Para não
dizer que
só falei de
J. A. GUILHON ALBUQUERQUE
O malufismo desperta com freqüência
reações emocionais que oscilam entre o
embaraço, provocado pela sensação de
ridículo, e o ódio diante da desfaçatez,
sem mencionar o fascínio que sua esperteza não deixa de suscitar em mais de
um. Entretanto, não vejo razão para rir,
pois o "fenômeno" Maluf é sério. Mas
também não há razão para pânico, pois
sua suposta onipotência ocupa apenas o
lugar de nossa ignorância: enquanto contemplamos, admirados e irritados, suas
peripécias, acabamos tomando pouco,
muito pouco do tempo necessário para
a análise e a reflexão.
As interpretações correntes do carreirismo do sr. Paulo Maluf refletem esse
estado de coisas: apegando-se a modelos
familiares, fornecem um meio cômodo de
negar a novidade do fenômeno e a necessidade de inventar formas igualmente
novas de combatê-lo. A reação mais comum é a que poderíamos chamar de social-udenismo, e consiste em indignar-se
com o desprezo malufiano pelos princípios, ao invés de opor-se eficazmente às
suas práticas. O risco é o de dar demasiado crédito às virtudes intrínsecas dos
princípios abstratos, tais como o Bem
Comum e a Justiça Social, levando à intransigência, irmã gêmea do golpismo. O
social-udenismo e o udenismo tout court
se equivalem na prática.
Da psicopatologia à sociologia
política
As loas à genialidade política de Paulo
Maluf são igualmente equivocadas. Sua
fulgurante carreira tem-se beneficiado de
um conjunto de circunstâncias que, proNOVEMBRO DE 1982
jetadas sobre sua personalidade, conferem-lhe a aura do gênio. Sua audácia se
estriba na esperteza dos ricos que, como
sabemos, tem a legalidade a seu favor,
enquanto a malandragem dos pobres dá
cadeia. A absoluta ausência de escrúpulos que muitos lhe atribuem deve seu
sucesso em grande parte ao efeito de
surpresa, pois Maluf terá sido o primeiro
homem público a transpor para a esfera
política condutas próprias de um certo
tipo de negocismo. Deve-se reconhecerlhe o mérito de inverter Maquiavel, pois
não hesita em proclamar no atacado, com
relação ao bem público, atitudes que normalmente só seriam toleradas no discreto
varejo do interesse privado.
Mas não foi Maluf quem inventou a
administração pública como forma direta
de exercício do poder que, ao invés de
regular e registrar os conflitos entre as
classes, como o Parlamento, gera as condições de reprodução do Capital. Ele
apenas percebeu, em sua visão simplificada das coisas, que podia dirigi-la como
uma holding.
Sem dúvida, existem pessoas destituídas de quaisquer escrúpulos na consecução de seus objetivos, a quem se
atribui a ausência de consciência moral e
de sentimentos de culpa pelos sofrimentos ou prejuízos que causam aos demais,
e que a nosografia psiquiátrica classifica
como psicopatas ou como personalidades
delinqüentes. A condição para que sejam
bem-sucedidos, entretanto, é que contem
com a colaboração — ainda que involuntária — dos demais, seja por inadvertência, seja atribuindo-lhes poderes diabólicos, embora a experiência muitas vezes
permita prever suas atitudes.
27
PARA NÃO DIZER QUE SÓ FALEI DE ROSAS
É relativamente fácil uma criança com
essas características aterrorizar seus companheiros em grupos fechados de vizinhança, de convivência estreita e forçada. É mais difícil manter esse poder num
grupo mais extenso em que, para começar, existam alternativas de convivência.
Mais difícil ainda, embora não de todo
impossível, seria dirigir um exército ou
um país com esses "métodos", que no
entanto teriam plenas condições de prevalecer em bandos de gângsteres ou grupos terroristas.
O que quero afirmar é que sem dúvida é legítimo explicar certas condutas
por um tipo de personalidade, mas são
condições sociais que conferem a certas
personalidades — e retiram a outras —
condições ótimas para obter sucesso. O
fascínio que aumenta desmesuradamente
o poder do inimigo é uma dessas condições. Outra é a pusilanimidade dos que
a ele se associam. Um velho deputado
em fim de carreira, guindado à administração pelo governador, teria declarado
a um grupo com o qual negociava em
seu nome: "Não peçam que leve isso outra vez: ele grita! Ele grita comigo! Eu
já estou velho demais para passar por
isso. Não me peçam para falar mais
nisso".
O recente episódio do reajuste do funcionalismo público de São Paulo é um
bom exemplo de como as condições políticas e as condutas dos próprios prejudicados são determinantes do grau de
eficácia de uma conduta audaciosa. Por
um lado, a situação é tal que o governo
estadual está sujeito apenas a pressões
"morais", já que o essencial da administração fica sempre preservado em caso de
greve de funcionários — inclusive porque foi reorganizado sob a forma de
empresas. Além disso a Assembléia está
constitucionalmente impedida de atuar
contra as medidas do governo estadual,
porque não pode ter iniciativas nem propor emendas em matéria que implique
aumento de despesa. Com isso a eficácia
de uma eventual rejeição de suas mensagens só tem o efeito prático de retardar
ou mesmo suprimir qualquer solução,
mas não o de forçar — senão moralmente, eis o cerne da questão — a
reapresentação da matéria.
Em 1979, por exemplo, em plena greve do funcionalismo público, e diante da
rejeição parcial de sua proposta de reajuste, Maluf não se sentiu minimamente
constrangido a corrigir sua mensagem,
reagindo como se parafraseasse a velha
28
piada: "Dane-se o avião, eu sou apenas
o piloto".
Com tudo isso, a mobilização do funcionalismo em torno do reajuste salarial
deste ano baseou-se na expectativa de
que, tratando-se de um ano eleitoral, o
governo procuraria agradar o funcionalismo, embora nesses três anos o sr. Paulo
Maluf tivesse mostrado que isso não se
incluía em sua estratégia. Esquecendo-se
igualmente de que Maluf não se sente
nem um pouco constrangido moralmente
a conter a deterioração dos serviços públicos ou a minimizar as conseqüências
de sua paralisação pura e simples, apelouse novamente para a greve, sem nenhuma
tentativa de buscar formas alternativas de
pressão.
Com a soma de recursos legais a seu
favor, contando com a pusilanimidade de
sua bancada na Assembléia e com as
facilidades que lhe são oferecidas pelos próprios adversários, que confiam no
constrangimento moral do governador,
não é preciso nenhuma genialidade política. É preciso maior soma de audácia
para proclamar-se após tudo isso, sem
rir, o maior benfeitor do funcionalismo
e escarnecer dos professores, do que, na
verdade, para disputar ao governo federal a palma do tratamento mais inflexível
para com os servidores civis.
Não se deve, portanto, apelar para
teorias da genialidade ou da predestinação, nem recorrer à caracterologia ou emprestar noções à psicopatologia, enquanto não se esgotar o recurso à sociologia
política.
a moeda de
troca de um
novo tipo de
clientelismo
Prodigalidade e neoclientelismo
Outra confusão corrente é feita entre
as práticas do grupo ligado a Paulo Maluf
e a corrupção política ordinária. Tais práticas não são sinônimo de corrupção política e administrativa em grande escala.
Primeiro, porque não é questão de escala: a medalhação geral surpreende pela
desproporção dos gastos, assim como os
banquetes e o mar de rosas, mas são
uma gota d'água diante de uma só jogada
como a maxidesvalorização ou uma só
comissão de contrato parcial do acordo
nuclear.
Em segundo lugar, porque esse tipo
de corrupção, residual em qualquer administração pública ou privada, é sempre
um abuso de prerrogativa, desvio ou
excesso, em benefício do grupo no poder,
enquanto no mar de rosas é todo um
sistema político que se banha. As rosas
NOVOS ESTUDOS Nº 4
— e os cheques do Banespa — não
compram apenas o silêncio de uns poucos coniventes, nem pagam somente um
favor; são a moeda de troca de um novo
tipo de clientelismo.
Também não deve confundir-se com
as mordomias. Estas aumentaram provavelmente com as malufadas, mas também mudaram de sentido. Além dessa
remuneração indireta e às vezes clandestina, herdada das práticas de escamoteamento da renda pessoal no setor privado,
surgiu uma outra que, em vez de pagar
por um serviço, pretende, na verdade,
comprar lealdades.
O que caracteriza o modo de agir do
sr. Paulo Maluf não é portanto a dimensão da corrupção nem a extensão das
mordomias, mas a prodigalidade. A prodigalidade não mede os recursos pelos
seus custos, mas pelo que eles podem
comprar: não somente lealdade, mas posições. Cobiçado, um objeto se torna automaticamente necessário e o pródigo não
recua diante de nada para adquiri-lo, seja
esse objeto a convenção da Arena, a indicação do prefeito ou a formação da
"bancada" malufista no colégio eleitoral
para a Presidência da República.
A condição para isso é a absoluta instrumentalização do bem público — ou
da fortuna familiar — bem representada,
aliás, na cândida admissão de que os
cargos públicos foram feitos para recompensar os amigos e de que o pior pecado
é a ingratidão. Há absoluta sinceridade
nessa declaração, e não duvido que Maluf
considere uma injustiça, se não uma mesquinharia de ressentidos, a "incompreensão" dos que condenam sua "hospitalidade" mediterrânea, cultivada com prazer tão visível.
A prodigalidade e a instrumentalização do bem público são duas faces de
uma mesma ausência de projeto político
no sentido estrito, que o ex-governador
compartilha com o setor do empresariado ao qual está mais diretamente ligado,
mas que impregna condutas atávicas de
toda a nossa burguesia. Parte desse conjunto de atitudes se encontra nos operários de origem agrícola do estudo clássico de Alain Touraine, especialmente
naqueles dotados de um projeto individual de mobilidade. É o mesmo núcleo
de condutas que identifiquei em estudantes latino-americanos na Europa, e que
chamei de projeto instrumental ou de
consumo.
A carreira política do sr. Paulo Maluf
é uma forma de "fazer a América", do
NOVEMBRO DE 1982
mesmo modo que os ex-agricultores de
Touraine "subiam para Paris" ou meus
estudantes "faziam a Europa". Fazendo
a Europa, muitos fizeram teses, assim
como os migrantes franceses se tornaram
operários na grande indústria ou acabaram se estabelecendo por conta própria.
Fazendo a América à sua maneira —
isto é, à maneira de quem já a encontra
"feita" — , Maluf cruzou com os anéis
burocráticos em sua passagem pela Caixa
Econômica, da maneira aparentemente
mais incidental possível. E aí talvez se
encontre sua contribuição para a ciência
da política: viu que se chamavam Legião
porque eram muitos. Viriam a ser toda
uma classe, se ele conseguisse mostrar
que o caminho das pedras se encontra
firme sob o mar de rosas, e chega lá. Se
deixarmos.
Sim, o recente episódio das esposas de
executivos, vociferando um inesperado
ódio de classe, em debate com o prof.
Dalmo Dallari, mostra a outra face do
conjunto de inclinações políticas mobilizadas por Maluf, devidamente exaltado
pelas senhoras em questão. Mostra que
a vocação política do empresariado, aquela que se traduz num discurso liberal e
na admissão, se não na proposta, de um
novo pacto social, mal chega à mesa de
jantar, que dirá à cozinha. Sugere que
a predisposição do empresariado para
esquecer interesses políticos no incerto
longo prazo, em nome de interesses materiais à vista, é por assim dizer congênita. Tanto melhor se não houver mediação entre os negócios de Estado e os
negócios tout court.
Alianças, anéis, consórcios
Não basta, entretanto, descobrir que
são legião, que há um malufismo latente
na alma de uma burguesia negocista, insatisfeita com as migalhas do festim, cansada de brincar de toma lá esse anelzinho, não diga nada a ninguém — dos
poucos anéis caídos dos dedos dos burocratas das estatais e da grande empresa.
Não que haja consciência e deliberação
em tudo isso. Maluf, por exemplo, imagina que em grande parte está conquistando a lealdade dos humildes. Uma vez,
explicando a estratégia de seus trens da
alegria, suas caravanas pelo interior, dizia que a gente humilde não esquece o
favor recebido e não descansa enquanto
não retribui. Afirmava ter-se surpreendido com o fato de um grupo de moradores dar provas, ainda hoje, de gratidão
os clientes são
os grandes
eleitores
29
PARA NÃO DIZER QUE SÓ FALEI DE ROSAS
por ter-se beneficiado com um calçamento no tempo em que ele era prefeito de
São Paulo. A crer-se em sua própria visão, portanto, a concepção malufiana da
política seria o mais simples e clássico
dos clientelismos.
O sr. Paulo Maluf não percebe, contudo, que não pode ser prefeito de todo
o Estado. (O que teria levado Jânio à
perdição, segundo Eunice Durham, pois
ele não percebeu que tinha sido eleito
presidente, e não prefeito do Brasil.)
Não pode calçar o Estado todo em troca
da fidelidade de cada grupo de moradores. Precisaria de uma rede de relés para
seus favores, precisaria sobretudo seguir
a linha da menor resistência representada pelas autoridades e notabilidades locais. Precisaria reinventar algum outro
tipo de partido.
O clientelismo é um sistema de lealdades que distribui prestígio e autoridade em troca de apoio político. A distribuição de recursos, seja sob a forma de
empregos ou de obras públicas, é decorrência do sistema de reconhecimento mútuo das autoridades locais e regionais, e
não sua razão de ser, nem muito menos
equivalente seu. Não se confunde com o
estilo Maluf, que no entanto pode eventualmente utilizá-lo.
Também não se trata de reedição do
populismo, apesar do popularesco cultivado pelos submalufs e bajuladores precoces ou provectos. No populismo não
há equivalência direta entre os recursos
distribuídos sob a forma de benefícios e
o apoio político recebido em troca. Tais
benefícios estão sempre embutidos em
alguma concepção de direitos, tendo como beneficiários uma coletividade ou categoria social. Decerto é o líder populista quem dá (e não o Estado ou o pacto
político), mas o que ele dá é um direito
cuja permanência garante a perenidade do
vínculo populista. Que se pense, ao contrário, em um só benefício legal do governo Maluf a qualquer categoria de
assalariados, qualquer direito reconhecido ou ampliado. Basta lembrar sua política salarial para o funcionalismo, para
ver que esse tipo de barganha não lhe
convém, pois, uma vez concedido, o direito já não pode ser barganhado novamente ou retirado como um emprego ou
uma verba, ou uma empreitada.
Por outro lado, a prática de negar recursos às municipalidades de oposição
confirma que a prodigalidade malufiana
é, sim, um sistema de trocas, mas nada
tem a ver com o clientelismo clássico ou
30
com o populismo: o mar de rosas tem
por beneficiários diretos uma camada de
prepostos e de condôminos cujo modelo
é o colégio de delegados da Arena, cuja
conquista garantiu a eleição de Maluf
para o governo de São Paulo. O cliente
do neoclientelismo na versão de Maluf
não é o eleitor, a coletividade ou a categoria social, mas um número mais reduzido de grandes eleitores, padrão que se
estabeleceu provavelmente na Associação Comercial, para repetir-se com êxito
na Arena e na Assembléia paulista.
Sem configurar uma nova aliança de
classes, sem o grau de coesão e permanência de interesses dos anéis burocráticos de que tratou Fernando Henrique
Cardoso, o malufismo consiste num sistema de barganhas diretas entre condôminos do poder público, com a única finalidade de distribuir entre si os recursos do Estado em função de interesses
privados imediatos. Daí eu ter caracterizado o vínculo malufista, não como aliança ou anel, mas como um consórcio. 1
Cada um dá o que tem e todos levam
tudo o que podem, valendo a troca ou
alienação de quotas, seja por lances ou
por sorteio.
Consórcio ou joint-venture, que no
caso poderia ser bem traduzido por
"aventura a curto prazo". Outra maneira
de definir o neoclientelismo do sr. Paulo
Maluf seria ainda utilizar o modelo do
"contrato de risco", sendo naturalmente
deles o contrato, e o risco todo nosso.
Essas metáforas têm em comum o efeito
de sublinhar o caráter limitado e imediatista, característico do que se poderia
chamar de "malufismo".
Não há razão, portanto, para falar em
"malufismo" como movimento político
ou como fenômeno sociológico mais ou
menos permanente e com base social específica, tal como, no passado, o janismo
ou o ademarismo. Se existe um "malufismo", ele nada mais é do que um conjunto de táticas, cuja natureza se presta
a mobilizações à direita, e cujo funcionamento depende, para prosperar, de situações autoritárias. Mas, como tal, a
tática malufista — o consórcio — não
possui mecanismos de auto-sustentação
e, nas circunstâncias atuais, devido ao excessivo imediatismo de seu protagonista,
praticamente limitou seus objetivos à
carreira política do sr. Paulo Maluf. E,
para esse tipo de carreirismo, extra Statum salus non est, ou seja, fora do governo morre-se à míngua.
No malufismo assim entendido, a
1
Em "O malufismo não é
um mar de rosas", Folha de
S. Paulo, 3/4/82.
NOVOS ESTUDOS Nº 4
distribuição de recursos é o próprio objeto e razão de ser do consórcio, sendo o
apoio político apenas sua condição de
manter-se e prosperar. Daí seu caráter
imediatista, sem considerações de legitimidade, o que põe em questão sua capacidade de criar lealdades a longo prazo.
Uma indicação nesse sentido poderia ser
a composição da "bancada malufista" na
Câmara, herdada em sua grande maioria
do frotismo. A facilidade com que os
frotistas debandaram após a desgraça de
seu chefe, aderindo ao "malufismo", sugere que se trata de uma horda em disponibilidade, que, além do reacionarismo mais troglodita, compartilha entre si
apenas a sede de ir ao pote.
O consórcio não exige uma proliferação de grandes obras, mas acomoda-se
bem com uma distribuição — esta sim,
sem limites — de pequenas e médias
empreitadas. Aplicar no atacado a mentalidade do varejo é aliás o que distingue
Maluf de outros governos que teimaram
em ter, cada um, a sua Urubupungá. E
que também distingue o Maluf governador de suas passadas incursões pelo erário público, marcadas pelo Minhocão e
pela Imigrantes, em que a superação do
recorde de custo por quilômetro construído parece uma obsessão. A Nova
Capital — aliás perfeitamente compatível com um consórcio de grandes e médias empreitadas — foi um erro de perspectiva, logo corrigido com sua substituição por duas ou três obras, muito
maiores no custo do que na dimensão,
e complementadas por uma miríade de
pequenas "obras", umas pias, outras nem
tanto, que podem traduzir-se numa ambulância como num cheque do Banespa,
na medalha como na conta do room-service ou nos dois mil tombamentos do
Patrimônio. Uma das características da
prodigalidade malufiana é aliás essa indiferença pelo custo relativo das coisas e
sua obsessão pelo objeto cobiçado, no
caso a sustentação e a ampliação da esfera de atuação do consórcio.
Fique bem claro que a importância da
grande obra não se reduz à ambição de
"ficar na história". Como no caso da
Paulipetro, por exemplo, seu efeito propagandístico independe dos resultados.
Além disso, mantém em sossego as ambições empreiteiras. Consta, aliás, que
ainda candidato Maluf teria transmitido
a um grupo de empresários o que seu
governo esperava deles. Como empresário — teria afirmado ele — eu não discutiria as razões do governo para mandar
NOVEMBRO DE 1982
forrar de compensado todas as ruas da
cidade. O empresário deveria ater-se à
sua função precípua de operar com a
maior lucratividade sua própria empresa,
reduzindo-se o Estado, nessa ótica, à
função de apenas distribuir empreitadas,
cuja racionalidade estaria na própria distribuição.
Que alternativa?
A estratégia malufiana tem sido, além
disso, apresentada como alternativa viável à perpetuação do sistema militar. O
argumento de maior peso nesse sentido
nunca foi formulado explicitamente, porque não é sério. Trata-se de uma variante
da tese de que a melhor maneira de combater o comunismo seria implantá-lo no
Brasil: em pouco tempo ficaria desmoralizado, como tudo neste país. Pois esperase que depois de Maluf ninguém mais
leve a sério o regime militar, o qual,
assim, se recolheria à sombra do business
as always.
Pelo que já se viu — do quanto Maluf deve o sucesso de sua audácia às
condições institucionais — e pelo que
se verá das condições políticas que lhe
permitem medrar, pode-se concluir que
o consórcio malufista está profundamente
integrado no autoritarismo relativo e na
bionicidade universal que o tem caracterizado. Mas há outras razões para
temer que o malufismo ostente a violência como a outra face da prodigalidade.
Dois episódios significativos são a Freguesia do Ó e as táticas empregadas para
reprimir a greve dos funcionários. Isto
sem falar em sua omissão conivente
nas greves do ABC, e mesmo concedendo-lhe o benefício da dúvida no que diz
respeito aos sinistros seqüestros de advogados e líderes sindicais, operados, ao
que tudo indica, por sua polícia.
Em 1979, uma das características do
processo de "negociação" esboçado foi
que todas as iniciativas esbarraram sempre na intransigência do governador.
Mas, como observávamos na ocasião,
num trabalho de parceria com Eunice
Durham,2 não se tratava "apenas de intransigência, e sim de um padrão perfeitamente identificável de manobra política que se repetiu ao longo de todo o
processo. No episódio do arquivamento
da mensagem de reajuste pela Assembléia Legislativa, o governador, simultaneamente, convocava os representantes
do funcionalismo para negociar, declarava à opinião pública que não concedia
consórcio
malufista e
autoritarismo
2 DURHAM, E.R. e ALBUQUERQUE, J. A. G. — "A
greve do funcionalismo público em São Paulo: resíduo
dos velhos tempos, sinal dos
novos?", ADUSP, 1979 (mimeo).
31
PARA NÃO DIZER QUE SÓ FALEI DE ROSAS
aumento nenhum, e acionava a polícia
contra os negociadores por ele convidados. ( . . . ) As concessões mínimas contidas em cada uma dessas tentativas de
mediação foram sistematicamente recusadas pelo governador, mesmo depois de
autorizadas em privado por seus secretários".
O reajuste do funcionalismo, como
tudo o que se inscreve num direito, é
abominável para o consórcio porque,
sendo embora um benefício, é concedido
a todos, inclusive aos ingratos. Economizar em salários do funcionalismo e em
despesas de custeio deixa margem, além
disso, para outros empreendimentos diretamente consorciáveis.
Alguém já imaginou, por outro lado,
a extensão da violência que acompanharia os trens da alegria, se o escândalo
público e a patética resistência da Assembléia Legislativa não tivessem detido o
bando de sicários que atuou na Freguesia
do Ó, e que o governador chamou publicamente de "amigos"? Alguém já imaginou o que seria o Brasil transformado
numa imensa Freguesia do Ó, tanto do
ponto de vista administrativo quanto no
que diz respeito aos métodos malufianos
de administrar a cenoura e o bastão —
cenoura para os condôminos e bastonadas para os demais? Quantas pessoas teriam que ser presas ou intimidadas em
cada inauguração sujeita a contestações,
como a da Rodoviária do Tietê?
Com um horror à discordância e à
diferença só comparável ao horror do
regime à consulta popular, Maluf admite
outras opções além da adesão a qualquer
custo — e bota preço nesse custo — ou
da redução à indiferença e ao silêncio.
Até aqui, lá onde o consórcio não consegue cooptar, por falta de fundos ou
de confiança no administrador, Maluf
tem-se inclinado para o policialesco, inclusive os gêneros mais sinistros, indo
da Rota às chacinas de evadidos à luz do
dia e à vista da TV.
Por que razão Maluf se converteria
à tolerância e ao convívio pacífico com
a divergência, uma vez reforçado — mediante sua resistível ascensão à Presidência — seu incontido sentimento de onipotência? Tudo indica que isso não ocorreria, e que a elevação da Freguesia do Ó
a dimensões continentais, longe de manter afastados os setores mais duros do
sistema, poderia representar sua inevitável volta por cima.
Isso não deixaria nada a dever às origens do próprio malufismo, que depen32
deu basicamente do autoritarismo relativo. Ele se baseia na eleição indireta
do Executivo e em sua proeminência sobre o Legislativo a todos os níveis. Impõe a obstrução à iniciativa parlamentar
e à fiscalização legislativa. Quanto tempo
poderia o malufismo respirar fora de seu
meio ambiente, que afinal é o Executivo
biônico?
A façanha de guindar-se da Secretaria
de Transportes ao governo do Estado,
com quatro anos ao relento — mas também com o interlúdio da Associação Comercial — , deu-se afinal no sistema da bionicidade. Poderia ocorrer o mesmo entre
o governo estadual e a Presidência, pondo-se ao pique na Câmara dos Deputados?
o Brasil
transformado
numa imensa
Freguesia do Ó
Malufismo sem Maluf?
O drama de Maluf é que talvez tenha
inventado o malufismo em vão. Isto porque, se a técnica é bem-sucedida e pode
ser entendida com bons resultados, é pouco provável que o malufismo de Maluf
possa beneficiá-lo em sua trajetória para
a Presidência, dada a circunstância de
manter-se fora do Executivo por quatro
longos anos. Um malufismo sem Maluf
poderia preservar outras trajetórias fulgurantes a outros temperamentos igualmente audaciosos, inclusive dentre os que
hoje se encontram na oposição, por que
não?
A estratégia malufiana só pode ser
bem-sucedida como alternativa para o
sistema, no sentido de que se torne a
única saída para perpetuar-se no poder,
hipótese em que o próprio governo federal teria que malufar em benefício de
sua candidatura. No momento esta hipótese parece contar com grande ibope entre os observadores, pois acredita-se que
o sistema tentará perpetuar-se ainda pela
via do dólman ou do jaquetão de meiaconfecção.
A conclusão, se não é totalmente melancólica, não é menos de causar apreensão. Pouco importam as pedras no caminho de Maluf, as ambições castrenses
que ele teria de enfrentar, e que reduzem
suas chances: o malufismo sem Maluf é
uma lição que fica.
Talvez Maluf não passe. E o malufismo, passará?
O Autor ensina Ciência Política no Departamento de
Ciências Sociais da USP.
Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
v. 1, 4, p. 27-32, nov. 82
NOVOS ESTUDOS Nº 4
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Para não dizer que só falei de