Augusto dos Anjos, o cronista
Precária terminologia científica, horrendo mau gosto, artificial,
poesia científica, pessimismo, nenhum amor pela natureza tropical,
trágica e macabra lírica, simbolista, parnasianista, pré-modernista,
arte-novista, poesia cemiterial, expressionismo alemão, realidade
convulsiva, sadomasoquismo, visão obsessiva da morte,
nosografia, escuridão simbólica, esteticamente conservador.
Estas são apenas algumas definições, colhidas ao acaso, sobre
Augusto dos Anjos e sua obra poética. Concomitantemente com as
sucessivas edições do EU, seu antológico e definitivo livro, não
faltaram adjetivos estapafúrdios e inusitados sobre a poesia do
paraibano. Quando não surgiam em teses literárias e em resenhas
na imprensa, eis que apareciam acadêmicos de medicina a procurar
na ciência uma explicação convincente que fosse para o “estranho”
vocabulário poético de Augusto dos Anjos.
Equivocados ou não, o certo é que sempre colocaram a poesia de
Augusto dos Anjos em um lugar de honra na literatura brasileira,
mesmo com todas as críticas feitas. No mínimo é uma obra que
gera polêmica, e isso já basta para perpetuá-la.
No caso da prosa de Augusto dos Anjos, acontece justamente o
inverso. Antes de lançar o EU, o poeta paraibano exercitou o verbo
nos jornais de então da Parahyba e do Recife. Escreveu crônicas
(algumas delas intituladas de Paudarquenses), artigos e até
discursos. Falou de literatura, de Festa das Neves e da política
brasileira de uma forma geral. Sempre com um estilo que variava do
irônico ao esnobe. Exagerava nos seus conhecimentos científicos
para responder aos críticos e escondia-se atrás de pseudônimos
para falar sobre a principal festa popular de então na província da
Parahyba. Era o início do século XX e Augusto dos Anjos já sentia a
necessidade de expor sua visão personalíssima (que mais tarde
causaria polêmica na poesia brasileira) dos fatos que se sucediam
na província e no Brasil.
A prosa dispersa de Augusto dos Anjos foi reunida em alguns livros,
como a obra completa do poeta, lançada pela Editora Nova Aguillar
e organizada por Alexei Bueno. Mas nunca chegou a despertar a
atenção da crítica, de uma forma geral. O próprio Alexei Bueno
afirma na introdução de “Obra Completa”: “A mesma coisa se pode
dizer da Prosa Dispersa, espantosamente inferior à obra do poeta, e
mesmo à do poeta imaturo do momento em que ela era escrita. Seu
primordial interesse reside em certas semelhanças vocabulares e
conceituais, e na incrível inadequação à sua prosa dessas mesmas
palavras prosaicas com as quais Augusto dos Anjos escreveu
alguns dos mais extraordinários poemas da língua portuguesa”.
Apesar da indiferença da crítica, creio que se pode encontrar muita
coisa de interessante na prosa dispersa de Augusto dos Anjos.
Principalmente, se formos levar em conta que foram textos escritos
para jornais. Portanto, sem maiores compromissos literários. Ao
contrário do seu único livro lançado, cujas poesias já foram escritas
com o cuidado necessário de quem teria uma obra para ser
analisada pela crítica.
Pode-se, por exemplo, conhecer seus ideais patrióticos e sua visão
política do Brasil. Assim como os críticos de sua poesia, Augusto
não economizava no vocabulário rebuscado na hora de enaltecer
uma personalidade ou desprezar um movimento político-social.
Sobre Tiradentes, o herói da Inconfidência Mineira, disse em artigo
publicado no jornal O Comércio, de abril de 1902: “Alma de luz
adormecida sobre o brando dossel da Liberdade, que vibração de
alegria não há de ir-te pelo túmulo, nesta hora suprema da nossa
unificação, quando transfundidos num mesmo ideal, pela voz duma
mesma consciência, obedecendo aos impulsos dum sentimento
altamente nobilitante, o de glorificar-te perante o mundo inteiro?!
(...) O teu exemplo foi uma seara luminosa de regeneração,
fecundando o caminho êxul da Pátria Morta!”.
Um dia depois do 15 de novembro de 1906, escreveu uma crônica
em que desancava impiedosamente a República. O Comércio
publicaria no dia 20 de novembro daquele ano as ideias de Augusto
dos Anjos sobre o sistema de governo vigente. Dizia o cronista: “É
que a explorada carcaça brasileira, no intuito de glorificar o
nascedouro da República, acaba de envergar amplas baetilhas de
pompa rutilante, e os guardiães vorazes das assembleias políticas,
por uma espécie de escambo ultrapatriótico, realizaram entre si
distribuição equina dos mais luzidios arreios encontrados nas
cavalariças”.
Mais adiante, analisa a vida econômica e social dentro do sistema
republicano de governo:
“No tocante à agricultura, paramos na imobilidade das máquinas
enferrujadas, incapazes de funcionamento mínimo por causa do
azinhavre parasitário que, em camadas verdes, se lhes justapôs às
molas propulsoras.
“Tal é a sinopse ligeira das desgraças enormes que, como uma
sucessão aziaga de carbúnculos, nos tem prodigalizado dezessete
anos de republicanismo maquiavélico.
“Digam o que quiserem, a República, entre nós, desmentiu do modo
mais crasso o programa utópico dos sonhos biferais, e cuspiu
publicamente, num desespero de heresiarca medieval, todas as
páginas da bíblia ardente que, antes de ir para o túmulo de Plínio,
Silva Jardim nos ensinou...”.
No dia 13 de maio de 1909, faz um discurso no Teatro Santa Roza
sobre a escravidão humana. A peça, um verdadeiro tratado de
sociologia, seria publicada no jornal A União, nos dias 20, 22 e 23
de maio daquele ano. Para Augusto dos Anjos, o escravo era a
negação vertebrada do impulso evolutivo que existe ocultamente no
fundo de todas as coisas. “A alma de um escravo é como a
fotografia de um túmulo”, comparava. Em seguida, condói-se da
vida dos escravos, ao descrevê-la:
“E o que assoma aos lábios, impetuosamente, numa irrupção
espontânea e incoercível, é o grito instintivo de sua raça castigada,
é a canção unitária dos vencidos, toda a escala chorada das
afeições perdidas, na dissolução aberratória da filoprogênio
religiosa que esses homens de cabelos louros, olhos azuis e alva
pigmentação epidérmica, lhes vedaram para todo o sempre,
gritando-lhe aos ouvidos:
“Tu não terás filhos!
“Dos peitos de tua mulher escorrerá apenas para manchar o
mundo, um leite improfícuo e simplesmente animal!
“A tua mulher é dos brancos, pertence ao patrimônio inteiro de
nossa libidinagem, os teus filhos constituem apenas o
prolongamento desclassificado de tua subalternidade étnica, o
Estado, que é o logos e é a razão suprema, não protege a tua vida,
a tua propriedade e a tua liberdade, porque tu não possuis esses
superatributos inalienáveis e imprescritíveis do nosso eu bramânico
e privilegiado!”.
O discurso é encerrado com vivas a José do Patrocínio, à República
brasileira (?) e ao presidente do Estado da Parahyba, João Lopes
Machado.
Mas nem só de preocupações sociais e incoerências verbais vivia a
prosa de Augusto dos Anjos. Já em busca do seu lugar ao sol na
literatura, não dispensava uma polêmica, principalmente se fosse
para medir conhecimentos gramaticais. Ao responder a uma crítica
feita a um poema seu, foi irônico e mordaz: “Concordo que o meu
soneto tenha pouca originalidade, mas não concordo que se diga
que seios rijos não possam ser palpitantes e mornos. Aí não há
contradição nenhuma e o mestre espichou-se mais do que o
discípulo. Ora, os seios rijos podem muito bem palpitar e ser
mornos. Qual o inconveniente? Já sei. O ilustre crítico queria que os
seios não palpitassem e fossem frios e moles. Simples questão de
gosto e eu não sei satisfazer todas as vontades”. (O Comércio,
20.8.1901)
Avaliando a literatura paraibana da época, Augusto dos Anjos não
disfarçava o pessimismo. Considerava-a fragmentária. “A Paraíba
inteira se limita hoje a satisfazer com exatidão isócrona solicitações
materiais. Nada que ultrapasse a meta dos instintos vulgares”.
Defendia e definia a nossa cena literária da seguinte forma: “Urge
assim que um pensamento uniforme de reação sinérgica se
estabeleça, mormente num lugar, como este, em que salvo media
dúzia de exceções magras, os eclipses de inteligências são
proverbiais, e a nossa ignorância nativa vai logrando nos centros
vizinhos verdadeiras proporções idiomáticas”. (O Comércio,
5.10.1905)
Em outras oportunidades, trocava réplicas e tréplicas com desafetos
intelectuais. Sobre um deles comentou:
“Na Carta Aberta desse professor amarelo, anêmico, impossível,
qualquer criança estudiosa depararia logo empregos errados de
colocação de pronomes, cacophatons, ecos, superarbundância
abusiva do vocáculo que em certos períodos, reticências
pornográficas, faltando apenas para o remate da obra os
solecismos e perissologias peculiares à dialetação plebeia”. (O
Comércio, 14.11.1905)
Em outra ocasião, ao se defender de mais um dos ataques
desferidos aos seus conhecimentos técnico-científicos, Augusto dos
Anjos recorre ao fato de ter examinado Português no Liceu da
Capital, a convite da autoridade do educandário, para impor sua
superioridade intelectual.
Posando de um profeta, antevê novos rumos para a literatura,
lembrando que “a poesia não é qualquer autômato que
estacionasse ai aos gritos de sábio nenhum, com os poemas da
Antiguidade”.
Sobre a Festa das Neves, o mais tradicional evento da capital
paraibana, Augusto dos Anjos manteve o estilo irônico, às vezes,
arrogante, noutras vezes. A diferença é que, neste caso, escrevia
no Nonevar e através de pseudônimos. Em correspondência
enviada à mãe, datada de julho de 1907, antecipava a sua
participação no jornalzinho: “É que a Festa das Neves se aproxima
e fui convidado para constituir uma das principais partes
colaboradoras de um jornalzinho elegante que se propõe a ser a
delícia espiritual do novenário festivo”.
Nas suas crônicas no Nonevar, Augusto dos Anjos comentava as
noites anteriores da festa da padroeira, com um pouco de lirismo
aqui e outro tanto de irreverência ali, falando de roletas e
amendoins. O estilo e a linha editorial do Nonevar seriam assim
definidos por Cavaradossi, pseudônimo de Augusto dos Anjos:
“A toillete chic do feminismo que se enfeita, o perfil apolíneo dos
smarts, a film decepcionante dos aspectos grotescos, que se
contrapõem, como uma exceção injusta, à soma das perspectivas
agradáveis a psicose ridícula dos velhos, alimentando a hipótese de
um auto-rejuvenescimento impossível, tudo isso entra na mesa de
trabalhos d´O Nonevar muito despretensiosamente, representando
apenas a colheita original de todas as impressões recebidas no
transcurso quotidiano da festa”.
Augusto dos Anjos criticava, através do Nonevar, o que ele
chamava de excessiva idolatria à Festa das Neves na província. “E
esse apego desesperado à tradição, parte diretamente do povo”,
arrematava, sem vislumbrar que no futuro essa tradição seria
mantida à muito custo. Uma crônica foi utilizada para lamentar a
falta de moças em uma das noites da Festa das Neves. Em outra,
comemorava: “As moças não fizeram a greve consuetudinária, e
algumas delas, trajando finas toilletes, atraíam a atenção dos
escribas pontifícios da moda”.
Há de se reconhecer o desnível literário entre a poesia e prosa
dispersa de Augusto dos Anjos. Enquanto a primeira ganhou o
mundo e assustou a cena literária brasileira, a segunda vem sendo
solenemente ignorada ao longo das décadas. Para nós, estudiosos
e apaixonados pela sua obra, é de grande importância o
conhecimento das crônicas de Augusto dos Anjos. Primeiro, para
entender o seu pensamento sobre a política e a sociedade brasileira
do início do século XX. E também por conta das impressões que
deixa transparecer sobre a acanhada e provinciana Parahyba de
então. Em relação aos dias de hoje, pouca coisa mudou nos valores
da nossa sociedade burguesa. Por isso, não ser inconveniente
transcrever esse trecho de uma crônica publicada em O Comércio,
de outubro de 1906. É um resumo da inocência da província com o
tédio e o desprezo do cronista para com a sociedade de então.
Desprezo esse que viria a ser marca maior de sua obra poética.
Confiram:
“Brevemente, minha boa Paraíba, eu te irei ver com a tua luzinha
encarnada, anunciando sorvetes nas entranhas do Café Chic, e a
tua máquina severa, correndo a passos de quadriga célere, para as
areias refocilantes de Tambaú.
“Por enquanto, aqui permaneço, na minha hediondez animal,
atrelado estupidamente às correias apertadas do meu Phaeton de
preguiça”.
(Texto publicado no livro “A Paraíba nos 500 anos do Brasil –
Volume II – Editora A União/2000)
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