.
Boaventura
Santos
de
Sousa
8
LISTA DE FOTOGRAFIAS E ILUSTRAÇÃO
Fotografia 1
Minhas mãos são o meu coração ………………………………………
43
Fotografia 2
Jeito de aprender/povos indígenas ……………………………………...
47
Fotografia 3
Um grupo da comunidade de surdos do IASP – almoço comunitário .....
65
Fotografia 4
A, ouvinte, ao lado de seu esposo, B, surdo ………………………........
69
Fotografia 5
Fotografia 6
D, surda, contando suas experiências para alunos do Ens. Fund. 2 …...
76
D, surda, e seu marido E, ouvinte ……………………………………..
80
Fotografia 7
F, do lado esquerdo, ouvinte, filha de pais surdos …………………….
85
Fotografia 8
Ot e C, surdos, pais de F, ouvinte ……………………………………..
91
Fotografia 9
Q e sua esposa - intérpretes na comunidade de surdos IASP …………
95
Fotografia 10 V e seu namorado U, ambos surdos ………………………………….
Fotografia 11
103
A jovem V, surda, quando cursava o Ensino Médio …………………
106
Fotografia 12
Z entre U e V ………………………………………………………….
110
Fotografia 13
114
W, surdo, com o filho ouvinte no colo ………………………………..
9
Figura 1
Sem título, da série Assim é …se lhe parece ………………………………..
51
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 11
CAPÍTULO 1 – UM OLHAR VOLTADO PARA AS VOZES DA EDUCAÇÃO 14
1.1
A voz que flagra erros, ilusões e cegueiras......................................................... 16
1.2
O paradigma tornado audível.............................................................................. 18
1.3
Subjetivação capitalística – A voz que protagoniza no cenário cotidiano.......... 19
1.4
Vozes subliminares – Produção do processo técnico-científico......................... 20
1.5
O conhecimento do conhecimento – Como harmonizar vozes dissonantes........ 23
1.6
A reforma do pensamento – O clamor que reverbera no cenário da educação.. 24
1.7
Sete vozes – Saberes necessários........................................................................ 28
1.8
Desafios que evocam professores....................................................................... 31
1.9
Professores – Ouvir ou olvidar? Eis a questão................................................... 34
1.10
Grade curricular – O cárcere de vozes................................................................ 35
1.11
Professores diante de escutas que evocam saberes e fazeres.............................. 41
1.12
Ecos do coração.................................................................................................. 43
1.13
Melodias no alvorecer de um novo dia............................................................... 46
CAPÍTULO 2 – VOZES AUSENTES........................................................................ 47
10
2.1
O multicultural nas mãos do ventrículo.............................................................. 48
2.2
Vozes forjadas..................................................................................................... 49
2.3
Razão metonímica – A voz da parte como a voz do todo................................... 51
2.4
Sociologia das ausências..................................................................................... 53
2.5
Arqueologia das vozes inaudíveis na educação e na pesquisa............................ 60
2.6
Os sons da diversidade........................................................................................ 62
2.7
Democracia – O direito de todas as falas............................................................ 63
CAPÍTULO 3 – OLHARES QUE OUVEM, CORPOS E MÃOS QUE FALAM..65
3.1
A comunidade de surdos do IASP...... ................................................................ 68
3.2
História que desperta desejos de aprender e ensinar entre iguais e diferentes.... 68
3.3
A corporeidade e suas correspondências............................................................. 69
3.4
Entrevista com A, ouvinte, esposa de B, surdo................................................... 69
3.5
Entrevista com B................................................................................................. 71
3.6
Entrevista com D, surda, esposa de E, ouvinte.................................................... 75
3.7
Entrevista com E.................................................................................................. 80
3.8
Entrevista com F ouvinte, filha de pais surdos.................................................... 84
3.9
Entrevista com Ot, surda, mãe da F, ouvinte...................................................... 90
3.10
Entrevista com P, professora do aluno N, ouvinte, educado por pais surdos..... 94
3.11
Entrevista com Q, intérprete................................................................................ 95
3.12
Entrevista com U, surdo, namorado de V, surda............................................... 102
3.13
Entrevista com V.............................................................................................. 106
3.14 Entrevista com Z, ouvinte, pai de V................................................................. 109
3.15
Vidas que nos alcançam e nos transformam...................................................... 113
3.16
Mãos que sinalizam............................................................................................ 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 119
APÊNDICE.................................................................................................................. 123
ANEXO........................................................................................................................ 130
11
INTRODUÇÃO
Cabe à educação do futuro cuidar para que a ideia
de unidade da espécie humana não apague a ideia
de diversidade, e que a da sua diversidade não
apague a da unidade.
Edgar Morin
Ao conviver com a comunidade de surdos do IASP – Instituto Adventista São Paulo,
percebi algo simples e relevante: eles têm “voz” e exercem a “escuta”, embora sejam
invisibilizados por nossa sociedade. Esta percepção suscitou, em meu íntimo, pensamentos
de trocas, correspondências, diversidade e igualdade de direitos, os quais deram à luz a esta
dissertação. O passo seguinte foi a tentativa de conceber um tema que trouxesse a ideia de
que os surdos expressam suas singularidades, e estão dispostos a estabelecer
correspondências com outros modos de existência. Então ele nasceu: Voz e Escuta dos
Surdos, Um Diálogo em Educação Sociocomunitária.
Os aspectos que emergem desta pesquisa atuam como colírio, a fim de que não sejamos
cegos para uma comunidade de surdos que, como tantas outras, é culturalmente rica. Os
surdos conversam sobre singularidades que não ouvimos. Esta escuta é relevante para a
12
educação e para a própria sociedade, porque descortina aos professores e alunos, bem
como a todas as pessoas dispostas a ouvir a respeito da diversidade, um mundo de saberes
e fazeres que podem nos tornar mais humanos, mais felizes.
O objetivo desta dissertação, ao discorrer sobre a educação e uma comunidade de surdos, é
analisar alguns modos que os surdos empregam para construir as relações educativas entre
eles, e entre eles e o mundo dos ouvintes. Pretendo investigar o processo de invisibilização
ao qual eles são submetidos por nossa sociedade, a fim de buscar caminhos para cerceá-lo
e, ao mesmo tempo, encontrar formas para visibilizar as práticas, ideias e valores da
comunidade de surdos, que podem contribuir com nossa formação para o convívio com a
diversidade e, desta forma, contribuir para o enriquecimento e humanização da sociedade.
Creio que as reflexões suscitadas por esta pesquisa nos farão, também, valorizar outros
modos de estar no mundo, embasados não na superioridade de uns sobre os outros, mas em
conversas entre os diferentes, que permitam a minimização da hierarquização, da exclusão
13
e dos problemas a ela relacionados. Ao me deter sobre os escritos de Edgar Morin, percebi
que não é possível educar sem valorizar outros modos de estar no mundo, sem nos
situarmos no planeta, o que implica em aprender a compartilhar, a dialogar, a ter
comunhão; e isso só se aprende por meio das culturas singulares. Estabeleço
correspondências entre algumas ideias de Edgar Morin e de Boaventura de Sousa Santos,
quando este aborda a sociologia das ausências.
Edgar Morin, como referencial teórico, embasa esta pesquisa ao tratar e expor a missão da
educação, que é possibilitar a compreensão da nossa condição de vida, nos ajudar a viver, e
favorecer uma maneira de pensar livre e aberta. Este modo de pensar compreende todas as
dimensões humanas de forma hologrâmica e complexa, pois complexus significa o que foi
tecido junto. Como consequência, visualizamos um mundo onde pode haver unidade na
diversidade e diversidade na unidade. Outro referencial teórico fundamental é Boaventura
de Sousa Santos, ao desenvolver a ideia da sociologia das ausências, por meio da qual
percebemos que a não existência é ativamente produzida, mas que, em contrapartida, é
possível transformar ausências em presenças. Dialogo com diversos autores como Theodor
Adorno, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Felix Guattari, Suely Rolnik, Maria Cândida
Moraes, Jurjo Santomé, Izabel Petraglia, Severino Antônio, Tomás Tadeu Silva, dentre
outros, na medida em que lançam luz sobre as ideias de Morin e Boaventura.
Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa qualitativa, com pesquisa bibliográfica e de
campo, levada a efeito na comunidade de surdos do IASP.
Esta dissertação foi tecida em três capítulos, nos teares das salas do mestrado, das
experiências com os surdos e das leituras dos referenciais teóricos. No primeiro capítulo,
ao abordar a educação de uma forma mais ampla, procuro pensar numa educação que nos
ajude compreender a nossa condição no mundo, de forma crítica, e nos torne hábeis para,
conforme assevera Morin, empregar a inteligência geral, apta para lidar com o complexo,
com a diversidade humana, e que favoreça uma maneira de pensar livre e aberta. E, como
este autor proclama, tal prática só pode ser concebida se houver uma reforma do
pensamento.
No segundo capítulo, intento remover o véu que mascara a globalização hegemônica, a
qual produz padrões de existências, e torna invisíveis comunidades como a dos surdos, que
são irrelevantes para seu jogo de interesses. Diligencio para lançar luz sobre a sociologia
14
das ausências, proposta desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos, que traz a ideia de
práticas que visibilizam saberes tornados ocultos, que dizem respeito a diversidade
humana, imprescindíveis a uma educação que humaniza.
No terceiro capítulo, apresento a pesquisa de campo realizada na comunidade de surdos do
IASP, as impressões do contato com eles, e a compreensão das formas pelas quais se
estabelecem as relações educativas entre eles e entre eles e o mundo dos ouvintes. Tendo
como pressuposto os escritos de Boaventura de Sousa Santos, empenho-me para denunciar
o processo de invisibilização, por meio do qual eles são relegados à marginalidade. Intento
realizar, como diz Boaventura, uma “arqueologia das existências invisíveis”, identificando
os contextos e práticas nos quais os saberes e fazeres diferentes dos surdos se tornam
operantes, visíveis, e - no contato com outras formas de estar sendo no mundo com os
outros - resultam em trocas e aprendizados, somente possíveis numa atmosfera entremeada
de afetos, simpatia, empatia e amor.
15
CAPÍTULO 1
UM OLHAR VOLTADO PARA AS VOZES DA EDUCAÇÃO
Agora, é preciso examinar o elo entre a ideia de
sujeito e a ideia de liberdade. A liberdade supõe, ao
mesmo tempo, a capacidade cerebral ou intelectual
de conceber e fazer escolhas, e a possibilidade de
operar essas escolhas dentro do meio exterior. Sem
dúvida há casos em que se pode perder toda a
liberdade exterior, estar numa prisão, mas conservar
a liberdade intelectual.
Edgar Morin
Aprender a ver atrás da fachada. Aprender a
reconhecer as forças subjacentes. Aprender a
examinar as profundezas, a desnudar. Aprender a
organizar os movimentos em relações lógicas.
Aprender o que é lógica. Aprender o que é um
organismo.
Paul Klee
A alegria de pensar é mais rara, cada dia. Assim
também a paixão de conhecer e transformar o
mundo. Pensar é diálogo. Pesquisar é diálogo.
Escrever é diálogo. Não há aprendizagem sem
diálogo.
Severino Antônio
Neste capítulo, procuro ampliar a abordagem sobre a educação, a fim de que pensemos
numa educação que nos ajude compreender a nossa condição no mundo, de forma crítica,
que nos torne hábeis para, conforme assevera Morin (2011), empregar a inteligência geral,
apta para lidar com o complexo, com a diversidade humana, e que favoreça uma maneira
de pensar livre e aberta. Contudo, tal prática só pode ser concebida se houver uma reforma
do pensamento, se repensarmos a reforma, conforme propõe Morin (2012).
16
No momento em que inicio este capítulo, manifestações do povo brasileiro contra a
corrupção e os abusos dos líderes políticos estão ocorrendo por todo o Brasil, e eu me
pergunto: O que a educação tem a ver com tudo isso? É necessário que a sociedade ouça
vozes abafadas pelos interesses dos sistemas hegemônicos? Quais vozes a escola precisa
evocar por meio de seus professores e alunos? Os diálogos visionários, nos veios
pedagógicos, se transformam em ações nos cenários sociais?
As indagações acima são algumas das muitas vozes que nos assaltam quando colocamos os
pés na nau ancorada, e levantamos os olhos para as muitas águas da educação, almejando
alcançar um cenário alvissareiro. Essas vozes perscrutam nossa mente e temem ficar
dispersas, elas clamam pelo diálogo livre e aberto. Ao recolher as âncoras que nos prendem
a atual condição, eu lanço mão dos pensamentos de Edgar Morin para nortear estas
pesquisas, e assim sou encorajado a içar as velas que nos fazem singrar as complexas águas
da educação.
Edgar Morin estudou direito, história, filosofia, sociologia e economia. É autor de mais de
trinta livros, dentre eles: O Método (6 volumes), Introdução ao Pensamento Complexo,
Cabeça Bem-feita e Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Este autor é
considerado um dos principais pensadores contemporâneos e um dos principais teóricos da
complexidade.
Claude Allègre, ministro da Educação da França em 1997, solicitou que Morin, naquela
ocasião, promovesse uma reforma geral dos saberes para o ensino médio. A UNESCO, por
meio de seu presidente Federico Mayor, em 1999, o convidou para sistematizar uma gama
de ideias que servissem como ponto de partida para se repensar a educação no despontar
do século XXI.
Há um modo de conhecer que é fundamental para a educação, o qual é denominado por
Morin (2011) como conhecimento pertinente, e este deve confrontar a complexidade. Ele
entende o complexus como aquilo que foi tecido junto; e que, na realidade, existe
complexidade porque dimensões humanas diferentes, como a afetiva, a psicológica, a
religiosa, a sociológica, a política, a econômica constituem o todo, e deste são inseparáveis.
[...] há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o
objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as
partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a
unidade e a multiplicidade. Os desenvolvimentos próprios à nossa era
17
planetária confrontam-nos cada vez mais e de maneira cada vez mais
inelutável com os desafios da complexidade.
Em consequência, a educação deve promover a ‘inteligência geral’ apta a
referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro
da concepção global. (MORIN, 2011, P. 36).
Ao iniciar a navegação pelas águas da complexidade, somos flagrados pelos ventos
contrários da atual concepção de educação, e para não naufragarmos, precisamos manejar o
timão das boas e novas ideias com precisão. As novas ideias, trazidas à tona por Morin
(2012), dizem-nos que precisamos repensar a reforma e reformar o pensamento.
A exigida reforma do pensamento vai gerar um pensamento do contexto e
do complexo. Vai gerar um pensamento que liga e enfrenta a incerteza.
O pensamento que une substituirá a causalidade linear e unidirecional por
uma causalidade em círculo e multirreferencial; corrigirá a rigidez da
lógica clássica pelo diálogo capaz de conceber noções ao mesmo tempo
complementares e antagonistas, e completará o conhecimento da
integração das partes em um todo, pelo reconhecimento da integração do
todo no interior das partes. (MORIN, 2012, p. 92, 93).
Diante do exposto, evidencia-se a relevância da missão do ensino, pois nos vem à mente, a
relação de holograma entre escola e sociedade, a sociedade como um todo está contida na
escola, e esta faz parte da sociedade, conforme Morin (2012). Este autor também afirma
que há uma relação de recorrência entre ambas: a escola é produzida pela sociedade,
contudo esta é produzida pela escola. Este fato nos faz crer que modificando um de seus
termos, o outro certamente será afetado.
Neste contexto, ouço uma voz que indaga: Qual a missão do ensino? Morin (2012)
proclama que a missão do ensino não é transmitir o mero conhecimento, mas uma cultura
que contribua para a compreensão de nossa condição no mundo, e nos ajude a viver. Este
ensino promove a expansão do pensamento livre e aberto.
1.1 A Voz que Flagra Erros, Ilusões e Cegueiras
Para compreendermos a nossa condição de vida, segundo Morin (2011), a educação deve
atuar de tal forma que identifique a origem de erros, ilusões e cegueiras. Cada mente tem o
18
potencial de mentir para si mesma, ela tende a selecionar as lembranças agradáveis e inibir
ou até extinguir aquelas que não convém. O que preocupa é que a memória, fonte de
verdade, está sujeita às ilusões e aos erros que a própria mente produz ou que chegam até
ela por múltiplas formas/fórmulas e interesses diversos.
Deduzimos, então, que para entender a nossa condição de vida precisamos identificar os
erros e as ilusões que habitam ou que poderão fazer moradas em nossa mente. Como fazêlo? Para Morin (2011), não incorreremos na ilusão e no erro se empregarmos a
racionalidade. Esta pode produzir teorias coerentes, inclusive verificar o caráter lógico de
toda organização teórica que recebe, descartando ou aproveitando ideias.
Por um lado, existe a racionalidade construtiva, que elabora teorias
coerentes, verificando o caráter lógico da organização teórica, a
compatibilidade entre as ideias que compõem a teoria, a concordância
entre suas asserções e os dados empíricos aos quais se aplica: tal
racionalidade deve permanecer aberta ao que a contesta, para evitar que
se feche em doutrina e se converta em racionalização; por outro lado, há a
racionalidade crítica exercida particularmente sobre os erros e as ilusões
das crenças, das doutrinas e das teorias. (MORIN, 2011, p. 22).
Conforme Morin (2011), devemos estar atentos ao fato de que a racionalidade pode se
degenerar, transformando-se em racionalização. Esta possibilidade existe porque a
racionalidade conduz em seu bojo uma possibilidade de erro e de ilusão.
A racionalização crê-se racional, porque constitui um sistema lógico
perfeito, fundamentado na dedução ou na indução, mas fundamenta-se
em bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação de argumentos e à
verificação empírica. A racionalização é fechada, a racionalidade é
aberta. A racionalização nutre-se das mesmas fontes que a racionalidade,
mas constitui uma das fontes mais poderosas de erros e ilusões. Dessa
maneira, uma doutrina que obedece a um modelo mecanicista e
determinista para considerar o mundo não é racional, mas
racionalizadora.
A verdadeira racionalidade, aberta por natureza, dialoga com o real que
lhe resiste. Opera o ir e vir incessante entre a instância lógica e a instância
empírica; é o fruto do debate argumentado das ideias, e não propriedade
de um sistema de ideias. (MORIN, 2011, p.23).
A racionalização é usada para dizer que o erro não é erro, e desta forma opera para a
manutenção da ilusão e da cegueira. Este método emprega ideias e raciocínios que parecem
coerentes, mas estão alicerçados em falsas premissas.
19
1.2 O Paradigma Tornado Audível
Quando discorremos sobre erros, ilusões e cegueiras desembocamos na zona invisível do
paradigma. Nessa região proliferam-se a verdade e o erro, por isso a educação tem a
incumbência de perscrutá-la.
“O paradigma desempenha um papel, ao mesmo tempo, subterrâneo e soberano em
qualquer teoria, doutrina ou ideologia. O paradigma é inconsciente, mas irriga o
pensamento consciente, controla-o e, neste sentido, é também supraconsciente.” (MORIN,
2011, p. 25).
Conforme Morin (2011), as pessoas raciocinam, conhecem e tomam atitudes de acordo
com os paradigmas que são inoculados nelas por meio da cultura.
Então, há um primeiro princípio de incerteza, que seria o seguinte: eu
falo, mas, quando falo, quem fala? Sou “Eu” só quem fala? Será que por
intermédio do meu “eu”, é um “nós” que fala (a coletividade calorosa, o
grupo, a pátria, o partido a que pertenço)? Será um “pronome indefinido”
que fala (a coletividade fria, a organização social, a organização cultural
que dita meu pensamento, sem que eu saiba, por meio de seus
paradigmas, seus princípios de controle do discurso que aceito
inconscientemente)? Ou é um “isso”, uma máquina anônima infrapessoal,
que fala e me dá a ilusão de que fala de mim mesmo? Nunca se sabe até
que ponto “Eu” falo, até que ponto “Eu” faço um discurso pessoal e
autônomo, ou até que ponto, sob a aparência que acredito ser pessoal e
autônoma, não faço mais que repetir ideias impressas em mim. (MORIN,
2012, p. 126, 127).
Oliveira (2008) acentua a ideia de Morin colocada acima, quando desenvolve o
pensamento de Boaventura, ressaltando que incorporamos os valores dominantes por meio
das práticas sociais com os quais convivemos e dos saberes que nos chegam através de
experiências da vida cotidiana ou de processos formais de aprendizagem, sob a tutela da
sociedade de dominação em que vivemos.
No tópico seguinte procuro estabelecer um breve paralelo entre alguns conceitos de Morin,
Adorno e Guattari, quando este último, junto com Rolnik, discorre sobre a expressão
Subjetivação Capitalística. Acredito que o estudo sobre essas ideias é fundamental para
que compreendamos a nossa condição no mundo e pensemos de modo livre e aberto.
20
1.3 Subjetivação Capitalística – A Voz que Protagoniza no Cenário do Cotidiano
Ao ler as asserções de Morin somos remetidos a Rolnik e Guattari (1993), quando estes
discorrem sobre as mazelas do capitalismo, no qual tudo é regido pelas grandes máquinas
estatais, inclusive seus agentes e até aqueles que ganham salário mínimo, ou as pessoas
esquecidas no agreste nordestino1. Os seres humanos transformam-se em engrenagens que
operam segundo os ditames do mercado e seus paralelos.
Ao desenvolverem as ideias que colocamos acima, Rolnik e Guattari (1993), ao invés de
empregar o termo ideologia, preferem a palavra subjetividade, que usam de forma peculiar.
Não a empregam conforme a tradição da Filosofia e das Ciências Humanas, em que o
sujeito é algo de uma suposta natureza humana. Contudo, eles propõem o contrário, uma
subjetividade de natureza industrial, a qual é fabricada, modelada, recebida, consumida.
Segundo estes autores, a produção de subjetividade diz respeito à economia coletiva do
desejo, não se limitando a um caso de superestrutura, o qual depende das estruturas
pesadas de produção das relações sociais. Desta forma entendem a produção de
subjetividade como matéria-prima das forças produtivas, inclusive dos setores de ponta da
indústria.
De acordo com Rolnik e Guattari (1993), tudo que a subjetivação capitalística produz, bem
como aquilo que nos chega pela linguagem, por meio da família e pelos equipamentos ao
nosso redor, não é apenas uma transmissão de ideias e significações por meio de
enunciados significantes. Na verdade são sistemas de conexão direta entre as grandes
máquinas produtivas, de manipulação social e as instâncias psíquicas que determinam a
maneira de perceber o mundo.
Rolnik e Guattari (1993) asseveram que a maneira como os indivíduos vivem essa
subjetividade vai de um extremo a outro: os indivíduos são receptivos à subjetividade da
forma como lhes chega, numa relação de opressão e alienação, ou, por meio de uma
relação de expressão e criação, se reapropriam dos componentes de subjetividade,
produzindo um modo de pensar e viver peculiar, denominado processo de singularização.
1
Felix Guattari escreveu o livro Micropolítica: Cartografias do Desejo, em parceria com Suely Rolnik, que é
brasileira, por isso a menção às pessoas do agreste nordestino, uma realidade que ela conhece.
21
É notório pelos escritos de Rolnik e Guattari que o processo de singularização se opõe à
economia coletiva do desejo. Em relação a este assunto, a escola deve estar alerta! Ao
desenvolver um artigo sobre as ideias de Theodor Adorno, Crochik (2009) menciona que a
educação deve combater a adesão irrefletida e incondicional a qualquer coletivo.
“Adorno, com Horkheimer, escreve que, no fascismo, os desejos e os impulsos represados
foram utilizados para a adesão da massa, e percebe em toda publicidade, não só a do
fascismo, a mesma tendência. A escola deveria esclarecer essa manipulação para seus
alunos.” (CROCHIK 2009, p.24).
Automaticamente e de maneira planejada os sujeitos são impedidos de
saberem como sujeitos. A oferta de mercadorias que se abate qual
avalanche sobre eles contribui para isto da mesma forma que a indústria
cultural e incontáveis mecanismos diretos e indiretos de controle. A
indústria cultural surgiu a partir da tendência de valorização do capital.
Ela se desenvolveu sob a lei de mercado, sob a obrigação de se adequar
aos seus consumidores, mas então operou uma inflexão, convertendo-se
na instância que fixa e fortalece a consciência em suas formas existentes.
[...] Mediante os mecanismos da indústria cultural, tudo – até as formas
da consciência – é submetido às malhas da mercantilização [...]
(ADORNO apud MAAR, 2009, p.26).
Maar (2009) realça que a indústria cultural, nexo dos domínios da “economia” - que
produz as necessidades e as mercadorias equivalentes às mesmas – e da “cultura” – que
produz as consciências, a qual carece dessas necessidades. O processo de acumulação
ultrapassa o plano específico da “economia”, para abarcar os modos sociais e culturais da
produção, que resultam numa constante recriação do indivíduo, desumanizado para
garantir a continuidade do sistema.
Bueno reforça a ideia de Maar na seguinte citação: “Percebe-se que esse tipo psicológico
ideal requerido pelo mercado em sua etapa globalizada baseia-se em um modelo patológico
de personalidade. ” (BUENO, 2009, p. 45).
É papel da educação revelar a natureza perversa dessa voz que protagoniza no cenário de
nosso cotidiano e promover uma atmosfera humanizadora, que contrarie essa subjetivação
capitalística.
1.4 Vozes Subliminares – Produção do Processo Técnico-científico
22
Na sociedade contemporânea, o acesso aos equipamentos tecnológicos é algo
imprescindível no mercado de trabalho. Nas escolas, há um esforço para disponibilizá-los
às crianças e jovens, como um recurso necessário à educação. Contudo, precisamos refletir
acerca deste assunto. A tecnologia existe apenas para nos assistir nas demandas do dia-adia? Ou existem efeitos subliminares desse convívio?
Na realidade, conforme afirma Morin (2012), o conhecimento técnico, reservado apenas
aos especialistas, é monopolizado, inacessível ao cidadão. Sob este ponto de vista, lidamos
com os resultados do conhecimento técnico, sem nos darmos conta das intenções dos que
os produzem e operam.
Morin (2011) assinala que o desenvolvimento, levado a efeito somente pelo prisma
técnico-econômico, chega a um ponto insustentável. O racionalismo que só considera o
cálculo e é indiferente ao indivíduo, seu corpo, seus sentimentos, sua alma, multiplica o
poderio da morte e da servidão técnico-industrial.
Souza (2008), discorre sobre os efeitos desse racionalismo próprio do tecnicismo
capitalista, mencionado por Morin, na citação a seguir:
[...] o que observamos é que no mundo atual, regido pelas transformações
tecnológicas e pela civilização industrial do consumo, predomina uma
forte tendência a homogeneização da experiência sensível, que dessa
forma vai sendo solapada e aniquilada desde muito cedo. A cultura
monolítica de massa, padronizadora das formas cotidianas de
relacionamento entre os homens, é responsável pelo vertiginoso
empobrecimento da experiência humana, impedindo as pessoas de
romper com seus impasses repetitivos e de recompor uma visão éticoestética do cotidiano. (SOUZA, 2008, p.43).
Adorno alude a cultura monolítica de massa mencionada por Souza, quando afirma que
“[...] o progressivo domínio técnico da natureza se converte em logro das massas, um meio
para agrilhoar as consciências.” (ADORNO apud MAAR, 2009, P.34).
No artigo intitulado Contradições da Moralidade na Vida Cotidiana, tendo como base os
escritos de Adorno, Maia (2009) revela que os novos meios tecnológicos produzem modos
de comunicação com técnicas e clichês estéticos, os quais têm o propósito de transmitir
sentidos que são assimilados sem o recurso da reflexão. Desta forma produzem
consciências que se adequam irrefletidamente aos interesses do mercado.
23
Sass (2009) afirma que, para Adorno, a sociedade industrial, regida pela racionalidade
tecnológica, tem como propósito reproduzir a dominação desenfreada da natureza pelos
homens, bem como a dominação dos homens entre si, de forma irracional.
Esta citação de Adorno evidencia a necessidade de refletirmos sobre o uso tecnologia. E
esta necessidade torna-se premente na medida em que, no século XXI, ciência, técnica e
burocracia se associam, conforme assevera Morin:
As democracias do século XXI serão, cada vez mais, confrontadas com o
gigantesco problema decorrente do desenvolvimento da enorme máquina
em que ciência, técnica e burocracia estão intimamente associadas. Esta
enorme máquina não produz apenas conhecimento e elucidação, mas
produz também ignorância e cegueira. (MORIN, 2011, p.98).
Morin e Adorno nos fazem compreender que não podemos ignorar os interesses
subjacentes a racionalidade tecnológica, que para Boaventura (2008) está engendrada com
o princípio de mercado, o qual condensa as ideias de concorrência e de individualidade
necessárias ao desenvolvimento da técnica.
Boaventura menciona, acima, os interesses de mercado, mas há interesses numa esfera
mais ampla que resultam, conforme Morin (2012), num bombardeio de informações sem
fim, que são despejadas sobre nós, dia a dia, pelos rádios, televisões, jornais, internet,
tendo como única alternativa tornar-nos meros receptores e assimiladores das ideias
selecionadas pelos sistemas hegemônicos. Não ouvir as vozes que denunciam o paradigma
oculto, e conformar-nos com tal sistema, é viver apenas pela autoconservação. “Mas a vida
reduzida a autoconservação, segundo Horkheimer e Adorno, é obtida à custa da própria
vida [...]” (CROCHIK, 2009, p. 62).
Ao nos depararmos com a questão da vida de autoconservação, dialogamos com Morin
(2011, p. 26), o qual apresenta uma nuance peculiar sobre o assunto: “Há assim, sob o
conformismo cognitivo, muito mais que conformismo. Há o imprinting cultural, marca
matricial que inscreve o conformismo a fundo, e a normalização que elimina o que poderia
contestá-lo.”.
Ao refletirmos sobre estas ideias, somos assaltados por uma pergunta: Existem outras
alternativas? Após dar o primeiro passo, que é tomar consciência da operação de
paradigmas subterrâneos e da produção de subjetividade, as quais também se valem dos
24
conhecimentos técnicos, da tecnologia, podemos dar o segundo passo, que tem a ver com a
resposta a indagação que principia este parágrafo: Sim! Existem alternativas! E estas não
são outras senão pelas vias dos conhecimentos conjugados pela sabedoria.
1.5 O Conhecimento do Conhecimento – Como Harmonizar Vozes Dissonantes?
Kramer (2008) realça que, para Benjamin, a compreensão do conhecimento como
iluminação, como assombro, bem como a tomada de consciência de si mesmo, sem susto,
são os desafios para se conceber a felicidade, nos âmbitos da discussão política.
Ao aceitarmos os desafios mencionados por Benjamin, e procurarmos conhecer o
conhecimento, nos deparamos com a cultura, e perceberemos que a mesma, segundo Morin
(2012), não está somente separada em peças destacadas, mas também dividida em dois
blocos, a cultura científica e a cultura das humanidades.
A cultura humanística, por meio da filosofia, do ensaio, do romance é uma cultura genérica
e alimenta a inteligência geral, procurando evocar respostas às grandes perguntas da vida,
pelas vias da reflexão, favorecendo a harmonização pessoal dos conhecimentos, de acordo
com Morin (2012). Esta ideia nos lembra a colocação de Benjamin, no primeiro parágrafo
deste tópico, ao mencionar a tomada de consciência de si mesmo, o que obviamente nos
leva ao social. Neste ponto incluímos Adorno no diálogo, quando afirma que unicamente a
tomada de consciência do social faculta ao conhecimento a objetividade que é perdida pela
falta de cuidado, ao seguir as forças sociais que o presidem, sem pensar a respeito delas.
“Crítica da sociedade é crítica do conhecimento, e vice-versa.” (ADORNO apud SASS,
2009, p. 77).
A cultura científica, por sua vez, é bem diferente, destaca Morin (2012), pois
compartimenta as áreas do conhecimento; realiza, indubitavelmente, descobertas
admiráveis, elabora teorias fantásticas, todavia não realiza uma reflexão sobre a vida
humana, nem do próprio futuro da ciência. Fragmentados, os conhecimentos só têm
utilidade para usos técnicos. Não são capazes de se conjugar para embasar um pensamento
que considere a situação humana nos recônditos da existência, e que possa fazer face aos
grandes desafios de nossa época.
É importante frisar que Morin não descarta o conhecimento científico, e tem uma posição
semelhante a Benjamin, o qual não tinha temores em relação ao progresso tecnológico, ao
contrário, com um ponto de vista pioneiro, identificava, em relação à tecnologia, aspectos
25
negativos como positivos, fato que sublinha sua crítica da cultura e da modernidade,
conforme Kramer (2008).
A despeito dos pontos positivos, Morin (2012) visualiza um progresso científico cego, por
escapar à vontade e à consciência dos próprios cientistas, cuja continuidade resulta num
retrocesso da democracia. Oliveira (2008) lança luz sobre essa ideia de Morin, afirmando
que a excessiva divisão do conhecimento científico e sua disciplinarização transformam o
cientista em um especialista ignorante e, ao mesmo tempo, de acordo com Morin (2012),
faz com que o cidadão perca o direito ao conhecimento. Dessas reflexões emerge a
necessidade de uma democratização do conhecimento. Porém, como democratizar um
conhecimento fechado, acessível somente a especialistas? Temos lucidez para tanto?
Existe alternativa?
1.6 A Reforma do Pensamento – O Clamor que Reverbera no Cenário da Educação
Sim, existe alternativa! Segundo Morin (2011), o principal propósito da educação é o de
fortalecer cada pessoa para o confronto vital rumo à lucidez. Com este intento, Morin
(2012) propõe uma reforma do pensamento que possibilitaria o pleno emprego da
inteligência, a fim de enfrentar os desafios com os quais temos nos deparado ao longo
desta dissertação. Este autor indica que o primeiro passo é vincular as duas culturas
dissociadas. Boaventura de Sousa Santos comunga da mesma opinião:
À medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais,
estas se aproximam das humanidades. O sujeito, que a ciência moderna
lançara na diáspora do conhecimento irracional, regressa investido da
tarefa de fazer erguer sobre si uma nova ordem científica. (SANTOS,
2010, p. 43).
Ao aproximar as ciências naturais das sociais, conforme pretendem Boaventura e Morin,
iniciaremos o processo de reforma. De acordo com Morin (2012), trata-se de uma reforma
paradigmática e não programática, e diz respeito a nossa capacidade para organização do
conhecimento. Ao invés de acumular informações, é mais significativo dispor de uma
aptidão geral para visualizar e lidar com os problemas, e ao mesmo tempo lançar mão de
princípios que organizem e facultem a ligação entre os saberes e lhes dê sentido.
26
Na contramão da opinião que hoje se difunde, Morin (2012) declara que o
desenvolvimento das aptidões gerais da mente contribui para o aprimoramento das
competências especializadas ou particulares. Quanto mais se desenvolve a inteligência
geral, maior é sua aptidão para tratar de problemas específicos. O pleno emprego da
inteligência geral requer o livre emprego da curiosidade, que via de regra é aniquilada na
infância e adolescência, e se este for o caso, deve ser estimulada ou despertada. A aptidão
interrogativa deve ser orientada para os problemas fundamentais de nossa condição e
época. A dúvida, fermento de toda atividade crítica, deve levedar o desenvolvimento da
inteligência geral. É óbvio que isso não é colocado em um programa, só pode ser levado a
efeito por um forte propósito educativo.
“Como o bom uso da inteligência geral é necessário em todos os domínios da cultura das
humanidades – também da cultura científica – e, é claro, na vida, em todos esses domínios
é que será preciso valorizar o ‘pensar bem’ [...]” (MORIN, 2012, p. 23).
“Uma cabeça bem-feita é uma cabeça apta para organizar os conhecimentos e, com isso,
evitar sua acumulação estéril.” (MORIN, 2012, p. 24). Mas, como organizar o
conhecimento? Morin (2012) destaca sete princípios que caracterizam um pensamento que
une, que considera o contexto e o complexo; são princípios interdependentes e
complementares.
1. O princípio sistêmico ou organizacional – este princípio entende como
imprescindível o vínculo entre o conhecimento das partes e do todo, isto é para
conhecer o todo preciso conhecer as partes e para conhecer as partes é necessário
conhecer o todo. Morin menciona que esse elo é indicado por Pascal: “Considero
impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo
sem conhecer as partes”. Muito esclarecedor o fato de que a soma das partes não é
igual ao todo, este é mais do que a soma das partes, pois no conjunto as partes não
são plenamente perceptíveis. Numa outra perspectiva, o todo é menos que a soma
das partes, pois as qualidades das partes são atenuadas pela organização do todo.
2. Princípio hologrâmico – ajuda-nos a compreender as organizações complexas, na
qual a parte não apenas está no todo, também o todo está inscrito na parte. A célula
é um exemplo clássico, pois ela faz parte do corpo, do total, porém o patrimônio
27
genético da totalidade está incluído em cada célula. Cada indivíduo carrega em si a
sociedade, enquanto todo, por meio de sua linguagem, suas normas, sua cultura.
3. O princípio do circuito retroativo – “[...] introduzido por Norbert Wiener,
permite o conhecimento dos processos auto-reguladores. Ele rompe com o
princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e o efeito age sobre a
causa [...]” (MORIN, 2012, p. 94). Esse sistema permite que o condicionador de ar
climatize uma sala, deixando a temperatura amena em relação ao calor externo.
Podemos citar um exemplo no âmbito social, que pode ocorrer quando o professor,
num afã equivocado de lecionar desrespeita os alunos, estes também o
desrespeitarão, e isso afetará negativamente as suas intenções docentes, poderá
fazê-lo agir de maneira mais irracional ainda. Por outro lado, o professor que
demonstra empatia para com seus alunos, respeitando-os, tenderá a obter o respeito
e a cooperação na atividade docente, e isto concorrerá para um melhor desempenho
do diálogo, da aula em si.
4. O princípio do circuito recursivo – neste circuito, os produtos e os efeitos são,
também, causadores, produtores dos que os produzem. As pessoas produzem a
sociedade pelas interações e nas interações, contudo a sociedade, na proporção que
se desenvolve, produz a humanidade desses indivíduos, concedendo-lhes a
linguagem e a cultura.
5. O princípio da autonomia/dependência (auto-organização) – a auto-organização
caracteriza os seres vivos, os quais não param de se autorreproduzir e, para tal,
gastam energia para manter sua autonomia. “Como têm necessidade de retirar
energia, informação e organização de seu meio ambiente, sua autonomia é
inseparável dessa dependência; é por isso que precisam ser concebidos como seres
autoecoorganizadores.” (MORIN, 2012, p. 95). Indubitavelmente, este princípio se
aplica aos seres humanos, cuja autonomia depende de sua cultura; a mesma
dinâmica diz respeito às sociedades, as quais de desenvolvem dependendo de seu
ambiente geológico.
A autoecoorganização viva tem uma característica chave, que é a da regeneração
constante a partir da morte de suas células. A semente lançada ao solo fértil, ao
28
germinar, morre. Ao desenvolver essa ideia, Morin menciona Heráclito: “viver de
morte e morrer de vida”. As ideias de morte e vida são, simultaneamente,
antagônicas e complementares.
6. O princípio dialógico – também é ilustrado pela ideia de Heráclito. Une dois
princípios que deviam, reciprocamente, excluir-se, entretanto estão interligados
numa mesma realidade. Desde o nascimento do universo concebe-se uma dialógica
desordem/ordem/organização. Esta dialógica, sob as mais diversas formas, está
permanentemente em ação nos mundos biológico, físico e humano. De um certo
ponto de vista, quando se considera a espécie e a sociedade, o indivíduo
desaparece; e, por outro lado, quando se considera o indivíduo, a espécie e a
sociedade desaparecem. Contudo, a forma de pensar dialógica assume os dois
termos, os quais tendem a se excluir mutuamente.
7. O princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento – este
princípio restaura o sujeito e traz a lume o problema cognitivo central: todo
conhecimento, da percepção à teoria científica, é uma reconstrução/tradução levada
a efeito por uma mente/cérebro, em uma época e cultura determinadas.
[...] a reforma do pensamento é de natureza não programática, mas
paradigmática, porque concerne à nossa aptidão para organizar o
conhecimento. É ela que que permitiria a adequação à finalidade da
cabeça bem-feita; isto é, permitiria o pleno uso da inteligência.
Precisamos compreender que nossa lucidez depende da complexidade do
modo de organização de nossas idéias. (MORIN, 2012, p. 96).
Essa reforma integraria as principais ideias nascidas à margem, na cultura científica
e na cultura das humanidades: no mundo dos engenheiros-matemáticos-pensadores.
Essas duas culturas se comunicariam e resultariam em dois polos da cultura. Do
intercâmbio destes dois polos culturais surgiriam novas humanidades. Estas dariam
um novo vigor a problematização, e faria emergir os problemas globais e
fundamentais. Desta forma, cada cidadão do futuro, antes de chegar à
especialização, terá de passar pela cultura.
O humanismo seria recuperado, pois não haveria mais lugar para o
antropocentrismo, cujo intento é dominar o mundo; transformar-se-ia no
29
humanismo da solidariedade entre humanos, envolvido com a natureza e o cosmo
numa relação umbilical.
Percebemos que trata-se de uma maneira de pensar que solidariza, une
conhecimentos separados, capaz de se desdobrar em uma ética da união, da
solidariedade entre humanos, da democracia. Não é um pensamento que se fecha na
especificidade, ao contrário, considera os conjuntos. Deste modo floresceria o
senso de responsabilidade, a cidadania. Essa possibilidade é empolgante, pois nos
faz vislumbrar notáveis transformações existenciais, éticas e cívicas.
1.7 Sete Vozes – Saberes Necessários
A educação do futuro deveria tratar de sete saberes fundamentais, afirma Morin (2011), em
toda sociedade e cultura, sem rejeição nem exclusividade, de acordo com as regras e
modelos pertinentes a cada cultura.
Antes de introduzir os “Sete Saberes”, Morin (2011) faz uma observação que, a meu ver,
merece destaque. Ele afirma que o texto, no qual ele situa a condição humana, se apoia no
saber científico, o qual não só é provisório, mas também deságua em mistérios profundos,
referentes ao surgimento do ser humano, à vida, ao universo. Neste aspecto nos deparamos
com um indecidível, diz o autor, no qual se apresentam opções filosóficas e crenças
religiosas que têm, como condutos, culturas e civilizações. Percebemos que as opções
filosóficas, no contexto colocado por Morin, bem como as crenças religiosas devem ser
respeitadas.
Colocada a asserção acima, veremos na citação que se segue a relação entre os sete saberes
e a reforma do pensamento.
Bem, é evidente que ensinar os ‘Sete Saberes’ implica também ensinar a
reforma do pensamento a partir de um pensar complexo. Não se pode
ensinar os “Sete Saberes” com os princípios atuais que prevalecem em
nossa sociedade, sem um sentido de complexidade, de contextualidade
das ambivalências e contradições. Isso também requer a aprendizagem de
um modo de pensar e de conhecer complexo. Por esta razão, se pode
dizer que não bastam os “Sete Saberes”. É preciso também uma reflexão
sobre o que significa a complexidade, a cientificidade. (MORIN in
MORAES; ALMEIDA, 2012, p.41).
30
Esta colocação lógica de Morin justifica o fato de termos discorrido primeiro sobre a
reforma do pensamento, para depois descortinar os “Sete Saberes” necessários a educação
do futuro.
A UNESCO promoveu, em 2010, na cidade de Fortaleza, Ceará, a Conferência
Internacional sobre Os Sete Saberes Necessários à Educação do Presente, em parceria com
a Universidade Estadual do Ceará e a Universidade Católica de Brasília, comemorando os
10 anos de lançamento da obra Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Edgar
Morin foi o presidente de honra dessa Conferência. Izabel Petraglia (2012) foi uma das
conferencistas do evento, e apresentou, na ocasião, uma síntese dos “Sete Saberes”
propostos por Morin (2011), da qual lanço mão para discorrer sobre os mesmos, valendome naturalmente, como pano de fundo, do escopo mais amplo das ideias de Morin (2011),
e o faço a seguir:
1. As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão
O risco do erro e da ilusão existe em todo e qualquer conhecimento. Admiti-lo é
entender o processo de conhecer como uma tradução e reconstrução daquilo que
percebemos como realidade. “O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais
difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais.” (MORIN,
2011, p. 19). Por esta razão faz-se necessário compreender os modos e a dinâmica que
o conhecimento comporta. O conhecimento do conhecimento, que abarca a junção do
conhecedor em seu conhecimento, deve ser, para a educação, uma necessidade e um
princípio constantes.
2. Os princípios do conhecimento pertinente
É preciso compreender as relações e influências entre as partes e o todo do fenômeno
para assumir os princípios de um conhecimento pertinente. É uma atitude mental capaz
de conceber o global, o contexto, o multidimensional e o complexo. Ao invés de uma
“cabeça cheia bem cheia”, mais vale “uma cabeça bem-feita”, a qual tem a aptidão para
tratar os problemas por meio da reflexão, organizando e religando conhecimentos,
conferindo sentindo aos mesmos.
Precisamos desaprender antigos conceitos fechados e reducionistas que
estão empilhados em prateleiras de nossa consciência, para reaprender
uma nova visão de mundo que articule cenários cada vez mais complexos
31
delineados em meio às incertezas, imprevisibilidades e contradições de
uma existência planetária. (PETRAGLIA, 2012, p. 131).
3. Ensinar a condição humana
O propósito essencial do ensino é refletir sobre a complexidade humana, a partir de
conhecimentos que permeiam as disciplinas, como as ciências humanas, as ciências
naturais, a literatura, a filosofia. As crianças, adolescentes e jovens precisam conhecer
a unidade e a diversidade dos seres humanos. Só pode existir desenvolvimento humano
no desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, dos envolvimentos
comunitários e do sentimento de pertencimento à espécie humana.
4. Ensinar a identidade terrena
“É preciso que compreendam tanto a condição humana no mundo como a condição do
mundo humano, que, ao longo da história moderna, se tornou condição da era
planetária.” (MORIN, 2011, p. 55).
Para tanto é necessário refletir sobre a complexidade da crise que, no século XX,
devastou o planeta e desencadeou a dominação. É preciso ensinar essa história,
evidenciando como as pessoas de todas as partes do mundo podem e precisam ser
intersolidárias, pois lidam com situações semelhantes de vida e de morte. Como
cidadãos terrestres, precisamos desenvolver nossas características étnicas e
mátrias/pátrias que são concêntricas e plurais.
5. Enfrentar as incertezas
Conviver com as incertezas, eis o que necessitamos aprender! Ao longo dos séculos,
surgiram as incertezas, por meio da microfísica, da termodinâmica, da cosmologia, das
ciências biológicas, das neurociências e da história. Estas áreas do conhecimento,
temos que admitir, têm nos dado algumas certezas, contudo, muitas delas, provisórias.
Nas frestas da complexidade do mundo já vislumbramos feitos possíveis, esperados,
inesperados, prováveis, improváveis e incertos.
As civilizações tradicionais viviam na certeza de um tempo cíclico cujo
funcionamento devia ser assegurado por sacrifícios às vezes humanos. A
civilização moderna viveu com a certeza do progresso histórico. A
tomada de consciência da incerteza histórica acontece hoje com a
destruição do mito do progresso. O progresso é certamente possível, mas
é incerto. A isso acrescentam-se todas as incertezas, devido à velocidade
32
e à aceleração dos processos complexos e aleatórios de nossa era
planetária [...] (MORIN, 2011, p. 69, 70).
Os aprendizes devem contemplar, por meio da educação, as ideias de uma nova
consciência que começa a surgir por trás das velhas montanhas paradigmáticas, num
alvorecer inédito, iluminando o mundo. Caminhemos rumo ao horizonte! Uma
aventura desconhecida, entretanto, saibamos que, compondo os meandros do
conhecimento, haverá erros e ilusões, que devem ser suplantados.
6. Ensinar a compreensão
Ensinar e aprender a compreensão é um dos propósitos essenciais da educação.
“Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa;
educar para a compreensão humana é outra.” (MORIN, 2011, p. 81). A compreensão
entre os homens é primordial para que haja respeito, diálogo entre os diferentes e
solidariedade. Diante da intolerância do planeta e de tantas formas de babárie e
segregação entre povos, nações, etnias, culturas, religiões, surge, como prioridade, o
aprendizado da compreensão, que é um permanente aprender e reaprender. Para tal
circunstâncias urge a reforma de nosso pensamento, desvencilhando-nos das amarras
conceituais que nos entrelaçam a verdades compactadas. No caminho rumo à
humanização, teremos de palmilhar as sendas das relações humanas. A escola deve ter
a atitude que lhe corresponde, a fim de que seja estabelecida uma política de
civilização para o mundo.
7. A ética do gênero humano
Para Morin, tanto o indivíduo, quanto a sociedade e a espécie fazem parte da
abordagem sobre a ética do gênero humano. “As interações entre indivíduos produzem
a sociedade, e esta retroage sobre os indivíduos” (MORIN, 2011, p. 93). Essa
consciência deve ser adquirida pelos seres humanos como integrantes da sociedade e
pertencentes a espécie humana. Essas ideias só podem germinar no solo fértil da
democracia, que é um sistema político complexo, porque vive de pluralidades,
concorrências e antagonismos, porém como comunidade.
Pautada nos estudos de Morin, Petraglia (2012) pontua diversas dimensões do
complexus humano, a fim de que sejam implementados os Sete Saberes, da educação
infantil à pós-graduação, os quais mencionamos abaixo:
33
 Dimensão ética – que abrange não somente a ética profissional, mas do mundo,
que a abarca.
 Dimensão técnica – que engloba habilidades e competências que têm, como
finalidade, a consecução de atividades para uma profissão e para a vida.
 Dimensão Política – que concebe a educação não como um processo neutro,
mas que concorre para a transformação social e planetária.
 Dimensão poética da existência – que considera a estética, o prazer, o
imaginário, o deslumbramento pela vida, atitudes que requerem sensibilidade.
1.8 Desafios que Evocam Professores
Menciono novamente a relação de holograma e recorrência entre escola e educação,
citando Morin (2012, p. 101) “Como existe um circuito entre a escola e a sociedade – uma
produz a outra -, qualquer intervenção que modifique um de seus termos tende a provocar
uma modificação na outra.”.
Morin (2012) assevera que é necessário compreender a autonomia usufruída pelos
adolescentes em relação à cultura familiar e à cultura escolar, depois dos anos 1960-70. Em
síntese, de acordo com este autor, é preciso criar as condições para que os dois universos,
mutuamente, se conheçam e se reconheçam, uma vez que estão sobrepostos um ao outro,
porém sem se reconhecer.
Nesse processo de conhecimento e reconhecimento, há uma influência devastadora, na
contemporaneidade, da cultura de mídia sobre a família e a sociedade, diante da qual o
professor deve se posicionar.
Enfim, o círculo da docência não deveria fechar-se, como uma cidadela
sitiada, sob o bombardeio da cultura de mídia, exterior à escola, ignorada
e desdenhada pelo mundo intelectual. O conhecimento dessa cultura é
necessário não só para compreender os processos multiformes de
industrialização e supercomercialização culturais, mas também o quanto
das aspirações e obsessões próprias a nosso ‘espirito de época’ é
traduzido e traído pela temática das mídias. A esse propósito, em vez de
ignorar as séries de televisão – enquanto os alunos se instruem por elas -,
os professores mostrariam que, por meio de convenções e visões
estereotipadas, elas falam, como a tragédia e o romance, das aspirações,
temores e obsessões de nossas vidas: amores, ódios, incompreensões,
mal-entendidos, encontros, separações, felicidade, infelicidade, doença,
34
morte, esperança, desespero, poder, traição, ambição, engodo, dinheiro,
fugas, drogas. (MORIN, 2012, p. 80).
Mesmo antes de chegar à adolescência, na fase infantil, há uma atribuição para o professor,
a qual ressalta Morin (2012, p. 78) “Como as crianças são imersas, desde muito cedo, na
cultura de mídia, televisão, videogames, anúncios publicitários etc.; o papel do professor,
em vez de denunciar, é tornar conhecidos os modos de produção dessa cultura.” (MORIN,
2012, p. 78).
A exemplo de Morin, Guattari e Rolnik (1993) também se referem a educação na tenra
idade, e afirmam que uma criança de dois anos, ao organizar o seu mundo, ao construir seu
próprio modo de entender as relações sociais, de interagir com outras crianças e com os
adultos, participa, a seu modo, da resistência molecular. E com que a criança se depara?
Com a família, a televisão, os sistemas escolares que funcionam como equipamento de
subjetivação capitalística. Desta forma, a micropolítica dessa criança acontece com as
pessoas que estão numa circunstância de modelização em relação a ela.
Quando as crianças ingressam nos sistemas escolares, com quais professores ela se depara,
se eles resistem a subjetivação capitalística terão a oportunidade de trabalhar com as
mentes tenras, despertando-lhes o espírito crítico e questionador, preservando sua
singularidade. Desta forma entendemos o que Guattari e Rolnik (1993) querem dizer, ao
afirmar que é há condições para subverter a presente situação. Aqueles que vivenciaram,
com seriedade, outros métodos educacionais, verificaram que é possível desmontar essa
estrutura infernal. Com outra forma de abordagem, a maneira de ser, a sensibilidade e a
riqueza de expressão própria da criança pode ser relativamente preservada.
A seguinte citação de Antônio (2013, p.16) corrobora os pensamentos de Guattari e
Rolnik: “Entretecida de muitas vozes, a criança precisa – ao seu modo, à sua medida – ir
constituindo sua voz própria, de sujeito entre sujeitos. Um sujeito que elabora
conhecimento, desenvolve uma concepção de mundo, tem o que dizer e precisa de
diálogos.”.
No contexto da citação de Antônio, é muito oportuno fazer uma breve menção ao relatório
para a UNESCO da comissão internacional sobre educação para o século XXI, presidida
por Jacques Delors:
35
Aprender a ser, para desenvolver, o melhor possível, a personalidade e
estar em condições de agir com uma capacidade cada vez maior de
autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Com essa
finalidade, a educação deve levar em consideração todas as
potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético,
capacidades físicas, aptidão para comunicar-se. (DELORS, 2010, p. 31).
Ao considerar um dos pilares da educação, na citação acima, quando diz que o sujeito deve
desenvolver a autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal, somos levados a
pensar não somente nas crianças, mas também nos adolescentes, jovens e adultos e em sua
relação com a educação, não só no ensino fundamental e médio, como também na
universidade. Morin, confirma esta ideia, ao discorrer sobre a missão do ensino superior:
Aqui, reencontramos a missão transecular, em que a Universidade
convoca a sociedade a adotar sua mensagem e suas normas: ela inocula
na sociedade uma cultura que não foi feita para as formas provisórias ou
efêmeras do hic et nunc, mas para ajudar os cidadãos a viverem seu
destino hic et nunc; ela defende, ilustra e promove, no mundo social e
político, valores intrínsecos à cultura universitária – autonomia da
consciência, a problematização (com a consequência de que a pesquisa
deve ser sempre aberta e plural), o primado da verdade sobre a utilidade,
a ética do conhecimento; donde essa vocação expressa pela dedicatória
no frontispício da Universidade de Heidelberg: ‘À mente viva.’.
(MORIN, 2012, p.82).
Os professores estão diante do desafio de educar num contexto que contribua para que as
novas gerações desenvolvam suas singularidades, resistindo aos vetores de subjetivação
capitalística, conhecendo e transformando de modo complexo, crítico e solidário a sua
condição de vida.
1.9 Professores – Ouvir ou Olvidar? Eis a Questão!
Quando o professor é levado à reflexão e se conscientiza da relevância de seu papel, ele
pode buscar maneiras de subverter os sistemas de modelização, de levar a efeito os sete
saberes. Não tomar esta posição é olvidar a convocação, distanciando-se do fazer.
Nas asserções de Morin sempre há vínculos entre o pensar e o fazer. Critelli (2007)
encontra a mesma preocupação em Hannah Arendt, que não se conformava com o
36
distanciamento entre o pensar e o agir, entre filosofia e política, e creditava o
distanciamento entre o pensar e o fazer à origem das dificuldades e da falta de significado
para a vida política. Critelli discorre um pouco mais sobre este assunto na citação abaixo.
De onde retiraria o pensar seus assuntos se não fosse da vida ativa dos
homens? O agir abre, para o pensar, suas possibilidades. Mas é o pensar
que confere ao agir o seu sentido e prepara os homens para suas escolhas.
Ambos os modos de vida se interdependem inexoravelmente.
(CRITELLI, 2007, p.80).
Conforme Critelli (2007), há um pressuposto central nas obras de Arendt, o qual ela grifa
junto com Heidegger: todo acontecimento é sempre resultado de uma convocação (nos
termos de Heidegger, o existir é uma correspondência aos apelos do ser).
É nessa correspondência com as demandas da existência que Arendt vê a
faculdade do pensamento se multiplicar em atos diferentes entre si. Cada
ato é, na verdade, uma resposta a convocações específicas do viver. Entre
eles, o conhecimento, a compreensão e o pensamento propriamente dito.
O conhecimento é um ato do pensar que corresponde à necessidade de
definir e estabelecer verdades permanentes que nos permitem dar
andamento à vida [...] A compreensão é um ato de pensar possível a todos
os homens, e não apenas aos homens que detêm o conhecimento, como
cientistas e especialistas. Ela se põe em movimento durante toda a vida
dos homens, e é infindável, convocando-os toda vez que alguma ruptura
com a vida habitual acontece [...] (CRITELLI, 2007, p. 80].
No que diz respeito a essa convocação, realçada por Critelli, encontramos correspondência
nos pensamentos de Almeida e Moraes (2012), ao proclamarem que os educadores, quando
abastecidos pelo ímpeto de mudanças na sociedade, sempre se apresentaram como
visionários de futuros mais igualitários e justos. Atualmente, o dia-a-dia de trabalho
excessivo e baixos salários não são motivadores, contudo urge despertar as reservas dos
sonhos utópicos possíveis. Dentre as atitudes que não podemos mais aguardar, uma delas é
a de reacender a esperança no docente. Inflamados pela esperança, poderão atuar a fim de
que a cabeça e o coração de nossos estudantes se ergam para uma consciência política e
planetária renovada, bem como para uma nova inteligibilidade da aventura humana, que
tenha condições de transpor as barreiras e os determinismos.
37
1.10
Grade Curricular – O Cárcere de Vozes
Ao iniciar o trabalho pedagógico e se deparar com o currículo escolar, o professor deve
levar em consideração o propósito que o currículo carrega em seu bojo.
Jorge Ramos de Ó (2007), ao desenvolver as ideias de Foucault, no artigo que tem como
título O Governo do Aluno na Modernidade, afirma que os sistemas estatais de ensino
foram constituídos de acordo com a regra da governamentalidade. Esta colocação já nos dá
algumas pistas sobre a elaboração do atual currículo escolar.
Os sistemas estatais de ensino mencionados por Foucault seguem o modelo de escola
dominante que, segundo Oliveira (2008), lançou suas bases na ciência moderna, no
estabelecimento do saber formal como forma exclusiva de saber, e na crença de que o
papel da escola é “erguer” o aluno da “cultura popular” à cultura elevada, o que
desencadeou a inferiorização discriminatória dos diferentes, tornando universal
particularismos na sistematização dos programas e conteúdos de ensino, realçando seu
compromisso com o programa capitalista. Percebemos, nesta asserção de Oliveira, que o
currículo escolar ao contemplar particularismos em detrimento do todo, foge do saber
complexo por motivos espúrios.
Essa colocação de Oliveira é reforçada por Santomé (2013), quando realça que as escolas
produzem e reproduzem discursos discriminatórios; porém, na proporção em que elas têm
a função social de educar, podem e devem ser mais atuantes, como espaço de denúncia e
resistência dos discursos e atividades que prosseguem legitimando a marginalização no
mundo, o que também ocorre dentro de seus muros.
Segundo Santomé (2013), a educação e o acesso ao conhecimento assumem enorme
importância nas novas sociedades do conhecimento e da informação, o que implica na
existência de maiores interesses, do mundo capitalista, voltados para o que acontece nas
instituições de ensino. Esses “interessados” incluem recomendações, propostas e
exigências, em suas agendas, as quais são inclusas nas matrizes curriculares e nos livros
que serão usados em sala de aula.
Os livros didáticos selecionam, organizam e interpretam as informações
para apresentá-las como verdades objetivas e neutras, ou seja, como o
conhecimento e a verdade oficial. Raramente são oferecidas informações,
interpretações ou bibliografias que questionam a verdade escolhida para o
manual. (SANTOMÉ, 2013, p. 229).
38
As vozes da educação anseiam por libertar-se dos conceitos de livros manipuladores e das
matrizes curriculares, que antigamente se denominavam grades curriculares, nome que faz
jus a sua função. Neste processo de alforria, o papel do professor é promover um modo de
pensar livre e aberto. E justificando tal atitude, Torre nos apresenta uma razão
extremamente pertinente, na seguinte citação: “Isto porque não somos somente seres
físicos ou intelectuais, mas somos simultaneamente físicos, biológicos, sociais, culturais,
psíquicos e espirituais. E todas estas dimensões se influenciam mutuamente” (MORAES;
TORRE, 2004, p. 83).
Diante desta colocação de Moraes e Torre, Santomé (2013) nos alerta, declarando que
devemos estar atentos à certa inércia em um setor do corpo docente composto com
modelos completamente voltados para às instituições escolares, oriundos de uma educação
fragmentada, com a qual não romperam, e por isso mesmo com tendência a se especializar.
Estes não conseguem ir além do ensino de uma relação de conteúdos estipulados pelas
administrações da educação e interpretados pelas editoras de produtos didáticos.
Essa inércia que Santomé flagra é confirmada por Morin (2012, p.99) “A imensa máquina
da educação é rígida, inflexível, fechada, burocratizada. Muitos professores estão
instalados em seus hábitos e autonomias disciplinares.”.
Nas colocações de Morin e Santomé, é possível inferir que não são todos indiferentes, isso
nos deixa esperançosos. Certamente há um grupo de professores que está disposto,
conforme Morin (2011), a se fortalecer para as batalhas vitais rumo à lucidez.
Essas batalhas, que Morin traz a lume, se coadunam com o ponto de vista de Adorno,
destacado por Sass (2009), quando proclama que não é suficiente boa vontade humanitária
de professores bem-intencionados, com o propósito de suscitar a consciência crítica do
aluno, sem trabalhar as condições objetivas que levam a barbarização do homem, por viver
num mundo cuja mola propulsora é a competição, o egocentrismo.
É necessário sair do âmbito da “boa intenção” e promover reflexões a respeito dos temas
complexos da vida, que conduzam à lucidez. Creio que o desenvolvimento da consciência
crítica preconizado por Adorno pode ocorrer pelas vias do diálogo, dos debates. Contudo,
conforme Santomé (2013), não existe uma cultura de debates nas salas de aula, pois estas
mais doutrinam do que educam. O debate é imprescindível na dinâmica educacional,
principalmente no estudo dos tópicos culturais de modo geral, mas também pontualmente,
39
quando são focados temas que suscitam controvérsias a respeito do contexto político,
social e científico.
Além da ausência dos debates percebida e realçada por Santomé, Benjamin (1994)
acrescenta uma outra perda: a arte de narrar. Segundo este autor, após a guerra mundial,
evidenciou-se um fenômeno que perdura. Os sobreviventes dos combates retornaram,
obviamente, sem o desejo de comentar os fatos ocorridos, emudeceram. Em uma sociedade
dilacerada, a arte de narrar entra em declínio, e como resultado, conforme Benjamin, a
sabedoria – a face épica da verdade – entrou em extinção. Hoje valoriza-se outro tipo de
informação, na qual o novo é imprescindível e deve ser plausível. Em contrapartida, as
narrativas recorrem ao miraculoso, não precisam da novidade, seu tempo é outro. Para este
autor, as narrativas têm a ver com a essência viva da existência, a qual tem um nome:
Sabedoria.
Os diálogos, debates e a arte de narrar, que Benjamin lamenta estar se extinguindo,
deveriam ser resultado de um intercâmbio entre escola, família e comunidade. Mas para
que isso ocorra é necessário que a matriz curricular contemple um espectro maior de
possibilidades, libertando-se do cárcere no qual se encontra reclusa. E esta alforria só irá
acontecer se houver ligações entre as disciplinas, e das disciplinas com as demais
dimensões da vida. Segundo Morin (2012), deveria ser permitido ligações e solidariedades
entre todos os territórios da cultura das humanidades e também da científica. Um aspecto
vital, em todos esses territórios, é valorizar o “pensar bem”, o que é próprio da inteligência
geral, que concebe o complexo.
Moraes (2008) corrobora o pensamento de Morin, quando este defende as ligações entre os
diversos territórios, conforme lemos no parágrafo acima, e ela o faz desenvolvendo a ideia
de inter e transdisciplinaridade, conforme vemos na seguinte citação:
Consciente ou não, nosso ser é operacionalmente inter e transdisciplinar,
não tanto como uma circunstância aleatória, mas como uma exigência
intrínseca constitutiva e operacional de nossa corporeidade envolvida no
processo de conhecer. A construção do conhecimento envolve as
dimensões sensoriais, intuitivas, emocionais e racionais de forma não
hierarquizada nem dicotômica, mas sim de forma integrada, globalizada e
complementar. Com a interdisciplinaridade integramos, e com a
transdisciplinaridade transcendemos a subjetividade objetiva do sujeito
que conhece, a partir da complexidade constitutiva dos processos e
fenômenos da vida. (MORAES, 2008, p.65).
40
Como o professor deve lidar com a inter e transdisciplinaridade, trazida a lume por
Moraes? Morin procura, com clareza de linguagem, tornar isso compreensível. Por
exemplo, o ensino matemático, segundo Morin (2012), deve ser conduzido para aquém e
além do cálculo, e progressivamente, no decorrer dos anos, será necessário valorizar o
diálogo entre o progresso dos conhecimentos científicos e o pensamento matemático, tendo
sempre consciência dos limites da formalização e da quantificação.
Morin (2012) realça que o professor de filosofia, por sua vez, deve estender a sua
capacidade de reflexão aos conhecimentos científicos, mas também à literatura e à poesia,
abastecendo-se, simultaneamente, de ciência e literatura. Complementando a ideia de
Morin, Japiassu faz a seguinte declaração: “Não podendo ser considerada uma ‘disciplina’
como as outras, a filosofia não reconhece nenhum objeto como lhe sendo ‘exterior’ e
escapando à sua atividade reflexiva.” (JAPIASSU, 2006, p.175).
Dando sequência a linha de raciocínio de Morin, apresento a ótica de Benjamin, abordada
por Kramer, sobre o papel do filósofo ou até mesmo do historiador, para que a disciplina
de filosofia ou história não apareça nos recônditos escolares de forma estanque, insípida,
sem sabor, sem saber.
O filósofo se refere ao presente como um momento revolucionário e ao
passado como obra inacabada sobre a qual devemos trabalhar como
intelectuais, professores, pesquisadores, historiadores, pensadores do
nosso tempo. A tarefa que temos é tornar presente o tempo escondido sob
ruínas da história universal, vinculando-nos aos que nos precederam e
foram vitimados pela barbárie (da guerra, da civilização, da opressão de
uma classe social por outra). Benjamin critica a história como
continuidade, procurando na descontinuidade momentos críticos, quando
mudanças podem ocorrer. Mais do que como ‘o que foi’, a história é vista
como um ‘a se fazer’, como ação possível. O entrecruzamento do tempo
se opõe, assim, à crença num passado imutável, num presente imutável,
num futuro também imutável.” (KRAMER, 2008, p.18).
Ainda no contexto das disciplinas, no qual me refiro a Morin e Benjamin, é oportuno
recorrer a Bordelois, quando discorre sobre a linguagem: “[...] a linguagem não é apenas
usada, mas escutada pelos grandes poetas, e desta escuta e desta reinterpretação surgem os
poemas mais memoráveis de nossa história, e não estou falando da história das literaturas
particulares, mas da história da espécie.” (BORDELOIS, 2005, p. 13)
41
É interessante conceber um breve paralelo entre Bordelois e Benjamin, no que diz respeito
à linguagem. Para tornar prática a proposta de Bordelois é necessário que haja uma
linguagem em prontidão, como de forma inspiradora menciona Benjamin, ao relacionar
uma educação em prontidão com uma linguagem em prontidão.
Uma educação sempre em prontidão, alerta, arguta, cotidiana, como
Benjamin se refere à linguagem, no fragmento que abre o livro Rua de
Mão Única, em que ele diz: ‘Só uma linguagem de prontidão se mostra
atuante à altura do momento. As opiniões, para o aparelho gigante da
vida social, são o que é o óleo para as máquinas; ninguém se posta diante
de uma turbina e a irriga com óleo de máquina. Borrifa-se um pouco em
rebites e juntas ocultos, que é preciso conhecer’. (KRAMER, 2008, p.
25).
A metáfora desta citação é bem esclarecedora, e reforça a importância do diálogo, da
reflexão, que podem ser levados a efeito pelo professor, por meio das próprias disciplinas.
As opiniões, como menciona Benjamin, devem ser resultado de uma linguagem em
prontidão, vasculhando os cenários e os bastidores do aparelho gigante da vida social,
porém, tendo em mente as asserções de Morin (2011), quando diz que o sujeito é
biológico, psíquico, social, afetivo e racional, tudo isso ao mesmo tempo. Também declara
que a sociedade abarca as dimensões sociológica, econômica, histórica, religiosa, etc.
Tomamos consciência, então, de que o ser humano e a sociedade são unidades complexas,
multidimensionais. Atuar, tendo estes aspectos em mente, é entender que o conhecimento
pertinente é multidimensional, e nele o docente precisa inserir os dados das unidades
complexas.
Percebemos que é inconsistente isolar as partes umas das outras, bem como isolar uma
parte do todo. Morin (2012) afirma ainda, por exemplo, que a dimensão econômica, nesta
ótica, está em inter-retroação constante com todas as demais dimensões humanas; e mais, a
economia carrega em seu bojo, de forma “hologrâmica”, anseios, desejos e paixões dos
seres humanos que transcendem os meros interesses econômicos.
Faz-se oportuno voltar a mencionar a citação de Morin (2011, p.36): “Complexus significa
o que foi tecido junto [...]”. O professor, ao se deparar com o currículo escolar, deve ter o
“complexus” em mente e, desta forma, estar preparado para promover a “inteligência
geral”, como diz Morin (2011), pronta para se referir ao contexto, ao complexo, de forma
multidimensional.
42
Seguindo a linha de raciocínio de Edgar Morin, Boaventura Santos faz a seguinte
declaração:
[...] qualquer que seja a opção epistemológica sobre o que a ciência faz, a
reflexão sobre a ciência que se faz não pode escapar ao círculo
hermenêutico, o que significa, antes de mais, não podemos compreender
qualquer das suas partes (as diferentes disciplinas científicas) sem termos
alguma compreensão de como “trabalha” o seu todo, e, vice-versa, não
podemos compreender a totalidade sem termos alguma compreensão de
como “trabalham” as suas partes. (SANTOS, 2002, p. 10).
A relação do todo/partes, sob a perspectiva que Morin e Boaventura desenvolvem, faz
profundo sentido quando se relaciona com a condição humana, conforme pontua Morin:
“Assim, todas as disciplinas, tanto das ciências naturais como das ciências humanas,
podem ser mobilizadas, hoje, de modo a convergir para a condição humana.” (MORIN,
2012, p. 43).
Ao considerar as ideias dos autores acima citados, concordo com Oliveira (2008) quando
afirma que existe um potencial para lidarmos com os conteúdos escolares e seus modos de
organização de forma bem diversa daquela que vem predominando historicamente; daí a
relevância da reflexão acerca da questão do conhecimento, seus processos de criação e
transmissão que transcendam o âmbito reducionista da racionalidade cognitivoinstrumental e da ciência moderna.
Aos professores, urge transpor os aguilhões curriculares, promovendo a “inteligência
geral”, de forma multidimensional, capaz de suscitar agenciamentos democráticos que
flagrem os erros e as ilusões deste mundo complexo e contrariem os interesses
subterrâneos do sistema hegemônico.
1.11
Professores Diante de Escutas que Evocam Saberes e Fazeres
Diante das demandas, é possível que os professores fiquem perplexos, ameaçados por
temores. Como iniciar? Almeida e Moraes (2012) lembram um impasse citado por Marx,
em sua tese Feuerbach, e recuperado por Edgar Morin: “Quem educará os educadores?”.
Estas autoras declaram que essa dificuldade é a pedra no sapato da problemática da
educação de nosso tempo, e que muitas vezes dificulta uma abordagem mais aprofundada
43
dos Sete Saberes em sala de aula. Porém, elas comungam com a máxima do poeta
Hölderlin: “onde cresce o perigo, cresce também o que salva”.
Diante desse impasse que Almeida e Moraes trazem à tona, Batalloso (2012) declara que
não é preciso que alguém nos prescreva uma receita pedagógica ou inculcação ideológica,
trata-se de saber conjugar, de forma complexa, os problemas materiais e as carências de
nossos contextos locais e globais, sem prescindir do desafio de aprender a viver de maneira
autônoma.
Percebemos que os professores não receberão uma receita pedagógica pronta, pois isso não
diz respeito ao pensamento complexo, à inteligência geral. Batalloso (2012) lança luz sobre
esta questão, quando afirma que se os problemas mais significativos da vida, do planeta e
dos indivíduos são sempre globais, pertinentes aos contextos e às relações, precisamos
buscar estratégias e ações que possibilitem contextualizar, unir e religar saberes,
disciplinas e conhecimentos.
E é a educação, e especialmente todas suas instituições formais e não
formais, privadas ou públicas, presenciais ou virtuais, a que corresponde
assumir a responsabilidade de construir uma “ecologia de saberes”, tendo
como fim e meio a aprendizagem e o ensino da condição humana, já que
do contrário, dificilmente poderemos manifestar no cotidiano e
concretizar que outro mundo é realmente possível e necessário.
(BATALLOSO, 2012, p. 149).
Batalloso, ao discorrer sobre as ideias de Morin, impele professores comprometidos a
perceberem a urgência de buscar uma formação que os capacite a educar vislumbrando e se
deslumbrando com a complexidade, para que possam, no dizer de Morin (2012) “repensar
a reforma, reformar o pensamento”.
Essa formação, que busca a complexidade, Conforme Galvani e Pineau (2012), só pode
acontecer por meio de uma experiência da complexidade. É inconcebível ficar circunscrita
a currículos de formação teórica. O pensamento complexo diz respeito a autorreferência e a
colaboração sistêmica dos saberes. Não é possível sem a reflexividade colaborativa dos
que se formam, para reconectar e transformar, de forma dinâmica, o fazer, a teoria e a vida
poética.
Nossas vidas, nossas experiências, nossas práticas são tecidas nessa
realidade complexa e transdisciplinar. Formar-se em complexidade pode
implicar antes em desaprender e dissolver os saberes redutores das
identificações. Formar-se em transdisciplinaridade é aprender a
44
reconhecer os diferentes níveis de realidade: práticos, teóricos, mas,
também, as sutilezas da vida poética. Formar-se em complexidade é
aprender a reconhecer o concreto do princípio dialógico presente nas
relações autonomia/dependência que acontece nas interações entre o si
(auto), o outro (sócio) e o cosmos (eco). (GALVANI e PINEAU, 2012,
p. 217).
Percebemos que este é um processo de autoformação. Galvani e Pineau (2012) pontuam
que a autoformação acontece na emancipação e no descontinuamento, ao se tomar
consciência, por meio da reflexão, do que forma o sujeito.
Galvani e Pineau (2012) acrescentam ainda que é possível ser autor do próprio saber em
articulação com os saberes já produzidos, de forma crítica. Morin (2012, p. 47) ponteia que
“[...] ensinar a viver necessita não só dos conhecimentos, mas também da transformação,
em seu próprio ser mental, do conhecimento adquirido em sapiência, e da incorporação
dessa sapiência para toda a vida [...]”.
Batalloso (2012) chega à conclusão de que a condição humana é ensinada por meio de
experiências vitais, de compromisso em relação a tudo que diz respeito à nossa
contraditória e complexa natureza, por meio de um processo de autoaprendizagem. Desta
forma entendemos que não é possível conceber o tal ensino/aprendizagem sem reconhecer
o outro em seu legítimo outro, sem suscitar e desenvolver processos afetivos e amorosos,
marcados pelo diálogo, interação e que são, ao mesmo tempo, autoeco-organizadores.
1.12
Ecos do Coração
Fotografia 1 - Obra do artista mexicano Gabriel Orozco
Denominada Minhas mãos são meu coração.
45
Fonte: Gabriel Orozco, Minhas mãos são meu coração, 1991. Reprodução
Não poderia concluir este capítulo sem abordar a relevância dos sentimentos, da
afetividade e do amor na educação. Ao aludir a tal tema, é enriquecedor citar Miguel Almir
Araújo, eu o faço a seguir.
Os sentimentos, como expressão de estados de dis-posição mais intensivos e alargados de nosso campo afetivo, incidem na criação de
vínculos e de laços en-volventes que interligam os indivíduos. São
expressões ligantes que nos unem às coisas e, sobretudo, aos seres
humanos. São elos e feixes que fomentam e nutrem os afetos. Esses
afetos matizam as relações interpessoais mediante um campo magnético
que nos sinergiza e entrelaça. (ARAÚJO, 2008, p. 85).
Este lampejo de Araújo confirma a ideia de Morin (2012), quando este assevera que a
explicação, obviamente, é necessária à compreensão intelectual, porém não é suficiente
para que as pessoas compreendam. Há um saber que é compreensível e está embasado
sobre o diálogo e a empatia, simpatia mesmo.
46
Morin alude a questão da explicação porque este aspecto tem sido um dos mais enaltecidos
nas escolas em detrimento de outros como os que ele menciona. White reforça esta ideia na
citação abaixo:
O professor deve ter aptidão para o seu trabalho. Deve ter a sabedoria e o
tato exigidos para tratar com as mentes. Por maior que sejam seus
conhecimentos científicos, por excelentes que sejam suas qualificações
em outros ramos, se não alcançar o respeito e confiança de seus alunos,
debalde serão seus esforços. (WHITE, 1977, p. 279).
Para obter o respeito dos alunos, que White ressalta, não basta apenas habilidades técnicas
e didáticas, é preciso envolvimento humano. Morin (2012), nesta linha de raciocínio, diz
que compreendemos as lágrimas, o sorriso, o temor, a ira, ao ver o ego alter como alter
ego, devido a nossa capacidade de vivenciar as mesmas sensações que ele.
Compreendemos o choro de uma criança não por medir o grau de salinidade de suas
lágrimas, mas por nos identificarmos com ela e identificá-la conosco.
Esta identificação de que fala Morin também é aludida por Antônio (2009, p. 61): “Nas
relações de ensinar e de aprender, especialmente no trabalho de cuidar dos alunos que
apresentam dificuldades de aprendizagem, também é primordial a empatia [...]”.
Ainda na linha de raciocínio de Araújo e Morin, Crochik (2009) proclama, ao discorrer
sobre Adorno, que a identificação é entremeada de afeto; e que o amor deveria estar
presente na educação das crianças, contudo deve ser espontâneo, não fingido, pois a
falsidade faz mais mal do que bem.
A afirmação de Crochik, acima, faz-nos refletir e remete-nos a uma preocupação pontuada
por Santomé (2013), quando afirma que nos âmbitos da educação é comum encontrarmos
professores dizendo que quando se gosta dos seus alunos, tudo se consegue. Refletindo um
pouco mais sobre essa fala, percebemos que esse tipo de expressão pode ser muito
opressiva para os indivíduos que recebem esse afeto, pois muitas formas de colonização e
inibição são levadas a efeito sob a rubrica do amor.
A asserção de Santomé só reforça a relevância do amor altruísta, solidário, que é a liga dos
relacionamentos. Morin (2012) assinala que Platão já havia sublinhado a condição
imprescindível a todo ensino: o eros, o qual é, ao mesmo tempo, desejo, prazer e amor;
desejo e prazer de ensinar, amor pelo saber e amor pelos estudantes. A alegre expectativa é
47
que tal atitude pode despertar o desejo, o prazer e o amor no aluno. Na ausência do amor,
só há dificuldades de carreira e de dinheiro para o professor, e inevitavelmente de tédio
para os alunos.
Neste assunto há uma interessante correspondência entre o pensamento de Morin e
Adorno, como vemos a seguir:
Se não fosse pelo meu temor em ser interpretado equivocadamente como
sentimental, eu diria que para haver formação cultural se requer amor; e o
defeito certamente se refere à capacidade de amar. [...] Mas seria melhor
que quem tem deficiências a esse respeito não se dedicasse a ensinar.
(ADORNO apud CASCO, 2009, p.68).
Morin (2011) declara que se o racionalismo não fizer conta da subjetividade e da
afetividade será irracional. A capacidade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo
aniquilada, se não for entremeada pela emoção. Há uma íntima relação entre a afetividade
e a inteligência. A compreensão, necessariamente, inclui um processo de identificação e
empatia.
Antônio (2009), da mesma forma que Morin, grifa a palavra empatia, pois acredita que, no
âmbito educacional, a expressão dessa maneira de ser é imprescindível para a
humanização. “Sem a empatia, sem o sentir com o outro, sem o colocar-se no lugar do
outro, não há formação humanizadora.” (ANTÔNIO, 2009, p. 59).
Conforme Antônio (2009), para que haja educação humanizadora é preciso que as pessoas
se reconheçam umas às outras, e umas nas outras, o que denota compreensão do
significado da unidade e da diversidade do ser humano. Essa compreensão é fundamental
para concebermos a educação da sensibilidade e da inteligência.
É necessária ainda outra consideração, outro cuidado: para o necessário
reaprender a pensar, é imprescindível religar inteligência e sensibilidade,
o que significa também reeducar tanto uma como outra; no entanto, entre
o racional e o emocional, não podemos cair em novas dicotomias, que
apenas invertem o que nos foi legado pelos vários positivismos e
mecanicismos. Assim, não se trata de privilegiar o pathos sentimental,
colocando-o no lugar da racionalidade instrumental. Trata-se de religação
de inteligência e sensibilidade, religação que transcende tanto os
sentimentalismos confusos como as racionalizações manipuladoras. Uma
razão sensível, uma sensibilidade racional. A unidade inseparável entre o
cognitivo e o afetivo. Desse modo, podemos fazer a reeducação do
48
sensitivo e do intelecto, vitalmente necessária à educação e ao
conhecimento. Agora, não há tempo para a curvatura da vara. Há
demasiada urgência. Ainda temos de salvar o que nos salva. (ANTÔNIO,
2009, p. 63).
1.13
Melodias No Alvorecer de Um Novo Dia
Somos envolvidos por inefáveis ressonâncias, ao imaginar o alvorecer de um novo dia, no
qual, como diz Almeida e Moraes (2012), seja possível reaver as relações entre os
indivíduos, a sociedade, e a natureza, bem como o pleno exercício da compreensão e da
democracia. E para que este ímpeto se torne real, é preciso, como afirma Almeida e
Moraes (2012), a consciência de educador, que compreende a relevância de seu
envolvimento com os estudantes, com os quais partilha um longo período de sua vida.
Para viver nesse novo tempo é preciso, de acordo com Almeida e Moraes (2012), acreditar
na condição humana, no amor, na fraternidade, na possibilidade de superação e de
transcendência do ser humano. É imprescindível que haja uma crença, certeza capaz de
alimentar uma ética civilizatória, voltada para o mundo, embasada na solidariedade, na
liberdade, na humildade, na responsabilidade individual e coletiva – nas forças que unem e
não de disjunção. Esta ética só poderá florescer nas vozes dos valores e das culturas,
alimentada pelo diálogo ininterrupto entre unidade e diversidade, razão e emoção, ciência e
tradição.
No próximo capítulo, procuro remover o véu que mascara a globalização hegemônica, a
qual produz padrões de existências, e torna invisíveis comunidades como a dos surdos, que
são irrelevantes para esse jogo de interesses. Abordarei o trabalho de Boaventura de Sousa
Santos sobre a sociologia das ausências: uma reação que tem como propósito visibilizar
saberes tornados ocultos, que dizem respeito a diversidade humana, imprescindíveis a uma
educação que humaniza.
CAPÍTULO 2
VOZES AUSENTES
49
É na minha disponibilidade permanente à vida a que
me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoções,
curiosidade, desejo que vou aprendendo a ser eu
mesmo em minhas relações com o contrário de mim.
Paulo
Freire
Somos verdadeiramente cidadãos, dissemos, quando
nos sentimos solidários e responsáveis. Solidariedade
e responsabilidade não podem advir de exortações
piegas nem de discursos cívicos, mas de um profundo
sentimento de filiação (affiliare, de filius, filho),
sentimento matripatriótico que deveria ser cultivado
de modo concêntrico sobre o país, o continente, o
planeta.
Egar Morin
Fotografia 2 - Jeito de aprender/povos indígenas
Fonte: http://img.socioambiental.org/d/372183-2/00304_2004_6.jpg?g2_GALLERYSID=TMP_SESSION_ID_DI_NOISSES_PMT
Acesso: 19/05/2014
Os avanços tecnológicos, especialmente a mídia eletrônica e a globalização da economia,
segundo Rolnik (1997), aproximam universos de toda espécie, localizados em qualquer
ponto do mundo. Independentemente de sua morada, as subjetividades são tocadas por
50
afetos desta difusão mutante de universos; cartografias cambiantes são delineadas por uma
incessante mestiçagem de forças e coloca em xeque seus contornos habituais.
Rolnik (1997) pontua que tudo nos dá a entender que haveria uma proliferação da criação
individual e coletiva, pois inúmeras cartografias de forças requerem novas formas de viver,
muitos são os recursos para criá-las e incontáveis os universos possíveis. Por exemplo,
forma-se, através das infovias, uma comunidade do tamanho do planeta, que elabora e
partilha suas ideias, gostos e decisões, numa interminável polifonia eletrônica; uma
subjetividade que se constrói no intercâmbio da multiplicidade de forças deste coletivo
anônimo. Uma democracia em tempo real estaria emergindo, administrada, em escala
mundial, por um sistema de autogestão? Estaria chegando ao fim a figura moderna da
subjetividade, que crê na estabilidade e sua referência identitária, a qual agoniza desde o
fim do século passado?
Mas, isso não é assim tão simples, assevera Rolnik (1997), pois a mesma globalização que
incrementa as misturas e pulveriza as identidades, também produz kits de perfis-padrão,
conforme as órbitas do mercado, a fim de serem consumidos pelas subjetividades,
independentemente de contexto geográfico, cultural, etc. Identidades globalizadas
flexíveis, que cambiam de acordo com as reações do mercado, e com a mesma velocidade,
tomam o lugar da identidade de culturas locais.
2.1 O Multicultural nas Mãos do Ventríloquo
Conforme Duschatzky e Skliar (2001), uma das marcas mais frequentes da atualidade é o
travestismo discurso. No mesmo ritmo em que acontece as mudanças tecnológicas e
econômicas, os discursos sociais são revestidos de novos vocábulos e se adequam
harmonicamente aos propósitos dos enunciadores do momento. A fim de ocultar uma
ideologia de assimilação, o multiculturalismo conservador emprega abundantemente o
vocábulo diversidade.
O multiculturalismo torna-se discurso conservador quando a pergunta
pelas diferenças não é acompanhada por outra pergunta acerca da
articulação de fragmentos. E dizemos conservador porque o pensamento
fica desarmado para pensar a dimensão do sistema como totalidade
articulada. (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 129).
51
Desta forma, os grupos que integram esse bálsamo tranquilizante, que é a cultura, são via
de regra concebidos como agregados ou como aqueles que matizam, que conferem cor à
cultura dominante. Compreendido assim, o multiculturalismo é definido como o aval para
que os outros permaneçam sendo esses outros, contudo em um espaço de legalidade, de
oficialidade.
Duschatzky e Skliar (2001) fazem o seguinte questionamento: até que ponto as retóricas do
momento - como aquelas que pregam as bondades do multiculturalismo, que anunciam a
tolerância e o início de uma época de respeito aos outros – estão, de fato, propondo a
ruptura com relação as formas tradicionais em que a alteridade foi nomeada e
representada?
A indagação acima, pontuam Duschatzky e Skliar (2001), não é casual, ela surge numa
época de instabilidade discursiva, na qual ideias tais como identidade, cultura,
inclusão/exclusão, diferença e diversidade parecem ser naturalmente intercambiáveis, sem
ônus nenhum para quem “veste a camisa”, toma conta e se apodera das representações de
determinados grupos sociais.
Ao estudar sobre este tema, Duschatzky e Skliar (2001) sugerem pôr em suspenso
determinadas retóricas a respeito da diversidade e asseveram que se trata, em certas
circunstâncias, de expressões brandas, de eufemismos que deixam nossas consciências
tranquilas ou iludem, dando a impressão de que contemplamos profundas transformações
sociais e culturais, simplesmente porque elas se protegem em palavras e expressões da
moda.
2.2 Vozes Forjadas
Segundo Silva (2000), a definição - discursiva e linguística - da identidade e da diferença,
que dizem respeito às relações sociais, está sujeita a vetores de força, a relações de poder.
Elas não são meramente definidas, na realidade são impostas. Na disputa pela identidade
está entretecida uma disputa maior, por outros recursos materiais e simbólicos da
sociedade. O poder de afirmar a identidade e de enunciar a diferença não pode ser
considerado fora das relações mais amplas de poder. Nessas relações de poder surgem os
excluídos, para os quais são conferidas vozes, vozes forjadas, e sobre esse modo de
exclusão, encontramos uma ideia que complementa Silva em Duschatzky; Skliar:
52
A Modernidade construiu, neste sentido, várias estratégias de regulação e
de controle que, só em princípio, podem parecer sutis variações dentro de
uma mesma narrativa. Entre elas a demonização do outro: sua
transformação em sujeito ausente, quer dizer, a ausência das diferenças
ao pensar a cultura; a delimitação e limitação de suas perturbações; sua
invenção, para que dependa das traduções oficiais; sua permanente e
perversa localização do lado externo e do lado interno dos discursos e
práticas institucionais estabelecidas, vigiando permanentemente as
fronteiras – isto é, a ética perversa da relação inclusão/exclusão; sua
oposição a totalidades de normalidade através de uma lógica binária; sua
imersão e sujeição aos estereótipos; sua fabricação e sua utilização, para
assegurar e garantir as identidades fixas, centradas, homogêneas, estáveis
etc. (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 120)
Quando Duschatzky e Skliar (2001) utilizam a palavra tradução e traduzir, não o fazem no
sentido literal, mas sim no figurado, metafórico. Tradução como estratégia de
manipulação, como forma de usurpação das vozes dos outros que se transformam em
nossos modos conhecidos de dizer e nomear. A alteridade é necessária para melhor
configurar o próprio território, por meio de estratagemas que não aceitam formas híbridas
de identidade, proíbem a troca, negam a usurpação do território que corresponde à
normalidade. O outro é imprescindível, pois por meio dele, são reconhecidas as leis, as
instituições, a moral, a ética e a estética dos discursos e das práticas. Lançamos mão do
outro para dar nome à heresia, à mendicidade, para deixar claro que nós não somos os
bárbaros, hereges e mendigos.
Percebemos em Duschatzky e Skliar que o uso do outro atende ao egocentrismo, e este,
segundo Morin (2011), cultiva o engano de si mesmo, causado pela autojustificação,
autoexaltação e pela tendência de colocar sobre outrem, estrangeiro ou não, o motivo de
todos os males. O autoengano é uma dinâmica rotativa complexa de falsidade, sinceridade,
certeza, duplicidade, que nos faz perceber, de forma degradante, os atos e as falas dos
outros, e escolher aquilo que não é favorável a eles.
2.3 Razão Metonímica – A Voz da Parte como a Voz do Todo
53
Figura 1 - Obra do artista brasileiro Nelson Leirner
Sem título, da série Assim é ... se lhe parece. Data: 2003
Fonte: http://www.jornaljovem.com.br/edicao22/jovem48.php
Ao discorrer sobre os escritos de Boaventura Santos, Oliveira (2008) diz que a razão
metonímica é obstinada pela ideia de que existe apenas uma lógica que dita as condutas,
tanto do todo como das partes, e acredita na homogeneização todo/parte. Desta forma, cada
parte é considerada unicamente em referência ao todo que a abarca.
Oliveira (2008) assevera que Boaventura opõe-se a razão metonímica, pois saberes e
hábitos tidos como globais são, na realidade, localismos globalizados, isto é, são as formas
culturais dos detentores do poder impostas a todo o planeta. Para a razão metonímica, não
é possível qualquer das partes possa ser considerada fora da relação com o todo. Deste
modo, não se concebe que qualquer das partes possa ter vida própria que vá além de sua
relação com o todo.
Porque é uma razão insegura dos seus fundamentos, a razão metonímica
não se insere no mundo pela via da argumentação e da retórica. Não dá
razões de si, impõe-se pela eficácia da sua imposição. E essa eficácia
manifesta-se pela dupla via do pensamento produtivo e do pensamento
legislativo; em vez da razoabilidade dos argumentos e do consenso que
eles tornam possível, a produtividade e a coerção legítima.
Fundada na razão metonímica, a transformação do mundo não pode ser
acompanhada por uma adequada compreensão do mundo. [...] Esse
desconforto foi bem sentido por Walter Benjamin ao mostrar o paradoxo
54
que então passou a dominar – e domina hoje ainda mais – a vida no
Ocidente: o facto de a riqueza dos acontecimentos se traduzir em pobreza
da nossa experiência e não em riqueza. (SANTOS, 2006, p. 784).
Oliveira (2008), ao desenvolver a ideia de Boaventura Santos, menciona outro paradoxo, o
fato da vertigem dos acontecimentos, das mudanças se converter, com frequência, numa
sensação de marasmo. Esse paradoxo se faz notar devido à redução do tempo presente a
um momento efêmero, fugaz entre o que já não é e o que ainda não é. Desta forma, o
contemporâneo é apenas um recorte muito reduzido do simultâneo. Isto é, muito do que
acontece como experiência na contemporaneidade deixa de ser percebido como existente e
é considerado como passado.
A contracção do presente esconde, assim, a maior parte da riqueza
inesgotável das experiências sociais no mundo. Benjamin identificou o
problema mas não as suas causas. A pobreza da experiência não é a
expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a
arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência
que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a podemos
identificar e valorizar. (SANTOS, 2006, p. 785).
Oliveira (2008) pontua que para ampliar o mundo é preciso ampliar o presente, e isso
ocorre quando recuperamos a experiência desperdiçada, entretanto nós só a recuperaremos
através da crítica da razão metonímica. Somente por meio de um novo espaço-tempo, que
requer uma outra razão, poderemos conhecer e enaltecer a abundante riqueza do planeta.
O raciocínio de Boaventura Santos, explorado por Oliveira (2008), evidencia que existe
uma variedade dos modos de pensar e estar no mundo, que ultrapassa a realidade aceita
pela razão metonímica. Compreender esse fato é fundamental para todos os âmbitos da
educação, porém ele escapa às propostas curriculares oficiais e aos modelos pedagógicos
vigentes.
Em nome da cientificidade e da cultura ocidental burguesa, branca, conforme Oliveira
(2008), são desprezados outros modos de saber/fazer/pensar/sentir/estar no mundo.
A ideia de Oliveira é confirmada por Silva (2000), quando afirma que o recurso adotado,
talvez, com mais frequência, no dia-a-dia curricular e pedagógico da escola, é o de mostrar
aos alunos uma ideia distante e superficial das diversas culturas. Sob esta ótica, o outro é
55
visto como exótico, alvo da curiosidade. As relações de poder não são questionadas, ao
contrário são reforçadas, ao se produzir o outro pelas vias do exotismo e da curiosidade.
Via de regra, essa abordagem do outro é distante espacial e temporalmente, a fim de que
não haja risco de confronto e dissonância, pois não há lugar para questionamentos.
Segundo Oliveira (2008), para recuperar a riqueza da vida real, é essencial que
compreendamos o que acontece nas escolas e quais são as experiências dos alunos, não
enxergando como desvio ou erro aquilo que não se encaixa no quadrado da razão
metonímica. Essas propostas e as práticas que possibilitarão realizá-las fazem parte do
processo de transformar a escola em um ambiente que abrigue a pluralidade, integrado às
diversas culturas de origem de alunos e professores, onde ocorra interação entre as vozes
das crenças, conhecimentos e maneiras de estar no mundo diferentes, embasadas em
conversas que facultem a superação da hierarquização, da segregação, a qual carrega
traumas e transtornos, na escola e na sociedade em geral.
2.4 Sociologia das Ausências – Busca por Vozes Abafadas pela Globalização
Hegemônica
A ampliação do presente, segundo Boaventura Santos (2006), é incumbência da sociologia
das ausências, está embasada em dois procedimentos que colocam em xeque a razão
metonímica. A proliferação das totalidades é o primeiro, e o segundo consiste em
evidenciar que cada totalidade é composta de heterogeneidade, e que há vida própria fora
dela, em qualquer parte que a integra.
Boaventura (2006) assevera que o pensamento fundador de ambos os procedimentos é que
cada parte de uma totalidade pode ser concebida como totalidade em potencial e, mais
ainda, podem compor outras totalidades que ultrapassam as dicotomias hegemônicas,
prisões onde a razão metonímica as encerrou. Deste modo, mesmo invisibilizados, esses
fragmentos têm perambulado fora dessa totalidade, sem direção no espaço da ordem, não
percebidos nem controlados por ela. Este autor esclarece, na citação a seguir, o papel da
sociologia das ausências:
[...] uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na
verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como
alternativa não-credível ao que existe. O seu objecto empírico é
considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que
56
a sua simples formulação representa já uma ruptura com elas. O objectivo
da sociologia das ausências é transformar objectos impossíveis em
possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças.
(SANTOS, 2006, p. 786).
Boaventura Santos (2006) reconhece uma variedade de formas que a razão metonímica
emprega para produzir não-existência. Ele identifica cinco modos de elaboração da nãoexistência – tendo em comum o fato de serem expressões de uma monocultura racional,
compreendendo que a não-existência é forjada sempre que qualquer entidade não é
qualificada nem visibilizada, sendo considerada ininteligível.
Discorrendo sobre essas ideias de Boaventura Santos, Oliveira (2008) afirma que a
produção de não-existências estabelece modos sociais de inexistência, partes não
qualificadas de totalidades homogêneas que são excludentes. É preciso contrapor-se a estas
lógicas, colocá-las em xeque. Para cada não-existência produzida, a sociologia das
ausências se empenha para manifestar a diversidade, bem como a multiplicidade dos
fazeres sociais, credibilizando assim esse conjunto. Essa concepção de multiplicidade e de
relacionamento construtivo entre os agentes que a integram é atribuída pelo conceito de
ecologia, que, para Boaventura, sobrepuja a lógica da razão metonímica e faculta esse
relacionamento horizontalizado entre as diversas possibilidades de cada campo social, com
suas diferenças e a consequente presentificação dos ausentes.
Oliveira (2008) faz uma analogia entre a sociologia das ausências e o trabalho
arqueológico na proporção em que as práticas que os caracterizam acontecem por meio de
um processo de tentativa de entendimento e assimilação daquilo que já existe, mas que era
desconhecido. Da mesma maneira que o arqueólogo, a cada encontro com algo inusitado,
reconsidera, repensa aquilo que já se sabia sobre a civilização que pesquisa por meio da
incorporação social e epistemológica “do novo”, o “sociólogo das ausências”, empregando
uma “arqueologia das existências invisíveis”, procura sobrepujar, por meio da instauração
de diversas ecologias, cada modo de não-existência e de monocultura que se associa a ela.
Para tanto, necessita levar a efeito práticas que, sendo peculiar a cada não existência, têm
em comum tornar visível o que foi ocultado pela razão metonímica.
2.4.1 Monocultura do saber
57
Conforme Oliveira (2008), a monocultura do saber entende como únicos critérios de
verdade a ciência moderna e a alta cultura, sendo, desta forma, gerida pela lógica do
conhecimento formal, que forja a ignorância como modo de não existência. Para
sobrepujar esta monocultura seria necessário suscitar uma ecologia de saberes, que é
possível ao se transformar ignorância em saber aplicado.
A sociologia das ausências seria levada a cabo, de acordo com Oliveira (2008), pela tarefa
de identificação de práticas e contextos em que os saberes diferentes se fazem operantes,
sobrepujando, por meio da sua aplicação, a ignorância que lhe era atribuída anteriormente.
A monocultura aqui flagrada poderia ser compreendida como a causa de legitimação dos
epistemicídios, levados a efeito pela modernidade. Por outro lado, assevera ainda Oliveira
(2008), o processo de superação e a implantação da ecologia dos saberes parecem estar
embasados na ideia defendida por Boaventura de que não existe ignorância em geral
tampouco saber em geral. Cada modo de saber reconhece-se num certo tipo de
conhecimento ao qual contrapõe um determinado tipo de ignorância, que ao seu tempo, é
concebida como tal quando se depara com esse tipo de saber. Toda ignorância é ignorância
sobre um determinado saber e, ao contrário também, todo saber é saber sobre uma
determinada ignorância.
2.4.2 Monocultura do tempo linear
A monocultura do tempo linear, de acordo com Oliveira (2008), entende que a história
possui um único e sabido sentido para melhor, ideia que desencadeou a lógica do
desenvolvimento e do progresso. O Subdesenvolvido, atrasado, tradicional, residual é nãoexistência produzida. O caminho, neste caso, seria levar a efeito uma ecologia das
temporalidades, o que nos levaria a entender o tempo linear como relativo e a vislumbrar
outras temporalidades. Tal procedimento libertaria as práticas sociais da sua
pseudocondição de resíduo, ao conceber a multitemporalidade, que realmente configura a
sociedade. Ou seja, evidenciando esses diferentes modos de saberes e fazeres, não mais
vistos numa escala evolutiva, mas como formas de estar no mundo diferentes.
Boaventura Santos (2013) identifica, em modos de racionalidade e de sociabilidade
consideradas como pré-modernas, uma possibilidade significativa de contribuição para
sobrepujar os problemas criados pelo anseio moderno do progresso e do desenvolvimento
58
por meio da confiança em uma única racionalidade global (metonímica), que findou por
“dar à luz” ao que este autor denomina como irracionalidade global. Aspectos pré-pósmodernos de sociedades que carregam o suposto rótulo do subdesenvolvimento, nas quais
os espaços-tempos de inserção social e as lógicas que a embasam seriam menos afetados
pela colonização do sistema estabelecido com a modernidade, e justamente por este fato,
teriam um potencial maior para fazer face aos entraves sociais e políticos com os quais nos
deparamos na contemporaneidade. Isto quer dizer que visibilizar as práticas sociais
consideradas como pré-modernas, enaltecendo-as, seria um maneira que contribuiria para
superarmos os problemas de nosso tempo, melhor dito, de nossos tempos.
2.4.3 Monocultura da Naturalização das Diferenças
A monocultura da naturalização das diferenças, segundo Oliveira (2008), produz a
inferioridade, de acordo com a lógica da estratificação social, que distribui as populações
por categorias, naturalizando as hierarquias entre elas. A ecologia dos reconhecimentos
colocaria sua ênfase nas diferenças não hierarquizadas. Isso seria possível por meio de uma
nova forma de se articular os princípios da igualdade e da diferença e de reconhecimento
mútuo.
Oliveira (2008) faz referências a obra de Boaventura Santos de 1999, denominada A
Construção Multicultural da Igualdade e da Diferença, na qual ele desenvolve o
pensamento de que, pela primeira vez, na modernidade, a liberdade, a igualdade e a
cidadania são admitidos como princípios que desatam as amarras da vida social, que
emancipam. É importante ressaltar que ao se reduzir a modernidade ao mundo capitalista,
os princípios de emancipação e regulação – critério da modernidade – se contradizem na
proporção que o princípio da regulação preside os processos de exclusão e desigualdade
produzidos pelo capitalismo. Deste modo, no cerne de uma grande discussão a respeito dos
processos de emancipação e regulação social próprios da modernidade e das possibilidades
e necessidades de reinventar e ampliar a ideia de democracia, Boaventura promove um
debate ao redor da questão da igualdade e diferença, do qual vem a lume o fato de que se a
diferença nos torna inferiores, devemos ser iguais, mas se a igualdade não mostra quem
somos, devemos ser diferentes.
2.4.4 Monocultura da Universalidade
59
A lógica da relevância da escala global, em detrimento das outras, produz, de acordo com
Oliveira (2008), a inexistência do local e do particular. O papel da sociologia das ausências
é superar essa lógica por meio do resgate daquilo que, no local, não é resultado da
globalização hegemônica, o que requer uma desglobalização do local de maneira que seja
identificado o que não se coadunou com a globalização hegemônica, quer dizer, tudo o que
existe e ultrapassa os globalismos localizados, os quais, no local, sofrem a influência da
globalização hegemônica.
A superação estaria no que ele chama de ecologia das transescalas, que
significa uma ampliação da diversidade de práticas sociais que se
configurasse como alternativas ao globalismo localizado característico da
globalização hegemônica, tecendo, por isso, a possibilidade de uma
globalização contra-hegemônica. (OLIVEIRA 2008, p. 77).
Oliveira (2008) afirma que quando Boaventura menciona a necessidade de se usar a
imaginação cartográfica, a fim de visualizar as diferentes escalas, o que elas evidenciam e
o que elas escondem, ele entende os mapas como uma das formas de representar e
conceber o espaço, por meio de distorções organizadas da realidade, com o propósito de
orientar a imaginação.
Um mapa elaborado em pequena escala, conforme Oliveira (2008), evidencia pouco de
uma área maior, por outro lado, um mapa de grande escala mostra muito de uma área
menor. Inferimos que, ao se desenhar os mapas, como pequenas representações do real, há
uma seleção dos detalhes mais relevantes e seus aspectos mais significativos. Como modos
de concepção do mundo social, a pequena e a grande escala se complementam,
possibilitando a cada pessoa, a percepção de algumas características e a ocultação de
outras. São resultado da decisão a respeito do que acreditamos ser mais ou menos
importante em cada situação. É importante ressaltar que a seleção do que será visibilizado
não anula a existência do que foi invisibilizado. O emprego concomitante de diferentes
escalas possibilita a superação do que foi tornado invisível do particular e do local. A
relevância dessa ecologia das trans-escalas se evidencia na possibilidade que ela permite de
se conceber a globalização contra-hegemônica.
Conforme Boaventura (2005), a globalização tem sido contestada social e politicamente.
Ela Permanece, para alguns, como o grande êxito da racionalidade, do progresso que
produz inumeráveis recursos, contudo para outros ela é uma maldição, porque carrega em
60
suas entranhas a pobreza e a segregação da maior parte da população do mundo, enquanto
uma parcela cada vez mais reduzida goza das benesses do propalado discurso do progresso
e da fartura.
Segundo Oliveira (2008), ao diferenciar a globalização hegemônica da contra-hegemônica,
Boaventura entende, como formas de produção da globalização hegemônica, os localismos
globalizados – que ocorre quando um fenômeno do local torna-se global – e os globalismos
localizados – que acontece quando as práticas e imperativos transnacionais, que são
localismos globalizados, causam impacto específico nos modos de produção locais. Ele
considera, como formas da globalização contra-hegemônica, o cosmopolitismo e o
patrimônio comum da humanidade que se opõem aos dois modos de globalização
hegemônica.
Oliveira (2008) expõe o pensamento de Boaventura, quando este fala da resistência de
Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais que são vítimas das trocas desiguais
como resultado da organização transnacional, que é tratada pelo cosmopolitismo. Trocas
desiguais devem se transformar em trocas de autoridade partilhada. Nisto consiste a
resistência, que luta contra a inclusão subalterna, a exclusão, a despromoção, a
desintegração.
No que diz respeito ao patrimônio comum da humanidade, Boaventura o descreve, de
acordo com Oliveira (2008), como a união de forças transnacionais que se empenham pelo
respeito e desmercadorização de recursos, entidades, artefatos e ambientes imprescindíveis
à humanidade, o que implica em sua proteção. A natureza desses recursos deve ser gerida
por uma lógica contrária a das trocas desiguais.
O cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade constituem
globalização contra-hegemônica na medida em que lutam pela
transformação de trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada.
Essa transformação tem de ocorrer em todas as constelações de práticas,
mas assumirá perfis distintos em cada uma delas. (OLIVEIRA, 2008,
p.81).
Discorrendo, ainda, sobre esta questão das trocas que Oliveira menciona, fazemos
referência a uma significativa citação de Boaventura Santos:
O global acontece localmente. É preciso fazer com que o local contrahegemônico também aconteça globalmente. Para isso não basta promover
61
a pequena escala em grande escala. É preciso desenvolver [...] uma teoria
da tradução que permita criar inteligibilidade reciproca entre as diferentes
lutas locais, aprofundar o que têm em comum de modo a promover o
interesse em alianças translocais e criar capacidades para que estas
possam efetivamente ter lugar e prosperar. (SANTOS, 2005, p. 74).
2.4.5 Monocultura do Produtivismo
Oliveira (2008) pontua que a lógica da produtividade capitalista, a qual carrega, em seu
pano de fundo, o discurso do desenvolvimento e do crescimento econômico, com ênfase
nos processos de acumulação em detrimento dos de distribuição. Ao seguir esta lógica, a
monocultura da produtividade capitalista omite e ignora os modos de produção nãocapitalista, que são tidos como geradores de improdutividade ou esterilidade, por seguirem
outras lógicas. Desta forma, a credibilização dos propósitos de partilha seria levada a efeito
por meio de práticas de recuperação e enaltecimento dos modos alternativos de produção,
recompondo-os e tirando-os da subalternidade à qual foram confinados, promovendo o que
Boaventura denomina de ecologia de produtividade ou formas de produção.
Oliveira (2008) assinala que a sociologia das ausências foi levada a efeito por Boaventura
Santos e seus companheiros de pesquisa. O volume 2, Produzir para viver: os caminhos da
produção não-capitalista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), relata casos de
produção não-capitalista em países distintos, nos quais a pesquisa teve lugar. O volume 3,
Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural (idem), apresenta
diversas lutas levadas a efeito por setores sociais e populações que objetivavam sobrepujar
a inferioridade que lhes foi conferida, historicamente. O volume 4, Semear outras
soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005), conforme o título já esclarece, apresenta saberes práticos a
respeito de diversos temas que vêm sendo atuantes nos embates pela proteção do meio
ambiente. Finalmente, o volume 6, As vozes do mundo, apresenta narrativas e práticas de
líderes de movimentos sociais distintos, mostrando a procura de rompimento com a
monocultura da universalidade, procurando visibilizar o local e particular.
2.5 Arqueologia das Vozes Inaudíveis na Educação e na Pesquisa
62
No que diz respeito a educação metonímica, a ideia de Boaventura Santos é reforçada por
Santomé (2013), quando afirma que nos livros-texto usados nas escolas, as vozes e a
caracterização dos outros tornam-se irrelevantes ou, quando muito, uma piada.
Esse tipo de estratégia de omissão é empregado pelos sistemas de
educação que adotam um modelo de sociedade monocultural e, portanto,
silenciam todas as demais realidades; talvez em alguns momentos se fale
dos outros, mas sempre para calá-los, não lhes permitindo falar e sempre
os representando conforme os grupos hegemônicos da sociedade os
imaginam. (SANTOMÉ, 2013, p. 240)
Estes aspectos, expostos por Santomé, são ampliados por Oliveira ao discorrer, nas linhas
que se seguem, sobre a arqueologia das existências invisíveis.
Oliveira (2008) enfatiza que, de alguma maneira, as ideias sobre as quais refletimos, até
aqui, possibilitam duas associações com o aspecto educacional. O seu uso metodológico na
pesquisa é a primeira, a qual visa evidenciar tudo o que a metodologia das pesquisas, sob o
aval da razão metonímica, está invisibilizando e que, na verdade, compõe quase o total da
existência do dia-a-dia das escolas. Alicerçado na ciência moderna, na exclusividade do
saber formal, e na ideia de que o papel da escolarização é extrair o estudante da “cultura
popular” e posicioná-lo na cultura “elevada”, o modelo de escola dominante produz a
inferiorização e a discriminação dos diferentes, tornando particularismos universais, na
estruturação dos currículos e programas escolares, bem como do próprio sistema,
explicitando seu vínculo com o projeto capitalista. Essa escola tem sido a referência única
de pesquisas que, embora critique o seu modelo, negligenciam o que nelas habita, por
condescenderem metodologicamente com os fundamentos que desejam criticar,
manifestando fé na ciência moderna, na sua neutralidade, objetividade e, acima de tudo, na
sua pretensão de fornecer respostas plausíveis aos problemas com os quais se preocupa.
Isto demonstra sua incapacidade para se autoconhecer.
Assim, o uso metodológico da sociologia das ausências na pesquisa em
educação leva à necessidade de mergulhar nos mundos nela existentes
tornados invisíveis pelos estudos dos modelos escolares e educativos.
Assim as possibilidades de ampliação da visibilidade das
práticas/existências escolares/educativas não-oficiais repousam sobre a
identificação dessas práticas, diante da possibilidade de libertá-las do
lugar de inexistência e inferioridade à qual vêm sendo relegadas devido à
sua pouca cientificidade, à rearticulação dos diferentes aspectos da
complexidade vivida nas escolas, a valorização, enfim, das singularidades
63
e das formas alternativas de estar no mundo, de compreendê-lo, de sentilo. (OLIVEIRA, 2008, P. 84).
Oliveira (2008) considera que o emprego da metodologia dos procedimentos da sociologia
das ausências é essencial para promover formas contra–hegemônicas de elaboração de
práticas educativas, com o propósito de lançar crédito no saber-fazer que existe nos
territórios educativos, como potencial dádiva às possibilidades de emancipação social,
tanto no que diz respeito ao processo educacional em si, quanto no sentido mais abarcante
de uma atuação favorável da escola à transformação social democratizante.
Em segundo lugar, as facetas epistemológicas dessa sociologia nos leva a pensar, de forma
crítica, conforme Oliveira (2008), sobre os conteúdos escolares e a estrutura da escola,
como vimos acima, das hierarquias pelas quais se deixam guiar, da supremacia da ordem
que a eles se vincula, e sobre os valores subliminares que propaga por meio de sua pretensa
cientificidade. Esta autora aponta a sociologia das ausências como fundamento políticoepistemológico possível, a fim de refletirmos sobre o projeto educativo emancipatório, na
proporção em que apresenta possíveis caminhos da luta contra a dominação social e
destaca as possibilidades da ação pedagógica objetivando uma democracia social de maior
alcance, pela multiplicação de fazeres tornados visíveis, por meio da “arqueologia das
existências invisíveis” em universos escolares distintos.
[...] Boaventura defende e formula a necessidade de um diálogo
permanente entre diferentes formas de estar no mundo, de nele viver e de
entendê-lo para que possam ser encontrados e criados mecanismos e
modos de interação que permitam, hoje e agora, transformar o que existe
e é hegemônico em outras existências, mais democráticas e plurais,
provisórias e circunstanciais sobre as quais continuar-se-á atuando
coletivamente, através dos mesmos procedimentos, reinventando
permanentemente o presente, criando, a partir do exercício da imaginação
epistemológica, mais e mais justiça cognitiva através da tradução entre
saberes e, a partir da imaginação democrática, criar mais e mais justiça
social global através da tradução entre práticas e seus agentes.
(OLIVEIRA, 2008, p. 98).
Oliveira (2008) assevera que a escola moderna, como lugar que tem a primazia na
transmissão do saber valorizado pela sociedade às novas gerações, situa-se em posição de
destaque na ampliação, não só da compreensão e enaltecimento das práticas disponíveis,
64
como também das possíveis, na proporção em que pode, partindo dos fazeres já
disponíveis, aqueles que acontecem nos diferentes espaços escolares, porém ignorados
pelos docentes e pesquisadores comprometidos com a razão metonímica, multiplicar e
difundir essas experiências ao percebê-las como sinais e indicadores de uma prática
pedagógica futura que emancipa, levedando a sociedade crescente e gradativamente.
2.6 Os Sons da Diversidade
Segundo Morin (2011), o desenvolvimento técnico-industrial sobre o planeta tende a
reprimir muitas das diversidades dos seres humanos, os aspectos étnicos e culturais. Há um
paradigma sob o véu das operações lógicas selecionadas para promover a disjunçãoconjunção, implicação-negação, exclusão-inclusão.
Obviamente, estas colocações de Morin tem a ver com os interesses de um mundo
capitalista, que enaltece a competitividade em todos os âmbitos, com suas inevitáveis
sequelas, como verificamos nas ideias de Adorno expostas por Crochik (2009, p. 65): “Se
essa é uma sociedade que enfatiza a eficiência e a competição, dificilmente os menos
competitivos terão um lugar que não seja o de menosprezo. ”
Ainda no contexto da competitividade, Crochik (2009) pontua que a inteligência é uma
moeda de valor, cultuada; porém, separada de seu aspecto ético, conduz à barbárie. “A
inteligência substituiu a força bruta, mas como força bruta e não em seu sentido social, que
a obrigaria a se voltar para o bem comum e para a compreensão da possibilidade de
pessoas diferentes conviverem.” (CROCHIK, 2009, p. 63).
Morin (2011), da mesma forma que Crochik, ressalta a importância da solidariedade
intelectual e moral dos homens, e acrescenta que essa é a única forma de mundialização
que cooperaria com a humanidade e a integraria.
Educação e solidariedade intelectual devem caminhar juntas. Morin (2011) ainda proclama
que a educação deve ser solidária com a espécie humana, zelando para que a unidade não
seja anulada pela ideia de diversidade, e que a diversidade não seja anulada pela ideia de
unidade. Compreender o humano é enxergar sua diversidade na unidade, sua unidade na
diversidade. “[...] as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou
65
organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas
múltiplas diversidades.” (MORIN, 2011, p. 50).
Falar em unidade/diversidade é falar em trocas, em solidariedades, como verificamos a
seguir:
As assimilações de uma cultura a outra são enriquecedoras. Verificam-se
também mestiçagens culturais bem-sucedidas [...]. Ao contrário, a
desintegração de uma cultura, sob o efeito destruidor da dominação
técnico-civilizacional, é uma perda para toda a humanidade, cuja
diversidade cultural constitui um dos mais preciosos tesouros. (MORIN,
2011, p. 51).
As diversas culturas com suas singularidades, peculiaridades, bem como com seus saberes
e fazeres plurais, inclusive com temporalidades próprias, constituem riquíssimo
patrimônio, um tesouro que precisa ser visibilizado, contemplado, amado, vivido, o que
pode tornar-se real por meio da sociologia das ausências e da arqueologia das existências
invisíveis. Sob as ressonâncias desses pensamentos, sou tomado pela imaginação, e ouço
os sons das atividades de uma sociedade multicultural, dos folguedos das crianças, dos
diferentes labores de homens e mulheres, suas cantigas, os sorrisos largos, as cenas
singelas de afeto e apreço, aspectos da diversidade humana que valorizados promovem o
respeito e a unidade entre os homens.
Passadas as ressonâncias, há um longo caminho a percorrer, porém longe de desanimar,
devemos estar preparados para o combate. O principal propósito da educação é o de
fortalecer cada pessoa para o confronto vital rumo à lucidez, conforme Morin (2011).
2.7 Democracia - O Direito de Todas as Falas
Segundo Morin (2011), não é possível definir democracia de forma simples. A soberania
dos cidadãos compreende, simultaneamente, a autolimitação desta soberania, por meio do
respeito às leis e da concessão da soberania aos eleitos. Também simultaneamente, a
democracia compreende a autolimitação do poder do Estado pela divisão dos poderes, a
preservação dos direitos individuais.
66
Morin (2011) declara que a democracia, obviamente, precisa do consenso da maior parte
dos cidadãos e da observância das normas democráticas. Precisa de que a maior parte das
pessoas creia na democracia. Contudo, da mesma forma do consenso, a democracia precisa
de diversidade e oposição.
De acordo com Morin (2011), o que foi experimentado com o totalitarismo evidenciou que
não podemos, sob hipótese alguma, prescindir da democracia. A democracia acredita e
alimenta a diversidade dos interesses, bem como a diversidade de pensamentos. A
valorização da diversidade implica que a democracia não se coaduna com a ditadura da
maioria sobre as minorias; indubitavelmente deve conceber o direito à existência das
minorias, bem como seu direito de expressão.
Estas ideias de Morin abrem janelas em nossa mente que nos remetem, irresistivelmente, a
proposta de Boaventura por meio da sociologia das ausências, que torna audível as vozes
das minorias, libertando-as dos campos de concentração criados pela razão metonímica,
onde acontece os epistemicídios, nas câmaras da indiferença, do menosprezo, da negação
da democracia, do direito de todas as vozes. Lembramos da convocação de Morin (2011)
para o confronto vital rumo à lucidez, a fim de, como diz Adorno (1995), resistir à
barbárie.
No próximo capítulo, apresentamos a pesquisa de campo realizada na comunidade de
surdos do IASP, as impressões do contato com eles, e a compreensão das formas pelas
quais se estabelecem as relações educativas entre eles e entre eles e o mundo dos ouvintes.
Motivados pelas ideias de Boaventura de Sousa Santos, denunciamos o processo de
invisibilização, por meio do qual eles são relegados à marginalidade. Ao realizar, como diz
Boaventura, uma “arqueologia das existências invisíveis”, identificamos os contextos e
práticas nos quais os saberes e fazeres diferentes dos surdos se tornam operantes, visíveis,
e - no contato com outras formas de estar sendo no mundo com os outros - resultam em
trocas e aprendizados, somente possíveis numa atmosfera entremeada de afetos, simpatia,
empatia e amor.
67
CAPÍTULO 3
OLHARES QUE OUVEM, CORPOS E MÃOS QUE FALAM
[A língua de sinais], nas mãos de seus mestres, é uma
língua extraordinariamente bela e expressiva, para a
qual, na comunicação uns com os outros e como um
modo de atingir com facilidade e rapidez a mente dos
surdos, nem a natureza nem a arte lhes concedeu um
substituto à altura. Para aqueles que não a entendem, é
impossível perceber suas possibilidades para os surdos,
sua poderosa influência sobre o moral e a felicidade
social dos que são privados da audição e seu admirável
poder de levar o pensamento a intelectos que de outro
modo estariam em perpétua escuridão. Tampouco são
capazes de avaliar o poder que ela tem sobre os surdos.
Enquanto houver duas pessoas surdas sobre a face da
Terra e elas se encontrarem, serão usados sinais.
J. Schuyler Long
Fotografia 3 – Um grupo da comunidade de surdos do IASP, realizando um almoço comunitário.
68
Fonte e autor: Wellington Romangnoli
Data: 2008
Em 2008, num sábado, fui tocado, à distância, por olhares e sorrisos de pessoas
contagiantes e, como se não pudesse resistir, me aproximei, percebendo que eram homens
e mulheres surdos que se comunicavam alegremente. Seus corpos tinham vozes que
falavam de suas percepções de vida e me convidavam para partilhar de minhas percepções,
a fim de que aprendêssemos de nossas experiências, criando novas vivências. Esta
linguagem despertou em meu íntimo simpatias, o desejo de amizade, uma sensação de
calor humano. Procurei aprender alguns sinais como feliz sábado, amigo, obrigado. Eu não
via apenas sinais, era uma atmosfera que falava, só então compreendi que há no mundo
uma grande necessidade, tão bem colocada na citação de Antônio:
Há uma necessidade vital de recuperarmos a capacidade de percepçãolivre, pessoal, autônoma. A percepção criadora. Redescobrir o olho. O
tato. O ouvido. O gosto. O olfato. Precisamos recriar nossa relação
sensível com o mundo. Redescobrir as coisas, redescobrindo o nosso
próprio corpo e suas possibilidades de percepção. (ANTÔNIO, 2002, p.
61).
Creio que movidos por essa necessidade vital, convidamos um casal de surdos, Ot e C para
visitar-nos periodicamente, e eles de bom grado o fizeram. Compreenderam que o mundo
deles tornara-se visível para nós. Possuíam um forte compromisso de tocar-nos com as
69
riquezas de sua cultura. Eu demorei 48 anos para perceber que tudo isso é palpável. Minha
esposa, Deise, também se empolgou e aprendeu LIBRAS, confesso, melhor do que eu.
Inferimos por meio do pensamento de Antônio citado acima, que LIBRAS é apenas uma
parte desse universo, e Torre fortalece esta ideia ao fazer a seguinte declaração: “A
aprendizagem não se restringe somente ao cérebro, mas implica a totalidade do corpo
humano. Assim, na aprendizagem integrada os processos sensório-motores se autoorganizam na corporeidade humana.” (MORAES; TORRE, 2004, p. 84).
Agora, quando as lembranças deles povoam minha mente, e penso em suas mãos que se
movimentavam, seus olhares e o próprio corpo que falava, sou remetido, novamente, a
uma citação do livro Utopia da Palavra: “A palavra é parte do corpo. Mas, por outro lado, o
corpo é feito de palavras. E de cultura. O corpo humano é filho do tempo. Transforma-se
aprende-se configura-se culturalmente. Historicamente. Tece-se de sentidos. Expressa-se
simbolicamente.” (ANTÔNIO, 2002, p.26).
Sacks menciona a experiência de um surdo privado das possibilidades que Antônio nos
apresenta no parágrafo anterior, mas que finalmente descobre a alegria da comunicação, do
diálogo, da palavra expressa por meio do corpo. Vejamos a própria citação:
Nada é mais prodigioso, ou mais digno de celebração, do que algo que
liberta as capacidades de uma pessoa e lhe permite crescer e pensar, e
ninguém louva ou descreve isso com mais fervor e eloquência do que os
mudos subitamente libertados como Pierre Desloges: ‘A língua [de
sinais] que usamos entre nós, sendo uma imagem fiel do objeto expresso,
é singularmente apropriada para tornar nossas ideias acuradas e para
ampliar nossa compreensão, obrigando-nos a adquirir o hábito da
observação e análise constantes. Essa língua é vívida; retrata sentimentos
e desenvolve a imaginação. Nenhuma outra língua é mais adequada para
transmitir emoções fortes e intensas.’ (SACKS, 2010, p.29).
Sob as ressonâncias de Antônio e Sacks, menciono Hilkner, ao discorrer sobre o corpo como um
mapa a ser desvendado:
O corpo configura-se como um mapa onde a identidade cultural se torna
aparente, decifrável, e ao mesmo tempo, intrínseca (como nossos órgãos).
Mapa que precisa ser estudado, desvendado, para podermos melhor
entender o significado simbólico de sua concepção de mundo. E é por
meio do corpo, no qual cresce a cultura que esta se identifica e se
diferencia. (HILKNER, 2008, p. 236, 237).
70
Os modos, por meio dos quais os surdos vivem e desvendam as expressões corporais,
exalam vida, e transformam os ouvintes que deles se aproximam. Quando penso na
comunidade de surdos do IASP, sou remetido ao poeta e filósofo Hölderlin, que
proclamou: “Lei do destino: Que todos se aprendam”. Deparei-me com estas palavras no
dia 31 de março de 2011, quando o professor Severino as colocou na lousa. Eu menciono
isto no Memorial desta dissertação. As discussões que este pensamento desencadeou,
naquela aula, nos levaram a outras ideias: 1ª – Você aprende com o próximo, com o outro.
2ª – Você aprende com você mesmo. 3ª - Nós nos aprendemos juntos com os outros, na
relação com o outro.
O propósito desta pesquisa de campo é justamente descobrir como essas diferentes
maneiras de aprender acontecem entre os surdos, e entre os surdos e os ouvintes. Uma pista
dessas possibilidades é dada na citação de Antônio: “A vida é linguagem. Os seres como
textos, como campo de linguagens, como sistemas de informações, como conhecimento e
comunicação.” (ANTÔNIO, 2002, p. 28).
Campo de linguagens, pessoas com as quais convivemos na comunidade de surdos do
IASP, e que nos deram a oportunidade de ouvir sobre suas vivências, por meio de
entrevistas e diálogos.
3.1 A Comunidade de Surdos do IASP
As pessoas mencionadas no início deste capítulo fazem parte da comunidade de surdos do
IASP, que é o objeto de nossa pesquisa qualitativa. Essa pequena comunidade é composta
de 15 a 20 pessoas que se encontram regularmente na igreja ou no colégio do IASP. Eles
também se visitam mutuamente. Gostam de jogos de mesa, como dominó e uno. Alguns
apreciam jogar futebol, outros interagem com o mundo pelos meios virtuais.
A maioria de seus membros tem entre 20 e 54 anos. A vida profissional de quase todos está
relacionada a atividades manuais, nas linhas de produção da indústria e outros setores. Há
uma surda que trabalha na área administrativa e dois que trabalham na área de informática.
Dois desses começaram o curso superior, porém desistiram, e somente uma surda concluiu
o curso superior e fez pós-graduação. Este fato confirma as barreiras que são erguidas
diante dos surdos, invisibilizando-os, desconsiderando-os.
71
3.2 História que Desperta Desejos de Aprender e Ensinar entre Iguais e Diferentes
A história da comunidade de surdos do IASP apresenta-nos uma origem surpreendente, e
quando nos detemos sobre ela, configura-se diante de nossos olhos a educação
sociocomunitária, o desejo de ensinar e aprender entre os iguais e diferentes, oriundos de
comunidades distintas, que rompem os grilhões do preconceito e se fundem numa mesma
comunidade.
Tudo começou quando os surdos B e C conheceram e fizeram amizade com A, ouvinte, na
Igreja Adventista Central de Hortolândia. A despeito das dificuldades de comunicação,
esse contato inicial foi o suficiente para eles expressarem o desejo de conhecer a respeito
de um livro que era publicado trimestralmente, com temas teológicos. Então A teve um
lampejo, pediu que B e C ensinassem LIBRAS pra ela, e deste modo ela poderia discorrer
sobre o livro para/com eles. Esta atitude ruiu os muros de separação e construiu pontes que
abriram caminhos para incursões interculturais.
Entre as pontes construídas, havia uma com cores e nuances especiais, onde apenas B e A
circulavam, a qual os conduziu ao casamento. Em 1988, A passou a ser intérprete, na
igreja, para B e C, contudo outros surdos foram se agregando a eles, dando origem a um
grupo coeso, que mais tarde foi denominado de Comunidade de Surdos do IASP.
3.3 A Corporeidade e Suas Correspondências
Creio que mais importante do que falar a respeito dos surdos, é permitir que eles falem de
suas histórias e experiências, por isso entrevistamos onze pessoas, surdos e ouvintes
ligados à comunidade de surdos do IASP. Eles gostam de visibilizar suas vivências e
interagir com outros surdos e ouvintes.
No final de cada entrevista, há um breve comentário, relacionando as impressões do
diálogo com a ideia do aprender e ensinar, ressaltada neste capítulo.
3.4 Entrevista com A
72
Fotografia 4 – A, ouvinte, ao lado de seu esposo, B, surdo
Fonte e autor: Wellington Romangnoli
Data: 2008
A, 52 anos, é ouvinte e casada com B, 54 anos, que é surdo. Ela concluiu o magistério, em
nível de ensino médio, e é graduada em Educação Física. Obteve um lato sensu em libras.
Atualmente, é professora de libras no curso de pedagogia e educação física do UNASP. Ela
também leciona para a 2ª série do ensino fundamental, em uma escola municipal.
Marcamos um encontro no UNASP, onde ela, gentilmente, concedeu-nos uma entrevista.
Eu fazia as perguntas que tinha elaborado, e a medida que A respondia eu ia anotando num
caderno.
1) Como aconteceu seu primeiro contato com os surdos?
B veio de São Paulo para Hortolândia em 1987, e começou a frequentar a Igreja Adventista
central de Hortolândia, onde eu assistia, e fizemos amizade. Havia uma barreira, pois eu
não sabia libras. Contudo B e seu amigo C queriam aprender sobre um livro que a Igreja
Adventista lança trimestralmente com temas teológicos, e desejavam que eu os ajudasse
73
nesse propósito, mas, para tanto, seria necessário que eu aprendesse libras. Diante da
dificuldade, eles se prontificaram a me ensinar libras a fim de que eu os ajudasse no estudo
do referido livro. Passamos a nos encontrar com certa frequência, a fim de que eles me
ensinassem libras, e na medida que a linguagem foi fluindo, discorríamos melhor sobre os
assuntos teológicos.
2) A, conte-nos um pouco sobre B, sua família.
A família de B, composta de nove pessoas, os pais e sete filhos, residiam na cidade de São
Paulo. B é o mais velho de sete irmãos, dentre os quais cinco são surdos. Seus pais são
ouvintes, não sabem libras. Deste modo, se comunicavam com os filhos surdos por meio
de gestos.
3) Como aconteceu a escolarização de B?
Quando B tinha 10 anos, seus pais o matricularam na 1ª série de uma escola especial para
surdos que, paradoxalmente, era contrária a linguagem de sinais, trabalhava apenas com
fonoaudiologia. Esse foi o período que denominamos como oralista. Nessa escola, ele
aprendeu a ler e escrever, e lá permaneceu até a 4ª série.
A escola especial de 5ª a 8ª série, nessa época, era muito distante de sua residência, e os
limitados recursos da família não permitiam que houvesse custos com transporte. Deste
modo, ele deixou de frequentar a escola aos 14 anos, e dedicou-se exclusivamente ao
trabalho. B atuou em serviços que não exigiam escolaridade, nos setores de produção e
montagem. Ele diz que, nesses empregos, sempre sofreu com o preconceito, excesso de
trabalho e abuso de autoridade.
Ele se adaptou muito bem ao trabalho de vendedor ambulante, atividade que desempenha
há 24 anos. Para facilitar a comunicação e o contato, durante as vendas, ele entrega às
pessoas um pequeno papel, onde se identifica e faz a oferta de seus produtos.
4) Em que momento B teve contato com LIBRAS?
Aos 13 anos, em 1973, B passou a ter contato com uma associação de surdos de São Paulo,
onde aprendeu a linguagem de sinais, denominada na época como mímica.
74
5) A, quando, onde e como surgiu a comunidade de surdos?
Em 1988, eu já dominava a linguagem de sinais, e nessa época frequentava a Igreja
Adventista Central de Hortolândia. Percebi que na igreja havia outros surdos, então me
propus a reuni-los num local estratégico do templo, a fim de interpretar as mensagens dos
organizadores da liturgia.
No ano 2000, passamos a frequentar a igreja do IASP. Com o tempo, professores e alunos
passaram a fazer parte da comunidade, fato que a fortaleceu.
3.4.1 Comentário acerca da entrevista com A
Repito que o fato memorável desta história foi a maneira como ela se relaciona com a
origem da comunidade de surdos. O interesse de aprender ligou surdos e ouvintes. Digno
de nota é a disponibilidade de A para se relacionar com os surdos e entender que podia
aprender com eles. E mais ainda, poderia realizar trocas, aprender para ensinar e tornar a
aprender, pois eles interagiam a respeito dos temas dos referidos livros. Quando ela passou
a atuar como intérprete da comunidade de surdos, estas experiências ganharam novas
dimensões.
3.5 Entrevista com B
B, esposo de A, trabalha como vendedor, é surdo profundo e tem mais quatro irmãos
surdos. Suas experiências, registradas a seguir, são entreamadas de lições que não podemos
olvidar. Para realizar esta entrevista, eu recebi A e B em minha residência, numa tarde de
domingo. A atuou como intérprete, traduzia minhas perguntas para B, e depois passava
para mim as respostas dele, que eu anotava em um caderno.
1) B, quando você retrocede em suas lembranças, quais são as memórias mais
distantes que você alcança? Quais foram suas primeiras impressões do mundo?
Em torno dos 4 anos, via os primos conversando, interagindo, mexendo a boca, mas não
ouvia, não entendia. Eu tinha duas primas mais velhas que eram surdas e falaram, por meio
de gestos (não LIBRAS), que eu era igual a elas, surdo.
75
2) Como acontecia a comunicação entre seus pais e você?
Meus pais moravam na Bahia, numa região rural, e tinham um relacionamento muito
estreito com minhas primas surdas. Elas eram expansivas e tinham um círculo de amizade
que ia além do âmbito familiar. No afã de se comunicar, elas, os amigos e os parentes, que
incluíam meus pais, desenvolveram vários sinais, de forma espontânea.
Meus pais mudaram-se para São Paulo, assim que se casaram. Lá nascemos eu e meus
quatro irmãos surdos, então eles perceberam que o domínio dessa forma de linguagem,
embora simples, seria de grande valia. Eles nos ensinaram, e passaram a se comunicar
conosco por meio desses sinais. Minha mãe era muito criativa no emprego dessa
linguagem.
3) Você voltou a ter contato com as primas surdas e os familiares e amigos da Bahia?
Sim, quando eu tinha uns 6 anos, voltei com minha mãe à Bahia. Toda a família e os
amigos já mencionados tinham prazer em cooperar com nossa comunicação. Havia um
amor entre eles e por nós, que os levava a incluir a todos; havia um empenho nesse sentido.
4) Esses sinais que você menciona tem alguma relação com LIBRAS?
Nenhuma! Mais tarde aprendi LIBRAS, porém, até hoje, eu me comunico com meus pais
por meio desses gestos, pois eles não sabem LIBRAS. Minha mãe era muito criativa no
uso desses sinais.
5) A nos disse que, aos 10 anos, você ingressou numa escola oralista, como foi essa
experiência?
A fonoaudióloga insistia para que eu falasse. Por exemplo, quando me ensinava a palavra
café, ela repetia a palavra articulando a boca. Eu tentava, confundia o [C] com o [G], ela
corrigia. Em outro momento, ensinava a pronunciar manteiga. Eu expressava manmanteiga, e a fonoaudióloga corrigia. Quando eu acertava, ela ficava alegre, vibrava.
76
6) Qual a experiência mais significativa desse período de aprendizado?
Aprendi a gostar de cavalos quando morava na Bahia, é o animal que mais gosto. Quando a
professora se empenhou para ensinar esta palavra, eu me empolguei e me empenhei para
pronunciá-la. Depois de alguns exercícios com o acompanhamento da professora,
finalmente eu pronunciei CAVALO. Isso sensibilizou a fonoaudióloga, que começou a
chorar. Nunca esqueço desse momento.
7) Em que momento você teve contato com LIBRAS?
Quando estava na escola oralista, aos 13 anos, tinha um colega de classe com 17 anos, o
qual me disse que existia um lugar onde havia muitas pessoas surdas que falavam com por
meio de sinais. Ele me convidou para acompanhá-lo até este local, mas eu disse que não
tinha dinheiro para a condução. Então o colega me disse que seu pai passaria de carro em
minha casa e nos levaria para este lugar, que era a associação de surdos de São Paulo. No
domingo, como prometido, o pai dele passou em casa. Eu entrei no carro maravilhado com
o veículo, enquanto o carro se dirigia para a associação, eu investigava cada detalhe do
automóvel.
Nunca esqueço desse dia, foi um grande impacto entrar na associação e ver muitas pessoas
fazendo sinais umas para as outras. Elas movimentavam as mãos, velozmente, minha
cabeça girava de um lado para o outro, não entendia nada. Eu não sabia que existia tantas
pessoas surdas, iguais a mim. Mas elas sabiam tantas coisas que eu não sabia. Eu queria
aprender também. Nesse dia eu aprendi muitos sinais da LIBRAS, aprendi que cada sinal
corresponde a uma palavra. Quando a palavra não tinha sinal, eles faziam um gesto, uma
expressão facial e corporal.
8) O que mais o surpreendeu nesse encontro?
Eu não sabia que existia casais de surdos, e surdos casados com ouvintes, filhos de surdos
que eram ouvintes e se comunicavam usando LIBRAS.
77
9) Qual o efeito dessa experiência em sua vida?
Naquele momento, eu soube que poderia namorar e casar, existia um lugar para mim no
mundo. Eu passei a frequentar a associação todos os domingos. Contudo, o pai do meu
amigo não poderia mais passar em casa, então um dia ele e o meu amigo foram comigo de
ônibus à associação, para que eu, nessa época com 14 anos, aprendesse a andar de ônibus.
A partir daquele momento, eu passei a ir sozinho à associação, para participar daquelas
interações, que para mim foram muito significativas.
10) Como sua família reagiu a essa nova experiência?
Há uma tendência entre os pais de surdos para superprotegê-los. Eles, via de regra,
acreditam que seus filhos são vulneráveis e não podem, por exemplo, sair sozinhos. Eu
enfrentei conflitos com minha mãe, quando comecei a sair sozinho de casa, porém não
abria mão dessa experiência, principalmente no que dizia respeito a integração com os
surdos da associação.
3.5.1 As impressões da entrevista com B
Algo muito interessante foi o fato das primas de B, muito expansivas, desenvolverem, com
os familiares, uma linguagem de sinais própria, com a qual elas interagiam com os parentes
e amigos. B diz que sua mãe é muito criativa no emprego desses sinais. Isso nos dá uma
ideia da versatilidade dessas pessoas, quando querem se comunicar, criar, aprender e
ensinar.
O interesse, a persistência e a sensibilidade da fonoaudióloga permanecem como fatos
impressionantes. No diálogo com B, pude perceber isso de forma bem tangível. No
momento em que os lábios dele pronunciaram a palavra cavalo, a fonoaudióloga não
conteve as lágrimas, dando vazão a emoção tão comum no coração das pessoas que amam.
Ele era um adolescente, 40 anos são passados, mas quando narrou a experiência, na sala de
minha casa, B instaurou um momento solene, de emoção, silêncio, ressonâncias. A
fonoaudióloga ensinou mais do que a pronúncia de palavras, ela o fez aprender que ele tem
valor como ser humano. A mais preciosa lição.
O amigo surdo de B o convidou para ir a associação de surdos. É importante ressaltar o
desejo do amigo em compartilhar com ele um novo universo. Imaginamos, com o relato, o
impacto avassalador do primeiro contato com o mundo dos surdos da associação, falando
78
em LIBRAS. B diz que a sua sensação foi a de que existia um lugar para ele. Não pode
haver obstáculos que impeçam as pessoas de encontrar no mundo o seu lugar. Nada pode
impedi-las de viver, aprendendo, na relação com seus pares.
Na entrevista, percebi que B aguardava, com ansiedade, a chegada de cada domingo, o
encontro com a comunidade de surdos. Ele tinha sede de aprender, e na associação ele se
desenvolvia socialmente, aprendia sinais novos, e dentro de pouco tempo, ele se
expressava e movimentava as mãos da mesma forma que aqueles que o surpreenderam.
Na associação de surdos ele aprendeu que os surdos namoram e se casam, têm direito a
vida, como as outras pessoas. Este fato denota que ele não acreditava que poderia viver
como os outros. Pensava não possuir o direito de partilhar dos relacionamentos que ele
apreciava, os quais julgava serem vedados a ele. Por outro lado, é significativo ser um
instrumento que desobstrui as alamedas da vida, para que diferentes e iguais possam
transitar rumo à felicidade.
3.6 Entrevista com D
D, 29 anos, surda, casada com E, ouvinte. Os pais de D são ouvintes e ela tem duas irmãs,
mais novas, ouvintes. Ela concluiu a faculdade de Administração de Empresas, e fez pósgraduação na mesma área. Há dois anos trabalha na IBM, setor contábil.
Convidei D e seu esposo para nos conceder uma entrevista em minha residência. D tem
uma boa leitura labial, por isso compreendia uma boa parte de minhas perguntas, e E
complementava o que ela não compreendia. Da mesma forma, eu conseguia entender
algumas palavras do que ela falava e E me ajudava a compreender a ideia completa. Fiz as
anotações em um caderno.
Fotografia 5 – D, surda, contando suas experiências para os alunos do Ensino Fundamental II do IASP,
sendo traduzida por E, seu marido, ouvinte.
79
Fonte e autor: Humberto Costa Cezar
Data: 2013
1) Quando seus pais perceberam que você era surda?
Minha mãe me conta que eu era um bebê com alguns meses de idade, e numa ocasião eu
estava junto a outras crianças, quando ela se aproximou e me chamou algumas vezes, de
forma bem audível, mas eu não atendi, embora as crianças ao redor, surpreendidas,
olhassem para ela. Este fato a deixou muito consternada. Um vizinho a acalmou e a
aconselhou a procurar um médico.
2) Quais são suas recordações dos primeiros anos da infância?
Dos 2 aos 4 anos minha mãe me levava para o Jardim da Infância. Em minha mente
surgem, de modo vago, apenas algumas imagens dessa época, são memórias de muitas
brincadeiras, as crianças ouvintes brincavam ativamente e eu procurava seguir o ritmo
delas.
3) Como aconteceu o aprendizado de LIBRAS?
Quando eu tinha 4 anos de idade, minha mãe me matriculou numa escola especial, e lá
fiquei até completar sete anos. A professora ensinava os sinais básicos de LIBRAS,
80
contudo eu fiz muitos amigos nessa escola, com os quais interagia usando a linguagem de
sinais. Isso foi fundamental para que eu ganhasse fluência no emprego da LIBRAS.
4) Você usou aparelhos auditivos?
Eu tenho apenas 25% de audição, o aparelho, com todas as suas limitações, ajuda a
melhorar esse percentual. Dos 4 aos 7 anos, eu usei um aparelho bem rudimentar, porém
aos 7 anos, meu pai vendeu o carro para comprar um aparelho auditivo analógico. Sou
muito grata a meu pai por isso.
5) Percebo que você é bastante oralizada, quais fatores você atribui para o bom
desenvolvimento alcançado nesse aspecto?
Desde os quatro anos, meus pais me levavam à fonoaudióloga, uma vez por semana,
durante doze anos.
6) Em quais tipos de brincadeiras você se envolvia com as crianças ouvintes?
Nós brincávamos de pega-pega, esconde-esconde, telefone sem fio, etc.
7) Como você aprendia essas brincadeiras?
Primeiro, eu ficava observando as crianças, quando brincavam, e então me juntava a elas.
Na brincadeira “telefone sem fio”, um cochichava para o outro alguma mensagem. Na
minha vez de ouvir, eu não entendia o cochicho, então inventava qualquer coisa e
procurava pronunciar no ouvido do colega.
8) Sua mãe ensinava para você as atividades do dia-a-dia em sua casa?
Sim, ela me ensinou a cozinhar, passar roupas, varrer a casa, etc.
9) Que método ela usou para te ensinar a passar roupa?
81
Ela ficava de frente para a tábua de passar roupa, e pedia para eu ficar ao lado dela. Ela
procurava mostrar, passo a passo, como se passa, por exemplo, uma camisa. Depois ela
pegava outra camisa e pedia para eu passar. Quando terminava, ela elogiava os pontos
positivos e corrigia os procedimentos errados. Ela exercia a paciência. Meu pai me
explicava as matérias da escola, também era muito paciente.
10) Seus pais aprenderam LIBRAS?
Na verdade, quando garota, eu não queria que eles aprendessem LIBRAS, pois tinha
vergonha que as pessoas me vissem conversando em LIBRAS com eles, eu não aceitava a
minha condição de surda.
11) Quando você mudou de ideia?
Aos 16 anos. Nessa época, minha fonoaudióloga disse que, para o meu desenvolvimento,
eu precisaria me comunicar com os surdos por meio da linguagem de sinais. Então passei a
fazê-lo, isso foi muito bom, me ajudou a valorizar a minha condição de surda. Há surdos
oralizados que não usam LIBRAS e dizem que são apenas deficientes auditivos, não
assumem a sua condição.
12) Como aconteceu o seu ingresso na IBM?
Eu fui chamada para uma entrevista com a gerente da contabilidade. Para minha surpresa,
percebi que ela tinha dificuldade auditiva, porém conseguia se comunicar, usava aparelho
auditivo, não sabia LIBRAS. Fui aprovada e contratada, fato que muito me alegrou.
13) Como você aprendeu o trabalho, no setor contábil da IBM?
Não foi fácil, eu não sabia por onde começar. A gerente havia pedido para os colegas do
setor me ensinarem. Eu pedia para um rapaz, que me ensinava com pressa, mas eu não
entendia, logo ele começou a ficar nervoso e tornou-se ríspido. Percebi que o melhor era
alternar as pessoas para as quais pediria auxílio, até que fui aprendendo e me
desenvolvendo.
82
14) Como se iniciou o seu namoro com E?
Eu fui a uma reunião da comunidade de surdos do IASP e o E estava lá. Percebi que ele era
ouvinte. Começamos a trocar olhares, que foram flagrados pelos amigos surdos, eles são
espertos, captam rapidamente as expressões, interpretam os olhares. Em algum momento
da reunião, os surdos pediram que eu expusesse uma determinada experiência pessoal que
eles achavam interessante. Eu procurava olhar para o público, mas era traída por meus
olhos, que insistiam em fixar E. Em algumas ocasiões, seu olhar cruzava com o meu, e
alguma coisa acontecia que disparava meu coração.
Algum tempo depois, os surdos marcaram uma excursão para Curitiba, E participou do
passeio, andamos juntos, conversamos bastante, começamos a namorar e nos casamos
algum tempo depois. Estamos casados há um ano e sete meses.
3.6.1 Comentários da entrevista com D
D diz que, quando criança, interagia com crianças ouvintes. Brincavam de pega-pega,
esconde-esconde, telefone sem fio dentre outros folguedos. Ela observava as outras
crianças brincando e chegava a suas conclusões, dava certo, pois ela se sentia encorajada a
se juntar aos ouvintes. Como lemos, ela dava um jeito, até na brincadeira do telefone sem
fio.
Interessante que sua mãe encontrava uma estratégia para ensiná-la a passar roupas. Óbvio
que seria mais fácil a própria mãe passar as roupas. Ensinar uma menina surda requer
criatividade, despende-se mais tempo, é essencial que haja amor. A mãe conseguiu.
A própria D menciona que não aceitava a sua condição de surda, entretanto novamente
vemos o papel de uma fonoaudióloga sensível, trabalhando com ela, e mostrando-lhe que
era importante aprender LIBRAS. Este foi o processo, como ela diz, que desencadeou a
sua autoaceitação. Que lição: Você aprende a ser o que você é com a ajuda de outros seres
humanos.
D é formada em administração de empresas e tem pós-graduação nesta área, contudo o
início de sua vida profissional na IBM foi muito difícil. Temos, no relato, uma amostra de
pessoas indiferentes, subjetivadas por um mundo competitivo. Todavia, ela foi sábia,
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procurou mudar de estratégia. Assim ela foi aprendendo com os ouvintes, tornou-se uma
profissional necessária à empresa, na qual trabalha há dois anos.
Muito interessante é o relato do início de seu namoro com E. O fato conteceu num
encontro da comunidade de surdos do IASP. Isto nos mostra como é imprescindível a
existência dessa comunidade. Percebemos, com essa experiência, a percepção aguçada dos
surdos. Eles leram as expressões, os movimentos da cabeça, os olhares e perceberam o que
estava acontecendo. Eles estão casados há um ano e sete meses. Na próxima entrevista,
saberemos o que fez E se aproximar da comunidade de surdos do IASP.
3.7 Entrevista com E, ouvinte, esposo de D
E, 26 anos, é formado em Educação Física, porém atua como intérprete na escola pública
e, voluntariamente, na comunidade de surdos do IASP. Já trabalhou como intérprete na
faculdade de Sistemas de informação. Ele fez a prova do MEC e obteve a proficiência em
tradução e interpretação. A entrevista foi presencial, no mesmo dia que entrevistei D, em
minha residência. Fiz as perguntas a E e anotei suas respostas e um caderno.
Fotografia 6 – D, surda e seu marido E, ouvinte
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Fonte: Claudemir Beloto
Autor: Joel Rocha
Data: 2012
1) O que o levou a se aproximar da comunidade de surdos do IASP?
Em 2008, eu cursava Educação Física e precisava fazer estágio, resolvi cumprir este
requisito acadêmico em julho, quando fui à casa de meus familiares em Curitiba. Procurei
uma escola pública e iniciei as atividades pedagógicas. Nessa escola havia um rapaz de
aproximadamente 14 anos que era surdo. Pedi um intérprete, mas disseram-me que não
havia nenhum disponível. Perguntei se algum professor sabia LIBRAS, a resposta foi
negativa. Eu fiquei consternado em ver aquele rapaz presente fisicamente, mas sem poder
interagir com os colegas e professores.
A sensação foi tão aterradora que, ao voltar para São Paulo, fiz o firme propósito de
aprender LIBRAS, e com este intento aproximei-me da comunidade de surdos do IASP.
Dentro de poucos meses eu já conseguia atuar como intérprete para a comunidade de
surdos e, depois de algum tempo, passei a trabalhar como intérprete de um aluno do 6º ano
do Ensino Fundamental, e de outro da Faculdade de Sistemas de Informação.
85
2) Imagino que, como interprete, na faculdade de Sistemas de Informação, você deve
se deparar com situações complexas, nas quais o professor discorre sobre termos
técnicos para os quais não há um sinal correspondente. Se isso acontece, que recurso é
usado pelo tradutor?
Sim, isso é comum numa faculdade de Sistemas de Informação e acredito que em outras
áreas também. Mas falo de minha experiência, quando isso ocorre, temos que usar um
classificador.
3) O que é um classificador?
Quando o intérprete se depara como uma situação mencionada acima, ele tem que ter um
lampejo e construir um sinal naquele momento. Chamamos este sinal inventado de
classificador. A eficiência da criação é determinada pela compreensão do surdo.
4) Você pode nos dar um exemplo vivenciado por você?
Sim, aconteceu várias vezes na faculdade de Sistemas de Informação, quando eu era
intérprete, como já mencionei. Narrarei a seguir um exemplo. Quando o professor estava
trabalhando um assunto referente ao Banco de Dados, o qual recebe informações com o
propósito de disseminá-las, disponibilizando-as para os usuários, vivi um impasse
momentâneo. Enquanto o aluno olhava para mim, buscando uma compreensão, eu
hesitava, contudo uma luz, uma ideia me ocorreu. Fiquei com a mão esquerda fechada,
bem afastada da mão direita. Esta, com o dedo indicador e médio estendidos e os demais
semiestendidos, ia ao encontro da esquerda, e se abria ao aproximar-se, afastando-se com
os todos os dedos estendidos, enquanto a esquerda permanecia fechada. Vi uma luz brilhar
nos olhos do surdo, sinal de compreensão. A mão direita trazia informações para a mão
esquerda fechada, que as armazenava, mas a seguir, a direita se afastava com todos os
dedos estendidos simbolizando a difusão das informações que foram trazidas para o banco
de dados. As expressões do rosto e do corpo devem, na medida do possível, acompanhar de
forma sincronizada a ideia que se deseja transmitir.
5) Como são os encontros sociais dos surdos do IASP?
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Eles se reúnem, com frequência aos sábados, durante o dia e, eventualmente, aos sábados à
noite. Quando isso acontece, eles costumam ficar conversando até tarde da noite, as vezes
a noite toda.
6) Parece que, nesses encontros, eles “perdem a noção do tempo”, falo isso no bom
sentido, como você explica isso?
A cultura do surdo é diferente do mundo dos sons, ele nasce, cresce, se desenvolve no
silêncio, toda a sua experiência acontece no silêncio. A mão que mexe é a fala e a escuta
dos surdos, traz informações, passa notícias, conta as novidades, brinca e faz piadas, conta
o que aconteceu de bom e de ruim com eles, no Brasil e no mundo; é o meio mais rápido e
eficaz para obterem e transmitirem ideias, informações e conselhos em todas as áreas da
vida.
Para os surdos, não existe situação mais agradável e prazerosa do que quando se encontram
entre si ou com os ouvintes que falam LIBRAS, realmente eles não percebem as horas
passarem.
7) Você disse que eles contam piada. Quais são as piadas que eles contam? dê-nos um
exemplo.
Geralmente eles contam piadas relacionadas à surdez. Narrarei uma destas a seguir: “Uma
moça surda convidou, pela primeira vez, seu novo namorado surdo para ir ao apartamento
dos pais dela, a fim de conhecê-los. Os pais da moça também eram surdos. Chegaram ao
prédio e subiram para o andar onde os pais moravam. Depois de conversarem bastante, já
era tarde da noite, ela pediu que ele fosse comprar um remédio para a mãe dela. Explicou
onde havia uma farmácia de plantão e ele foi. Quando retornou com o remédio, ele não se
lembrava mais em que andar ficava o apartamento dos pais da namorada. Olhou para todos
os andares do prédio, percebeu que as luzes de todos os apartamentos estavam apagadas,
sua dúvida aumentou ainda mais. Ele teve uma ideia, entrou em seu carro e começou a
buzinar, fez isso demoradamente. Uma a uma, as luzes foram se acendendo, até que quase
todos os apartamentos ligaram as luzes e abriram as janelas para ver quem estava
buzinando. Mas um apartamento continuou com as luzes apagadas. Ele havia descoberto o
andar que procurava.”. No final, quase sempre, eles sorriem muito, é aquela festa.
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8) Em quais áreas profissionais eles atuam?
A maioria atua em trabalhos manuais ou braçais em empresas, ou na linha de produção de
alguma indústria, também atuam como vendedor, e neste caso levam um prospecto ou um
pequeno papel, contendo a oferta escrita de seus produtos.
9) Quanto a vida social e lazer, o que eles mais apreciam?
Todos gostam de participar de encontros com surdos e ouvintes que falam LIBRAS. Creio
que essa é a atividade de lazer número um, a que eles mais apreciam, como já disse, eles
são capazes de passar a noite conversando em grupos. Muitos deles jogam futebol, outros
gostam de jogos de mesa, como dominó, uno. Apreciam assistir filmes, dramatizações, etc.
3.7.1 Considerações sobre a entrevista com E
A resposta à primeira pergunta é impactante. Ao fazer estágio, na área de educação física,
em Curitiba, E se vê sem ação frente a um aluno surdo, que se tornara invisível à escola.
Consternado, ele retorna à São Paulo com o firme propósito de fazer alguma coisa para
mudar cenários como o daquela escola de Curitiba. Esse intento o leva à comunidade de
surdos do IASP, faz com que ele se torne intérprete e se case com uma surda.
Na resposta à segunda, terceira e quarta perguntas, E fala do classificador. Esse relato nos
mostra um dos diversos modos que os surdos aprendem e ensinam. É fantástico o fato do
intérprete usar um sinal criado num instante em que um novo sinal é imprescindível para
que haja aprendizado. Como saber se esse novo sinal alcançou seu propósito? A resposta
talvez seja difícil de ser compreendida por nós ouvintes. Existe um diálogo sem palavras,
os olhos se aliam, nesse instante, aos traços do rosto, que se modificam indicando
assentimento. Nesse momento ocorre uma celebração silenciosa de pessoas que veem, em
cada novo sinal, a promessa de que poderão se comunicar enquanto viver.
Quando pergunto a E sobre o lazer dos surdos, ele fala que o preferido deles é conversar
entre eles e os ouvintes que falam LIBRAS. Eles se encontram e ficam horas a fio
conversando. Este modo de ser deles vai de encontro à indiferença do mundo.
O fato dos surdos contarem piadas como a que foi mencionada na sétima resposta,
relacionadas à surdez, mostra que eles lidam de maneira madura com essa questão. Não
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são piadas que denigrem os surdos, pelo contrário, confirmam a capacidade deles de lidar
com a surdez de uma forma positiva.
O fato dos surdos, em sua maioria, trabalharem em áreas que não requerem capacitação
acadêmica, evidencia inaptidão e despreparo de nossas escolas para lidar com os surdos.
Um exemplo disso é a experiência de E em Curitiba. Um sinal claro de que eles são
invisibilizados pelo mundo.
3.8 Entrevista com F, ouvinte, filha de pais surdos
F, 20 anos, é uma ouvinte que foi educada por pais surdos. Trabalha para a empresa Mais
Inclusão, a qual presta serviço provendo intérpretes para escolas que educam alunos
surdos. Como uma destes intérpretes, ela atua em uma sala do 7º ano e, como cursou
Biomedicina, leciona Biologia para uma turma do 2º ano do Ensino Médio. Nessa escola,
atua também como professora substituta de qualquer professor que, eventualmente, venha
faltar.
A entrevista com F foi presencial, em minha residência. Fiz as perguntas, e anotei suas
respostas em um caderno.
Fotografia 7 – F, do lado esquerdo, ouvinte, filha de pais surdos.
Fonte e autor: Wellington Romangnoli
Data: 2009
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1) Sendo educada por pais surdos, como você aprendeu a falar?
A residência de minha avó, ouvinte, fica no mesmo terreno da casa de meus pais, logo eu
tinha bastante contato com ela. Isso foi importante no desenvolvimento de minha
oralidade. Depois, quando ingressei na escola, o contato com os ouvintes foi mais intenso e
fundamental para o desenvolvimento da oralização.
2) Quando você era bebê, como seus pais descobriam que você estava chorando?
Meus pais instalaram uma babá eletrônica em meu berço, quando eu chorava uma luz
acendia no quarto deles, e desta forma eles podiam atender às minhas necessidades.
3) Qual o recurso que os surdos empregam para saber que há uma visita aguardando
no portão? Qual meio eles usam como despertador e como utilizam o celular?
Quando a campainha dos surdos é acionada, luzes se acendem em locais estratégicos da
casa. A luz também é usada como despertador e pelo celular, e por meio deste último
enviam mensagens (SMS).
4) Durante a infância, você se lembra de algum momento em que você olhava para os
seus pais conversando e não entendia os sinais que eles faziam?
Não, o aprendizado foi um processo tão natural, que eu não me lembro de algum momento
no qual não entendia a comunicação entre eles. Sempre os compreendia e interagia com
eles. Às vezes, eles faziam um determinado pedido e eu respondia fazendo sinais trocados,
então eles me corrigiam. Fazendo uma analogia, seria como uma criança educada por pais
ouvintes que troca as sílabas de uma palavra ou as pronuncia erroneamente.
5) Houve alguma situação mais complexa na sua infância? Você pode mencioná-la?
Quando eu tinha 6 anos, lembro-me que entrei no quarto e a maçaneta da porta se soltou,
fiquei trancada, desesperada, imaginando uma forma de chamar a atenção de meu pai, pois
somente ele estava em casa naquela ocasião. Tive uma ideia, peguei várias folhas de papel
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e comecei a passá-las por baixo da porta, até ele perceber que algo estranho estava
acontecendo, então caminhou em direção à porta e me libertou.
6) Seus pais a ajudavam em alguma tarefa da escola?
Minha mãe gosta de desenho e pintura, por isso quando havia alguma atividade escolar que
envolvesse desenho e pintura, ela me auxiliava com muito esmero.
7) Como seus pais fazem para explicar alguma coisa para você?
Por exemplo, se eles querem que eu vá ao banco conversar com o gerente. Primeiro eles
dizem, por meio de LIBRAS, que no banco tem filas, onde há mesas com divisórias, e que
uma das filas é para falar com o gerente, que está em uma das divisórias.
8) Como você faz para explicar alguma coisa para eles?
Uma vez meu pai me perguntou o que é H2O. Primeiro eu mostrei a água que estava em
um copo, depois peguei uma folha de caderno e desenhei várias bolinhas que eram as
partículas (átomos) de hidrogênio e oxigênio que formam a molécula, que é a menor parte
da água. Muitas moléculas juntas formou a água que ele estava vendo.
9) Você é intérprete de G, um aluno surdo do 7º ano. Dê-nos um exemplo de como
você explica para ele.
G tem sede de saber, não se dá por vencido enquanto não entende um assunto. Um dia ele
me perguntou como os portugueses chegaram ao Brasil. Eu desenhei os continentes numa
folha de papel. Os colegas ouvintes fizeram barquinhos de papel. Quando estes chegaram
ao Brasil (no mapa), os alunos representaram os índios.
Numa determinada ocasião, G, que ainda está aprendendo LIBRAS, fez um sinal para mim
que significa estudar. Então eu perguntei se estava estudando, e ele me disse que não quis
dizer isso. Então perguntei o que ele queria dizer. Nesse momento, ele conseguiu
pronunciar: O papel do Hopi Hari.
91
10) Dê-nos mais um exemplo de algum recurso que você usou com o propósito de
ensinar um aluno surdo.
Certa vez eu substituí a professora de História em uma turma do 2º ano do Ensino Médio,
onde o aluno H, surdo, estudava. Naquela época não havia intérprete para este aluno. Eu
distribuí um texto para os alunos lerem, porém H não compreendeu. Então propus que os
alunos fizessem uma dramatização do texto e conversassem sobre o assunto. Desta forma
H conseguiu compreender. Esses resultados sempre são muito gratificantes para mim.
11) F, você tem um irmão ouvinte, quase da sua idade; conte-nos como acontece a
comunicação entre vocês e os pais? Como vocês alternam LIBRAS e linguagem oral
em família?
Atualmente, meu irmão mora com meus avós maternos. Quando ele morava conosco,
houve ocasiões em que estávamos sentados à mesa, conversando com nossos pais por meio
de LIBRAS, de repente minha mãe se levantava e meu pai se distraía com outra coisa,
então continuávamos, eu e meu irmão usando sinais, sem nos darmos conta.
Às vezes, eu começo a me comunicar com I, meu namorado, usando LIBRAS, então ele
me lembra que não é necessário.
12) Você teve contato com surdos que eram oralizados, qual foi a relação deles com a
LIBRAS?
Estudei com a jovem J, que é surda. Seus pais a levavam a fonoaudióloga desde quando era
criança, com isso ela se tornou muito oralizada. Conseguia fazer leitura labial e expressar
palavras. Ela se recusou a aprender LIBRAS, porque tinha receio de ser rejeitada pelos
colegas de sala de aula e até mesmo pelo namorado. Uma vez eu a encontrei chorando e
perguntei a razão, ela me disse que não encontrava uma profissão para a qual não se
sentisse limitada.
Conheci também um rapaz baiano que ficou surdo aos 7 anos, contudo continuou falando,
naturalmente com o sotaque peculiar a sua região. Ele procurou aprender LIBRAS,
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tornando-se bilíngue. O fato dele ser bilíngue permitiu o seu desenvolvimento intelectual,
lia bem e escrevia, era falante.
M foi outra colega surda com a qual convivi. Ela também foi acompanhada por uma
fonoaudióloga. Seus pais, a princípio, não queriam que ela aprendesse LIBRAS, entretanto
quando ela entrou na adolescência demonstrou desejo de aprender a linguagem de sinais, e
seus pais cederam. Isso muito contribuiu para o seu desenvolvimento em todas as áreas.
13) Você conhece surdos que não são oralizados e não aprenderam LIBRAS?
Sim, infelizmente, há muitos surdos que não conhecem LIBRAS. Eles vivem totalmente
isolados, sem escolaridade, não conseguem se comunicar. São ignorados pela sociedade e
ignoram a sociedade. As crianças que vivem nessas condições se reprimem, têm medo da
aproximação de outras pessoas.
14) Qual a profissão de seus pais?
Eles trabalham no setor de metalurgia. Minha mãe é auxiliar de produção há seis anos.
Meu pai é operador de máquinas.
15) A surdez causou a seus pais dificuldades no local de trabalho?
Notei que meu pai se deparou com maiores dificuldades. Ele foi admitido em uma
metalúrgica como operador de máquinas. O líder do setor ignorava o fato dele ser surdo e
dava orientações próprias para ouvintes. Meu pai procurava observar e compreender o
funcionamento da máquina sozinho, e assim deduzir os procedimentos que deveria
executar. Naturalmente ele cometeu alguns erros. Tais falhas deixavam o gerente
extremamente irritado, o que era constrangedor para meu pai.
A metalúrgica admitiu um gerente que havia trabalhado com surdos e tinha habilidade para
orientá-los. Meu pai foi transferido para o setor desse novo gerente, que com paciência e a
didática adequada o ensinou a operar máquinas que faz furos de precisão em vários tipos
de peças.
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3.8.1 Comentários sobre o diálogo com F
A experiência de F pode ser atípica para nós, mas para os surdos é uma experiência
relativamente comum. Há surdos que perderam a audição por causa de alguma
enfermidade, acidente ou outra causa qualquer, que não tem a ver com hereditariedade, e
seus filhos nascem ouvintes, como o caso de F e seu irmão. Todavia, em minha mente
surgiram algumas perguntas instigantes, ainda mais por F ser professora. A primeira delas
foi como aprendeu a falar. F aprendeu a falar com sua avó, que era sua vizinha, e,
certamente, o relacionamento com seu irmão muito contribuiu para o desenvolvimento da
capacidade de falar de ambos. Via de regra, os ouvintes, filhos de pais surdos, se
relacionam com outros membros da família e, algumas vezes, com os filhos de seus
vizinhos. Ao entrar na escola, este processo pode se intensificar. Mais adiante, estudaremos
o caso de N, um menino ouvinte, que também é filho de pais surdos, assim poderemos
extrair lições adicionais.
O filho de surdos torna-se, naturalmente, bilíngue, pois também aprende LIBRAS. F diz
que não se lembra, quando criança, de olhar para os pais conversando e não entender os
sinais que usavam. Às vezes ela trocava os sinais ao conversar com eles, entretanto eles a
corrigiam. Seria como uma criança que, aprendendo a falar, troca as sílabas.
Quando F, com 6 anos, se viu trancada em um quarto, procurou chamar a atenção do pai,
passando papéis por baixo da porta, até que ele percebesse que havia alguma coisa errada.
Isso é apenas uma mostra da capacidade criativa que uma criança desenvolve no universo
dos surdos.
A solicitação da mãe, para que F vá falar com o gerente do banco, é outro fato que nos
chama a atenção. Primeiro ela fala que no banco há filas, e que uma das filas é para falar
com o gerente, que está em uma das divisórias, e o seu pedido é que ela pegue essa fila. É
claro que existem outras maneiras dela fazer o mesmo pedido, contudo a construção de seu
raciocínio nos mostra a peculiaridade do mesmo, que apenas é diferente, mas alcança seus
propósitos.
C, pai de F, perguntou para ela o que é H2O. Diante de um impasse momentâneo, ela
mostrou a água em um copo, e depois desenhou várias bolinhas, procurando explicar que
eram as partículas de hidrogênio e oxigênio que formavam a molécula da água.
Verificamos a habilidade de F para dar respostas satisfatórias.
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Na resposta à pergunta 10, ela mostrou criatividade ao discorrer para o aluno N, surdo,
sobre a vinda dos portugueses para o Brasil, e no processo ela envolveu os amigos,
intensificando a relação social.
O fato de F ser filha de pais surdos proporcionou possibilidades de desenvolvimento para
outros surdos, um exemplo de compromisso, de solidariedade.
3.9 Entrevista com Ot, surda, mãe de F, ouvinte
Ot, 47 anos, é casada com C. Ambos são surdos e pais de F, ouvinte. Ot não tinha
disponibilidade para vir em casa. Então enviei para F um e-mail com as perguntas para Ot.
F colheu as respostas de sua mãe, digitou e as enviou para mim.
1) Ot, seus pais se comunicavam usando LIBRAS, quando você era criança? Você se
lembra de algum momento em que eles queriam ensinar algo mais complexo, como
fizeram?
Quando criança, frequentava escolas especializadas, era constantemente acompanhada por
uma fonoaudióloga, não usava LIBRAS de jeito nenhum. As professoras diziam aos meus
pais que a LIBRAS iria me prejudicar, e que eu só conviveria com ouvintes se
desenvolvesse a fala.
Fotografia 8 – Ot e C, surdos, pais de F, ouvinte
95
Fonte e autor: Wellington Romangnoli
Data: 2008
1) Ot, seus pais se comunicavam usando LIBRAS, quando você era criança? Você se
lembra de algum momento em que eles queriam ensinar algo mais complexo, como
fizeram?
Quando criança, frequentava escolas especializadas, era constantemente acompanhada por
uma fonoaudióloga, não usava LIBRAS de jeito nenhum. As professoras diziam aos meus
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pais que a LIBRAS iria me prejudicar, e que eu só conviveria com ouvintes se
desenvolvesse a fala.
2) Qual o processo empregado para alfabetizá-la?
Foi um método tradicional, pois a escola que eu frequentava queria me tornar uma
“ouvinte”, tive muita dificuldade e sofri muito, pois não conseguia aprender. Depois de
muito tempo, fui aprendendo a ler, mas foi uma experiência difícil.
3) Você gosta de pintar e desenhar, quando surgiu o interesse? Alguém a motivou a
desenvolver essas habilidades?
Sempre gostei, desde pequena, é natural. Até hoje eu gosto muito. Na escola era muito
incentivada, principalmente pela minha professora de Artes.
4) Quando a F e o irmão nasceram, bebês ouvintes, qual foi a sua expectativa e a de
C? Vocês pensaram em alguma estratégia especial para educá-los?
Ficamos muito felizes com a chegada dos dois, mas de início não nos preocupamos com o
fato de sermos surdos e eles ouvintes, e como isso iria refletir na forma de educá-los. Mas
na atual sociedade, temos muitas barreiras sociais, contudo a nossa família sempre nos
ajudou, principalmente quando as crianças começaram a estudar.
5) Quantos anos a F e o irmão tinham quando você percebeu que eles estavam
entendendo a linguagem de sinais? Houve alguma experiência marcante?
O aprendizado da LIBRAS foi semelhante ao que acontece com o desenvolvimento da fala
de crianças ouvintes, quando elas têm em torno de um ano de idade.
Uma vez estávamos somente eu, o C e a F que era bebê, e bateram palmas, no portão. A F
olhou para nós e apontou o dedinho para o portão, até que compreendemos que havia
alguém lá.
97
6) Havia a preocupação de fazer com que eles tivessem contato com ouvintes para que
aprendessem a falar, ou esse contato aconteceu naturalmente?
Sim, havia essa preocupação, mas como no início morávamos com a minha mãe, a fala
deles era estimulada e eles aprenderam muito bem. Até já orientamos casais surdos, que
tem filhos ouvintes, a colocarem a criança na escolinha logo, para que o desenvolvimento
da fala possa fluir naturalmente.
7) Você pode citar exemplos de algumas coisas (ensinos) nas quais você teve que se
empenhar mais, pensar em algo mais elaborado, para conseguir transmitir a seus
filhos, como aconteceu?
Como as crianças sempre foram fluentes em LIBRAS, nunca tivemos grandes dificuldades.
Mas nos momentos em que aconteceu, tentamos criar situações na qual era possível
exemplificar o que queríamos falar, uma das maneiras era desenhar, já que é algo que eu
gosto.
3.9.1 Impressões da conversa com Ot
Na resposta à segunda pergunta, Ot diz que a escola queria alfabetizá-la da mesma forma
que alfabetizava os ouvintes. Ela diz que queriam torná-la uma ouvinte, fazer dela algo que
ela não era. Isso é desrespeito, é violência, um atentado ao direito de ser que deveria
contemplar todo ser humano. É um modo de dizer que o surdo não deveria existir com suas
características, e assim o fazem porque para o mundo é como se eles não existissem, são
invisíveis.
Ot menciona, na resposta à quinta pergunta, que F, quando bebê, apontou para o portão,
indicando para os pais que havia alguém batendo palmas. A bebê já compreendia o
contexto em que vivia, por isso o aprendizado de LIBRAS fluiu de modo tão natural.
Outro fato interessante foi Ot desenvolver a habilidade de desenhar, inclusive ela tem
vários quadros em sua casa. Ela usou esta habilidade como ponte para se comunicar com
os filhos, uma capacidade que F herdou.
98
3.10 Entrevista com P, professora do aluno N, ouvinte educado por pais surdos.
Recebi a informação de que o aluno N, 7 anos, ouvinte, cujos pais são surdos, cursou o 1º
bimestre do segundo ano do Ensino Fundamental II no IASP. Procurei a professora que
lecionou para ele nesse período, à qual me refiro como P. Conversamos a respeito da
experiência. Esta família não faz parte da comunidade de surdos do IASP, mas acredito
que sua experiência é relevante. À medida que conversávamos, eu anotava as principais
informações em um caderno.
P me disse que, no início do 1º bimestre de 2013, N procurava sentar no fundo da sala,
demonstrava timidez, não havia interação social com os demais alunos. Quando P realizava
atividades no bosque do IASP, N procurava ficar próximo à professora, porque esta se
comunica em LIBRAS. N, embora seja ouvinte, preferia se comunicar em LIBRAS. Este
fato, a princípio, o afastava dos demais colegas.
A mãe de N disse a professora P que o filho se recusava a cantar, pois ele dizia que se o pai
não conseguia cantar, não era correto ele cantar. Como se ele dissesse que não seria justo
praticar algo que o pai era incapaz.
Na escola onde P leciona há um coral formado pelos alunos do ensino fundamental I. Ela
propôs que os alunos ensaiassem e se apresentassem usando também a linguagem de
sinais. Esta experiência tocou N. Ele percebeu que alguns sinais não eram feitos da forma
correta, e passou a orientar as professoras q coordenavam o coral. P selecionou algumas
músicas para cantar também em sala de aula, usando LIBRAS. Os demais alunos se
empolgaram com a ideia e começaram a abordar N, para que este os ensinasse.
Consequentemente N passou a se interessar pela linguagem oral.
P me disse q sentiu como se N falasse: “Eles se interessam pela minha linguagem, eu
também me interesso pela linguagem deles.”.
3.10.1 Comentário sobre o relato de P
Inferimos da experiência de P que N não teve o mesmo contato com ouvintes que F, talvez
por isso a sua insistência em se comunicar com a professora em LIBRAS. P pensou em
envolver N com o coral da escola, na esperança de socializá-lo, contudo ele se recusava a
cantar. Então ela teve outra ideia, valorizar algo que ele possuía, o domínio de LIBRAS.
99
Eles deveriam cantar usando estes sinais. Como vimos, a atitude de P proporcionou as
circunstâncias para a socialização de N, e seu consequente desenvolvimento como um
menino ouvinte.
O interesse, o compromisso e a preocupação de P são exemplos que todos devemos seguir,
como professores, como seres humanos no contato com as pessoas diferentes.
3.11 Entrevista com Q
Fotografia 9 – Q e sua esposa. Ambos são intérpretes integrados à comunidade de surdos do IASP.
Fonte: Wellington Romangnoli
Autor: Desconhecido
Data: 2013
Q é professor do Ensino Médio de um colégio particular. Ele e sua esposa R são intérpretes
e estão integrados à comunidade de surdos do IASP. Eu elaborei as perguntas e as enviei
por e-mail, ele respondeu e retornou também por e-mail.
1) Como aconteceu a sua aproximação da comunidade de surdos?
Sempre admirei o trabalho com os Surdos da igreja do IASP. Já frequentava a igreja há 7
anos, quando decidi me aproximar do grupo. Passei a me sentar nos bancos próximos
daqueles reservados aos Surdos. Quando perceberam meu interesse, os Surdos e intérpretes
me incentivaram a aprender a língua de sinais. Fui bem recebido pelo grupo.
100
2) Como aconteceu o aprendizado de LIBRAS?
A princípio era apenas nos cultos da igreja, a cada Sábado. Sentava-me próximo aos
Surdos, e procurava relacionar o que era falado na igreja aos sinais que o intérprete usava
para se comunicar com os surdos. É possível aprender bastante usando esse método.
Paralelamente, comprei e li vários livros sobre a língua brasileira de sinais e a cultura dos
Surdos. Também procurei sites na internet com informações sobre os Surdos e a língua de
sinais.
Após algumas semanas, percebendo que meu interesse era real, um casal de Surdos
começou a frequentar minha casa, uma vez por semana, para ensinar Libras para mim e
para minha esposa. Em 3 meses já conseguia me comunicar com eles.
3) Quando a comunicação começou a fluir, quais foram as primeiras impressões e
lições de vida?
Foi a descoberta de um novo mundo. Percebi que há culturas riquíssimas que coexistem
com a minha cultura. Percebi que minha visão de mundo não é a única.
4) Quais os fatos que mais o impressionaram?
Muito me impressionou o fato dos Surdos não se considerarem deficientes. Nós, os
ouvintes (pessoas de audição normal), costumamos ver o Surdo de um ponto de vista
médico-biológico. Isto é, enxergamos o Surdo como um “ouvinte defeituoso”. Pensamos
que ele é uma pessoa que precisa de um concerto, um remendo. Mas, na verdade, os
Surdos deveriam ser considerados do ponto de vista étnico-antropológico. Isto é, como um
povo com cultura, língua e identidade próprias. É assim que eles se veem. É por isso
também que escrevo a palavra Surdo com o S maiúsculo, indicando seu status de povo, de
“nacionalidade”.
5) O que mais o sensibilizou?
101
Muitas coisas…
Entre elas o fato de estar lidando com pessoas de inteligência normal, mas que não são
compreendidas pela sociedade ouvinte dominante. Também não têm a chance de expressar
o que pensam ser o melhor para si mesmas. Chamo isso de OUVINTISMO. Essa
dominância ou ditadura ouvintista pensa que sabe o que é melhor para o Surdo, faz as leis
(em todas as esferas) para os Surdos e força sua aplicação sem levar em consideração as
opiniões e necessidades dos Surdos.
6) Em quais momentos você se reunia com os surdos? Em termos de lazer ou
socialização, o que esta comunidade mais aprecia?
Passei a me envolver com eles em todas as atividades da vida: igreja, futebol,
campeonatos, viagens, festas de aniversários, natal, etc. Eles apreciam estar reunidos, não
importa a atividade. Estão sempre buscando lugares onde possam se encontrar. Em cada
cidade podemos descobrir um ponto de encontro da comunidade Surda, em algum
momento da semana.
7) De forma geral, como ocorre a interação dos surdos desta comunidade com os
demais espaços da vida social, como o trabalho, a vida profissional, etc.?
Eles interagem como podem. Não costumam reclamar de nada. A vida social se limita a
relações entre eles e seus iguais.
8) Um local de convivência desta comunidade é a igreja. Quais os aspectos positivos,
bem como as dificuldades na interação com os ouvintes na igreja?
Pesquisando a história dos Surdos descobri que a igreja sempre foi pioneira na tentativa de
compreender e ajudar os Surdos. Os primeiros professores de Surdos eram homens
religiosos, tais como padres e pastores. A maioria das denominações religiosas tem algum
trabalho para ajudar os Surdos.
102
Nas igrejas os Surdos encontram grupos nos quais podem se inserir. Esse aspecto da
socialização é muito importante. Além disso, está o apoio espiritual que é tão necessário a
qualquer pessoa, inclusive o Surdo.
Mas também há dificuldades. As igrejas também estão contaminadas com o ouvintismo.
Em muitos casos a igreja (liderança e membros ouvintes) se comportam como se
estivessem fazendo um grande favor ao abrir espaço para os Surdos congregarem com eles.
Em algumas programações da igreja, os Surdos nem mesmo são levados em consideração
(como quando se apagam as luzes e deixam o intérprete no escuro). Outras programações
nem mesmo fazem sentido para os Surdos (como um programa exclusivamente musical).
9) Após a convivência com a comunidade de surdos, você mudou de postura, como
professor, ao lidar com alunos surdos e aqueles que são considerados "casos de
inclusão"?
Com certeza me tornei mais preocupado em atender as necessidades de alunos que
necessitam de atenção especial. Antes de meu contato com os Surdos poderia me descrever
como um professor exigente e insensível, sem qualquer consideração pelos alunos com
dificuldades acadêmicas. Expressava abertamente o pensamento de que aluno limitado
deveria procurar outro lugar para estudar e não atrapalhar os “normais’.
Hoje percebo que o profissional da educação sou eu. Portanto, cabe a mim buscar,
aprender e aplicar métodos que vão alcançar qualquer tipo de aluno. Não posso descansar
irresponsavelmente na desculpa de que não aprendi e não sei lidar com casos especiais. Eu
sou o professor, eu sou o educador, eu sou o profissional e o aluno é o meu cliente. Ele
espera que eu esteja preparado para ensiná-lo.
Descobri também que não existe verdadeira inclusão sem mudança de currículo e sem
mudança de método.
10) Quais as maiores dificuldades que eles enfrentam na educação básica e no ensino
superior. Você percebe, no sistema educacional do Brasil, alguma atitude significativa
para minorar essas dificuldades?
103
O grande desafio da educação básica é a alfabetização dos Surdos. Não é possível
alfabetizar uma criança Surda da mesma forma que se alfabetiza uma criança ouvinte.
Nosso método de alfabetização está baseado na audição.
O que ocorre é que, sem essa alfabetização, o Surdo se arrasta com dificuldade por toda a
vida acadêmica. Menos de 1% dos Surdos chega ao nível superior e menos que isso
conclui o superior. É uma catástrofe acadêmica.
O pior é que já existe muito conhecimento sobre como o Surdo deve ser tratado na escola.
No próprio site do MEC há muito material precioso sobre a educação dos Surdos. Mas
migrar da teoria para a prática nem sempre é fácil.
11) No que diz respeito ao transplante coclear, qual a postura da maioria dos surdos
em relação a este assunto?
Esse é um assunto complexo. Não podemos generalizar. Cada caso deve ser estudado com
cuidado. Estamos tratando aqui com a identidade de uma pessoa e não simplesmente com o
corpo dela.
Em linhas gerais vamos dividir os Surdos em dois grupos: Aqueles que têm IDENTIDADE
SURDA e aqueles que não têm identidade surda.
Um Surdo que tem identidade surda é aquele que está plenamente inserido na cultura e na
comunidade surda. Domina a língua de sinais e se sente feliz consigo mesmo e com sua
cultura. Esse tipo de Surdo não é candidato a um implante coclear e com frequência é
contra esse procedimento. Ele encara o implante coclear como uma tentativa de mudar sua
identidade ou de exterminar com sua etnia. Para ele, se submeter ao implante seria como
uma traição à pátria.
Por outro lado, um surdo (aqui com letra minúscula mesmo) que cresceu entre ouvintes e
que não adquiriu identidade surda, não convive com os Surdos (aqui com letra maiúscula)
e que não domina a língua de sinais pode ver a surdez como algo indesejável e que precisa
ser remediado a qualquer custo. Esses surdos podem desejar o implante coclear (no caso de
crianças, os pais sem identidade surda decidem pelo implante).
104
Um outro fator importantíssimo é a idade do candidato ao implante, quanto mais avançada
a idade do surdo, mais difícil será o êxito da experiência.
12) Quantos surdos participam dessa comunidade? Você poderia mencionar algumas
características da comunidade, como a faixa etária, o número aproximado de surdos
casados, solteiros, nível acadêmico, funções que eles desempenham na vida
profissional, etc.
Aproximadamente quinze Surdos. Faixa etária entre 20 e 54 anos. Seis são casados. A
maioria ainda não concluiu o Ensino Fundamental. Dois concluíram o Ensino Médio.
Apenas dois iniciaram o ensino superior, mas desistiram, porém pretendem retomar. E um
concluiu o superior
A maioria trabalha na área de produção das indústrias da região. Apenas três trabalham na
área administrativas das empresas.
13) Nessa comunidade de surdos, eu conheço pelo menos dois casais que têm filhos
ouvintes. Como você percebe a interação entre eles? Qual a reação dos filhos ao
crescer no convívio com os pais surdos?
Os filhos ouvintes de pais Surdos constituem um grupo a parte. Eles crescem entre dois
mundos. São bilíngues e intérpretes dos próprios pais a vida inteira (uma tarefa nada fácil).
Apesar de dominarem a Língua de Sinais, essas crianças se tornam adolescentes que não se
comunicam bem com seus pais.
14) Os surdos integram nosso mundo, mas o mundo os ignora, como se eles estivessem
ausentes. Em sua opinião, quais as razões dessa indiferença?
Penso que a ignorância a respeito dessa cultura tão diferente da nossa. Uma vez que
aprendi a língua e compreendi um pouco da cultura surda, passei a vê-los em todos os
lugares. Parece que eles se tornaram visíveis para mim. Hoje encontro Surdos em qualquer
lugar que eu vá. Penso que eles sempre estiveram ao meu redor, mas simplesmente não os
enxergava. Pensar que a população de Surdos do Brasil pode chegar a 5 milhões de
105
indivíduos é algo assombroso. Essa gente está por toda a parte, sem ser notada pela
população ouvinte.
15) Você foi professor de S, uma jovem surda. Hoje ela é uma aluna universitária,
cursando Biologia, que é a matéria que você leciona? Você poderia comentar algo a
respeito disso?
S sempre gostou de animais. Mesmo antes de entrar na escola já gostava da natureza e
principalmente dos animais. No entanto, devemos também levar em conta que os únicos
professores que sabiam LIBRAS com os quais ela entrou em contato eram professores de
Ciências. T e R no Ensino Fundamental e comigo no Ensino Médio. Com certeza esses
professores, capazes de se comunicar com ela de maneira mais profunda, contribuíram
muito para acentuar o fascínio que ela já sentia pela natureza.
16) Gostaria que você discorresse sobre o engajamento de alunos ouvintes na
comunidade dos surdos.
Aqui no IASP, muitos alunos ouvintes têm a oportunidade de interagir com o grupo de
Surdos que frequenta a igreja. Muitos deles aprendem a língua de sinais e passam a atuar
como intérpretes na igreja. Alguns já foram aprovados no PROLIBRAS (exame
reconhecido pelo MEC para comprovar a proficiência em LIBRAS) e hoje atuam como
intérpretes profissionais. Um deles se envolveu tão profundamente com a cultura surda que
se casou com uma Surda.
Como intérprete, me considero um elo importante entre o mundo dos Surdos e o mundo
dos ouvintes. Já tive a oportunidade de acompanhar Surdos em exames médicos,
entrevistas de trabalho, reunião de pais e mestres, aconselhamento familiar e exames para
conseguir a carteira de habilitação. Já fui intimado a comparecer em cartórios para
interpretar o casamento civil entre Surdos. Já acompanhei Surdos em audiências judiciais.
Tive o privilégio de interpretar casamentos religiosos e também a tristeza de atuar como
intérprete no funeral de uma Surda. Destaco que NUNCA recebi nada em troca desses
serviços, a não ser a amizade e a confiança dos Surdos, o que valorizo mais que tudo.
106
3.11.1 Considerações sobre a entrevista com Q
É muito significativo o fato de que quando os surdos percebem que são visíveis a
determinados ouvintes, eles procuram, com estes, estreitar o relacionamento. Foi o que
aconteceu com Q e sua esposa. Um casal de surdos passou a visitá-los semanalmente, com
uma missão, visibilizar a cultura dos surdos. Isto evidencia que os surdos não se fecham,
estão sempre em prontidão, com o propósito de partilhar, de trocar, de aprender e ensinar.
Por meio da experiência com os surdos, Q entendeu que a sua visão de mundo não é a
única. Percebeu que ele era resultado de um mundo monocultural, e a convivência com os
surdos fez com que ele rompesse com os grilhões do mundo hegemônico e
homogeneizante.
Um outro aspecto relevante é que muitos surdos não se consideram deficientes, e sim uma
etnia, com cultura, língua e identidade próprias. Q emprega um neologismo, ouvintismo,
para designar a ditadura imposta pela monovisão deste planeta, que impede a troca, o
respeito, a empatia entre surdos e ouvintes.
O contato de Q com os surdos o ensinou também a ser mais sensível com os diferentes.
Grande aprendizado.
Na entrevista com Ot, flagramos um método de alfabetizar os surdos totalmente
equivocado. Q confirma isso, e diz que como a escola falha no processo de alfabetização, o
surdo se arrasta pela vida acadêmica, e apenas 1% chega ao nível superior, e menos que
isso conclui. É importante frisar, que quando Q respondeu as perguntas que eu lhe enviei, S
cursava Biologia, entretanto ela teve que trancar a matrícula por questões de saúde.
Contudo, ela pretende voltar a estudar.
Segundo Q há muito material para ser trabalhado com os surdos nas escolas, mas estas não
fazem questão de usá-los, ignoram uma cultura que escolheram não enxergar.
Q informa que a população de surdos no Brasil pode chegar a 5 milhões de indivíduos,
gente que está em toda parte. Antes ele não os via, hoje eles os encontra em qualquer lugar
que frequenta, simplesmente porque mudou de postura, se dispôs a enxergá-los.
3.12 Entrevista com U
107
Assim que concebi o tema da dissertação, tive o propósito de entrevistar V, uma jovem
surda de 22 anos que ingressara na faculdade de Biologia. Marcamos o encontro para o dia
03 de outubro de 2013, à noite. Quando cheguei à sua residência, por volta das 19h, ela me
apresentou U, seu namorado. Um jovem surdo de 25 anos, alemão, que mora na cidade de
Hamburgo, e que estava passeando no Brasil. Ele é mecânico na Lufthansa, uma empresa
de transporte aéreo alemã. Como seu retorno à Alemanha estava marcado para os próximos
dias, mudei meus planos quanto à entrevista naquela noite, e procurei, com a ajuda de V,
entrevistar U. O pai de V estava presente e também nos ajudou. Como o contato com U
aconteceu de uma forma informal e até mesmo de improviso, narrarei o resultado de nossa
conversa, que não aconteceu na forma de entrevista, por meio de perguntas específicas,
mas sim como uma conversa informal.
Fotografia 10 – V e seu namorado U, ambos surdos
Fonte: Luna de Barros
Autor: Desconhecido
Data: 2013
U conheceu um jovem surdo da comunidade de surdos do IASP, e a partir dessa amizade,
ele teve contato com outros surdos da comunidade, inclusive V. O fato de trabalhar na
Lufthansa facilita suas visitas periódicas ao Brasil.
O início da entrevista foi desafiador, pois U se comunica com a linguagem alemã de sinais
e, obviamente, não conseguia fazer nenhuma leitura labial de minha fala em português. A
língua de sinais difere de um país para outro. V, que usa LIBRAS, também consegue
108
expressar, com certa dificuldade, o som de algumas palavras, e procurou, com o auxílio do
pai, estabelecer uma conexão entre nós. Conseguimos! Relato, a seguir, aspectos
interessantes da vida de U, alguns fatos que também eram desconhecidos para V e o pai
dela, Z.
U relatou que ficou muito doente quando tinha 3 anos de idade, teve uma febre tão elevada
que afetou gravemente a região coclear, deixando-o surdo. Ele não tem lembrança deste
período, das palavras que falava. Seu desenvolvimento como ouvinte foi interrompido.
O pai de U não aceitava o fato do filho ser surdo, isto gerou divergências entre os pais, que
resultou no divórcio. Nesta ocasião U tinha 4 anos.
A mãe de U não aprendeu a linguagem alemã de sinais, ela procurava se comunicar com o
filho por meio de gestos e, como consequência, dos 3 aos 6 anos, U se comunicava
somente por meio de gestos e mímicas. Aos 6 anos, sua mãe o matriculou numa escola
para surdos, onde aprendeu a linguagem alemã de sinais.
U tinha dois amigos mais próximos, com os quais gostava de jogar futebol. Seus amigos
tinham vídeo game. Enquanto os amigos brincavam no vídeo game, ele relacionava os
movimentos deles com os resultados na tela; surgia o desejo de brincar, os amigos
permitiam, e assim ocorria a interação com os amigos ouvintes.
Sua mãe permitia que, eventualmente, ele pegasse os alimentos com a mão, porém, na
escola, os professores não condescendiam com esta prática, e assim ele desenvolveu o
hábito de comer sempre com os talheres.
Seu pai desejou revê-lo, quando ele tinha 14 anos. Eles se encontraram, foi um momento
significativo para U. Ele relata que jogou futebol com o pai. A partir de então, eles se
encontravam umas três vezes ao ano.
U concluiu o ensino médio aos 23 anos. Ele diz que seu aprendizado fluiu, de forma mais
eficaz, no seu relacionamento informal com os ouvintes.
Em Hamburgo, ele convive há quatro anos com um grupo de surdos da igreja adventista, e
por meio deste grupo ele estabeleceu contato com a comunidade de surdos do IASP.
Nesta altura da entrevista, aproximadamente 21h15, o irmão de V apareceu na sala, trajado
para jogar futebol. Eles haviam combinado participar de uma partida de futebol naquela
109
noite, percebi que U ficou ansioso para cumprir o trato com o amigo. Neste ponto, eu
encerrei a entrevista.
Depois que os rapazes foram jogar futebol, Z, pai de V, me acompanhou até o portão, onde
conversamos um pouco mais. Ele me disse que V está namorando com U. Lembrei-me
que, há algum tempo atrás, V estava namorando com um jovem ouvinte. Sobre este
namoro, Z me disse que estava preocupado, pois percebia que V não estava empolgada.
Num certo dia, ele conversou com sua filha a respeito desse assunto, disse para ela que o
período do namoro é um momento para se conhecer e confirmar o sentimento de um para
com o outro. Se não há alegria no relacionamento e reciprocidade de sentimentos, seria
melhor terminar o namoro e dar sequência a uma amizade. Poucos dias após essa conversa,
V terminou o namoro.
Algum tempo depois, o pai me disse, U começou a manter contato com a comunidade de
surdos do IASP, e a viajar esporadicamente para o Brasil. Em um desses contatos, ele fez
amizade com V. Z me disse que, já nesse momento, percebia o brilho nos olhos de V. Da
amizade surgiu um bonito relacionamento entre eles.
Despedi-me do pai de V com a certeza de ter participado de um grande momento de
aprendizagem.
3.12.1 Impressões do diálogo entre V, Z, U e eu
Para mim, foi uma experiência totalmente inusitada, como mencionei no relato do
encontro. Talvez o fato mais significativo seja o encontro de duas pessoas oriundas de
culturas diferentes, V e U, com idioma e hábitos diferentes, mas com a força de algo em
comum – a surdez – o que fez com que eles superassem as divergências, e vivenciasse um
rico relacionamento. Uma característica que pode ser vista como entrave, aqui é a razão de
descobertas fantásticas.
Ao refletir acerca da entrevista, no relacionamento do menino U com seus amigos,
lembramos que estes não paravam para ensiná-lo a jogar vídeo-game, sua estratégia foi
relacionar os movimentos deles com os resultados na tela. Todavia, os amigos permitiam
que ele brincasse, então sua habilidade com o brinquedo se aprimorava na interação com
os amigos.
110
U relata que seu aprendizado fluiu no relacionamento informal com os ouvintes. É
importante ressaltar que U é um rapaz extrovertido, e relacionar-se com outras pessoas é
algo imperativo para ele. Este fato certamente contribuiu bastante para o seu
desenvolvimento em vários aspectos. Q, que fala inglês, me disse que consegue se
comunicar com U neste idioma. Isso nos mostra que ele tem uma boa leitura labial,
resultado do trabalho das fonoaudiólogas, quando ele era garoto, bem como de seu contato
com ouvintes.
Outro fato relevante foi o pai perceber o brilho nos olhos da filha, quando esta iniciava a
amizade com U. Ele entendeu o que isso significava e estimulou o relacionamento.
Recentemente, Z me disse que a filha irá à Alemanha conhecer a família de U. O brilho
nos olhos perdura, é a celebração da vida que flui.
3.13 Entrevista com V
Fotografia 11 – A jovem V, surda, quando cursava o Ensino Médio
Fonte e autor: Wellington Romangnoli
Data: 2008
111
V, 22 anos, é assistente administrativo, iniciou o curso de Biologia e trancou matrícula por
conta de uma cirurgia. Ela namora U, um jovem surdo alemão, cuja experiência já
mencionamos.
É importante ressaltar que não foi possível realizar esta entrevista presencialmente, como
era minha intenção. Eu enviei as perguntas e recebi as respostas por e-mail, as quais foram
preservadas como V escreveu.
1) Ao tentar lembrar de sua infância, quais recordações lhe vêm à mente? Como você
se comunicava com seus pais?
Falava com gestos.
2) Como eles te ensinaram as coisas simples do dia-a-dia, como, por exemplo, pegar
no garfo da forma correta e outros hábitos, como escovar os dentes?
O meu pai me ensinou a pegar no garfo da forma correta, comer certo sem fazer barulho na
boca, fechar as pernas rs, falar “obrigado e de nada”.
3) Quando garota, qual foi sua experiência nas primeiras séries da escola?
Natação, comunicação, inglês, cantar.
4) Você foi acompanhada por uma fonoaudióloga? O que achou da experiência?
Interessante, aprendi a escrever português, falar e comunicar com as pessoas, escutar com
algumas palavras. Agradeço por eu estar falando, escrevendo, ouvindo músicas e conversas
também. Valeu a pena!
5)
Em que momento você passou a aprender libras? Por que você esperou tanto
tempo? Houve algum aspecto positivo por você ter aprendido a linguagem de sinais
mais tarde?
Em 2003, foi quando eu mudei de Natal-RN para Hortolândia-SP, o meu pai me levou para
uma escola especial (Unicamp), mas aprendi um pouquinho e, logo, desisti em 2005. Em
112
novembro de 2005, a professora R, esposa do Q me chamou para viagem com surdos, eu
aceitei, foi isso que eu aprendi a falar Libras com surdos do Ministério Adventista dos
Surdos.
6) Como aconteceu o seu contato com a comunidade de surdos do IASP?
Fez-me esforçar mais por ler a Bíblia, Lição da Escola Sabatina, pois a maioria dos surdos
não conseguem interpretar após ler texto. Aprendi bastante a Palavra de Deus e interpretar
as músicas. Valeu a pena!
7) O que você aprendeu no convívio com a comunidade de surdos?
A cultura surda é diferente da cultura ouvinte. A maioria dos surdos gosta de “festa”, por
exemplo: Os surdos convidam outros surdos para bater papo, rachar o bico, fazer
brincadeiras e piadas na casa nas madrugadas. Por isso, gostamos de madrugar.
8) Você cantou no coral de libras, como foi, para você, essa experiência? Você não
ouvia a música, mas usava libras para interpretá-la, pode explicar para nós?
Então, eu sempre gostei de ouvir músicas desde criança, a regente do coral do IASP (2006)
me chamou para participar, achei interessante, fiz teste. Mas, depois vi que o coral de
Libras não cantava certíssimo, não fazia tradução clara para surdos. Hoje, gostaria de
apoiar, ou, ter regente surdo que gosta de música para coral, pois o surdo conhece bem a
cultura surda. Estou vendo que os corais de Libras estão crescendo mais, mas nem todos
traduzem certo.
9)
Na infância e adolescência, como foi sua relação de amizade com os ouvintes e
com os surdos, percebeu alguma diferença?
Sim, os ouvintes se desenvolviam mais que os surdos como leitura e português. Pois o
mundo é de ouvintes, não de surdos, por isso, os surdos demoram um pouco para ter essa
adaptação. Eles não ouvem o que eles falam......
10) Você namorou um rapaz ouvinte, como foi essa experiência?
Sim, amadureci um pouco com ele. Mas o namoro não dava certo por causa da cultura
religiosa.
113
11) Atualmente, você está namorando? O namorado é surdo? Como se dá a relação?
Sim, é surdo. A cultura dele é um pouco diferente da minha, mas ele está me alegrando
muito. Ele é simpático e brincalhão, gosta de animais, de esporte, de viajar, de trabalhar, de
ir à igreja, divertir, conviver com as pessoas diferenças.
12) É comum você conversar sobre filmes com outros surdos? E sobre leitura?
Eu falo muito sobre filmes com eles, mas às vezes, eu comento com eles sobre filme de
animais, ou seriado como CSI, Criminal Minds.
13) Por que você decidiu cursar Biologia?
Porque eu sempre tive sonho em fazer veterinária desde infância, e quando conheci o
professor Q, me deu vontade de fazer Biologia. Mas hoje, eu tranquei a faculdade.
3.13.1 Comentários sobre as respostas de V
Na resposta à quarta pergunta, percebemos a importância da fonoaudióloga no processo de
alfabetização de V, bem como no desenvolvimento de sua oralidade. Ela consegue
expressar palavras, não com a fluência de um ouvinte, obviamente, mas que são
compreensíveis. Também consegue entender uma boa parte do que falamos, e quando tem
dúvida, pergunta.
Q e sua esposa R a convidaram para participar de um passeio com os surdos do IASP, ela
aceitou e acabou se integrando à comunidade. Isso foi muito importante, como ela diz, para
que desenvolvesse a fluência em LIBRAS.
Na resposta à nona pergunta, nos deparamos com a triste constatação de V: “O mundo é de
ouvintes, não de surdos”
Quando perguntei sobre o relacionamento com U, seu namorado, ela disse que a diferença
cultural não interfere. Disse também que U a alegra, é brincalhão e gosta de conviver com
as pessoas diferentes. Percebi que para ela, este aspecto é fundamental, está relacionado
com seu compromisso de vida. Não somente porque ela é a pessoa diferente que é aceita,
mas porque ela é regida por esse ímpeto de receber os diferentes, de com eles comungar.
114
Já mencionei, mas é bom reforçar, que V respondeu às perguntas que eu lhe enviei, sem
auxílio de outra pessoa. A boa fluência que ela demonstra na escrita demonstra sua
persistência em aprender, a despeito das inúmeras barreiras que enfrentou.
3.14 Entrevista com Z, pai de V
Z e sua esposa são ouvintes e tiveram uma experiência singular na educação de V, a jovem
surda que já entrevistei. Z, o pai, se mostrou bem acessível e aceitou meu convite para
participar de uma refeição, num final de tarde em minha casa. Menciono, a seguir, as
perguntas e respostas que resultaram de nosso diálogo, as quais anotei em um caderno,
durante a entrevista.
Fotografia 12 – Z entre U e V
Fonte: Robson de Barros
Autoria: Desconhecida
Ano: 2013
1) Z, como foi a educação da V, nos primeiros anos de vida?
Depois que constatamos que nossa filha era surda, procuramos ajuda. A principal
orientação naquele momento veio da cunhada de minha esposa. Ela era diretora de uma
escola onde estudavam crianças com “deficiências distintas”, que tinham como pares
crianças “normais”. Nessa escola havia uma fonoaudióloga, com a qual V teve contato.
Esta profissional nos disse que V tinha condições de falar, porém teria que ser estimulada.
Segundo esta orientação, não deveríamos fazer sinais, apenas falar e forçar a fala dela. Por
exemplo, quando V queria água, ela apontava para o filtro, mas não deveríamos ceder, V
115
tinha que falar água, mesmo que de forma errada e nós repetíamos da forma certa. Nessa
época, V tinha quase dois anos.
2) Qual foi a primeira palavra que ela falou de forma nítida?
A primeira palavra que V falou foi batom. Então nós compramos todos os tipos e cores de
batom. Ela vivia passando nos lábios e brincando com batom. Foi uma forma de estimulála.
3) Você disse que nessa escola havia crianças com outros tipos de dificuldades, como
foi o contato da V com essas crianças?
Nessa escola ficamos pouco tempo, pois nós nos mudamos para Natal. Nessa cidade, nós a
matriculamos em um centro de reabilitação, onde havia crianças com diversos tipos de
deficiências. Lá vi pais com dificuldades muito maiores que as minhas. Foi um momento
de muita aprendizagem, percebi que eu tinha preconceito para com aquelas crianças.
Flagrei esse sentimento em mim mesmo. Ele se escondia por trás da convivência tolerante.
Aprendi não apenas a “aceitar”, mas conviver com os diferentes, a ter prazer no
relacionamento. Para V, isso aconteceu de forma mais natural, pois nós e a sociedade ainda
não a havíamos impregnado com sentimentos segregacionistas.
4) Como aconteceu o contato da V com a LIBRAS?
Com a orientação que recebemos a princípio, nós nos empenhávamos para que V não
aprendesse LIBRAS. O propósito era que ela desenvolvesse a oralidade. Contudo, tanto no
centro de reabilitação, como em outra clínica que a levamos posteriormente, havia o
emprego da LIBRAS. Nós a levávamos para esses locais, que eram gratuitos, porque na
época não tínhamos condições financeiras para levá-la a uma fonoaudióloga.
Quando a situação financeira melhorou, nós a levamos para uma fonoaudióloga. Esta
percebeu que, eventualmente, V usava LIBRAS, então contrariando a opinião das
fonoaudiólogas que tivemos contato, disse-nos que seria bom que V usasse a fala e a
LIBRAS. Nessa época V tinha 5 anos.
116
5) Na entrevista que fiz com V, é perceptível que ela gosta muito de música, ela capta
as vibrações do som, em que momento você percebeu isso?
Quando V tinha uns 5 anos, fui convidado para uma festa, onde havia uma música ritmada.
Eu me distraí conversando com alguns amigos e não percebi que V se distanciou de mim.
Depois de algum tempo, algumas pessoas me chamaram, estavam admiradas, e eu procurei
saber a razão, então elas apontaram para a V, no meio do pátio, dançando com ritmo.
6) Você e sua família são religiosos, como as pessoas na igreja reagiram em relação à
V?
Elas não tinham habilidade e nem conhecimento para lidar com a situação, porém eu passei
a convidar profissionais que trabalham com surdos para realizar palestras na igreja, o que
teve um resultado positivo. As pessoas passaram a valorizar LIBRAS, como forma de
valorizar as pessoas surdas. Depois de algum tempo surgiram interpretes na igreja.
7) Imagino que surgiram várias situações que se mostraram desafiadoras, como pai
de uma menina surda, você poderia mencionar uma dessas situações?
Sim, claro! Certa ocasião, tarde da noite, passamos de carro numa rua onde havia várias
mulheres com trajes sumários, percebi que eram prostitutas. V, que ainda era uma criança
perguntou por que elas estavam trajadas daquela maneira e naquele lugar. Eu me vi numa
situação difícil. Eu disse que há pessoas que se amam e valorizam estar juntas pelo prazer
da companhia, do relacionamento, então elas assumem um compromisso, namoram,
desenvolvem o amor. Há homens que não querem ter o compromisso de amar alguém, só
querem ter o prazer de estar junto de qualquer mulher e ir embora, sem compromisso,
então eles pagam para elas. Isso é ruim para todos. Após a resposta, parece que ela se deu
por satisfeita.
8) Z, você pode mencionar algumas coisas que aprendeu ao acompanhar a V durante
todos esses anos?
117
Quando a V estava no 6º ou 7º ano, entendi que não há apenas a dificuldade do surdo se
comunicar com os ouvintes, estes também têm dificuldade para se comunicar com os
surdos. Aprendi também que pior que a não inclusão, é a falsa inclusão.
E o mais importante, como pais de uma menina surda, desenvolvemos uma sensibilidade
maior em relação às outras pessoas, principalmente famílias que possuem crianças com
algum tipo de deficiência.
3.14.1 Pontos Relevantes do Diálogo com Z
Creio que uma atitude que surtiu seus efeitos, foi o fato dos pais trabalharem a oralidade
com a V, seguido do acompanhamento das fonoaudiólogas. Eu tenho o privilégio de
conversar, eventualmente, com V, e digo que é possível estabelecer uma compreensão
recíproca. Em alguns momentos, ou eu ou ela temos que repetir alguma expressão, mas o
diálogo é levado a efeito.
Outro aspecto importante foi o cuidado dos pais em prover os meios para que V se sentisse
motivada, como no caso da primeira palavra falada: batom. Este fato me remete à
entrevista com B, que também mencionou, sem que eu perguntasse, qual havia sido a
primeira palavra que falou: cavalo. Para os surdos, realmente, deve ser um marco a
pronúncia da primeira palavra, assim como foi para mim o momento em que consegui
escrever a primeira palavra.
Z relata que flagrou, em seu coração, um sentimento preconceituoso em relação às crianças
deficientes do Centro de Reabilitação em Natal, para onde levava V. Ele trabalhou consigo
para se desvencilhar desse sentimento e conseguiu resultado. Ele disse que sua filha o
levou
a essas experiências, as quais fizeram com que
ele se tornasse mais humano. Para ele, este foi um dos maiores aprendizados.
Outro aspecto que já havíamos percebido na entrevista com V, e agora Z ressalta, o gosto
dela por música. Eu entendo que ela percebe as vibrações. O pai foi surpreendido, ao vê-la
dançando no pátio, durante uma festa na casa de amigos. No IASP, ela participou do coral
de LIBRAS, embora com algumas restrições.
118
Essa experiência nos faz aprender com a luta de pais que se empenham, de acordo com a
luz que possuem, para promover uma atmosfera de aprendizagem para a filha. Valeu o
esforço!
3.15 Vidas que Nos Alcançam e Nos Transformam
Não consigo deixar de expressar o meu encanto por essas vidas, por esse mundo peculiar, o
qual nos dá um lampejo da diversidade humana. Quantas formas belas de olhar para a vida.
Quanta criatividade.
Por outro lado, quanta indignação, quando expressam que o mundo é dos ouvintes, não de
surdos. Este mundo que eles mencionam é o mundo monocultural. O direito à igualdade
de condições lhe é tolhido.
Mesmo contra essa avalanche de preconceito, de descaso, eles persistem em criar o seu
espaço no mundo. A despeito das condições injustas e adversas que lhe são impostas, eles
encontram motivo para sorrir, abraçar e partilhar de suas experiências. E aqueles que os
enxergarem usufruirão desses privilégios.
Mencionamos alguns ouvintes que se uniram à comunidade de surdos para se regozijar
com suas singularidades, mas também para se aliar no enfrentamento de suas lutas. É
necessário que mais pessoas se engajem, e denunciem, reivindiquem o direito de todos
serem felizes, que o façam com as mãos ou com o som de sábias e ousadas palavras, mas
que demonstrem compromisso, lealdade e trabalho, que sensibilizem pessoas capazes de
humanizar o mundo.
Fotografia 13 – W, surdo, com o filho ouvinte no colo
119
Fonte e autor: Wellington Romangnoli
Data: 2008
3.16 Mãos que Sinalizam
A mão que comunica também segura outra que sensibiliza, e esta segura outra que se
engaja. Mãos humanas, mãos que veem, são vistas e tocam a face sublime da vida. Elas
dizem não a barbárie que persiste. Mãos que abraçam interligando corações, os quais se
impõem aos grilhões da indiferença, sinalizando com esperança: Não podemos desistir.
Dê-me a sua mão!
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] temos o direito a ser iguais sempre que a diferença
nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre
que a igualdade nos descaracteriza.
Boaventura de Sousa Santos
Os contatos com a comunidade de surdos do IASP, por meio da pesquisa de campo, não só
tornaram tangíveis, mas também ampliaram as ideias que foram alcançadas por meio da
pesquisa bibliográfica. Quão premente a necessidade de compreendermos a condição
humana, como diz Morin, de conhecer a unidade e a diversidade dos seres humanos, de
valorizar esses aspectos. Fica evidente o fato de que só pode existir desenvolvimento
humano no desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, dos envolvimentos
comunitários e do sentimento de pertencimento à espécie humana. Quando V, uma das
121
surdas entrevistas no capítulo 3, diz que o mundo é dos ouvintes, percebemos quão distante
estamos deste propósito.
A necessidade de compreensão entre os homens, que Morin proclama como um dos
propósitos essenciais da educação, torna-se tão prioritário quando lemos o relato de Ot, que
fala consternada da insistência da escola em alfabetizá-la no método tradicional. Ela
afirma: “Queriam me tornar uma ‘ouvinte’”. Como resultado ela relata que teve extrema
dificuldade e sofreu muito.
A experiência acima evidencia que a compreensão entre os homens é fundamental para que
haja respeito, diálogo entre os diferentes e solidariedade.
Diante da intolerância das pessoas e de tantas formas de barbárie e segregação, surge,
como prioridade, o aprendizado da compreensão, que é um permanente aprender e
reaprender. Para tal circunstâncias urge a reforma de nosso pensamento, desvencilhandonos das amarras conceituais que nos entrelaçam a “verdades” compactadas. No caminho
rumo à humanização, teremos de palmilhar as sendas das relações humanas, especialmente
por meio de experiências com comunidades singulares, como a dos surdos.
Dentre tantos relatos das pessoas que compõem a comunidade de surdos do IASP,
inseridos no terceiro capítulo, mencionamos os de V e Ot, os quais exemplificam
claramente os resultados da razão metonímica que, conforme diz Boaventura, é obstinada
pela ideia de que existe apenas uma lógica que dita as condutas.
Como pessoas comprometidas com a reforma do pensamento, devemos confrontar a razão
metonímica, procurando visibilizar comunidades que por ela são ignoradas. Boaventura,
desenvolvendo a ideia da sociologia das ausências, discorre sobre a prática da arqueologia
das existências invisíveis na educação e na pesquisa.
Eu já havia me familiarizado com os surdos, procurando partilhar de suas vivências, porém
após ter contato com as ideias de Morin e Boaventura, me empenhei em realizar uma
pesquisa mais profunda, capaz de enxergar as práticas e os modos de ser que estão
soterrados sob os escombros da razão metonímica, a qual transforma sua particular visão
na visão de todos, incapaz de ver pelos olhos da complexidade, de ouvir os sons da
diversidade. O resultado de minha pretensão foi o de agir como um arqueólogo que ao
descobrir realidades soterradas, pejadas de ricas vivências, procura visibilizar estes
achados, que sempre existiram, mas que anelavam e anelam por encontrar olhos que os
122
desvendem, ouvidos que os ouçam, mãos que os toquem, corpos que os abracem, a fim de
compartilhar, de aprender e ensinar para compreensão humana.
Na pesquisa de campo visualizamos como ocorrem as relações educativas entre os surdos,
em sua vida comunitária, e entre eles e o mundo dos ouvintes, mas também como esta
última não ocorre. Vimos como F, ouvinte, filha de pais surdos aprendeu LIBRAS, mas
aprendeu também a falar. O gosto pelo desenho da mãe foi assimilado por ela. Quando o
pai pergunta o que é H2O, com imaginação e criatividade, ela desenha átomos que formam
a molécula, mostra um copo com água, e explica para o pai, empregando a habilidade
adquirida com os próprios pais surdos. Imagino o pai sorrindo, ele compreendeu. Há outros
relatos enriquecedores, como a professora fonoaudióloga que chora ao ouvir o menino
surdo pronunciar a palavra cavalo. E o mesmo rapaz que é impactado, ao chegar à
associação de surdos de São Paulo, e vislumbrar as muitas mãos que se movimentam
velozmente, rostos e corpos que falam. Ele tinha catorze anos, e só nesse momento
descobre que pode namorar, casar, que existe um lugar para ele no mundo. Descobre que é
normal.
Esperança é uma palavra que ganha forças quando vemos ouvintes como E, Q, R e outros
que conheci, engajando-se na cultura dos surdos. Percebi que eles vibram com a
experiência, atuando para que essa cultura seja visibilizada.
Meu maior desejo é que mais pessoas se unam aos surdos, que um contingente sinalize que
é necessária a compreensão entre os homens, a fim de que os muros de separação sejam
derrubados e pontes sejam construídas, para que haja tráfego entre as diversidades, entre os
diferentes, numa atmosfera de respeito e amor.
Espero também que os projetos e pesquisas futuras, na área de educação e em outras áreas
de saber, possam contribuir para visibilizar culturas e comunidades, não somente a dos
surdos, mas de tantas outras que vivem ocultas sob os valores de um mundo monocultural.
123
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128
APÊNDICE
MEMORIAL
O velho caminhão, conhecido pelos nordestinos como “pau de arara”, aguardava José
Costa, sua esposa Otília, e seus dois filhos Helena e Edmar, que estavam deixando a
Fazenda Anjico, no agreste cearense, rumo a um destino cuja imaginação conferia
contornos de prosperidade. Acomodarem-se, com suas parcas bagagens, na carroceria do
caminhão, junto aos demais passageiros, ansiosos para partir, rumo a São Paulo. Em 1947,
data desta viagem, o “pau de arara” levava quase um mês para chegar à terra da garoa.
129
Quando juvenil, ouvia meu avô José narrar os episódios desta viagem e o início de sua vida
em São Paulo. Em minha imaginação esta história se revestia com ares de mistérios,
aventuras, sonhos e frustrações.
Após o divórcio de minha mãe, Helena, fui morar com meus avós, num bairro de São
Caetano do Sul, onde residiam muitos descendentes de italianos. Aos 9 anos, lembro-me
que era olhado como o outro, um menino que não tinha pai, e pertencia a uma família de
pobres nordestinos. Todos nós éramos chamados de “baianos”, termo carregado de carga
pejorativa. A princípio eu não entendia exatamente. Mas logo comecei ouvir as expressões:
“não faça baianada” ou “isso é coisa de baiano” e piadas envolvendo esses temas. Sob esse
estigma cheguei à adolescência e à vida adulta.
Meus avós eram analfabetos, e minha avó Otília se inscreveu no MOBRAL, nos anos 70.
Eu a acompanhava, e observava a maneira do professor ensinar àquelas pessoas. Em casa,
eu a ajudava a fazer as tarefas da escola. Creio que naquele período, sem eu saber,
germinava em meu íntimo o desejo de ser professor.
Sonho alcançado, graduei-me em Teologia, depois Letras e Pedagogia. Concluí a Pósgraduação, Lato Sensu, em Semiótica da Cultura, na UFMT. Com o diploma em mãos,
imaginava que estava habilitado para lecionar. Não demorou muito para que eu descobrisse
que cada aluno é uma fonte de saber. Aprendi a amá-los, a me interessar por eles, e
compreender que eles percebiam isso me fez muito bem.
Alguns alunos pareciam mais agressivos, invulneráveis ao toque do afeto. Visitei o lar de
muitos deles, conversava com os membros de suas famílias. Essa demonstração de
interesse estreitou o meu relacionamento também com esses alunos.
Em um colégio de Cuiabá-MT, havia um menino que não respeitava as normas de
convivência com os colegas e professores, e seu rendimento acadêmico era ruim. A
diretora do colégio conversou várias vezes com o menino e seus pais, mas sem resultado.
Eu tinha dificuldade com ele em sala de aula, e me sentia incapaz de encontrar uma
solução, até que tive uma luz, eu o convidei para vir à biblioteca no período oposto ao que
ele estudava, e lá passei a explicar-lhe a matéria, contudo nossa conversa migrou para
outros assuntos além da matéria, e com o tempo consolidou-se uma amizade. Ele mudou
seu comportamento em minhas aulas, passou a demonstrar maior interesse. Fatos como
130
este tornaram o magistério uma missão na qual me deleitava. Procurei aprender também
com os vários erros que cometi.
No final de 1999, estava me aprontando para participar da formatura dos alunos do 3º ano
do Ensino Médio, havia sido escolhido pela turma para ser o orador na colação de grau. De
repente, o telefone tocou, ao atender, recebo a notícia de que deveria ser o novo gestor do
colégio onde lecionava, pois na época havia uma grande carência de gestores na grande
Cuiabá.
Jamais imaginei que um dia seria gestor escolar, porém, uma vez na função, procurei agir
com os professores da mesma maneira que agia com os estudantes, demonstrava interesse
por eles e ao mesmo tempo demonstrava confiança no trabalho deles. Creio que a maneira
como eu os tratava se refletia na maneira como eles tratavam os alunos. Houve muitos
diálogos a respeito de didática, avaliação, desenvolvimento do educando como cidadão
autônomo, etc. Entretanto, estes temas e práticas só seriam válidos se fossem permeados
pelo amor e interesse genuíno demonstrados ao aluno, caso contrário seriam ações estéreis.
Dentre os erros e acertos que cometi, gostaria de relatar um episódio que marcou minha
experiência como gestor. Um aluno havia furtado um equipamento do colégio, e não
tínhamos ideia de quem o fizera. Alguns dias depois um estudante me procurou, era um
amigo do autor do furto. Acreditava que se ele me revelasse o nome do infrator, eu agiria
no sentido de fazer o mesmo refletir acerca de tal ato, fazendo-o mudar de postura.
Procurei não decepcionar este rapaz, e passei a ouvir seu plano. Então, ele falou que eu
deveria reunir um determinado grupo de alunos, do qual o infrator fizesse parte, em uma
sala de aula, e dizer que o meu propósito não era punir, mas sim dar a oportunidade para
que a pessoa reconsiderasse sua atitude, restituindo o objeto roubado, e que se isso
acontecesse eu não revelaria o nome da mesma para ninguém. O rapaz acreditava que o
autor do furto corrigiria seu ato.
Segui o plano à risca e, de fato, uns dois dias depois, o rapaz apareceu com o equipamento
embrulhado, estava envergonhado, eu o recebi em minha sala. No diálogo que tivemos
garanti a ele que as pessoas são mais importantes que as coisas, nos abraçamos e nos
despedimos. Eu nunca falei sobre o assunto para ninguém. A equipe docente viu que o
objeto furtado havia sido restituído, porém, nunca soube quem o fizera, tampouco relatei
aos familiares do aluno. Porém, no dia da formatura, a mãe deste estudante me procurou e
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deu-me uma caixa revestida de camurça azul, eu a abri e dentro havia uma placa na qual
estava escrito: “Professor Humberto, siga sempre a voz do seu coração, e você não errará”.
A mãe foi muito generosa, houve várias ocasiões em que eu julguei estar seguindo a voz
do meu coração e errei. Contudo, carrego a dúvida até hoje, ele falou ou não para a mãe o
fato ocorrido. O mais relevante é que todos nós aprendemos com essa experiência.
No início de 2003, fui transferido para Florianópolis, e lá atuei como gestor escolar durante
3 anos e meio. Foi interessante, após 16 anos no Mato Grosso, trabalhar no sul, numa
cultura com alguns aspectos peculiares. Em junho de 2006, fui chamado para trabalhar
como gestor em Hortolândia.
Sempre quis fazer o mestrado, mas a rotina de um gestor escolar não permitia. Um amigo
de trabalho, o Rodrigo, me convidou para ingressar no programa de mestrado da UNISAL,
e meus líderes me concederam duas tardes para que eu me dedicasse a este objetivo. No
dia em que fiz a matrícula, ao sair do campus, dei um grito de alegria, dentro do carro, uma
perspectiva real de um antigo sonho.
Primeira aula, deparei-me com a lousa, as apresentações foram desnecessárias, nos
conhecemos desde quando era garoto, numa escola da periferia de São Paulo. Sentei-me
nas habituais carteiras, saudei, meio timidamente, os novos colegas, arrisquei alguma
conversa com alguns deles, mas tudo lembrava aquela escola. De repente, fui surpreendido
pelo professor que entrou, silenciosamente, pela porta de trás da sala, cumprimentou-nos
de forma amigável, instaurando uma atmosfera solene. Trazia consigo uma sacola de palha
cheia de livros e a mente cheia de ideias que almejavam trocas, conversas,
correspondências. Logo deu início aos diálogos, trazendo pensamentos que instigavam em
nós a curiosidade, a qual rompeu o casulo do desinteresse, dotada com as asas da
imaginação, passou a sobrevoar os coloridos cenários do saber. Já não era aquela escola!
Nessa memorável primeira aula, o professor Severino propôs uma conversa em torno da
frase de Hölderlin: “Lei do destino: Que todos se aprendam”. Os desdobramentos dos
diálogos resultaram em mais três pensamentos que foram fundamentais para a elaboração
do 3º capítulo desta dissertação. As ressonâncias produzidas por aquela conversa se
confirmaram com a pesquisa de campo levada a efeito por este trabalho. Estas experiências
reverberam em meu ser, ampliando meus propósitos como educador, ser humano.
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Eu esperava encontrar no mestrado de educação sociocomunitária alunos da área de
educação ou somente das humanas, contudo encontrei alunos de outros segmentos, como o
Benito, que é engenheiro, e na ocasião apresentou um seminário muito interessante acerca
do trabalho Edgar Morin. Aliás, aprendi que este é mais um fato que vai ao encontro do
pensamento de Morin, a ideia de que temos que conhecer o todo, isto é a pessoa não deve
se restringir a sua área de atuação. A dissertação que desenvolvi procura expor essa
concepção do referido autor.
Durante o mestrado, carregava comigo um caderno, no qual procurava registrar as
impressões dos diversos momentos que incluíam, além dos aspectos teóricos e técnicos, os
deslumbramentos, os despertares para novas visões, sonhos, lutas, enfim, tudo que poderia,
de alguma forma, contribuir para os devires, meus e daqueles com os quais pudesse, de
alguma forma, dialogar.
Na disciplina Antropologia da Linguagem, passei a ter uma nova e ampla concepção da
linguagem. O professor Severino mencionou autores que acrescentaram nuances inusitadas
a respeito da linguagem e da escrita. Para mim, os diálogos instigados pelas ideias Octávio
Paz, Michael Bakhtin, Edgar Morin, Ivonne Bordelois, dentre outros, evidenciaram, de
forma bela, as potencialidades destas práticas que deveriam distinguir o ser humano como
um ser solidário, voltado para o próximo, com o qual forma o tecido social que é vital a
todos nós.
Um momento singular e de muito aprendizado aconteceu na disciplina Tópicos Especiais
em Educação I: educação, linguagem e arte, quando cada aluno trouxe um pertence ou
objeto que se tornara símbolo de circunstâncias pejadas de história, sentimentos e afeições
de circunstâncias da vida. Fui tocado pelos relatos, partilhei de particularidades relevantes
na história dos colegas, tornei-me mais próximo deles, deparei-me com matizes dos
símbolos, que evidenciaram a sua grandiosidade.
Gostaria de relatar algo que para mim, como educador, foi muito especial, o fato do
professor Severino, não só apresentar lampejos de Sócrates, Platão e Aristóteles, mas
apresentar as respectivas ideias destes grandes filósofos como vertentes dos pensamentos
de autores que eram mencionados durante as aulas.
Fiz a disciplina Seminário de Pesquisa com o professor Groppo. Dialogamos sobre os
diversos tipos de pesquisa, dentre elas a pesquisa participante me chamou a atenção, pois
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rompe com as convenções da ciência, no que diz respeito a observação e a neutralidade do
pesquisador. Abri a mente para novas concepções, como a não separação entre sujeito e
objeto no desenvolvimento da pesquisa; a ideia de uma observação militante, na qual o
pesquisador se envolve com o fenômeno pesquisado. Esta e outras ideias sobre pesquisa
em educação podem ser ampliadas com a leitura do livro de autoria do Groppo e Marcos
Franscisco - Introdução À Pesquisa Em Educação.
A Disciplina Práxis Social e Práxis Comunitária trouxe-me uma nova concepção sobre os
vários aspectos que envolvem este tema. Após as discussões, debates e análises dos textos
e vídeos relacionados a este assunto, tendo como pano de fundo os interesses do primeiro,
segundo e terceiro setores, posso dizer que ampliei as perspectivas no que diz respeito ao
meu papel como cidadão e educador, fato que me leva a refletir, junto com o corpo
docente, sobre o planejamento das ações da escola.
Assinalei a disciplina Tópicos Especiais II – Educação, Inclusão e Subjetividade, como uma
das disciplinas que cursaria no segundo semestre de 2012, contudo não tinha consciência de
que estava iniciando uma incursão por alamedas com perspectivas singulares de educação,
as quais surpreenderiam a mim e aos colegas de classe, com o descortinar de paradigmas,
que fez-nos vislumbrar aspectos inusitados no que diz respeito à inclusão, e ampliados sob a
ótica da subjetividade. Os olhos da intelectualidade quase se fecharam diante de tanta luz,
mas o desejo palpitante de perscrutar novos rumos se impôs à escuridão. Os ricos
panoramas visualizados nos impeliram a propostas práticas nessa área tão debatida nos dias
atuais.
Hoje, ao estar concluindo o mestrado, visualizo o mundo com outros pensamentos, e me
deparo com carências, ausências e emergências, são olhares que despertam desejos em meu
coração, anseios por uma sociedade mais inclusiva e solidária, na qual, conforme afirma
Morin (2011), sejamos capazes de compreender a unidade do humano em sua diversidade.
No primeiro ano do mestrado, eu não era aluno oficialmente matriculado, portanto este é o
meu terceiro ano de mestrado. Nos dois primeiros anos me debati em torno do tema. O
professor Severino, a quem indiquei para ser meu orientador, dizia que eu tinha que me
sentir chamado pelo tema, porém este não era o meu caso. No início do terceiro e último
ano, conversei com o professor Severino sobre uma ideia que me atraía, trabalhar com uma
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comunidade de surdos. Então ele me disse: Você está falando com emoção! Eu disse sim
ao tema que me evocava a experimentar vivências singulares.
Há uns seis anos tenho contato com a comunidade de surdos do IASP – Instituto
Adventista de Ensino, e essa experiência descortinou, para minha vida, um rico universo
cultural, com o qual aprendi lições de vida, imprescindíveis para a compreensão mais
ampla dos aspectos significativos da diversidade, que estão transformando a minha
existência de educador/gestor.
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ANEXO
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Voz e Escuta dos Surdos: Um diálogo em educação