UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM IARA LOPES MAIOLINI UMA PROPOSTA ENUNCIATIVO-DISCURSIVA DE LEITURA DE CONTOS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL CUIABÁ-MT 2013 ii IARA LOPES MAIOLINI UMA PROPOSTA ENUNCIATIVO-DISCURSIVA DE LEITURA DE CONTOS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem, sob a orientação da professora Dra. Cláudia Graziano Paes de Barros. CUIABÁ-MT 2013 iii iv Dedico aos meus pais, Maria Eldinê Cardoso e Leontino Lopes de Souza, que, devido às circunstâncias sofríveis de suas vidas, não tiveram oportunidade de irem à escola aprender a ler e a escrever. v AGRADECIMENTOS Ao autor e consumador da vida: O Deus triuno (Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo) que em todo o tempo esteve comigo, dando-me forças para eu sempre chamar a existência às coisas que ainda não existiam como se elas já existissem. “Oh profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seus caminhos! Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém” (Romanos 11: 33,36). Ao meu esposo, Sérgio Pereira Maiolini, a quem “amo firme, fiel e verdadeiramente” (Vladimir Mayakovsky). Obrigada, meu amor, por me ouvir e ouvir sempre as mesmas coisas, as mesmas “ladainhas”; por fazer dos momentos insuportáveis suportáveis e por me apoiar e não me fazer desistir. Amar-te-ei por toda a minha vida. À minha orientadora, Profa. Dra. Cláudia Graziano Paes de Barros, pela orientação, dedicação em ler o meu trabalho e pela a oportunidade de me fazer aprender com o seu conhecimento. À professora Dra. Maria Inês Pagliarini Cox, pela gentileza de ter aceitado ler o meu trabalho e pelas ricas contribuições e sugestões que me foram de suma importância. À professora Dra. Fabíola Aparecida Sartín Dutra Pereira Almeida, pela leitura do meu trabalho que muito contribui e enriqueceu a presente pesquisa. À CAPES, pelo apoio financeiro. Aos meus irmãos por me ajudarem nessa caminhada, em especial, a minha irmã e ao meu cunhado, Ana Lúcia C. de Moraes e Eurico V. de Moraes Filho, por ter-me dado a oportunidade de sair do interior (Tuntum/MA) e ir para a “cidade grande”, a fim de estudar e ter “um futuro melhor”. Obrigada! vi À minha grande amiga-irmã, Natália Thereza Barros Agrella, pelas orações, pelo incentivo e apoio para eu fazer o mestrado e, sobretudo, por sua amizade inigualável. Obrigada, minha querida amiga! Ao meu amigo Jonh Erick Augusto, por tantas vezes acreditar em mim e por me incentivar a fazer a pós-graduação, pois, como sempre dizíamos “sou guerreira, sou forte, sou filha Norte”. Obrigada, bom amigo! À professora Maria Rosa Petroni, pela torcida e por ter sido “minha mãe de pesquisa”. Aos amigos, Jeferson e Viviane, por terem lido o meu texto e pelas contribuições que me fizeram refletir melhor acerca da pesquisa. Às minhas amigas, Angélica, Viviane, Rute, Shirlei, Leni e Leila, pelos bate-papos bastante profícuos, divertidos e agradáveis. Aos amigos do grupo de pesquisa Relendo Bakhtin (REBAK), pelas discussões, conversas e pelas tardes “únicas e irrepetíveis”, em especial agradeço à professora Simone Padilha que, com o seu jeito doce e meigo, permitiu que eu participasse desse grupo tão querido e especial. Aos professores e aos amigos da Pós-graduação (turma 2011), pelas contribuições teóricas, conversas, aprendizados e risadas durante as aulas do mestrado. À professora Keila da Escola Estadual F.A.F.M., pela gentileza e boa vontade em permitir que eu aplicasse os questionários aos alunos e por disponibilizar uma coleção do livro didático “Viva Português”. Obrigada, professora! vii [...] Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. Clarice Lispector – Felicidade Clandestina viii RESUMO Uma proposta enunciativo-discursiva de leitura de contos para o Ensino Fundamental A presente pesquisa tem como objetivo investigar e discutir as práticas de leitura e letramento literário de alunos do 7º e 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública estadual de Cuiabá, Mato Grosso. Também, examina e analisa o tratamento dado ao gênero discursivo conto como objeto de ensino para as atividades de leitura na coleção de Livro Didático “Viva Português”. Ainda, elabora uma proposta de leitura do gênero conto direcionada aos alunos do 9º ano pela perspectiva social e interativa da linguagem e do ensino-aprendizagem. Para tanto, pela dimensão da linguagem em uso, a proposta baseia-se no quadro teórico enunciativo-discursivo de Mikhail Bakhtin, Valentin Volochinov e Pavel Medvedev (1929a; 1929b; 1926; 1928). E, pela dimensão do ensino-aprendizagem, ancora-se no viés socio-histórico de Lev Vygotsky. Além disso, propõe atividades de leitura através dos conceitos bakhtinianos da compreensão ativa e sujeito como um ser ativo e respondente (1952-53/1979; 1934-35/1975) para refletirmos acerca do letramento literário mediado pelos contos. Assim, concebemos que o gênero discursivo conto é uma ferramenta bastante profícua na questão de formação do leitor literário. A metodologia de pesquisa é de natureza qualitativa e a abordagem é à luz da teoria dialógica bakhtiniana aplicada às ciências humanas (1959-61/1979; 1970-71/1979; 1974/1979). Os dados analisados revelaram que os alunos pesquisados têm diversas práticas de leitura porque eles leem poema, letra de canção, conto etc. Porém, na esfera escolar, os sujeitos pesquisados leem textos do livro didático. Em especial à análise dos dados do livro didático “Viva Português”, observamos que este não promove o letramento literário porque, em boa medida, desenvolve um trabalho de leitura alicerçado na gramática normativa. Finalmente, em nossas análises e reflexões relativas ao letramento literário, entendemos que esse deveria ser uma prática de leitura do estudante quanto do professor em seu ensino da leitura literária na escola. Palavras-chave: Letramento literário. Gênero do discurso. Conto. ix ABSTRACT An enunciative-discursive proposal of tale´s reading to the elementary education The present research has the aim to investigate and to discuss the reading´s practices and literary literacy from students of 7th 9 th year of elementary education of a state public school located in Cuiabá, Mato Grosso. Also, it examines and analyses the didactic treatment given to the speech genre tale as teaching object for the reading activities on the collection Portuguese language schoolbook “Viva Português”. Thus, it elaborates a reading proposal of the genre tale guided to the 9th year´s pupils by the social and interactive perspective of language and teaching and learning. For such, by the level of language in use, the proposal is based on theorical framework enunciative-discursive from Mikhail Bakhtin, Valentin Volochinov and Pavel Medvedev (1929a; 1929b; 1926; 1928). And, by the level of teaching and learning, it anchors in the socio-historical bias from Lev Vygotsky (1930; 1934). Moreover, it proposes activities of reading through the Bakhtinian concepts of active understanding and active and respondent being (1952-53/1979, 1934-35/1975) to reflect about literary literacy mediated by tales. Thus, we conceive that the discursive genre tale is a very fruitful tool in the question of the literary reader´s formation. The research methodology is an assumption which is brought to the light by Bakhtin`s dialogic framework applied to the human sciences (1959-61/1979; 1970-71; 1974/1979). Data analysis revealed that the researched pupils have many reading practices because they read poems, lyrics, tales, etc. However, at the school sphere, they read texts from the didactic textbooks. Especially in the data analysis from the textbook “Viva Português”, we note that this does not promote literary literacy because, to a large extent, it develops a reading work grounded in normative grammar. Finally, in our analysis and reflections regarding to the literary literacy, we understand that this might be a student as well as a teacher´s reading practice in his teaching of literature´s reading at school. Keywords: Literary literacy. Speech genre. Tale. x SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 – Leitura e a formação do leitor literário......................... 17 1.1 – Plano Nacional do Livro e Leitura e a democratização do acesso ao livro....................................................................................................... 18 1.1.1 – Uma breve apresentação do livro didático e da leitura no Brasil.. 18 1.1.2 - O Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL.................................. 22 1.2 - Um diálogo possível: Mikhail Bakhtin e Antonio Candido............. 24 1.3 - Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o letramento literário... 30 1.3.1 - A concepção de leitura nos PCN.................................................. 30 1.4 - A escolarização do texto literário...................................................... 36 CAPÍTULO 2 – Bakhtin e Vygotsky: uma abordagem enunciativodiscursiva do ensino-aprendizagem de leitura de contos................... 42 2.1 – O gênero do discurso no Brasil........................................................ 42 2.2 – O gênero do discurso: a tríade e outros aspectos............................ 45 2.3 – Vygotsky e o ensino-aprendizagem.................................................. 53 2.4 – O gênero como megainstrumento de ensino-aprendizagem.......... 57 2.4.1 - Os gêneros: ferramentas nas práticas e capacidades de leitura... 59 CAPÍTULO 3 – O gênero discursivo conto: um olhar bakhtiniano..... 62 3.1 – A origem do conto: a história da estória........................................... 62 3.2 – Conto: em busca de uma definição.................................................. 65 CAPÍTULO 4 – Metodologia de pesquisa e as Ciências Humanas..... 71 4.1- A natureza da pesquisa.................................................................. 71 4.2 - Bakhtin e as Ciências Humanas........................................................ 71 4.3 – O método sociológico....................................................................... 74 4.4 – Metodologia de coleta dos dados..................................................... 75 4.5 – Metodologia de análise dos dados................................................... 77 CAPÍTULO 5 – Analisando os questionários e o Livro Didático de Língua Portuguesa.................................................................................. 78 5.1– Os questionários: as práticas de leitura e letramentos dos alunos... 79 xi 5.1.1- As práticas de leitura....................................................................... 79 5.1.2- Outros dados................................................................................... 86 5.1.3- Atividades diversas......................................................................... 87 5.1.4- O que é leitura para você?.............................................................. 89 5.2 – Sobre a coleção do Livro Didático Viva Português........................... 93 5.2.1- Descrição geral da coleção............................................................. 93 5.2.2- Os gêneros da esfera literária na coleção....................................... 96 5.2.3- A presença do conto da esfera literária na coleção........................ 98 5.2.4 – Sobre o tratamento didático nas atividades de leitura do conto.... 102 5.2.5- Sobre as capacidades mobilizadas................................................ 111 CAPÍTULO 6 – Uma proposta didática do gênero discursivo conto.. 118 6. 1 – Acerca da proposta didática............................................................ 118 Considerações Finais.............................................................................. 152 Referências bibliográficas...................................................................... 156 ANEXO 1 – O homem que enxerga a Morte............................................. 164 ANEXO 2 – Cinco ciprestes, vezes dois.................................................... 168 ANEXO 3 – Um amigo para sempre.......................................................... 170 ANEXO 4 – Brincadeira............................................................................. 173 ANEXO 5 – O coração comido.................................................................. 176 Tabela 1 – A presença da leitura na infância............................................ 79 Tabela 2- Quem lia.................................................................................... 79 Tabela 3 – Pessoas que mais influenciaram o gosto pela leitura 80 Tabela 4 – Materiais escritos existentes na residência............................. 80 Tabela 5 – Quantidade de livros existentes na residência........................ 81 Tabela 6 – Tipo de livro que costuma ler, ainda que de vez em quando.. 82 Tabela 7 – Quantidade de livros lidos neste ano...................................... 82 Tabela 8 – Textos lidos na escola............................................................. 83 Tabela 9 – Atividades realizadas na escola.............................................. 83 Tabela 10 – Gêneros habitualmente lidos................................................. 84 Tabela 11 – Gêneros mais apreciados para leitura................................... 84 Tabela 12 – Gêneros mais apreciados para a escrita............................... 85 Tabela 13 – Frequenta algum curso.......................................................... 86 Tabela 14 – Frequência de uso do computador........................................ 86 xii Tabela 15 – Que uso costuma fazer do computador................................. 86 Tabela 16 – Práticas de leitura de pais ou parentes................................. 87 Tabela 17 – Assiste à televisão................................................................. 87 Tabela 18 - Ouve rádio.............................................................................. 87 Tabela 19 - Vai a exposições ou feiras...................................................... 88 Tabela 20 - Vai a shows............................................................................ 88 Tabela 21 - Vai a cinemas......................................................................... 88 Tabela 22: O que significa leitura para você? (7º ano).............................. 89 Tabela 23: O que significa leitura para você? (9º ano).............................. 91 Tabela 24: Quantidade de gêneros da esfera literária na coleção............ 96 Tabela 25: Quantidade de gêneros de outras esferas na coleção............ 97 Tabela 26: Capacidades de compreensão mobilizadas nas atividades 111 de leitura do conto na coleção................................................................... Tabela 27: Capacidades de réplica ativa mobilizadas nas atividades de leitura do conto na coleção........................................................................ 113 13 INTRODUÇÃO As razões que nos levaram a fazer tal pesquisa sobre a formação do leitor literário advêm de uma época anterior ao Mestrado, quando, durante a graduação do curso de Letras, éramos bolsistas de iniciação científica. Foi nesse período que desenvolvemos pesquisas sobre o ensinoaprendizagem de leitura e escrita na perspectiva enunciativo-discursiva da linguagem. Pesquisas essas que nos levaram, como graduandos, a algumas discussões, indagações e percepções sobre a linguagem, de maneira que nos instigaram a continuar estudando sobre as questões atinentes ao ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa. Atrelado a isso, já no Estágio Supervisionado do referido curso, em nossa Regência, desenvolvemos um trabalho de leitura e reescrita de fábulas em uma turma do 6º ano do Ensino Fundamental de uma escola estadual pública de Cuiabá (Mato Grosso)1, que nos impulsionou e nos desafiou, de certa forma, a pensar em como trabalhar o gênero da esfera literária em sala de aula sem deixar de ouvir a “voz” do aluno. Embora o trabalho tenha sido bastante árduo e cansativo, observamos que os alunos eram participativos e interessados nas aulas e que, em boa medida, conseguiram reescrever algumas fábulas. Essas foram, portanto, as principais razões que nos levaram a continuar pesquisando os fenômenos que estão envoltos no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, especificamente, da formação do leitor literário. Somado a isso, temos visto que desde o início dos anos 80, muitas pesquisas foram realizadas acerca do ensino de Língua Portuguesa em nosso país. Tais pesquisas fomentavam o debate em torno do principal problema que a maioria dos alunos das escolas públicas até hoje enfrentam, isto é, a aquisição da leitura e da escrita de modo proficiente. Assim, nas últimas décadas, temos observado um aumento da demanda no que tange ao domínio da leitura e da escrita, ou seja, domínio das diversas capacidades de linguagem nas variadas áreas da vida social, relacionado, portanto, aos tipos e níveis de letramentos que vão além da decodificação da palavra escrita. Com o intuito de atender tais demandas, o sistema educacional brasileiro propôs algumas orientações e programas oficiais para o ensino, tais como: os 1 A referida escola é a mesma onde realizamos a presente pesquisa. 14 Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN; a reformulação do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD; o Programa Nacional Biblioteca Escolar (PNBE) e o Programa Nacional do Livro e da Leitura (PNLL). Em decorrência dessas políticas públicas, foram implantados os programas nacionais de avaliação, SAEB e ENEM, os quais possuem como objetivo a verificação do rendimento escolar dos alunos nos níveis fundamental e médio. Nesse sentido, esses programas têm demonstrado que os alunos apresentam um índice abaixo do rendimento, principalmente, no quesito proficiência em leitura. Além desses programas, o Brasil tem participado, desde o ano de 2000, do programa internacional PISA2 – Project for Internacional Student Assessment (em português: Programa Internacional de Avaliação de Alunos), cujo objetivo principal é produzir indicadores acerca da efetividade dos sistemas educacionais de cada país, de modo a avaliar o desempenho dos alunos na faixa etária dos 15 anos, isto é, no fim da educação básica. Em 2000, segundo o relatório3 do Inep, os alunos apresentaram um desempenho sofrível no exame PISA, alcançando o último lugar entre os países participantes. Já em 2009, o Brasil atingiu um desempenho significativo, no qual 50% dos alunos conseguiram atingir o nível 2, que está relacionado às atividades de leitura como localização de informações. Entendemos, portanto, que tais resultados ainda são insatisfatórios para se formar um cidadão atuante e participativo, de maneira que reflita acerca de sua condição humana em sociedade. Assim, os exames esperam dos alunos capacidades de leitura ainda não alcançadas nesses níveis. Além disso, inferimos que a formação de um possível leitor, inclusive o leitor literário, em tais circunstâncias, parece estar bastante comprometida. Refletindo sobre tais pontos, nosso objetivo se volta para a construção de um trabalho que encaminhe para a formação do leitor literário, de modo que o aluno exerça plenamente sua cidadania e seja capaz de atribuir sentidos para qualquer tipo de texto, inclusive o texto literário. Por isso, pensamos numa pesquisa que 2“É um programa internacional de avaliação comparada desenvolvido e coordenado internacionalmente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), havendo em cada país participante uma coordenação nacional. No Brasil, o PISA é coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)” (Inep/MEC, 2009, p.11). Esse relatório está disponível em <http://portal.inep.gov.br/internacional-novo-pisa-resultados>, acessado em 29/04/2013 às 17h27min. 3 15 contribuísse para refletirmos sobre a formação do leitor literário, a partir das atividades de leitura do conto no livro didático, pois, atualmente, esse é o principal material impresso a que o aluno de escola pública tem acesso. A esse respeito, os PCN asseveram que: O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento de singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias (BRASIL, 1998,p.27). A questão da formação do leitor literário e da leitura literária tem sido objeto de muitas pesquisas em nosso país, a saber: Paulino (2008); Soares (2001; 2008); Aguiar (2007); Martins e Versiani (2008); Zilberman (2001; 2009); Lajolo (2009); Cosson (2007). Ainda não há, entretanto, muitos trabalhos que abordam o ensino da leitura literária pelo viés bakhtiniano. Dentre esses, é possível destacarmos os trabalhos de Padilha (2005) e Coentro (2008). Essa discute a formação do leitor literário por meio da contação de histórias, já aquela, o trabalho desenvolvido nos livros didáticos, enfocando particularmente os gêneros poéticos. É nesse contexto que esta pesquisa se insere, discutindo a formação de leitores literários no Ensino Fundamental e apresentando uma proposta de sequência didática com o gênero conto, a partir das ideias sócio-históricas de ensino-aprendizagem de Vygotsky (1930; 1934) e dos pressupostos teóricos de Bakhtin e o Círculo (1926; 1928; 1929; 1934-1935/1975; 1952-53/1979). O pensamento vygotskiano sobre ensino-aprendizagem foi de suma importância para refletirmos sobre as atividades de leitura de conto do LD, assim como no planejamento e elaboração da nossa proposta de atividades de leitura. Neste estudo, aliamos as reflexões vygotskianas sobre interação entre sujeitos na construção do conhecimento ao pensamento bakhtiniano sobre a natureza sóciohistórica da linguagem e a constituição dialógica dessa. Atrelada a isso, a concepção de leitura é tomada como um processo de compreensão ativa, isto é, uma atividade que acarreta uma série de inter-relações complexas que enriquecem o já dito com novos elementos, novos apontamentos, novos argumentos etc. 16 Também adotamos as considerações de Mikhail Bakhtin e o Círculo sobre os gêneros do discurso que, aliadas à concepção de ferramentas de Vygotsky que medeiam o ensino-aprendizagem, nos permitiu construir a proposta de didatização do gênero conto. Portanto, este trabalho objetivou: 1. Conhecer as práticas de leitura dos discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental de uma escola pública mato-grossense; 2. Conhecer as propostas de didatização de ensino-aprendizagem de leitura do gênero conto da coleção didática de Língua Portuguesa adotada pela escola; 3. Elaborar uma proposta de didatização do gênero conto para o nono (9º) ano do Ensino Fundamental. Para tanto, três perguntas de pesquisa nos orientaram: 1. Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar? 2. Qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção didática adotada na escola? 3. Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero conto? Desse modo, no capítulo 1 realizamos uma releitura das discussões sobre o letramento e o letramento literário. No capítulo 2, apresentamos as considerações de Bakhtin e o Círculo sobre os gêneros do discurso e, num segundo momento, abordamos as concepções de Vygotsky sobre o desenvolvimento humano e o aprendizado. No capítulo 3, discutimos sobre a história do conto e seus elementos indissociáveis. No capítulo 4, traçamos o percurso metodológico realizado. No capítulo 5, primeiramente, são apresentados e analisados os dados referentes às práticas letradas dos alunos entrevistados e, também, analisamos e descrevemos as atividades da coleção adotada pela escola. No capítulo 6, apresentamos a proposta de sequência didática do gênero discursivo conto, tomado como objeto de ensino. Em seguida, tecemos as Considerações Finais desta pesquisa de mestrado. 17 CAPÍTULO 1 Leitura e a formação do leitor literário A arte nos permite conhecer melhor o existente, ao percebermos outras possibilidades de existir [...] Arte, diriam os “práticos”, arte para quê? É perda de tempo, é “frescura” de gente desocupada. Arte hoje não tem valor próprio, só vale se virar indústria e comércio, se tiver valor no mercado (Graça Paulino, 1999). A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade (Antônio Cândido, 1988). Neste capítulo, trataremos da prática de leitura de textos literários na escola nas perspectivas do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP) e do Programa Nacional de Biblioteca Escolar (PNBE). Para tanto, valer-nos-emos de conceitos atinentes à leitura e ao letramento literário como também de um diálogo possível entre dois estudiosos das artes literárias na Rússia e no Brasil, respectivamente Mikhail Bakhtin e Antônio Cândido. 18 1.1 Plano Nacional do Livro e Leitura e a democratização do acesso ao livro 1.1.1 Uma breve apresentação do livro didático e da leitura no Brasil Galvão e Batista (2012), no ensaio4 “A leitura na escola primária brasileira: alguns elementos históricos”, afirmam que até meados do século XIX quase não existiam livros específicos de leitura em nossas escolas e os textos manuscritos utilizados como materiais de ensino da prática de leitura em sala de aula eram os documentos de cartório e cartas, a Constituição do Império, o Código Criminal e a Bíblia. As práticas iniciais de escolarização ocorriam nas fazendas ou engenhos com alguma pessoa mais escolarizada, por exemplo: o padre, o capelão ou o mestreescola contratado para esse fim. Nessa época, os escravos eram proibidos de ingressarem na escola e as meninas podiam frequentar apenas a educação básica (isso é, “aprender a ler e escrever e fazer as primeiras operações matemáticas”), a fim de cumprirem as atividades domésticas. A partir do período imperial, algumas iniciativas de ampliar a oferta de escolarização da população começaram a surgir, porque a educação passou a ser vista como de suma importância para o desenvolvimento econômico e cultural do país. Em 1808, com a implantação da imprensa régia, o Brasil inicia o processo de impressão de livros, mas é somente na segunda metade do século XIX que começam a surgir, no Brasil, livros de leitura direcionados às séries iniciais. Em 1868, Abílio César Borges publicou o Primeiro Livro, uma obra destinada ao aprendizado inicial da leitura e da escrita. Outras séries de leituras foram editadas, notadamente as de Felisberto de Carvalho. No final do século XIX e início do XX, houve uma expansão gradativa da escolarização que passou a ser um dos objetivos do governo republicano. Muitas reformas, atinentes ao ensino, começaram a ser propostas. Entretanto, a escola continuava acessível a uma pequena parcela da população. Em 1921, Monteiro Lobato também marcou a história dos livros de leitura com a publicação de Narizinho Arrebitado, que, de acordo com crítica da época, se diferenciava de outros livros, posto que trouxe a novidade do “prazer na leitura” à cena educacional brasileira, aspecto, até então, ignorado pela escola. De 1921 até 4 Disponível em <http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio21.html>, acessado em 11/05/2012. 19 meados de 1950, muitos foram os livros de leitura produzidos e algumas editoras passaram a se especializar na produção de livros didáticos. Simultaneamente, essa época foi marcada pelo grande índice de pessoas “analfabetas”, não escolarizadas: mais de 80% da população. Por causa disso, novas metodologias de ensino passam a ser discutidas através do movimento educacional da Escola Nova, cujo marco mais significativo foi o Manifesto dos Pioneiros da Educação em 1932. Segundo Galvão e Batista (2012, s/p), embora houvesse todo esse movimento de intelectuais acerca da leitura escolar, [...] o dia-a-dia da maioria das escolas continuava sem muitas inovações. Algumas autobiografias revelam, por exemplo que, na década de 30, os alunos continuavam temerosos em ler as lições, ainda tomadas em voz alta, e a angústia e o tédio continuavam a marcar a sua relação com a leitura prescrita pela escola. Nesse momento, os castigos físicos eram proibidos oficialmente em todo o país, mas as restrições, penalidades e sanções permaneceram no cotidiano das escolas [...] Em muitas escolas, alguns objetos de leitura eram proibidos – como as histórias em quadrinhos, que fascinaram crianças e jovens dos anos 30 e 40 – e algumas práticas de leitura também (GALVÃO & BATISTA, 2012, s/p). É entre as décadas de 50 e 70 que a rede pública de educação começa a ser expandida e cada vez mais a camada popular da sociedade ingressa na instituição escolar. Simultaneamente, aumentou o número de bibliotecas populares e de livrarias. Todavia, é nesse período que, ao contrário do que acontecia no passado, a presença do livro na sala de aula passa a ter um tempo menor de utilização. Talvez, essa modificação se explique pelo fato de que “os novos livros trazem, cada vez mais, cadernos de exercício e manuais do professor. No passado, traziam, no geral, uma ou duas folhas de instrução aos professores” (BATISTA & GALVÃO, 2012, s/p). Os autores (2012) acreditam que tal mudança pode ser explicada pelo fato de que, nessa época, havia uma necessidade muito grande de atualização do conteúdo que era complexo e de rápida desatualização; havia ainda o desenvolvimento acelerado de pesquisas no âmbito educacional que, por diversas vezes, modificavam o conhecimento e a metodologia pedagógica. Ademais, havia as necessidades econômicas das editoras. Portanto, o livro na escola perde a sua função, a saber: tornar-se um objeto de diálogo, discussões e respostas/compreensão (contrapalavra) entre os 20 interlocutores (autor/ leitor), ou seja, no lugar de um espaço de interação verbal entre autor e leitor, cuja compreensão (contrapalavra) precede a reflexão/refutação, surge o livro didatizado em que o aluno não é convidado a tomar a palavra de modo que reflita e refrate acerca de um texto ou de outro. Por isso, concordamos com os pensadores russos, Bakhtin/Volochinov (2009 [1929]), quando afirmam: O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado [...] (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009 [1929], p.127). Assim, principalmente após os documentos oficiais (1997; 1998; 1999), o livro didático para a criança/adolescente busca a presença frequente dos usos sociais da língua escrita na escola, tanto em relação às diversas modalidades de leitura, quanto à variedade de gêneros e suportes que os veiculem. O livro didático passa a conter uma grande multiplicidade de gêneros como quadrinhos, rótulos, propagandas, listas etc. Somado a isso, programas e documentos oficiais surgem na tentativa de auxiliar o professor na função de ensinar os alunos e torná-los sujeitos leitores. Em 1985, o governo institui o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que, ao longo de sua história, sofreu muitas mudanças5. No cenário escolar, o livro didático tornou-se o principal material impresso utilizado por professores e alunos brasileiros. Muitas são as razões que levaram (e que ainda levam) o livro didático a tal categoria, por exemplo: a formação (inicial ou continuada) de professores, muitas vezes, inadequada; a precária condição de trabalho docente e, ainda, a “dificuldade enfrentada para produzir e fazer circular o livro no Brasil (particularmente, para fazê-lo circular na escola)” (BATISTA, 2008[2003], p. 28). Dessa forma, o livro didático configura-se como material imprescindível para a prática docente do ensino básico, posto que exerce grande influência no trabalho de leitura, “determinando sua finalidade, definindo o currículo, cristalizando abordagens metodológicas e quadros conceituais, organizando, enfim, o cotidiano da sala de aula” (BATISTA, 2008[2003], p. 28). 5 Cf. BATISTA (2008) 21 Observam-se, entretanto, alguns pontos positivos do PNLD, por exemplo: a) o aumento percentual de livros recomendados6 vem aumentando, progressivamente, pelas editoras participantes desde 1997, ao passo que o número de excluídos 7 se tem reduzido bastante; b) a ampla renovação da produção didática brasileira, devido à participação de novas editoras a cada PNLD e ao surgimento de novos autores de livro didático; c) observa-se uma abrangência da cobertura do PNLD, regularizando “o fluxo do atendimento e, com o aumento da eficácia dos processos de compra e distribuição alcançada pelo FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar], foi possível aumentar o atendimento [...]” (BATISTA, 2008[2003], p.39). Assim, ao longo da história, desde meados de 19608, o livro didático sofreu muitas mudanças para chegar ao patamar de qualidade atual e o PNLD vem contribuindo significativamente para um ensino melhor. No entanto, segundo o autor (2008[2003]), ainda há algumas reformulações que o PNLD deve seguir e acatar, por exemplo: as atuais “exigências sociais [que] impõem a revisão de paradigmas” (BATISTA, 2008 [2003], p.42). Essas novas exigências encontram-se, principalmente, esboçadas nos PCN9 (1997; 1998; 1999) que embasam as propostas de mudança e renovação na avaliação do livro didático. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP) (BRASIL, 1998) afirmam que um dos objetivos principais da escola básica deve ser levar o aluno a compreender a cidadania, de tal maneira que o torne um sujeito participativo em sua comunidade, capaz de exercer democraticamente o exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais em seu cotidiano e posicionar-se crítica e responsavelmente nas diferentes situações sociais, usando a linguagem como forma de mediar conflitos, tomar decisões, protestar e tomar a palavra ativamente na sociedade etc. É uma categoria de análise de classificação dos livros didáticos instituída pelo PNLD. Os recomendados são aqueles que cumpriram corretamente sua função, já os excluídos correspondem aos livros que apresentaram erros conceituais, desatualização, preconceitos ou discriminação de qualquer tipo (BATISTA, 2008[2003]). 6 7 8 Ver nota 3. Cf. (BATISTA, 2008[2003]). Nos anos finais da década de 90, o Ministério de Educação (doravante MEC) publicou um conjunto de documentos oficiais nomeados como Parâmetros Curriculares Nacionais, direcionados à renovação e reorganização curricular das várias disciplinas escolares do ensino no Brasil. No Ensino Fundamental de língua materna, foram publicados os Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa de 1º e 2º ciclos (1997) e os de 3º e 4º ciclos (1998). 9 22 Por isso, é importante que o livro didático (LD) também contemple tais questões, a fim de que seja um instrumento que favoreça o processo de ensinoaprendizagem do aluno e que a sua utilização se concretize na escola adequadamente, “reforçando o vínculo dos conteúdos com as práticas sociais e atendendo às novas demandas sociais [...]” (BATISTA, 2008[2003], p.44). Sabemos, no entanto, que apenas a utilização do LD em sala de aula ainda não é suficiente para formar o aluno leitor, em especial quando se trata de leitura literária, pois, por muitas vezes, o LD ora trabalha com uma diversidade substancial de textos jornalísticos, propagandas, ora o LD toma o texto literário no âmbito da historicidade do texto literário ora utiliza recortes/pedaços de textos literários. Em 1997, o MEC institui o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) cujo objetivo é equipar as escolas com acervos de obras de referências, obras literárias (sem textos recortados em parte), antologias de contos, bem como bibliografias de apoio para o trabalho docente. Contudo, apenas “abastecer” as bibliotecas ou salas de leitura não é suficiente, uma vez que tal prática não nos dá a garantia de que a leitura aconteça de fato. Seriam necessários mediadores, interlocutores proficientes em leitura, leitores autônomos e apreciadores de textos literários para viabilizar outros modos de leitura, outras práticas leitoras. Nesse sentido, recentemente, em 2011, foi criado o Plano Nacional do Livro e Leitura, PNLL10, cujos objetivos se alicerçam na [...] necessidade de formar uma sociedade leitora como condição essencial e decisiva para promover a inclusão social de milhões de brasileiros no que diz respeito a bens, serviços e cultura, garantindolhes uma vida digna e a estruturação de um país economicamente viável (BRASIL/PNLL, 2011, p.21). 1.1.2 O Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL O PNLL é uma iniciativa dos Ministérios da Cultura e da Educação e teve sua primeira edição em 2006. Recentemente, o PNLL foi sancionado como lei, sob o decreto11 de número 7.559 de 1º de setembro de 2011. O artigo 1º dessa lei afirma 10 Disponível em <http://www.pnll.gov.br/>, acessado em 17/04/12. O Decreto do PNLL foi publicado no DOU no dia 5 de setembro de 2011 e pode ser acessado em <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7559.htm>. 11 23 que o tal plano: “consiste em estratégia permanente de planejamento, apoio, articulação e referência para a execução de ações voltadas para o fomento da leitura no País” (BRASIL /PNLL, 2011, s/p). O PNLL é orientado por quatro eixos estratégicos de organização, tais como: a democratização do acesso ao livro; a formação de mediadores para o incentivo à leitura; a valorização institucional da leitura e o incremento de seu valor simbólico; o desenvolvimento da economia do livro como estímulo à produção intelectual e ao desenvolvimento da economia nacional e dezenove linhas de ação. As metas dessas linhas são: a implantação de novas bibliotecas e o fortalecimento das que já existem; distribuição de livros gratuitos à comunidade (bibliotecas circulantes, pontos de leitura nos ônibus, em vans etc.) e melhoria do acesso a eles; a fomentação e incentivo da leitura e formação de mediadores de leitura; ações para criar a consciência da valorização do livro e da leitura; e incentivo à leitura literária e maior presença da produção nacional literária, científica e cultural no exterior. Dentre essas metas, a “leitura literária” aparece apenas na linha de ação 17 e 19 no eixo estratégico IV. Primeiro, quando se refere ao incentivo e, depois, à produção literária. No caderno do PNLL (2011), percebemos que a literatura tem um espaço maior. Para tanto, o documento argumenta que Entre as muitas possibilidades de textos que podem ser adotados no trabalho com a leitura, a literatura merece atenção especial no contexto do Plano, dada a enorme contribuição que pode trazer para uma formação vertical do leitor, consideradas suas três funções essenciais, como tão bem as caracterizou Antônio Cândido: a) a capacidade que a literatura tem de atender à nossa imensa necessidade de ficção e fantasia; b) sua natureza essencialmente formativa, que afeta o consciente e o inconsciente dos leitores de maneira bastante complexa e dialética, como a própria vida, em oposição ao caráter pedagógico e doutrinador de outros textos; c) seu potencial de oferecer ao leitor um conhecimento profundo do mundo, tal como faz, por outro caminho, a ciência (BRASIL/PNLL, 2011, p.33 ênfase adicionada). Portanto, embora a democratização do acesso ao livro e à leitura seja um dos principais objetivos, o plano não deixa claro a qual acesso de livros se refere ou/e a qual tipo de leitura. O ato de incentivar, de valorizar, parece-nos vago, posto que não nos garante a concretização, a realização, de fato da leitura literária. Outra questão 24 que se coloca é o fato de nenhum eixo estratégico contemplar a presença ou o incentivo da leitura na infância, pois não há nenhuma discussão acerca da presença do livro e da representação simbólica desse material de leitura específica para essa fase. É importante destacar, no entanto, que o plano assume uma concepção de leitura que ultrapassa a mera decodificação da escrita alfabética ou o simples ato de decifrar os caracteres em reprodução do texto lido ou extração de informações. Assim, “a leitura configura um ato criativo de construção de sentidos, realizado pelos leitores a partir de um texto criado por outro(s) sujeito(s)” (PNLL, 2011, p.32). Como se pode observar, esse programa traz mudanças bastante significativas, dentre as quais podemos citar: a disponibilização de livros gratuitos para toda a comunidade; a acessibilidade da leitura aos cegos e surdos; a implantação das chamadas bibliotecas móveis; o aumento do número de livrarias etc. Apresentadas essas considerações, refletiremos, na próxima seção, a partir de Bakhtin e Cândido, sobre como concebemos a literatura e o texto literário. 1.2 Um diálogo possível: Mikhail Bakhtin e Antônio Cândido Mikhail Bakhtin foi um eminente pensador russo que, juntamente com o seu Círculo12, concebiam a linguagem a partir do âmbito sócio-histórico-ideológicocultural. Na literatura, Mikhail Bakhtin é mais conhecido por suas contribuições na teoria do romance com o conceito de romance polifônico (O problema da poética de Dostoievski, de 1929), extraído a partir das obras do escritor russo Dostoievski, ou ainda pelos estudos realizados sobre a obra de Rabelais, cunhando, assim, o conceito de carnavalização (A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais de 194013). As ideias bakhtinianas são decorrentes de discussão, reflexão e produção realizadas por Mikhail Bakhtin e um grupo de estudos de intelectuais russos, conhecido como Bakhtin e o Círculo, em meados de 1920 a 1970, cujos participantes eram: V. N. Voloshínov, P. Medvedev, Iudina, Kagan entre outros. Os estudiosos supracitados se dedicavam a pesquisar questões de variadas áreas das Ciências Humanas. É importante dizer que a autoria de algumas obras é disputada. Por exemplo, no original russo e na tradução inglesa a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) levam somente a assinatura de Voloshínov, ao passo que na tradução brasileira (que foi feita a partir da francesa) aparecem tanto a assinatura de Voloshínov como a de Bakhtin. Diante disso, as obras que possuem esta problemática – como é o caso também da obra Discurso na vida e discurso na arte (1926) - citaremos o nome dos dois autores e as que levam somente a assinatura de Bakhtin serão citadas somente em seu nome. Cf. Brait (2005,2006). 12 13 Embora sua primeira edição tenha saído em 1965 na Rússia, foi escrito em 1940 em forma de tese de doutoramento. 25 Ademais, os estudos de Mikhail Bakhtin têm contribuído substancialmente com as diversas áreas das Ciências Humanas Sociais, a saber: Linguística, Linguística Aplicada, Análise do Discurso, Filosofia, Educação etc, pois, como temos visto, o Bakhtin foi um pensador de fronteiras amplas. Para o pensador russo, a literatura não pode ser dissociada da vida cotidiana, real, pois ela é sócio-histórica. Ele não toma o texto literário de maneira dicotômica, como alguns estudiosos vinham fazendo em sua época: de um lado, a poética teórica e histórica, de outro lado, o método sociológico defendido por P. N. Sakulin em O método sociológico na literatura14. Na perspectiva defendida por P. N. Sakulin, a literatura era compreendida a partir de leis sistemáticas que seriam capazes de evoluir de maneira “natural”. Portanto, a literatura era submetida a uma ação de causa do meio social, como se as leis sistemáticas fossem uma essência interna, não sendo determinadas pela inserção social do fenômeno estético. Assim sendo, a análise imanentista precedia a análise sociológica literária. Por isso, Bakhtin (2010[1970], p.360-361) ao contra-argumentar tal visão assevera que: a literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época. É inaceitável separá-la do restante da cultura e, como se faz constantemente, ligála imediatamente a fatores socioeconômicos, por assim dizer, passando por cima da cultura. Esses fatores sobre a cultura no seu todo e só através dela e juntamente com ela influenciam a literatura (BAKHTIN, 2010 [1970], p.360-361 ênfase adicionada). Bakhtin (2010 [1970]) defende que a literatura não pode ser um reflexo ou espelho da vida socioeconômica, apesar de ela influenciar fortemente a literatura de forma não direta. Em um conto de uma determinada época, por exemplo, não se pode traduzir diretamente uma parte do enredo como um reflexo, decalque ou cópia da realidade socioeconômica e histórica daquele momento. Volochinov/Bakhtin, em Discurso na vida e discurso na arte (Sobre a poética sociológica) de 1926, argumentam que o discurso (a palavra 15) na vida deve ser 14 Cf. Discurso na vida e discurso na arte (Sobre poética sociológica) de 1926. Segundo Bubnova (2009, p.41 ênfase da autora), “ o vocábulo palavra deve ser entendido em sua ambivalência e polissemia: além do seu “primeiro” significado, pode querer dizer “discurso”, “anunciado”, “enunciação”, “ato de fala” etc. A palavra, sendo produto da interação entre várias instâncias sociais, vem a ser um acontecimento social, de uma maneira 15 26 analisado tanto em seu caráter extralinguístico (interlocutores, tempo, lugar social, aspectos presumidos dos interlocutores, contexto sócio-histórico, horizonte ideológico etc.), quanto em seu caráter linguístico intrínseco (seleção textual, sintaxe, entonação, léxico, léxico técnico do gênero, ortografia, abreviação etc.). Analogamente acontece isso com o discurso na arte, o qual deve ser tomado a partir dos elementos externos (a sua situação ou condições de produção, circulação e recepção) e internos que se integram totalmente no discurso artístico e literário (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2010[1926]). Por isso, Bakhtin discute o texto literário a partir dos fenômenos culturais da época, de maneira que esses são intrínsecos e inseparáveis do fazer e da análise literária. O aspecto sócio-histórico se figura como elemento inerente a arte literária, posto que ele não lhe seja estranho e, tampouco, está externo a ela. Assim, o discurso artístico se constitui não apenas do próprio objeto em si – como uma imanência -, porém das relações sócio-históricas, da situação de produção e recepção, das esferas de comunicação discursivas, das nuances apreciativas e valorativas do autor/interlocutor etc. É, pois, nesse sentido que os autores russos (1926, pp.2-3 ênfase dos autores) entendem a arte como um fenômeno social: A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico afetando de fora a arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro dela. Não se trata de um elemento estranho afetando outro, mas de uma formação social, o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, é apenas uma variedade do social. A teoria da arte, conseqüentemente, só pode ser uma sociologia da arte. Nenhuma tarefa “imanente” resta neste campo (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, pp. 2-3 ênfase dos autores). Bakhtin/Volochinov consideram, assim, a literatura pela ótica cultural e social, pois, a arte literária situa-se no âmbito das expressões simbólicas, e, como tal, é um elemento imprescindível na constituição da civilização. No contexto brasileiro, temos o estudioso Antônio Cândido, um renomado professor e crítico literário cuja obra mais conhecida é Formação da literatura brasileira (1959). É reconhecido e respeitado no Brasil, sendo referência obrigatória para os estudiosos brasileiros no campo das artes literárias. análoga a como na ontologia dialógica de Bakhtin um ato ético (postupok) era o acontecimento de encontro entre o eu e o outro Ser” (BUBNOVA, 2009, p.41 ênfase da autora). 27 Assim como Bakhtin, Cândido vê a literatura a partir da abordagem sociológica mediada por outro sistema maior, a cultura. Cândido se contrapunha aos seus antecessores que tomavam a literatura como um simples documento histórico da sociedade (uma historiografia literária). O pesquisador brasileiro constrói seu método dialético de análise a partir das relações complexas entre a literatura e a sociedade, a literatura e outras artes, o escritor e o público, o conteúdo e a forma, observando, ao mesmo tempo, as relações entre os elementos internos e externos da obra literária. Para tanto, o crítico literário reúne conhecimentos das diversas áreas, sociologia, história da literatura, psicologia, direito e crítica literária. No ensaio intitulado O direito à literatura (2011), o brasileiro compreende essa como um bem essencial, incompressível16, para a humanização do ser humano. O autor afirma que é inerente ao homem a prática de fabulação, de criação de seres mitológicos, de imaginação e invenção de estórias. Para ele, “não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação” (CÂNDIDO, 2011, p.176). É na perspectiva de imaginação e invenção de estórias que esta pesquisa compreende e defende a leitura de textos literários como forma de humanização do sujeito. Antônio Cândido, em defesa de uma sociedade mais igualitária, afirma que o acesso aos bens culturais é um direito humano e a literatura “[...] é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente” (CÂNDIDO, 2011, p.177). Segundo o autor (2011), os sujeitos das camadas populares não leem a literatura considerada erudita, porque a acessibilidade aos livros não é democratizada17. O que há, de acordo com o autor, é uma privação desses bens culturais, indispensáveis e essenciais para a constituição e existência do ser humano. Antônio Cândido se fundamenta na distinção do sociólogo francês Louis Joseph Lebret entre bens compressíveis (essenciais) e bens incompressíveis. Segundo o qual, “são bens incompressíveis não apenas os que asseguram sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde (...); e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, a arte e a literatura?” (CÂNDIDO, 1995, s/p). 16 Antônio Cândido discutiu tal questão no ano de 1988 e vemos que só agora surge um programa (PNLL) governamental em caráter de lei que abarque a democratização do acesso ao livro literário. 17 28 O autor ainda argumenta que a literatura só estará nessa categoria, isto é, será encarada como bem incompressível, se a fruição da arte e literatura corresponderem a uma necessidade profunda do ser humano. O ser humano não consegue viver sem nenhum contato com o universo fabuloso ou ao menos vivenciar algum momento em que contemple o universo fantástico. Para ele, o simples ato de sonhar enquanto dormimos, por exemplo, asseguraria a presença indispensável desse universo. A criação ficcional ou poética é inerente ao ser humano, já que está presente em cada um de nós, escolarizados ou não, eruditos ou não. Tal ocorrência é notória nos poemas, nos causos, nos contos, nas canções populares, nos cordéis etc. A manifestação da criação literária se dá desde o devaneio amoroso até a prática assídua de ver telenovelas ou na leitura despreocupada de um conto, por exemplo. Ainda para o autor (2011, p.182), o caráter humanizador da literatura se efetiva como: [...] um processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna, mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CÂNDIDO, 2011 [1988], p.182). Nesse sentido, a literatura se vale de coisas concernentes à vida, como a história, a religião, a filosofia, a ciência etc, ou seja, o fazer literário inclui o social, o histórico, o religioso, dentre outros, a fim de criar e contrapor ideologias, verdades, valores, crenças. Portanto, o fazer literário dialoga com as coisas atinentes à vida humana como o amor, as paixões, as guerras, a miséria, dentre outros. O trabalho que o escritor Dostoiévski fez com a linguagem ao escrever uma obra como Os irmãos Karamasov é completamente diferente do que o jornalista Dostoiévski fazia no jornal, por exemplo. O literário, portanto, não é pronto e previsível, não é estático e acabado, mas inusitado, inacabado, polissêmico, questionador, libertador e insólito. Isso só é possível porque, como toda arte, a literatura tem o poder de falar em nós, no mais profundo do nosso ser, de maneira tal que nos identificamos com os personagens; envolvemos-nos com as estórias, as brigas, as intrigas; fazemos inter- 29 relações com outros textos ou contos que ouvimos no quotidiano; refletimos acerca dos atos complexos da existência humana; faz-nos ficar horas e horas vidrados no livro; possibilita um mundo diferente daquele no qual estamos inseridos; leva-nos a imaginar lugares, cidades, ruas; faz-nos sentir dor, alegria, compaixão, revolta por algum personagem ou situação; promove ascensão intelectual e social, entre outros. Talvez, por isso, Petrilli (2010, p.41 ênfase adicionada) tenha asseverado que “[...] a linguagem literária é o lugar em que mais se destacam e se manifestam as características vivas do comunicar-se, a plurivocidade da ‘palavra’, seu ‘plurilinguismo dialogizado’ [...]”. A literatura tem caráter humanizador porque o autor de uma obra organiza as palavras num todo articulado, de maneira que elas se comunicam ao nosso “espírito” e o leva, a priori, a se organizar e, depois, a organizar o mundo (CÂNDIDO, 2011), ou seja, o autor organiza o material verbal, a fim de que haja uma superação desse que é determinado por um arranjo especial das palavras, o qual gera sentido. Através da literatura, o autor manifesta os sentimentos, as expressões e as visões apreciadas e valoradas socialmente do universo dos indivíduos e da sociedade, isto é, o texto literário constitui-se a partir da interrelação entre autorcriador e interlocutor-contemplador. Entendemos, a partir disso, que a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, uma vez que pode focalizar as situações de restrição dos direitos, a miséria, a mutilação espiritual de determinada comunidade etc. Cereja (2004) afirma que, para esses pensadores, Bakhtin e Cândido, a literatura é resultante da confluência de várias forças, culturais, sociais, estéticas, linguísticas, históricas, bem como “da influência da própria tradição literária, que implica uma concepção não necessariamente linear e cumulativa de tempo” (CEREJA, 2004, p. 223). Acreditamos, portanto, que os teóricos Mikhail Bakhtin e Antônio Cândido, apesar de não dialogarem diretamente entre si, dialogam através de suas obras, sobretudo no ensino de literatura no Brasil no final do século XX e início do XXI. Por isso, aproximá-los é aprofundar o olhar sobre a literatura, a sociologia da cultura, assim como repensar o ensino da literatura (do letramento literário) na escola, não pelo viés da tradição, ou seja, dos estudos das escolas literárias lineares e “sequenciais” (romantismo, realismo, modernismo, etc.), mas, sobretudo, pelo viés da esfera literária e dos gêneros discursivos literários, conforme sugerido nos 30 Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (contos, crônicas, poemas, etc.) ou destacado pelo Programa Nacional de Biblioteca Escolar. Portanto, a presente pesquisa compreende o texto literário como um espaço sócio-historicamente constituído através dos elementos culturais e ideológicos de uma determinada sociedade. Partiremos, assim, da concepção de que o texto literário é um lugar de confronto de vozes, de emancipação e humanização do ser humano. Na próxima seção, discutiremos sobre a concepção de leitura à luz da teoria bakhtiniana, relacionando-a com a dos documentos oficiais e com a do letramento literário. 1.3 Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o letramento literário 1.3.1 A concepção de leitura nos PCN Ao observarmos a concepção de leitura presente nos PCN: “a leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto [...]” (BRASIL, 1998, p.69), vemos que essa se baseia fortemente na acepção bakhtiniana de compreensão ativa. Para Bakhtin (2003[1952-1953/1979]), a compreensão ativa se alicerça no pensamento basilar de que todo enunciado se constitui de uma compreensão e resposta, porque “toda compreensão é prenhe de resposta” (BAKHTIN, 2003 [19521953/1979], p. 271) e todo sujeito tem uma natureza responsiva. O ato de compreensão ativa é entendido como um ato de resposta, porque o sujeito sóciohistórico é um ser que age na vida e a modifica e transforma, recriando o objeto contemplado num novo contexto – o contexto potencial da resposta (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006[1929]). Para o pensamento bakhtiniano, a palavra chega ao falante como parte das infinitas enunciações (enunciados) de outros sujeitos situados socialmente que já estão na vida, posto que Bakhtin compreende o leitor ou “o ouvinte como alguém que só pode compreender como aquele que responde e replica de maneira ativa” (BAKHTI, 1993 [1934-35/1979], p.89). É na interação viva que nos importamos ou não com o que o outro diz, ponderamos, discordamos, apreciamos ou julgamos as palavras de outrem, as declarações, os apontamentos etc. A compreensão ativa é, 31 assim, a prática de recuperação do ato, da atividade de produção do enunciado concreto. Deste modo, a compreensão ativa, somando-se àquilo que é compreendido no novo círculo do que se compreende, determina uma série de inter-relações complexas, de consonâncias e multissonâncias com o compreendido, enriquece-o de novos elementos (BAKHTIN, 1993[1934-1925], pp.90-91). A palavra dita pelo locutor, portanto, é coberta de tonalidades e nuanças valorativo-apreciativas, pois é assim que ela se comporta na enunciação viva: sempre carregada de matizes, valorada ou desprestigiada, boa ou má, importante ou trivial etc (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010[1929]). Como sabemos a palavra é viva e, com ela, os sentidos engendrados não se encontram na língua, no sistema linguístico, na palavra isolada, porém na vida real, isto é, nas interrelações entre os sujeitos situados social e historicamente num determinado tempo e espaço e nas diferentes esferas de interação humana. Toda enunciação viva pressupõe uma réplica ativa de outrem, quer dizer, “todo discurso é orientado para a resposta” (BAKHTIN, 1993 [1934-35], p. 89). Nesse sentido, o pensamento bakhtiniano toma o sujeito como ser humano ativo e responsável, ou seja, o ser que age na vida é o centro das discussões bakhtinianas. O sujeito, portanto, faz parte do processo/produto dialógico de compreensão da linguagem, do sentido engendrado numa enunciação. Isso significa dizer que o sujeito socialmente constituído não é alguém que compreende apenas passivamente a enunciação, pelo contrário, o sujeito participa ativamente do diálogo corrente em que a sua atuação é responsiva e responsável. Paes de Barros (2005), embasada teoricamente no pensamento bakhtiniano, concebe a compreensão responsiva ativa como uma “compreensão no sentido da evolução é o que se acha na base da responsividade, no processo de interação verbal” (PAES DE BARROS, 2005, p. 45 ênfase adicionada). Assim como a autora (2005), entendemos a compreensão ativa como um ato em que os sujeitos envolvidos em determinada interação verbal participam ativamente, de maneira tal que enriquecem e acrescentam novos elementos ao compreendido. Portanto, esses sujeitos não são meros “ouvintes” passivos, receptivos que apenas dublam e reproduzem o discurso verbal, a esse fenômeno Bakhtin chamou de compreensão passiva. Assim como Bakhtin (1993[1934-35/1979]), Paes de Barros (2005) concebe a compreensão passiva como um ato de reconhecimento dos 32 componentes linguísticos cuja prática de leitura é entendida apenas como decodificação e repetição dos elementos do texto, ou seja, não há acréscimo de novos elementos, de outras ideias ou refutações ao já dito. A compreensão passiva está no campo da decodificação ou decifração da leitura, por isso, inferimos que tal prática figura como uma leitura identificativa: identificar o sinal, o sinal escrito. Ou ainda de identificação dos traços fônicos, gramaticais e outros relevantes para esse tipo de compreensão, a qual pode ainda se apresentar ao sujeito como um item de significado do dicionário ou da gramática. Bakhtin (1993[1934-35]) toma a compreensão passiva como um minimum de compreensão, a saber: Temos em vista não o minimum lingüísticos abstrato da língua comum, no sentido do sistema de formas elementares (de símbolos lingüísticos) que assegure um minimum de compreensão na comunicação prática. Tomamos a língua não como sistemas de categorias gramaticais abstratas [...] (BAKHTIN,1993[1934-35], p.81 ênfase adicionada). A compreensão passiva entende que a enunciação será sempre idêntica, única e não reiterável pela qual, em cada enunciação, podemos encontrar os elementos idênticos a enunciações anteriores que são iguais para todas as enunciações futuras. Nessa perspectiva, se “consideravam o ouvinte como alguém que só pode compreender passivamente” (BAKHTIN, 1993 [1934-35], p. 89), isto é, o ouvinte ou o leitor é considerado como um ser que deve ficar repetindo oralmente, copiando ou oralizando algo já escrito. No gênero conto, a compreensão passiva pode ser detectada no momento da leitura em voz alta, quando o leitor é instigado a “recontar” pura e simplesmente a narrativa, sem o acréscimo de novos elementos - como dublagem ou ventriloquismo - ou numa soletração de alguma palavra difícil ou na busca da significação de algum termo do conto no dicionário ou no glossário sem muitos objetivos. Isso é decorrente de: “[...] toda uma corrente de práticas didáticas – ligada [...] à visão de leitura como extração de sentido literal do texto [...] que influenciou (e influencia) fortemente as práticas de leitura presentes até os nossos dias nas escolas” (PAES DE BARROS, 2005, p. 46). Nessa acepção, a compreensão passiva é vista como uma espécie de ventriloquismo, por assim dizer, momento em que o leitor dubla a fala alheia, como 33 quem reconta o que leu, de modo que pouco ou nada contribui para o entendimento, portanto, “não caminha para a evolução” (idem, 2005, p.47 ênfase da autora), ou seja, tal dinâmica não passa de uma reprodução, identificação e reconhecimento da voz alheia. Assim, como vimos desenvolvendo, a compreensão passiva, na perspectiva bakhtiniana, comporta-se como uma prática de decodificação, identificação ou cópia de informações. Dessa forma, a discussão travada aqui figura como pano de fundo para a nossa pesquisa, tendo em vista que assumimos a leitura como um processo criativo e dialógico, contrapondo-se, assim, a concepção de práticas didáticas relacionadas à visão de leitura como mera decodificação dos componentes linguísticos do texto que influenciou - e ainda influencia - as atividades de leitura nas escolas, como bem argumenta a autora supracitada. Nesse sentido, no ano de 1998, no contexto escolar brasileiro, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa de 3º e 4º ciclos (PCNLP) pela Secretaria de Educação Básica (SEB), há a recomendação da presença de outros "gêneros de circulação social" na escola; uma presença maior de gêneros das esferas jornalística, publicitária, midiática etc,cujo objetivo maior era a formação do leitor crítico e reflexivo, de maneira que ele possa exercer plena e democraticamente sua cidadania. Como podemos ver no quadro a seguir os PCNLP (BRASIL/SEF/MEC, 1998, p.54) sugerem para a prática de leitura de textos escritos e orais os seguintes gêneros do discurso: GÊNEROS PRIVILEGIADOS PARA A PRÁTICA DE ESCUTA E LEITURA DE TEXTOS Linguagem oral Linguagem escrita Literários Cordel, causos similares texto dramático canção De imprensa comentário radiofônico entrevista debate depoimento e Literários De imprensa conto novela romance crônica poema texto dramático notícia editorial artigo reportagem carta do leitor entrevista 34 charge e tira De divulgação científica exposição seminário debate palestra De divulgação científica verbete enciclopédico (nota/artigo) relatório de experiências didáticos (textos, enunciados de questões) artigo propaganda Publicidade Publicidade propaganda Quadro 01 - Prática de escuta de textos orais e leitura de textos escritos No que tange à literatura, os PCNLP (1998) asseveram que: O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento de singularidades e propriedade que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias (BRASIL, MEC, SEF, 1998, p. 27). Decorrente disso, os PCNLP (1998) sugerem que o trabalho com os gêneros da esfera literária pode auxiliar no processo de compreensão da própria linguagem literária e de seus usos e práticas sociais inerentes. O trabalho com os gêneros da esfera literária, como indicado nos documentos oficiais, possibilita um tratamento específico da literatura na sua própria esfera e não com um pretexto para estudar conceitos, noções de outras esferas discursivas (moral, econômica, geográfica etc) e tampouco como pretexto para o estudo da gramática. Além disso, o trabalho com os gêneros da esfera literária auxilia no desenvolvimento do letramento literário. Nesse sentido, o documento recomenda que o ensino deva “[...] contemplar, também, a diversidade que acompanha a recepção a que os diversos textos são submetidos nas práticas sociais de leitura” (BRASIL, 1998, p.26). Assim, o letramento literário amplia a visão e o entendimento de outras práticas leitoras sociais, como também pode colaborar para a apropriação de outras práticas de leitura. 35 Em nosso país, a escola é a principal agência de formação para um letramento literário para as crianças e adolescentes, sobretudo das famílias de baixa renda, ou seja, é função da escola promover a leitura de textos literários, visto que os jovens oriundos de bairros periféricos, às vezes, não têm acesso ao texto literário, especialmente o erudito, àqueles valorados pela sociedade em seu dia a dia. Como bem afirmam os PCNLP, “trata-se de uma educação literária, não com a finalidade de desenvolver uma historiografia [...]” (BRASIL,1998, p. 71). Por conseguinte, o trabalho com o letramento literário deve evitar o desenvolvimento de estudo da historiografia literária, isto é, das escolas ou períodos literários ou tomar a literatura para os estudos biográficos de algum autor literário. O letramento literário deve contemplar “uma educação literária [...] com a finalidade de desenvolver [...] propostas que relacionem a recepção e a criação literária às formas culturais da sociedade [com vistas a] ampliar os modos de ler dos alunos [...]” (BRASIL,1998,p.71). Paulino e Cosson (2009, p.67), em um artigo 18 intitulado “Letramento literário: para viver a literatura dentro e fora da escola”, definem letramento literário como “o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos”. Os pesquisadores argumentam que tomar o letramento literário como um processo significa dizer que tal fenômeno se dá em um estado constante de transformação, em um continuo, ou seja, não é uma “habilidade que se adquire como aprender a andar de bicicleta” (idem). Outro aspecto importante acerca do letramento literário é que ele não começa e nem termina na escola, embora acreditemos que a escola tenha o dever de promovê-lo. De acordo com os mesmos autores (2009, pp. 68-69): A singularidade que faz do letramento literário um tipo especial de letramento se efetiva por meio de um processo constituído de dois grandes procedimentos. O primeiro deles é a interação verbal intensa que a apropriação da literatura demanda. A leitura e a escrita do texto literário operam em um mundo feito essencialmente de palavras e, por essa razão, uma integração mais profunda com o universo da linguagem se torna necessária [...] o segundo procedimento, que se efetiva dentro do primeiro e dele não pode ser dissociado, é o (re) conhecimento do outro e o movimento de desconstrução/ construção do mundo que se faz pela experiência da literatura [...] (PAULINO&COSSON, 2009, pp.68 – 69). Cf. Zilberman, Regina e Rösing, Tania M. K. (Orgs). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. 18 36 O letramento literário é compreendido como um ato de apropriação, isso é, tornar o literário próprio, incorporá-lo, transformá-lo e deixar-se ser transformado. Tal apropriação é sócio-individual, tendo em vista que um mesmo texto gera leituras e sentidos diferentes, isso porque dependem das condições, dos interesses, dos objetivos, que motivam a leitura e as experiências a partir das leituras de mundo de cada leitor, ou seja, na prática literária não há espaço para apenas um sentido, uma interpretação, uma “resposta certa”. Ler textos literários é uma experiência de imersão nas coisas que estão além, é ainda imergir num mundo do fantástico, insólito e maravilhoso. Dessa forma, o aspecto polissêmico da literatura é um espaço de plena liberdade para o leitor. “Daí provém o prazer da leitura, uma vez que ela mobiliza mais intensa e inteiramente a consciência do leitor; sem obrigá-lo a manter-se nas amarras do cotidiano” (BORDINI & AGUIAR, 1988, p.15), posto que o literário pode fornecer ao leitor uma participação ativa na construção dos sentidos e, por conseguinte, leva-o a reexaminar e reavaliar a sua própria visão e percepção da realidade concreta. Sendo assim, o mundo criado pelo autor é aceito pelo leitor como um mundo possível para si. Na obra literária, um mundo possível se constrói porque os objetos e os processos nem sempre são totalmente delineados, portanto, esse mundo deixa lacunas e “vazios” que são “preenchidos” pelo leitor, esse entra num estado de desestabilização que lhe proporciona a possibilidade de reestruturar-se. Nessa dinâmica, há um cruzamento de horizontes: o do leitor com o do(s) personagem(s); do leitor com o do autor e com o conto que suscitam questões e dão respostas a cada um a seu modo e de acordo com seu momento sócio-histórico. Segundo Aguiar (2001), isso se deve ao fato de que a leitura literária “é simbólica, ela permite leituras plurais, dando-se à interpretação sempre de um modo novo, pelas possibilidades de combinações dos signos” (AGUIAR, 2001, p. 249). 1.4 A escolarização do texto literário A escola na Antiguidade era destinada apenas aos que pertencessem à elite, isso significa dizer que a maior parte da população, vinculada à economia rural, afastada dos centros urbanos e governamentais, ficava de fora de seu espaço (ZILBERMAN, 2009). 37 No período medieval, os indivíduos pertencentes à sociedade cristã ficaram à margem da escrita, da leitura e da escola. Conforme Zilberman (2009), “a situação não se altera significativamente durante a Idade Média, que restringiu a vida educacional, cultural e artística às atividades nos mosteiros dos cristãos [...]” (ZIBERMAN, 2009, p.20). É com a invenção da tipografia que as mudanças passam a ser significativas. É mais ainda a partir do séc. XVIII que essas mudanças começam a se mostrar com mais intensidade e significação (ZILBERMAN, 2009). A autora afirma que é nesse período que “a sociedade europeia passa a viver sob o que Raymond William denominou a revolução duradoura, expressa em diferentes níveis”, como econômico, político e cultural19. É nesse momento que se verifica o impacto das novas tecnologias de comunicação que, por exemplo, “propiciam a multiplicação dos meios de reprodução mecânica, facultando a difusão dos objetos culturais, antes privilégio de uma elite social e intelectual” (ZILBERMAN, 2009, p.21), bem como a ampliação do atendimento escolar às classes populares. Assim, a prática de leitura e o papel da escola passam a ser compreendidas como uma atividade relevante e valorizada pela sociedade dessa época. O pensamento vigente da época era que a habilidade de ler e o contato constante com a cultura resultariam na emancipação intelectual do indivíduo e na construção de suas ideias próprias. O pensamento iluminista via o livro e a leitura como condição sine qua non para a expansão do saber, assim como para a emancipação intelectual. Na realidade brasileira, a escola pública nasceu a partir do discurso de levar as letras até o povo, a fim de promover uma maior igualdade social. Segundo Soares (2001), esse discurso em favor da democratização do saber, da escola é antigo. Rui Barbosa, por exemplo, em 1882, já denunciava a precária educação da época e anunciava propostas de multiplicação de escolas, bem como melhoria no ensino. Todavia, embora tal instituição tenha surgido a partir dessa suposta ideia de igualdade social, logo “tornou-se mais um aparelho de dominação das classes populares, traindo o seu objetivo inicial” (AGUIAR&BORDINI, 1988, p. 10). Cf. WILLIAMS, Raymond. The long revolution. London: Pelican, 1980. Apud ZILBERMAM, Regina. A escola e a leitura da literatura. In: _____; ROSING, Tania (Orgs). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. 19 38 Provavelmente, essa mudança por parte da escola se deva ao fato de que ela surgiu por iniciativa e para os interesses da classe burguesa emergente. Apesar de a escola ter esse caráter contraditório, ela continua sendo a principal agência de prática de leitura/letramentos dos alunos, em especial de alunos das escolas públicas. A função da escola é, assim, proporcionar aos alunos o contato e a apropriação de variados tipos de letramentos - como o digital, o literário etc - e, concomitantemente, o domínio da leitura e da escrita, a fim de que esses discentes saibam comunicar-se e posicionar-se criticamente nas diversas situações e instâncias sociais. Somado a isso, é de suma importância que a leitura literária assuma um lugar especial na aula de língua portuguesa, pois, como já dissemos em outro momento, a literatura tem o poder de dizer o que somos enquanto sujeitos duma dada comunidade, de tal modo que nos incentiva a desejar expressar o mundo por nós mesmos. Ademais, para que a leitura literária cumpra o seu papel humanizador, é necessário que os rumos da escolarização dos textos literários mudem. Contudo, sabemos que a escola brasileira apresenta uma crise substancial no que tange a prática da leitura - a julgar pelos diagnósticos de procedência diversa (PISA, SAEB). E para Zilberman (2009, p.28) os conflitos que acarretam tal crise são de várias ordens: Começam no ambiente da administração da educação, disseminada entre órgãos relacionados aos níveis federais, estaduais e municipais, sem que esses busquem afinar-se, e estendem-se à política de remuneração e qualificação dos professores, à conservação física dos prédios, incluindo-se salas de aula, bibliotecas e equipamentos de ensino [...] (ZILBERMAN, 2009, p.28). Além de todas essas questões, que desencadeiam outras, a não proficiência em leitura por parte dos alunos tem sido um grande problema para o ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa. Atualmente, por exemplo, a escola tem enfrentado grande dificuldade em encontrar uma maneira de conciliar esses dois “mundos”: a linguagem cujo suporte é o impresso (o livro) e a linguagem multimidiática (as telas de computador, de cinema, de celular, de televisão, etc.). Assim, entendemos que a relação escola e literatura não é harmoniosa, “[...] uma vez que a educação literária é um produto do século XIX que já não tem razão de ser no século XXI [...] [somado a força da tradição e da inércia curricular]” 39 (COSSON, 2007, p.20), pois em nossa sociedade contemporânea, há uma multiplicidade de textos, de imagens, de linguagens e espaços interativos de ordens várias e uma grande diversidade de manifestações culturais. Esses são alguns argumentos que levam algumas pessoas a recusarem a presença da leitura literária no âmbito escolar. Paulino (2008, p. 65) afirma que: As motivações para a leitura literária teriam que ultrapassar esse contexto de urgência e ser encaradas em nível cultural mais amplo que o escolar, para que se relacionem à cidadania crítica e criativa, à vida social, ao cotidiano, tornando-se um letramento literário de fato, ao compor a vida cotidiana da maioria dos indivíduos (PAULINO, 2008, p.65). A autora (2008) defende um letramento literário para além dos muros da escola, de maneira que esse letramento possa se refletir na vida do aluno de maneira que o auxilie em sua formação enquanto cidadão. Atualmente, os suportes pelos quais a literatura é veiculada são bastante diversos. Eles são flexíveis, mutáveis e se adaptam às novas condições sóciohistórico da sociedade vigente. Nos dizeres de Zilberman (2009), os suportes da literatura na Antiguidade: [...] migraram da argila, utilizada pelos sempre lembrados sumérios, para o papiro dos egípcios e para o pergaminho de gregos e latinos, até chegar ao papel na modernidade. Atualmente, podem alojar-se na tela do computador ou na lâmina do CD, como já passaram pelo plástico do disquete e pelas fibras óticas da rede virtual, processo compartilhado pela permanência do formato do códice, representados pelos livros impressos em matéria de procedência vegetal (ZILBERMAN, 2009, p.29). O relevante não é por onde o texto literário é viabilizado ou em qual suporte se encontra, mas se o que o aluno está lendo leva-o a refletir acerca de sua condição humana. Sabemos que a leitura literária não se configura de maneira fechada, pelo contrário, é marcada pelos vazios e pelo (in)acabamento das situações e das figuras propostas, de maneira que suscita a intervenção e participação daquele que lê. Portanto, “[...] a literatura instaura-se no trabalho com a linguagem, reveladora de pistas para a ideação da vida não tal qual ela é, mas como ela pode ser. Daí a sua perenidade” (AGUIAR, 2007, p.18). 40 No que tange a escolarização do texto literário, Soares (2001) assevera que a escola se apropria da literatura, tomando-a para si, escolarizando-a, didatizando-a e pedagogizando-a, a fim de atender aos seus próprios objetivos, tornando, assim, a arte literária uma literatura escolarizada e, portanto, fugindo de sua função primeira, permitir a fruição literária. O trabalho que a escola tem feito com o texto literário, por muitas vezes, é de modo fragmentado, engessado ou quando não, uma leitura já pronta com a resposta certa. Como temos dito, a expressão escolarização da literatura ou do texto literário remete a ideia de tornar literário o escolar – a literalização escolar -, isso se deve pelo fato de que o texto literário continua sendo apresentado com um caráter educativo, de formação, de aprendizado. A título de exemplificação temos a obra A menina do nariz arrebitado (1921) de Monteiro Lobato que, quando publicada, trazia em sua capa o seguinte inscrito: “livro de leitura para as segundas séries”, ademais, o livro foi anunciado como “um novo livro escolar aprovado pelo governo de São Paulo”. Assim, entendemos que, em boa medida, a escolarização do texto literário foi acompanhando o ritmo do crescimento e do desenvolvimento da educação escolar. Padilha (2005) nos alerta que a escolarização, de certa forma, é decorrente “das diferentes concepções de língua, linguagem, escola, sujeito e mundo que cercam o processo de produção dos manuais didáticos [e, sobretudo, a prática de sala de aula]” (PADILHA, 2005, p.2). O texto literário, portanto, não é estudado em sua particularidade, em suas características específicas. A escolarização ou didatização do texto literário é um processo natural, assim como todo conhecimento que chega a escola, uma vez que não há como a escola existir sem a escolarização, caso contrário fugiria de sua própria essência. A instituição escola está indissociavelmente ligada à constituição dos conhecimentos que, quando escolarizados, se corporificam e se formalizam em currículos, matérias, disciplinas, programas, metodologias. Por isso, não tem como evitar que a literatura – assim como qualquer outra arte ou ciência - se escolarize, pois, como afirma Soares (2001, p.21) “não se pode criticá-la, ou negá-la, porque isso significaria negar a própria escola”. Entretanto, o que ocorre é que a escolarização, consoante com a autora (2001), não tem se realizado adequadamente no cotidiano da escola. Para a autora, o que se deve criticar não é a escolarização da arte literária, 41 [...] mas a inadequação, a errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigurao, desvirtua-o, falseia-o (SOARES, 2001, p.22). Para Walty (2001), o discurso didático tem o caráter de esvaziar e congelar em definições e classificações o texto literário com o objetivo de ensinar regras morais, discutir acerca de drogas, aborto ou gravidez na adolescência, bem como ensinar regras gramaticais etc. Tal procedimento, analisado por Magda Soares e por ela nomeado de “escolarização inadequada”, deforma a formação do leitor, levandoo ao afastamento do texto literário, estabelecendo, assim, um abismo entre (provável) leitor e literatura. Nos dizeres de Walty (2001, pp.51-52), não é a escola que mata a literatura, mas o excesso de didatização, burocracia do ensino, acoplado a regras preestabelecidas, a normas rígidas e castradoras. Em suma, o uso inadequado do texto literário, fragmentado, descolado, manipulado, levaria à sua subordinação ao jugo escolar (WALTY, 2001, pp.51-52). Neste sentido, percebemos o quão difícil é para a escola cumprir o seu papel de formadora de alunos leitores e apreciadores de textos literários. Por isso, é necessário que o texto literário circule na esfera escolar na sua integridade, que seu acesso seja mais democratizado e viabilizado na escola e fora dela. É preciso que haja mais bibliotecas, espaços e projetos de leitura; mais campanhas de incentivo à leitura, além da promoção de eventos artísticos (teatro, cinema, feiras culturais, etc.). E, sobretudo, que no espaço escolar haja apreciadores de textos literários, isto é, mediadores que incentivem e falem de suas experiências enquanto leitores. Tendo em vista as recomendações dos Parâmetros Curriculares (1998), que tomam o letramento literário a partir dos gêneros do discurso, no próximo capítulo, trataremos desses, tomados como instrumentos de ensino-aprendizagem de língua e literatura (Bakhtin (1934/35), Vygotsky (1930) e Schneuwly (1994/2004)). Além disso, discorreremos acerca do gênero literário conto, objeto deste estudo. 42 CAPÍTULO 2 Bakhtin e Vygotsky: uma abordagem enunciativo-discursiva do ensino-aprendizagem através dos gêneros discursivos Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo de domínio inicial do discurso) e terminando na assimilação das riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros materiais semióticos). (Bakhtin, 2010 [1970 – 1971]). Neste capítulo, discutiremos sobre a questão do gênero do discurso à luz da teoria bakhtiniana e alguns preceitos vygotskiano, os quais embasarão a nossa proposta didática de leitura de contos. Além desses aspectos, apresentaremos algumas releituras de pesquisadores das referidas teorias. 2.1 O gênero do discurso no Brasil Historicamente, o estudo do gênero pertencia, tradicionalmente, à retórica e à literatura. Mikhail Bakhtin e o Círculo, ao relerem e discutirem acerca dessa tradição de gêneros em que apenas os literários e retóricos eram estudados e valorados, desconstroem e resignificam a ideia de gêneros, contrapondo-se ao formalismo russo que vigorava naquela época. Bakhtin e o Círculo não tomam apenas os literários ou retóricos como objetos de estudo, porém reclamam a contemplação de vários gêneros do discurso de maneira a focar a natureza dialógica da linguagem20. Conforme Barbosa (2001, p.23), “todo e qualquer texto lido ou escrito, falado ou ouvido, enfim, tudo que é dito ou dizível pertence a algum gênero, por mais que, por vezes, não se saiba designálo ou reconhecê-lo”. Portanto, com essa nova visão, os pensadores russos dão início a uma nova concepção de gênero nos estudos da linguagem. Essa acepção tornou-se notória no contexto brasileiro. Inicialmente, nas universidades públicas, em meados da década de 90, no âmbito acadêmico, depois, nas orientações curriculares de alguns documentos oficiais da educação, por exemplo, os PCNLP (BRASIL,1998). Com isso, reivindica-se, na cena acadêmica 20 Para maiores informações cf. Padilha (2005). 43 (congressos, dissertações, teses, livros, grupos de trabalho etc), que o objeto de estudo na aula de Língua Portuguesa seja o gênero de discurso. É interessante relembrarmos que antes do gênero, o texto era tomado como base de ensino-aprendizagem de língua materna no ensino fundamental – isso desde a década de 1980. Temos como exemplo, mas não único, um livro muito importante nesse momento: “O texto na sala de aula: leitura e produção”, organizado pelo pesquisador João W. Geraldi em 1984. Segundo Rojo e Cordeiro (2004), o texto foi tomado “nessas quase três décadas, primeiramente como um material ou objeto empírico que, em sala de aula, propiciava atos de leitura, de produção, de análise linguística” (ROJO&CORDEIRO, 2004, p.8). Mais tarde, o texto é utilizado como suporte para o desenvolvimento de habilidade e estratégias de leitura, interpretação de texto, redação, no entanto, segundo as autoras, “o texto ainda não se constitui propriamente num objeto de estudo, mas num suporte para o desenvolvimento de estratégias necessárias ao seu processamento” (idem). Portanto, o texto que deveria ser o objeto de ensino se torna, na verdade, um pretexto para ensinar a gramática mecanicamente, ou seja, por exemplo, em exercícios de completar colunas, fazer cópias, modelos de redação. O mesmo fato acontece no emprego dos textos literários. Assim, a tipologia – narração, descrição e dissertação – passa a ser propagada pela linguística textual. Noções como tipos de textos, coesão e coerência começam a invadir a sala de aula e os cursos de formação continuada. Passa-se a ensinar, portanto, as formas globais e locais dos textos. É esse ensino de propriedades e de generalização dos elementos constitutivos do texto que deu origem a “gramaticalização dos eixos do uso” (ROJO&CORDEIRO, 2004, p.9), de maneira que o texto torna-se pretexto para o ensino da gramática normativa, bem como das noções da gramática textual, em especial das tipologias textuais. Segundo Barbosa (2001), [...] não podemos ensinar um cenário em geral, um problema ou um tipo de resolução em geral e, no limite, não podemos ensinar narrativa em geral, porque, embora possamos classificar vários textos como sendo “narrativos”, eles são enunciações diversas e, portanto, concretizam-se em formas diferentes – gêneros-, que possuem diferenças específicas (BARBOSA, 2001, p.53 ênfase da autora). 44 Nessa perspectiva, fazia-se abstração das condições de produção e de circulação dos textos, acarretando numa leitura de extração de informações ao invés de uma leitura interpretativa, crítica e reflexiva. A produção textual era encaminhada para a aprendizagem das formas e dos conteúdos gramaticais, pois se acreditava que “quem sabe as regras sabe proceder”. O contexto de produção e recepção e as finalidades do texto, por exemplo, não eram levados em consideração no momento da leitura e da escrita. Temos visto que, em boa medida, algumas escolas públicas brasileiras não têm conseguido formar leitores proficientes, pois exames (SAEB, PISA) e os dados preliminares desta pesquisa têm apontado que os alunos apresentam apenas as capacidades mais básicas de leitura, como extrair informações de textos relativamente simples. Essas questões exigem uma “virada discursiva ou enunciativa no que diz respeito ao enfoque dos textos e de seus usos em sala de aula” (ROJO&CORDEIRO, 2004, p.10), ou seja, o texto e a língua em uso, conforme suas condições de produção, e os gêneros como objetos de ensino-aprendizagem. Essa mudança passa a ecoar, também, nos programas e propostas curriculares oficiais do nosso país (PCN 1997/1998,1999), como já dito alhures. Com isso, a noção de gênero (discursivo) passa a ser incorporada, principalmente, pelos PCNLP. No aspecto do ensino da literatura, os PCNLP (1998, 1999) recomendam que o trabalho com gêneros literários seja feito através da recuperação de sua esfera de produção, circulação e recepção. Um dos aspectos que se levanta, nesses documentos, é a implicação do uso dos textos literários não mais como pretexto para o ensino da gramática. Nossos dados preliminares, no entanto, têm demonstrado que o ensino dos gêneros discursivos tem tomado o mesmo rumo que o do texto. Ou seja, o gênero também vem sendo tratado como pretexto para ensinar apenas as características estruturais (a forma composicional) dos gêneros, pois esse elemento é mais facilmente reconhecível, logo, de fácil identificação. Portanto, ainda impera o ensino das formas (os aspectos textuais) em detrimento do conteúdo temático, do estilo, mas, principalmente, da recuperação das condições de produção, da esfera de produção, circulação e recepção; da relação estabelecida entre os interlocutores, do contexto ideológico e cultural, assim como da apreciação valorativa instituída pelos interlocutores. Acreditamos que um trabalho 45 que não contemple esses três elementos, acrescidos desses outros aspectos, não é desenvolvido numa visão enunciativo-discursiva de gênero. 2.2 O gênero do discurso: a tríade e outros aspectos Certamente, o pensamento acerca do gênero do discurso é um dos mais complexos, dentre tantos outros que Bakhtin e o Círculo cunharam, pois o descrevem como sendo, ao mesmo tempo, relativamente estável e mutável, o que nos parece, a priori, paradoxal e contraditório. Para nós, contraditório seria se os autores russos argumentassem que os gêneros são formas rígidas, prescritivas, estanques, não evolutivas na história do homem em sociedade. Para os pensadores russos, os gêneros são vistos pela ótica da realidade do sujeito situado social, histórica e culturalmente, tomando a linguagem na corrente de enunciados na vida. Para Bakhtin e o Círculo (2010[1952-1953]), não temos como dissociar a linguagem da vida, pois ela é o signo ideológico imprescindível para a comunicação real entre os sujeitos, assim como para a constituição dos costumes culturais de determinada sociedade. Segundo Bakhtin (2010[1952-1953/1979]), “os gêneros do discurso, comparados às formas da língua, são bem mais mutáveis, flexíveis e plásticos; entretanto, para o indivíduo falante eles têm significado normativo, não são criados por ele, mas dados a ele”. (BAKHTIN, 2010[1952-1953/1979], p.285). O autor russo afirma que os gêneros do discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2010 [1952-1953/1979], p.262). Outro pensador do Círculo, Medvedev (2012[1928]), refere-se ao gênero como “uma totalidade típica do enunciado”, isto é, “uma forma típica do todo da obra, do todo do enunciado” (MEDVEDEV, 2012[1928], p. 193), ou seja, tem um caráter estável, dinâmico, cujos principais aspectos são: a) cada gênero possui uma linguagem própria, um tom; b) não é rígido em sua normatividade, mas plástico, dinâmico e concreto; c) apresenta o novo (a singularidade) entrelaçado ao mesmo (a generalidade), haja vista que não é abstrato, embora apresente certa regularidade. Contudo, ele está no campo do vir a ser (SOBRAL, 2009). A estabilidade do gênero do discurso é decorrente dos traços específicos que cada gênero conserva e, por conseguinte, é o que o leva a ser identificado como esse ou aquele gênero. Já a mutabilidade do gênero do discurso é fruto da 46 constante transformação, mudança e renovação da sociedade, do sujeito, dos interlocutores, da história, das interações, dos valores e das apreciações correntes, bem como das condições de produção, das esferas de produção, circulação e recepção etc. Por isso, Bakhtin (1981[1929]), em “Problemas da poética de Dostoiévski”, assevera que o gênero discursivo sempre recorda o seu passado, apesar de viver do seu presente; é uma constante “festa da renovação” que reclama o caráter de novidade e cuja natureza é de igual maneira renovadora e conservadora. O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. É verdade que nele essa arcáica só se conserva graças à sua permanente renovação, vale dizer, graças à atualidade. O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. [...] o gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu passado, o seu começo (BAKHTIN, 1981 [1929], p. 91 ênfase do autor). Há casos em que um gênero se transforma ou agrega-se a outro(s). O gênero carta pessoal, por exemplo, vem, aos poucos, sendo substituído pelo gênero e-mail. É certo que o gênero ofício é muito mais estável e rígido do que uma resenha, por exemplo. Os gêneros evoluem, transformam-se, emergem socialmente, são absorvidos por outros ou somados a outros. Segundo Bakhtin (1993[1934-1935/1975]), isso se deve a duas forças opostas: força centrífuga e força centrípeta. A primeira força é desestabilizadora, engendrada pelas mudanças, pelos conflitos, embates sociais, históricos e ideológicos, bem como pelas diferentes linguagens, movimentos e signos sociais. Ao passo que a segunda é estabilizadora, cuja função é buscar garantir a unidade e padronização da língua. Os gêneros existem no fluxo das forças sócio-discursivas da vida coletiva. É na interação entre os sujeitos situados em esferas de uso da linguagem que os gêneros são apreendidos, visto que é desde os momentos iniciais de nossa vida em sociedade que nos apropriamos da linguagem e do discurso de outrem e aprendemos a valorar e perceber o mundo social. Aprendemos a fazer uso dos gêneros paulatinamente nas diversas esferas de atividade humana, isso é, interagimos através desses enunciados concretos, uma vez que não enunciamos palavras isoladas. A propósito, Bakhtin (2010[1952-1953], 47 p.285) afirma que quanto mais dominamos um gênero discursivo, melhor será o nosso desempenho e aperfeiçoamento e, por conseguinte, teremos mais liberdade para realizarmos o nosso projeto discursivo, assim como a nossa individualidade. Os gêneros do discurso emergem a partir da necessidade discursiva que todo e qualquer falante duma dada língua tem, ou seja, é a intenção ou o projeto discursivo do enunciador que irá determinar a enunciação. É nessa atividade dialógica, pertencente à realidade (à vida), que os gêneros tendem a surgir ou a desaparecer. Portanto, num trabalho com os gêneros do discurso é importante que as condições de produção sejam recuperadas e situadas, de igual modo a do interlocutor: o juízo de valor, os acentos valorativos, as nuanças apreciativas de ambas as partes envolvidas no discurso. É por isso que os não-ditos não se encontram na língua, no sistema linguístico21, mas na vida real (nas inter-relações entre os sujeitos, nas diversas formas de relação com a realidade) (BAKHTIN, 2010[1959-1961]). O enunciado concreto é quem suscita respostas, valoração, apreciação, discordâncias, persuasão etc, pois, como sabemos, ele é sempre endereçado a alguém, é valorado, possuindo, assim, uma entonação expressiva. É ainda configurado por uma dimensão verbal e uma dimensão extra-verbal somada a uma situação de produção e recepção, um horizonte espacial e temporal comum, atrelado à compreensão responsiva da situação e uma atitude apreciativo valorativa. Ademais, é produto e processo ao mesmo tempo, isto é, acontecimento único e irrepetível, portanto, um elo na cadeia da comunicação verbal. Isso é fruto do projeto discursivo do falante/enunciador, pois, nesse momento, o sujeito faz as suas escolhas discursivas e linguísticas (sintáticas, morfológicas, lexicais) para tentar gerar o efeito de sentido desejado/planejado. Segundo Bakhtin (2002 [1934-1935]), “essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo, que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos.” (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 295). E é a partir dessas “palavras Para Mikhail Bakhtin e o Círculo o sistema linguístico corresponde as correntes filosófica – linguísticas que tomam a língua como objeto de estudo e a isola do conteúdo ideológico, social e cultural. Precisamente, na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 2010[1929]), os autores discutem e criticam acerca das duas principais orientações do pensamento linguístico, quais sejam: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. O principal problema de tais correntes consiste em que elas isolam e delimitam a linguagem como objeto específico em detrimento do aspecto ideológico, social e cultural, ou seja, sem os acentos apreciativos, sem os tons valorativos dados pelos interlocutores, sem considerar o contexto da enunciação etc. 21 48 acentuadas” do outro que respondemos, dialogamos, isto é, nos posicionamos frente o querer dizer do nosso interlocutor. Sobral (2009), fundamentado na teoria bakhtiniana de gênero, afirma que “os gêneros nascem de uma dada inserção socio-histórica de discursividade, ou conjuntos de discursos, de sua relação com outros gêneros da mesma ou de outras discursividades, por oposição ou assimilação, diretas ou indiretas” (SOBRAL, 2009, pp. 127-128). A essas escolhas, são acrescidos outros fatores no desvelar do enunciado concreto, notadamente, a situação, na qual os interlocutores se encontram; a esfera; o contexto social, histórico, ideológico e cultural, além do conteúdo extraverbal22. Bakhtin/Voloshínov (2009 [1929]) afirmam que [...] para o locutor o que importa é aquilo que permite que a forma lingüística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada. Para o locutor, a forma lingüística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível (BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 2009 [1929], p.96 ênfase adicionada). Todo enunciado reflete e refrata as esferas de comunicação por meio do seu conteúdo temático23, do seu estilo e de sua construção composicional. Cada gênero discursivo traz as suas formas composicionais mais ou menos estabelecidas, isso porque tais formas são instituídas pelas relações sociais entre os sujeitos numa determinada esfera social, pertencente a uma determinada comunidade. Contudo, a forma composicional não deve ser confundida com artefato ou forma rígida, haja vista que pode ser alterada segundo as finalidades do projeto discursivo do autor/interlocutor. Ou seja, ela não é fixa, estanque ou intocável, senão passível de ser modificada e transformada, pois está a serviço do autor/interlocutor. Como exemplos, temos a letra de canção composta em forma de carta (A carta, Renato Russo) ou ainda o poema em receita (Receita de felicidade, de Toquinho)24. 22 Cf. Bakhtin/Voloshínov (1926). Mikhail Bakhtin/Voloshínov ao fazerem uso pela primeira vez do termo tema na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem de 1929 lançam mão de uma nota de rodapé na qual explicitam o termo supracitado. Afirmam que o uso que farão do termo não deverá ser confundido com o que os autores chamam de “tema de uma obra de arte”. Os autores não fazem maiores explicações de qual seria esse outro sentido dado ao termo, mas podemos inferir, consoante com Barbosa (2001), que talvez o sentido esteja relacionado à dimensão da referencialidade, bastante usada no senso comum, no sentido de “assunto”. 24 Disponível em <http://www.vagalume.com.br/renato-russo/a-carta.html> e em <http://letras.mus.br/toquinho/87362/>, acessados em 28/11/2012 às 17h49min. 23 49 No que tange ao estilo é importante dizer inicialmente que há o estilo do gênero e o estilo do autor. O estilo está diretamente ligado às escolhas linguísticas, as expressões e as formas gramaticais em que a sua presença é mais notória, “marcada”. Além disso, o estilo também se configura a partir das relações sociais entre o locutor e o interlocutor e das apreciações valorativas, ou seja, do juízo dos sujeitos envolvidos na atividade de interação. Em outras palavras, as escolhas de ordem linguística e discursiva irão demonstrar a apreciação valorativa que o locutor/autor tem acerca de seu objeto e de seus interlocutores, por conseguinte, irá definir o estilo – o tom irônico ou não; o acento valorativo sobre determinado objeto; a escolha e entonação das palavras; as expressões faciais, os gestos; a entonação da voz etc. São esses aspectos que demonstram se determinada conversa nos agrada ou não; se determinada pessoa é querida ou não e, ainda, se o bate papo é importante ou não. Portanto, o estilo está vinculado à seleção de recursos da língua, a determinados tipos de estruturação e ao acabamento dado pelo locutor, bem como ao tipo de relação estabelecida entre os sujeitos interlocutores. A título de exemplificação, temos o caso 25 de alguns juízes de direito brasileiros que elaboraram suas sentenças (acórdão) em forma de versos (poema), assim, o acabamento, ou seja, o “tom” dado pelos locutores foge ao esperado para uma sentença jurídica. Temos outro exemplo26, ao observarmos os seguintes enunciados (capas de revistas, a primeira da “Carta Capital” e a segunda da “Veja”) sobre o falecimento do então presidente da Venezuela, Hugo Chávez: “A morte de um Líder”27 (traz o rosto do ex-presidente com letras brancas como a capa da revista) e “Chávez a herança sombria”28 (com apenas um lado da face aparecendo e a outra escura com o referido enunciado, dando destaque a palavra Chávez em vermelho) percebemos que as escolhas linguísticas feitas pelos autores desses Disponível em: <http://buymazon.wordpress.com/artigos/arte-cultura/direito-e-poesia-deu-juiz-poeta/>; <http://www.sulinfoco.com.br/juiz-eleitoral-usa-poema-para-decidir-caso-de-treviso> e <http://www.sulinfoco.com.br/juizeleitoral-usa-poema-para-decidir-caso-de-treviso>, acessado em 26/11/2012 às 21h50min. 25 Não iremos fazer uma análise profunda dos seguintes enunciados, visto que não é esse o nosso objetivo. Disponível em < http://www.asmelhoresrevistas.com.br/wp-content/uploads/2013/03/revista-cartacapital.jpg>, acessado em 03/07/2013 às 19h55min. 26 27 Disponível em <http://www.asmelhoresrevistas.com.br/wp-content/uploads/2013/03/revista-veja.jpg>, acessado em 03/07/2013 às 19h55min. 28 50 enunciados estão carregadas de nuanças valorativas e apreciativas, isto é, juízos de valores. Primeiramente, nos parece que o tom apreciativo do primeiro enunciado é menos “acusador” e imparcial, ao passo que aquele veiculado pela Veja parece ser bastante categórico. Podemos observar uma mesma notícia que foi veiculada por revistas que têm interlocutores, objetivos, interesses e ideologias específicos e díspares e, portanto, estilos diferentes. Além disso, as escolhas linguísticas de cada revista são bastante nítidas, quando, por exemplo, a revista Veja apresenta o nome do ex-presidente da Venezuela em vermelho, certamente, tem como objetivo lembrar aos leitores que ele pertencia a um partido político de esquerda e que, por isso, deixaria um legado sombrio. Para Sobral (2009, p.118), o estilo: [...] trata-se do aspecto do gênero que indica fortemente sua mutabilidade: ele é a um só tempo expressão da comunicação discursiva específica do gênero e expressão pessoal, mas não subjetiva, do autor ao criar uma nova obra no âmbito de um gênero (SOBRAL, 2009, p.118). Já o conteúdo temático pode ser apreendido como algo “típico” (o que já foi mencionado, dito, escrito) que se configura sócio-historicamente. O gênero artigo científico, por exemplo, presente nas variadas áreas das ciências, apresenta temáticas recorrentes, recursivas, como o conhecimento científico, discussão filosófica ou matemáticas, sobre lógica ou algum problema social etc, o que poderíamos entender como aspectos próprios desse gênero. Segundo BARBOSA (2001), são as diferentes esferas de comunicação humana responsáveis pela cristalização dos gêneros do discurso no decorrer da história – entre outros fatores. É a necessidade da repetição de um dado conteúdo temático, nesses gêneros relativamente cristalizados, que influencia na recorrência e futura permanência e consolidação do que pode ser dito em cada gênero. Uma vez que estamos tratando duma concepção de linguagem em que o sujeito sempre é ativo (criativo) e responsivo e que age na vida, não podemos tomar o conteúdo temático como estanque e rígido. No que tange ao tema, Medvedev (2012[1928], p.196 ênfase adicionada) assevera que: O tema não se forma, em absoluto, desses significados [linguísticos]; ele constitui-se somente com sua ajuda, assim como com a ajuda de 51 todos os elementos semânticos da língua, sem exceção. Dominamos o tema com a ajuda da língua, mas não devemos incluí-lo na língua, como se fosse elemento dela. O tema transcende sempre a língua. Mais do que isso, o tema não está direcionado para a palavra, tomada de forma isolada, nem para a frase e nem para o período, mas para o todo do enunciado como apresentação discursiva (MEDVEDEV, 2012[1928], p.196 ênfase adicionada). O tema, portanto, está no campo da comunicação discursiva real, da entonação expressiva, do enunciado concreto cuja participação é ativa e responsiva em determinada situação sócio-histórica. O elemento constitutivo do tema é a entonação expressiva, ou seja, esse não pertence à palavra isolada, à oração, mas, sobretudo, à vida, ao enunciado. O tema é, assim, o sentido completo da enunciação que se comporta como o próprio enunciado, notadamente único e não reiterável, pois “as palavras não são de ninguém, em si mesmas nada valorizam [...]” (BAKHTIN, 2010[1953-1954], p.290). Assim como Medvedev (1928), Bakhtin/Volochinov (2009[1929], p.133) argumentam que o tema não é determinado apenas “[...] pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação.” Outro aspecto de suma importância na constituição do tema é o instante histórico que lhe assegura o caráter único, dinâmico e social. Sabemos, contudo, que as formas linguísticas são imprescindíveis para a realização do tema, a esse fenômeno Bakhtin chamou de significação: elementos reiteráveis e idênticos, pois são abstratos e convencionados. A significação é sujeita à análise, uma vez que é um elemento técnico e como tal é sempre idêntico em todas as instâncias históricas em que é mencionado. Nesse sentido, a significação não existe sem o tema, de igual maneira o tema não existe sem a significação. Por exemplo, a expressão “Chuva” posta de modo isolada - sem os interlocutores, as esferas delineadas, as condições de produção e recepção - figura apenas como uma significação, isto é, um aparato técnico e sempre idêntico linguisticamente. Ao passo que, se falarmos que esse enunciado foi dito por uma comunidade do sertão baiano ou por um individuo que antes de sair olha o céu e toma um guarda-chuva, a fim de se prevenir, ou por um cidadão cuiabano em pleno mês de agosto, fará todo sentido, logo, teremos infinitos temas – únicos e irrepetíveis sócio-historicamente. 52 Antes de terminarmos esse item acerca do gênero discursivo, é relevante falarmos um pouco sobre os gêneros primários e os secundários. Os gêneros primários nascem na interação espontânea entre os sujeitos de uma determinada comunidade e estão fortemente enraizados às situações de experiências e vivências dos sujeitos, de maneira quase indissociável e “automática”. Os gêneros primários estão mais presentes em situações cotidianas e privadas – por exemplo, o diálogo cotidiano, a conversa entre amigos, um bilhete de recado etc. Já os gêneros secundários, por sua vez, estão diretamente ligados às esferas mais ideológicas das superestruturas (artísticas, literária, científica, escolar), haja vista que podem ser melhores projetados e configurados de maneira mais engenhosa. Esses gêneros têm a natureza mais complexa, uma vez que são próprios das esferas públicas (arte, ciência, literatura etc.) e abarcam as formas mais intricadas da escrita. Como exemplos de gêneros secundários temos o romance, a reportagem, a dissertação etc. O estudo dos gêneros discursivos exige uma investigação do seu conteúdo temático, da sua forma composicional e de seu estilo, além das esferas em que circulam, das condições de produção nas quais os enunciados concretos se realizam. Outro aspecto de crucial relevância é a valoração apreciativa do locutor acerca de um dado objeto, pois ela é a pedra angular das relações entre os sujeitos socialmente situados, porque está imersa nas nuanças ideológico-culturais, naquilo que uma determinada sociedade julga ser importante ou trivial, feio ou bonito, bom ou ruim, ou seja, o ato de valorar isso ou aquilo está na dimensão social, histórica e ideológica duma determinada comunidade. Por exemplo, em uma determinada escola, uma professora lê para seus alunos o livro “Menina bonita” de Ana Maria Machado, que conta a história de uma menina negra com seu coelhinho branco. O livro é rico em ilustrações e, por isso, durante a leitura, a professora as mostrava para que os alunos visualizassem. Houve um momento em que um aluno disse “é ela a menina bonita? Ela é feia”. Percebemos que a valoração apreciativa do aluno está arraigada em préconceitos racistas postos e disseminados em sociedade, demonstrando, assim, que ele tem um padrão já definido de belo e feio. A beleza da menina negra, para o discente, parece fugir ao que é considerado bonito culturalmente. Além disso, observamos um estranhamento por parte do aluno no que diz respeito à 53 personagem protagonista ser uma negra, fugindo, portanto, dos padrões da sociedade. A partir de agora, esclarecidos alguns conceitos da teoria bakhtiniana, discutiremos, na próxima seção, os conceitos vygotskiano concernentes ao processo de ensino-aprendizagem. Além disso, apresentaremos também a ideia de gênero discursivo, segundo Schneuwly (2004[1994]), como megainstrumento e as capacidades de leitura. 2.3 Vygotsky e o ensino-aprendizagem Lev Vygotsky foi um grande pesquisador nas diversas áreas das Ciências Humanas nos anos de 1917 a 1923, tendo atuado como professor de literatura, ele publicou, durante esse período, sua primeira pesquisa em literatura e ciência 29. Embora o psicólogo russo tenha tido pouco tempo de vida (1896-1934), escreveu mais de 200 artigos, por isso, talvez, o então pesquisador e amigo de Vygotsky, Luria, tenha dito num artigo intitulado “Vigotskii” que: “Não é exagero dizer que Vigotskii era um gênio. Ao longo de mais de cinco décadas trabalhando no campo da ciência, eu nunca encontrei alguém que sequer se aproximasse de sua clareza de mente [...]” (LURIA, [s/d] 2006, 21). Nesse mesmo artigo, Luria afirma que a teoria vygotskiana pode ser dividida em três eixos centrais e indissociáveis: o instrumental, o histórico e o cultural todos imbricados com o social30. Esses eixos se vinculam às relações entre ensino e aprendizagem. É importante ressaltar que o termo ensino não é desvinculado de aprendizagem na língua russa eles constituem uma única palavra: obouchenie, que significa "ensino-aprendizagem”. Em um texto intitulado Interação entre aprendizado e desenvolvimento (1934)31, Vygotsky inicia a sua argumentação levantando o problema de que o Percebemos aqui que os estudos naquela época eram interdisciplinares. Vygotsky discutia literatura, teatro, direito, psicologia, medicina, psicopedagogia, neuropsicologia. Foi também nesse período, nos anos de 1917 a 1923, que o psicólogo russo fundou a revista literária Verask, na qual publicou a sua primeira pesquisa que discutia os problemas da literatura, mais tarde reeditada com o título de A psicologia da arte. Vygotsky sempre esteve preocupado com as questões atinentes ao ensino-aprendizagem escolar, por isso dedicou boa parte de suas pesquisas científicas para pensar como o ser humano aprende, de que maneira, quando aprende e o que precisa para sedimentar os conceitos etc. 30 Cf. LURIA, A. R. Vigotskii. In: VIGOTSKII, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. (Trad. Maria da Penha Villalobos). São Paulo: ícone, 2006. 29 Organizado por Michael Cole et al cuja tradução é de José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche da editora Martins Fontes, 7ª edição. 31 54 ensino escolar não pode ser dissociado do aprendizado e do desenvolvimento do ser humano. O psicólogo russo é contra a ideia de que o aprendiz começa a desenvolver o aprendizado apenas quando passa a frequentar a escola. Diante isso, podemos entender que, para Vygotsky, a aprendizagem é um processo dinâmico e dialógico, pois é um ato ininterrupto que ocorre na interação que se realiza nas diversas instâncias sociais entre os sujeitos. Vygotsky (2007[1934], p.95) reflete que o problema em torno da aprendizagem pré-escolar (espontânea, cotidiana) e a escolar (sistematizada) não se deve apenas pelo fato de que essa é sistematizada e aquela não o é, mas, sobretudo, porque o aprendizado escolar “produz algo fundamentalmente novo no desenvolvimento da criança”. Nesse caso, o contato interativo e dialógico com os signos, instrumentos e conceitos mais sistematizados. Portanto, os “signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas” (VYGOTSKY, 2007[1930], p.18). Por exemplo, a criança ao chegar à escola, provavelmente, já terá conhecimento de alguns contos que, por muitas vezes, são lidos pelos pais/algum parente ou assistidos em desenhos e filmes. Dessa forma, os signos são constituídos e (re)inventados pelos sujeitos no curso da interação verbal e sua função primordial é assegurar a comunicação dialógica entre as pessoas e a transmissão dos costumes culturais. Os signos são o produto de uma convenção, de um acordo entre os integrantes de cada comunidade, cujo processo de negociação de sentidos está indissociavelmente atrelado a eles. Vygotsky (2007[1930]) afirma que o processo de internalização pode ser compreendido como o momento em que a criança começa a reconstruir internamente as atividades e operações que lhe advêm em seu dia a dia ou na escola, por exemplo. O ato de reorganizar internamente um evento externo cuja base está nos signos tem como função principal a incorporação duma dada cultura para um determinado sujeito na sócia-história humana. O processo de desenvolvimento do sujeito aparece, inicialmente, no âmbito social, e, posteriormente, individual, isto é, o desenvolvimento ocorre primeiramente entre pessoas (interpsicológico) para, num segundo momento, tornar-se interno (intrapsicológico). Assim, de acordo com Vygotsky (2007[1930], p.58), o desenvolvimento das funções mentais superiores aparece duas vezes na ação cultural do ser humano: 55 [...] primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmente para a atenção voluntária, para memória lógica e para formação de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos (VYGOTSKY, 2007 [1930], p.58 ênfase do autor). A transformação de um evento interpessoal em um intrapsicológico é decorrente de uma longa série de acontecimentos sócio-históricos presentes na vida do indivíduo, uma vez que “todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos” (VYGOTSKY, 2007[1930], p.58). Portanto, o sujeito se constitui no outro, no processo de internalização e é através da relação social que a organização psicológica se desenvolve. No processo de internalização/apropriação, o sujeito se constitui no outro através da relação social e a sua organização psicológica se desenvolve continuamente. Assim, o sujeito sempre vai estar sob a “influência” de palavras ou de signos de outrem, isto é, das palavras alheias. Essas palavras reelaboram-se dialogicamente e tornam-se palavras próprias alheias, para, então, tornarem-se palavras próprias (BAKHTIN, 2010[1970-1971]). Para Rojo (2010 [1991], p.23), isso se justifica pelo fato de que: Sou capaz [o sujeito] de me perceber conscientemente porque tenho uma imagem interna do outro e de suas atividades e com ela me ponho em diálogo, em réplica. Isso se dá por meio de processos internos de retomada e réplica da (inter)ação sobre objetos sociais (ROJO, 2010 [1991], p.23). Vygotsky (2007[1934]) argumenta que a aprendizagem é o princípio do desenvolvimento, de modo que acarreta uma série de processos mentais. Assim, na tentativa de refletir acerca das dimensões do aprendizado escolar, o russo elabora um conceito que é de “excepcional importância, sem o qual este assunto não pode ser resolvido: a zona de desenvolvimento proximal” (VYGOTSKY, 2007[1934], p.95). Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 2007 [1934], p.97 ênfase do autor). 56 A Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP)32 constitui-se através de dois eixos: o nível de desenvolvimento real e o potencial. O primeiro diz respeito aos processos mentais superiores já sedimentados, compreendidos e apropriados pelo sujeito aprendiz sem a necessidade do auxílio de outrem. Ao passo que o nível potencial de desenvolvimento diz respeito às formas cognitivas superiores ainda não alcançadas pelo indivíduo, ou seja, elas não foram internalizadas e apropriadas pelo sujeito aprendiz, por isso, necessitam de auxílio de outra pessoa. Vygotsky enfatiza a colaboração e o auxílio de outrem no processo de apropriação dos processos mentais superiores. Quer dizer, o professor, o colega, os pais - pares mais avançados - têm uma participação ativa no processo de desenvolvimento do ser humano. Dessa feita, o professor possui papel como mediador fundamental e imprescindível no processo de consolidação do conhecimento do aluno. Assim, cabe a ele promover um espaço de interação verbal onde o aluno possa participar como protagonista de sua própria história. É nesse espaço dialógico que o aluno aprenderá a tomar e a reelaborar a palavra alheia, a fim de fazê-la sua. Nesse caso, o professor exerce a função de mediador entre o conhecimento dialógico e o aluno, estando incumbido de intervir na zona proximal de desenvolvimento dos discentes. Paes de Barros (2005, p.41) afirma que: [...] a ZPD é a criação de um espaço onde o aluno entra como ator de seu desenvolvimento. Esse espaço permite que o sujeito transforme a si mesmo. O ponto essencial do desenvolvimento humano é a transformação dos processos psíquicos através da apropriação dos instrumentos semióticos (PAES DE BARROS, 2005, p. 41). Assim, o domínio da linguagem como instrumento semiótico é imprescindível para a apropriação dos conhecimentos, das funções superiores e dos conceitos por parte do aluno, pois ela constitui o sujeito por meio das diversas práticas sociais e nos diz quem somos, de modo que nos instiga a significar e expressar o mundo. O domínio da linguagem nos permite, ainda, abstrair e generalizar os objetos, uma vez Em consonância com Rojo faremos uso do termo ZPD no lugar de ZDP. A autora assevera que “normalmente dita ZDP (Zona de Desenvolvimento Potencial ou Proximal). A escolha feita na tradução acima (ZPD) não é, a nosso ver, ociosa, posto que a força da adjetivação no desenvolvimento ou na zona de intercessão criada pelo ensino-aprendizagem” (ROJO, 2001, p.170). 32 57 que o ser humano pode agir e pensar acerca desses sem que, necessariamente, estejam presentes. Ademais, é, por muitas vezes, a incorporação do outro em mim. Portanto, o desenvolvimento humano é um processo pelo qual os sujeitos se transformam, em âmbito psíquico, a partir das relações sociais advindas dos meios simbólicos que promovem a construção e sedimentação de conhecimento, modos de agir, valores morais e políticos. Por esse viés, a linguagem assume uma função central no processo de ensino-apredizagem do aluno, pois é através dela que o homem se comunica e se constitui no curso da comunicação discursiva. 2.4 O gênero como megainstrumento de ensino-aprendizagem Bernard Schneuwly (2004[1994], p.19) defende a tese de que o gênero33 pode ser considerado um instrumento semiótico no processo de ensino-aprendizagem de língua materna. Ao longo deste texto, o autor tece argumentos de que o gênero pode ser concebido não apenas como um instrumento semiótico, mas como um megainstrumento. Para tanto, Schneuwly (2004[1994]) lança mão de conceitos de duas teorias cujos representantes são: Vygotsky e Bakhtin. É a partir da releitura desses, portanto, que ele cunha a metáfora de gênero textual como megainstrumento. Pela vertente vygotskiana, temos o conceito de ferramentas psicológicas (instrumentos), já na vertente bakhtiniana o conceito de gêneros do discurso. Nessa acepção, o gênero é tomado como uma ferramenta psicológica, uma vez que ajuda no processo de mobilização, aprimoramento e consolidação dos domínios dos processos mentais superiores dos alunos no desenvolvimento e domínio da linguagem. As ferramentas psicológicas são concebidas como instrumentos criados em âmbito sócio-histórico, portanto, a linguagem representa a ferramenta imprescindível para o bom desempenho do aluno no que tange, principalmente, à leitura e à escrita. No dizer de Schneuwly (2004 [1994], p.25): Rojo (2004) usa o termo “gêneros (discursivos ou textuais)” quando se refere aos documentos oficiais (BRASIL, 1997;1998;1999); gêneros textuais ao se referir aos pesquisadores do cantão de Genebra (ROJO,2004, pp.10-12). Entretanto, a autora assume o termo “gênero do discurso/discursivo”. Assim, nesta pesquisa quando recorremos aos estudiosos de Genebra usaremos a terminologia “gêneros textuais”, a fim de marcarmos a nossa inscrição teórica e manter a dos eminentes pesquisadores. Como podemos verificar nos textos de Schneuwly (1994) e Dolz&Schneuwly (1996), ora eles usam apenas “gêneros” ora “tipos textuais”, apesar de se basearem na teoria de gêneros discursivos de Mikhail Bakhtin. 33 58 [...] considerar o gênero como “mega-instrumento”, como uma configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos (sobretudo linguísticos, mas também paralinguísticos), permitindo agir eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação. Pode-se, assim, compará-lo ao megainstrumento em que se constitui uma fábrica: conjunto articulado de instrumentos de produção que contribuem para a produção de objetos de um certo tipo (SCHNEUWLY, 2004[1994], p. 25). O gênero, assim, é um megainstrumento, porque é um instrumento semiótico complexo, ou seja, uma forma de linguagem que permite a um só tempo a produção e a compreensão de textos. O referido pesquisador defende que os gêneros dão forma as ações discursivas do agir discursivo do sujeito, visto que trazem uma representação dessas formas e prefiguram as que são possíveis. O autor (2004[1994]) reflete, ainda, que o gênero como megainstrumento pode ser comparado a uma fábrica, isto é, um conjunto articulado de instrumentos que culminam para a produção de outros objetos. Nesse sentido, os gêneros são decorrentes das práticas sociais de linguagem, portanto, podem ser compreendidos como modelos de atividade e de atuação discursiva. Schneuwly (2004[1997], p. 141) afirma que “toda capacidade humana é construída pela apropriação de instrumentos semióticos”. Nessa medida, o autor considera os gêneros discursivos como ferramentas psicológicas que auxiliam na apropriação de todas as capacidades de desenvolvimento cultural do ser humano. Como podemos verificar, nessa temática de gênero como megainstrumento, Dolz e Schneuwly (2004 [1996], p. 60) propõem um currículo organizado a partir do agrupamento dos gêneros por seus domínios sociais, aspectos tipológicos e capacidades de linguagem para as produções escritas e orais. O conto, gênero abordado em nossa pesquisa, encontra-se no domínio cultural literário, conforme o seguinte recorte do quadro dos autores genebrinos: 59 Domínios sociais de comunicação Aspectos tipológicos Exemplos de gêneros orais e escritos Capacidades de linguagem dominantes Cultura literária ficcional Narrar Mimeses da ação através da criação de intriga no domínio do verossímil Conto maravilhoso Conto de fadas Fábula Lenda Narrativa de aventura Narrativa de ficção científica Narrativa de enigma Narrativa mítica Sketch ou história engraçada Biografia romanceada Romance Romance histórico Novela fantástica Conto Crônica literária Adivinha Piada Quadro 2 - Recorte da proposta provisória de agrupamentos de gêneros de Dolz&Schneuwly, 2004[1996], p. 60. Dessa forma, os genebrinos apresentam didaticamente três gêneros: conto, conto de fadas e conto maravilhoso no campo social literário. A nosso ver, a ideia de gênero como megainstrumento é relevante para pensarmos e elaborarmos a nossa proposta didática de ensino-aprendizagem de leitura do gênero discursivo conto. 2.4.1 Os gêneros: ferramentas nas práticas e capacidades de leitura Dolz e Schneuwly tomam o gênero para “a progressão em expressão oral e escrita” (Dolz; Schneuwly, 2004[1996], p. 41), portanto, o gênero megainstrumento é usado para a produção do oral e da escrita. Entretanto, os autores argumentam saber que, “em certos casos, a escrita é uma via particularmente eficaz para melhor compreender o funcionamento dos textos e para assim adquirir uma melhor mestria da leitura” (Dolz; Schneuwly, 2004 [1996], p. 58-59). Baseado nos autores genebrinos, Cristovão (2001 apud PAES DE BARROS, 2005, p. 33) explicita que Dolz e Schneuwly “trabalham com o conceito de 60 capacidades exclusivamente para a questão da produção escrita”. Contudo, Paes de Barros acrescenta que “essa mesma abordagem pode ser estendida para a leitura [...]” (PAES DE BARROS, 2005, p. 33). A despeito de tais capacidades, Rojo (2004) reflete que a prática de leitura envolve uma série de procedimentos e capacidades – perceptuais, cognitivas, afetivas, sociais, discursivas, linguísticas- que são dependentes da situação, dos objetivos e das finalidades de leitura. Assim, a atividade de leitura implica num envolvimento de diversas capacidades por parte do leitor, de modo que depende da situação, do contexto de produção e recepção, dos objetivos traçados e das esferas de circulação. Por isso, toda ação de linguagem, segundo Dolz e Schneuwly (2004[1997]), sempre significa elaborar, apreender e compreender os enunciados orais ou escritos construídos. Nessa perspectiva, Dolz e Schneuwly (1998 apud PAES DE BARROS, 2005) refletem acerca das capacidades de ação, discursivas e linguístico-discursivas. As capacidades de ação possibilita que o aluno faça a adaptação de sua produção de linguagem, conforme os contextos, por exemplo, as representações do ambiente físico, assim como dos sujeitos envolvidos e da esfera de comunicação discursiva. Dessa forma, tais representações estão relacionadas ao gênero, tendo em vista a relação com o interlocutor e o conteúdo, apresentando objetivos específicos, ou seja, a definição clara sobre o objeto, o gênero. Por esse viés, os referidos autores afirmam que tais capacidades produzem três tipos de representações, a saber: a) as representações relativas ao ambiente físico onde se realiza a ação (local e momento onde o texto é produzido, a presença ou ausência de receitas); b) as representações relativas à interação comunicativa: o estatuto social dos parceiros (os papéis representados pelo enunciador e pelo destinatário), o lugar social dentro do qual se realiza a interação e o seu objetivo; c) os conhecimentos de mundo estocados na memória e que podem ser mobilizados na produção de um texto (DOLZ&SCHNEUWLY apud PAES DE BARROS, 2005, p.34) As capacidades discursivas, consoante com os autores, se referem ao que pode ser dito por meio do objeto, bem como a organização do que é dito no objeto, auxiliando na definição estrutural do texto, na elaboração dos conteúdos e na composição do gênero. Por sua vez, as capacidades linguístico-discursivas 61 relacionam-se a operações mobilizadas no momento da produção escrita, isto é, como pode ser dito - “o que quero dizer” -, envolvendo: a) operações de textualização: os mecanismos de conexão, segmentação e coesão nominal e verbal; b) b) mecanismos de gerenciamento de vozes ou de tomada de posição enunciativa: também envolvem dois tipos de operação,a organização das vozes enunciativas e as expressões de modalização; c) as operações de construção de enunciados; e d) escolha dos itens lexicais (idem, pp.79-82). Em diálogo com esses pesquisadores e enfatizando a perspectiva enunciativo-discursiva e sócio-histórica, a pesquisadora Paes de Barros (2005) argumenta que, em sua abordagem de pesquisa, os gêneros discursivos e sua função como instrumento de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa podem propiciar a aprendizagem das capacidades de leitura. Assim como, os gêneros e o “o domínio de tais capacidades diz respeito a tipos e níveis de letramentos concernentes às diversas capacidades de leitura necessárias em diferentes práticas sociais” (PAES DE BARROS, 2005, p.1). Igualmente, Rojo e Cordeiro (2004) sustentam que o trabalho com os gêneros narrativos auxiliam no desenvolvimento das capacidades letradas literárias e na apropriação das práticas letradas e no desenvolvimento do letramento literário. Por isso afirmam que: Escolhemos os gêneros pertencentes a diferentes esferas de circulação (literária, escolar, televisiva – jornalística/política), que estão alocados pelos autores em diferentes agrupamentos (narrar, expor, argumentar). Priorizamos as esferas e os agrupamentos de gêneros, em nossa opinião, mais relevantes para a formação da cidadania no Brasil e mencionados nos PCN: a) narrar, importante para a formação do leitor literário [...] (ROJO&CORDEIRO, 2004, p. 17 ênfase adicionada). Assim sendo, no âmbito de nossa pesquisa, trabalharemos com o gênero conto como um instrumento de ensino-aprendizagem de leitura. Para tanto, faz-se necessário apresentarmos, no próximo capítulo, uma breve historicização do gênero conto, com respaldo na teoria dos gêneros do discurso. 62 CAPÍTULO 3 O gênero discursivo conto: um olhar bakhtiniano Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei si o que eu vou contar é conto ou não, sei que é verdade (Mário de Andrade, 1976). Mas se não tivermos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal [...] (Julio Cortázar, 1974). Abordaremos, neste capítulo, questões atinentes à origem do gênero do discurso conto e sobre suas possíveis definições, buscando relacioná-las com a concepção de gênero bakhtiniana. 3.1 A origem do conto: a história da estória Magalhães Junior (1972), em sua obra intitulada A arte do conto, argumenta que o conto é a manifestação literária de ficção mais antiga da humanidade, existindo em comunidades de povos com conhecimento da escrita ou não. O conto nasce de forma oral através do ato de (re)contar e ouvir histórias. Conforme Gotlib (1999), o início dessa prática, que nos leva a tempos remotíssimos, é impossível de ser determinado, datado ou localizado. Magalhães Junior (1972), embasado no escritor espanhol Juan Valera, afirma que o conto esteve presente na Grécia desde o início de sua civilização cujo compilador pioneiro foi o poeta e gramático Partênio de Nicéia. Nos dizeres de Magalhães Junior (1972), “na antiguidade, o conto tanto podia constituir uma história isolada, independente, como vir inserido, incidentalmente, no corpo de uma narrativa mais extensa” (MAGALHÃES JUNIOR, 1972, p.9). Contar e ouvir histórias eram imprescindíveis para a permanência de um povo e de seus costumes culturais. Tais atividades e práticas orais mantinham os laços de união entre o homem e a comunidade da qual esse pertencia. Assim, tal prática era uma forma de assegurar a perenidade dos costumes, das crenças, da tradição cultural numa dada comunidade, de maneira que esses permanecessem sempre vivos e presentes na memória dos povos. 63 Para Gotlib (1999, p.5), o ato de contar e ouvir estórias, que está sob o signo da convivência, [...] sempre reuniu pessoas que contam e que ouvem: em sociedades primitivas, sacerdotes e seus discípulos, para transmissão dos mitos e ritos da tribo; nos nossos tempos, em volta da mesa, à hora das refeições, pessoas trazem notícias, trocam ideias e... contam casos. Ou perto do fogão de lenha, ou simplesmente perto do fogo (GOTLIB, 1999, p. 5). As primeiras manifestações dos contos na forma escrita registram-se entre os egípcios nos anos 4000 antes de Cristo – os contos dos mágicos são os mais antigos; na cultura hebraica temos as histórias bíblicas; na cultura grego-latina, a "Odisséia" e "Ilíada", de Homero; além das vindas do Oriente, "As mil e uma noites" (séc. X dC). Na Idade Média, as famílias tinham o costume de se reunir entre o jantar e a ceia, a fim de ouvirem as novelas de cavalaria, cujo teor moralizante e religioso predominava – uma das formas de difusão dos princípios do Teocentrismo. Por um longo tempo na história, o conto foi confundido com anedota, parábola (exemplos morais), novela, fábula e romance. No decorrer desse processo histórico, as confusões terminológicas do conto eram admissíveis, sendo denominado, por um longo tempo, de novela. Conforme Ferreira (2008, p.19), “tal classificação perdurou até o século XVIII, quando lhe imputaram outra concepção [...] a obra [contos eróticos] Decameron de Boccaccio, lançada em 1350, é tida como aquela que lançou as bases clássicas do conto”. Essa obra rompe com o conteúdo didático moralista, entretanto, mantém o tom da narrativa oral e passa a ser traduzida em muitas línguas. No século XVII, surgem Novelas ejemplares de Cervantes em 1613. E, nesse fim de século, aparecem os contos de Charles Perrault - Histoires ou contes Du temps passé cujo subtítulo é Contes de ma mère Loye – conhecidos no Brasil como os Contos da mãe Gansa. No entanto, segundo adverte Jolles (apud FERREIRA 2008, p. 20) é somente com a coletânea de narrativas dos irmãos Grimm, intitulada Contos para Crianças e Famílias que o conto passa a ter, verdadeiramente, o sentido de forma literária, portanto, a coletânea de narrativas dos irmãos Grimm foi “a base de todas as coletâneas ulteriores do século XIX” (idem). É no século XIX que o conto consegue o seu apogeu com escritores de grandeza indubitável. A título de exemplificação, citaremos apenas alguns: na França, Balzac, Flaubert, Guy Maupassant; na Alemanha, Ernst Theodor, Wilhelm 64 Hoffmann; nos Estados Unidos, Edgar Allan Pöe; na Rússia, Nicolai Gogol; em Portugal Alexandre Herculano, Eça de Queirós; no Brasil, Machado de Assis, Aluísio Azevedo. No contexto brasileiro, o conto, no século XX, assume posição privilegiada, passando a ter um número de produções bastante relevante. É na metade desse século que Monteiro Lobato se torna um grande contista do Pré-modernismo. A Semana da Arte Moderna de 1922 favorece para uma nova fase na produção contística, sendo Mário de Andrade um dos principais representantes desse novo movimento (Modernismo). Esse autor, além de contista, era também teórico desse gênero, chegando a afirmar, ironicamente: “Em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto” (FERREIRA, 2008, p.21). Mário de Andrade, nessa afirmação, levanta o problema da complexidade de se traçar e estabelecer limites formais ao gênero conto. Segundo Lucas (apud FERREIRA, 2008), “[...] a visão moderna do conto encarregou-se de despojar a narrativa curta de seu tratamento pomposo e prolixo, tratou de cortar uma floresta de verbosidade, desbastou a escrita de clichês mortos” (LUCAS apud FERREIRA, 2008, p.21), ou seja, os modernistas rompem com a visão tradicional de se fazer conto. Esse gênero, nessa nova perspectiva, não é mais linear, o autor passa a experimentar novas formas de organização textual. Para Santos (2010, p. 30): A partir dos anos 20 e 30, o escritor [Mário de Andrade] já revela as conquistas das liberdades formais, a pesquisa estética e o projeto de compreender a realidade brasileira. À medida que o autor problematizava o modo de narrar, inovava o tratamento dado ao narrador, incorporava novos temas e a linguagem brasileira; os paradigmas tradicionais da ficção iam sendo derrubados (SANTOS, 2010, p.30). Os anos de 1930 foram marcados por uma geração substancialmente romancista, por exemplo, com a profícua produção de autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e outros. Já na década de 1940, temos um período essencialmente poético com João Cabral de Melo Neto, embora, em 1945, Guimarães Rosa inicie a produção contística com o lançamento de Sagarana. Nos anos de 1960 e 1970, temos um grande número de escritores de contos, como Rubem Fonseca, Luis Vilela, Clarice Lispector, Moacyr Scliar, levando o conto a um reconhecimento bastante significativo. A escrita dos contistas dos anos 1970 é marcada por um “sentimento trágico, nefasto, afastando a possibilidade de 65 comunicação das personagens diante de um mundo desestruturado e sufocante” (FERREIRA, 2008, p.24). Embora, nas décadas de 1980 e 1990, o romance tenha sido reinserido como modelo narrativo, o conto continuou com seu lugar de destaque, com escritores já reconhecidos (nos anos de 1960 e 1970) e com novos escritores como Sérgio Sant’Anna, Luiz Ruffato, Luiz Vilela, Lígya Fagundes Telles e outros. 3.2 Conto: em busca de uma definição O conto, ao longo de sua existência, sempre sofreu frequentes modificações, tanto em termos estruturais, quanto em termos de reconhecimento e de status dentro da literatura. Assim, a questão da definição do conto sempre foi um problema e continua sendo atualmente. Partindo disso, o crítico russo Vladimir Propp dá início a uma pesquisa acerca do conto maravilhoso, conforme os princípios do formalismo russo, resultando na obra Morfologia do conto maravilhoso (1928). Nessa obra, o autor pesquisa as formas, a fim de tentar determinar as constantes e variantes dos contos, comparando suas estruturas e sistemas. Para alguns estudiosos, como A.L. Bader (apud GOTLIB, 1999, p.29), o conto permanece com a mesma estrutura de outrora, o que muda é a sua técnica. Assim, os estudiosos baseiam-se na evolução do modo tradicional para o modo moderno de narrar. O modo tradicional estava muito atrelado à arte clássica (do período gregolatino) e ao Renascimento (século XVI) ou Classicismo (século XVII) cujos modelos e eixos fixos determinavam e guiavam o fazer literário. Nesse sentido, por exemplo, aspectos como “equilíbrio e harmonia” eram vistos como condições sin ne quo para a arte literária, ou seja, o modelo estético linear de “começo, meio e fim” na narrativa deveria ser cumprido, pois esse se configurava como elemento constitutivo do conto. Ao passo que no modo moderno, temos a transgressão desses eixos e modelos. Os novos escritores rompem com essa estética, de maneira que o caráter de fragmentação dos valores, das pessoas, das obras é acentuado. Dessa forma, não há mais espaço para um ponto de vista fixo. O enredo que antes era justaposto numa ordem linear, agora passa a se diluir em sensações, percepções, revelações etc. 66 Assim, muitos escritores, como Mário de Andrade, Machado de Assis, Júlio Cortázar, advertem acerca da grande dificuldade de se traçar fronteiras para o conto. Gotlib (1999, p.11) afirma que, para Julio Casares, há três concepções de conto: 1. Relato de um acontecimento; 2. Narração oral ou escrita de um acontecimento falso; 3. Fábula que se conta às crianças para diverti-las. Conforme a autora, todas essas acepções têm um ponto em comum, isto é, “são modos de se contar alguma coisa” (GOTLIB, 1999, p.11). Assim, o texto narrativo, geralmente, apresenta uma sucessão de acontecimentos, pois sempre há algo para ser narrado e contempla o interesse humano, visto que é de nós e para nós, ou seja, é um tipo de material pelo qual o interesse está na humanidade e que organiza os acontecimentos numa sequência temporal estruturada cuja busca é a da unidade da mesma ação34 (GOTLIB, 1999). Para o contista norte-americano, Edgar Allan Pöe (apud GOTLIB, 1999), o conto se caracteriza pela relação entre a sua extensão e a reação ou efeito que o gênero consegue provocar no leitor. O contista defende a ideia de que é preciso dosar a obra, a fim de que, “a uma só assentada”, o leitor faça a leitura do conto, por isso, nem breve demais e nem extenso demais – a extensão, para Pöe é imperdoável. Cortázar (1974, p152 ênfase adicionada) assevera que “o contista sabe que não pode proceder acumulativamente, que não tem o tempo por aliado [...]”, pois “o tempo e o espaço do conto têm que estar como que condensados, submetidos a uma alta pressão espiritual [...]” (CORTÁZAR, 1974, p152). O contista russo Tchekhov (apud GOTLIB, 1999), dramaturgo e médico, coincide com o pensamento de Pöe em alguns pontos. A brevidade continua sendo o elemento caracterizador do conto e, assim como o contista norte-americano, o autor russo acredita que vale mais dizer de menos que dizer demais. Para Tchekhov, o conto deve causar “o efeito ou o que chama de impressão total no leitor” (GOTLIB, 1999, p.42 ênfase da autora). Além disso, argumenta que não basta No que tange ao aspecto relatar, Gotlib (1999, p.12 ênfase da autora) argumenta que o contar (do latim computare) uma estória era uma atividade oral no princípio e, depois, passou a ser registrada por escrito. No entanto, esse contar não é apenas um ato de relatar acontecimentos, eventos ou ações, “pois relatar implica que o acontecimento seja trazido outra vez, isto é, re (outra vez) mais latum (trazido), que vem de fero (eu trago)”. É importante dizer que um relato nos moldes que temos hoje, isto é, copiar tal qual, não condiz com o “relatar acontecimentos” que o contista faz; pois em um conto inventase, cria-se sendo o acontecimento falso ou verdadeiro. O que se tem no conto é ficção, “a arte de inventar um modo de se representar algo”. 34 67 apenas esses aspectos para se fazer conto, mas novidade, força, clareza e compactação. Diferentemente da compactação, os outros aspectos podem ser observados em outros gêneros. O conto deve ser compacto, os elementos devem ser condensados, uma vez que é a compactação que ocasiona a brevidade do conto vivo. Para tanto, o autor deve evitar os excessos, ser conciso e controlar as coisas supérfluas. Assim como para Pöe (idem), o conto depende de um efeito único ou impressão total por parte do leitor. Para outros autores, “é o próprio conto que representa um momento especial em que algo acontece” (GOTLIB, 1999, p. 49). Um desses momentos especiais é reconhecido por alguns autores como a epifania35 – como a concebeu James Joyce, segundo Gotlib (1999) -, ou seja, é o momento em que o objeto se desvenda ao sujeito, compreendido como uma manifestação espiritual súbita. O escritor argentino, Júlio Cortázar (1974), ao refletir acerca do caráter peculiar do gênero discursivo conto, lança mão de uma comparação entre romance/cinema e conto/fotografia, ou seja, o romance está para o cinema, assim como o conto está para a fotografia. Enquanto uma fotografia pressupõe uma justa limitação prévia, um filme é inicialmente uma ordem aberta. A fotografia está reduzida pela limitação da câmera em focar uma parte de algo, de uma realidade, de uma cena, recortando, em fragmento, a realidade vislumbrada pelo fotógrafo. O romance e o cinema agem por acumulação, visto que captam a realidade de forma mais ampla e multiforme. Dessa forma, o referido autor (1974, p.157) constrói a ideia de que um conto para ser considerado “um bom conto” deve apresentar, logo nas primeiras palavras ou cenas, uma tensão, seguida de uma intensidade – o conto excepcional. A intensidade consiste “na eliminação de todas as ideias ou situações intermédias, de todos os recheios ou frases de transição que o romance permite e exige”. Já a tensão “é uma intensidade que se exerce na maneira pela qual o autor nos vai aproximando lentamente do que conta”. O conto excepcional, segundo Cortázar, é aquele que atinge a qualidade literária, de modo que o torna inesquecível para quem o lê, fisgando, portanto, o Entretanto, segundo Gotlib (1999, p.52) “Estas considerações [acerca da epifania] não fazem parte estritamente do conceito do que se denomina conto. Podem fazer parte de uma teoria geral da narrativa, ou mesmo de uma teoria geral do conhecimento. No entanto, em contos cujo núcleo é justamente esta percepção reveladora de uma dada realidade, a teoria torna-se fundamental para a sua leitura. É o caso de Clarice Lispector, por exemplo.” 35 68 leitor. Para tanto, o conto deve tornar-se, segundo Cortázar, significativo, isto é, os elementos – tensão e intensidade – devem fazer parte, ou seja, o conto deve conquistar o leitor, “sequestrando-o” momentaneamente. Assim, o conto é um gênero discursivo complexo, para o qual é difícil de estabelecer fronteiras. Por isso, concordamos com Gotlib (1999, p. 82), quando afirma: Porque cada conto traz um compromisso selado com sua origem: a da estória. E com o modo de se contar a estória: é uma forma breve. E com o modo pelo qual se constrói este seu jeito de ser, economizando meios narrativos, mediante contração de impulsos, condensação de recursos [...] além disso, são modos peculiares de uma época da história. E modos peculiares de um autor, que, deste e não de outro modo, organiza a sua estória [...] como são também modos peculiares de uma fase ou de uma fase da produção deste contista, num tempo determinado, num determinado país (GOTLIB, 1999, p.82). Numa acepção bakhtiniana, inferimos que o conteúdo temático (aquilo que é possível de ser dito, o dizível em um gênero) do conto é “o contar estória”, como foi dito pela autora acima: “[...] cada conto traz um compromisso selado com sua origem [...]”. Bakhtin (1981[1929], p.91) afirma que “o gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica [...]” - a archaica refere-se aos traços característicos dos tempos antigos, a Antiguidade. Portanto, o gênero discursivo conto sempre apresentará os resquícios e traços distintivos de sua origem, de seus “elementos imorredouros da archaica”. Vimos ao longo dos nossos apontamentos que, desde tempos imemoriais, a atividade de narrar causos, acontecimento, ações e eventos move e dá vida ao gênero conto e o que lhe mantém vivo até os dias de hoje. No entanto, o ato de contar histórias, não se confunde com o de relatar – como dizemos em outro momento. O dizível do conto – o contar estórias - está imbricado com os eventos e atos dos sujeitos socialmente situados, já que uma das principais características de um contista é ser observador dos sujeitos em suas diversas esferas de atividade. Esses eventos e atos são infinitos em termos de temáticas: amor, tristeza, amizade, política, alegria, assassinato, sexo, adolescência etc. 69 A brevidade36, a compactação, o efeito único ou impressão total, a intensidade, a tensão, portanto, figuram como os elementos mais recorrentes e constitutivos da forma composicional do gênero discursivo conto. Gotlib (1999, p. 82 ênfase adicionada), ao refletir sobre o “modo de se contar”, afirma que: “E com o modo de se contar a estória: é uma forma breve. E com o modo pelo qual se constrói este seu jeito de ser, economizando meios narrativos, mediante contração de impulsos, condensação de recursos” (GOTLIB, 1999, p. 82). Como já dissemos, em outro momento, o estilo do gênero e do autor corresponde às escolhas lexicais, aos tempos verbais, isto é, aos elementos linguísticos que esse gênero pode levar, esses são os aspectos linguísticos mais recorrentes. Para Gotlib (1999, p.82 ênfase adicionada), o estilo do gênero discursivo conto se realiza pelos “modos peculiares de uma época da história”, por sua vez o estilo do autor está relacionado aos “modos peculiares de um autor, que, deste e não de outro modo, organiza a sua estória [...]”, assim, compreendemos o estilo como “modos peculiares de uma fase ou de uma fase da produção deste contista, num tempo determinado, num determinado país” (GOTLIB, 1999, p. 82). Nos contos, os tempos verbais, por exemplo, aparecem no pretérito perfeito ou imperfeito. Se estivermos falando de contos de fadas ou maravilhoso, as expressões “Era uma vez...” e “Viveram felizes para sempre!” são os mais utilizados. Elementos como fadas, duendes e seres encantados, bem como o caráter insólito, fantástico devem fazer parte da configuração desses contos. Ao passo que, se estivermos tratando de um conto de terror, a escolha lexical tenderá a provocar sentimentos de medo, de mistério (mysterium), de crueldade, de morte etc, palavras como, silêncio, escuridão, frio, vento, chuva, abismo, gato, corvo, morcegos são recorrentes – os exemplos são muitos, contudo os vocábulos devem estar em consonância com o caráter sombrio, sobrenatural, lúgubre e de terror, por muitas vezes, um terror psicológico, no interior do ser humano. Geralmente, o lugar da ação é descrito minuciosamente. Acreditamos que a tomada do conto como objeto de ensino-aprendizagem de leitura é relevante na medida em que o gênero discursivo conto ou o “contar A esse respeito, Cortázar (1974, p.151) diz que: “[...] o conto parte da noção de limite físico, de tal modo que, na França, quando um conto ultrapassa as vinte páginas, toma já o nome de nouvelle, gênero a cavaleiro entre o conto e o romance propriamente dito”. Contudo, temos conhecimento que há uns poucos autores, como Machado de Assis, que escreveram contos (O alienista, por exemplo) que excederam as cinquenta páginas. Para nós, isso se justifica pelo caráter sóciohistórico-cultural dos gêneros discursivos, pois esses não são formas estanques e rígidas, porém enunciados relativamente estáveis que se encontram na vida real e como tal são suscetíveis a transformações e transgressões dos modelos. 36 70 histórias” está presente na humanidade desde os tempos imemoriais: é uma atividade que até os dias atuais ainda faz parte da realidade das pessoas. Além disso, os gêneros da ordem do narrar, geralmente, são os mais conhecidos pelos alunos, pois muitos fazem parte de seu cotidiano, como por exemplo, as novelas televisivas, os filmes, as minisséries etc. E, a propósito, o aluno sempre está contando ou inventado histórias, eventos do seu dia a dia. Constatamos que o conto é um gênero discursivo na acepção bakhtiniana do termo, pois é constituído pelos elementos indissociáveis, ou seja, pelo conteúdo temático, forma composicional e estilo, relacionados às condições de produção e recepção (locutor e interlocutores sócio-históricos) e, também, às esferas da comunicação discursiva. Traçados, então, a historização do gênero conto, objeto desta pesquisa, apresentaremos, no próximo capítulo, o nosso percurso metodológico. 71 CAPÍTULO 4 Metodologia de pesquisa e as Ciências Humanas Quanto a mim, em tudo eu ouço vozes e relações dialógicas entre elas [...] Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação (Bakhtin). O presente capítulo tem como objetivo apresentar o processo metodológico adotado por esta pesquisa, os objetivos, o objeto, os sujeitos, os instrumentos da coleta de dados, as categorias de análise e as questões que instigaram o estudo. A pesquisa está fundamentada nas perspectivas sócio-históricas de Bakhtin e seu Círculo no que se refere à concepção enunciativo-discursiva de língua e linguagem, assim como nos construtos de Vygotsky sobre ensino-aprendizagem. 4.1 A natureza da pesquisa A natureza desta pesquisa é enunciativo-discursiva bakhtiniana, portanto, os sentidos e as significações dos eventos analisados se configuram como o cerne de nossas discussões. Diante disso, entendemos que assumir a perspectiva bakhtiniana é considerar os sujeitos, o contexto e os fenômenos, cuja dimensão social, histórica e cultural é imprescindível no processo de compreensão de determinado objeto. Por isso, o tratamento dos dados terá como ponto de partida o ato de “ouvir as vozes” (o LD e os questionários) que direcionaram esta pesquisa, construindo um espaço de interações dialógicas entre os sujeitos envolvidos, ou seja, o encontro do eu e do outro é um lugar de (des)construção dialógica de sentidos. Bakhtin/Volochinov (1929) argumentam que só pode haver interação social e construção de conhecimentos com a presença de um outro, pois, é por meio dessa interrelação (das relações interdiscursivas), entre o eu e o outro, que o objeto de pesquisa vai se constituindo. 4.2 Bakhtin e as Ciências Humanas No texto Metodologia das Ciências Humanas, Bakhtin (BAKHTIN, 2010[1974]) assevera que as ciências humanas são as ciências do discurso, porquanto o discurso oral ou escrito do ser expressivo e falante é o objeto a ser investigado. 72 Portanto, não há linguagem sem possibilidade de diálogo ou sem resposta de outrem, uma vez que a nossa fala sempre é direcionada a um outro que, de alguma maneira, responde e reage aquilo que foi dito - apesar de haver uma infinidade de possibilidade de respostas e de tomadas de decisões. Por isso, Bakhtin afirma que há três tipos de relações: 1. Relações entre os objetos: entre coisas, entre fenômenos físicos, químicos, relações causais, relações matemáticas, lógicas, linguísticas, etc. 2. Relações entre o sujeito e o objeto. 3. Relações entre os sujeitos – relações pessoais, relações personalizadas: relações dialógicas entre enunciados, relações éticas, etc. [...] (BAKHTIN, 1997[1970- 1971], p. 374 ênfase adicionada). Esta pesquisa está inserida nas “relações entre sujeito e o objeto” e, em boa medida, nas “relações entre sujeitos”, pois entendemos que a relação entre sujeito e objeto se dá na relação dialógica: o pesquisador e o livro didático. Ao passo que a relação entre sujeitos acontece no momento em que o pesquisador “ouve as vozes” tanto do autor do livro didático, quanto do aluno através do questionário, isto é, das relações dialógicas entre os enunciados. O pensador russo nos alerta que o pesquisador das ciências humanas não deve ir ao campo de pesquisa já com os eventos e situações prontas, ou seja, não se deve criar artificialmente uma situação para ser investigada, mas sim ir ao encontro do acontecimento, do evento, em seu processo de desenvolvimento. Esse lugar de encontro do acontecimento entre o objeto pesquisado e o pesquisador é prenhe de nuanças conflitantes e tensas em que o agir dos sujeitos propicia um confronto de vozes, olhares, visões de mundo, visto que o meu olhar acerca do outro nunca coincide com o olhar do outro acerca de mim, pois, “[...] é lugar de conflito e tensão, [bem como] lugares sociais de onde se produzem discursos e sentidos [que] não são necessariamente simétricos” (AMORIM, 2003, p.13). Na perspectiva bakhtiniana, o conceito de exotopia (outsideness) é recorrente em toda a sua obra, ocupando um lugar central para o entendimento da atividade de pesquisa. É importante dizer que Bakhtin, no momento em que cunhou esse conceito, estava analisando uma criação artística. 73 O pensador russo ao refletir sobre a obra de arte, a partir desse conceito, defende a ideia de que a obra é lugar de tensão, uma vez que entre o eu e o outro, “entre o retrato que faço de alguém e o retrato que ele [o outro] faz de mim mesmo, há sempre uma diferença fundamental de lugares e, portanto, de valores” (AMORIM, 2003, p.14). Conforme a mesma autora, exotopia “[...] refere-se à atividade criadora em geral – inicialmente à atividade estética e, mais tarde, à atividade da pesquisa em Ciências Humanas” (AMORIM, 2006, p. 95). O lugar exotópico, o lugar exterior, constrói-se no confronto de vozes, de diferentes perspectivas entre o eu e o outro, bem como na diferença e na tensão entre dois olhares, ou seja, dois pontos de vista. É um momento de distanciamento, de deslocamento do meu lugar ao de outrem na tentativa de compreender a maneira que esse outro olha e, finalmente, o momento de retorno ao meu lugar. Assim, a exotopia figura-se numa relação de tensão entre pelo menos duas consciências, dois lugares, isto é, “o do sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do olhar do outro” (AMORIM, 2006, p.101), pois somente o outro que está de fora pode dar uma visão acabada de mim mesmo. Portanto, numa relação dialógica, sempre haverá no mínimo duas consciências, dois olhares, duas vozes valoradas e sociossituadas que não se misturam, pois “o ser da expressão é bilateral: só se realiza na interação de duas consciências (a do eu e do outro)” (BAKHTIN, 2010 [1974], p. 395-396). Como as relações dialógicas são sempre valorações de indivíduos sociais e historicamente situados, em nossa pesquisa, num primeiro momento, buscamos conhecer e entrevistar alunos de uma escola e, em um segundo momento, intentamos dialogar com os autores dos livros didáticos em torno da didatização do gênero conto. Para tanto, o método sociológico, de Bakhtin/Volochinov (1929), foi-nos de grande valia, pois tal método toma a esfera de produção e circulação, o gênero do discurso e o texto como elementos imprescindíveis para a investigação numa acepção discursivo-dialógica. 74 4.3 O método sociológico Bakhtin/Volochinov, na obra Marxismo e filosofia da linguagem37 (1929), no texto intitulado A interação verbal, descrevem o método sociológico: Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser a seguinte: 1) As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2) As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3) A partir daí, exame das formas da língua em sua interpretação lingüística habitual (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929, pp. 128-129 ênfase dos autores). Dessa forma, a sequência do método sociológico, num primeiro momento, pode ser compreendida da seguinte forma: o primeiro item, o qual Bakhtin chama de condições concretas de interação verbal, refere-se às esferas da interação verbal entre os sujeitos, isto é, nas quais as relações interpessoais se realizam. Ao passo que o segundo item, as categorias de atos de fala, se refere ao gênero do discurso que surgem em decorrência da interação e, por fim, o último item, exame das formas da língua, diz respeito ao texto. Portanto, é dessa forma que o autor russo assevera que devemos estudar os fenômenos da linguagem humana. Concordamos com Paes de Barros (2005), quando diz que “o método sociológico que o círculo bakhtiniano elaborou nos permite, como pesquisadores, entender de forma mais abrangente um determinado objeto de estudo” (PAES DE BARROS, 2005, p.61). Argumentamos que o referido método tem como ponto de partida as relações discursivas nas condições concretas, nas esferas de atividade humana, cujos sujeitos assumem lugares ou posições. Nesse sentido, esta pesquisa tem como objetivos: 1. Conhecer as práticas de leitura dos discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental de uma escola pública mato-grossense; O método sociológico está presente em outras obras, a saber: “Discurso na vida, discurso na arte: sobre uma poética sociológica” (VOLOCHINOV [1926]); “O Freudismo” (BAKHTIN/VOLOCHINOV [1927]; “O método formal nos estudos literários” (MEDVEDEV [1928]). 37 75 2. Conhecer as propostas de didatização de ensino-aprendizagem de leitura do gênero conto da coleção didática de Língua Portuguesa “Viva Português” adotada pela escola; 3. Elaborar uma proposta de didatização do gênero conto para o nono (9º) ano do Ensino Fundamental. Para tanto, três perguntas de pesquisa orientam-nos: 1. Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar? 2. Qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção didática adotada na escola? 3. Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero conto? Posto nossos objetivos e perguntas de pesquisa, apresentaremos, a seguir, a nossa metodologia de coleta e de análise dos dados que nos auxiliou na busca pelas respostas desta pesquisa. 4.4 Metodologia de coleta dos dados Os instrumentos de coleta de dados, utilizados nesta pesquisa, foram: o questionário composto por 34 perguntas fechadas e uma aberta, feito a alunos do 7º (28 alunos) e 9º ano (26 alunos); uma coleção didática “Viva Português” (PNLD 2011-2013) do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental utilizada pelos entrevistados. A aplicação desse questionário possibilitou-nos “ouvir” a voz do aluno sobre a leitura, assim como averiguar o que estes eles costumam ler e o que gostam de ler, além de conhecer as diversas práticas de letramento de que tomam parte. É importante dizermos que a aplicação desse questionário, somado as respostas dos alunos, foi o que nos levou ao livro didático utilizado por eles. 76 Verificamos esse LD, a fim de examinarmos as capacidades de compreensão mobilizadas no trabalho com a leitura do gênero conto, pois, bem sabemos que o livro didático, atualmente, é o material mais utilizado pelo aluno na esfera escolar, por isso a nossa preocupação em averiguar as competências trabalhadas nele. Além disso, conforme Melo e Magalhães (2009), “muitas reflexões têm surgido sobre o livro didático de língua portuguesa (LDLP), contudo pouco ainda são os estudos sobre o ensino da literatura [da leitura literária ou do letramento literário] no livro didático” (MELO&MAGALHÃES, 2009, p.171). Também utilizamos como instrumento de coleta de dados o Manual do Professor dos referidos livros didáticos, com o intuito de detectar a concepção de leitura e de linguagem das autoras, bem como o referencial teórico. A seleção do LDLP ocorreu com base nos seguintes dizeres de Bakhtin/Volochinov (2009[1929]): O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado, no quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as de outros autores: ele decorre, portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929], p. 127-128 ênfase adicionada). Assim, entendemos que a coleção didática analisada figurou como um instrumento de pesquisa bastante relevante para pensarmos a nossa proposta didática. Além disso, sob a forma de diálogo, o LD possibilitou-nos averiguar, por meio das atividades propostas e o manual do professor, as expressões apreciadas e valoradas pelos autores acerca dos objetos de estudo e, ainda, pudemos ver o tratamento dado, pelos autores, à leitura e compreensão do gênero conto. Examinamos a coleção “Viva Português” (doravante LDVP) do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental, cujas autoras são Elizabeth Marques Campos, Paula 77 Cristina Cardoso e Silvia Letícia de Andrade. A coleção analisada foi aprovada pelo PNLD para o triênio 2011-2013. A obra é publicada pela editora Ática. Observamos, em todos os anos do LDVP, as atividades de leitura em que o gênero conto era trabalhado e constatamos que as autoras priorizam o trabalho com a gramática, visto que, em boa medida, os exercícios atinentes a conteúdos gramaticais têm grande incidência. A escola fica localizada no Bairro Boa Esperança, distrito regional do Coxipó, zona sudoeste de Cuiabá, capital de Mato Grosso. O bairro é residencial, os moradores, em sua maioria, são das classes sociais A e B, mas a escola atende a população de vários bairros adjacentes, em especial as de menor poder aquisitivo. Boa parte dos moradores constitui-se da comunidade acadêmica da Universidade Federal de Mato Grosso, em especial de estudantes universitários. 4.5 Metodologia de análise dos dados A metodologia de análise de dados se sustenta na abordagem bakhtiniana da pesquisa nas Ciências Humanas. No momento da análise do LDVP, consideramos relevante aplicar as seguintes categorias de análise: Compreensão ativa; Compreensão passiva (BAKHTIN, 1993[1934-1935]). Além dessas, também: Capacidades de compreensão; Capacidades de apreciação estética e réplica ativa do leitor (ROJO, 2004). É importante dizermos que, no decorrer desta análise, novas categorias surgiram, pois como bem aponta Brait (2006) “não há categorias, a priori, aplicáveis de forma mecânica a textos e discursos, com a finalidade de compreender formas de produção de sentido num dado discurso, numa dada obra, num dado texto” (BRAIT, 2006, p. 14 ênfase da autora). Sendo assim, no próximo capítulo, apresentaremos a análise do questionário e as nossas conclusões decorrentes da observação do trabalho que o livro didático de Língua Portuguesa (LDVP) propõe para as atividades de leitura de contos na coleção aqui já citada. 78 CAPÍTULO 5 Analisando os questionários e o Livro Didático de Língua Portuguesa [...] o ensino das disciplinas verbais conhece duas modalidades básicas escolares de transmissão que assimila o [discurso de] outrem (do texto, das regras, dos exemplos): “de cór” e “com suas próprias palavras”. […] O objetivo da assimilação da palavra de outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica do homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta não mais na qualidade de informações, indicações, regras, modelos etc., - ela procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a palavra internamente persuasiva (BAKHTIN, 1993 [1934-35], p. 142). [Leitura] Significa que quando eu estou lendo eu vou para outra dimensão que o mundo fica diferente que a história e o lugar a onde eu estou que faço parte da história, e um luga a onde eu posso fugir da minha vida normal ser outra pessoa (Dizer de uma aluna do 7º ano). O objetivo deste capítulo é observar, analisar e compreender as concepções e práticas de leitura dos alunos do 7º e 9º ano do Ensino Fundamental. Além disso, também, visa à compreensão das propostas de didatização da leitura do gênero literário conto no Livro Didático de Língua Portuguesa “Viva Português” (LDVP). Neste capítulo, nosso olhar se voltará para as propostas de leitura que o livro didático apresenta, a fim de perceber quais são as possíveis capacidades de leitura mobilizadas nas propostas e de que maneira elas colaboram para a formação de um leitor literário. 79 5.1 Os questionários: as práticas de leitura e letramentos dos alunos Nesta seção de nossa pesquisa, serão elencados e analisados os dados de práticas de leitura e práticas de leitura literária de nossos sujeitos, a fim de respondermos a primeira pergunta de pesquisa: Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar? A escola escolhida para a aplicação de questionários com uma pergunta aberta foi a “Escola Estadual F. A. F. M.” localizada em Cuiabá, capital de Mato Grosso. Esta pesquisa contou com a participação de 54 alunos, sendo 28, do 7º ano; e 26, do 9º ano do Ensino Fundamental. A escolha por esses anos ocorreu por causa do trabalho didático com o gênero conto nos LD dessas etapas, como bem sugerem os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa de 3º e 4º ciclos. Além disso, gostaríamos de propor um trabalho que discutisse a formação do leitor literário na escola fundamental. Para tanto, inicialmente, fez-se necessário coleta e análises de dados acerca das práticas de leitura dos alunos. 5.1.1 As práticas de leitura Apresentaremos, nesta seção, a análise dos dados dos questionários aplicados aos alunos do 7º e 9º ano do Ensino Fundamental atinentes às atividades de leitura e às outras práticas de letramento dos alunos. Tabela 1 – A presença da leitura na infância Sim 63,46% Não sei 26,92% Não 9,62% Tabela 2- Quem lia. Não respondeu 32,69% Mãe ou responsável do sexo feminino 28,85% Mãe e pai 13,46% Pai ou responsável do sexo masculino 11,54% Avó 5,77% Outra pessoa 3,85% Tia 1,92% Irmã mais velha 1,92% 80 Tabela 3 – Pessoas que mais influenciaram o gosto pela leitura Mãe e pai 25,00% Algum professor 25,00% Mãe ou responsável do sexo fem. 21,15% Ninguém 9,62% Pai ou responsável do sexo masc. 7,69% Outro parente 5,77% Algum amigo 3,84% Padre/pastor ou líder religioso 1,92% Quanto à presença da leitura na infância, os dados nos mostram que 63,46% dos alunos tinham alguém que lia para eles. A mãe ou responsável do sexo feminino aparece com 28,85%, portanto, conforme os dados essa é a principal mediadora entre “a criança e o livro”. A tabela 3 aponta dados relevantes no que tange à influência do gosto pela leitura na infância: os pais apresentam uma incidência de 25,00%, de igual maneira o professor. Os dados revelam que os pais, bem como o professor exercem uma grande influência nesse processo de valorização e gosto pela leitura na infância. Esse achado revela o quão importante é o papel do professor na vida escolar do aluno, não apenas como influenciador desse processo, mas como mediador que incentiva e colabora para o bom desenvolvimento do gosto pela leitura. Como Azevedo (2003, p.76) assevera: É razoável, em todo o caso, que crianças e jovens com situação social minimamente equilibrada e que, por sorte, mantenham contato com adultos leitores – referimo-nos a leitores de fato e não apenas a gente alfabetizada – tenham boas chances de também se tornarem leitores (AZEVEDO, 2003, p.76). Tabela 4 – Materiais escritos existentes na residência Bíblia, livros sagrados ou religiosos, livros didáticos, dicionários. 53,80% Agenda de telefone, livros de receita de cozinha. 11,54% Livros de literatura/romances, enciclopédia. 9,62% Álbum de família, fotografias. 9,62% Calendários e folhinhas. 7,69% Não respondeu. 5,77% Livros infantis. 1,92% 81 Tabela 5 – Quantidade de livros existentes na residência De 15 a 50 50,00% Menos de 10 23,08% De 51 a 100 17,31% Não tem livros em casa 5,77% Não respondeu 3,85% Como podemos perceber na tabela 4, no que se refere aos materiais escritos, que os sujeitos possuem em sua residência, 53,85% dos alunos responderam que há Bíblia (livros sagrados ou religiosos), livros didáticos e dicionários em suas residências. A forte presença do livro didático e do dicionário parece resultar das ações educacionais e programas governamentais tais como: PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) e do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar). Certamente, a forte presença da Bíblia (livros sagrados ou religiosos) é fruto de ações sociais nas comunidades, ou seja, talvez, pelo fato da religiosidade dos familiares. Por outro lado, os dados apontam uma incidência bem menor, 9,62%, para livros de literatura/romances e enciclopédia. Podemos pensar que isso se justifique pelo fato destes materiais impressos em nossa sociedade serem caros, embora nos anos de 2002, 2003 e 2004, o Ministério da Educação (MEC), por meio do Fundo de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), tenha distribuído gratuitamente, junto às escolas públicas do país, uma coleção denominada Literatura em minha casa que continha diversos gêneros da esfera literária, por exemplo: conto, peça teatral, poema, crônica, novela . Executado no ano de 2011, o objetivo desse projeto era entregar a cada aluno um kit contendo cinco livros de diferentes gêneros literários. Nesse sentido, entendemos que o fato de um aluno da rede pública ganhar uma obra literária nos parece relevante para o aprimoramento do letramento literário. No entanto, compreendemos que apenas a posse de livros não determina a formação do leitor literário, visto que para isso é preciso professores e mediadores de leitura capacitados e apreciadores da leitura literária. Além disso, para o aprimoramento da formação literária, necessita-se de espaços públicos, por exemplo, bibliotecas adequadas e equipadas. No que tange à quantidade de livros na residência, 67,31% dos sujeitos responderam que têm de 51 a 100 livros. Esse dado é interessante, na medida em 82 que o comparamos com o índice de “tipos de materiais escritos na residência” – 53,80% para livro didático, dicionário e livros religiosos - observamos que, talvez, o que o aluno tem reconhecido por “livro” é, por exemplo, o livro didático e/ou Bíblia (livros sagrados ou religiosos). Tabela 6 – Tipo de livro que costuma ler, ainda que de vez em quando Romance, aventura, policial, ficção 46,15% Bíblia, livros sagrados ou religiosos 30,77% Não costuma ler livros 13,46% Biografias, relatos históricos 5,77% Autoajuda, orientação pessoal 3,85% Tabela 7 – Quantidade de livros lidos neste ano 38 Mais de três 44,23% Um 21,15% Dois 17,31% Nenhum 17,31% Os dados da tabela 6 mostram que 46,15% desses alunos disseram ler – ainda que de vez em quando – livros de romance, aventura, policial e ficção. Nossos dados analisados corroboram com os da pesquisadora Paes de Barros (2005) porque se assemelham com esse contexto, isto é, 51,6% disseram ler livros de romance, aventura, policial e ficção. Assim, os dados trazem um percentual bastante relevante no que diz respeito à leitura de livros: 86,54% disseram ler algum tipo de livro, apenas 13,46% disseram que não costumam ler livros. Entretanto, ao observarmos novamente a tabela 4, os livros de literatura/romance aparecem com uma incidência ínfima de 9,62% contrapondo-se a 46,15% - romance, aventura, policial e ficção - da tabela 6 referente a tipo de livro que costuma ler. Em relação à quantidade de livros lidos durante o ano (tabela 7), 44,23% responderam que haviam lido mais de três livros no decorrer daquele ano. Portanto, os dados indicam que 82,69% dos entrevistados já leram pelo menos um livro durante o ano. 38 Referente ao ano de 2011, momento em que aplicamos ao questionário. 83 Tabela 8 – Textos lidos na escola Livros didáticos 42,31% Matérias, textos ou exercícios no quadro negro 32,69% Seus próprios textos ou dos colegas 7,69% Textos e exercícios em folhas avulsas 5,77% Revistas 5,77% Jornais 1,92% Sites ou páginas na internet 1,92% Folhetos e cartazes 1,92% Tabela 9 – Atividades realizadas na escola Copiar matérias, textos e exercícios do quadro negro 73,08% Fazer redação ou trabalhos, responder a questionários ou fazer exercícios 15,38% Copiar textos dos livros 5,77% Apresentar seminários ou trabalhos, participar de debates ou discussões 3,85% Fazer anotações sobre as aulas 1,92% No atinente às práticas escolares, nossos dados revelam uma grande incidência de 73,08% de atividades voltadas para copiar matérias, textos e exercícios do quadro negro. E, ainda revelam que 5,77% das atividades estão relacionadas às práticas de cópias de textos dos livros. Podemos compreender que essa incidência alta de exercícios escolares de cópias ou de identificações nos remete a possíveis práticas docentes cristalizadas e sedimentadas e práticas similares do livro didático que colaboram para a promoção da cópia e identificação de informações. Diante do exposto, Inicialmente, o que chama a atenção nesse episódio dos alunos [e do LD] é a famosa frase modelar das práticas escolares: [...] copiar. De tal modo habituados a atividades escolares que envolvem a reprodução pela cópia, os alunos tendem a reproduzir, mesmo nas aulas de um projeto de leitura, aquilo que compreendem faça parte de uma atividade escolar: o exercício de copiar informações (PAES DE BARROS, 2009, p. 171). Os dados apontam um percentual de 15,38% de resposta com “fazer redação ou trabalhos, responder a questionários ou fazer exercícios”. Para a questão “textos lidos na escola”, o livro didático apresenta uma incidência de 42,31%, em seguida vem o ato de copiar matérias, textos ou exercícios do quadro negro com 32,69%. Essas são, assim, as principais atividades de leitura realizadas em sala de aula pelos alunos entrevistados. Entendemos que tais práticas não são suficientes para a 84 formação de um leitor crítico que tenha domínio da palavra escrita. Por conseguinte, não está em consonância com as ideias dos PCNLP (1998) que asseveram: [...] cabe à escola promover sua ampliação de forma que, progressivamente, [...] cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações (BRASIL/MEC/SEF, 1998, p.19). Algo semelhante acontece nos dados de pesquisa de Paes de Barros (2005, p. 119), a qual afirma que as atividades mais realizadas nas práticas escolares são caracterizadas pela cópia de matérias e exercícios do quadro negro, verificamos, assim, também, em nossos dados, grande incidência dessas atividades. Diante desse quadro, concordamos com Azevedo (2003, p.79) que os “textos literários são essenciais para a formação das pessoas, têm seu sentido e seu lugar, mas não formam leitores. É preciso que, concomitantemente, haja acesso à leitura de ficção, ao discurso poético, à leitura prazerosa e emotiva”. Em boa medida, podemos inferir que, provavelmente, ao invés de uma prática de leitura para formação de um leitor crítico, há práticas, na escola, para formar sujeitos meramente “copistas” ou sem “vozes apreciativas”. Tabela 10 – Gêneros habitualmente lidos Poesia 26,92% Letra de canção 21,15% Conto 17,31% Artigo de jornal/revista 11,54% Crônica 11,54% Não respondeu 7,69% Romance 3,85% Tabela 11 – Gêneros mais apreciados para leitura Poesia 23,08% Letra de canção 19,23% Artigo de jornal/revista 17,31% Conto 15,38% Romance 9,62% Crônica 7,69% Não respondeu 7,69% 85 Tabela 12 – Gêneros mais apreciados para a escrita Poesia 29,08% Conto 17,31% Letra de canção 13,46% Outros 11,54% Não respondeu 11,54% Crônica 5,77% Romance 5,77% Artigo de jornal/revista 11,54% Cartas 1,92% Os dados referentes às tabelas 10, 11 e 12 revelam que gêneros discursivos da esfera literária encabeçam as listas dos textos que os alunos costumam ler, mais gostam de ler e de escrever. A poesia é o gênero discursivo com maior incidência, 26,96%; 23,08%; 29,08%, respectivamente para as referidas questões. Os dados apontam o gênero discursivo letra de canção como o segundo mais lido entre os discentes, com 21,15% para o que costumam ler e 19,23% para o que mais gostam de ler. Por sua vez, o gênero discursivo conto, também da esfera literária e objeto desta pesquisa, apresenta um índice interessante 17,31% para o que os alunos costumam ler; 15,38% para o que mais gostam de ler e 17,31% para o que mais gostam de escrever. Concernente à produção escrita, os dados mostram que a poesia é a mais cobiçada entre os alunos, aparecendo com 29,08%. O conto fica em segundo lugar com uma incidência de 17,31%. Os dados revelam, portanto, que os alunos entrevistados apreciam os gêneros discursivos da esfera literária. Possivelmente, isso se deve ao fato de que os gêneros da esfera literária se constituem numa experiência a ser realizada pelo leitor, ou seja, o texto literário tem o caráter de dizer o que somos de maneira tal, que nos leva a desejar expressar o mundo ao nosso modo. Inferimos, assim, que talvez os discentes tenham outras práticas de leitura fora da sala de aula, na biblioteca, em algum curso, em casa, num projeto social, na igreja etc. Como podemos ver na tabela abaixo 53,85% dos alunos fazem algum tipo de curso. 86 Tabela 13 – Frequenta algum curso Sim 53,85% Não 46,15% 5.1.2 Outros dados Nesta seção, apresentaremos algumas práticas de letramentos dos alunos entrevistados no que se refere ao uso do computador e internet, assim como as práticas de leitura de seus pais ou parentes. Tabela 14 – Frequência de uso do computador Todos os dias da semana 48,08% Quase todos os dias 23,08% Eventualmente/de vez em quando 17,31% Um ou dois dias da semana 9,62% Nunca utilizou computador 1,92% Tabela 15 – Que uso costuma fazer do computador Navegar em redes sociais: Orkut, Facebook, Twitter 71,15% Preparar trabalhos escolares 21,15% Não respondeu 5,77% Não uso computador 1,92% Quanto à frequência de uso do computador, 48,08% dos sujeitos disseram que usam todos os dias da semana e 23,08% quase todos os dias. É interessante observarmos que em pesquisa semelhante, Paes de Barros, em 2005, constata que apenas 6,4% dos discentes tinham o costume de utilizar o computador todos os dias e 48,3% faziam uso eventualmente. Esses dados revelam que, de fato, a acessibilidade digital é muito maior hoje em dia. Talvez isso seja decorrência das políticas públicas de inclusão digital (por exemplo, algumas bibliotecas públicas passaram a disponibilizar o acesso à internet); dos preços de aquisição desse tipo de tecnologia que se tornou mais acessível; além da grande quantidade de lan houses, principalmente, em bairros periféricos. Ainda conforme a Paes de Barros (2005), a incidência de alunos que nunca utilizaram o computador era grande, chegando em 29,0%. Por sua vez, os nossos dados apontam um percentual irrisório de 1,92%. Entretanto, os dados revelam que 71,15% dos discentes têm utilizado a ferramenta internet/computador mais para 87 “navegar” nas redes sociais do que para estudo, pesquisa ou realizar trabalhos, porque, como os dados mostram apenas 21,15% utilizam essa ferramenta para essas finalidades. Tabela 16 – Práticas de leitura de pais ou parentes Ler a Bíblia, livros sagrados ou religiosos 42,31% Ler revistas 19,23% Ler jornais 13,46% Ler ou escrever cartas, ler receitas 9,62% Não sabe 9,62% Fazer trabalhos escolares 3,85% Ler ou escrever tarefas do trabalho 1,92% No que concerne às práticas de leitura dos pais ou parentes, os dados revelam que 42,31% têm a prática de ler a Bíblia ou livros religiosos e que 19,23% costumam ler revistas. Sabemos que a presença da leitura desde os primeiros anos de vida da criança é muito importante para a formação de um futuro sujeito leitor, bem como outras práticas de letramento, por exemplo, o ato de contar histórias, a ida à biblioteca ou livraria com os pais, ver os pais ou alguém próximo lendo, assistir a um filme e peça teatral, ouvir música etc. 5.1.3 Atividades diversas Como temos dito, alguns eventos de letramentos são de suma importância para a formação de um sujeito leitor, em especial, o leitor literário. Por isso, nesta seção, apresentaremos outras atividades que os alunos costumam participar, além das mencionadas anteriormente. Com que frequência você: Tabela 17 – Assiste à televisão Sempre 84,62% Às vezes 13,46% Nunca 1,92% Tabela 18 - Ouve rádio Sempre 53,85% Às vezes 44,23% Nunca 1,92% 88 Tabela 19 - Vai a exposições ou feiras Às vezes 38,46% Nunca 34,62% Sempre 26,92% Tabela 20 - Vai a shows Nunca 36,54% Sempre 32,69% Às vezes 30,77% Tabela 21 - Vai a cinemas Às vezes 65,38% Sempre 26,92% Nunca 5,77% Não respondeu 1,92% No que tange a atividades culturais, conforme os dados indicam, a televisão e o rádio são os principais meios de comunicação presentes na vida dos alunos: 84,62% dos discentes afirmam assistir à televisão “sempre” e 53,85% ouvem “sempre” o rádio. Diante disso, é importante refletirmos sobre a qualidade da programação da televisão aberta em nosso país, pois como os dados mostram, esse é o principal meio de entretenimento e informação de muitas crianças e jovens. No que se refere à frequência com que vão ao cinema, 65,38% disseram que “às vezes” vão ao cinema. Talvez, tal incidência seja decorrência da localização da escola que fica aos redores da Universidade Federal e essa aos fundos do Shopping Center Três Américas de Cuiabá, MT, o shopping aqui referido tem um sistema de promoção de sessões de cinema às segundas e quartas-feiras para estudantes. Quanto à frequência com que vão a exposições ou feiras e a shows, os dados apontam que 38,46% “às vezes” vão a exposições ou feiras e 36,54% “nunca” vão a shows. Observamos, portanto, que esses sujeitos estão inseridos em variadas práticas de letramento. Em nosso contexto, os dados revelaram que, em certa medida, os jovens têm lido e participado de eventos culturais. Assim sendo, na seguinte seção, analisaremos o “dizer” do aluno sobre a sua concepção de prática de leitura. 89 5.1.4 O que é leitura para você? Neste subitem, continuaremos as análises dos dados referentes a uma pergunta aberta do questionário aplicada aos 7º e 9º anos. Tabela 22: O que significa leitura para você? (7º ano) Leitura como forma de adquirir conhecimento Leitura como forma de obter informação Leitura como fruição, uma forma de prazer Leitura como forma de conhecer outras culturas Leitura como forma de diversão Não respondeu 53,57% 17,86% 14,29% 7,14% 3,57% 3,57% A tabela 22 corresponde ao questionário feito com 28 alunos do 7º do Ensino Fundamental da referida escola. Os alunos deveriam responder em forma de texto verbal a pergunta: O que significa leitura para você? Mais da metade dos alunos, isto é, 53,57%, concordam que a leitura é uma forma de adquirir conhecimento. Ao nosso ver, os discentes têm encarado a leitura como uma atividade de grande importância para a formação escolar. AL39.1: É um modo de aprender mais, um novo modo de conhecimento AL.2: leitura para mim e saber mais. AL.3: leitura significa mais aprendizado AL.4: Saber mais. ficar mais bom pra ler AL.5: Leitura é jeito para saber mais e ser alguem AL. 6: As pessoas desenvolve mais e o aprendicio fica melhor Os alunos questionados valoraram o objeto discursivo em questão, relacionando-o às práticas de leituras escolares cristalizadas e coerentes a função principal da escola: o ensino e aprendizagem. Atrelado às práticas escolares, temos 17,86% de alunos que concebem a leitura como uma forma de obter informação: AL. 7: educação informação AL.8: leitura significa informação AL.9: Leitura significa e é uma fonte de informação 39 AL. Corresponde a aluno. 90 Quando os alunos afirmam que leitura é “informação”, de certa forma, estão revozeando um discurso presente e, vivenciado na escola por eles, de conceber a leitura como um processo de decodificação, atrelada à extração, extração literal e/ou cópia de informações, isto é, um ato mecânico de ler e escrever, pois, provavelmente os alunos responderam à questão a partir de suas vivências e experiências apropriadas ao longo de suas vidas em práticas escolares e de leitura. A nosso ver, trata-se de uma resposta bem coerente com as práticas escolares de leitura ligadas ao ensino de conteúdos, muitos dos quais compostos de informações e dados. Já outros alunos do 7º ano contestaram com outro olhar sobre as práticas de leitura. Conforme a tabela demonstra, 14,29% dos discentes afirmaram que compreendem a leitura como uma atividade que proporciona o prazer e a imaginação: AL. 10: Significa que quando eu estou lendo eu vou para outra dimensão que o mundo fica diferente que a história e o lugar a onde eu estou que faço parte da história, e um luga a onde eu posso fugir da minha vida normal ser outra pessoa. AL. 11: Eu vou para outro mundo que eu mesmo posso inventar, eu me sinto dentro da história, eu sinto como se fosse a vida real. De certa maneira, podemos compreender um perfil de um possível leitor literário, cujo objetivo principal nas atividades leitoras é fruir na leitura. Esses alunos afirmaram terem o costume de ler romance, poesia, letra de canção, conto. Inferimos que eles possam ser leitores literários, uma vez que, em seus textos, observamos expressões e apreciações (vou para outra dimensão; o mundo fica diferente; faço parte da história; posso inventar outro mundo; me sinto dentro da história etc.) que somente quem tem a prática de leitura literária poderia usufruir e apontar. Notamos, nas respostas acima, a leitura por fruição ou por prazer como características inerentes à leitura literária ou à prática leitora literária, pois, conforme Cândido (2011, p.177), o texto literário se: Manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia [...] Deste modo, ela é 91 fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade [...] (CÂNDIDO, 2011, p.177). Passemos agora a tabela 23 que corresponde à entrevista feita com 26 alunos do 9º ano de uma escola pública de Cuiabá, Mato Grosso. Tabela 23: O que significa leitura para você? (9º ano) Leitura como forma de adquirir conhecimento Leitura como forma de escrever melhor Leitura como diversão Não respondeu Leitura como forma de obter informação Leitura como fruição, uma forma de prazer Leitura como forma de compreensão 23,08% 19,23% 15,38% 15,38% 11,54% 11,54% 3,85% Assim como o resultado dos dados no 7º ano, a concepção de leitura como forma de adquirir conhecimento continua encabeçando os percentuais desta pesquisa, porém, com uma incidência menor 23,08%. Percebemos que agora os alunos parecem preocupados com a escrita, pois 19,23% dos discentes disseram que leitura é uma forma de escrever e dominar melhor a Língua Portuguesa. Al.14: Significa aprendizado ler é tudo de bom eu adoro porque ler você aprende mais escreve melhor entende tudo melhor fica mais fácil até mesmo pra realizar projetos pequenos. Al. 15: meio importante pra escrever melhor A leitura como forma de diversão vem logo abaixo com 15,38% das respostas dos alunos. Alguns – 11,54% - compreendem a leitura como uma forma de obter informação. Com esse mesmo percentual, alguns alunos disseram que tomam a leitura como uma forma de prazer, imaginação, isto é, como fruição. Uma incidência inferior, ao compararmos com o percentual do 7º ano – 14,29% - para essa mesma questão. Observando os dados, parece que os alunos, ao passar de ano, perdem o interesse pela leitura nessa perspectiva do domínio escolar. Al.16: Expressar sentimentos através de palavras como ler um romance, drama, animação Al.17: É o lugar em que se pode dar a vida em qualquer coisa além da imaginação 92 Responderemos, assim, a nossa primeira questão de pesquisa: Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar? Para respondermos a questão, recorreremos, mais uma vez, às duas falas referidas anteriormente, cujas respostas são de suma relevância para a construção de nossa proposta. Assim, passemos aos dois dizeres: AL. 10: Significa que quando eu estou lendo eu vou para outra dimensão que o mundo fica diferente que a história e o lugar a onde eu estou que faço parte da história, e um luga a onde eu posso fugir da minha vida normal ser outra pessoa. AL. 11: Eu vou para outro mundo que eu mesmo posso inventar, eu me sinto dentro da história, eu sinto como se fosse a vida real. Nesse momento, relacionamos as respostas com a citação abaixo. No tocante ao texto literário, Cosson (2007, p17) afirma que esse: [...] nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá por que a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos (COSSON, 2007, p.17 ênfase nossa). Observamos, assim, que as referidas falas dos alunos estão em consonância com a citação acima visto que os discentes tiveram e têm experiências com gêneros da esfera literária. Observamos, em suas respostas, o fato de os alunos se apropriaram de certas formas de leitura literária que os levou a incorporação de outros – outros mundos, outras pessoas, outras culturas, outros sentimentos etc. Nesse sentido, percebemos outro aspecto relevante, levantado pelos discentes: as leituras literárias lhes proporcionaram o rompimento com o tempo e o espaço em que estavam, de maneira que tal rompimento não apenas lhes permitiu saber da vida através da experiência alheia, mas, sobretudo, de vivenciá-la. Dessa forma, a leitura literária amplia o nosso universo, o nosso olhar sobre o mundo (e sobre nós mesmos), de tal forma a nos incitar a imaginá-lo e compreendê- 93 lo, concebê-lo e organizá-lo de outras maneiras. A leitura literária provoca em nós inquietações, sensações, experiências - como se abrisse uma “fenda” – que, de certa forma, não nos permite o esquecimento ou apagamento delas. Talvez, tenha sido isso que aconteceu com esses alunos, a julgar por suas respostas. Portanto, é por possuir esse caráter emancipatório e de tornar o mundo compreensível por meio das palavras e das linguagens - transformadas em cores, dores, odores, dissabores, sabores e amores - que a leitura literária, a nosso ver, deve e precisa manter um lugar relevante no espaço escolar. Na próxima seção, passaremos à nossa segunda questão de pesquisa. 5.2 Sobre a coleção do Livro Didático Viva Português Nesta seção, serão elencados e analisados os dados referentes às práticas e atividades leitoras contidas na coleção do LDVP de nossa pesquisa. A partir da perspectiva enunciativo-dialógica, tomamos o livro didático de língua portuguesa (LD) como gênero do discurso em conformidade com os pesquisadores: Bunzen e Rojo (2005); Padilha (2005), Paes de Barros (2005). Essa vertente possibilita-nos analisar as relações dialógicas empreendidas pelas autoras do LD no interior da obra didática Viva Português. 5.2.1 Descrição geral da coleção A coleção Viva Português do 6º ao 9º ano é publicada pela editora Àtica cuja autoria é coletiva. Os volumes da coleção estão organizados em quatro unidades temáticas, cada uma delas dividida em dois capítulos, os quais são nomeados a partir de nomes de gêneros. Por consequência, há capítulos denominados como fábula e conto, poema, anúncio publicitário, tira, anedota, novela, romance, roteiro de cinema. A coleção estudada organiza-se em capítulos. No que se refere ao gênero conto há capítulos intitulados: conto de assombração, conto de mistério e conto maravilhoso (6º ano do LD); conto (7º ano); conto de amor (8º ano); conto de mistério, conto contemporâneo e conto fantástico (9º ano). Por sua vez, em cada capítulo há dois textos principais nomeados como texto 01 (um) e texto 02 (dois), os quais didatizam os gêneros discursivos elencados acima. 94 No início de cada unidade e antes dos capítulos, há a seção Projeto que visa à apresentação de um projeto a ser desenvolvido durante o semestre escolar. Por exemplo, no 6º ano há o Projeto Revista e o Projeto Livro de pano; no 7º ano, o Projeto Espetáculo teatral e Jornal Mural/Informativo; no 8º ano, Projeto a leitura no pátio e Projeto Leitura multimídia e no 9º ano existe o Projeto Livro de Contos e Projeto Revista. Após a apresentação dos Projetos, há a apresentação das unidades, nesse caso, um roteiro esquemático dos conteúdos a serem desenvolvidos na unidade. Em seguida, o LDVP inicia cada um dos capítulos com um subtítulo relacionado às tipologias textuais. Assim, constam subtítulos como tipos textuais narrativo, descritivo e argumentativo. Em seguida, apresenta-se a seção denominada Antes de ler. Após isso, inicia-se o texto principal [texto 01] de determinado gênero (conto de amor, conto maravilhoso, conto de mistério, etc.). Outras seções são a interpretação escrita, conhecimentos linguísticos, exercícios de fixação (uma subseção) e novamente Antes de ler. Depois, segue a sequência: Texto 02 (dois), Interpretação escrita, conhecimentos linguísticos, exercícios de fixação e aplicação, quadro sintético de características do gênero estudado na unidade. Em algumas obras da coleção, aparece a seção No mundo da fala e produção de texto. Ao final de cada duas unidades, o LDVP retoma novamente a seção Projeto, a fim de concretizar o trabalho desenvolvido, articulando, assim, os eixos de leitura, produção textual (oral e escrita) e conhecimentos linguísticos. Sua finalidade é a elaboração de um livro de pano, revista, jornal e a montagem de uma peça teatral. A coletânea apresenta uma grande variedade de textos de diferentes esferas: jornalísticas, literárias, publicitária etc. Ao final de cada unidade, tem-se a seção Aproveite para... (ler, assistir, ver na internet) cujo intuito é incentivar o aluno a buscar outros textos e também informações com títulos de livros, filmes, sites relacionados aos gêneros e temáticas estudados. Em cada unidade há dois capítulos, cada um com dois textos principais. Antes da leitura de cada texto principal, o LDVP apresenta a seção Antes de ler que instiga o aluno a pensar sobre o tema do capítulo com atividades orais e/ou escritas. A seção Interpretação explora, principalmente, a estrutura do texto, as informações explícitas e implícitas, a formação de inferências, dentre outros aspectos. 95 As atividades de produção são propostas ao final de cada unidade e são desenvolvidas em etapas que se chamam: Decalque, Reprodução, Transcrição. Por último, na seção Produção de autoria, o discente é orientado a escrever seu próprio texto, de forma que o LDVP traz um esquema de orientação, notadamente: Quem diz? O que diz? Como diz? Por que diz? A oralidade é apresentada na seção No mundo da fala cujo objetivo é propor a realização de atividades as quais desenvolvam a proficiência oral, porém, o PNLD (2011, p. 148) diz que “o trabalho com a oralidade é limitado”. Os conhecimentos linguísticos são explorados na seção Conhecimentos linguísticos e nas subseções Exercícios de fixação e Exercícios de Aplicação. Ao final da explanação dos conteúdos, há um quadro de Conclusão que apresenta um resumo dos conteúdos estudados na seção. Como a nossa pesquisa aborda o letramento literário, descreveremos e analisaremos as escolhas dos gêneros desse domínio. Portanto, passaremos a nossa segunda pergunta de pesquisa: Qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção didática adotada na escola? 96 5.2.2 Os gêneros da esfera literária na coleção Na tabela a seguir apresentaremos os dados referentes à quantidade de gêneros da esfera literária que observamos na coleção analisada: Tabela 24: Quantidade de gêneros da esfera literária na coleção GÊNERO DISCURSIVO 6º ANO 7º ANO 8º ANO 9º ANO TOTAL POEMA 35,71% 5% 45,95% 25,14% CONTO (trecho) 12,86% 12,50% 13,51% 50% 18,86% ROMANCE (trecho) 7,14% 10% 13,51% 3,57% 8,57% CRÔNICA 15,71% 5% 2,71% 21,43% 11,43% LETRA DE CANÇÃO 8,57% 5% 8,11% 3,57% 6,86% CONTO 5,71% 2,50% 5,40% 21,43% 7,43% FÁBULA 2,86% 22,50% 6,29% 17,50% 4% CORDEL ANEDOTA 7,14% PEÇA TEATRAL HAICAI 10% 2,70% 3,43% 2,70% 2,86% 2,86% 1,14% LENDA 5% 1,14% MITO 5% 1,14% NOVELA (trecho) PARÁBOLA TOTAL 5,41% 1,14% 1,43% 70 0,57% 40 37 28 175 Conforme a tabela 24, os dados revelam que o poema encabeça a lista dos gêneros da esfera literária na coleção, apresentando uma incidência de 25,14%. Em seguida, o conto com um percentual de 18,86 %, porém aqui tal ocorrência, em todos os anos da coleção, se dá por meio de excertos. Assim, pudemos observar que há uma presença significativa de gêneros da esfera literária no LDVP analisado. Parece que o LDVP dialoga com os PCNLP, no que diz respeito ao quadro intitulado “Gêneros privilegiados para a prática de escuta e leitura de textos” (BRASIL, MEC/SEB, 1998, p. 54). A nosso ver, esse possível diálogo entre LDVP e PCNLP é importante, pois demonstra que, de certa forma, os autores estão a par das orientações dos documentos e, em boa medida, das questões atinentes aos novos estudos, muito embora o projeto discursivo do PCNLP tenha sido construído por várias vertentes teóricas do ensino-aprendizagem de língua materna como a Análise do Discurso 97 francesa, Linguística Textual, Linguística Aplicada, Enunciativo-Discursiva Bakhtiniana etc. Os PCNLP sugerem os seguintes gêneros da esfera literária: conto, cordel, canção, novela, romance, crônica, poema, texto dramático etc. Dessa forma, ao voltarmos o nosso olhar para a tabela 24, observamos que esses gêneros da esfera literária podem ser visualizados no quadro sugerido pelos parâmetros (BRASIL, MEC/SEB, 1998, p. 54). Assim, de nossa parte, entendemos que esse material didático, no que tange a seleção de gêneros discursivos nas atividades de escuta e leitura, está em consonância com os documentos. Tabela 25: Quantidade de gêneros de outras esferas na coleção GÊNERO DO DISCURSO 6º ANO 7º ANO 8º ANO 9º ANO TOTAL REPORTAGEM 31,12% 48,93% 8,07% 42,54% 30,84% 40% 10,64% 12,90% 10,64% 17,90% 2,22% 2,13% 22,58% 10,64% 10,44% ANUNCIO PUBLICITARIO – – 25,81% 2,13% 7,45% ENTREVISTA – 14,89% 1,61% – 3,98% ARTIGO DE OPINIÃO – – – 17,02% 3,98% NOTÍCIA – 10,64% – 2,13% 2,99% RESENHA – – 9,68% – 2,99% DEPOIMENTO – 2,13% – 8,51% 2,49% BIOGRAFIA 4,44% – 3,23% – 1,99% HISTÓRIA EM QUADRINHOS 4,44% – 1,61% – 1,49% PIADA 6,68% – – – 1,49% RECEITA 2,22% – 1,61% 2,13% 1,49% – 6,38% – – 1,49% TIRA PROPAGANDA MAPA 2,22% – 1,61% – 1,00% INFOGRÁFICO – 2,13% 1,61% – 1,00% SINOPSE – – 3,23% – 1,00% ROTEIRO DE CINEMA – – 3,23% – 1,00% BLOG 2,22% – – – 0,50% CAÇA-PALAVRAS TEXTO DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA 2,22% – – – 0,50% 2,22% – – – 0,50% PÁGINA DE JORNAL – 2,13% – – 0,50% CARTAZ PUBLICITARIO – – 1,61% – 0,50% MESA-REDONDA – – 1,61% – 0,50% FOTOLOG – – – 2,13% 0,50% CURRÍCULO VITAE – – – 2,13% 0,50% TOTAL 45 47 62 47 201 QUESTIONARIO 98 Em tal tabela, a reportagem, que pertence à esfera social imprensa, é quem atinge o maior percentual – 30,84% - em toda a coleção. Novamente, percebemos aqui, um possível diálogo entre LDVP e PCNLP no que toca à seleção dos gêneros de outras esferas, pois, os documentos oficiais elencam os seguintes gêneros: notícia, reportagem, entrevista, charge e tira etc. Além disso, notamos que o gênero tira apresenta uma incidência bastante relevante, isto é, 17,90% em toda a coleção. De nossa parte, entendemos que, a julgar pela quantidade de gêneros de outras esferas (imprensa, publicidade etc.), que não a literária, o LDVP os toma como principal ferramenta de ensino-aprendizagem, em outras palavras, os gêneros da esfera jornalística, da imprensa, da publicidade são os privilegiados. Como objeto norteador de nossa pesquisa, ater-nos-emos em analisar o gênero conto. 5.2.3 A presença do conto da esfera literária na coleção Neste subitem apresentaremos os dados referentes, primeiramente, à organização didática do trabalho com os contos na forma de projeto escolar; e, em um segundo momento, a quantidade desses nos volumes analisados. No LDVP do 9º ano, observamos que as autoras sugerem de modo mais específico a seção “projeto livros de contos” na introdução da unidade (2011, p. 8) e no final da unidade (2011, p. 148-153). Na opção de trabalho escolar por projetos, as autoras dialogam com os PCNLP em relação às organizações didáticas especiais, porque aqueles referenciais sugerem que se “proponham atividades no interior de um projeto que deixe claro para o aluno os parâmetros da situação de comunicação” (BRASIL, MEC/SEB, 1998, p. 74). O diálogo torna-se mais nítido na etapa de projetos, pois os PCNLP orientam, dentre alguns exemplos de projetos, a “produção de fita cassete de contos [ou] coletânea de textos de um mesmo gênero (poemas, contos)” (BRASIL, MEC/SEB, 1998, p. 87 ênfase adicionada). 99 Gráfico 1 – Os contos presentes na coleção As autoras didatizam o gênero conto em sua pluralidade de formas discursivas: contos de assombração, mistério, maravilhoso, amor, fantástico e contemporâneo. A nosso ver, é significativa a ocorrência do gênero conto no LDVP, tendo em vista que ele está presente em todos os volumes e que, talvez, promova possíveis práticas leitoras de conto. Ainda, observamos uma busca em atender às recomendações dos PCNLP ao destacar o gênero conto: [...] a seleção de textos deve privilegiar textos de gêneros que aparecem com maior frequência na realidade social e no universo escolar, tais como notícias, editoriais, cartas argumentativas, artigos de divulgação científica, verbetes enciclopédicos, contos, romances, entre outros (BRASIL, MEC, 1998, p. 26 ênfase adicionada). Entretanto, observamos que o tratamento didático dado ao gênero conto é, em boa medida, por fragmentos ou trechos, como podemos ver abaixo: Gráfico 2 – Quantidade de fragmentos de contos na coleção 100 Podemos observar que no 6º e 9º anos há uma incidência maior do gênero discursivo conto, isto é, quatro contos no 6º ano e seis contos no 9º ano, totalizando dez contos, contudo, desse total, quatro contos são fragmentos. No 7º e 8º anos, o conto apresenta uma incidência menor, um e dois respectivamente. A nosso ver, apresentar trechos de contos ou fragmentos de qualquer texto literário figura como uma prática inadequada, quando se almeja a formação do leitor literário, pois, geralmente, tais atividades não possibilitam uma prática de fruição literária completa dos textos pelos alunos. Assim, a fragmentação dos textos literários se constitui como uma prática que, em certa medida, “mutila” a forma composicional, o estilo do gênero, o conteúdo temático, a situação de produção e o tom literário. Ainda, pensamos que a fragmentação ou o uso de trechos de textos literatos não promove uma apreciação estética do todo discursivo. Portanto, embora o LDVP apresente um percentual alto de gêneros da esfera literária e, em boa medida, esteja em consonância com os PCNLP na seleção de gêneros discursivos, acreditamos que apresentar trechos, excertos ou fragmentos dos contos não é uma prática profícua para a formação do leitor literário. Sobre isso, Paiva e Maciel (2008, p.115) afirmam que os fragmentos: [...] são apresentados aos alunos como pseudotextos, às vezes começando pela metade, outras vezes com recortes feitos no corpo do texto apenas para adequá-lo ao espaço ao livro didático, aproximando o começo do fim. Além disso, muitas vezes, quando é transferido para o livro didático, o texto literário acaba se desconfigurando, pois perde a programação visual e as ilustrações do livro originalmente concebido e publicado (PAIVA&MACIEL, 2008, p.115). Em certa medida, o uso de recortes pode influenciar na compreensão dialógica da apreciação valorativa dada pelo autor da obra literária. Como também, acarretam lacunas tanto na apreciação estética quanto na mobilização de certas capacidades leitoras. E, ainda, pode apresentar outros efeitos de sentidos durante a circulação e recepção dos contos pelos ouvintes-contempladores. Verificamos também que tanto os contos recortados quanto aqueles na íntegra apresentam como primeira função o trabalho com os conhecimentos linguísticos (gramática). Em um segundo momento, eles são tomados para o desenvolvimento da leitura (compreensão textual) como posto no seguinte gráfico: 101 Gráfico 3 – Quantidade de atividades nos capítulos em que é trabalhado o gênero conto no LD Observamos nesse gráfico que o LDVP tem desenvolvido um trabalho exaustivo com a gramática, tendo em vista que 61% das atividades desenvolvidas, no 6º ano, correspondem a conteúdos linguísticos; 53%, no 7º ano; 49%, no 8º ano e 48% no último ano do Ensino Fundamental, o 9º. Os dados revelam que, de certa forma, com o passar dos anos, as atividades de gramática tendem a diminuir. Notamos que o trabalho didático com textos literários está a serviço do ensino da gramática ou dos conhecimentos linguísticos. Assim, ao compararmos o percentual total das atividades, percebemos que os exercícios de conteúdo gramatical atingem uma incidência de 52,59% nos capítulos em que o conto aparece. Ao passo que as atividades de leitura aparecem com um percentual total de 38,3%. Os dados apresentam uma incidência de 6,48% para atividades de escrita e 2,59% para as de oralidade. Gráfico 4 – O percentual total das atividades de leitura, escrita, oralidade e gramática nos capítulos relacionados ao gênero conto 102 No atinente às atividades de leitura, sua incidência é de 31% no 6º ano, 24% no 7º, 45% no 8º e 44% no 9º ano. O percentual de atividades de leitura corresponde praticamente à metade do índice de conhecimentos linguísticos. Os dados, assim, revelam um descompasso entre o percentual de atividades de leitura e de conhecimento linguístico. Nesse sentido, a seguinte citação do PNLD (2011, p. 151) corrobora com os nossos dados, quando afirma sobre trabalho exaustivo com a gramática normativa: De modo geral, a abordagem é transmissiva e metalinguística, com poucas atividades que permitem a construção de conceitos. Predomina uma abordagem na perspectiva estrutural, com grande investimento em conceituações e definições, memorização de regras e listas de exercícios [...] (BRASIL, MEC/SEB, 2011, p. 151). Abordaremos, no subitem seguinte, questões relacionadas às atividades de leitura realizadas com os contos. 5.2.4 Sobre o tratamento didático nas atividades de leitura do conto O livro do 6º ano - na unidade 3, capítulo e texto 01 – apresenta o conto “O homem que enxergava a Morte” de Ricardo Azevedo. Vejamos a seguir uma atividade referente à leitura, apresentada no LDVP do 6º ano, página 153: As narrativas de ficção – como os contos, os romances, as novelas, os poemas narrativos e os causos – sempre apresentam certos elementos, que encontramos ao fazer estas perguntas: Quem conta a história, isto é, quem é o narrador? Quem participa da história, isto é, quem são as personagens? O que acontece na história, isto é, qual o enredo? Onde acontece a história, isto é, qual o espaço? Quando acontece a história e quanto tempo dura, isto é, qual o tempo? O conto “O homem que enxergava a Morte” tem todos esses elementos, mas escolhemos estudar aqui apenas um deles, a personagem principal, observando, para isso, suas ações e as consequências delas. Responda às questões no caderno. 103 1. Logo no início do texto é apresenta a personagem principal. Com ela é que acontecem os fatos mais importantes do conto e por causa dela a história se desenvolverá. a) Quem é essa personagem? Descreva a situação em que ela se encontra no início da história (para isso releia os cinco primeiros parágrafos). b) De acordo com o texto, por que o homem não consegue encontrar um padrinho para seu filho mais novo? Observe que a situação inicial da personagem – muito pobre com seis filhos – muda com o nascimento do sétimo filho e a necessidade de encontrar um padrinho para ele. A partir dessa primeira complicação, uma solução, novos problemas e novas soluções organizarão a narrativa. Nessa atividade, observamos que, apesar do livro apontar os elementos estruturais do gênero conto – que consideramos relevantes para encaminhar a leitura participativa -, ele diz, no entanto, que não irá explorá-los em sua totalidade, mas sim apenas o aspecto personagem principal. Acreditamos que, em se tratando de didatização, não é relevante para os alunos estudarem apenas a personagem (personagens) de um dado conto, pois, tal gênero não se realiza somente através do estudo das características dessa. Portanto, entendemos que o estudo do gênero conto, por esse viés, de certa forma, apresenta-se de maneira fragmentada, uma vez que quem lê, estuda ou escreve um conto, certamente, o compreende em sua totalidade (narrador, personagens, enredo, espaço, tempo, esfera de circulação e recepção etc.), isto é, um todo de sentido - Enunciado Concreto (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010 [1929]). Além disso, o LDVP propõe algumas atividades que, conforme podemos observar nos dados supracitados, não possibilitam ao aluno-leitor uma participação ativa dialógica em que o cerne da prática leitora seja a formação desse sujeito enquanto leitor literário que aprecia e valora esteticamente o objeto contemplado. Percebemos tais evidências, quando o LDVP faz uso de expressões que levam o aluno-leitor diretamente a um dado excerto do conto, por exemplo, “logo no início do texto”; “se encontra no início da história”; “para isso releia os cincos primeiros parágrafos”; “de acordo com o texto”. Essas expressões colaboram para uma compreensão no nível da textualidade ou ainda, uma compreensão “uniforme” que apenas dubla e revozea o já dito. 104 É importante dizermos que, ao analisarmos tais atividades, observamos que o LDVP não informa ao aluno-leitor que há outra versão desse conto, escrita pelo contista e folclorista Luís da Câmara Cascudo e que esse, por sua vez, é apenas aquele que escreve o conto, contado oralmente por João Monteiro, em Natal, Rio Grande do Norte. Diante disso, inferimos que, talvez, aqui possa ter havido uma tentativa de apagamento da voz de um discurso que se sustenta na prática oral. Em outra atividade na mesma unidade, porém, no capítulo e texto 02, utilizando o conto “Cinco ciprestes, vezes dois” de Marina Colasanti, o LDVP propõem as seguintes atividades: 1- Copie no caderno o trecho em que o homem do conto é apresentado. (LDVP, 6º ano, p. 205). 2- O homem é assassinado pelo bandido, mas nesta parte do texto se observa uma importante interferência. Quem interfere na história? (LDVP, 6º ano, p. 205). Nessa atividade, o LDVP convida os alunos a copiarem/extraírem um determinado trecho em que a personagem seja apresentada. Acreditamos que tal atividade promove apenas a prática de localizar e copiar mecanicamente um excerto do conto, não permitindo que o aluno tome um posicionamento crítico, apreciativo sobre o texto lido, visto que as práticas de localizar e copiar informações não promovem a formação de um possível leitor literário, ou seja, o aluno não é direcionado a dialogar, a refletir, a reagir de maneira que o gosto pela leitura literária venha a ser desenvolvido, de forma que se torne um apreciador de textos literários. Ainda, podemos observar, na segunda atividade, a realização de tal prática leitora, ou seja, o LDVP propõe ao aluno que esse apenas diga quem interferiu no curso da história, sem levá-lo a uma compreensão ativa dialógica. É importante dizermos que, nesse conto, o narrador muda o desfecho da história, de modo que interrompe enfaticamente o rumo do conto: “Mas um conto é apenas um conto, que eu conto, reconto e transformo em outro conto” (Marina Colasanti). Aqui observamos que o LDVP poderia ter explorado uma característica peculiar do gênero discursivo conto, isto é, o traço, a marca, os resquícios da oralidade, da tradição oral de se contar causos desde a origem da humanidade. Percebemos ainda que esse modo peculiar – “diferentes possibilidades para a expressão da individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da 105 individualidade” (BAKHTIN, 2010 [1953-1954], p. 265) - da autora Marina Colasanti deveria ser discutido com os alunos, pois são esses aspectos que levam os discentes a tornarem-se apreciadores ou não de contos. Consoante com Mikhail Bakhtin (1981[1929]), entendemos que “o gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica [...] – a archaica refere-se aos traços característicos dos tempos antigos, a Antiguidade” (BAKHTIN, 1981[1929], p.91). Tal citação evidencia que o gênero discursivo conto, portanto, sempre apresentará os resquícios e traços distintivos de sua origem, de seus “elementos imorredouros da archaica” (idem). Em ao livro do 7º ano, na unidade 1, no capítulo e texto 01, o LDVP propõe a leitura do conto “Um amigo para sempre” de Marina Colasanti, segue algumas atividades: 1- O texto “Um amigo para sempre” é um conto, isto é, uma narrativa curta composta por narrador (quem conta os fatos), personagens (quem participa deles), espaço (lugar onde se passa a história) e tempo (época ou duração do fato narrado). Além disso, apresento uma situação inicial estável, que é transformada por um acontecimento. Reconhecer esses elementos é importante ponto de partida para interpretar qualquer conto. Então, no caderno identifique: a) A personagem principal de “Um amigo para sempre”; b) O lugar onde se passa a história; c) O tempo de duração do fato narrado; d) A situação inicial do conto; e) O fato que deu início a transformação. 2- Após o primeiro encontro entre o homem e o pássaro, a narrativa evolui e, a cada parágrafo acrescenta-se uma nova informação, consequência do fato anterior. Há um trecho, no entanto, que encaminha a história para o final provocando certa expectativa no leitor. Copie-o no caderno. Podemos observar que o LDVP retoma, na primeira atividade, a discussão sobre a estrutura do conto, de maneira que propõem ao aluno a prática de identificar e copiar excertos no caderno. Reiteramos que a prática de levar o aluno a conhecer a personagem principal, o lugar, o tempo, o enredo é de suma importância, contudo, a mera identificação seguida de copiar trechos que indicam tais elementos sem 106 refletir acerca dos possíveis efeitos de sentidos que são engendrados, talvez, não seja o caminho para formarmos leitores e apreciadores de contos. Ainda na atividade 02, há uma questão concernente a um determinado aspecto da prática leitora: provocar certa expectativa no leitor. No entanto, o LDVP não discute tal questão com mais acuidade, de forma que pede apenas que os alunos copiem no caderno o trecho em que se pode observar tal expectativa. Observamos que, provavelmente, a voz do aluno aqui não tenha sido levada em consideração, visto que a atividade fala que a leitura do conto pode provocar certas expectativas no leitor, ou seja, tais expectativas são geradas no aluno-leitor. Acerca dessa questão, Edgar Allan Poe (apud GOTLIB, 1999) afirma que o conto se caracteriza pelo efeito, pela expectativa que ele consegue provocar no leitor, em outras palavras, deve-se “dosar” a obra, afim de que o leitor leia “a uma só assentada”. Na atividade 03, o conto é objeto de estudo gramatical relativo à morfologia verbal. 3- No texto de Marina Colasanti, aparecem vários verbos no pretérito imperfeito do subjuntivo. Releia as frases e os verbos destacados na atividade 01 e responda no caderno: a) Em todas as frases, os verbos destacados estão no pretérito imperfeito. Quais estão no modo indicativo? Quais estão no subjuntivo? b) Escreva no caderno a forma infinitiva dos verbos que, no item a, aparecem no subjuntivo. c) Os verbos da primeira conjugação tem vogal temática a (cantar). Na resposta do a, quais verbos pertencem à primeira conjugação? d) Os verbos de segunda conjugação apresentam a vogal temática e/o (escrever, compor). Na resposta do item a, quais verbos pertencem à segunda conjugação? e) Entre os verbos destacados, há algum da terceira conjugação? Que vogal temática caracteriza a terceira conjugação? Exemplifique (LDVP, 7º ano, p. 19 - 21). No atinente a essa questão, a concepção de compreensão passiva de Mikhail Bakhtin e o Círculo (1993 [1934-1935]) serve para refletirmos acerca de tal evento, qual seja compreensão passiva que está no campo da decodificação ou decifração da leitura. Assim, tal prática se concretiza como uma leitura identificativa, isto é, 107 identificar o sinal, o sinal escrito; ou ainda, de identificação dos traços fônicos, gramaticais e outros relevantes para esse tipo de compreensão. Nesse viés, da prática de leitura literária, nos parece que, nessa atividade, tal prática é tomada apenas como um processo de identificação dos aspectos gramaticais e, não como um ato de compreensão ativa, momento no qual “se determina uma s é r i e d e i n t e r - r e l a ç õ e s c o mp l e x a s , d e c o n s o n â n c i a s e mu l t i s s o n â n c i a s c o m o compreendido, enriquece-o de novos elementos” (BAKHTIN, 1993 [1934-1935], p. 90-91 ênfase adicionada). Paes de Barros (2005), em consonância com a teoria bakhtiniana, pontua que a leitura é um processo de compreensão ativa em que os leitores constroem “os sentidos dos textos verbais e não–verbais, observando-os como componente de um todo de significação, a ponto de desvelar o não-dito presente na dialogia [...]” (PAES DE BARROS, 2005, p.148) nas práticas de leitura. Assim, verificamos, ainda, que o conto, na referida atividade, não é utilizado para se desenvolver o letramento literário, mas como pretexto para se ensinar conteúdo de cunho gramatical em detrimento daquelas “que contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias” (BRASIL/MEC/SEF, 1998, p. 27). O volume do LDVP do 8º ano, na unidade 01, no capítulo 1, nos textos 01 e 02, “O primeiro amor" de Ana Miranda e “Brincadeira” de Anton Tchekhov, respectivamente, apresentam algumas atividades, a saber: 1- A transformação desencadeada altera o estado de alma (sensações e sentimentos) da narradora – personagem. Copie o trecho em que a garota revela o início de um sentimento completamente novo. 2- A partir deste ponto da história, o conto se desenvolve apresentando os estados de alma, as emoções da personagem. a) Que sentimento passa a dominar a garota? b) Como ela reage a esta nova sensação? (LDVP, 8º ano, p. 14-15) 3- Descreva a situação inicial das personagens. 4- Que fato desencadeia a mudança de estado de alma da personagem Nádenka? (LDVP, 8º ano, p. 27) 108 Os dados revelam que o LDVP, novamente, retoma a mesma discussão feita no 6º e 7º ano. Observamos que o livro ainda propõe aos alunos que identifiquem os trechos, copiem no caderno e descrevam características da personagem. É importante notarmos que a atividade 02 e 04 propõem o mesmo tipo de prática, pois pede para o aluno indicar os estados de alma da personagem, ou seja, mais uma vez o LDVP traz para estudo a caracterização da(s) personagem (ns) do conto. Além disso, pudemos perceber que ainda há expressões, como “copie o trecho” ou “descreva a situação”, que corroboram para um esvaziamento de nuanças e de possíveis efeitos de sentidos que poderiam ser engendrados por meio desses dois contos lidos pelos alunos. A nosso ver, tais atividades culminam para uma prática que não explora os aspectos discursivos estéticos e apreciativos de um texto verbal ou verbo-visual, de forma que essa prática não propicia o levantamento de outros sentidos (o não-dito) do objeto contemplado em outro contexto. Em nossa perspectiva, tais atividades de leituras não dão voz aos alunos, visto que não levam em consideração uma possível co-criação leitora, em que elementos discursivos, recepção do conto e a apreciação estética não são desenvolvidas. Com base nas questões citadas acima, observamos, portanto, que tais atividades estão no nível de fragmentação do conto. A julgar pela concepção de leitura que o LDVP concebe, isto é, [...] um processo de interação entre o leitor e o texto. Nessa atividade interativa, muitas vezes orientada por objetivos claros a serem obtidos (busca de informação, entretenimento, reflexão, etc.), nem sempre são conscientes as estratégias de entrada no texto, tampouco os mecanismos textuais utilizados pelos autores para comunicar uma ideia, um fato ou uma experiência estilística (Manual do Professor, 2012, p.2). Na nossa ótica discursiva, entendemos que o processo de leitura dialógica não é pela interação entre leitor e texto, mas sim entre leitor e autor. Percebemos, ainda, que há certo descompasso entre a afirmação anterior e a seguinte “nesta coleção procuraremos realizar um trabalho bastante específico de identificação e caracterização do gênero textual, cujas bases teóricas se encontram em Bronckart e em Bakhtin” (Manual do Professor, 2012, pp.2, 4 ênfase adicionada). Primeiramente, pensamos que o processo de leitura, numa acepção enunciativo-discursiva, é tomado como um ato ativo e criativo em que o sujeito age e reage com o autor da obra, bem como concorda ou discorda, acrescenta novos 109 elementos, questiona e replica os discursos presentes na obra contista. Em segundo lugar, nessa perspectiva, o aluno é convidado a tornar-se co-autor duma dada obra, a participar ativamente da (re)constituição dos sentidos e desvelar os não-ditos no texto. Assim, a leitura, pelo viés enunciativo-discursivo, toma o aluno como um sujeito que age na vida, no mundo ou nos mundos propostos pelos contos. Portanto, o aluno responde, aprecia e valora os contos, porque a compreensão é dialógica, pois se dá no processo de interação entre dois indivíduos socialmente organizados. No exemplar do 9º ano da coleção, há algumas atividades de leitura desenvolvidas a partir do conto “O coração comido” de Gilles Massardier, a saber: 1- Qual a primeira informação que o leitor recebe sobre Béatrice? 2- Ao final da confissão do castelão, o que mais surpreende o frei? 3- A descrição é fundamental na construção de um conto de mistério; é por meio dela que o leitor tem a possibilidade de imaginar as personagens e os lugares descritos. Se a descrição for eficiente, poderá garantir a tensão necessária ao desenvolvimento do enredo, até o momento do desfecho. Releia os parágrafos de 2 a 5 e indique no caderno os elementos do ambiente responsáveis por manter o leitor em expectativa. 4- O desfecho do texto (penúltimo parágrafo) faz referência a um comportamento surpreendente do barão. Ao relatá-lo, o narrador sugere ter havido uma grande mudança no comportamento do pai de Béatrice. a) Que mudança foi essa? b) O que o barão resolveu fazer para aplacar esse novo sentimento? (LDVP, 9º ano, p.27). É importante dizermos que o referido conto faz parte de uma obra intitulada “Contos e lendas da Europa Medieval” a qual, como o próprio nome sugere, aborda assuntos desse período histórico. No entanto, observamos que o LDVP não propõe um trabalho nas atividades de leitura em que tal temática pudesse ser explorada, para instigar a participação do aluno-leitor por meio de sua voz, de sua apreciação valorativa. Pudemos notar que, de certa forma, a coleção aqui analisada insiste em atividades que promovem a compreensão apenas do texto, isto é, busca-se apreender aquilo que está posto no texto, ou seja, por esse viés o foco recai sobre o texto e sobre o leitor na extração de informações do texto (ROJO, 2004). 110 Em consonância com Bakhtin (2010 [1959-61/1976], p.311), compreendemos que a atividade de “cópia” de textos é de fato uma “reprodução mecânica do texto”. Contudo, a leitura deixa de ser uma reprodução mecânica de significado do texto, se for feita de modo que o sujeito faça retomadas e citações, acrescentando outros elementos àquilo que foi dito ou relacionando a outros textos e discursos verbais, visto que há uma reelaboração e reacentuação da palavra alheia, em decorrência “do acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2010 [1959-61/1976], p.311), Portanto, só há esse acontecimento novo, quando dois sujeitos, duas consciências se encontram, por isso, o contemplador (o aluno-leitor) será um coautor de quantos textos for ler (do objeto discursivo contemplado). Dessa forma, a leitura como processo criativo alia-se aos pensamentos bakhtinianos: [...] acerca da natureza social da linguagem e de sua constituição dialógica, a partir da qual a leitura é considerada como um processo de compreensão ativa que acarreta uma série de inter-relações complexas que enriquecem o já compreendido com novos elementos no diálogo dos enunciados (PAES DE BARROS, 2005, p.5 ênfase da autora). Assim, responderemos a nossa segunda questão de pesquisa: Qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção didática adotada na escola? Percebemos que o LDVP didatiza o gênero conto na perspectiva de trabalho escolar de leitura em que parece não levar em conta a segunda parte da seguinte citação dos documentos oficiais de Língua Portuguesa: “a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio” (BRASIL, MEC, 1998, p. 19 ênfase adicionada). Diante do exposto, o LDVP prioriza, na maioria das atividades, a compreensão leitora passiva na qual os alunosleitores devem fazer uso da leitura na cópia ou reprodução das formas da língua e das formas estruturais dos contos. Dessa forma, notamos que há pouco espaço para o trabalho com a leitura que vai ao encontro da formação literária do aluno como co-criador dos contos literários, visto que o LDVP não apresenta situações didáticas leitoras que abordem ou instigue a participação ativa dialógica, de maneira a dar voz ao aluno. Assim, não promove, muitas vezes, a contrapalavra do discente ou a apropriação da palavra 111 alheia, isto é, a tomada da palavra de outrem na recriação das práticas leitoras contistas pelos próprios alunos. De certa forma, o LDVP não contempla a leitura na perspectiva dialógica em que Paes de Barros (2005, p. 188) afirma: “a compreensão completa o texto: exercese de uma maneira ativa e criadora”. Compreendemos, portanto, que, na coleção estudada, o ensino da leitura nas atividades do gênero conto se fundamenta, sobretudo, na transmissão passiva leitora, em que se copia o discurso do outro. Consoante com Bakhtin/Volochinov (2010 [1929]): Trata-se de ao invés de se adotar uma falsa concepção da compreensão como um ato passivo- compreensão da palavra que exclui de antemão e por princípio qualquer réplica ativa [...], qualquer resposta [...] que se caracteriza justamente por uma nítida percepção do componente normativo do signo lingüístico, isto é, pela percepção do signo como objeto/sinal, onde, correlativamente, o reconhecimento predomina sobre a compreensão (BAKHTIN/VOLOCHINOV, adicionada). 2010 [1929], p.99 ênfase Desse modo, passaremos para a análise das capacidades mobilizadas nas atividades leitoras do LD. 5.2.5 Sobre as capacidades mobilizadas Nesta seção, apresentaremos nossa terceira questão de pesquisa: Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero conto? Primeiramente, mostraremos a tabela com o percentual de mobilização de capacidades leitoras, observadas nas atividades de leituras propostas relacionadas ao gênero conto. Tabela 26: Capacidades de compreensão mobilizadas coleção Capacidades de compreensão de leitura Localização e/ou cópia de informações Antecipação ou predição de conteúdos ou propriedades dos textos Produção de inferências Checagem de hipóteses Comparação de informação Ativação de conhecimentos de mundo Generalização (conclusões gerais sobre fato, fenômeno, situação, problema, etc. após análise de informações pertinentes) nas atividades de leitura do conto na 6º ANO 26,99% 14,29% 7º ANO 17,86% 5,35% 8º ANO 47,37% 15,79% 9º ANO 30,47% 5,47% 11,11% 4,76% 3,17% 3,17% 11,11% 41,08% 1,78% 7,14% - 18,42% 2,63% - 33,59% 2,34% 9,38% 3,91% 112 Como podemos observar na tabela acima, as atividades de localização e/ou cópia de informações têm a incidência maior em toda a coleção, apresentando um percentual de 26,99% no 6º ano; 17,86% no 7º; 47,37% no 8º e 30,47% no 9º. A título de exemplificação temos as seguintes atividades do 6º ano, nas quais a capacidade mobilizada é a localização de informação em que se pede apenas para o aluno localizar as personagens, porém não leva o discente a refletir o porquê ou a se fazer perguntas como: Isso me ajudará a compreender melhor o conto? Por que as personagens são importantes? Por que os dois contos têm personagens semelhantes? Qual é a finalidade de indicar os indícios do conto? Assim como no conto “O homem que enxergava a morte”, a história que você acabou de ler também gira em torno da relação entre duas personagens. Quais? (LDVP, 6º ano, p. 167). Há no texto diversos indícios de que a história pode não ter acontecido exatamente como o narrador contou. Indique-os no caderno (LDVP, 6º ano, p.195). O LDVP traz também algumas atividades que mobilizam capacidades de antecipação (produção de hipóteses) e de inferências, como podemos visualizar, respectivamente, a seguir: Que tipo de história o leitor encontrará nesse livro? (LDVP, 6º ano, p.148). O relato do barão revela mais do que sua personalidade assassina. Explique essa afirmação apresentando informações do texto (LDVP, 9º ano, p.27). De nossa parte, entendemos que tais atividades são de suma importância para o processo de aprendizagem de leitura e para a apropriação da palavra alheia. No entanto, percebemos que o LDVP apresenta um percentual bastante elevado de atividades cujas capacidades mobilizadas estão no âmbito apenas da compreensão textual, ou seja, não há uma preocupação para a formação do leitor literário. A nosso ver, tal incidência, parece não contribuir para uma leitura crítica e reflexiva, de forma que os alunos sejam participativos e apreciadores de textos literários. Tendo em vista que o nosso objetivo principal é observar as ocorrências das capacidades de apreciação e réplica ativa nas atividades de leitura de contos e que, em boa medida, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) já apresentou 113 uma análise acerca das capacidades de compreensão mobilizadas na coleção, não iremos nos ater as capacidades de compreensão. Dito isso, nossos dados levantados e quantificados corroboram com a análise da etapa de leitura do LD Viva Português formulada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Especificamente no que tange às capacidades mobilizadas nas atividades leitoras, nossa tabela elenca as “capacidades desenvolvidas no conjunto da coleção, entre outras, [que] são: [...] estratégias de leitura como ativação de conhecimentos prévios, formulação e verificação de hipóteses, localização de informações, inferências” (BRASIL, FNDE, PNLD, 2011, p. 148). A tabela a seguir trata das capacidades de apreciação e de réplica ativa trabalhadas na coleção aqui pesquisada, a saber: Tabela 27: Capacidades de réplica ativa mobilizadas nas atividades de leitura do conto na coleção Capacidades de apreciação e réplica do leitor na prática de leitura Recuperação do contexto de produção do texto Percepção de relações de intertextualidade Percepção de outras linguagens Elaboração de apreciações estéticas e/ou afetivas 6º ANO 7º ANO 8º ANO 12,70% 6,35% 6,35% - 3,57% 10,71% 8,94% 3,57% 5,26% 10,53% 9º ANO 3,91% 2,34% 8,59% Em relação à capacidade de recuperação do contexto de produção do texto, pudemos observar um percentual de 12,70 % para o 6º ano; 3,57%, 7º ano; 5,26%, 8º ano e 3,91% para o 9º ano. É importante dizermos que tais capacidades são desenvolvidas numa seção cujo nome é “Antes de ler”, a qual possui, a nosso ver, bastante relevância para a formação do aluno-leitor literário, entretanto, vimos que, ao longo dos anos, esse percentual tende a diminuir nos volumes, visto que no 6º ano, por exemplo, há uma incidência de 12%, ao passo que no 9º ano tal incidência diminui, alcançando 3,91%. A título de exemplificação, apresentaremos uma atividade que contempla tal capacidade: O poeta do texto contava às crianças e aos adultos à sua volta “histórias maravilhosas de coisas surpreendentes criadas pelo seu espírito”. Na sua opinião, ele mentia ou recriava a realidade?” (LDVP, 7º ano, p. 27). A nosso ver, essa diminuição revela que o LD não tem como objetivo principal formar alunos-leitores de textos literários, pois, como bem pontua Rojo (2004), o contexto de produção é de suma importância na prática da leitura dialógica, cujo 114 objetivo principal é formar o aluno–leitor para refletir, refratar e apreender o não-dito de textos verbais ou verbo-visuais. Portanto, para se obter uma leitura crítica e cidadã, como nos lembra Rojo (2005), é preciso situar o texto, questionando: [...] Quem é seu autor? Que posição social ele ocupa? Que ideologias assume e coloca em circulação? Em que situação escreve? Em que veículo ou instituição? Com que finalidade? Quem ele julga que o lerá? Que lugar social e que ideologias ele supõe que este leitor intentado ocupa e assume? Como ele valora seus temas? Positivamente? Negativamente? Que grau de adesão ele intenta? Sem isso, a compreensão de um texto fica num nível de adesão ao conteúdo literal, pouco desejável a uma leitura crítica e cidadã (ROJO, 2004, p.6). Com relação às capacidades de percepção da intertextualidade, os dados revelaram um percentual de 6,35% para o 6º ano e 10,71% para o 7º. Assim, pudemos notar que há poucas questões atinentes às relações de intertextualidade, isto é, relações com outros textos já conhecidos que poderiam deles resultar réplica ativa. Dessa forma, observamos que esta capacidade de leitura é fundamental para a formação do aluno-leitor literário, pois o leva a fazer relações com outros dizeres, com novas falas e outros discursos. Assim, tal prática permite que o aluno construa conhecimento de maneira reflexiva e dialógica, pois, por esse viés, a leitura não é harmoniosa, mas sim polissêmica e prenhe de sentidos variados. Consoante Bakhtin “o texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de texto eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo” (BAKHTIN, 1974/1979, 2010, p.401). No concernente à capacidade de percepção de outras linguagens (imagens, som, gráficos, mapas etc.), os alunos do 6º ano apresentaram uma incidência de 6,36%; os do 7º ano um percentual de 8,94% e 2,34% no 9º ano. A percepção de outras linguagens é extremamente importante para o ensino de leitura, visto que abrange variadas esferas sociais. Além disso, são elementos constitutivos de possíveis sentidos que podem ser engendrados na leitura de um texto verbal ou verbo-visual. Já a capacidade de elaboração de apreciações estéticas e/ou afetivas apresentou uma incidência de 3, 57% no 7º ano; 10,53% no 8º e 8,59% no 9º ano. Percebemos que os dados revelam que a coleção apresenta um percentual de capacidades de apreciações estéticas e/ou afetivas insuficiente para a formação do 115 leitor literário, ou seja, parece que a referida coleção não estimula significativamente o letramento literário. As capacidades de réplica ativa, portanto, exigem uma tomada de posição e apreciação valorativa do leitor com relação à palavra de outrem (autor), de maneira tal que “essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos” (BAKHTIN, 2010 [1952/1953], p.295). Na ótica da réplica ativa, a leitura “é um processo dialógico que promove discursos e enunciados que acabam por construir conjuntamente os sentidos do texto” (PAES DE BARROS, 2005, p.32). Em corroboração com a autora (2005), entendemos que a leitura literária como réplica ativa é um processo dialógico de apropriação da palavra literária, ou seja, tornar o literário próprio, incorporá-lo, reelaborá-lo e reacentuá-lo. A prática de apropriação da palavra literária percorre um caminho social, porém também individual, isto é, sócio-individual. Acreditamos que a leitura é um espaço social em que o processo de tomada e apropriação da palavra alheia é imprescindível para a formação do leitor, em especial a formação do leitor literário. Assim, nesse viés o sujeito é levado a se desvencilhar, a refletir e apreciar, a refutar, a concordar ou discordar, ou seja, a recriar o que já existe. Assim, diante desse contexto, entendemos que bom seria o professor complementar o trabalho do LD com outras atividades, a fim de desenvolver a capacidade de leitura para além do texto/da compreensão, isto é, leitura literária como ato de apreciação estética, réplica ativa e criativa e, ainda, como processo dialógico e de confronto entre a “palavra-alheia” e a “palavra-alheia-minha” (BAKHTIN, 1934-35/1975). Desse modo, retomamos a nossa terceira questão de pesquisa: Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero conto? Em análise dos dados sobre as capacidades mobilizadas à luz da teoria dialógica de Bakhtin e o Círculo, observamos que a mobilização oscila ora na vertente da leitura passiva, ora na vertente da leitura de compreensão ativa – capacidades de apreciação estética e réplica ativa. Compreendemos que a coleção analisada busca reverenciar as vozes de autoridade dos autores contistas, visto que os exercícios abordam questões atinentes, principalmente, à identificação de informações, à cópia de 116 excertos/trechos do conto, à prática constante de descrever as características das personagens ou a situação na qual essas se encontravam e no ensino do conteúdo gramatical sem refletir sobre a língua ou ainda sobre as escolhas linguísticas. Assim, em nossas análises, observamos, em boa medida, que as capacidades mobilizadas pelo LDVP dialogam com práticas leitoras arraigadas nas outras práticas escolares (ROJO, 2004). Além disso, ao analisarmos os dados pelo viés enunciativo-discursivo, verificamos que, de certa forma, as capacidades mobilizadas se distanciam da compreensão ativa e responsiva, porque em relação à “leitura na perspectiva dialógica” (PAES DE BARROS, COSTA, 2012), as atividades leitoras do LD não tratam: [...] a leitura como um processo de compreensão ativa, que exige uma tomada de posição do leitor em relação ao discurso do outro, a fim de analisar suas palavras, adotá-las, contrariá-las ou criticá-las, em constante apreciação valorativa, e em réplica, na relação dialógica que se desdobra durante o processo de leitura. (PAES DE BARROS, COSTA, 2012, p. 45). Portanto, as várias respostas dos alunos na etapa específica da leitura como, também, o tratamento didático dispensando ora às atividades leitoras ora às capacidades mobilizadas de forma passiva na leitura vêm ao encontro da epígrafe de Bakhtin do início deste capítulo: [...] o ensino das disciplinas verbais conhece duas modalidades básicas escolares de transmissão que assimila o [discurso de] outrem (do texto, das regras, dos exemplos): “de cór” e “com suas próprias palavras”. […] O objetivo da assimilação da palavra de outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica do homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta não mais na qualidade de informações, indicações, regras, modelos etc., - ela procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a palavra internamente persuasiva (BAKHTIN, 1993 [1934-35], p. 142). Em primeiro lugar, portanto, constatamos que as propostas do LDVP apresentam o gênero conto como um modelo a ser seguido, um ensino cristalizado do gênero, ou seja, uma vez que o aluno aprende como uma narrativa se organiza saberá compreender e escrever qualquer outro gênero que seja da ordem do narrar. 117 Um segundo aspecto que notamos foi o fato do LDVP não considerar outras esferas de circulação do gênero conto, apenas a escolar. Outras esferas, como a das artes cênicas, a jornalística e a digital-virtual, não são apresentadas aos alunos de modo que o gênero não é estudado em sua circulação e recepção em outros campos e, por conseguinte, fica considerado “aquele texto antigo, chato e sem graça”. Em terceiro lugar, constatamos que há um número exagerado e, a nosso ver, desnecessário, de atividades de conteúdos gramaticais. Dessa forma, o LDVP pesquisado tem a gramática normativa como base para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa, proporcionando um ensino mecânico e engessado da leitura e escrita de contos. Percebemos, ainda, que questões atinentes às capacidades de apreciação e réplica do leitor em relação ao texto e o fruir da leitura literária, por exemplo, não são contempladas significativamente, comprometendo, assim, a formação de um possível leitor literário. Sendo assim, as lacunas aqui mostradas serviram para refletirmos sobre a elaboração da nossa proposta de didatização do gênero discursivo conto pelo viés enunciativo-discursivo, a qual será apresentada no próximo capítulo. 118 CAPÍTULO 6 Uma proposta didática do gênero discursivo conto O presente capítulo tem como objetivo apresentar a nossa proposta de didatização do gênero discursivo conto para alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. Para tanto, consideramos a análise dos dados obtidos por meio dos questionários aplicados aos alunos, também analisamos o trabalho que os autores do livro didático pesquisado propuseram em suas atividades de compreensão de leitura de contos e, em diálogo com os dados coletados e analisados, apresentamos uma proposta didática, tendo em vista a realidade das escolas estaduais de Cuiabá, em Mato Grosso. Procuramos desenvolver um projeto que enfoque o desenvolvimento das capacidades leitoras. 6.1 Acerca da proposta didática Os PCN (BRASIL/MEC, 1998) asseveram que a escola deve ser um espaço de formação de leitores, no qual cada aluno se torne capaz de compreender diferentes textos que circulem em diferentes esferas sociais, de maneira tal que consiga assumir a palavra. Para tanto, os documentos oficiais nos alertam que é necessário haver uma seleção criteriosa dos materiais de leitura utilizados na escola: Os textos a serem selecionados são aqueles que, por suas características e usos, podem favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas do pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a fruição dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada (BRASIL/MEC, 1998, p.24 ênfase adicionada). Tendo em vista tais orientações e refletindo sobre algumas questões encontradas nos questionários aplicados aos alunos, acreditamos que o uso de textos que favoreçam o “exercício de formas do pensamento mais elaboradas” e “a fruição dos usos artísticos da linguagem” (BRASIL/MEC, 1998, p.24) como o conto, por exemplo, podem ser uma ferramenta eficiente para o ensino-aprendizagem de leitura. Dessa forma, procuramos elaborar uma proposta didática que consiga encaminhar algumas questões não trabalhadas pelo LD, isto é, proporcionar outros 119 caminhos para as lacunas encontradas no LD. Assim, buscamos seguir e adequar à realidade escolar estudada, já descrita anteriormente, a concepção de gênero discursivo como megainstrumento (Schneuwly, 1994/2004) – uma ferramenta de ensino-aprendizagem. Nessa perspectiva, abordaremos as diversas capacidades de leitura e de linguagem buscando, especialmente, contemplar o aprendizado das particularidades do gênero, do autor e do momento sócio-histórico de suas épocas. Contando e recontando contos: modos diferentes de narrar Objetivos: Conhecer a proposta do projeto de leitura de contos; Apresentar vários contos para o aluno. Duração: 2 aulas Professor, Inicialmente, apresente o projeto de leitura literária de contos aos alunos: os objetivos, as finalidades, sua proposta de trabalho. Depois, faça, juntamente com os alunos, uma seleção de contos, a fim de que a turma tenha um banco de textos, pois o que trazemos aqui é apenas um exemplo, não significa que você tenha que trabalhar com esses mesmos contos. Para tanto, vocês poderão, por exemplo, ir à biblioteca, pesquisar na internet – em blogs, sites, Wikipédia, Google etc. - e revistas com esses fins, ouvir as sugestões dos alunos e outros professores, ler resenhas de algumas coletâneas de contos, ler capas e contracapas de livros de contos etc. Após a seleção cuidadosa vamos proceder da seguinte maneira: Como momento introdutório, pergunte aos alunos se eles saberiam contar alguma história para a turma. Você pode começar a atividade: fale sobre algo cotidiano, aparentemente banal, por exemplo, “Num certo dia eu estava indo ao mercado, porém antes de entrar no estabelecimento, olho à minha esquerda: vejo um jovem sujo, maltrapilho, sentado numa sarjeta e com um olhar longínquo e triste... vejo ainda muita gente indo e vindo, contudo o jovem continua ali... entro no mercado, compro o que desejo, ao sair olho novamente para aquele jovem...”. Professor, após essa explanação, você pode fazer algumas inferências sobre a situação feita anteriormente, por exemplo, fale sobre o que você sentiu com essa situação; sobre o fato de muitas pessoas não perceberem, por muitas vezes, a existência de uma pessoa nesse estado; ou refletir sobre a questão socioeconômica do nosso país; ou ainda sobre as seguintes indagações: Aquele jovem tem família? Onde estão seus parentes? Tem uma casa? Irmão? Mãe? Como deve ser não “voltar para casa”, não ter para onde ir quando todos estão dormindo? Não ter um endereço? Não ir á escola? Professor, esse é apenas um exemplo você pode modificar ou acrescentar outras situações, porém não se estenda muito, pois a maioria dos alunos - senão todos - deve participar. 120 Com esse simples exemplo, observamos que, geralmente, um conto nasce a partir de uma situação da vida, do dia a dia entre as pessoas, em sociedade. Percebemos que certamente o contista deve ser um grande observador das coisas da vida, do ser humano e de suas ações, angústias, seus conflitos, sentimentos etc. O conto, geralmente, se apresenta como uma narrativa curta cuja característica principal é a brevidade. Os modos de contar alguma coisa ficam a critério de cada autor, de modo que a temática é infinita, visto que é material humano sobre o próprio ser humano, ou seja, é de nós, sobre nós, para nós. É uma sucessão de acontecimentos que se organizam numa série temporal bem estruturada, de maneira que tudo se realiza numa unidade de uma mesma ação. Assim, há vários modos de estruturar essa unidade que se figura como uma sucessão de atos cuja força motriz é a ação humana. O enredo do conto se organiza em torno de um único conflito – uma única oposição entre forças. O conflito pode se dar entre duas ou mais personagens, por exemplo, entre o protagonista e forças externas ou ainda entre o protagonista e o antagonista etc. Dessa forma, o conflito engendra uma situação de tensão que prevalece em toda a narrativa de modo que prende a atenção do leitor até o desfecho – a etapa final do enredo. Assim, o conflito torna-se cada vez mais tenso de tal maneira que atinge o seu auge, isto é, o clímax, ou seja, esse é o momento em que o interesse e a expectativa do leitor em saber o que acontecerá é elevada ao máximo, proporcionando o desfecho do conflito. A seguir, temos o nosso primeiro conto. Bom trabalho e ótima leitura! 121 Leitura 1 Conto: O leitor Autor: Dezsö Koszotolányi Duração: 4 aulas Objetivo: Conhecer alguns aspectos do estilo do autor do conto; Observar a forma composicional do gênero. A seguir iremos ler o conto O leitor do autor: Dezsö Kosztolányi. Professor, esse conto pode ser encontrado no livro intitulado “Contos Húngaros” que faz parte do acervo do PNBE. Após a leitura de cada texto, é imprescindível que você defina para os alunos o interlocutor (ou interlocutores) dos contos, o contexto socio-histórico da época de cada conto, as esferas de circulação (isto é: onde geralmente esses textos circulam? Quem os escreve?) e as de recepção (isto é: com qual objetivo os leio? Qual é a motivação?). É interessante apresentar para os alunos onde fica a Hungria: Se já tinham ouvido falar nesse país? Se eles conhecem algum costume do povo desse país? Uma sugestão: visitem o blog “Posfácio” (<http://www.posfacio.com.br/2012/08/03/contos-hungarostrad-e-org-paulo-schiller/>) no qual vocês encontrarão algumas informações sobre a antologia, mas, sobretudo, sobre o que um determinado leitor tem a dizer acerca da leitura deste livro. Quem é... Dezsö Kosztolányi (1885 – 1936) - “filho de um professor e diretor de escola, nasceu em Szabadka, cidade no sul da Hungria que, após o tratado de Trianon, passou a fazer parte da Iugoslávia, com o nome servo-croata de Subotina. Foi estudando artes na Universidade de Budapeste que conheceu outros poetas de sua geração, alguns deles fundadores da revista Nyugat40, travou amizade duradoura com Karinthy, e, sem acabar o curso, tornou-se jornalista. Embora em seu país a poesia fosse particularmente prezada, ele logo se firmou também como prosador e escreveu vários romances, dos quais o melhor é Doce Anna [...] Foi, no entanto, no conto que, durante uma época quando jornais e revistas publicavam narrativas curtas, o escritor achou sua forma mais congenial” (ASCHER,2010, p.17). Revista Nyugat era considerada a revista mais importante da literatura húngara do século XX. Suas publicações ocorreram em Budapeste entre janeiro de 1908 e agosto de 1941. E segundo Gotlib (1999, p.44) “Nos idos de 80, do século XX, já havia a prensa da imprensa: era preciso escrever e muito e depressa.” Assim, temos visto que no século passado era comum jornais e revistas publicarem contos. 40 122 Antes da leitura do conto... 1- Você sabe onde fica a Hungria? Já assistiu a algum filme, novela ou desenho que se passasse nesse país? Já leu algum conto, romance, poema, notícia, reportagem que falassem desse país? Veja a imagem41 a seguir: 2- Essa imagem é de Budapeste, capital da Hungria. Observe a forma dos prédios, das casas, a ponte. Em sua opinião onde será que fica esse país em qual continente? Levante algumas hipóteses? 3- O conto que você irá ler se passa nesse país nos anos de 1910, século XX. Em sua opinião, como será que as pessoas se comportavam, se vestiam ou falavam nessa época? O que estava acontecendo no mundo nesse período? Seria bom, você conversar com o seu professor de História sobre isso, ele lhe dirá muitas coisas interessantes. 4- Sente-se em dupla com um colega de classe, folheiem o livro “Contos Húngaros”, observem à capa, a contracapa, o sumário e o título do conto “O leitor”. Em sua opinião, porque o conto se chama “O leitor”? Depois, converse com seu colega sobre o que o título sugere. Anote seus apontamentos no caderno e depois apresente aos colegas. 41 Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Budapest_pest.jpg>, acessado em 16/05/2013 às 17h23min. 123 O Leitor I Eu tinha um colega de escola, ele estava sempre lendo. – O que você está lendo? – Estou lendo – balbuciava, e enfiava os dois indicadores nos ouvidos, bem fundo, para não ouvir nada. Assim ele costumava ficar sentado no banco da escola, com a testa franzida, torto como um gorila, corcunda como um camelo. Embora fosse um rapaz quase bonito. Um camponês saudável, encorpado. Durante os intervalos de dez minutos, ele lia na sala de aula. No caminho para casa ele lia na rua. No jardim, entre os ramos da cerejeira, na escadaria, na cama, lia sempre, o tempo todo. – Por que você lê? – Porque me interessa. – Afinal, o que há em um livro? – Beleza - ele disse -, muitas coisas bonitas. Mas ele não era capaz de explicar o que eram as muitas coisas bonitas. Só continuava lendo. Tudo, a torto e a direita, sem escolher nada. Tanto fazia se era de má qualidade ou obraprima, um romance húngaro ou uma tradução suspeita, um dicionário, exercícios de matemática ou um tratado de astronomia. Uma vez eu o surpreendi lendo uma gramática japonesa. – Você está estudando japonês? – Não, só estou lendo. Lia um pouco como outros rezam. Elevado, movimento a boca. II Eu tinha pena dele, como de alguém doente. Ouvi que existem pessoas que de uma sentada comem quatro ou cinto jantares e se sentem cada vez mais esfomeadas. Ele também sofria de algo semelhante a uma dilatação do estômago. Nas férias, eu o procurei. Ele morava perto das terras onde o sol se punha na vizinhança das matas, fora da cidade. Lá, o pai, que passara a vida arando a terra, tinha uma pequena propriedade e um barraco coberto de palha. Entrei no barraco. No único quarto, com piso de terra, um cheiro de barro úmido golpeou o meu nariz, com um hálito de bolor, de mofo, de linfa. O meu amigo estava sentado em uma cadeira e lia a Grande Enciclopédia recém-publicada. – Já estou no décimo-primeiro volume – anunciou –, só faltam cinco. – E você leu eles todos? – É claro. – Você não pula nada? – Nada. Seu relógio de bolso tiquetaqueava sobre a mesa à sua frente. Percebi que ele olhava as horas. – Está tudo aqui – disse triunfante, e apontou para o livro. – Tudo. Vou terminar no fim das férias. Eu me despedi porque senti que era um peso, e cada instante que eu lhe roubava causavalhe dor. Ele tinha muita pressa. Pensava no que faltava, nos cinco volumes e nos muitos outros livros adormecidos na biblioteca que esperavam por ele. Fora, vi seu pai em manga de camisa. Um belíssimo ancião orgulhoso. Magro e grisalho como um pombo da paz. O rosto era vermelho. Era um tipo húngaro-turco. Na servidão de muitos séculos transparecia algo de nobre e oriental. – Tio István – eu disse –, seu filho vai ser um grande sábio. – Sim – ele disse indiferente, e nem me olhou. Afiava a foice com a pedra de amolar. Mas a mãe dele – uma mulherzinha pálida – veio atrás de mim. – Há uma maldição sobre o pobrezinho – ela sussurrou –, uma grande maldição. Por isso ele lê o tempo todo. 124 III Eu nunca soube qual era. A mulherzinha supersticiosa com certeza imaginava coisas. István – o rapaz se chamava István – era como os demais estudantes. Comia bem, dormia bem, mostrava-se inteligente, dedicado. Tinha o raciocínio rápido, mas não como um raio. Marcava posição com decência, sem exibir uma aptidão especial. Passava nos exames sem dificuldade. Também não foi mal na formatura. – Você ainda vai ser um grande sábio – eu brincava. – Sim – ele respondeu imperturbável. Desta vez quem sorriu fui eu. Porque me ocorreu o pai dele, com a foice na mão, de pé no meio do trigal, na luz cambiante. Ele também havia respondido assim. E o filho agora se parecia muito com ele, com o rosto húngaro, cada vez mais vermelho com o passar dos anos, com a fala pausada e a dedicação virtuosa. IV Eu o visitei em Budapeste. Não mudara nada. Continuava a devorar os livros. Mesmo no batente das janelas havia cadernos espalhados. A montanha de livros mal cabia no quarto. A enchente de papel se inclinava na direção da janela como se fosse se derramar por ela. No criado-mudo encontrei uma colherzinha e um pequeno vidro. – O que é isso? – Remédio. – Você está doente? – Só nervoso. Olhei para ele vagarosamente. Então notei que ele parecia alquebrado. A constituição estava íntegra, o rosto bonito, mas nos olhos havia uma sombra, uma névoa por falta de sono. Ampliara a biblioteca ano após ano. Empilhara os livros uns sobre os outros. Arranjara um apartamento. A quantidade aumentava cada vez mais. Fora preciso abrir trilhas entre os livros, abrir clareiras. Pensava inquieto em quanto ainda teria de ler. Ocorria-lhe esse ou aquele livro de se levantar à noite. Examinava se um ou outro volume estava no lugar. V Certa tarde, ele arrumava a biblioteca. Ajeitava livros em cima, na estante mais alta, sobre uma escada. Quis tirar uma enciclopédia inglesa grossa, encadernada em couro, com cantos de aço. O livro não se moveu. Nisso ele se irritou um pouco. Riu numa careta, como um disciplinador e, de repente, o arrancou do lugar. Na esteira dele outros livros caíram. Todos grossos. Ele os escorou com o peito de touro. Mas sentiu pressão também em outros lugares. Novos livros caíram sobre seus ombros, sobre a cintura, o estômago, de modo que ele não conseguiu mais se defender com os braços. “Será que corro perigo?” – pensou. Não empalideceu, na verdade ficou vermelho. Deu um grito estranho de perigo, e começou a se debater com o corpo rebelde, imenso, de camponês, de que ele jamais cuidara, mas que agora parecia terrivelmente forte. Lutou com os muitos livros, expondo as costelas de aço, a coluna de ferro, contra a enchente que jorrava, cada vez mais próxima, ameaçadora. – Ho! – disse, como se ele se dirigisse a cavalos. Enquanto aguentou, resistiu, esteve no comando. Nisso, um livro, não muito grande, o desequilibrou, ele caiu desajeitado da escada, estatelou-se no chão. Durante algum tempo os livros continuaram desabando, zunindo, como as folhas da mata virgem na tempestade, um outro volume mais encorpado despencava, em silêncio caía uma outra edição preciosa. Em seguida, fez-se silêncio. István jazia no piso. De sua cabeça corria sangue. Uma enciclopédia o matou com o canto de aço. Foi mais forte que ele. Dezsö Kosztolányi. Contos Húngaros. São Paulo; Hedra, 2010. Acervo PNBE- 2013 Glossário Alquebrado: cansado. Bolor: mofo. Clareiras: campestres, aberto. 125 Compreensão do conto 1- Logo nos primeiros parágrafos do texto, o narrador-personagem descreve o István (O leitor) de maneira bastante curiosa, associando a sua prática da leitura com suas ações. Para causar tal efeito, o narrador faz uso de metáforas. Quais são elas? Fique ligado! Narrador é a pessoa imaginária que narra, conta a história e que não tem relação nenhuma com o autor dessa ou daquela obra. Existem três tipos de narradores: O narrador-personagem corresponde a um narrador que, além de contar a história em primeira pessoa, faz parte dela, sendo, portanto, chamado de personagem. Esse tipo de narrador conta a história por um ponto de vista único, isto é, o seu. Assim, a narrativa cujo narrador é personagem é marcada por características subjetivas as quais são bastante parciais. Dessa forma, esse tipo de personagem tem visão limitada dos fatos, de modo que isso pode causar um clima de suspense na narrativa. Tudo que ele nos conta é sob o prisma de suas percepções e suposições acerca dos fatos narrados. Já o narrador-testemunha diz respeito a uma das personagens que vivem a história contada, mas não é a personagem principal. Limita-se a contar o que vê e ouve, apenas observa o acontecimento, a ação. Ao passo que o narrador onisciente fala dos sentimentos e pensamentos de os personagens, não se limitando em apenas contar o que vê e ouve. 2- A primeira frase do conto é: “Eu tinha um colega de escola, ele estava sempre lendo.” Após isso, temos apenas as ações do leitor. Veja que o narradorpersonagem não se preocupa em descrever o espaço de forma demorada, mas sim em falar sobre o comportamento, as ações do István - o leitor – nesses lugares. O que isso nos diz sobre a personalidade e o comportamento de István? Fique ligado! Você sabia que desde o início da história da humanidade as pessoas tinham o costume de se reunir para contar suas estórias, mitos, lendas, ritos da tribo? É isso mesmo, a prática de contar estórias sempre reuniu pessoas que contam e ouvem esta ou aquela estória. Apesar de o ato de contar estória ser bem antigo, até hoje muitas pessoas ainda o pratica: alguns ouvem estórias dos avôs, dos pais, amigos; outros de um contador de estória ou de um contista. Esse último escreve sobre as ações e atitudes do ser humano na vida, no seu cotidiano, ou seja, observa o ser humano em diversas situações do dia a dia: como encara o amor, a amizade, a solidão, a tristeza etc – as possibilidades temáticas são infinitas, visto que fala do ser humano. Às vezes, inventa seres encantados com poderes sobrenaturais, porém com características humanas, que não pertencem ao mundo real, mas aos sonhos, a imaginação. O conteúdo temático de um determinado conto é indefinível, porém uma coisa é certa, deve tratar de seres humanos ou mitológicos, bestiários, inanimados, contudo devem apresentar características humanas. Características do conto: Geralmente, um conto se organiza da seguinte forma: Situação inicial > Complicação (conflito) > Desenvolvimento (ação) > Clímax > Desfecho (com crise e resolução final). Contudo, há muitos contos que rompem com esse modelo, são chamados de contos modernos. “Segundo o modo moderno de narrar, a narrativa desmonta este esquema e fragmenta-se numa estrutura invertebrada” (Gotlib, 1999, p.29). Vejam que esse esquema pode ser percebido nos contos de fadas, por exemplo, ou seja, obedecem à ordem de início, meio e fim na estória. Com o passar dos tempos, principalmente, pós Revolução Industrial isso vai se perdendo. De modo que o caráter da fragmentação vai cada vez mais se tornando acentuado. Portanto, o que se tem é uma realidade 126 desvinculada de um antes e um depois (início e fim). Como é o caso do conto que você leu “O leitor” e dos outros que você lerá mais à frente. O tempo verbal predominante nos contos é o Pretérito Perfeito, Imperfeito e Mais-queperfeito do Indicativo. Os tipos de narrador: narrador-personagem (o narrador narra e participa da história); narrador-observador (esse tipo de narrador não se envolve, não participa, apenas conta o que vê) e narrador-onisciente (é o tipo de narrador que conhece tudo da história e dos personagens). 3- Observe que, embora o conto seja curto, o autor o divide em cinco capítulos. Em sua opinião a que se deve isso? Por que dividir o conto em capítulos, se ele é tão curto? 4- No início do segundo capítulo o narradorpersonagem afirma que tinha pena do István, “como de alguém doente”, podemos, então, inferir que “o leitor” sofria de algum transtorno psicológico? 5- Ainda no segundo capítulo, temos a informação de que o leitor vivia num lugar fora da cidade, que o pai era um camponês e moravam num barraco coberto por palha. O que isso demonstra sobre as condições socioeconômicas desse rapaz? Aqui é o único momento em que o narrador-personagem se atém a uma descrição de um espaço físico, embora leve e sutil. O que ele diz sobre o quarto? Qual será sua intenção ao fazer isso? Professor, Com relação à questão 3, explique para os alunos que o fato do autor escolher dividir o conto em capítulos é uma questão de estilo individual e não de estilo do gênero, ou seja, nem todos os contos são organizados em capítulos. Sugerimos a leitura do livro “Conceitos-chave”, organizado por Beth Brait, no qual você encontrará alguns artigos que tratam da questão do estilo pelo viés enunciativo-discursivo. Sobre a teoria contista, há um livro bastante simples, porém muito rico, chamado “Teoria do conto” de Nádia Battella Gotlib que aborda questões referentes ao conto. 6- Veja que nessa passagem há uma sequência de indícios que deveriam aparentemente culminar noutro fim, veja: “entrei no barraco/ no único quarto/com piso de terra/ com um hálito de bolor, de mofo, de linfa/sentado numa cadeira/ lia a Grande Enciclopédia recém-publicada”. Responda: Qual seria esse outro fim? O que a sequência demonstra? Você se surpreendeu com o resultado? Pesquise no dicionário qual o significado da palavra linfa, assim, você poderá refletir melhor sobre a questão. 7- A mãe do István acredita que o filho lê muito pelo fato dele estar amaldiçoado. Em sua opinião, isso é possível? Há algum indício no texto que nos leve a comprovar ou supor tal afirmação? 127 8- Em sua opinião, por que o leitor não era capaz de falar sobre as “coisas bonitas” que lia nos livros, “só continuava lendo. Tudo, a torto e a direita, sem escolher nada”? Você conhece a expressão “a torto e a direita”? O que ela sugere? 9- Leia abaixo um trecho sobre o autor Dezsö Kosztolányi: “Foi, no entanto, no conto que, durante uma época quando jornais e revistas publicavam narrativas curtas, o escritor achou sua forma mais congenial. Vários têm como protagonista Kornel Esti, um alterego do autor. Todos, porém, caracterizam-se pela precisão, economia e por sua capacidade de, num espaço mínimo, dar vida amiúde a personagens complexas e verossímeis envolvidas em situações (às vezes desvairadas) e em tramas cuja mera apresentação tomaria, em mãos menos hábeis, dezenas de páginas. Observados pelo autor, os seres humanos devidamente situados revelam seus segredos e, às vezes, tudo o que podem ter não só de típico, mas de estranho e até grotesco. A ironia sutil de Kosztolányi perpassa tudo o que ele toca sem, no entanto, distanciá-lo ou colocá-lo acima do que narra” (ASCHER, 2010, p.17). a) Você conseguiu perceber no conto “O leitor” alguma característica temática (ele fala sobre o que?) do estilo do autor húngaro apontada nesse trecho? Quais? b) Como as personagens criadas por Dezsö se caracterizam e o que elas, geralmente, revelam? Isso é possível de ser visto no personagem István? Em sua opinião, o que ele (István) revela? c) Segundo o autor do trecho lido, o conto é uma narrativa curta cuja precisão e economia no momento da criação se constitui como aspectos imprescindíveis. Você concorda com essa afirmação? Já leu algum conto que, em sua opinião, não era tão curto? Qual? 10-Segundo o autor do trecho lido, os contos do escritor Dezsö Kosztolányi eram publicados em revistas e jornais – no início do século XX, nos anos 1910. a) E hoje em dia? Onde geralmente os contos são publicados? Quem os lê? Você gosta de ler contos de qual autor? b) E antigamente? Quem os lia? Quem os publicava? c) Atualmente, o que será que motiva as pessoas a ler contos semelhantes ao “O leitor”? d) Você considera esse conto atual? Por quê? Professor, Explique para os alunos que obras contemporâneas são aquelas escritas e publicadas em nosso tempo, ao passo que as obras atuais referem-se àquelas que têm significado para nós, ou seja, embora alguém leia uma obra escrita no século passado, ainda sim será atual independente da sua época de escrita e publicação. 128 Debatendo com a turma, o professor e o autor 1- Com a leitura desse conto pudemos ver algumas questões relacionadas à vida. Você conhece alguma história que seja semelhante a essa? Pode ser uma novela, um poema, uma música, uma situação real, um filme, outro conto etc. Professor, Conte à turma oralmente. 2- O fato de esse conto ter sido escrito numa outra época por um escritor de outro país, de outro continente (Europeu), cuja cultura é diferente da sua, impediu sua compreensão? Converse com os seus colegas sobre isso. Nessa atividade é bom que você tente trabalhar a oralidade do aluno, por isso seria interessante fazer uma “Roda de Conversa” na qual o aluno seja convidado a expor suas ideias, reflexões e opiniões construídas (ou desconstruídas) ao longo de todas as atividades desenvolvidas anteriormente. A Para terminar... ideia é promover um debate mesmo. Observe a imagem42: Boris Anatolyevich Sholokhov - foi um pintor de talento, grande retratista e conhecido, também, por sua pintura de gênero. Aprendeu a pintar com seu tio Pyotr Sholokhov, um conhecido pintor russo, quando ainda era criança. Estudou arte na Academia de Belas Artes de São Petersburgo e no Instituto de Arte Surikov em Moscou. Também foi professor de arte no Instituto Poligráfico de Moscou. Menina lendo, 1957 (Rússia, 1919 – 2003). 1- Em sua opinião, como a imagem Menina lendo do pintor russo relaciona-se com o conto “O leitor”? 42 Disponível em <http://peregrinacultural.wordpress.com/tag/lendo/>, acessado em 16/05/2013 às 20h47min. 129 2- O que você achou do final do conto? Ficou surpreso? Por quê? 3- Retorne ao tópico “Antes da leitura do conto...” e veja se suas suposições sobre a história confirmaram-se? Exponha para a turma. 4- Você indicaria esse conto para alguém ler? Um amigo, por exemplo. Por quê? Leitura 2 Conto: Morella Autor: Edgar Allan Pöe Duração: 4 aulas Objetivo : Conhecer as características específicas presentes no conto de terror de Edgar Allan Poe. Professor, Ao término da leitura desse conto, é importante que haja uma contextualização das condições de produção e recepção: Quando o conto foi publicado? Quem escreveu? Quem narrou?Com qual objetivo? Sobre o que fala? Converse com os alunos sobre: O que mais lhe chamou atenção? Já leu algum conto desse autor? Conhece alguma história parecida com essa? Durante a leitura, você foi construindo cenas mentalmente? Professor, esse conto encontra-se no Acervo do Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE – 2013), cuja intitulação é Contos obscuros de Edgar Allan Poe. Nesse livro há muitas informações sobre o contista e alguns comentários sobre cada conto, inclusive o Morella. Consideramos que a leitura dessas informações lhe será de grande valia para o seu trabalho, mas, sobretudo, para os alunos. Quem é... Edgar Allan Pöe (1809-1849) foi um grande escritor estadunidense, nascido em Boston no século XIX. Pöe é considerado o grande mestre do conto, ocupando um lugar incontestável na literatura mundial, sendo o precursor do conto de terror. Os contos dele são caracterizados por elementos mórbidos e fantásticos – sobrenaturais. “Poe é considerado o primeiro grande mestre do conto, ou da short story, descrição mais nítida, e que corresponde, nas suas próprias palavras, ‘à narrativa curta, cuja leitura atenta requer de meia hora a uma ou duas horas’. No século XVIII, que lhe deu sua base literária, a narrativa curta tinha sempre algo da anedota, ou da fábula, ou do apólogo moralizante, ou da alegoria, ou do conto folclórico adaptado” (TAVARES, 2010, p.12). 130 Antes da leitura do conto... 1- Observe a capa e contracapa do livro “Contos obscuros” de Edgar Allan Poe. Dê uma passada de olho nos títulos dos contos dessa antologia. O que você acha que irá acontecer nesse conto? Em sua opinião, o que o nome Morella sugere? 2- Agora observe a imagem a seguir e diga: qual será o assunto principal do conto Morella? 3- Quem faz parte dessa imagem? Em sua opinião, o que essa imagem sugere (observe as cores, o lugar e as expressões das pessoas)? 4- As pessoas se encontram em que lugar? O que será que elas estão fazendo aí? 5- Após concluir todos esses passos, faça um comentário no caderno sobre sua primeira impressão acerca do conteúdo do conto (o assunto). 131 Morella Ele mesmo, por si mesmo, único, eternamente um e só. Platão, O banquete. Era um sentimento de profunda e estranha afeição que eu experimentava pela minha amiga Morella. Conheci-a por acaso muitos anos atrás, e desde aquele primeiro encontro minha alma começou a arder num fogo que jamais conhecera; mas tal fogo não vinha de Eros, e foi amarga e tormentosa para o meu espírito a convicção gradual de que eu, de modo algum, conseguiria definir seu extraordinário sentido ou regular sua intensidade inconstante. Mas o fato é que nos conhecemos; e o destino nos conduziu juntos ao altar, sem que eu jamais lhe tivesse falado em paixão ou pensado em amor. Ela, no entanto, evitava a vida social e, apegando-se unicamente a mim, fazia-me feliz. É uma forma de felicidade, o imaginar; uma forma de felicidade, o sonho. A erudição de Morella era profunda. Juro pela minha vida que seus talentos eram de uma escala fora do comum – seus poderes mentais eram gigantescos. Eu sentia isto, e em mais de um assunto tornei-me seu aprendiz. Logo descobri, contudo, que, talvez por conta de sua educação feita em Presburgo, ela me apresentava um grande número de obras que em geral são consideradas meros refugos entre a antiga literatura alemã. Tais obras, por motivos que não posso atinar, eram seu objeto favorito de estudo; e se com o tempo assim também se tornaram para mim, isto não se deve atribuir a nada além da influência do hábito e do exemplo. Em tudo isto, se não me engano, minha razão pouco intervinha. Minhas convicções, se é que bem me conheço, não eram de modo algum influenciadas por um ideal, e nenhuma sombra do misticismo contido em minhas leituras seria possível descobrir, a menos que eu me equivoque grandemente, nos meus atos ou meus pensamentos. Assim, persuadido, eu permitia tacitamente que minha esposa me guiasse, ao penetrar sem receio no mundo intricado de seus estudos. E então – quando, ao folhear aquelas páginas ominosas, eu pressentia um espírito ominoso despertando dentro de mim – Morella punha sobre minha mão a sua mão fria, e exumava das cinzas de uma filosofia morta algumas palavras singulares em voz baixa, as quais, pelo seu estranho significado, se imprimiam de forma indelével em minha memória. E então, hora após hora, eu me deixava quedar ao seu lado, mergulhando na música de sua voz, até que essas melodias surgiam infectadas de terror, e uma sombra se abatia sobre a minha alma, aqueles sons de outro mundo deixando-me pálido e trêmulo por dentro. E assim a alegria de súbito se fundia ao horror, e tudo o que há de mais belo no que há de mais abominável, tal como o vale de Hinnom se torna a Geena. É desnecessário definir o caráter preciso das indagações que, brotando dos volumes que mencionei, constituíram, durante tanto tempo, quase que o único assunto de conversação entre nós dois. Os doutos, no que poderíamos chamar de moral teológica, poderão percebê-lo facilmente; quanto aos leigos, em hipótese alguma conseguiriam entendê-lo. O estranho panteísmo de Fichte, a palingenesia alterada dos pitagóricos por Schelling eram, em geral, os temas de discussão que pareciam mais belo à imaginativa Morella. Creio que o sr. Locke define a identidade pessoal como sendo a continuidade de um ser racional. E como entendemos por “pessoa” uma essência inteligente dotada de razão, e desde que há uma consciência que sempre acompanha o pensamento, é esta quem nos faz ser aquilo que chamamos de nós mesmos, distinguindo-nos assim de outros seres pensantes, e dotando-nos de identidade pessoal. Mas o principium individuationis, aquela noção de identidade que no momento da morte é (ou não) perdida para sempre, era para mim, em qualquer circunstância, uma questão do mais vivo interesse; não só pela natureza surpreendente e inquietante de suas consequências, mas também por causa do modo peculiar e inquieto com que Morella sempre a mencionava. Mas, na verdade, chegou por fim um tempo em que o mistério da natureza de minha esposa passou a me oprimir como um encantamento. Eu já não suportava o toque de seus dedos pálidos, nem o timbre profundo de sua voz musical, nem o brilho de seus olhos cheios de melancolia. Ela o percebia, mas não me censurava; parecia consciente da minha fraqueza ou da minha ingenuidade, e, sorrindo, dizia ser o Destino. Ela parecia também conhecer o motivo, ignorava por mim, para o gradual distanciamento do meu afeto; mas nunca me deu pistas ou indicações sobre sua natureza. E na verdade ela era apenas uma mulher, e eu a via enfraquecer dia após dia. Chegou um momento em que uma mancha rubra surgiu e se fixou em sua face, e as veias azuladas de sua fronte se dilataram; meus sentimentos por ela se abrandaram em piedade, mas quando encontrei seus olhos carregados de sentimento minha alma tornou-se sombria e sofreu uma vertigem como as vertigens que acometem aqueles que lançam seu olhar para dentro de algum abismo lúgubre e insondável. Devo confessar, então, que eu ansiava, com um desejo intenso que me consumia, pelo momento da morte de Morella? Assim era; mas aquele espírito frágil apegou-se à argila que o hospedava, por 132 muitos e muitos dias, semanas e meses fatigantes, até que meus nervos torturados sobrepujaram minhas energias mentais e eu me enfureci com essa demora, e, com o coração tomado por um espírito maligno, amaldiçoei aqueles dias e aquelas horas e aqueles amargos momentos que pareciam não ter fim e que pareciam se prolongar mais e mais à medida que sua vida delicada ia se finando, como as sombras que se esticam no final do dia. Mas numa noite de outono, quando os ventos pareciam imóveis no firmamento, Morella me chamou ao pé de sua cama, uma névoa difusa pairava por sobre toda a terra, uma luz cálida cobria as águas, e no meio das folhas de outubro atapetando o solo da floresta certamente um arco-íris havia tombado do céu. Este é finalmente o dia – disse ela, quando me aproximei –, o mais belo dos dias para viver ou para morrer. Um dia tão belo para os filhos da terra e da vida... ah, e mais belo ainda para as filhas do céu e da morte! Beijei sua fronte, e ela continuou: – Estou morrendo, e no entanto continuarei a viver. – Morella! – Nunca houve um dia em que fosse capaz de me amar. Mas aquela que desprezaste em vida, irás adorar depois da morte. – Morella! – Repito que estou morrendo. Mas dentro de mim existe uma prova da afeição, ah, quão pouca!, que sentiste por mim, por Morella. E quando meu espírito partir, a criança viverá, essa criança que é tua e minha, de Morella. Mas teus dias serão dias de tristeza, aquela tristeza que é a mais duradoura das emoções, assim como o cipreste é a mais duradoura das árvores. Porque as horas da tua felicidade se esgotaram, e não se colhe a felicidade de duas vezes numa vida como se colhem as rosas de Paestum duas vezes num só ano. Não brincarás mais com o tempo como o poeta de Teos; o mirto e a vinha te serão estranhos, e deverás usar à tua volta um sudário como os dos muçulmanos em Meca. – Morella! – gritei. – Morella! Como sabes disto? – Mas ela virou o rosto no travesseiro e, com um leve tremor perpassando por seus membros, assim morreu, e não mais ouvi sua voz. E ela, tal como havia predito, morreu ao dar à luz aquela criança, que não começou a respirar senão quando a mãe cessou de fazê-lo; e essa criança, uma menina, viveu. E cresceu, de maneira estranha, em estatura e em intelecto, e era o retrato perfeito da falecida, e eu amei com um amor mais ardente do que imaginava ser possível sentir por um habitante na terra. Mas logo esse paraíso de pura afeição foi coberto de sombras, e a melancolia, o horror e o sofrimento começaram a varrê-lo com suas nuvens. Já disse que a criança cresceu de maneira estranha tanto em estatura quanto em inteligência. Estranho, de fato, foi o seu rápido crescimento corporal, mas eram terríveis – ah!, quão terríveis! – os pensamentos tumultuados que se aponderavam de mim enquanto eu observava o desenvolvimento de sua mente. E poderia ser de outra forma, quando todos os dias eu voltava a descobrir nas ideias da criança os poderes e as faculdades mentais da mulher adulta? Quando as lições da experiência brotavam dos lábios da infância? E quando a sabedoria e as paixões da idade madura eram vislumbradas por mim no brilho de seus olhos profundos e especulativos? Quando, repito, este fato se mostrou evidente aos meus sentidos exaltados – quando eu não mais conseguia ocultá-lo da minha própria alma, nem desviá-lo das minhas percepções, que estremeciam ao percebê-lo –, é de surpreender a alguém que suspeitas de uma natureza terrível e inquietante tenham se apossado do meu espírito, ou que meus pensamentos evocassem o tempo inteiro, com horror, as histórias estranhas e as teorias perturbadoras da falecida Morella? Afastei da curiosidade do mundo aquela criatura que o destino me forçava a adorar, e, na reclusão rigorosa de minha moradia, fiquei a acompanhar com uma ansiedade agonizante tudo que dissesse respeito à criança que eu tanto amava. E enquanto os anos transcorriam, e eu contemplava dia após dia seu rosto santo, e suave, e eloquente, e estudava as suas formas que amadureciam, a cada novo dia eu descobria uma nova semelhança entre a criança e sua mãe, a melancólica e a falecida. E a cada hora essas sombras de semelhança se adensavam, e se tornavam mais plenas, mais nítidas, mais inquietantes, e fato de que seu sorriso fosse parecido com o de sua mãe; mas estremecia ao perceber que eram perfeitamente idênticos; que seus olhos se assemelhassem aos de Morella era suportável, mas eles, também, às vezes, fitavam as profundezas de minha alma com a expressão estranha e intensa da própria Morella. E nos contornos de sua fronte, e nos cachos de seus cabelos, e nos dedos pálidos que os acariciavam, distraídos, e no timbre triste e musical de sua voz, e, acima de tudo – oh, acima de tudo –, nas frases e nas expressões da morta que brotavam dos lábios da viva, eu encontrava 133 com que alimentar meus pensamentos de horror, como um verme que se recusa a morrer. Assim se passaram dois lustros de sua vida, e minha filha ainda permanecia sem nome sobre esta terra. “Minha filha” e “Meu amor” eram as expressões que eu usava habitualmente para exprimir o meu afeto paternal, e a rigorosa clausura em que ela passava seus dias evitava o contato com quaisquer outras pessoas. O nome de Morella morrera com ela mesma. Eu jamais falara com a filha a respeito da mãe, pois era um assunto impossível de abordar. Na verdade, durante sua breve existência, a criança não recebera outras impressões do mundo exterior senão aquela que lhe eram acessíveis nos estreitos limites de sua reclusão. Mas, por fim, a possibilidade de realização da cerimônia do batismo ofereceu à minha mente, na sua condição nervosa e inquieta, uma feliz libertação dos terrores do meu destino. E diante da pia batismal eu hesitei ao escolher um nome. Muitos nomes de pessoas sábias e belas, dos tempos antigos e modernos, da minha terra e de terras estrangeiras, vieram aos meus lábios, muitos e muitos epítetos de pessoas nobres, felizes e boas. O que me levou, então, a perturbar a memória dos mortos e sepultados? Que demônio me instigou a proferir aquele som, cuja mera lembrança é capaz de fazer refluir o sangue das minhas têmporas para o coração? Que espírito maligno se manifestou de algum recesso da minha alma, quando, naquelas galerias obscuras e no silêncio da noite, eu sussurrei aos ouvidos do sacerdote as sílabas – “Morella”? Que outro ser, senão um demônio, poderia convulsionar daquele modo as feições de minha filha, e espalhar sobre elas o matiz da morte, quando, num sobressalto diante daquele som meramente audível, seus olhos vidrados se voltaram do chão para os céus e, tombando prostrada sobre as lajes negras da cripta dos meus ancestrais, respondeu “Aqui estou!”? Nítidos, fria e calmamente nítido, aqueles sons penetraram nos meus ouvidos, e ali escorreram chiando, como chumbo derretido, para dentro do meu cérebro. Anos, muitos anos se passarão, mas a memória daquele instante não passará jamais. Não ignorei a existência das flores e das vinhas, mas a cicuta e o cipreste lançaram sua sombra sobre mim, dia e noite. Perdi o senso do tempo e do espaço, e as estrelas do meu destino sumiram do firmamento, e desde então a terra se cobriu de trevas e as imagens que a habitavam passavam por mim como sombras voláteis, e entre elas eu avistava apenas uma – Morella. Os ventos do firmamento não produziam senão o mesmo som aos meus ouvidos, e o quebrar das ondas à beira-mar murmurava o tempo inteiro – Morella. Mas ela morreu; e com as minhas mãos eu a depositei na tumba; e soltei uma gargalhada longa e cheia de amargura quando não encontrei nenhum traço da primeira no local onde sepultei a segunda – Morella. Edgar Allan Pöe. Contos obscuros de Edgar Allan Poe. Acervo PNBE - 2013 Glossário Adensavam: Tornar denso; condensar. Atapetando: Cobrir de tapete. Cicuta: Planta umbelífera, venenosa. Cipreste: Símbolo da morte, da tristeza, da dor. Doutos: sábio, erudito, culto. Eloquente: Que convence, é expressivo ou persuasivo. Eros: era o deus grego do amor. Erudição: erudita, culta. Epíteto: Qualificação; cognome, apelido. Exumava: tirar um cadáver do sepulcro; desenterrar: Geena: (literalmente vale de Hinnom) é um vale em torno da Cidade Antiga de Jerusalém, e que veio a tornar-se um depósito onde o lixo era incinerado. Indelével: que não pode ser apagado; que não se pode extinguir ou destruir. Lúgubre: Que exprime ou inspira sombria tristeza; fúnebre: aparência lúgubre, lúgubres lamentos. Lustros: período de cinco anos; brilho, polimento. Ominosa: agourento, azarento, detestável. Paestum: antiga cidade da Grécia Palingenesia: eterno retorno. Renovação, regeneração, renascimento Panteísmo de Fichte: o filósofo alemão Fichte desenvolve uma espécie de panteísmo do eu, considerando o espírito como o criador de todas as coisas, incluindo as próprias regras disciplinadoras do espírito. Principium individuationis: ideais do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Poeta de Teos: Anacreonte - foi um poeta lírico grego. Refluir: Retroceder, retornar. Refugo: coisa desprezada, considerada como inútil. Rubra: vermelho intenso. Tacitamente: timidamente Têmporas: Parte lateral da cabeça, compreendida entre o olho, a fronte, a orelha e a bochecha; fonte. Vertigem: Sensação de falta de equilíbrio no espaço, que faz parecer ao indivíduo girarem todos os objetos à sua volta; tonteira. Voláteis: Que tem a faculdade de voar; voador; inconstante. 134 Compreensão do conto 1- Por que o narrador-personagem do conto diz que o “tal fogo”, sentido por sua amiga Morella, não vinha de Eros? Quem foi Eros? 2- Se o narrador-personagem não estava apaixonado e, tampouco, amando Morella, por que, então, se casou com ela? 3- Quando casados, como era o convívio entre os dois? Como era a rotina, o dia a dia? 4- Em sua opinião, por que Morella possuía uma inteligência excepcional? 5- O que o narrador- personagem quer dizer com “[...] até que essas melodias surgiam infectadas de terror [...] aqueles sons de outro mundo deixando-me pálido e trêmulo por dentro”? Por que ele fica “pálido e trêmulo”? O que significa? 6- Qual(is) é(são) a(s) principal(is) diferença(s) entre o conto anterior, “O leitor”, e esse de Edgar Allan Pöe? 7- Quando Morella começa a enfraquecer fisicamente, como o esposo a descreve? 8- Em sua opinião, qual era a natureza de Morella? 9- O narrador-personagem afirma que houve um tempo em sua vida que todo o encanto, o mistério e a beleza de sua esposa passaram a lhe oprimir. Por quê? 10-Leia o seguinte trecho “[...] mas quando encontrei seus olhos carregados de sentimento minha alma tornou- se sombria e sofreu uma vertigem como as vertigens que acometem aqueles que lançam seu olhar para dentro de algum abismo lúgubre e insondável”. O que essa passagem representa? Como se relaciona às características do gênero conto de terror? 135 11-O que você pode inferir sobre “[...] mas aquele espírito frágil apegouse à argila que o hospedava, por muitos e muitos dias, semanas e meses fatigantes [...]”? 12- Quem era o espírito frágil? O que representa a “argila”? E por que os meses tornaram-se fatigantes, cansativos? 13-No dia em que Morella morreu, como o esposo descreve esse momento? 14-Por que será que Morella diz que embora esteja morrendo, continuará a viver? E por que o esposo irá adorá-la depois de morta? 15-Ao morrer, Morella dá à luz a uma criança. Como o narradorpersonagem descreve a criança? O que ele percebe no decorrer do desenvolvimento da criança? 16-Quando a criança estava com dez anos de idade o pai resolve batizá-la. Qual nome é escolhido? O que o levou a escolher tal nome? O que a criança responde? 17-O pai ao sepultar a filha percebe que a sepultura da mãe estava vazia. Em sua opinião, a que se deve isso? Fique ligado! Observe que as escolhas de palavras que remetem a um mesmo universo (pressentia um espírito ominoso/ mão fria/exumava das cinzas/infectadas de terror/ sombra se abatia sobre a minha alma/outro mundo/pálido e trêmulo/ horror/ etc.), bem como a provável repetição de palavras são recursos linguísticos Fique ligado! que contribuem para a construção de possíveis sentidos deÉumaimportante narrativa. saber que caracterização Professor, 1- Que relação pode haver entre a epígrafe do conto e o enredo? da personagem e do ambiente Observe que a temática tratada no conto anterior está relacionada com o dia a dia,a acriação rotina dede deve proporcionar uma pessoa: trabalhar, ir à escola, fazer faculdade, uma coisas relacionadas à cidade etc,as atmosfera coerente com aparentemente, “reais”. Ao observar os seres humanos, reflexões o autor dá despertadas vida a personagens pelos complexas que, envolvidas em situações fatos e sensações desvairadas, revelam segredos presentes e tudo queno podem ter de típico, bizarro, estranho. Ao passo conto mente do leitor. que o cerne do na conto “Morella” está no agir sobrenatural, no psicológico, em coisas atinentes Veja o que Braulio Tavares ao mundo espiritual, místico e oculto, visto que é um conto de terror. (2010, p.187), organizador do O conto de terror, portanto, é caracterizado pelo terror atormenta livropsicológico que vocêqueestá lendo, ediz enfraquece a alma. Veja que o conto “Morella” é impregnado de palavras lúgubres que remetem sobre o conto: ao mundo, às vezes, obscuro, desconhecido, místico do“’Morella’ existir humano, ademais, conto fala dasde é o primeiro coisas da alma. Os cenários dos contos de terror uma castelos, série cujo temafamílias podemos são os velhos antigas da Europa edenominar seus medos, angústias, ódios A Mulher seculares, pessoas que parecem possuídas por Transfigurada. É um conjunto de espíritos malignos. Portanto, os contos de terror histórias de Edgar em Allan quePoe são uma (terror psicológico) sempre narrados na primeira pessoa, morre sugerindo personagem feminina eé prováveis acontecimentos de sua própria vida. substituída quee ade Os personagens vivem por entre outra, a lucidez loucura; sofrem alguma e quase certa de forma se doença equivale a ela, sempre cometem atos infames. Conforme Gotlib sugerindo, em certos casos, (1999, p.32), “a teoria de Poe sobre o conto recai no princípiouma de uma relação: entre a extensão do transmigração de almas. conto e a reação que ele consegue provocar no Por ordem cronológica esses leitor ou o efeito que a leitura lhe causa”. contos são: ‘Morella’ (1935), ‘Ligeia’ (1838) e ‘Eleonora’ (1841) (TAVARES, 2010, p.187). Fique ligado! Debatendo com a turma, o professor e o autor a Epígrafe – é uma sentença colocada no início de um capítulo de livro, de um discurso, de uma composição poética etc. 2- Em sua opinião é possível existir um ser como Morella? Por quê? O que a diferencia das outras mulheres? 136 3- É possível saber em que época e lugar essa história se passou? É possível ambientá-la? Caracterize esse contexto. 4- Você acha que a escolha de palavras e expressões, que culminam para uma ambientação sóbria e macabra, influencia nos efeitos da narrativa sobre o leitor? Por quê? Para terminar 1- Durante a leitura desse conto, que sensações você sentiu? 2- O que você achou do desfecho? Foi como você esperava? 3- Em sua opinião, Morella era um ser sobrenatural? Ou será que existe alguma explicação lógica para o que aconteceu? 4- O que faz com que o conto cause sensações como medo, terror e espanto? 5- Você gostou do estilo de Edgar Allan Poe? Caso tenha se interessado, procure ler os outros contos dessa coletânea. Há também filmes e séries inspirados em suas obras, por exemplo, o filme “Os crimes da Rua Morgue” que foi inspirado no conto “Os assassinatos da Rua Morgue” (Murders in the Rue Morgue, 1932). Recentemente o canal de televisão fechado FOX lançou uma série baseada também nos contos de Poe. Veja o link na internet: <http://www.canalfox.com.br/br/videos/view/26428483700-contos-do-edgarproximos-episodios> 6- Escreva um parágrafo sobre a imagem43 abaixo, a qual é cena do filme “O Corvo”, baseado no poema de mesmo nome e em várias outras obras de Edgar Allan Poe. Depois, aproveite para ler o poema e/ou assistir ao filme. O que você acha que irá acontecer (ou o que já aconteceu) com esse casal? Observe as vestes de cada um, os acessórios e as expressões. O que elas sugerem? Pense nesses aspectos para você escrever. 43 Disponível em <http://www.filmescontados.com/2012/09/o-corvo.html>, acessado em 16/04/2013 às 20h25min. 137 Leitura 3 Conto: Um sonho no estádio vazio Autor: Moacyr Sclyar Duração: 4 aulas Objetivos: Conhecer a “história do conto” (de modo conciso) pelo olhar de Moacyr Scliar através do conto “O conto se apresenta”. Aprender a observar imagens que “conversam” com o conto lido. Professor, O conto a seguir é muito eficaz para os alunos reconhecerem algumas das características do gênero conto. O mais interessante é que o narrador é o próprio conto (o conto se personifica), ou seja, ele conta a própria história. Esse conto faz parte da coleção Literatura em minha casa – contos (Biblioteca da Escola – FNDE/Ministérios da Educação) cuja distribuição é gratuita. É importante dizer para os alunos que o autor Moacyr Scliar escreveu esse conto exclusivamente para essa coleção. Após a leitura cuidadosa desse conto, faça uma roda de conversa com os alunos, na qual vocês poderão falar sobre o fato do conto ser a personagem, o narrador. Pergunte: O que os alunos acharam disso? O conto é mesmo antigo, não?! O que o narrador fala sobre a sua história antes da escrita? E depois? Por que as pessoas contam histórias? Como o conto se apresenta às pessoas? E o que elas fazem após a apresentação? O narrador diz que os contos de hoje em dia “Já não são histórias sobre deuses, sobre criaturas fantásticas. Não, são histórias sobre gente comum”. Por que ele diz isso? 138 Antes da leitura do conto... 1- Primeiramente, faça uma leitura silenciosa, grifando aquilo que considerou importante ou de difícil compreensão. Veja se há, nesse texto, alguma característica sobre o conto já mencionada em outro momento. Grife-a e, depois, numa roda de conversa compartilhe com a turma. O conto se apresenta Olá! Não, não adianta olhar ao redor: você não vai me enxergar. Não sou uma pessoa como você. Sou, vamos dizer assim, uma voz. Uma voz que fala como você ao vivo, como estou fazendo agora. Ou então que lhe fala dos livros que você lê. Não fique tão surpreso assim: você me conhece. Na verdade, somos até velhos amigos. Você já me ouviu falando de Chapeuzinho Vermelho e do Príncipe Encantado, de reis, de bruxas, do SaciPererê. Falo de muitas coisas, conto muitas histórias, mas nunca falei de mim próprio. É o que eu vou fazer agora, em homenagem a você. E começo me apresentando: eu sou o Conto. Sabe o conto de fadas, o conto de mistério? Sou eu. O Conto. Vejo que você ficou curioso. Quer saber coisas sobre mim. Por exemplo, qual a minha idade. Devo lhe dizer que sou muito antigo. Porque contar histórias é uma coisa que as pessoas fazem há muito, muito tempo. É uma coisa natural, que brota de dentro da gente. Faça o seguinte: feche os olhos e imagine uma cena, uma cena que se passou há muitos milhares de anos. É de noite e uma tribo dos nossos antepassados, aqueles que viviam nas cavernas, está sentada em redor da fogueira. Eles têm medo do escuro, porque no escuro estão as feras que os ameaçam, aqueles enormes tigres, e outras mais. Então alguém olha para a lua e pergunta: por que é que às vezes a lua desaparece? Todos se voltam para um homem velho, que é uma espécie de guru para eles. Esperam que o homem dê a resposta. Eu, o Conto. Surjo lá da escuridão e, sem que ninguém note, falo baixinho ao ouvido do velho: Quem é... Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1937. Foi médico e autor de mais de setenta livros. Ganhou o prêmio Jabuti de Literatura nos anos de 1988, 1993 e 2009. Tem textos adaptados para o cinema, teatro, tevê e rádio. Moacir Scliar faleceu em fevereiro de 2011. – Conte uma história para eles. E ele conta. É uma história sobre um grande tigre que anda pelo céu e que de vez em quando come a lua. E a lua some. Mas a lua não é uma coisa muito boa para comer, de modo que lá pelas tantas o grande tigre bota a lua para fora de novo. E ela aparece no céu, brilhante. Todos escutam o conto. Todo mundo: homens, mulheres, crianças. Todos estão encantados. E felizes: antes, havia um mistério: por que a lua some? Agora, aquele mistério não existe mais. Existe uma história que fala de coisas que eles conhecem: tigre, lua, comer – mas fala como essas coisas poderiam ser não como elas são. Existe um conto. As pessoas vão lembrar esse conto por 139 toda a vida. E quando as crianças da tribo crescerem e tiverem seus próprios filhos, vão contar a história para explicar a eles por que a lua some de vez em quando. Aquele conto. No começo, portanto, é assim que eu existo: quando as pessoas falam em mim, quando as pessoas narram histórias – sobre deuses, sobre monstros, sobre criaturas fantásticas. Histórias que atravessam os tempos, que duram séculos. Como eu. Aí surge a escrita. Uma grande invenção, a escrita, você não concorda? Com a escrita, eu não existo mais somente como uma voz. Agora estou ali, naqueles sinais chamados letras, que permitem que pessoas se comuniquem mesmo a distancia. E aquelas histórias – sobre deuses, sobre monstros, sobre criaturas fantásticas – vão aparecer um forma de palavras escritas. E é neste momento que eu tenho uma grande idéia. Uma inspiração, vamos dizer assim. Você sabe o que é inspiração? Inspiração é aquela descoberta que a gente faz de repente, de repente tem uma idéia muito boa. A inspiração não vem de fora, não; não é uma coisa misteriosa que entra na nossa cabeça. A boa idéia já estava dentro de nós; só que a gente não sabia. A gente tem muita boas idéias, pode crer. E então, com aquela boa idéia, chego perto de um homem ainda jovem. Ele não me vê. Como você não me vê. Eu me apresento, como me apresentei a você, digo-lhe que estou ali com uma missão especial – com um pedido: – Escreva uma história. Num primeiro momento, ele fica surpreso, assim como você ficou. Na verdade, ele já havia pensado nisso, em escrever uma história. Mas tinha dúvidas: ele escrever uma história: Como aquelas histórias que todas as pessoas contavam e que vinham de um passado? Ele, escrever uma história? E assinar seu próprio nome? Será que pode fazer isso? Dou força: – Vá em frente, cara. Escreva uma história. Você vai gostar de escrever. E as pessoas vão gostar de ler. Então ele senta, e escreve uma história. É uma história sobre uma criança, uma história muito bonita. Ele lê o que escreveu. Nota que algumas coisas não ficara muito bem. Então escreve de novo. E de novo. E mais uma vez. E aí, ele gosta do que escreveu. Mostra para outras pessoas, para os amigos, para a namorada. Todos gostam, todos se emocionam com a história. E eu vou em frente. Procuro uma moça muito delicada, muito sensível. Mesma coisa: – Escreva uma história. Ela escreve. E assim vão surgindo escritores. Os contos deles aparecem em jornais, em revistas, em livros. Já não são histórias sobre deuses, sobre criaturas fantásticas. Não, são histórias sobre gente comum – porque as histórias sobre as pessoas comuns muitas vezes são mais interessantes do que histórias sobre deuses e criaturas fantásticas: até porque deuses e criaturas fantásticas podem ser inventados por qualquer pessoa. O mundo da nossa imaginação é muito grande. Mas a nossa vida, a vida de cada dia, está cheia de emoções. E onde há emoção, pode haver conto. Onde há gente que sabe usar as palavras para emocionar pessoas, para transmitir idéias, existem escritores. Alguns deles – grandes escritores – você vai conhecer agora. O José Paulo Paes, que já morreu, escrevia poemas, escrevia artigos, escrevia contos... Ele adorava crianças e adorava 140 palavras: e, por causa disso, escreveu A Revolta das Palavras. Você já imaginou isso, as palavras se revoltando? Pois é. Se o Conto pode falar, as palavras podem se revoltar, não é verdade? Isso é o que José Paulo Paes diz. E depois tem o Milton Hatoum. Ele é do Norte, de Manaus. E escreve uma linda história que se passa em Xapuri, no Acre. E o Marcelo Coelho, que é jornalista, fala sobre o primeiro dia na escola. Lembram disso? Lembram do primeiro dia na escola? O Marcelo vai ajudar vocês a lembrar. Já o Drauzio Varella é médico, um grande médico que é também escritor. Mas os médicos, e os escritores, também tiveram infância, também fizeram travessuras, e é disso que o Drauzio vai falar pra vocês. E, já que eles estão aqui, posso ir embora, porque agora vocês estão em muito boa companhia. Vou em busca de outros garotos e outras garotas. Para quem vou me apresentar: – Eu sou o Conto. Moacyr Scliar. Era uma vez um conto. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002. Um sonho no estádio vazio Desde criança ele vivia o tradicional sonho brasileiro: queria ser um grande jogador de futebol, destes que fazem carreira meteórica, que são convocados para a seleção, que ganham grandes quantias em dólar ou, melhor ainda, em euro. Um sonho que o acompanhava constantemente, mas que, infelizmente, seria difícil de realizar. Porque ele era muito ruim no futebol. Muito ruim, não: ele era espantosamente ruim. Como é que um cara pode ser tão ruim, perguntavam os amigos, espantados. Ele errava os chutes, ele tropeçava na bola, ele não sabia fazer um passe. Até um gol contra conseguiu fazer, e foi o único de sua vida. Desiste, era o conselho que lhe davam os pais, os irmãos, os colegas de escola. Mas ele não desistia. A sua vida teria, de qualquer maneira, um estádio de futebol como cenário. O que acabou acontecendo, mas não da maneira como esperava. De família pobre, cedo precisou arranjar um emprego. Como entendia alguma coisa de gramados (trabalhara como ajudante de jardineiro), foi contratado por um grande time da capital para fazer exatamente isso, cuidar do gramado. No que era imbatível. O gramado era uma perfeição, elogiado por jogadores, por juízes, por torcedores, pela imprensa. Gratificante, mas insatisfatório. Ele não queria cuidar do gramado, queria correr sobre o gramado, usando o uniforme do clube. E um dia resolveu fazê-lo. Tendo chegado muito cedo ao estádio, viu-se absolutamente sozinho ali. Mais: no vestiário encontrou um uniforme que um dos jogadores tinha deixado ali, e que ainda cheirava a suor. Junto, uma bola. Ou seja: uma mensagem do Destino. Ele não hesitou. Tirou a roupa, vestiu o uniforme, pegou a bola e adentrou o gramado. Colocou a bola no centro do campo e, ouvido um apito imaginário, deu início à partida. Com alguma dificuldade (Deus, ele era ruim mesmo), mas incentivado pela torcida igualmente imaginária, partiu em direção à goleira adversária, guarnecida (imaginariamente, claro) por um gigantesco goleiro. E aí, de curta distância, chutou no canto esquerdo. Errou, claro. Errou feio. A bola, fraca, passou a uns 5 metros da trave. Naquele silêncio sepulcral, ele catou a bola e voltou com ela sob o braço para o vestiário. Vestiu as roupas de jardineiro e foi trabalhar. Grandes jogadores precisam de grandes gramados. Disso ele cuidaria. Era sua missão. Era a sua maneira de vencer a partida da vida. Moacyr Scliar. Contos e crônicas: para ler na escola. 2011 Acervo PNBE 2013 Glossário Meteórica: carreira deslumbrante Sepulcral: pertencente ou relativo a sepulcro; triste, fúnebre (silêncio sepulcral). Compreensão do conto 141 1- O conto, que você acabou de ler, aborda que assunto? 2- Quem narra o conto? Qual é o tipo de narrador? 3- Em sua opinião, o que significa “Um sonho no estádio vazio”? 4- Qual é a semelhança entre o conto “O leitor” e esse? 5- Se reúna com um colega de classe a fim de contarem, um para o outro, os seus sonhos. Ao terminar essa etapa, escreva em seu caderno qual é o sonho de seu colega e apresente para a turma. Professor, Nessa atividade 6, sua participação é imprescindível, por isso seja o primeiro a contar sobre um sonho seu. Pode ser um sonho antigo ou presente, ou, ainda, um sonho de alguém que você conhece: amiga, mãe, irmã, vizinha, namorada etc. Ademais, diga aos alunos que ao recontar a história do colega, poderão acrescentar outros elementos, por exemplo, dá outro fim ou mudar alguns acontecimentos. 6- Sabemos que os contos de Moacyr Sclyar são tidos como contemporâneos – do nosso tempo, da nossa época, século XXI -, ao passo que o conto do Edgar A. Pöe são considerados de terror. Em sua opinião, em quais aspectos eles se diferem? 7- Com que possíveis intenções o narrador diz “[...] que ganham grandes quantias em dólar ou, melhor ainda, em euro”? Por que ganhar em “euro” é ainda melhor? 8- O narrador elenca vários fatores que fazem com que esse rapaz seja considerado não apenas um jogador ruim, mas “espantosamente ruim”. Quais? 9- Em que momento o personagem do conto percebe que realmente não conseguirá ser um jogador de futebol? 10- Será que ele conseguiu, apesar de ser um jardineiro, ter um estádio de futebol como cenário em sua vida? 11- As palavras, que o narrador escolhe para narrar o conto, remete-nos a um mesmo universo: o futebol. Quais são elas? 12- Em sua opinião, o que é “o tradicional sonho brasileiro”? Debatendo com a turma, o professor e o autor Observe bem as imagens e depois converse com a turma e o professor: 142 44 Imagem 1 - Um menino africano jogando futebol 45 Imagem 2 - Meninos da classe média brasileira jogando futebol 1- Que sensações essas imagens causam em você? 2Observe as cores, as bolas, os campos, os pés: qual imagem você acha mais forte/ emocionante? Por quê? 3- Observe bem as imagens e diga em que elas diferem. 4Como você sabe, o continente africano é o mais pobre do mundo, onde estão os maiores índices dos portadores do vírus HIV (vírus causador da doença AIDS) do planeta, bem como o da fome, da miséria, dos conflitos armados (guerras civis) e do avanço de epidemias. a) Em sua opinião, a imagem 1 colabora para essa afirmação? Como é possível, mesmo em tais condições, alguém ainda ter forças, ânimo para jogar futebol? O que explica isso? b) O que simboliza o futebol é a bola. Observe novamente a imagem 1 e responda: o que a bola de futebol desse menino representa? Disponível em <http://anaberriel.wordpress.com/2010/05/28/o-futebol-na-africa/>, acessado em 17/04/2013 às 21h01min. Disponível em <http://www.colegiomedianeira.g12.br/atividades-complementares/esporte/futebol-de-campo/>, acessado em 17/04/2013 às 20h51min. 44 45 143 5As duas imagens tratam de contextos sociais diferentes, no entanto o que há de comum entre elas? 6Pensando no contexto brasileiro, na nossa cultura, o que o futebol representa? 7- Observe essa imagem46 e responda: a) Qual é a intenção do autor ao produzir esse texto? b) O que significa a expressão “o circo nós já temos... falta o pão”? Ela se refere a uma frase muito antiga historicamente, qual? Caso não saiba, visite ao blog: http://paulo-veras.blogspot.com.br/2009/09/pao-e-circo-para-o-povo.html e leia o texto: “Pão e circo para o povo”. c) Como essas frases se relacionam? Considere que a frase original diz “Pão e circo ao povo” e a da imagem “o circo já temos... falta o pão”. d) Observe que a criança da imagem está segurando uma vasilha com algumas migalhas de algum tipo de alimento e veste uma camiseta azul com imagens de bandeiras de seis países. Quais são eles? Em sua opinião, o que isso representa? e) Agora que você leu o texto “Pão e circo ao povo”, faça um comentário refletindo sobre: Como pão e circo se relacionam? O que eles representam? Apesar de essa frase ter sido dita há muitos séculos atrás, ela ainda é real em nossa sociedade? Disponível em <http://www.engenhariae.com.br/colunas/brasil-sem-miseria-x-copa-do-mundo/>, acessado em 17/04/2013 às 22h26min. 46 144 f) Por que o imperador romano Vespasiano disse isso? Qual deve ter sido sua intenção? g) O que você pensa sobre a Copa do mundo 2014? Quais são suas expectativas, tendo em vista que Cuiabá será uma das sedes da copa? O que você espera? Professor, Nessa última atividade, seria bom fazer um debate ou uma roda de conversas, a fim de ouvir as opiniões dos alunos. h) Você sabia que o Governo brasileiro irá investir bilhões e bilhões em construções de “Arenas” (como o antigo Coliseu grego que você leu no texto “Pão e circo para o povo”)? A propósito, a Arena Pantanal terá um custo de R$ 518,9 milhões, você sabia? O que você pensa sobre isso? i) Será que a ideia de “pão e circo para o povo” não seria uma “estratégia” do governo brasileiro, aliás, de todo País Subdesenvolvido? Em sua opinião, a que se deve isso? Para terminar 1Hoje em dia os futebolistas de grandes clubes ganham milhões, será que sempre foi assim? Cite o nome de algum jogador famoso. 2Em sua opinião, você considera “justo” os salários que os futebolistas, por exemplo, Neymar, ganham? Por quê? Leitura 4 Conto: A medalha Autora: Lygia Fagundes Telles Duração: 4 aulas Objetivos: Levar os alunos à leitura de um conto que alia o texto impresso e o audiovisual; Professor, Agora iremos ler o conto “A medalha” e assistir a uma interpretação do mesmo, feita pela atriz Maria Luiza Mendonça. O vídeo, que iremos assistir, foi produzido pelo programa “Contos da Meia Noite” da TV Cultura e pode ser encontrado no site Youtube http://www.youtube.com/watch?v=iYQxUzL9rVU. É importante que os alunos acessem ao site, pois, assim, poderão se interessar por outros. 145 Quem é... Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo no dia 19 de abril de 1923. Publicou muitos livros de contos, romances - um romance muito conhecido é Ciranda de Pedra (1954) que, segundo Antônio Cândido, é a obra na qual a autora alcança a maturidade literária. É na adolescência que Lygia Fagundes Telles se apaixona pela literatura. Os seus contos abordam temáticas, cujos aspectos mais sombrios da alma humana, são desvelados e investigados com uma ousadia surpreendente, ou seja, seus contos são especulações e questionamentos dos limites da verdade aparente. Antes da leitura do conto... 1- Observe a capa, a contracapa, o sumário do livro “A estrutura da bolha de sabão” da autora Lygia Fagundes Telles e, depois, leia a sinopse do livro. Pense sobre o título do conto que você irá ler, “A Medalha”, e, então, responda: o que você supõe que vá acontecer nessa história? A MEDALHA Ela entrou na ponta dos pés. Tirou os sapatos para subir a escada. O terceiro degrau rangia. Pulou-o apoiando no corrimão. A moça ficou quieta, ouvindo. Teve um risinho frouxo quando se inclinou para calçar os sapatos, Ih! que saco. Fez um afago no gato que lhe veio ao encontro, esfregando-se na parede. Tomou-o no colo. – Romi, Romi.... Então, meu amor? – Adriana! Assustado com o grito, o gato fugiu espavorido pela escada abaixo. Ela prosseguiu sem pressa, arrastando os pés. O quarto estava iluminado. Empurrou a porta. – Acordada ainda, mãe? A mulher fez girar a cadeira de rodas e ficou defronte à porta. Vestia uma camisola de flanela e tinha um casaco de tricô atirado nos ombros. Os olhos empapuçados reduziam-se a dois riscos pretos na face amarela. – Precisava ser também na véspera do casamento? Precisava ser na véspera? – repetiu a mulher agarrando-se aos braços da cadeira. – Precisava. – Cadela. Já viu sua cara no espelho, já viu? A moça encostou-se no batente da porta. Abriu a bolsa e tirou o cigarro. Acendeu-o. Quebrou o palito e ficou mascando a ponta. – Acabou, mãe? Quero dormir. A mulher aproximou mais a cadeira. Fechou no peito cavado a gola do casaco. Falou em voz baixa, com suavidade. – Na véspera do casamento. Na vés-pe-ra. Você já viu sua cara no espelho? Já se olhou num espelho? – e daí? O véu vai cobrir minha cara, o véu cobre tudo, ih! tem véu à beça. Vou dar uma beleza de noiva, mãe, você vai ver. Preferia me meter no meu colante preto mas seu genro é romântico, aquelas ondas... – Cínica. Igualzinha ao pai. Ele ia achar graça se te visse assim, aquele cínico. – Não fale do meu pai. – Falo! Um cínico, um vagabundo que vivia no meio de vagabundos, viciado em tudo quanto é porcaria. Você é igual, Adriana. O mesmo jeito esparramado de andar, a mesma cara desavergonhada... – Ele era bom. – “Bom” aquilo então era bondade? Hein? Um debochado, um irresponsável completamente viciado, igualzinho a você. Imagine, bom... Estou farta desse tipo de bondade, quero gente com caráter, sabe o que é caráter? É o que ele nunca teve, é o que você não tem. Na véspera do 146 casamento... – Na véspera ou no dia seguinte, que diferença faz? A mulher sacudiu-se na cadeira. – Às vezes nem acredito. Uma filha assim, eu não acredito. A moça esfregou os olhos congestionados. O rímel das pestanas deixou nas pálpebras dois grossos aros de carvão. – Sou ótima, mãe. Uma ótima menina, é o que todo mundo diz. A mulher quis abotoar o casaco. Faltavam botões. Fechou a gola na mão. – Por que não se casa com ele? Hein? Vamos, Adriana, por que não se casa com ele? – Com ele quem? – Com esse vagabundo que acabou de te deixar no portão. – Porque ele não quer, ora. – Ah, porque ele não quer – repetiu a mulher. Parecia triunfante. – Gostei da sua franqueza, porque ele não quer. Ninguém quer, minha querida. Você já teve dúzias de homens e num quis, só mesmo esse inocente do seu noivo... – Mas ele não é inocente, mãezinha. Ele é preto. A mulher respirou com dificuldade. Abriu nos joelhos as mãos cor de palha. Inclinou-se para a frente e baixou o tom de voz. – Por que você diz isso? Adriana deixou cair o cigarro e vagarosamente esmagou a brasa no salto do sapato. Passou a mão indolente pelos cabelos oxigenados de louro. Apanhou uma ponta mais comprida, levou-a até a cara e ficou brincando com o cabelo no lábio arregaçado. – Olha só o meu bigode, mãe, agora tenho um bigode! – Responda, Adriana, por que você diz isso? que ele é preto. A moça abriu a boca para bocejar. Desatou a rir. – Oh! meu Deus... Porque é verdade, querida. E você sabe que é verdade mas não quer reconhecer, o horror que você tem de preto. Bom, não deve ser mesmo muito agradável, concordo, um saco ter uma filha casada com um preto, ih! que saco. Preto disfarçado mas preto. Já reparou nas unhas dele? No cabelo? Reparou, sim, mas meu sangue é podre. Então é o sangue dele que vai vigorar, entendeu? Seus netos vão sair moreninhos, aquela cor linda de brasileiro. – Chega, Adriana. – Não chega não, eu queria dormir, lembra? Então é isso daí, nunca vi ninguém reconhecer preto assim fácil como você, um puta faro. O tipo pode botar peruca, se pintar de ouro e de repente num detalhe, aquele detalhinho... Inclinou-se para apanhar a bolsa que caiu. Catou vacilante o pente e o espelho, quis ainda alcançar o lápis que rolou no assoalho, desistiu do lápis, Ih!...Levantou-se apertando a bolsa contra o peito, a outra mão apoiada na maçaneta da porta. Respirou penosamente, a boca aberta. Encarou a mulher. – Tudo bem? – Tudo bem, Adriana. Tenho é muita pena desse moço. Seu noivo. Casar com uma coisa dessas, imagine. – Mas ele vai ser podre de feliz comigo, mãezinha. Podre de feliz. Se encher muito, despacho o negro lá pros States, tem uma cidade lindinha, como é mesmo?... O nome, eu sabia o nome, ah! você já ouviu falar, você adora ler essas notícias, não adora? Espere um pouco... pronto, lembrei. Little Rock! Isso daí, Little Rock. A diversão lá é linchar a negrada. A mulher retesou-se inteira, como se fosse saltar. Ficou de repente maior, os olhos mais brilhantes. O tronco se aprumou com arrogância, rejuvenescido. Mas, aos poucos, foi afrouxando os músculos. Voltou a diminuir de tamanho, a cabeça inclinada para o ombro. A voz começou a baixa. – Você não pode mais me ferir, Adriana. Ele também não conseguia. O seu pai. Podia fazer o que quisesse, dizer o que quisesse. Não me atingia mais. Ficava aí na minha frente com essa sua cara, a se retorcer feito um vermezinho viciado e gordo... – Emagreci seis quilos. – E gordo. Nada mais me atinge, Adriana. É como se ele voltasse, nunca vi uma coisa assim, vocês dois são iguais. Ele morreu e encarnou em você, o mesmo jeito mole, balofo. Sujo. Na minha família todas as mulheres são altas e magras. Você puxou a família dele, tudo com cara redonda de anão, cara redonda e pescoço curto, olha aí a sua cara. E a mãozinha de dedinho gordo, tudo anão. Adriana continuava segurando a maçaneta, o corpo vacilante, o risinho frouxo. Apoiara-se numa perna, a outra ligeiramente flexionada. Calçava e descalçava o sapato decotado, com uma 147 fivela de pedrinhas verdes. – Acabou, querida? Quero dormir. A luz da manhã já se insinuava na vidraça. A mulher fez um gesto mortiço na direção da janela. – Fiz o que pude. – Então, ótimo. Tudo bem, agora queria dormir um pouquinho, posso? – Um instante ainda – disse a mulher e a voz subiu fortalecida, veemente. – Ah, me lembrei agora, era Naldo, não era? O nome daquele seu primo, o primeiro da lista. Nem quinze anos você tinha, Adriana, nem quinze anos e já se agarrando com ele na escada, emendada naquele devasso. – Ele não era devasso. – Não? E aquelas doenças todas? Vivia dependurado em negras, viveu anos com aquela empregada peituda, pensa que não sei? – Ele não era um devasso. E ele me amou. – Amou... Fugiu como um rato quando foram pilhados, o safado. Fugiu como fugiram os outros, nenhum quis ficar, Adriana, nenhum. Vi dezenas deles, casados, divorciados, toda uma corja te apertando nas esquinas, detrás das portas, uma corja que nem dinheiro tinha para o hotel. Um por um, fugiram todos. – Ele me amou. Um galo tentou prolongar mais seu canto e o som saiu difícil, rouco. A mulher fez um movimento de ombros e o casaco escorregou para o assento da cadeira. Apontou a cômoda. – Vai, abre aquela caixa ali em cima... Abriu? Tem dentro uma medalha de ouro que foi da minha avó. Depois passou para minha mãe, está me ouvindo, Adriana? Antes de morrer minha mãe me entregou a medalha, nós três nos casamos com ela. Tem também a corrente, procuro depois. Você se casa amanhã, hum? Leva a medalha, é sua. – Bonita, mãe. – Só espero que não enegreça no seu pescoço – disse e fez um vago gesto na direção da porta. – Por favor, agora suma da minha frente. Adriana pegou a medalha que luzia no fundo da caixa de charão. Apertou os olhos turvos para vê-la melhor. Depois, ainda olhando para a medalha, fez com a outra mão um ligeiro aceno e foi saindo a arrastar os pés. Fechou a porta. Quando já estava no corredor penumbroso, o gato veio ao seu encontro e no mesmo ritmo ondulante entraram no quarto. O vestido estava estendido na cama e sobre o vestido, o véu alto e armado, descendo em pregas até o chão. A luz da manhã já era mais clara do que o halo amarelado da lâmpada pendendo do teto. O gato pulou na cama. – Dormir, Romi, dormir – ela sussurrou fechando a janela. – Anoiteceu outra vez, viu? Gato à toa. Sacana. Vai amassar tudo – resmungou, puxando o gato pela orelha. O gato miou, chegou a se levantar. Voltou a se deitar enrodilhado no meio do véu. Adriana apoiou-se na cama enquanto abria a gaveta da mesa de cabeceira. Abriu o tubo de vidro e fez cair duas pílulas na concha da mão. Engoliu as pílulas, fez uma careta. – Não vai me buscar um copo d’água, não vai? Sacana, amassou tudo. Podia me trazer água, tanta sede, porra. – Deitou-se molemente na cama e apanhando uma ponta do véu, tentando achar o gato. Desistiu. Ficou olhando a lâmpada através das lágrimas. Você fugiu. Por que você fugiu de mim na escada? Eu precisava tanto de você, precisava tanto. Está me escutando? Você não devia me largar sozinha naquela escada, foi horrível, amor, eu precisava tanto de você... Arrepanhou furiosamente o véu e sufocou nele os soluços. Atirou longe os sapatos. Ficou rolando docemente a cabeça no travesseiro, se acariciando no tecido da fronha. Agora as lágrimas corriam mais espaçadas, mais limpas. – Eu não podia ficar sozinha naquela escada, não podia – repetiu e abriu a mão para ver de novo a medalha. Ardiam os olhos borrados. Esfregou-os e recomeçou a rir baixinho. Voltou-se para o gato. – Você vai ganhar um presente, seu sacana... Quer um presente, quer? Levantou-se cambaleante. Apertou os olhos contra as palmas das mãos e seguiu estonteada por entre os móveis. Abriu as portas do armário, abriu a gaveta. Atirou as roupas no chão. – Uma fita, aqui uma fita, não tinha? Uma fitinha vermelha – choramingou e ficou de joelhos. – Espera, espera... Ih! achei, a glória, beleza da fita, Romi vai vibrar, espera... deixa enfiar aqui nesta droga de argola, hein? Assim... uma droga de argola apertada, tem que entrar neste buraco, espera aí... Quando ela tombou para o lado, bateu a cabeça na quina da gaveta. Ficou gemendo e esfregando a cabeça. Merda. Ainda de joelhos, foi avançando ao lado da cama, segurando na mão fechada a fita com a medalha, a outra mão tateando aberta por entre o véu até alcançar o travesseiro onde o gato cochilava. Agarrou-o com energia pelo rabo. – Não foge não, seu sacana, 148 você vai ganhar um presente! – anunciou e sacudiu a medalha dependurada na fita. Concentrou-se no esforço para respirar. Abriu a boca. Inclinou-se e repentinamente prendeu o gato entre os cotovelos. Amarrou-lhe no pescoço a fita com a medalha e abraçou-o com alegria. – O sacana me arranhou!... Ganhou um puta presente e me arranhou, me arranhou... – ficou repetindo. Com a ponta do dedo, fez a medalha oscilar, Ih! ficou divino, olha aí, um vira-lata condecorado com ouro!... O corredor estreito continuava escuro. Adriana parou para segurar melhor o gato que começou a se agitar. – Calma, Romi, calminha... – ela sussurrou, palmilhando devagar o assoalho nas solas dos pés. Quando chegou ao quarto no extremo do corredor, apoiou-se na parede e ficou ouvindo. Abriu a porta. Espiou. A mulher conduzira sua cadeira até ficar defronte da janela, exposta ao vento que fazia esvoaçar seus cabelos tão finos como fios despedaçados de uma teia. Adriana ainda quis verificar se a medalha continuava presa ao pescoço do gato. Impeliu-o com força na direção da cadeira. Fechou a porta de mansinho. Lygia Fagundes Telles. A estrutura da bolha de sabão. São Paulo: Companhia da Letras, 2010.p.13-20. Acervo PNBE 2013 Glossário Charão – um tipo de verniz, serve para envernizar móveis. Espavorido – amedrontar (-se), apavorar(-se), assustar(-se). Empapuçados – inchado, cheio de papos ou pregas. Indolente – negligente, desleixado, descuidado. Luzia – luzir - emitir luz, refletir a luz. Penumbroso – vem de penumbra – sombra incompleta, meia- luz; isolamento. Compreensão do conto 1- O conto aborda que assunto? 2- Quem narra à história? O narrador participa ou não? Ele conhece as fraquezas, emoções, dores, traumas das personagens? Demonstre com um excerto do texto. 3- Onde se passa o conto, em que ambiente? Quanto tempo demora a ação? 4- Quando a mãe de Adriana usa a expressão “na vés-pe-ra”, que sentimento a mãe devia estar sentido? Que sentido você pode estabelecer para essa expressão? 5- Que indícios o narrador apresenta para demonstrar que a mãe de Adriana não ama a filha? Como mãe e filha se relacionavam? Retire do texto excertos que comprovem. 6- Apesar de odiar a Adriana, a mãe lhe dá uma medalha de ouro que passou de geração em geração, por quê? O que a medalha representava? O que isso demonstra acerca do caráter da mãe de Adriana? 7- Como a mãe se comporta, quando a Adriana afirma que irá se casar com um negro? 8- Percebemos que, a todo instante, a personagem Adriana se mostra bastante irônica em suas ponderações. Retire um trecho da narrativa que confirme tal evidência. Em seguida, compare com a interpretação televisiva, observando se há diferença/semelhança entre ler o conto e assisti-lo. 149 9- Qual foi a sua sensação ao assistir a interpretação do conto “A medalha”? Observe que a atriz fez umas pequenas adaptações. O que você achou? Ficou muito diferente? Comprometeu a compreensão do conto? Você acredita que continua sendo o mesmo conto de Lygia Fagundes Telles? 10-Observe novamente o conto e diga como podemos descrever a personagem Adriana. Por exemplo: O humor? A personalidade? Aparência física? É triste ou alegre? Demonstre com passagens do conto. 11-Quando a Adriana está sozinha no quarto começa a chorar, porém abafa o choro. Por quê? 12-Tendo em vista o ano de produção do conto e os feitos das personagens, é possível supor a cidade ou região em que ambas viviam? Conversando com a turma, o professor e o autor A foto abaixo revelou a intolerância racial que os Estados Unidos vivenciaram durante décadas. Ela foi tirada por uma estudante chamada Hazel, uma garota branca, numa manhã de 1957, em Litte Rock, quando a então Elizabeth, a moça negra da foto, tentava ir à escola. Professor, “Little Rock” é a capital e maior cidade do estado norteamericano do Arkansas. Para maiores informações visite o site http://revistapiaui.estadao.co m.br/edicao-62/anais-dafotografia/odio-revisitado Há também um filme muito interessante e relevante para a temática em questão: Histórias Cruzadas (The Help). Para mais informações visite o site http://historiascruzadas.com.br/ O flagrante orbitou pelo mundo e o rosto de uma adolescente de 15 anos tornou-se a imagem oficial da intolerância racial na América47. 1- Para refletir: por que a Adriana diz que a mãe adora notícias vindas de Little Rock? 2- Como essa imagem se relaciona ao trecho em que Adriana diz “Se encher muito, despacho o negro lá pros States, tem uma cidade lindinha, como é mesmo?... O nome, eu sabia o nome, ah! você já ouviu falar, você adora ler essas notícias, não adora? Espere um pouco... pronto, lembrei. Little Rock! Isso daí, Little Rock. A diversão lá é linchar a negrada”? 47 Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-62/anais-da-fotografia/odio-revisitado 150 3- O que você conseguiu apreender dessa imagem? Seria possível escrever um conto tendo essa imagem como a ação, isto é, o acontecimento do conto? Se sim, quem seriam as personagens? Onde a trama se passaria? Em qual época? Qual seria o motivo das intrigas? E o assunto? Como seriam as relações entre as pessoas? Como seria o desfecho (o fim)? Anote em seus cadernos os seus apontamentos. 4- Em sua opinião, mãe e filha eram racistas? Faça seus apontamentos, comentários no caderno. Demonstre com passagens do texto. 5- Tendo em vista que o conto “A Medalha”, escrito nos anos 1978, contextualize sócio e historicamente a comunidade brasileira dessa época, principalmente, os jovens. (Para resolver essa atividade converse com o professor de História ou pesquise em sites, revistas, livros na biblioteca). Professor, A autora, Lygia Fagundes Telles, em seu livro A Estrutura da Bolha de Sabão (1991), explica o motivo da mudança de título. Seria interessante compartilhar com os alunos tal informação. Ademais, nesse livro, há um posfácio do Alfredo Bosi bastante relevante para o seu trabalho. 6- Na verdade o livro A Estrutura da Bolha de Sabão (1991), foi publicado pela primeira vez com o nome de Filhos Pródigos, em 1978. Portanto, que relação pode ser feita entre o conto A Medalha e o primeiro nome do livro Filhos Pródigos? Pesquise no dicionário o significado de pródigo. Aproveite para conhecer a história do Filho Pródigo da Bíblia. Depois, faça seus comentários no caderno. Para terminar... 1- Você gostou do desfecho do conto? Por quê? 2- E o vídeo, você gostou? Por quê? 3- Em que as personagens Morella e Adriana se diferem? Em sua opinião, quais das duas personagens poderiam existir na vida real? Por quê? 4- Você indicaria esse conto para alguém ler? Por quê? 5- Ao longo desse projeto de leitura, você leu quatro contos com temáticas, modos de narrar, ambientes e personagens, além, é claro, das histórias bem diferentes. Com qual você mais se identificou? Que sensações despertaram em você? Escreva um pequeno texto, sintetizando a sua opinião. Não se esqueça de escrever o nome do conto e do autor. E lembre-se: autor/escritor não é o mesmo que narrador! Produção Escrita 151 Nessa etapa final, você e mais três colegas irão produzir, conjuntamente, um conto que, depois de pronto, será lido numa Ciranda de Leitura, lembrando que temos lido e estudado os contos ditos como modernos, caso tenha dúvidas volte ao primeiro conto “O leitor” e retome a discussão do que significa um conto moderno. Para a Ciranda de Leitura, é bom que cada conto produzido, após a reescrita, seja digitado para facilitar a leitura e evitar possíveis problemas com a grafia. 1- Planejamento Retomem os apontamentos feitos na atividade 3 da seção “Conversando com a turma, o professor e o autor”, assim como outros apontamentos que exploram as características do conto; Conversem entre si, a fim de chegarem a uma conclusão sobre qual será a temática do conto, as personagens (ou personagem), o lugar, a época, a história que vocês irão narrar, o tipo de narrador, o tipo de interlocutor (inicialmente o interlocutor será os seus outros colegas e o professor), a linguagem que será empregada etc. Lembre-se: o tempo verbal predominante nos contos é o pretérito perfeito e imperfeito. 2- Elaboração Observem as anotações que fizeram no caderno; Comecem a escrever o conto, mas prestem bastante atenção, pois o conto terá que causar expectativa no leitor; Escolha as palavras apropriadas para causar o efeito de sentido que vocês desejarem; Escolham um título para o conto. 3- Avaliação e reescrita Releiam o seu conto. Imaginem que vocês são os leitores do conto. O conto consegue prender a atenção? Causa expectativa no leitor? O conto está claro? Após essa etapa, junte-se com outros colegas e leiam o conto que eles produziram a fim de avaliarem o texto de cada um. Lembrem-se, não é apenas para criticar ou até mesmo rir de seus colegas. A ideia é que avaliem o conto, porém com respeito. Observem se o texto escrito apresenta as características de um conto. Depois, entregue ao professor para ele ler e dar as suas sugestões. Reescrevam o seu conto, observando as sugestões feitas pelos colegas e pelo professor. 152 Agora que seu conto está pronto, podem lê-lo na Ciranda de Leitura. CONSIDERAÇÕES FINAIS Inicialmente, nesta pesquisa, fizemos uma coleta de dados em determinada escola estadual de Cuiabá, Mato Grosso, cujo intuito foi descrever as práticas de leitura e letramento dos alunos entrevistados. Os dados revelaram que uma grande incidência de alunos tinha o costume de ler textos literários, inclusive o conto, como já dito no capítulo 4. Procuramos, portanto, embasados em Vygotsky (1930), partir daquilo que o aluno já apreciava ou tinha contato. De modo que os dados obtidos através dos questionários direcionaram a nossa escolha do gênero discursivo conto como objeto deste trabalho. Quando perguntamos aos alunos que tipo de textos eles costumavam ler na escola, o livro didático foi a resposta da maioria. Em relação às práticas escolares, nossos dados revelaram que as atividades de copiar textos e exercícios do quadro negro ainda são frequentes na sala de aula, revelando, assim, uma prática escolar já consagrada e contrária ao que recomendam os PCNLP (BRASIL, 1998). Por essas razões, passamos, também, a analisar o Livro Didático “Viva Português” (LDVP) utilizado pelos alunos, a fim de observarmos o tratamento dado à leitura de contos nesse material. Além disso, percebemos que não há muitas pesquisas que discutem o ensino do texto literário e do letramento literário no livro didático, como afirma Melo e Magalhães (2009), “muitas reflexões têm surgido sobre 153 o livro didático de língua portuguesa (LDLP), contudo poucos ainda são os estudos sobre o ensino da literatura no livro didático” (MELO&MAGALHÃES, 2009, p. 171). Dessa forma, esta pesquisa teve os seguintes objetivos: 1. Conhecer as práticas de leitura dos discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental de uma escola pública mato-grossense; 2. Conhecer as propostas de didatização de ensino-aprendizagem de leitura do gênero conto da coleção didática de Língua Portuguesa “Viva Português” adotada pela escola; 3. Elaborar uma proposta de didatização do gênero conto para o nono (9º) ano do Ensino Fundamental. A partir desses objetivos, procuramos responder a três questões de pesquisa: 1. Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar? 2. Qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção didática adotada na escola? 3. Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero conto? No que se refere à primeira questão de pesquisa, notamos, por meio dos questionários aplicados aos alunos, que esses estão inseridos em diversas e variadas práticas de leitura e letramento, revelando, assim, uma característica da sociedade atual. Os dados dos questionários revelaram que alguns alunos costumam ler livros de ficção, ainda que de vez em quando. Além disso, mostraram que mais da metade dos alunos participam de eventos culturais e, boa parte, faz algum curso extra. Também observamos que alguns discentes concebem a leitura como uma prática de 154 fruição, de prazer. Contudo, quando questionados sobre “Quais textos são lidos na escola?”, grande parte dos alunos respondeu ser o livro didático. Esse achado, em boa medida, revela que as principais atividades de leitura, em âmbito escolar, parece está envolto do livro didático. E que, portanto, esse é o principal material didático que medeia o processo de ensino-aprendizado de leitura do aluno. Além disso, podemos inferir que, talvez, isso se justifique pelo fato de que nem todos os professores da rede pública básica têm acesso: a uma formação inicial adequada para atender essa nova geração que está imersa no universo tecnológico e uma formação continuada que vise à discussão das novas pesquisas. Entendemos, assim, que para a formação de leitor literário se tornar uma realidade em nossa sociedade, é importante que o professor seja, primeiramente, um leitor e apreciador de textos literários. Além disso, é imprescindível que o Estado, juntamente com a comunidade, invista em campanhas de incentivo a prática da leitura literária, assim como em boas bibliotecas nas escolas e nas comunidades. Em relação a nossa segunda questão - qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção didática adotada na escola? -, constatamos que a coleção não tem contribuído para o desenvolvimento da proficiência da leitura reflexiva dos alunos, tampouco, desperta o gosto pelo ato de ler, uma vez que as atividades de leitura de conto estão apenas no nível básico de extração informativa e de compreensão. Os dados ainda mostram que poucas vezes a coleção desenvolve atividades em que os aspectos discursivos sejam contemplados, por exemplo. Averiguamos, ainda, que questões relacionadas à apreciação estética são irrisórias, o que parece indicar um trabalho que pouco contribui para a formação do leitor literário. A leitura literária, portanto, não é tomada como um ato de desvelamento, de descobertas, de encontros entre leitor e autor ou ainda leitor e personagens. Nesse sentido, concordamos com Kraemer (2013) que, fundamentada em Fiorin (2000), assevera que, [...] na busca do conhecimento linguístico, os alunos de ensino fundamental e médio devem ser expostos a todos os gêneros discursivos, em que se destaca o literário, por mobilizar diferentes funções e dimensões da linguagem. Há, nesse movimento, a transição de uma realidade cotidiana à outra, na qual se criam novas percepções e experiências diversas, provocando a interação verbal, marcada pela natureza sensível do processo. Se este possuir um 155 caráter emocional favorável, facilitará a aprendizagem (KRAEMER, 2013, p.20). Entendemos, portanto, que o ato de ler um texto literário é uma atividade em que o sujeito leitor reage, replica e responde ativamente de modo constante, tendo em vista que, por várias razões, aprecia ou não determinada obra; sente prazer, de modo que se envolve, ou acha feio o resultado da construção autoral; aprecia o belo que se configura por meio da linguagem, levando-o a interromper a leitura ou direcionando-o a outros textos. Concordamos, pois, com o que afirma Bakhtin (2010 [1952-1953]), o sujeito é um ser ativo e respondente que age e reage na vida. Por várias vezes, o livro aponta que irá trabalhar com os gêneros textuais, porém não avança para além do texto, portanto, a coleção, em todos os volumes observados, trabalha com uma concepção de leitura como atividade de decodificação. Associado a isso, pudemos observar, também, que a coleção propõe muitas atividades de gramática nos capítulos, nos quais deveria ser trabalhada a compreensão leitora. Há muitas atividades de identificação e/ou cópia de informações, mobilizando, dessa forma, capacidades mínimas de leitura – em especial às capacidades de decodificação. Assim, percebemos que as atividades de leitura quase nunca permitem ao aluno um posicionamento crítico sobre o texto lido, ou seja, o aluno não é direcionado a dialogar, a refletir, a reagir, de maneira que o gosto pela leitura literária venha a ser desenvolvido, o que poderia colaborar para torná-lo um apreciador de textos literários. Além disso, sabemos que é na escola e, quase sempre, por meio do livro didático que o aluno tem a oportunidade de fazer leituras literárias. Partindo dessas reflexões, delineou-se a nossa terceira pergunta de pesquisa, que diz respeito à elaboração de uma proposta de leitura do gênero conto: Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero conto? O objetivo da proposta de leitura de didatização do conto foi contemplar as capacidades discursivas e apreciativas de leitura. Tal proposta foi elaborada na forma de projeto de leitura, alicerçada na visão enunciativo-discursiva, buscando a participação reflexiva e crítica dos alunos. Assim, a leitura foi concebida como um processo de compreensão/réplica ativa em que o leitor sempre é um sujeito que age e reage ao objeto contemplado. E, por conseguinte, reelabora e reacentua o “já dito”, 156 de forma que acrescenta outros ou mais elementos, transformando a palavra alheia em palavra-alheia-minha. Apresentamos, além dos textos verbais, textos não verbais, preocupamo-nos em elaborar uma proposta em que todos os contos fossem de fácil acesso para os alunos e professores, por isso, todos compõem o acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola. Esperamos que este trabalho venha contribuir para a reflexão sobre a questão da leitura no Brasil, em especial, da leitura literária, assim como para a discussão sobre o ensino do letramento literário através do livro didático nas escolas públicas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, V.T. Literatura e educação: diálogos. In: PAIVA, A.; MARTINS, A.; PAULINO, G. (Orgs). Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: CEALE; Autêntica, 2007. __________. Leitura literária e escola. In: EVANGELISTA; A.A.M.; BRANDÃO, H.M.B. (Orgs.). Escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: CEALE, Autêntica, 2001. AMORIM, A. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin outros conceitoschave. São Paulo: Contexto, 2006. __________. O pesquisador e seu outro; Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2003. AZEVEDO, R. A didatização e a precária divisão de pessoas em faixas etárias: dois fatores no processo de (não) formação de leitores. 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