Para não dizer que só falei de J. A. GUILHON ALBUQUERQUE O malufismo desperta com freqüência reações emocionais que oscilam entre o embaraço, provocado pela sensação de ridículo, e o ódio diante da desfaçatez, sem mencionar o fascínio que sua esperteza não deixa de suscitar em mais de um. Entretanto, não vejo razão para rir, pois o "fenômeno" Maluf é sério. Mas também não há razão para pânico, pois sua suposta onipotência ocupa apenas o lugar de nossa ignorância: enquanto contemplamos, admirados e irritados, suas peripécias, acabamos tomando pouco, muito pouco do tempo necessário para a análise e a reflexão. As interpretações correntes do carreirismo do sr. Paulo Maluf refletem esse estado de coisas: apegando-se a modelos familiares, fornecem um meio cômodo de negar a novidade do fenômeno e a necessidade de inventar formas igualmente novas de combatê-lo. A reação mais comum é a que poderíamos chamar de social-udenismo, e consiste em indignar-se com o desprezo malufiano pelos princípios, ao invés de opor-se eficazmente às suas práticas. O risco é o de dar demasiado crédito às virtudes intrínsecas dos princípios abstratos, tais como o Bem Comum e a Justiça Social, levando à intransigência, irmã gêmea do golpismo. O social-udenismo e o udenismo tout court se equivalem na prática. Da psicopatologia à sociologia política As loas à genialidade política de Paulo Maluf são igualmente equivocadas. Sua fulgurante carreira tem-se beneficiado de um conjunto de circunstâncias que, proNOVEMBRO DE 1982 jetadas sobre sua personalidade, conferem-lhe a aura do gênio. Sua audácia se estriba na esperteza dos ricos que, como sabemos, tem a legalidade a seu favor, enquanto a malandragem dos pobres dá cadeia. A absoluta ausência de escrúpulos que muitos lhe atribuem deve seu sucesso em grande parte ao efeito de surpresa, pois Maluf terá sido o primeiro homem público a transpor para a esfera política condutas próprias de um certo tipo de negocismo. Deve-se reconhecerlhe o mérito de inverter Maquiavel, pois não hesita em proclamar no atacado, com relação ao bem público, atitudes que normalmente só seriam toleradas no discreto varejo do interesse privado. Mas não foi Maluf quem inventou a administração pública como forma direta de exercício do poder que, ao invés de regular e registrar os conflitos entre as classes, como o Parlamento, gera as condições de reprodução do Capital. Ele apenas percebeu, em sua visão simplificada das coisas, que podia dirigi-la como uma holding. Sem dúvida, existem pessoas destituídas de quaisquer escrúpulos na consecução de seus objetivos, a quem se atribui a ausência de consciência moral e de sentimentos de culpa pelos sofrimentos ou prejuízos que causam aos demais, e que a nosografia psiquiátrica classifica como psicopatas ou como personalidades delinqüentes. A condição para que sejam bem-sucedidos, entretanto, é que contem com a colaboração — ainda que involuntária — dos demais, seja por inadvertência, seja atribuindo-lhes poderes diabólicos, embora a experiência muitas vezes permita prever suas atitudes. 27 PARA NÃO DIZER QUE SÓ FALEI DE ROSAS É relativamente fácil uma criança com essas características aterrorizar seus companheiros em grupos fechados de vizinhança, de convivência estreita e forçada. É mais difícil manter esse poder num grupo mais extenso em que, para começar, existam alternativas de convivência. Mais difícil ainda, embora não de todo impossível, seria dirigir um exército ou um país com esses "métodos", que no entanto teriam plenas condições de prevalecer em bandos de gângsteres ou grupos terroristas. O que quero afirmar é que sem dúvida é legítimo explicar certas condutas por um tipo de personalidade, mas são condições sociais que conferem a certas personalidades — e retiram a outras — condições ótimas para obter sucesso. O fascínio que aumenta desmesuradamente o poder do inimigo é uma dessas condições. Outra é a pusilanimidade dos que a ele se associam. Um velho deputado em fim de carreira, guindado à administração pelo governador, teria declarado a um grupo com o qual negociava em seu nome: "Não peçam que leve isso outra vez: ele grita! Ele grita comigo! Eu já estou velho demais para passar por isso. Não me peçam para falar mais nisso". O recente episódio do reajuste do funcionalismo público de São Paulo é um bom exemplo de como as condições políticas e as condutas dos próprios prejudicados são determinantes do grau de eficácia de uma conduta audaciosa. Por um lado, a situação é tal que o governo estadual está sujeito apenas a pressões "morais", já que o essencial da administração fica sempre preservado em caso de greve de funcionários — inclusive porque foi reorganizado sob a forma de empresas. Além disso a Assembléia está constitucionalmente impedida de atuar contra as medidas do governo estadual, porque não pode ter iniciativas nem propor emendas em matéria que implique aumento de despesa. Com isso a eficácia de uma eventual rejeição de suas mensagens só tem o efeito prático de retardar ou mesmo suprimir qualquer solução, mas não o de forçar — senão moralmente, eis o cerne da questão — a reapresentação da matéria. Em 1979, por exemplo, em plena greve do funcionalismo público, e diante da rejeição parcial de sua proposta de reajuste, Maluf não se sentiu minimamente constrangido a corrigir sua mensagem, reagindo como se parafraseasse a velha 28 piada: "Dane-se o avião, eu sou apenas o piloto". Com tudo isso, a mobilização do funcionalismo em torno do reajuste salarial deste ano baseou-se na expectativa de que, tratando-se de um ano eleitoral, o governo procuraria agradar o funcionalismo, embora nesses três anos o sr. Paulo Maluf tivesse mostrado que isso não se incluía em sua estratégia. Esquecendo-se igualmente de que Maluf não se sente nem um pouco constrangido moralmente a conter a deterioração dos serviços públicos ou a minimizar as conseqüências de sua paralisação pura e simples, apelouse novamente para a greve, sem nenhuma tentativa de buscar formas alternativas de pressão. Com a soma de recursos legais a seu favor, contando com a pusilanimidade de sua bancada na Assembléia e com as facilidades que lhe são oferecidas pelos próprios adversários, que confiam no constrangimento moral do governador, não é preciso nenhuma genialidade política. É preciso maior soma de audácia para proclamar-se após tudo isso, sem rir, o maior benfeitor do funcionalismo e escarnecer dos professores, do que, na verdade, para disputar ao governo federal a palma do tratamento mais inflexível para com os servidores civis. Não se deve, portanto, apelar para teorias da genialidade ou da predestinação, nem recorrer à caracterologia ou emprestar noções à psicopatologia, enquanto não se esgotar o recurso à sociologia política. a moeda de troca de um novo tipo de clientelismo Prodigalidade e neoclientelismo Outra confusão corrente é feita entre as práticas do grupo ligado a Paulo Maluf e a corrupção política ordinária. Tais práticas não são sinônimo de corrupção política e administrativa em grande escala. Primeiro, porque não é questão de escala: a medalhação geral surpreende pela desproporção dos gastos, assim como os banquetes e o mar de rosas, mas são uma gota d'água diante de uma só jogada como a maxidesvalorização ou uma só comissão de contrato parcial do acordo nuclear. Em segundo lugar, porque esse tipo de corrupção, residual em qualquer administração pública ou privada, é sempre um abuso de prerrogativa, desvio ou excesso, em benefício do grupo no poder, enquanto no mar de rosas é todo um sistema político que se banha. As rosas NOVOS ESTUDOS Nº 4 — e os cheques do Banespa — não compram apenas o silêncio de uns poucos coniventes, nem pagam somente um favor; são a moeda de troca de um novo tipo de clientelismo. Também não deve confundir-se com as mordomias. Estas aumentaram provavelmente com as malufadas, mas também mudaram de sentido. Além dessa remuneração indireta e às vezes clandestina, herdada das práticas de escamoteamento da renda pessoal no setor privado, surgiu uma outra que, em vez de pagar por um serviço, pretende, na verdade, comprar lealdades. O que caracteriza o modo de agir do sr. Paulo Maluf não é portanto a dimensão da corrupção nem a extensão das mordomias, mas a prodigalidade. A prodigalidade não mede os recursos pelos seus custos, mas pelo que eles podem comprar: não somente lealdade, mas posições. Cobiçado, um objeto se torna automaticamente necessário e o pródigo não recua diante de nada para adquiri-lo, seja esse objeto a convenção da Arena, a indicação do prefeito ou a formação da "bancada" malufista no colégio eleitoral para a Presidência da República. A condição para isso é a absoluta instrumentalização do bem público — ou da fortuna familiar — bem representada, aliás, na cândida admissão de que os cargos públicos foram feitos para recompensar os amigos e de que o pior pecado é a ingratidão. Há absoluta sinceridade nessa declaração, e não duvido que Maluf considere uma injustiça, se não uma mesquinharia de ressentidos, a "incompreensão" dos que condenam sua "hospitalidade" mediterrânea, cultivada com prazer tão visível. A prodigalidade e a instrumentalização do bem público são duas faces de uma mesma ausência de projeto político no sentido estrito, que o ex-governador compartilha com o setor do empresariado ao qual está mais diretamente ligado, mas que impregna condutas atávicas de toda a nossa burguesia. Parte desse conjunto de atitudes se encontra nos operários de origem agrícola do estudo clássico de Alain Touraine, especialmente naqueles dotados de um projeto individual de mobilidade. É o mesmo núcleo de condutas que identifiquei em estudantes latino-americanos na Europa, e que chamei de projeto instrumental ou de consumo. A carreira política do sr. Paulo Maluf é uma forma de "fazer a América", do NOVEMBRO DE 1982 mesmo modo que os ex-agricultores de Touraine "subiam para Paris" ou meus estudantes "faziam a Europa". Fazendo a Europa, muitos fizeram teses, assim como os migrantes franceses se tornaram operários na grande indústria ou acabaram se estabelecendo por conta própria. Fazendo a América à sua maneira — isto é, à maneira de quem já a encontra "feita" — , Maluf cruzou com os anéis burocráticos em sua passagem pela Caixa Econômica, da maneira aparentemente mais incidental possível. E aí talvez se encontre sua contribuição para a ciência da política: viu que se chamavam Legião porque eram muitos. Viriam a ser toda uma classe, se ele conseguisse mostrar que o caminho das pedras se encontra firme sob o mar de rosas, e chega lá. Se deixarmos. Sim, o recente episódio das esposas de executivos, vociferando um inesperado ódio de classe, em debate com o prof. Dalmo Dallari, mostra a outra face do conjunto de inclinações políticas mobilizadas por Maluf, devidamente exaltado pelas senhoras em questão. Mostra que a vocação política do empresariado, aquela que se traduz num discurso liberal e na admissão, se não na proposta, de um novo pacto social, mal chega à mesa de jantar, que dirá à cozinha. Sugere que a predisposição do empresariado para esquecer interesses políticos no incerto longo prazo, em nome de interesses materiais à vista, é por assim dizer congênita. Tanto melhor se não houver mediação entre os negócios de Estado e os negócios tout court. Alianças, anéis, consórcios Não basta, entretanto, descobrir que são legião, que há um malufismo latente na alma de uma burguesia negocista, insatisfeita com as migalhas do festim, cansada de brincar de toma lá esse anelzinho, não diga nada a ninguém — dos poucos anéis caídos dos dedos dos burocratas das estatais e da grande empresa. Não que haja consciência e deliberação em tudo isso. Maluf, por exemplo, imagina que em grande parte está conquistando a lealdade dos humildes. Uma vez, explicando a estratégia de seus trens da alegria, suas caravanas pelo interior, dizia que a gente humilde não esquece o favor recebido e não descansa enquanto não retribui. Afirmava ter-se surpreendido com o fato de um grupo de moradores dar provas, ainda hoje, de gratidão os clientes são os grandes eleitores 29 PARA NÃO DIZER QUE SÓ FALEI DE ROSAS por ter-se beneficiado com um calçamento no tempo em que ele era prefeito de São Paulo. A crer-se em sua própria visão, portanto, a concepção malufiana da política seria o mais simples e clássico dos clientelismos. O sr. Paulo Maluf não percebe, contudo, que não pode ser prefeito de todo o Estado. (O que teria levado Jânio à perdição, segundo Eunice Durham, pois ele não percebeu que tinha sido eleito presidente, e não prefeito do Brasil.) Não pode calçar o Estado todo em troca da fidelidade de cada grupo de moradores. Precisaria de uma rede de relés para seus favores, precisaria sobretudo seguir a linha da menor resistência representada pelas autoridades e notabilidades locais. Precisaria reinventar algum outro tipo de partido. O clientelismo é um sistema de lealdades que distribui prestígio e autoridade em troca de apoio político. A distribuição de recursos, seja sob a forma de empregos ou de obras públicas, é decorrência do sistema de reconhecimento mútuo das autoridades locais e regionais, e não sua razão de ser, nem muito menos equivalente seu. Não se confunde com o estilo Maluf, que no entanto pode eventualmente utilizá-lo. Também não se trata de reedição do populismo, apesar do popularesco cultivado pelos submalufs e bajuladores precoces ou provectos. No populismo não há equivalência direta entre os recursos distribuídos sob a forma de benefícios e o apoio político recebido em troca. Tais benefícios estão sempre embutidos em alguma concepção de direitos, tendo como beneficiários uma coletividade ou categoria social. Decerto é o líder populista quem dá (e não o Estado ou o pacto político), mas o que ele dá é um direito cuja permanência garante a perenidade do vínculo populista. Que se pense, ao contrário, em um só benefício legal do governo Maluf a qualquer categoria de assalariados, qualquer direito reconhecido ou ampliado. Basta lembrar sua política salarial para o funcionalismo, para ver que esse tipo de barganha não lhe convém, pois, uma vez concedido, o direito já não pode ser barganhado novamente ou retirado como um emprego ou uma verba, ou uma empreitada. Por outro lado, a prática de negar recursos às municipalidades de oposição confirma que a prodigalidade malufiana é, sim, um sistema de trocas, mas nada tem a ver com o clientelismo clássico ou 30 com o populismo: o mar de rosas tem por beneficiários diretos uma camada de prepostos e de condôminos cujo modelo é o colégio de delegados da Arena, cuja conquista garantiu a eleição de Maluf para o governo de São Paulo. O cliente do neoclientelismo na versão de Maluf não é o eleitor, a coletividade ou a categoria social, mas um número mais reduzido de grandes eleitores, padrão que se estabeleceu provavelmente na Associação Comercial, para repetir-se com êxito na Arena e na Assembléia paulista. Sem configurar uma nova aliança de classes, sem o grau de coesão e permanência de interesses dos anéis burocráticos de que tratou Fernando Henrique Cardoso, o malufismo consiste num sistema de barganhas diretas entre condôminos do poder público, com a única finalidade de distribuir entre si os recursos do Estado em função de interesses privados imediatos. Daí eu ter caracterizado o vínculo malufista, não como aliança ou anel, mas como um consórcio. 1 Cada um dá o que tem e todos levam tudo o que podem, valendo a troca ou alienação de quotas, seja por lances ou por sorteio. Consórcio ou joint-venture, que no caso poderia ser bem traduzido por "aventura a curto prazo". Outra maneira de definir o neoclientelismo do sr. Paulo Maluf seria ainda utilizar o modelo do "contrato de risco", sendo naturalmente deles o contrato, e o risco todo nosso. Essas metáforas têm em comum o efeito de sublinhar o caráter limitado e imediatista, característico do que se poderia chamar de "malufismo". Não há razão, portanto, para falar em "malufismo" como movimento político ou como fenômeno sociológico mais ou menos permanente e com base social específica, tal como, no passado, o janismo ou o ademarismo. Se existe um "malufismo", ele nada mais é do que um conjunto de táticas, cuja natureza se presta a mobilizações à direita, e cujo funcionamento depende, para prosperar, de situações autoritárias. Mas, como tal, a tática malufista — o consórcio — não possui mecanismos de auto-sustentação e, nas circunstâncias atuais, devido ao excessivo imediatismo de seu protagonista, praticamente limitou seus objetivos à carreira política do sr. Paulo Maluf. E, para esse tipo de carreirismo, extra Statum salus non est, ou seja, fora do governo morre-se à míngua. No malufismo assim entendido, a 1 Em "O malufismo não é um mar de rosas", Folha de S. Paulo, 3/4/82. NOVOS ESTUDOS Nº 4 distribuição de recursos é o próprio objeto e razão de ser do consórcio, sendo o apoio político apenas sua condição de manter-se e prosperar. Daí seu caráter imediatista, sem considerações de legitimidade, o que põe em questão sua capacidade de criar lealdades a longo prazo. Uma indicação nesse sentido poderia ser a composição da "bancada malufista" na Câmara, herdada em sua grande maioria do frotismo. A facilidade com que os frotistas debandaram após a desgraça de seu chefe, aderindo ao "malufismo", sugere que se trata de uma horda em disponibilidade, que, além do reacionarismo mais troglodita, compartilha entre si apenas a sede de ir ao pote. O consórcio não exige uma proliferação de grandes obras, mas acomoda-se bem com uma distribuição — esta sim, sem limites — de pequenas e médias empreitadas. Aplicar no atacado a mentalidade do varejo é aliás o que distingue Maluf de outros governos que teimaram em ter, cada um, a sua Urubupungá. E que também distingue o Maluf governador de suas passadas incursões pelo erário público, marcadas pelo Minhocão e pela Imigrantes, em que a superação do recorde de custo por quilômetro construído parece uma obsessão. A Nova Capital — aliás perfeitamente compatível com um consórcio de grandes e médias empreitadas — foi um erro de perspectiva, logo corrigido com sua substituição por duas ou três obras, muito maiores no custo do que na dimensão, e complementadas por uma miríade de pequenas "obras", umas pias, outras nem tanto, que podem traduzir-se numa ambulância como num cheque do Banespa, na medalha como na conta do room-service ou nos dois mil tombamentos do Patrimônio. Uma das características da prodigalidade malufiana é aliás essa indiferença pelo custo relativo das coisas e sua obsessão pelo objeto cobiçado, no caso a sustentação e a ampliação da esfera de atuação do consórcio. Fique bem claro que a importância da grande obra não se reduz à ambição de "ficar na história". Como no caso da Paulipetro, por exemplo, seu efeito propagandístico independe dos resultados. Além disso, mantém em sossego as ambições empreiteiras. Consta, aliás, que ainda candidato Maluf teria transmitido a um grupo de empresários o que seu governo esperava deles. Como empresário — teria afirmado ele — eu não discutiria as razões do governo para mandar NOVEMBRO DE 1982 forrar de compensado todas as ruas da cidade. O empresário deveria ater-se à sua função precípua de operar com a maior lucratividade sua própria empresa, reduzindo-se o Estado, nessa ótica, à função de apenas distribuir empreitadas, cuja racionalidade estaria na própria distribuição. Que alternativa? A estratégia malufiana tem sido, além disso, apresentada como alternativa viável à perpetuação do sistema militar. O argumento de maior peso nesse sentido nunca foi formulado explicitamente, porque não é sério. Trata-se de uma variante da tese de que a melhor maneira de combater o comunismo seria implantá-lo no Brasil: em pouco tempo ficaria desmoralizado, como tudo neste país. Pois esperase que depois de Maluf ninguém mais leve a sério o regime militar, o qual, assim, se recolheria à sombra do business as always. Pelo que já se viu — do quanto Maluf deve o sucesso de sua audácia às condições institucionais — e pelo que se verá das condições políticas que lhe permitem medrar, pode-se concluir que o consórcio malufista está profundamente integrado no autoritarismo relativo e na bionicidade universal que o tem caracterizado. Mas há outras razões para temer que o malufismo ostente a violência como a outra face da prodigalidade. Dois episódios significativos são a Freguesia do Ó e as táticas empregadas para reprimir a greve dos funcionários. Isto sem falar em sua omissão conivente nas greves do ABC, e mesmo concedendo-lhe o benefício da dúvida no que diz respeito aos sinistros seqüestros de advogados e líderes sindicais, operados, ao que tudo indica, por sua polícia. Em 1979, uma das características do processo de "negociação" esboçado foi que todas as iniciativas esbarraram sempre na intransigência do governador. Mas, como observávamos na ocasião, num trabalho de parceria com Eunice Durham,2 não se tratava "apenas de intransigência, e sim de um padrão perfeitamente identificável de manobra política que se repetiu ao longo de todo o processo. No episódio do arquivamento da mensagem de reajuste pela Assembléia Legislativa, o governador, simultaneamente, convocava os representantes do funcionalismo para negociar, declarava à opinião pública que não concedia consórcio malufista e autoritarismo 2 DURHAM, E.R. e ALBUQUERQUE, J. A. G. — "A greve do funcionalismo público em São Paulo: resíduo dos velhos tempos, sinal dos novos?", ADUSP, 1979 (mimeo). 31 PARA NÃO DIZER QUE SÓ FALEI DE ROSAS aumento nenhum, e acionava a polícia contra os negociadores por ele convidados. ( . . . ) As concessões mínimas contidas em cada uma dessas tentativas de mediação foram sistematicamente recusadas pelo governador, mesmo depois de autorizadas em privado por seus secretários". O reajuste do funcionalismo, como tudo o que se inscreve num direito, é abominável para o consórcio porque, sendo embora um benefício, é concedido a todos, inclusive aos ingratos. Economizar em salários do funcionalismo e em despesas de custeio deixa margem, além disso, para outros empreendimentos diretamente consorciáveis. Alguém já imaginou, por outro lado, a extensão da violência que acompanharia os trens da alegria, se o escândalo público e a patética resistência da Assembléia Legislativa não tivessem detido o bando de sicários que atuou na Freguesia do Ó, e que o governador chamou publicamente de "amigos"? Alguém já imaginou o que seria o Brasil transformado numa imensa Freguesia do Ó, tanto do ponto de vista administrativo quanto no que diz respeito aos métodos malufianos de administrar a cenoura e o bastão — cenoura para os condôminos e bastonadas para os demais? Quantas pessoas teriam que ser presas ou intimidadas em cada inauguração sujeita a contestações, como a da Rodoviária do Tietê? Com um horror à discordância e à diferença só comparável ao horror do regime à consulta popular, Maluf admite outras opções além da adesão a qualquer custo — e bota preço nesse custo — ou da redução à indiferença e ao silêncio. Até aqui, lá onde o consórcio não consegue cooptar, por falta de fundos ou de confiança no administrador, Maluf tem-se inclinado para o policialesco, inclusive os gêneros mais sinistros, indo da Rota às chacinas de evadidos à luz do dia e à vista da TV. Por que razão Maluf se converteria à tolerância e ao convívio pacífico com a divergência, uma vez reforçado — mediante sua resistível ascensão à Presidência — seu incontido sentimento de onipotência? Tudo indica que isso não ocorreria, e que a elevação da Freguesia do Ó a dimensões continentais, longe de manter afastados os setores mais duros do sistema, poderia representar sua inevitável volta por cima. Isso não deixaria nada a dever às origens do próprio malufismo, que depen32 deu basicamente do autoritarismo relativo. Ele se baseia na eleição indireta do Executivo e em sua proeminência sobre o Legislativo a todos os níveis. Impõe a obstrução à iniciativa parlamentar e à fiscalização legislativa. Quanto tempo poderia o malufismo respirar fora de seu meio ambiente, que afinal é o Executivo biônico? A façanha de guindar-se da Secretaria de Transportes ao governo do Estado, com quatro anos ao relento — mas também com o interlúdio da Associação Comercial — , deu-se afinal no sistema da bionicidade. Poderia ocorrer o mesmo entre o governo estadual e a Presidência, pondo-se ao pique na Câmara dos Deputados? o Brasil transformado numa imensa Freguesia do Ó Malufismo sem Maluf? O drama de Maluf é que talvez tenha inventado o malufismo em vão. Isto porque, se a técnica é bem-sucedida e pode ser entendida com bons resultados, é pouco provável que o malufismo de Maluf possa beneficiá-lo em sua trajetória para a Presidência, dada a circunstância de manter-se fora do Executivo por quatro longos anos. Um malufismo sem Maluf poderia preservar outras trajetórias fulgurantes a outros temperamentos igualmente audaciosos, inclusive dentre os que hoje se encontram na oposição, por que não? A estratégia malufiana só pode ser bem-sucedida como alternativa para o sistema, no sentido de que se torne a única saída para perpetuar-se no poder, hipótese em que o próprio governo federal teria que malufar em benefício de sua candidatura. No momento esta hipótese parece contar com grande ibope entre os observadores, pois acredita-se que o sistema tentará perpetuar-se ainda pela via do dólman ou do jaquetão de meiaconfecção. A conclusão, se não é totalmente melancólica, não é menos de causar apreensão. Pouco importam as pedras no caminho de Maluf, as ambições castrenses que ele teria de enfrentar, e que reduzem suas chances: o malufismo sem Maluf é uma lição que fica. Talvez Maluf não passe. E o malufismo, passará? O Autor ensina Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da USP. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 1, 4, p. 27-32, nov. 82 NOVOS ESTUDOS Nº 4