SOB A LATARIA: MEMÓRIAS DE UM TAXISTA
Paulo Roberto de Moura Rigo
1 Introdução
Boris Schnaiderman, no prefácio de Memórias do Subsolo, salienta a penetração dessa
obra na literatura:
[...] aquela subjetividade agressiva e torturada do narrador-personagem, o seu
discurso alucinado, sua veemência desordenada, o fluxo contínuo de sua fala, que
parece estar sempre transbordando, pode ser ouvido por trás da obra de muitos
escritores da modernidade. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 11)
Some-se a isso, o fato do texto também penetrarem outros setores da arte.Assim foi
com o cinema, assim foi com Taxi Driver. A composição do personagem central do filme é
marcada pelaexistência do homem do subsolo desde sua estrutura mais básica, alguém
despejando suas memórias mais íntimas sobre o papel – vale ressaltar: ambos os personagens
escrevem –, até a profundidade psicológica de dois sujeitos avessos à sociedade, amargurados
com a civilização e descrentes com tudo. Nesse sentido, faço um breve estudo comparativo
sobre pontos que unem e separam as referidas obras.
2 Considerações iniciais
Cabe dizer que o próprio diretor, Martin Scorsese, menciona nos extras do filme que a
caracterização do personagem Travis, tanto no roteiro quanto na interpretação de Robert De
Niro, toca em uma verdade: a solidão. E que ele, Scorsese, não consegue descrever o
sentimento de tocar essa verdade, mas que é o mesmo sentimento que se tem ao ler Memórias
do Subsolo. Também o roteirista Paul Schrader faz as seguintes declarações: “Travis provoca
a sua solidão. [... O roteiro] é sobre um homem que sofria da patologia da solidão. [...] E a
patologia cresceu até se tornar maligna e violenta. [...] E é o estudo de um homem doente.
Sabe, o homem do subsolo.” Assim, os criadores de Taxi Driver sofreram influência
consciente da obra de Dostoiévski.
Outra consideração a ser feita é que ambos os trabalhos têm um narrador em primeira
pessoa que desvenda toda a história através de seus apontamentos. O homem do subsolo nos
diz expressamente que está passando para o papel suas inquietações, que assim sairão mais
solenes. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 54) O taxista, por sua vez, é mostrado enquanto escreve
em seu diário. Resumindo, o ponto de vista é sempre o deles.
3 A solidão
Eis a pedra fundamental na estrutura das duas obras: a solidão. Os dois protagonistas
giram em torno dela, mas reagem de jeitos diferentes. Ou seja, num primeiro momento a
solidão os aproxima, mas depois os distancia, abrindo para nós, observadores, a possibilidade
de contemplá-los à distância.
3.1 A solidão no Táxi
Travis, o taxista, revela-se em alguns solilóquios:
A solidão é uma constante em minha vida. [...] Não há saída. Sou um homem só. [...]
À noite os animais saem da toca. Prostitutas fedorentas, vigaristas, bichas,
puxadores, traficantes. Imorais, corruptos. Um dia, uma tempestade limpará essa
sujeira. [...] Ouça, cambada de sacanas. Comigo vocês não podem. Desafio os
imundos, as porcas, os cachorros, os canalhas. Sou um revoltado. (TAXI Driver,
1976)
Ele vê, não gosta do que vê, isola-se, raciocina, encontra suas verdades, crê-se
superior, obriga-se a corrigir o que puder, prepara-se e age. Em outras palavras, o protagonista
se analisa, chega a veredictos e se convence da necessidade de suas ações. Interessante notar:
o taxista sofre de insônia e arranja esse emprego para perambular durante a noite pelas ruas da
Nova Iorque dos anos de 1970, uma época de grande violência na cidade. Ele sabe o que vai
encontrar e opta por tal coisa. Ele sabe que à noite os animais saem da toca. Por isso, Travis
também sai da toca.
Mais tarde, falando com o candidato político Palentine, Travis pede providências:
“Deviam limpar essa cidade, ela parece um esgoto a céu aberto, cheia de lixo, sujeira, às
vezes, mal dá pra aguentar. Acho que o próximo presidente tem que passar o rodo, dar a
descarga e mandar tudo pro inferno.1 O taxista ainda não agiu, sua patologia ainda não
explodiu. O que ele está tentando fazer? Ele apenas aproveitou a oportunidade para externar
seus pensamentos diante de alguém com poder para executá-los.
1
TAXI Driver.
O filme avança e Travis fica mais consciente do que deseja e está prestes a explodir,
mas ainda tenta se salvar. Travis procura ajuda com o “sábio” da turma, o único entre seus
pares que lhe desperta um mínimo de respeito. “Ando com umas ideias ruins”2: é o seu pedido
de socorro. Mas, infelizmente, o “sábio” não o compreende, não faz sequer ideia do que se
passa com seu colega e ambos se despedem com suas convicções inalteradas. O “revoltado”
atacará.
3.2 A solidão no Subsolo
Já o homem do subsolo mostra-se diferente em sua solidão:
Sou um homem doente... [...] Já estive empregado, atualmente não. Fui um
funcionário maldoso, grosseiro, e encontrava prazer nisso. [...] Menti a respeito de
mim mesmo quando disse, ainda há pouco, que era um funcionário maldoso. Menti
de raiva. Eu apenas me divertia, [...] mas, na realidade, nunca pude tornar-me mau.
[...] elementos contraditórios realmente fervilham em mim. [...] Não consegui chegar
a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói
nem inseto. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 15-17)
Ele se conhece profundamente, até mesmo em suas próprias contradições, e se dá ao
luxo de brincar com o fato. Ele sabe, mas põe em dúvida. Ele enxerga, mas averigua outras
hipóteses. Ele rodopia, mas não sai do lugar. O homem do subsolo crê na superioridade de seu
intelecto e acha indigno rebaixar-se ao nível dos demais. Ele escolhe não agir, convencido da
inutilidade das ações.
3.3 Consciências solitárias em análise
O homem do subsolo possui uma consciência desenvolvida ao extremo e, por isso, é
capaz não só de analisar a si mesmo, como também ao taxista. Assim, ele proclama que “uma
consciência muito perspicaz é uma doença” (2000, p. 18) e que o homem da consciência
hipertrofiada, ao iniciar a sua vingança, suspenderá a mesma, “não acreditando no direito nem
no êxito da vingança e sabendo de antemão que todas essas tentativas de vindita vão fazê-lo
sofrer cem vezes mais que ao objeto de sua vingança [...]”, (2000, p. 24) até porque “o
resultado direto e legal da consciência é a inércia”. (2000, p. 29)
De outra monta, o analista do subsolo enquadra Travis: “Para o uso cotidiano, seria
mais do que suficiente a consciência humana comum [...]”, (2000, p. 18) “Um cavalheiro
2
Idem.
desse tipo atira-se diretamente ao objetivo, como um touro enfurecido [...]”, (2000, p. 21)
“[...] todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados”
(2000, p. 29) e “[...] o homem se vinga porque acredita que é justo. Quer dizer que ele
encontrou a causa primeira, o fundamento: a justiça. Isto é, [...] vinga-se calmamente e com
êxito, convicto de que pratica uma ação honesta e justa.” (2000, p. 30)
Assim, o homem da consciência hipertrofiada permanece inerte, pensando,
conjecturando, sentenciando, absolvendo e condenando. Demora-se mais que Hamlet em suas
divagações e, no final, “veste-se” de Bartleby e prefere não fazer. Enquanto isso, a
consciência comum de Travis permite que ele se jogue de cabeça em busca de seu objetivo,
até porque a justiça está do seu lado e ele apenas quer limpar a sujeira das ruas...
4 O amor e as prostitutas
O personagem Travis primeiramente se apaixona por uma bela mulher, mas inclusive
nesse momento não consegue desviar a atenção do que lhe desagrada: “Parece um anjo, no
meio daquela imundície.”3 Seu alvo é um modelo de beleza: loira, alta, magra, olhos azuis.
Ele se aproxima, conquista sua simpatia, está próximo do amor, próximo de esquecer a
solidão, porém acaba sendo tragado por suas próprias atitudes. O taxista deseja que a sua
anjinha seja um pouco diabinha e é visando tal fim que a conduz até uma sessão de cinema
pornô. Ela foge e ele cai na escuridão. Perdida a batalha, o taxista se convence de que ela não
valia a pena: “Agora sei que ela é igual ao resto: fria e distante. Há muita gente assim.”4
Fracassado em sua tentativa de inserir mais sensualidade na pureza, agora ele quer
fazer o processo contrário: tornar pura aquela que vive de sexo. Travis conhece a prostituta
Iris, uma menina de doze anos, e quer salvá-la. Quando levada a um quarto, Iris pensa tratarse de mais um cliente e se insinua, se joga para cima dele, esperando o ato sexual. Porém, o
taxista está decidido: vê Iris como uma vítima, como uma filha, e ele irá resgatá-la porque é
justo e honrado fazê-lo. Para atingir êxito, Travis matará os corruptores, os imorais, a escória
que a mantém na prostituição. Planeja suicidar-se após os assassinatos e deixa
preventivamente uma soma em dinheiro e uma carta de despedida para Iris. Entretanto, nem
tudo ocorre como ele previra e as balas terminam antes do suicídio. Como as vítimas de suas
armas foram apenas bandidos, Travis, ao invés de ir para a prisão, torna-se herói. Os jornais
noticiam: “Taxista enfrenta gângsteres”. Ele se recupera dos ferimentos e Iris volta para a casa
3
4
TAXI Driver.
Idem.
de seus pais e para a escola. Final feliz? Nem tanto. Travis volta ao trabalho noturno, volta a
sua solidão. As luzes de semáforos e luminárias se distorcem. O ódio está ganhando forma. É
questão de tempo: ele explodirá e atacará novamente.
Enquanto isso, o homem do subsolo não apresenta amor por ninguém. Na verdade, o
amor que sente está voltado para si, mais especificamente, para sua própria consciência. Não
obstante, o jovem homem do subsolo também teve um relacionamento marcante com uma
prostituta chamada Liza. A diferença é que ele se aproximou dela como objeto sexual, do qual
tirou proveito – paradoxalmente, o jovem “subsolista” foi, ao menos nesse interim, um
homem de ação. Satisfeita sua lascívia, ele deu vazão a sua maldade ao se esforçar para
convencê-la a abandonar a prostituição. Previu um futuro terrível para ela, fê-la chorar,
trouxe-a para si e finalmente revelou que estava apenas se divertindo com a situação:
Por que você veio? Responda! Responda! […] Veio porque eu disse então a você
palavras piedosas. […] Pois saiba, saiba de uma vez, que eu então estava rindo de
você. E agora também rio. Por que está tremendo? Sim, eu ria! Eu tinha sido
ofendido, ao jantar, pelos que estiveram naquela casa antes de mim. […] Tinha que
desabafar sobre alguém o meu despeito, […] apareceu você, e eu descarreguei sobre
você todo o meu rancor, zombei de você. Humilharam-me, e eu também queria
humilhar [...]. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 137)
5 Conclusão
Em suma, o grande ponto de tangência entre as duas obras é a solidão dos
protagonistas que nos possibilita examinar seus rebuliços internos. Daí em diante, cada um
age a sua maneira. O homem do subsolo foi mais parecido com Travis enquanto era jovem,
determinando-se a agir, como no caso de Liza, a prostituta. Porém, aos quarenta anos de idade
ele já não mais o faz, limitando-se a conjecturar a respeito de tudo e de todos. O personagem
de Dostoiévski se expõe sem espécie alguma de medo, tocando fundo em tudo o que lhe diz
respeito. Já o protagonista de Taxi Driver cala a respeito de tudo, limitando-se a extravasar
seu ódio em olhares, em agressões verbais e, finalmente, em agressões físicas. O racismo de
Travis, por exemplo, está em cada olhar que dá aos negros. Ele não fala, mas seus olhos
transbordam ódio, aversão. O taxista sofre reviravoltas em seu cotidiano e chega inclusive a
se tornar herói, mesmo que falso. O homem do subsolo revira-se a si mesmo e não consegue
chegar a nada: nem herói, nem canalha, nem inseto.
Referências
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000.
TAXI DRIVER. Direção: Martin Scorcese. Produção: Michael Phillips e Julia Phillips.
Roteiro: Paul Schrader. Intérpretes: Robert de Niro; Jodie Foster e outros. [s.l.] Columbia
Pictures, 1976. 1 filme (114min), color.
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