A REVOLUÇÃO FRANCESA E AS REPERCUSSÕES NA EDUCAÇÃO DE SURDOS Niédja Maria Ferreira de Lima UFCG/UAEd nié[email protected] Revolução Francesa- surdez-educação de surdos 1. INTRODUÇÃO No presente texto, nos propomos a refletir sobre um dos grandes acontecimentos da história da humanidade que ocorreu no século XVIII: a Revolução Francesa e as repercussões do debate pedagógico que ocorreu durante essa Revolução, seus avanços e consequências, para a educação dos sujeitos Surdos. Sob o comando da burguesia, esse movimento provocou enormes transformações nos contextos político, social, econômico, religioso e tecnológico na civilização ocidental, refletindo fortemente no cenário educacional, com debates em torno de uma pedagogia política. Alguns projetos apresentados à época, inspirados no pensamento Iluminista, reivindicavam uma escola democrática, como instrumento de divulgação e apropriação do saber historicamente acumulado pela humanidade e, concomitantemente, de espaço de unificação da língua nacional. Foi a única revolução social de massa e a mais radical de qualquer levante comparável (HOBSBAWN, 2002). Nesse cenário, os debates em torno de uma pedagogia política ocupavam o primeiro plano, sendo apresentados vários projetos pedagógicos que invocavam o pensamento Iluminista, como fonte inspiradora, e reivindicavam uma escola única, laica, obrigatória, gratuita, universalizada, sob o encargo do Estado, enfim, uma escola democrática para o “homem novo” (BOTO, 1996), como instrumento prestigiado para capacitar as novas gerações, com vistas às transformações dos valores, crenças, tradições e utopias. Para tanto, as conquistas das ciências e unificação linguística foram intensificadas. Elegemos este cenário de efervescência da Revolução Francesa com o intuito de refletirmos sobre as repercussões do debate pedagógico revolucionário francês na educação de surdos. Revisitarmos este período, considerado “áureo” na história dos surdos, constitui-se numa oportunidade de buscarmos compreender o seu significado. Partimos do princípio de que as discussões desenvolvidas na educação de surdos devem ser incluídas naquelas relacionadas às questões educativas gerais. Para tanto, respaldamos nossas reflexões em autores da educação geral (ROUSSEAU, 1999-2001; BOTO 1996; HOBSBAWM, 2002; SOUBOUL, 1981; ARANHA, 1989; MANACORDA, 1992) e autores da educação de surdos ( SKLIAR, 1997–1999; SAKS, 1990; SÁNCHEZ, 1996; SÁ, 2002; DORZIAT, 1999). Assim, acreditamos que ao revisitarmos esse momento da história moderna, poderemos compreender os desdobramentos das questões que levaram a educação de surdos a assumir a concepção Iluminista homogeneizadora e normalizadora, por meio do domínio de práticas “ouvintistas” nos processos educativos e do silenciamento e exclusão da própria comunidade surda face às questões que lhes eram peculiares: identidade, língua e cultura. 2. REVOLUÇÃO FRANCESA: bases históricas O século XVIII foi palco de grandes revoluções, destacando-se a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra por volta de 1760, e a Revolução Francesa de 1789. Ambas provocaram enormes transformações em vários setores da sociedade, marcando o início do mundo moderno. Este momento tão importante para a história da humanidade é abordado por Hobsbawm (2002), que procura traçar a transformação por que passaram todas as camadas sociais na Europa entre 1789 e 1848, na chamada “dupla revolução” 1 A ruptura revolucionária, iniciada neste país em 1789, veio coroar a longa crise do Antigo Regime – organização política e estrutura social da França no período do absolutismo monárquico, baseado no direito divino dos reis – que, por já mostrar marcas de decadência, passou a ser contestado. Souboul (1981) afirma que a estrutura social vigente dividia-se em três ordens ou estados e era hierarquicamente rígida: concedia honras e privilégios (isenção de impostos, recebimento de pensões governamentais e julgamento diferenciado) ao primeiro estado, composto pelo clero, e ao segundo estado, composto pela nobreza. O terceiro estado era formado pelo restante do povo: a burguesia, constituída por uma minoria, e os plebeus, representantes da maioria da população francesa e responsáveis pelo pagamento dos impostos de todo Estado. Essa estrutura social hierarquizada e discriminatória gerou uma enorme desigualdade na sociedade, levando o terceiro estado, particularmente a burguesia, a lutar por maior participação no Estado e por igualdade de tratamento em relação à nobreza e ao clero. A atitude dos burgueses em buscar conscientizar a população, para obter seu apoio, se chocou com o absolutismo monárquico, que defendia a manutenção dos privilégios. A reavaliação e contestação das questões sociais e políticas do Antigo Regime, no entanto, só foram possíveis com as idéias iluministas que, segundo Aranha (1996,p.151), teve origem no Renascimento “na medida em que o homem novo procurava valorizar os próprios poderes lutando contra o teocentrismo medieval e contra o princípio da autoridade”, e se intensificaram no século XVIII, também conhecido como o Século das Luzes, do Iluminismo e da Ilustração. Sobre o significado deste termo, a autora esclarece que ele 2 está ligado ao poder da razão humana de interpretar e reorganizar o mundo. Nesse sentido, os pensadores iluministas, como Rousseau, Diderot, Montesquieu, Voltaire, D’Alambert, Kant, Locke, Adam Smith, insistiam que somente através do uso da razão os homens atingiriam o progresso e alcançariam a felicidade. Por isso, atacavam a injustiça, a intolerância religiosa e os privilégios do Antigo Regime, abrindo caminhos para diversos movimentos sociais, dentre eles, a Revolução Francesa. No ano de 1789, diante da crise generalizada em que se encontrava a França, decorrente de conflitos sociais, econômicos e políticos, conforme apontado anteriormente, o terceiro estado transformou no dia 9 de julho, a “Assembléia Nacional” em “Assembléia Nacional Constituinte”, tornando a situação no país ainda mais tensa. No dia 14 de julho, o povo liderado pela burguesia tomou a Bastilha, prisão símbolo do absolutismo monárquico, levando o movimento revolucionário a alastrar-se pelo campo, gerando uma onda de pânico por parte dos aristocratas e camponeses. Hobsbawm (2002,p 94) comenta este fato assim: (...) Em tempos de revolução nada é mais poderoso do que a queda de símbolos. A queda da Bastilha, que fez do 14 de julho a festa nacional francesa, ratificou a queda do despotismo e foi saudada em todo o mundo como o princípio da libertação. (...) a queda da Bastilha levou a revolução para as cidades e para o campo. Entre as primeiras medidas aprovadas pela Assembléia estava a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada no dia 26 de agosto de 1789. O documento, de inspiração Iluminista, proclama o direito à liberdade, à igualdade perante a lei e a inviolabilidade da propriedade, assim como o direito de resistir à opressão. No parecer de Boto (1996), a referida Declaração foi a princípio uma declaração de direitos. Ao enunciar que o homem nasce livre e igual em direitos, o texto emite a codificação de uma promessa. O documento erige-se em seu tempo, como uma comunhão de um novo começo, a celebração de um contrato social legítimo que, referendando a tomada da Bastilha, acena para o movimento de ruptura. O aprofundamento da Revolução provocou divergências cada vez maiores entre os grupos de direita e de esquerda. A participação efetiva dos jacobinos, um grupo que reunia representantes de pequena e média burguesia, contribuiu para a segunda fase da Revolução Francesa, que proclamou a República e executou o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta. Nesta nova fase, o poder passou a ser exercido pela Convenção Nacional de 1792 que estipulava, dentre as medidas a serem tomadas: elaborar uma nova Constituição, adotar um novo calendário que revelasse a originalidade do tempo, elaborar critérios de medida, além de julgar e executar o rei. 3 Após a morte de Luís XVI, iniciou-se um período de “Terror” na França, decorrente do movimento contra– revolução que ameaçava o processo revolucionário dentro do próprio país e da guerra contra a Coligação européia integrada pela Inglaterra, Áustria, Prússia, Holanda, Espanha, Rússia e Sardenha. Para enfrentar esta ameaça a Convenção criou o Comitê de Salvação Pública (abril de 1739) com o objetivo de organizar a defesa e restabelecer a ordem interna. Entre os líderes do comitê destacavam-se Saint-Just, Danton e Robespierre, o principal líder do governo revolucionário e um dos jacobinos mais populares entre os sansculottes (grupo formado por pequenos comerciantes, artesãos e assalariados). De acordo com Hobsbawm (2002), o fim desse período só aconteceu no Nono Terminor, segundo o calendário revolucionário (27 de julho de 1794), quando a Convenção derrubou Robespierre. No dia seguinte, ele e Saint-Just foram executados. A partir daí a alta burguesia voltou ao poder. Uma nova fase desta história tem início em 9 de novembro - 18 Brumário, pelo calendário republicano - quando Napoleão Bonaparte, um talentoso oficial do exército francês, assumiu o poder por meio de um golpe de Estado e fez-se imperador. Mesmo com o fim da Revolução, seus ideais continuariam a se propagar por toda parte; ideais estes que deixaram traços relevantes e que de fato revolucionaram o mundo. Ao analisar a importância da Revolução Francesa, Hobsbawm (op. cit.) evidencia que sua influência direta é universal, pois ela forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes; foi a única revolução social de massa e a mais radical de qualquer levante comparável. Nas palavras do referido autor: A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as idéias européias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa (HOBSBAWM, 2002, p. 83-84). 3. O DEBATE PEDAGÓGICO REVOLUCIONÁRIO NA VOZ DE CONDORCET Percorrer o universo simbólico da luta por uma educação democrática durante a Revolução Francesa, na concepção de Boto (1996), supõe identificar nossa herança em relação a esse momento privilegiado na história da humanidade e, assim, poder perceber certas tensões quanto ao lugar social reservado à escola. Para 4 esta autora, “identificar no passado o que nos soa contemporâneo pode significar estratégia apropriada para retomar para nós algumas das bandeiras nele deflagradas (p. 17)”. Assim como a autora, acreditamos que, ao recordarmos este debate, estaremos, também, procurando identificar o papel, o lugar e o sentido que foi atribuído à educação de surdos que se anunciava democrática, durante o período da Revolução. Além disso, algumas questões emergem quando buscamos examinar, no contexto atual brasileiro, o verdadeiro sentido atribuído aos lemas escola para todos, respeito às diferenças, inclusão que se inserem nas reformas promovidas na área educacional para receber os alunos com necessidades educacionais especiais na Rede Regular de Ensino. Temos aí uma reatualização do ideário liberal, mas que requer vigilância quanto aos reais propósitos da ideia de uma escola para receber a todos os excluídos. No cenário da Revolução, os debates em torno de uma pedagogia política ocuparam o primeiro plano, sendo apresentados vários projetos à Assembléia Legislativa – Tyllerand, Rapport de Condorcet, Lepeletier defendido por Robespierre - que invocam e evocam o pensamento Iluminista como fonte inspiradora, reivindicando uma escola democrática para o “homem novo”. Considerando o objetivo de nossa reflexão, estaremos enfatizando apenas o projeto pedagógico de Condorcet, pois acreditamos que ele apresenta subsídios importantes, que repercutiram decisivamente na educação dos surdos. Como explicita Boto (1996), os discursos que predominaram nos debates revolucionários em torno da escola centraram-se, antes, sobre a forma que deveria assumir a escola das novas gerações republicanas. O homem novo deveria ser educado pela pátria e para a nação, devendo, portanto, antes de mais nada, romper com quaisquer referentes ainda arraigados de tradição familiar. Para isso, seria necessário universalizar a língua francesa e intensificar as conquistas das ciências. Foi a ruptura revolucionária que deu substância ao debate acerca da institucionalização de um ensino público, universal, sob o encargo dos poderes estatais. Com a Revolução surge: A utopia da regeneração dos tempos pela eliminação dos vestígios arcaicos do Antigo Regime e pela representação do homem novo a ser preparado pela escola: escola esta universal, laica, gratuita, obrigatória e para ambos os sexos. A escola, enquanto instituição agenciada pelo Estado, passa a ser tomada como veículo propulsor da regeneração. A pedagogia torna-se, então, conectada à esfera pública e ao próprio civismo (...) (BOTO, 1996, p 69). 5 Dentro do contexto histórico do Iluminismo, considerado um período muito rico em reflexões pedagógicas, a pedagogia política ocupou posição marcante na luta para tornar a escola leiga e função do Estado. A pedagogia da Ilustração apresenta tendências diferentes, porém, fundamentais, repropondo os Enciclopedistas2 e Jean-Jacques Rousseau na França revolucionária. O pensamento de Rousseau ocupa lugar de destaque na filosofia política, pois suas obras antecipam o ideário da Revolução Francesa, além de produzir uma teoria da educação (ARANHA, 2006). A concepção política desse filósofo é expressa na obra o Contrato Social e se revela mais democrática e menos elitista Para Rousseau, o homem em estado de natureza é bom, mas é corrompido pela sociedade que destrói sua liberdade natural. Ele diz: “Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem” (ROUSSEAU, 2001, p.7). Por isso, acredita que o contrato social é a possibilidade que o povo tem de estar reunido sob uma vontade geral, a partir do consentimento de todos. Na obra, Emílio ou Da educação, ele defendia uma interação entre escola e política. Nesta obra, mostra como deveria ser a educação de um jovem, longe da sociedade corruptora e sob os cuidados de um preceptor ideal. Para Rousseau, a educação devia ser natural e de acordo com o desenvolvimento de cada um. Ele é considerado o teórico do século XVII, mas, sobretudo, um marco na pedagogia contemporânea. A partir de então o debate pedagógico assumia diferentes feições nos distintos períodos do percurso revolucionário. O Rapport, de autoria de Condorcet, configura-se na grande herança da Ilustração francesa. Seu projeto, lido nos dias 20 e 21 de abril de 1792 na tribuna da Assembléia Legislativa, dava uma nova dimensão para o problema da escola no que concerne à extensão das reais oportunidades para o cultivo intelectual, radicalizando, assim, a perspectiva oferecida às idéias de talento e de perfectibilidade (BOTO, 1996). Acerca desse projeto, Manacorda (1999,p.250) traz as seguintes informações: O relatório articula-se em cinco partes, respectivamente sobre a natureza e os fins da instrução pública, sobre a instrução comum para todas as crianças, sobre a instrução comum para os adultos, sobre a instrução relativa às profissões e sobre a instrução relativa às ciências. Na convicção de um infinito progresso do homem nos vários estágios da história rumo a um estágio em que desapareceria a desigualdade entre as nações e as classes, e se concretizaria a perfectibilidade do indivíduo. Condorcet sustentava a necessidade de uma instrução para todo o povo, aos cuidados do Estado e inspirada num laicismo absoluto: uma instrução, enfim, única, gratuita e neutra. 6 Contudo, a Assembléia nada deliberou a respeito da questão pedagógica, priorizando as questões da guerra. Além disso, o plano de Condorcet, não foi aplaudido pela imprensa. O legado de sua obra foi deixado como fonte inspiradora do projeto de Romme na Convenção, que seria uma diretriz daquilo que a posteridade tomaria por “paradigma da escola democrática”. Ao fazer uma análise acerca da concepção de escola presente no projeto de Condorcet, Boto (1996) nos diz que ele tem por princípio um certo desejo de regeneração social, cujo programa de concepção de nacionalidade democrático-liberal francesa teria de partir do direito à diferença, como elemento fundante da própria acepção de democracia, aspecto esse, que se encontrava ausente no plano apresentado por Lepeletier. “É por isso que o seu projeto, que pretende universalizar pelo território da França a Língua Francesa, conta também com o direito de resistência das comunidades que não estariam ainda familiarizadas com esse idioma dominante” (BOTO, 1996, p.195). No parecer de Lopes (1981, apud BOTO, 1996), a igualdade preconizada nos planos educativos tem como contraponto os parâmetros desiguais de uma sociedade capitalista em construção. Essa opinião da autora é compartilhada por Aranha (1898) que alerta para uma maior atenção às propostas de educação pública e gratuita a todos os cidadãos. O que fica claro é a dualidade de ensino, ou seja, a prescrição de um tipo de escola para o povo e outra para a burguesia, o que era visto sem temor algum de entrar em contradição com o preceito de igualdade. Ademais, para a doutrina liberal, os homens, não sendo inatamente iguais (em capacidades), também não poderão ser iguais em posição social. Estes e outros posicionamentos críticos e construtivos são pertinentes, quando nos propomos a analisar mais profundamente os fatores filosóficos, ideológicos e políticos que estão subjacentes ao modo como o homem, a sociedade e o mundo se concebem e dialogam. 4. AS REPERCUSSÕES DA PEDAGOGIA REVOLUCIONÁRIA NA EDUCAÇÃO DE SURDOS O debate pedagógico revolucionário francês na luta por uma educação democrática, como bem evidenciou o projeto de Condorcet, repercutiu na educação das pessoas surdas, que, até então, não tinham o direito à escolarização. A fim de entendermos como se deu essa “conquista”, é necessário abordarmos, ainda que brevemente, o início da história educacional dessas pessoas. Na Antiguidade, os surdos eram vistos como não-humanos, como pessoas castigadas pelos deuses ou enfeitiçadas, sendo, portanto, consideradas ineducáveis e privados de seus direitos legais. Essa concepção 7 advém do fato de os surdos não possuírem uma linguagem estruturada, pois, de acordo com Aristóteles, a linguagem era o que dava a condição humana, a capacidade de desenvolver faculdades intelectuais. Em uma época posterior - Idade Média - seguindo uma concepção religiosa, os surdos continuavam sendo vistos como não-humanos. Para igreja católica, eles não podiam ser considerados imortais, por não proclamarem os sacramentos. Somente no final desse período, é traçado um caminho para sua educação, que se daria na forma de preceptorado, o que era um privilégio apenas dos nobres, já que possuíam os meios financeiros para fazer com que os filhos aprendessem a falar, assegurando-lhes, assim, o direito à herança (SANCHÉZ, 1990). A partir da Idade Moderna, particularmente em meados século XVI, tem-se notícia de uma primeira possibilidade para educação dos surdos. Na Espanha, o monge beneditino Pedro Ponce de León conseguiu ensinar quatro surdos, filhos de nobres, a falar, a ler, a escrever, além de trabalhar conceitos de astronomia e matemática. Ponce de León desenvolveu uma metodologia de educação de surdos que incluía datilologia (representação manual das letras do alfabeto), escrita e oralização. O século XVIII , como vimos foi o Século das Luzes e a Era das Revoluções, destacando–se a Revolução Francesa de 1789. O pensamento pedagógico liberal desse período repercutiu também na educação de surdos, principalmente pelo papel atribuído à escola que deveria ser única, laica, obrigatória gratuita e universalizada, sob o encargo do Estado. Esse era o ideal de escola que os revolucionários vislumbravam para formação do “homem novo”, como instrumento privilegiado para capacitar as novas gerações, com vistas às transformações dos valores, crenças, tradições e utopias. A princípio, o Iluminismo com sua visão legitimadora de ciência, defendeu a higienização social e isolou a “anormalidade” com a finalidade de reabilitar os indivíduos que não respondiam às exigências básicas da sociedade moderna industrial: eram os sujeitos considerados anormais/deficientes (físico ou mental, retardado, louco, auditivo, etc.), em sua maioria das camadas populares, que por características peculiares da anormalidade, não tinham, possibilidade de serem curados. No afã de recuperar esses sujeitos, seus corpos e mentes, são criadas instituições coletivas, ou seja, ambientes segregadores para afastar a diferença do convívio social que têm como função básica o isolamento dessa parcela da população com vistas à recuperação, ou pelo menos a minimização do “mal” de seus usuários: os hospícios e as instituições para deficientes. (BUENO, 1997). Na concepção de Foucault (apud SKLIAR, 1997), trata-se de uma estratégia de disciplinamento, controle e regulação dos indivíduos, através do que ele chamou Biopoder, o poder sobre suas vidas. Esse novo tipo de poder, o poder disciplinar, envolve técnicas de aplicação do poder e do saber que “individualiza” ainda mais o sujeito e envolve mais intensamente seu corpo, através da vigilância e da observação.Essa estratégia contribuiu para o apagamento da diferença, corroborando para que a Educação 8 Especial fosse entendida como sinônimo de educação menor, irrelevante e incompleta, que trata de forma caridosa e benevolente os sujeitos considerados deficientes se estabelecendo, com isso, a fronteira entre educação especial e educação geral (SKLIAR, 1997). É sob esta óptica que a Educação Especial foi se constituindo e produzindo uma concepção de sujeito deficiente, uma pedagogia terapêutica cuja finalidade era reabilitar ou curar as pessoas. Pedagogia instaurada nos princípios do século XX e vigente até nossos dias, que conserva para si um olhar iluminista sobre a identidade da “alteridade deficiente” 3. No cenário da Revolução, vieram à tona vários projetos, configurando modelos distintos de compreensão do lugar social da escola na transmissão e aquisição do conhecimento produzido. Conforme salientamos no item anterior, o projeto pedagógico de Condorcet revelava uma maior preocupação com a educação das camadas populares, embora seus princípios fundamentais fossem efetivos para a consolidação da sociedade burguesa (LOPES, 1981, apud BOTO, 1996). É na efervescência do movimento revolucionário francês que surge a possibilidade de uma intervenção educativa para maior parcela dos surdos. Esse período é também considerado a “época de ouro” do movimento surdo francês. De acordo com Sá (2002), essa história tem início quando o Abade Charles Michael de L’Epée se propõe a instruir um grupo de crianças surdas numa pequena escola, que, posteriormente, tornou-se a primeira instituição pública do mundo dedicada à educação dos surdos. O abade de L’Epée aprendeu a língua de sinais com os surdos e criou os “Sinais Metódicos”. Segundo Sacks (1990, p.33), a utilização desse sistema: “Permitia que os estudantes surdos escrevessem o que lhes era dito através de um intérprete sinalizador, um método tão bem sucedido que possibilitou, pela primeira vez, que alunos surdos comuns lessem e escrevessem francês, adquirindo assim uma instrução”. O trabalho de L’Epée é reconhecido pela comunidade surda e por estudiosos da área pelo fato de conceber a língua de sinais como uma língua natural dos surdos e o único veículo adequado para desenvolver seu pensamento e sua comunicação. Seu trabalho teve grande repercussão em vários países do mundo. No entanto, todo esse mérito atribuído ao trabalho do Abade de L’Epée não escapou às críticas de Wrigley (1996, apud Sá, 2002,p.53-55), quando trata da história dos surdos. Ele diz: Na verdade, por trás de uma história onde se glorifica o Abade de L’Epée e seus sucessores, está o início de práticas de agrupamento de surdos em instituição, primeiramente chamadas asilos e depois chamadas escolas. A história da perspectiva dos benfeitores destaca pessoas e feitos, mas esconde a prática social de colocar à margem os diferentes e asilá-los. (...) Os historiadores surdos e historiadores de surdos, escrevendo sobre L’Epée, acabam deixando a gratidão – 9 por ele ter criado a primeira escola formal para surdos - vencer o exame mais profundo das inadequações de sua abordagem. Sanchéz (1990), outro estudioso da área, afirma que as concepções de L’Epée não escaparam, sem dúvida, a certos desconhecimentos próprios de sua época, causando prejuízos à educação de surdos. O maior deles foi pensar que a Língua de Sinais, usada pelos surdos, era incompleta, devendo ser melhorada e universalizada. Com esta finalidade, introduziu o que denominou “Sinais Metódicos” 4, artificializando e desconfigurando a Língua de Sinais enquanto língua pertencente a uma comunidade. A nosso ver, os ideais dos revolucionários franceses no afã de instituir uma “nação regenerada” contribuíram para a desagregação das minorias e dificultou o estabelecimento de identidades próprias. Em contrapartida, não podemos deixar de evidenciar as repercussões do Projeto de Condorcet no trabalho do Abade de L’Epée, no sentido de ter possibilitado a convivência institucionalizada dos surdos por meio da Língua de Sinais, contribuindo para o fortalecimento da comunidade surda na França. Esse desenvolvimento da comunidade tem suporte na seguinte citação de Sanchéz (1990,p. 42): Um grupo de surdos interagindo, muitos deles filhos e familiares de surdos, usuários naturais da língua de sinais, constitui um ambiente linguístico que possui os requisito mínimo para que em seu seio uma criança surda desenvolva normalmente a linguagem. Este desenvolvimento é possível graças à aprendizagem espontânea e a utilização significativa da língua de sinais (...) Nestas condições, é possível entender porque alguns surdos haviam adquirido conhecimentos em várias áreas, e um domínio aceitável da língua escrita (...) Os surdos dessa época gozaram de oportunidades que lhes foram vedadas posteriormente com a imposição do oralismo. No século XIX, com o novo quadro político-científico, mudanças foram implementadas, dentre as quais: o processo de unificação da língua e dialetos na Itália, a possibilidade de amplificação do som com o desenvolvimento tecnológico e as ideias positivistas que dominavam na Europa. Não podemos esquecer que paralelamente a todo o crescimento da educação dos surdos, as ideias oralistas continuavam sendo disseminadas, defendidas e praticadas em vários países do mundo, especialmente na Alemanha. O ano de 1880 tem como marco o Congresso Internacional de Educadores de Surdos, realizado em Milão, quando é recomendada a substituição da linguagem gestual pelo método oralista, que passa a ser hegemônico. Os surdos foram excluídos deste Congresso e, a partir daí, foram levados, a todo o custo, a falar através de processos reabilitacionais das funções orais–auditivas, visando principalmente sua integração na sociedade. 10 De acordo com Skliar (1996, citado por Lopes Filho, 1997), a Itália aprovou o oralismo para facilitar o projeto geral de alfabetização do país, que pregava a eliminação dos fatores de desvio linguístico (no caso dos surdos, a Língua de Sinais), uma vez que almejavam uma unidade linguística nacional. O mais importante e poderoso defensor do oralismo foi Alexander Graham Bell, fundador do método alemão e partidário da eugenia (ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução humana). Foi aprovado, assim, no Congresso de Milão um dos propósitos do projeto de Condorcet: a universalização da língua. Apesar de ficar expressa a preocupação com relação ao direito de resistência das comunidades que não estariam ainda familiarizadas com o idioma dominante, ele terminou se tornando hegemônico. Assim, a educação de surdos assume, de uma vez por todas, a concepção Iluminista homogeneizadora e normalizadora. Retomamos, então, as críticas feitas a este revolucionário (Condorcet) e ao Abade de L’Épée por meio do seguinte questionamento: será que no discurso de Condorcet se reportando ao povo, os surdos estariam incluídos? Na verdade, o Abade de L’Epée, com sua participação “piedosa”, jamais utilizou a autêntica Língua de Sinais da comunidade surda, pois acreditava que era incompleta, devendo, portanto, ser melhorada. Essa informação nos parece dar indício para uma leitura mais crítica quanto à intenção de ambos os filósofos. O que podemos concluir é que as iniciativas pensadas e tomadas pelos ouvintes para a educação das pessoas surdas em toda a trajetória histórica, narradas até o presente momento, atingiram seus objetivos em termos de ideário, culminando com o domínio da concepção oralista que perdurou por mais de cem anos. Durante todo esse tempo, não só a sociedade, mas os próprios profissionais que lidavam com os surdos passaram a considerá-los deficientes, procurando normalizá-los, através de treinamentos que os provesse de uma linguagem oral (DORZIAT, 1999). Apesar de todo esse quadro de dominação e opressão oralista, a história testemunha também o movimento de resistência da comunidade surda que foi expressa de formas variadas: criação de associações de surdos, casamentos entre os próprios surdos, o refúgio das crianças surdas nos banheiros das escolas para comunicarem-se em Língua de Sinais etc, constituindo, segundo Skliar (1998), algumas das expressões mais genuínas de preservação de uma cultura em todo esse processo. O advento da concepção oralista no contexto educacional das pessoas surdas, na opinião do referido autor, deve ser entendido como uma das causas fundamentais na produção do “holocausto linguístico”, cognitivo e cultural dessa comunidade, quando comparados a outras minorias. As consequências desta perspectiva são percebidas até os dias de hoje, principalmente nos baixos níveis de instrução dos surdos herdeiros do modelo oralista e no domínio de práticas “ouvintistas”5 dentro dos processos educativos, retratadas, sutilmente, através de mecanismos que evidenciam o domínio ouvinte. Essa postura ideológica contribuiu, ainda, para uma baixo auto-imagem do surdo e para um sentimento de inferioridade frente à norma. 11 Somente nas últimas décadas do século XX, com o advento da proposta de educação bilíngue-bicultural para educação de surdos e da suposta aceitação da diferença pelas políticas de inclusão, algumas ações têm sido implementadas visando acolher as “pessoas com necessidades educacionais especiais”, entre elas, os Surdos, respaldados na Declaração de Salamanca (1994). Torna-se importante salientar, aqui, os desafios acerca da realidade de implementação da inclusão destes sujeitos na escola regular, na medida em que tem provocado interpretações e práticas diferenciadas em diversas localidades. Embora a ideia de “escola para todos” pareça ser concretizada com a abertura de suas portas para receber os excluídos, ela (escola) mantém as mesmas e precárias condições oferecidas aos que já estavam supostamente incluídos (SOUZA & GÓES, 1999). De fato, se os já incluídos não veem atendidas suas necessidades educativas mais elementares, como esperar que haja disponibilidade dessa mesma escola em se preparar para receber os excluídos? 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS As questões e reflexões suscitadas neste texto apresentaram elementos fundamentais para a compreensão dos processos educacionais dos surdos, tanto no contexto da Revolução Francesa (século XVIII), quanto nos fatos que transcorreram nos séculos subsequentes. Vimos que o ideário da Revolução na luta pela liberdade individual se propôs a oferecer uma educação pública, gratuita obrigatória e sob o encargo do Estado para todo o povo. Este ideário repercutiu na educação de surdos, possibilitando que vivenciassem em sua história um período considerado “áureo”. No entanto, a partir do Congresso de Milão (1880), o Oralismo é recomendado como método ideal para o ensino das pessoas surdas, o uso da Língua de Sinais é terminantemente proibido e os professores surdos afastados da escola. Apesar de o direito de ser cidadão surdo ter sido negado, a comunidade surda não permaneceu passiva, mas resistiu e continua resistindo ainda hoje ao domínio “ouvintista”. Ao retomamos estas questões pudemos perceber que as conquistas, dilemas, conflitos que ocorreram na história educacional dos surdos vêm sendo reeditadas na contemporaneidade. Concordamos com Boto (1996), quando afirma que na voz do passado é o presente que nos fala, pois com frequência, a história da educação brasileira retoma o objeto da democratização da escola como a grande questão intelectual a se resolver. A exemplo disso, apontamos as políticas educacionais destinadas à inclusão das pessoas que apresentam necessidades educativas especiais na escola regular, utilizando, para isso, o lema “escola para todos”. O argumento utilizado pelo discurso oficial é o de que a convivência por si só com essas pessoas promoveria uma maior aceitação delas na sociedade como um todo. Há contradições profundas entre o 12 discurso oficial e o teoricamente posto, mostrando, infelizmente, que a escola pública tem contribuído para a permanência das relações de poder e para as desigualdades presentes na sociedade. Embora acreditemos que a escola é um direito de todos, sem restrição, entendemos que é necessária atenção aos discursos e políticas educacionais destinados, particularmente, a essa parcela da população, visto que o direito à sua escolarização deve ter como princípio o reconhecimento da diferença, seu pertencimento a uma comunidade detentora de língua e cultura próprias. Portanto, se não houver consciência de que essas diferenças existem e precisam ser respeitadas, porque a realização das pessoas não se constitui em um caminho de mão única, corre-se o risco de se desnudar o processo educacional de seu verdadeiro sentido e, portanto, as ideias iluministas de homem único e universal continuarem dominantes, mesmo de forma camuflada, como nos mostra uma reflexão mais profunda da própria História. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANHA, Maria Lúcia Arruda. História da educação. São Paulo: Moderna, 1989. BOTO, Carlota. A escola do novo homem: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. DORZIAT, Ana. Bilinguismo e surdez: para além de uma visão linguística e metodológica. In: SLKLIAR, Carlos (Org.) Atualidade da educação bilíngue para surdos. Porto Alegre: Mediação, 1999. _________. Educação e Surdez: o “ser surdo” como paradigma pedagógico. Revista Espaço, Rio de Janeiro, v.1, nº 15, p. 27-35, 2001. _________. A inclusão na visão dos surdos. Trabalho publicado nos anais do IV Congresso Brasileiro de Psicologia do Desenvolvimento. Contextos de desenvolvimento, educação e cultura. João Pessoa – PB, 24 a 26 de maio de 2003. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Lopes e Marcos Penchel. 16 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. LOPES FILHO, Otacílio (Org.) Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Roca, 1997. MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da Antiguidade aos nossos dias. Revisão da tradução Rosa dos Anjos Oliveira e Paolo Nosella. 7 ed. São Paulo: Cortez, 1999. 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Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. 1 Modo como Hobsbawm (2002) conceitua a Revolução Inglesa e a Revolução Francesa. 2 O filósofo Diderot, responsável pela organização da Enciclopédia, e os filósofos D’Alembert, Voltaire, Rousseau e Helvetius contribuíram para publicação da obra. Etimologicamente a Enciclopédia significa círculo da educação e cultura. É um documento histórico que surtiu um inegável efeito de multiplicação, já que seu pensamento, vulgarizado em artigos, panfletos e cartazes, tornava-se mais acessível a camadas mais amplas da população, ocasionando a visibilidade de novas acepções de homem e de mundo ali contempladas ( BOTO, 2002). 3) Alteridade deficiente é uma expressão que remete não ao indivíduo ou ao grupo de indivíduos deficientes ou à sua deficiência específica, mas à sua invenção, à sua produção como outro (SKLIAR, 2003). 4 Esses sinais representam uma combinação da língua de sinais dos próprios surdos com a gramática sinalizada francesa. 5 Segundo Skliar (1999), a educação bilíngue-bicultural sugere algo mais do que o domínio de duas línguas (língua de sinais, como primeira língua, e língua portuguesa escrita e/ou oral, como segunda língua) e contato com as culturas surda e ouvinte; sugere o reconhecimento político da surdez como diferença. 14