Roberta Pellizzoli e Gabriella Rossetti com Angela Calvo, Egidio Dansero, Cristiano Lanzano, Agnese Migliardi, Cecilia Navarra, Monica Petri Projeto IAO/Gender: uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural Projeto IAO/Gender: uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural Roberta Pellizzoli, Gabriella Rossetti a partir do livro "Donne, terre, mercati" (Cleup, 2013) com as contribuições de Angela Calvo, Egidio Dansero, Cristiano Lanzano, Agnese Migliardi, Cecilia Navarra, Monica Petri Ministero degli Affari Esteri Istituto Agronomico per l’Oltremare Via Antonio Cocchi, 4 - 50131 Firenze Tel: ++39 055 5061.1 Fax: ++39 055 5061333 www.iao.florence.it iao@iao.florence.it © Copyright Istituto Agronomico per l’Oltremare (IAO) 2013 As opiniões contidas nesta publicação não refletem necessariamente as do Istituto Agronomico per l’Oltremare (IAO). Todos os direitos reservados. O Istituto Agronomico per l’Oltremare (IAO) apoia a disseminação do material para divulgação e treinamento. Nenhuma parte da publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer meio ou por fins comerciais sem a autorização do Istituto Agronomico per l’Oltremare (IAO). Projecto gráfico-editorial Laura Bonaiuti, IAO Impresso na Itália NOVA ARTI Grafiche, Florence Julho 2013 O programa de investigação IAO/Gender foi financiado pela Direzione Generale alla Cooperazione allo Sviluppo (DGCS) do Ministério dos Negócios Estrangeiros italiano e gerido pelo Istituto Agronomico d’Oltremare (IAO) de Florença. Os membros do grupo de investigação agradecem a Bianca Pomeranzi, Giovanni Totino, Vito Grammatico, Maria Cristina Mazzei e a todo o pessoal da DGCS e do IAO pelo apoio prestado. Agradecem também à Unidade Técnica Local de Maputo (Moçambique) e de Dacar (Senegal), bem como aos respetivos diretores e a toda a equipa pela sua cooperação. Um obrigado especial a todas as pessoas, no Burquina Faso, no Senegal, em Moçambique e em Itália, que concederam um pouco do seu tempo para debater e dialogar com os investigadores do projeto IAO/Gender e que dessa forma viabilizaram este trabalho de investigação. Foto da capa – Mulheres criadoras de frangos, associação Asas, Beira, Moçambique (foto de Roberta Pellizzoli) Foto na página anterior: Fundo Itália-CILSS. Luta contra desertificação para a redução da pobreza no Sahel (foto de Laura Bonaiuti). Projeto IAO/Gender 1 Introdução: o projeto IAO/Gender e o debate internacional sobre as mulheres e a terra No debate e na prática do desenvolvimento e da cooperação internacional assiste-se, de há alguns anos a esta parte, a um boom de interesse pela terra, acompanhado de uma não menos extraordinária nova (ou renovada) atenção pelas mulheres que trabalham a terra. O slogan “No women, no growth” tem sido repetido por organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, o Programa Alimentar Mundial e a Organização Internacional do Trabalho. Este tema é também abordado no último relatório do Banco Mundial sobre o desenvolvimento mundial. São apresentados dados que demonstram o excedente de milho, arroz e tomates que se poderia produzir caso as mulheres tivessem um maior acesso à terra, ao crédito, às tecnologias, ao conhecimento, às sementes e aos fertilizantes e, sobretudo, aos mercados – segundo uma estratégia discursiva que evoca os direitos das mulheres com o argumento do crescimento económico e da segurança alimentar apresentando um círculo, teoricamente positivo, dos efeitos que um aumento na produtividade possam ter sobre o crescimento e, por conseguinte, sobre o bem-estar de todos aqueles que participaram. É neste cenário que, entre 2010 e 2012, foi implementado o projeto IAO/Gender, o qual surgiu com o objetivo de criar as condições necessárias para aumentar e requalificar a participação das mulheres e a valorização do seu papel nos programas de segurança 35 O State of Food and Agriculture 2010-11 da FAO, Women in Agriculture. Closing the Gender Gap for Development, rege-se pela ideia de que a crise de produtividade no setor agrícola se deve à discrepância de género no acesso aos recursos e às oportunidades por partes das camponesas. Colmatar este fosso – mediante o apoio à implementação de políticas e de programas de desenvolvimento sensíveis ao género – produziria resultados significativos, acelerando a produção agrícola, a redução da pobreza e o crescimento económico. O World Development Report 2012 do Banco Mundial, Gender Equality and Development, defende que a igualdade de género, mais do que smart economics, seja um objetivo primordial do desenvolvimento: a igualdade de género aumentaria a produtividade, melhoraria o impacto do processo de desenvolvimento nas gerações futuras e faria com que as instituições se tornassem mais representativas. Para tal, é necessário promover políticas que tenham como objetivo a eliminação das diferenças no acesso às oportunidades económicas e de produtividade de homens e mulheres, além de reduzir as discrepâncias de género no seio familiar e na sociedade. Não obstante a relevância destes documentos no debate sobre o desenvolvimento, è preciso identificar uma forma de produzir voz e saber que tenha outros fundamentos e, sobretudo, permitir interações e incluir os indivíduos a que se destina, evitando um uso instrumental dos interessados para fazer valer soluções que, embora "justas", muitas vezes não têm qualquer ligação com a realidade, ou não são adequadamente consideradas pelos policy-makers. Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural Box 1 - "No women, no growth" Projeto IAO/Gender alimentar, de sustentabilidade ambiental e de desenvolvimento rural da Cooperação Italiana para o desenvolvimento. Tratava-se portanto de elaborar uma estratégia de intervenção destinada a favorecer o protagonismo feminino com o objetivo último de contribuir para a luta contra a pobreza. Para tal, o grupo de trabalho do IAO/Gender estabeleceu uma metodologia de investigação inter e multidisciplinar que abrange mais níveis de análise e de trabalho: - a análise da literatura científica e técnica e dos debates em curso sobre os temas identificados como prioritários: a questão da terra, a defesa dos recursos naturais, a relação entre a produção agrícola e o mercado, as associações, a territorialidade, o desenvolvimento rural e agrícola, a segurança alimentar segundo uma prospetiva de género; - a análise a nível intermédio da lógica e dos resultados de projetos de desenvolvimento da Cooperação Italiana, considerados relevantes para as finalidades do IAO/Gender – inclusive através de inquéritos a testemunhas privilegiadas; Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 64 - a análise a nível do terreno, desenvolvida através de períodos de investigação nos países considerados prioritários para a ação da Cooperação Italiana, como Burquina Faso, Moçambique e Senegal – com a realização de entrevistas, focus-group, investigação visual, mapeamento e a restituição dos resultados obtidos áos atores envolvidos. Os resultados do projeto de investigação IAO/Gender foram apresentados – além das iniciativas de restituição realizadas nos países objeto da investigação – num seminário internacional realizado nos dias 23 e 24 de outubro de 2012, no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Roma e num volume intitulado Mulheres, terras e mercados. Repensar o desenvolvimento rural na África subsaariana (CLEUP 2013). O presente relatório sintetiza os resultados da investigação e as principais questões emergentes do IAO/Gender, do debate com os atores envolvidos e pretende-se que este seja um instrumento útil para os policy-makers e os atores da cooperação. Reunião dos membros da associação Nhamanembe, Distrito de Vanduzi, Moçambique (foto de Alessandro Coppola). Projeto IAO/Gender Em função do debate explicitado em traços gerais que condições se pode transformar tal relação, na introdução, o projeto IAO/Gender procurou indagar em que contextos, globais e locais, se colocam as questões prementes de "colmatar o fosso" entre homens e mulheres, na agricultura e nas políticas de desenvolvimento rural. Tendo como pano de fundo as grandes transformações dos sistemas agrícolas em curso e a atenção dada à necessidade de fazer crescer a produção através da inclusão das mulheres nos sistemas de produção agrícola, partimos da constatação que tal inclusão já existe, como demonstram os dados continuamente confirmados que apontam para a quota de produção agrícola já "feminizada". Se a questão é proceder de forma diferente no que se refere a colmatar o "fosso de género", é urgente esclarecer por que elementos é composto este "fosso" (que não é mais do que uma relação desequilibrada entre mulheres e homens), em com que resultados por os objetivos e as práticas do desenvolvimento rural. É necessário averiguar o que deve ser produzido, de que forma, em que condições e para que mercados, tendo em conta o quotidiano das mulheres (e dos homens), das condições ambientais, da disponibilidade e dos modelos de utilização dos recursos naturais e dos custos sociais da contração ou da expansão do trabalho de cuidado das mulheres. Tentamos assim analisar a forma como determinadas palavras-chave, nomeadamente "terra", "alimento", "recursos", "mercados", "cadeias de valores", "trabalho", "associacionismo" têm vindo a mudar de significado e peso nos debates internacionais, o que permitiu-nos colocar questões parcialmente novas, nomeadamente: Box 2 - Comparação de duas políticas: o CAADP e a RAP O Comprehensive African Agricultural Development Programme (CAADP) da New Partnership for Africa’s Development (NEPAD) da União Africana visa fomentar a produtividade da agricultura africana e a segurança alimentar através de uma série de estratégias que possam aumentar os investimentos no setor agrícola. Contudo, o documento carece de uma análise de género adequada do contexto e das possíveis consequências das estratégias propostas – ausência esta referida na própria apresentação do documento, que se limita a destacar o papel fundamental das mulheres como produtoras alimentares e empreendedoras nas comunidades rurais e urbanas de África. Na Regional Agricultural Policy (RAP) da Southern African Development Community (SADC), é destacada por sua vez a forma como a desigualdade de género permanece um desafio crucial para o desenvolvimento no setor agrícola regional e que esta deve ter um "destaque central" através da análise das implicações para os homens e as mulheres de todas as iniciativas previstas e a elaboração de linhas orientadores específicas de género. Na RAP é abordada a forma como as questões de género nas áreas rurais influenciam o papel crucial que as mulheres detêm quer no impacto da segurança alimentar como sobre o impacto dos modelos de desenvolvimento agrícola para as relações de género, afirmando que uma política agrícola sólida deve deter um papel mais significativo na promoção da igualdade de género do que outras políticas setoriais. 5 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 2 A investigação: o contexto, as questões e as reflexões Projeto IAO/Gender 1. De que forma as transformações dos mercados, locais e globais, agem sobre a possibilidade de acesso á terra para as mulheres em diversos contextos e condições socioeconómicas? 2. De que forma incidem as alterações demográficas, nomeadamente a diminuição do número de filhos e a escolarização sobre a divisão do trabalho nos negócios agrícolas familiares? O que significa para as camponesas de muitas áreas rurais o crescimento dos fluxos migratórios em direção à cidade ou a outras regiões? 3. Quais os problemas decorrentes da introdução de novas tecnologias de comunicação que permitem exercer novas formas de controlo sobre a terra, sobre os processos de cadastramento e sobre os mercados alimentares? 4. Em que medida difere a reação das mulheres e dos homens face ao fenómeno dos grandes investimentos e à introdução de novas formas de ofertas de trabalho agrícola dependente ou semiautónomo (contract farming, trabalho assalariado)? 5. Se todos estes aspetos produzem alterações nas relações de género, quais as respostas já elaboradas por grupos, associações e redes de camponesas ativas a todos os níveis da sua (e da nossa) sociedade? Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 6 Esta mudança de perspetiva permitiu compreender melhor os conceitos de "vulnerabilidade" e "exclusão" atribuídos às condições das mulheres, que muitas vezes mal conseguem conciliar os papeis que, mesmo na ausência de direitos jurídicos e políticos, conseguem desempenhar para sustentar famílias e comunidades inteiras. Em primeiro lugar, fizemos uma análise crítica, visto a persistência da pobreza extrema na África rural, da hipótese implícita na análise e nas propostas de melhoria das políticas de desenvolvimento rural atualmente promovidas: que a inclusão dos indivíduos ainda excluídos, marginais e, por isso, vulneráveis (as mulheres, in primis, mas não só) seja o caminho a seguir. A inclusão e o acesso continuam a ser as palavras-chave, os critérios de eficácia, depois de mais de trinta anos de políticas de gender mainstreaming e empowerment das mulheres. Contudo, só apurando os motivos pelos quais estas estratégias foram ineficazes se pode repensar o desenvolvimento rural. Trata-se de incluir no que já existe e de garantir o acesso ao disponibilizado, ou de descobrir que a exclusão e as barreiras de acesso aos recursos e aos direitos são parte integrante e necessária da forma como é proposto o desenvolvimento? Por outro lado, como pôr em prática a promessa "transformadora" das políticas de género proposta nas décadas de conferências da ONU sobre mulheres: transformar as relações entre as mulheres e as realidades sociais, económicas, culturais e políticas em que estas operam e modificar as relações "de género" num sentido de as tornar mais justas permitirá alterar as relações desiguais e de poder da sociedade onde a produção agrícola detém ainda um papel central? Até aos dias de hoje, esta perspetiva é expressa principalmente na linguagem dos direitos que, porém, apresenta uma série de limitações: - a exigência meramente redistributiva da igualdade e da paridade (por ex., na aquisição de terras ou na utilização de recursos) que não não põe em dúvida questões de acesso e inclusão não analisadas criticamente; - a falta de clareza sobre formas de sustentar as capacidades de reivindicação individuais e/ou coletivas; - a necessidade de adaptar os direitos aos contextos (por ex., os riscos do sazonalidade dos cultivos não irrigados não se superam simplesmente reivindicando direitos de acesso e de inclusão, mas também o direito a formas de proteção sociais, seguros, etc.). À luz das reflexões que emergem da investigação IAO/Gender, é necessário por em dúvida a confiança tranquila na "inclusão" e no "acesso" e identificar novas formas de pensar a segurança alimentar (local e global), a Projeto IAO/Gender organização dos mercados, bem como as reformas dos sistemas fundiários. Ao mesmo tempo, deve-se procurar os espaços e as condições para que se possa negociar com os governos e com os atores económicos uma forma de apoio válida para as mulheres que cultivam a terra em diferentes colocações e contextos. Desta forma, é possível investigar novos critérios de eficácia (discutidos em maior detalhe mais à frente) e de uma inversão nos métodos de pesquisa que implica deixar de observar apenas o impacto (diferente para mulheres e homens, sendo pior para as mulheres) dos novos sistemas fundiários, novos mercados, novas formas de governance (do território ao mundo global), mas também as reações (resistência, resiliência) que podem ser adaptativas, críticas ou proposicionais. Neste sentido, torna-se crucial o papel dos novos sujeitos coletivos que operam nos países e nas redes transnacionais: associações de pequenos produtores, redes para os bens comuns e a sustentabilidade ambiental, para a conservação da biodiversidade e os sujeitos da cooperação descentrada. Contudo, é necessário determinar a forma como estes sujeitos entendem as assimetrias entre os géneros e o protagonismo feminino e de que forma conseguem evitar o risco de considerar as camponesas e o seu trabalho uma espécie de "amortizadores sociais" capazes de absorver a pressão dos mercados sem contudo dar origem a qualquer transformação positiva. As mulheres rurais que protagonizaram a investigação IAO/Gender transformam-se, de sujeitos pobres e desfavorecidos geralmente representados numa espécie de estaticidade atemporal, em subjetividades múltiplas inseridas numa rede de relações públicas e privadas que estruturam as suas ações mas que, ao mesmo tempo, as modificam. Parcela de terra do GPF de Ngoundioura Diop, Departamento de Louga, Senegal (foto de Agnese Migliardi) Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 7 Projeto IAO/Gender Fundo Itália-CILSS: poço de água na ZARESE de Oubrintenga, Burquina Faso (foto de Laura Bonaiuti). Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 8 Fundo Itália-CILSS, associação de artesanato, ZARESE de Oubrintenga, Burquina Faso (foto de Laura Bonaiuti). 3 Nesta Projeto IAO/Gender Resultados do projeto IAO/Gender: uma abordagem crítica dos aumenta a possibilidade de expropriação. principais resultados e dos temas relevantes que surgiram nas investigações realizadas no âmbito do projeto IAO/Gender no Burquina Faso, no Senegal e em Moçambique. Assim, é necessário que as comunidades detenham direitos sobre os recursos, a organização e a capacidade de negociação que lhes permita celebrar acordos contratuais com os investidores privados e que, num sentido global, o processo decisório sobre a terra se torne mais inclusivo e transparente. 3.1 secção apresentamos alguns A terra e o trabalho 3.1.1 O caso das parcerias estratégicas em Com base no Relatório de agricultura do Banco Mundial de 2007, no debate internacional sobre o desenvolvimento foi destacada a importância dos modelos de desenvolvimento rural que se baseiam em acordos (geralmente em forma de joint-venture ou contract farming) entre os investidores privados e os pequenos produtores (muitas vezes organizados em associações) ou comunidades. Defende-se que estes acordos, regulamentados pelas instituições de governação local, podem deter um papel crucial na integração dos pequenos produtores rurais nas cadeias de valores do agrobusiness e nos mercados rurais, contribuindo desta forma para o desenvolvimento económico rural, a redução da pobreza e a segurança alimentar dos pobres que vivem nas areas rurais. Contudo, muitos chamam a atenção para o facto de que o modelo prevalecente de aquisição de terras em grande e média escala esteja a comprometer os direitos sobre a terra e os recursos, as estratégias de livelihood e a segurança alimentar das comunidades e dos pobres que vivem nos meios rurais: a entrada de novos atores, portadores de interesses económicos e apoiados por políticas e práticas que agilizam a aquisição de terras, põe em risco o controlo que os camponeses exercem sobre as mesmas e A investigação levada a cabo em Moçambique mostra que, embora as iniciativas formalizadas de parcerias entre o setor privado e os grupos de produtores e camponeses sejam ainda limitadas, o debate que se tem gerado a nível local e nacional é muito aceso e os diversos atores envolvidos dividem-se entre o interesse concreto pelas possibilidades oferecidas por estas iniciativas e um ceticismo total. Nesta multiplicidade de opiniões, a mais generalizada é a de que, num contexto caracterizado por uma pressão crescente e contínua sobre a terra, as parcerias deveriam ser adequadamente definidas e implementadas de forma a garantir um certo nível de benefícios e a minimizar os riscos para todos os envolvidos: - É necessário um contrato formal entre o investidor privado e os produtores locais, quer estes estejam organizados em associações ou a nível comunitário, que inclua acordos pré-fixados sobre os padrões de qualidade e o preço final. - As associações de camponeses e produtores locais devem contar com o apoio de um advogado ou especialista em direito durante todas as fases das negociações até à celebração do contrato. - As associações de camponeses e produtores devem ser fortalecidas, conferindo-lhes o 9 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural Moçambique Projeto IAO/Gender estatuto jurídico e o título sobre a terra através de mecanismos de inclusão transparentes e orientados para a promoção do empowerment das mulheres: tal permite limitar a vulnerabilidade dos pequenos produtos relativamente ao setor privado. - Uma vez que as parcerias são limitadas no tempo e se encontram sujeitas às flutuações dos mercados, é necessário continuar a reforçar a pequena agricultura familiar também para efeitos da segurança alimentar. 3.1.2 Os paradoxos da abordagem da "implementação da segurança fundiária" no Burquina Faso No Burquina Faso, a crescente institucionalização da abordagem de género e a procura da paridade no acesso à terra cruzam à questão fundiária entendida num sentido mais amplo e as suas dinâmicas evolutivas de longo prazo. Após a conclusão da experiência revolucionária sankarista, dos anos noventa no século XX a abordagem de referência é a de uma "implementação de segurança fundiária". Inicialmente posta à prova em localidades específicas sob a forma de projetos, esta tornou- Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 10 se mais tarde a base dos documentos políticos de âmbito nacional e de uma lei (a lei 034 de 2009) que pretende aplicar a implementação da segurança fundiária às povoações rurais, negligenciadas pelas reformas anteriores. Tal abordagem, e a lei que desencadeou, pretendem centrar-se mais na especificidade dos contextos locais e procuram "fazer emergir" os direitos sobre a terra existentes e reconhecidos a nível consuetudinário. A abordagem de "implementação de segurança fundiária" promove uma formalização do direito tradicional. Além disso, e não obstante a nova lei que prevê o reconhecimento de direitos coletivos ou de outros regimes de acesso para além do de "propriedade fundiária" individual, nomeadamente o arrendamento de terras, alguns críticos sublinham a escassa compatibilidade da abordagem de "implementação de segurança fundiária" com o pluralismo jurídico e uma sobreposição de diversas ordens de direitos que dão origem a situações extremamente complexas – situações relativamente às quais esta abordagem propõe soluções excessivamente simplistas. Produção de piri-piri com contrato de outgrowing, Belas, Província de Manica, Moçambique (foto de Roberta Pellizzoli). Projeto IAO/Gender um debate de concertação com a sociedade civil e, em particular, com as associações de mulheres, a abordagem em que se inspira dá origem a um paradoxo duplo: em primeiro lugar, as tentativas de formalização dos direitos nem sempre são vantajosos para as mulheres no acesso à terra, que muitas vezes é o resultado de uma negociação informal e, em alguns casos, consolidam a posição dos atores mais fortes; em segundo lugar, a reconciliação proclamada com a "legitimidade" e o direito tradicional pode arriscar uma acentuação do carácter patriarcal. A fase atual de implementação da lei tem contado com a presença de muitos peritos de género e com uma participação ativa de associações de mulheres. Estes grupos exigem, por um lado, políticas de discriminação positiva que favoreçam o acesso das mulheres à terra ou dos grupos de mulheres que pretendem cultivar a nível coletivo. Por outro lado, a lei prevê a criação de novos órgãos consultivos a nível comunal e das aldeias onde é reivindicada a participação feminina. Por fim, as sessões de divulgação do conteúdo da lei são vistas como uma oportunidade para introduzir também formações sobre a igualdade de género e sensibilizar as autoridades das aldeias neste sentido. Até ao momento, a formulação bastante genérica e inclusiva da nova lei não permite prever se as desigualdades no acesso poderão ser reduzidas, ou se pelo contrário a entrada dos privados e as operações de formalização arriscam a agravá-las: muito dependerá da forma como for efetivamente aplicada e operacionalizada no terreno. 3.2 Os mercados 3.2.1 Os vínculos para o desenvolvimento dos mercados agrícolas em Moçambique e os benefícios desiguais que os mesmos produzem A análise levada a cabo em Moçambique destacou a importância da necessidade de afastamento da imagem estereotipada das mulheres como sujeitos desconexos dos mercados: o fato destas serem responsáveis pela subsistência e pela produção no campo familiar não significa que não participem sistematicamente no que diz respeito ao mercado dos bens alimentares, dos bens de consumo e dos input agrícolas. Olhar para os mercados rurais através da perspetiva das mulheres faz com seja mais fácil identificar os desequilíbrios. Antes de mais, é necessário focar a atenção sobre a questão: produz-se para quem? Com base em numerosas entrevistas, constatou-se que o limite no aumento da produção se deva principalmente à ausência de pontos de venda. Trata-se de um problema com vários componentes: a debilidade das cadeias de produção e da transformação agroalimentar, o escasso poder de negociação dos camponeses e os elevados custos da comercialização. Contudo, surge em força a persistência da produção para consumo familiar devido à vulnerabilidade face à variabilidade dos preços dos bens alimentares no mercado: trata-se de um dos fatores que subjaz à reduzida especialização produtiva, responsável pela dificuldade de obtenção de economias em escala e, por conseguinte, de reduzir os custos de produção. A análise das estratégias que poderão dar resposta às exigências de garantir ao mesmo tempo a acumulação e a segurança dos 11 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural Com a adoção da lei 034, reacendeu-se o debate sobre o acesso das mulheres à terra. No Burquina Faso, embora com importantes diferenças entre os diversos contextos sociais, sempre que o direito consuetudinário regula as relações fundiárias, as mulheres são geralmente despojadas de direitos de administração da terra, mas é-lhes garantido o acesso e o controlo da produção sobre pelo menos uma parte minoritária dos campos familiares ou pertencentes ao marido. A discriminação subsiste – e é por vezes agravada pela falta de acordos informais no seio familiar – mesmo em situações "modernizadas" em que a terra é alocada individualmente por uma instituição formal, como no caso de intervenções de desenvolvimento ou projetos estatais de infraestruturas agrícolas. Não obstante a nova lei ter sido precedida por Projeto IAO/Gender rendimentos apresenta alguns pontos fracos: por um lado, os contratos com os investidores privados na agricultura não conseguem salvaguardar sistematicamente os pequenos produtores do risco relacionado com a produção e a transferir este risco para a empresa adquirente. Por outro lado, o mercado do trabalho assalariado não proporciona salários que permitam o abandono da produção agrícola para consumo familiar, nem um maior investimento na mesma. Por fim: quem "pode prosperar" no mercado? Nem toda a gente beneficia da venda de produtos agrícolas: os que podem tirar partido desta venda são geralmente aqueles que já dispõem de meios, ou aqueles que possuem um acesso ao mercado das input e possuem estruturas de armazenagem em número suficiente. A participação no mercado para a venda de produtos próprios tem, muitas vezes, o efeito de ampliar as desigualdades existentes. Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 12 O mercado dos produtos agrícolas, mesmo quando se tem acesso ao mesmo, nem sempre é fonte de empowerment. Para a faixa mais pobre dos produtores agrícolas, a comercialização representa muitas vezes uma estratégia obrigatória, devido à ausência de meios para manter ou transformar a produção. Por um lado, existem os mais ricos, que podem "permitir-se o mercado", graças ao facto de terem uma subsistência assegurada e, por outro, no fundo da distribuição de rendimentos, os mais pobres que "são obrigados ao mercado", pois não conseguem subsistir do autoconsumo. O quadro resultante é complexo e evidencia a exigência de uma maior solidez dos rendimentos “off farm”, a necessidade de mais instrumentos de assistência à produção familiar e políticas que garantam a segurança dos rendimentos, a fim de não restringir as mulheres ao papel de "amortizadoras sociais". Só uma abordagem articulada sob a forma de uma política económica e social podem dar resposta a exigências de tal forma intrincadas. 3.2.2 Mulheres e mercados no Senegal: as limitações da estandardização das intervenções A análise de alguns microprojetos promovidos pelo Fundo Itália-CILSS na região de Louga (Senegal), chama a atenção para uma abordagem de cooperação pouco voltada para a dimensão relacional do género e, pelo contrário, muito centrada na promoção das atividades tipicamente femininas. Em particular, surpreende a estandardização destas intervenções, que foram definidas como métodos "bottom-up": a estandardização das práticas de ajuda ao desenvolvimento parece moldar também às propostas e às espectativas dos beneficiários e das beneficiárias. Neste caso especificamente, a grande maioria das iniciativas levadas a cabo consiste em projetos de transformação de pequena escala de produtos agrícolas ou piscícolas, que se centram na organização de treinamentos e na disponibilização de novas infraestruturas comuns para grupos de mulheres. Estas práticas foram aparentemente implementadas de forma independente da análise dos mercados específicos em que as atividades deveriam ter sido inseridas (produtos hortícolas, peixe seco, cereais, produtos lácteos). Procurou-se lançar um olhar crítico sobre este tipo de intervenções, destacando os potenciais riscos do confinamento das mulheres em papeis predefinidos nas cadeias de valor agrícolas e em mercados que proporcionam benefícios monetários limitados. Mesmo sendo verdade que se tratam de atividades transferidas da esfera doméstica para um contexto externo, ao mesmo tempo, não parecem produzir rendimentos estáveis. Contudo, é dada uma grande ênfase à formalização das atividades como instrumento de empowerment, mesmo não sendo clara a relação entre a informalidade e a exploração: se, por um lado, existe o risco de existirem cadeias de valor ligadas à exportação que beneficiam da posição informal das mulheres Projeto IAO/Gender Box 3 - O Fundo Itália-CILSS O "Fundo Itália-CILSS de luta contra a desertificação para a redução da pobreza no Sahel" (FIC) foi aprovado pela Direção-Geral para a Cooperação e o Desenvolvimento (DGCS) no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em outubro de 2002, e foi implementado formalmente em 2004, com uma duração prevista de três anos, mas que na prática se estendeu até 2011. O elemento chave do programa foi a escolha das áreas de intervenção para concentrar a nível geográfico as iniciativas em populações e áreas vulneráveis, áridas e semiáridas do Sahel. Estas zonas foram intituladas ZARESE, acrónimo para "zones à risque élevé social et environnemental" (Zonas de Elevado Risco Social e Ambiental). Os beneficiários do Fundo eram populações rurais, indivíduos e pequenos empreendedores, famílias de camponeses, associações rurais jurídica ou tradicionalmente reconhecidas e Administrações locais. 3.3 A voz e a agency 3.3.1 O associacionismo dos camponeses na relação entre os produtores e os mercados como instrumento de empowerment em Moçambique Uma possível resposta a alguns dos problemas levantados ao analisar a relação entre os pequenos produtores e o mercado vem do associacionismo como forma de ação coletiva com o objetivo de fornecer benefícios aos membros, em particular para a comercialização dos produtos, a partilha de infraestruturas, a aquisição das input e a gestão de algumas etapas da cadeia de produção. As vantagens que o associacionismo dos camponeses pode produzir são sobretudo em termos de economias de escala e de poder de negociação face aos comerciantes. As infraestruturas que poderiam permitir a estabilização das entradas do setor agrícola familiar e que para os produtores a nível individual seriam demasiado custosas, podem ser acessíveis para as associações. Uma associação pode ainda assumir o risco da produção dos membros e adotar mecanismos de socialização das perdas: trata-se de um elemento que joga a favor da organização cooperativa de empresas que aplicam esquemas de outgrowing. Os casos de outgrowing encontrados, contudo, de facto preveem a existência de associações, mas não em posição de adquirente: na relação com a empresa, a associação desempenha apenas um papel de enquadramento e organização dos camponeses. A promoção do associacionismo como forma de empowerment não pode prescindir da análise das formas de interação das associações com as desigualdades de poder e de género existentes nas comunidades locais. Um debate em aberto é o da oportunidade de associações mistas ou exclusivamente femininas na promoção do empowerment das mulheres. O modelo associativo proposto pela União Nacional dos Camponeses (UNAC) em Moçambique é misto, uma vez que o associacionismo exclusivamente feminino é visto como pouco incisivo sobre as relações no interior da família, pois arrisca delegar às mulheres as atividades geradoras de pequenos rendimentos e de aumentar a sua carga de trabalho, que já recai fortemente sobre as mesmas, no que diz respeito à produção agrícola familiar. Embora a UNAC vise integrar as mulheres nas organizações de camponeses enquanto produtoras, este modelo é limitado pois não aborda as desigualdades no interior das associações e não altera o controlo dos recursos para o benefício das mulheres. Na maior parte dos casos de associações de mulheres estudadas, os rendimentos obtidos com as atividades associativas são efetivamente geridos 13 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural para mão-de-obra barata, por outro, a excessiva ênfase dada nestes casos à formalização corre o risco de resultar na cristalização da posição das mulheres nas cadeias de produção agroalimentares que não permite ultrapassar as “petits revenus”. Projeto IAO/Gender por mulheres, embora estes sejam limitados e insuficientes para desencadearem processos de acumulação significativos. 3.3.2 O caso dos Grupos de Promoção Feminina no Senegal: o problema da representatividade Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 14 Em conjunto, em grupos e em associações, é mais fácil ultrapassar a exclusão e a discriminação? As mulheres das áreas rurais criam associações em toda a parte, mas com métodos e por motivos distintos. Qual a eficácia de aderir a uma associação, para que fins e em que condições? No Senegal, são 1.056.000 as mulheres associadas em 6.816 Grupos de Promoção das Mulheres, federados desde 1987. Estes grupos são verdadeiros "mundos sociais": no seio dos mesmos, as mulheres de um mesmo bairro ou aldeia criam projetos, aprendem a ler e a escrever, iniciam atividades económicas, de poupança e crédito: exploram e usam os recursos do seu território particular (cada local tem os seus grupos). São tradições antigas (das tradições da “tontin”, da ajuda mútua), sugeridos por governos e ministérios, mas também surgem da necessidade: a crise do amendoim e os cortes na despesa pública. Conhecem os mercados (ou melhor, os seus efeitos) locais e mundiais e intercetam o sistema de auxílios. Poderiam transmitir nas estruturas locais do estado toda a complexidade da sua vida: sobrevivência, tarefas domésticas, trabalho, relações, projetos e desejos para o futuro. Contudo, pressupõem processos seletivos de temas, vozes, porta-vozes e beneficiários, mas também da comunicação de informações e competências estratégicas. O que sucede, contudo, é que a "cadeia" da representação muitas vezes se divide, os dirigentes transformam-se numa elite que falam outras línguas, símbolos de privilégio. O trabalho coletivo é rejeitado quando a "sugestão" vem de cima, a reivindicação dos "direitos" nasce apenas como resposta ao solucionamento de um problema (falta de água, os preços dos alimentos sobem, a terra foi vendida). Os grupos transformam-se, exploram os planos da economia e do social, dos poderes políticos e dos mercados, do próximo e do distante da vida quotidiana. Usufruem também de projetos de cooperação como os propostos pelo Fundo Itália CILSS. Contudo, aqui o grande programa tem que enfrentar um desafio complexo: substituir ou aliar-se às instituições de governance local? Como evitar os efeitos debilitantes da assistência (dependência donordriven) sustentando cadeias de decisão política a vários níveis? Quiçá a única forma de ultrapassar este impasse e apoiar a potencialmente extraordinária capacidade de representação e de mudança é colocar à disposição estruturas e locais de diálogo político e de negociação. 3.4 Os instrumentos Uma parte da investigação foi dedicada ao estudo e à elaboração de instrumentos adequados para medir a situação das mulheres nos contextos de pesquisa, seja através de indicadores capazes de abarcarem a complexidade das vidas das mulheres e a sua relação com a terra, ou através de metodologias e instrumentos que permitem o mapeamento das atividades e dos locais de vida e de trabalho das mulheres. Os resultados do trabalho são aqui apresentados. 3.4.1 O GIS crítico participativo para o empowerment das mulheres O Geographic Information System (GIS) crítico é uma abordagem de avaliação da tecnologia GIS que utiliza diversas ciências e esquemas intelectuais - da geografia à teoria social e às ciências da informação - e permite analisar o contexto (território) de um ponto de vista holístico, utilizando metodologias qualitativas e quantitativas. Tal abordagem permite avaliar e validar, de forma ativa, antigas e novas práticas de utilização do território, de produção e de intensificação sustentável da produção agrícola. Em particular, o GIS participativo orientado para o género pode dar resposta a uma ampla gama de objetivos, incluindo: - a identificação de grupos-alvo e das Projeto IAO/Gender projeto. A aplicação desta abordagem efetua-se em três fases distintas: (1) fase preparatória, análises de investigações e dos dados já existentes e seleção dos indicadores. Esta fase prevê a utilização da abordagem participativa para envolver todos os atores locais que trabalham na promoção da igualdade de género, para definir alguns dos indicadores do status e das oportunidades para as mulheres. Tais indicadores, para serem monitorizáveis à escala geográfica de detalhe, devem ser mensurados ou calculados pelos atores envolvidos; (2) fase do mapeamento: descrição do uso do solo por parte das mulheres. Esta fase permite planificar as atividades que são de maior interesse para as mulheres e inclui a identificação negociada e participada das atividades do projeto. Este mapeamento simultâneo das atividades das mulheres e das intervenções previstas facilita a tomada de consciência da autorrepresentação das mulheres, bem como a expressão de conceitos que são instilados nos conhecimentos das mulheres, mas que não são geralmente descritos de forma geográfica. Tais conceitos podem ser, por conseguinte, considerados como "novos" conceitos; (3) fase conclusiva: realização de um novo mapeamento, a fim de monitorizar as novas atividades das mulheres, a sua perceção renovada da gestão do território e prioridades e a funcionalidade das intervenções realizadas através da estimativa dos indicadores mensurados no início do projeto e a análise da acessibilidade dos novos serviços ativados. 3.4.2 Aplicabilidade dos indicadores multidimensionais nos estudos de caso do projeto IAO/Gender Os indicadores multidimensionais (como o recente Women’s Empowerment in Agriculture Index, WEAI, que mede os papeis, a representatividade, o empowerment e a inclusão das mulheres na agricultura) podem ser utilizados em contextos específicos e tornaremse num instrumento proponível também ao nível micro, que se ocupa da cooperação no terreno, sem permanecer necessariamente confinados aos planos globais das agências internacionais ou dos grandes centros de investigação. Os indicadores podem ainda ser utilizados para influenciar a escolha das zonas de intervenção de uma cooperação que se centre em questões de género e na promoção do empowerment das mulheres, como procuramos demonstrar utilizando como exemplo a aplicabilidade do índice WEAI no estudo de caso das Zonas de Elevado Risco Social e Ambiental (ZARESE) no decorrer do Programa Fundo Italia CILSS. Este elemento é importante uma vez que as intervenções orientadas para o género não podem ser acrescentadas a posteriori, mas programadas com antecedência. 15 Analisando um estudo de caso específico de mulheres pertencentes a grupos de promoção feminina nas comunidades rurais de Mbédiènne e Léona, no Senegal, observa-se um aspeto fundamental de sobreposição com o WEAI na análise dos diversos fatores que influenciam os GPF (condições ambientais, qualidade e quantidade de infraestruturas, proximidade aos mercados semanais locais, relações com as mutuelle de poupança e de crédito, com as ONG, com as organizações de camponeses, a presença de políticas governativas locais ou de programas de cooperação de grande dimensão) e, por conseguinte, o empowerment das associadas. As mulheres que trabalham na agricultura em Mbédiènne estão em desvantagem em relação às suas homólogas de Léona no domínio da produção (os solos encontram-se fortemente degradados, o clima é mais seco, a disponibilidade de água é escassa), dos recursos (faltam estradas para a comercialização dos produtos, não existe a possibilidade de contrair créditos bancários ou na tesouraria das organizações de camponeses), Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural prioridades de intervenção no âmbito dos programas de cooperação; - o estudo participativo da viabilidade das intervenções a fim de identificar atividades de desenvolvimento rendosas e duradouras; - a monitorização das atividades femininas em curso (tanto produtivas como não produtivas); - a determinação da análise da situação inicial com base na qual serão avaliados os resultados das intervenções no final do Projeto IAO/Gender do rendimento (as receitas obtidas ficam com os homens ou com a comissão de gestão) e da leadership (as mulheres de Mbédiènne têm mais dificuldade em relacionar-se com o exterior e "tendem a permanecer prisioneiras na aldeia"). Também a pertença a grupos diversos (GPF mais do que a organizações de camponeses locais) comporta diferenças importantes, em termos não só de formação, mas sobretudo de acesso aos recursos económicos. Em todos os casos, as mulheres mais jovens devem suportar trabalhos domésticos mais pesados e, por isso, têm menos tempo para se dedicarem a outras atividades. Pelo contrário, as agricultoras com mais posses dispõem de uma superfície cultivável inferior, uma vez que o bem-estar acrescido torna menos necessário o trabalho nos campos. O que foge a um indicador como o WEAI é o aspeto das relações. Um indicador é um meio, sem dúvida eficaz, através do que se podem justificar políticas de intervenção em macroáreas, mas estas devem ser acompanhadas de sondagens pontuais, visando a compreensão do que realmente acontece "nesses países", "nessa comunidade", "nessa associação" e "nessa família". 16 3.4.3 Terra e territorialidade. Consultar as mulheres no desenvolvimento local: o caso do Fundo Itália Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural CILSS No Fundo Itália CILSS (FIC), encontramos dois temas essenciais: 1) a segurança alimentar, sustentada por tecnologias para a monitorização e a prevenção das crises ambientais e económico-sociais; 2) uma ação sinérgica entre os atores da cooperação e os governos nacionais, empenhados nos processos de descentralização política e administrativa. A metodologia adotada é a da promoção de uma nova governance territorial sensível a várias escalas (micro, meso, macro), visando a defesa das terras em vias de desertificação e a respetiva reabilitação das mesmas. A abordagem geográfica e a territorialidade do FIC enfrentam contudo a perda dos poderes locais no seguimento da deslocação centrífuga dos centros de tomada de decisão (a globalização) e a consequente perda do sentido de muitas palavras-chave como participação, território e local. Também no FIC, o desenvolvimento local esteve em risco de se reduzir a um conjunto de meros acordos para distribuição local de recursos financeiros, legitimada por uma pletora de "microprojetos de ancoragem". Contudo, é a reflexão crítica sobre a territorialidade e o desenvolvimento local que permite questionar se o planeamento ocorreu em cima ou em baixo, ou melhor, se se trataram de políticas "normativas" ou "positivas": se o desenvolvimento foi pensado face ao que deveria ser ou se partiu-se de dinâmicas préexistentes. Ao reler o programa de uma perspetiva de género, fica bastante claro que apenas com a segunda alternativa (projeção "positiva) pode os sujeitos concretos ganhar visibilidade, na medida em que são mulheres e homens que interagem com os recursos territoriais presentes, participam de relações – muitas vezes conflituosas - com os níveis supralocais e calculam vantagens competitivas. Os lugares ganham vida em torno das pessoas e desempenham um papel de orientar os processos de desenvolvimento, "oferecendo oportunidades e contribuindo para uma contenção ou redução dos riscos". Em suma, não se trata de se afirmar que "as mulheres têm direitos", ou que estão em maioria, de prometer "acessos" e "input", mas de se colocar no centro da sua experiência de vida, fazendo com que cada planeamento parta também das suas necessidades e interesses, colhendo desta forma as condições de vida que traçam uma geografia dos cuidados, a copresença de interesses muitas vezes incompatíveis entre o crescimento, a coesão e a proteção social, entre trabalhar para se alimentarem e para o mercado, como já foi realçado noutras partes da presente investigação. Assim chegamos a inverter a perspectiva do que é central naquelas que são denominadas "placebased politics" capazes de ver os sujeitos "num contexto", mas não isolados no localismo. É só Projeto IAO/Gender 3.5 Um tema trasversal: a segurança alimentar sustento da familia, encerra em si a possibilidade de reconstruir a cadeia de abastecimento complexa do sistema alimentar a nível local, da produção à assimilação, ilustrando a causalidade entre a segurança alimentar e o sistema de produção dos bens alimentares. A subsistência das produtoras de alimentos, na agricultura de autoconsumo, mas também nos cultivos de pequenas empresas agrícolas pode tomar diversos sentidos: Toda a reflexão decorrente no projeto IAO/Gender interceta o tema da segurança alimentar, hoje em dia no centro de todos os debates sobre como orientar as políticas de desenvolvimento rural. O novo protagonismo das mulheres na agricultura não se encontra atualmente associado a uma exigência do aumento da produção, quanto à necessidade de encontrar respostas para as crises alimentares e de produção de alimentos que, segundo algumas análises notáveis, não é mais do que o resultado da falência dos mercados "globais" em dar resposta às necessidades alimentares. É no seguimento desta falência que as populações regressam à agricultura familiar e dos pequenos proprietários como pessoas que são capazes de garantir a soberania alimentar aos níveis local e nacional, contanto que existam os apoios devidos. A experiência das mulheres, socialmente responsáveis pelas tarefas domésticas e o 1) Fornecer conhecimento, input, tecnologias para elevar o nível destas atividades e tornálas competitivas com outras formas de trabalho agrícola assalariado; 2) Apoiar programas que ajudem à redistribuição equitativa dos recursos dos orçamentos familiares; 3) Apoiar cadeias de produção próximas, sempre que possível, favorecendo a comercialização de pelo menos uma parte dos produtos de transformação administrados pelas mulheres; 4) Apoiar campanhas e movimentos, muitas vezes manifestamente feminizados, que reivindicam o alimento como direito, ao invés de mercadoria, e resistem aos excessos da comercialização; 5) Analisar os contextos em que atua o contract farming de forma a evitar que estes deem origem a um aumento da insegurança alimentar. 17 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural assim que, inclusive no caso FIC, seria possível esbater resistências e conflitos que, ignorados por um planeamento "normativo" que se preocupa apenas com "obstáculos a superar", dão lugar a outras prioridades de "desenvolvimento" e, sobretudo, de gestão dos processos de mudança. Projeto IAO/Gender Entrega de uma prensa de extração de óleo de amendoim para o GPF de Thiar Ndiaye, Louga, Senegal (foto de Agnese Migliardi) Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 18 Armazém de cereais do GPF de Bari Diam Cissé, Louga, Senegal (foto de Agnese Migliardi). 4.1 Conclusões: repensar o desenvolvimento rural As políticas, a cooperação e a investigação Tentou-se implementar uma prática transversal aos atores: investigação/conhecimento, projeção/intervenção, idealização/realização de políticas e subjetividades políticas (agency local e global). Criar e manter o diálogo, estabelecer a comunicação entre os níveis territoriais e cognitivos diversos. Surge um quadro de complexidade e de relações. Se pretendermos lê-lo sob a forma de relações entre os centros e as periferias marginais, é porque constatamos que o ponto de vista das mulheres das zonas rurais deveria ser fundamental em todas as análises críticas capazes de demonstrar os motivos das falências e das distorções de políticas de desenvolvimento. • As promessas de acesso aos mercados tornam-se propostas de transformação dos mecanismos de exclusão que são partes fundamentais dos mesmos e, portanto, formas de apoio para mercados inclusivos e capazes de defender os produtos da agricultura familiar e das mulheres; • As reivindicações dos direitos de acesso à terra exigem quese lide com as barreiras que as reformas fundiárias e as dinâmicas de mudança nos contextos locais estão a construir, desfavorecendo os mais pobres; é trazido à baila o valor do princípio absoluto da propriedade individual da terra, dando origem a experiências de gestão coletiva de terras produtivas e não marginais; • A defesa da segurança alimentar deve encontrar instrumentos para a sua medição com as relações de poder desequilibradas • • • • • • entre investidores e pequenos produtores locais; A defesa dos saberes locais deve ter em conta que existem saberes que aprisionam as mulheres em papeis predefinidos e restringem o processo de empowerment; O apoio às pequenas empresas familiares deve revelar a enorme quantidade de trabalho gratuito das mulheres que as sustentam. Este aspeto está ligado ao facto de que as novas formas de investimento nos meios rurais e os pedidos de diversificação das estratégias dos pobres rurais continuam não apenas a basearse no trabalho gratuito das mulheres, mas também sobre a sua infinita disponibilidade de tempo; Sustentar as pequenas empresas familiares, como reclama uma série de atores, deve passar pela redistribuição social e familiar dos trabalhos domésticos, da requalificação do trabalho autónomo das mulheres em empresas e cadeias de produção, prestando particular atenção às mulheres mais pobres; O valor e a qualidade da agency do associacionismo dos camponeses deve passar pelo crivo da participação autêntica e da representação democrática; Espaços e tempos dedicados à livre participação das associações e das mulheres a nível individual devem ser apoiados a vários níveis da escala territorial. O diálogo político não pode ser exercido se não com a condição de lhe conferir visibilidade e acessibilidade nos locais e tempos designados; O associacionismo subentende-se como um espaço intermédio entre as unidades familiares e o mercado e como local do empowerment em contextos locais que estão 19 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 4 Projeto IAO/Gender Projeto IAO/Gender Box 4 - O círculo do conhecimento: a restituição dos resultados da investigação IAO/Gender em Moçambique Entre os encontros realizados em Moçambique no final da restituição dos resultados da investigação, o encontro decorrido em Chimoio graças ao contributo do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Rural, contou com a participação em grande medidas das pessoas entrevistadas e que participaram na investigação realizada nas Províncias de Sofala e Manica. O confronto entre atores com interesses distintos e muitas vezes concorrentes (nomeadamente, produtores e empreendedores) transformou-se num diálogo construtivo capaz de veicular formas de mainstreaming importantes, se apoiado e replicado no tempo. Em particular, os temas mais debatidos foram os do associacionismo e dos direitos sobre a terra no contexto da aquisição de terras por parte de estrangeiros, dos limites do mercado local, da importância de formas de contrato reguladas e transparentes entre os produtores locais e privados e da relação complexa existente entre a agricultura para a subsistência e para venda. em risco do "embuste da descentralização", onde surgem vários atores portadores de interesses concorrentes entre eles e onde se radicam hierarquias de poder. Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 20 São estes alguns dos pontos chave de um discurso que se poderia atualmente construir em torno da centralidade das camponesas nos processos de mudança do seu e do nosso mundo, já tão claramente associados não só sob a forma de uma interdependência desequilibrada entre o Norte e o Sul, como também numa procura comum de outros "modelos de desenvolvimento" – propondo ao mesmo tempo uma comparação com os mesmos temas na Europa e nomeadamente analisando a Política Agrícola Comum ou promovendo um debate com as associações de mulheres na agricultura. Não se trata tanto de estabelecer relações solidárias, de entreajuda, como de dar início desta forma a uma análise das forças que a nível global, macroeconómico e financeiro estão a condicionar a disponibilidade de alimentos e de terra para a produção agrícola. As "boas práticas" devem ser identificadas do ponto de vista de quem habita o território e não apenas daqueles que concebem as intervenções. Quais os novos "modelos mentais", que aspirações produzem-se entre as camponesas, quais as experiências possíveis do "outro"? Não nos referimos aqui a impactos e a efeitos, mas sim ao facto de a "mola" da tão investigada agency, a motivação para progredir e o fazê-lo em conjunto, não são nunca suscitados por uma ausência, mas antes pela presença de uma possibilidade e alternativa - não é um modelo, mas uma interrupção do status quo, uma "perturbação" na paisagem humana que está na base da mudança social. Tal produz as "boas" ou menos boas práticas dos programas de Cooperação e estes movimentos de mudança deveriam ser o centro de uma investigação contínua por parte de grupos de atores nos territórios. Quais as lições retiradas dos modos e possíveis significados de um trabalho de investigação interligado, não subalterno e não supradeterminado, para as decisões e as possíveis visões do trabalho (dos trabalhos) de cooperação? Um tema relativamente ao qual já muito foi dito e proposto: das retóricas da participação, da investigação-ação ou ação-investigação, às experiências bem-sucedidas, sobretudo as anglosaxónicas, dos participatory rural appraisals, às complexas propostas dos levantamentos de sistemas relacionais entre atores de Latour à análise das atividades de "mediação", corretagem, translação dos investigadores para e com a cooperação. Cada disciplina propõe os próprios contributos originais e invoca a Projeto IAO/Gender Restituição dos resultados da investigação IAO/Gender, Chimoio, Moçambique (foto de Cristina Mazzei) 1) A investigação como diálogo. As "geografias da produção de conhecimento" (Doreen Massey) colocam lado a lado sujeitos, culturas e histórias diversas, radicados em espaços diferentes. Muitas vezes, tal facto surge sob a forma de uma relação desequilibrada e não paritária que se pode e deve corrigir (por ex.: a "convenção" que coloca a ausência de propriedade individual certificada da terra num tempo "retrógrado" que é inevitavelmente "ultrapassado", pode ser incluída na discussão da nova necessidade de associações de mulheres, em algumas zonas de África, que pedem o acesso a, e não a posse de, terras comuns). 2) A investigação como criação de alianças voltadas para um objetivo. Se o diálogo funciona na produção do saber, então, inevitavelmente, acabarão por surgir interesses e objetivos partilhados. Descobrimos que este facto é uma possibilidade aberta para experiências de redes de pensamento, investigação e ações que muitas mulheres criaram nos últimos trinta anos, aos quais procuramos olhar no decorrer do nosso trabalho. 4.2 Check list de práticas possíveis Em conclusão, propomos uma síntese das "lições apreendidas" no decorrer da investigação: uma pró-memória para futuras investigações e para verificações em contextos diversos. À questão inicial "em que condições se pode garantir uma política de género no desenvolvimento rural capaz de ter em 21 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural multidisciplinariedade. Os saberes da ciência confrontam-se com os "convencionais" locais, para descobrir que estão eles próprios ligados a convenções e submetidos ao contexto históricogeográfico, enquanto os saberes localizados se tornam sempre mais necessários para compreender os territórios e as histórias de diversas modernidades contemporâneas. Para sintetizar ao máximo a nossa reflexão, indicamos apenas dois pontos: Projeto IAO/Gender consideração as condições de vida das mulheres e de as melhorar?", é possível responder lembrando o seguinte: 1) As mulheres são sujeitos da produção de dados e de conhecimento dos contextos territoriais. As associações representativas de mulheres, a todos os níveis da escala territorial devem participar na criação de sistemas locais e nacionais de recolha de dados, tornando-os acessíveis ao público mais vasto de forma gratuita. Os dados espaciais devem ser incluídos. Esta pressão no sentido da criação, organização e disponibilidade de bases de dados por género defronta muitos obstáculos: da privatização dos dados estatísticos, ao seu uso por parte de indivíduos com interesses opostos. Foi constatado, no trabalho efetuado no Senegal sobre os indicadores de género na agricultura, que o setor estatístico é em larga medida ignorado pelas maiores entidades de financiamento internacional, uma vez que é considerado pouco rentável em termos de resultados. Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 22 2) Os indicadores de empowerment das mulheres e de mainstreaming dos seus interesses, flexíveis e continuamente atualizáveis, devem ser acompanhados em todas as fases de programas de desenvolvimento rural, inclusive daqueles não expressamente destinados às mulheres. Os indicadores demográficos, sociais, económicos, no âmbito rural, sobre o emprego na agricultura, o associacionismo e a produção para a exportação, devem ser identificados num diálogo com todos os atores de um território. Ainda sobre este tema, deve ser tido em consideração que existem múltiplos interesses associados ao tema da identificação dos indicadores de género, utilizados ora para apoiar com eficácia mudanças nas políticas públicas, ora em projetos de cooperação ou para empreender eventuais ações conjuntas entre todos os atores internacionais, atores esses distintos e muitas vezes concorrentes entre eles. 3) As mulheres trabalham sempre nas empresas familiares como mão-de-obra não paga. Cada uma das intervenções de apoio à agricultura familiar deve recolher dados sobre: - Divisão de competências e papeis Composição e gestão dos budget familiares Transformação das cargas de trabalho e das competências Comparação entre famílias com mulheres ou homens como responsáveis dos agregados familiares (por ex.: na zona de Thies, no Senegal, a recolha destes dados permitiu determinar que: (a) as mulheres responsáveis pelos agregados familiares são mais autónomas e têm um melhor acesso aos recursos do que se fossem casadas; (b) utilizam os recursos de forma mais eficiente (com uma maior atenção às necessidades de base de todo o núcleo familiar, incluindo as das crianças); (c) para fazer frente às necessidades básicas, as mulheres têm maior iniciativa na mobilização de recursos (através de tontines ou de outras formas de grupos femininos), aos quais se podem acrescentar as remessas do eventual marido emigrado e dos familiares, que contribuem para aumentar as entradas totais do agregado familiar). 4) As mulheres são titulares de direitos, muitas vezes ignorados, de acesso a todas as componentes do trabalho agrícola. O conhecimento das normas relativas à propriedade, ao direito familiar e à hereditariedade deve ser garantido (por exemplo: ao ser detetado que muitas vezes as mulheres que solicitam o acesso à terra através da aquisição o fazem para construir uma habitação, supõe-se que ignorem poder aceder à mesma, e em condições mais vantajosas, para atividades de produção agrícola). Nos processos de Projeto IAO/Gender 5) Terras comunais. As mulheres são muitas vezes titulares de direitos de uso e de acesso coletivo a terras consideradas, de formas distintas consoante os contextos, como bens comuns do grupo. Não relegar para o direito consuetudinário "tradicional" estas formas de uso coletivo da terra, mas antes promover este modelo como resposta aos danos e à marginalização produzidos pela pressão á efetuar a registração individual da propriedade fundiária. Trata-se portanto de criar e sustentar redes de experiências semelhantes (um interessante exemplo de tais redes é o apoiado pela IFPRI e pelo Arquivo Mundial dos Commons). Se é verdade que para os empreendimentos das mulheres convém alargar a base fundiária, eliminando o condicionalismo subjacente e que tal condicionalismo poderia ser diferido, tal alargamento pode ser associado às terras destinadas à utilização em grupos, em condições em que seja reconhecido o seu valor de "capital fundiário". Uma operação que pode contribuir, além de trazer à baila a rigidez dos sistemas fundiários, também para fazer com que as mulheres escapem à armadilha do microcrédito, para a pequena empresa que não ultrapassa os limites do negócio doméstico. 6) Qualidade da terra. As mulheres que sofrem os efeitos mais devastadores da degradação das terras e dos recursos naturais, da desertificação, da perda de produtividade dos solos tornam-se, nas estatísticas, sujeitos "vulneráveis". São contudo e por este motivo justamente as mulheres mais interessadas em investir na regeneração das terras degradadas, na gestão equitativa das águas, a cuidar da qualidade dos terrenos, a serem resgatadas de uma "vulnerabilidade" induzida muitas vezes por escolhas e investimentos errados sobre o uso da terra. 7) Outras cadeias de valor para outros mercados. As mulheres encontram, sob várias formas e contextos, obstáculos específicos a percorrer nas cadeias de valor, desde a produção ao mercado. Quer se trate do custo do transporte, da ausência de infraestruturas, da ausência de pontos de armazenamento, da dependência de compradores únicos, ou da marginalização das próprias produções alimentares, estes obstáculos, uma vez identificados a nível local, devem ser ultrapassados também através da promoção de cadeias de valor curtas e alternativas às existentes, evitando contudo o confinamento a enclaves marginais não sustentáveis (ver o caso de produção de marmeladas ou conservas financiados para promover os "saberes locais tradicionais", mas privados de mercados sustentáveis). A ausência de controlo dos produtos "próprios" por parte das mulheres é superada também por dinâmicas internas à produção familiar, favorecendo associações e cooperativas nas cadeias de valor capazes de garantir a saída dos buracos criados muitas vezes pelo microcrédito. 8) O trabalho das mulheres nas parcerias entre privados e pequenos produtores locais. Nestes casos, cada vez mais frequentes, consequências negativas para as mulheres são possíveis sem um quadro de acordos transparentes e inclusivos nos quais todas as partes em causa são adequadamente informadas sobre as características do acordo. Além disso, é necessário fazer acompanhar estas iniciativas com análises 23 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural reforma, de redistribuição das terras ou face a novas grandes aquisições de terra, surgem conflitos a todos os níveis da governance territorial que requerem não apenas informação, mas também apoio jurídico e a criação de estruturas de gestão de conflitos em que os interesses das mulheres sejam adequadamente defendidos. Projeto IAO/Gender do contexto e das cadeias de valores envolvidas a fim de identificar as desigualdades económicas e de género, bem como as relações de poder existentes nas mesmas. 9) As mulheres controlam e gerem os alimentos e a alimentação. As mulheres veem-se perante uma encruzilhada entre sobrevivência, qualidade de alimentos, produção e consumo. Tal importância está sujeita a ser oprimida pelas transformações dos sistemas de alimentos que expropriam, literalmente, a capacidade de controlo da qualidade e da acessibilidade. É necessário reconstruir as causalidades entre a malnutrição e os progressos do sistema do mercado da alimentação (exemplo: a malnutrição não está sempre relacionada à pobreza económica, como se constata nos casos em que a produção vantajosa de um alimento – o caso da produção de batatas em Sikasso, no Mali - são acompanhados de visíveis condições de malnutrição das crianças devido ao destino inteiramente comercial do produto em empresas familiares em que o homem faz a gestão das receitas. Na mesma região, a substituição da carne por "caldo de carne Maggi" assinalou um ponto de viragem nos hábitos alimentares, cujos efeitos nefastos não foram ainda determinados). Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 24 10) Agency. Nenhuma política de género no desenvolvimento rural pode ter resultados significativos se não for ativamente sustentada pela presença local, a todos os níveis, das associações, dos grupos, dos porta-vozes das camponesas presentes em todos os territórios, mesmo se de formas profundamente distintas que tem que confrontar-se mutuamente. Critérios de seleção e de reconhecimento da real representatividade das associações aos vários níveis territoriais devem ser explicitados, bem como a relação entre associações mistas e exclusivas de mulheres, distinguindo finalidades e métodos de organização. O associacionismo das mulheres nas áreas rurais atravessou, alternativamente, os âmbitos da proteção social e das microempresas económicas: o encontro destas duas formas pode produzir novas experiências onde as mulheres detêm competências e responsabilidade. 11) Estruturas. Para apoiar os agrupamentos de mulheres, a criação de lugares e espaços específicos abertos às associações presentes no território deve ser garantida. Mesas de negociação e de diálogo político devem ser apoiadas a todos os níveis. Um exemplo de sucesso, promovido pela Cooperação italiana e que está na base também de uma grande parte do trabalho de investigação IAO/Gender é o levado a cabo nos territórios palestinos do programa Welod, com a criação de Centros com apoios dos governadores locais, os Tawasol ("comunicação"), que conseguiram, por um lado, superar a fragmentação, o elitismo e a escassa representatividade das associações de mulheres e, por outro, colmatar a divisão existente entre os diversos níveis administrativos das políticas territoriais. Abrir um processo de comunicação e confronto entre algumas das boas práticas de género criadas pela Cooperação italiana em várias regiões pode ser útil para conceder reconhecimento, continuidade e eficácia à originalidade. Estes pontos não constituem uma novidade no campo teórico e das políticas de género no desenvolvimento rural. A investigação confirmou muitos destes pontos, argumentando a sua relevância nos contextos locais em que se desenvolveu o trabalho de pesquisa. Estas são por isso recomendações sustentadas por evidências locais (ilustradas de forma aprofundada no volume Mulheres, terras e mercados. Repensar o desenvolvimento rural em África, CLEUP 2013) que sugerem a necessidade de ativar percursos constantes de monitorização/investigação, partilhados por todos os intervenientes que participam na vida e na governance dos territórios. O conjunto de Projeto IAO/Gender resultados da investigação tem em vista garantir a voz e a apoio às mulheres, sob a forma de empowerment e de mainstreaming, relativamente aos quais são levados a cabos esforços a nível mundial pelo menos desde 1995, ano da conferência de Pequim, e não só. Aquilo que se tornou claro e foi, sobretudo, sustentado por evidências a nível local, é que a busca com coerência e radicalidade destas linhas de policy, implica trabalhar para a criação de um outro modelo de desenvolvimento, de outros estilos de vida e de convivência, profundamente distintos daqueles até ao momento prevalecentes, nos quais não aparenta ser possível "introduzir" a liberdade das mulheres sem que as hierarquias de poder existentes sejam profundamente modificadas. Fundo Itália-CILSS: ensino primário, ZARESE de Oubrintenga, Burquina Faso (foto de Laura Bonaiuti). Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 25 Projeto IAO/Gender Critérios para o mainstreaming do género nas políticas e programas de desenvolvimento rural Bianca Pomeranzi funcionamento a nível de Políticas, Planos nacionais e Programas que permitem uma melhor utilização das técnicas já conhecidas (Orçamento de Género, Análise de Gênero, Diagnóstico Rural Rápido, Análise SWOT etc. ) nos novos contextos de cooperação ao desenvolvimento. Políticas globais * › Analisar o impacto do género das políticas para Segurança Alimentar promovidas pelo G20; › Rever as políticas de apoio aos pequenos agricultores tendo em conta as diferentes funções dos homens e das mulheres dentro do agregado familiar; › Incentivar o desenvolvimento de uma "base de dados" a nível global com indicadores de gênero nos contextos rurais favorecendo a harmonização com os critérios utilizados pelo Banco Mundial na Pesquisa sobre "Agency e Vozes das Mulheres para o desenvolvimento", prevista para 2014. Planos Nacionais * › Usar as análises existentes a nível nacional e/ou promover a análise de gênero dos fatores políticos, econômicos, jurídicos, culturais, tecnológicos, que determinam a condição das mulheres e dos homens na sociedade; › Incentivar a recolha de estatísticas de género e apoiar, sempre que possível, a implementação dos Orçamentos de género a nível nacional; › Apoiar legislação sobre propriedade, divórcio, herança, que permitem o acesso das mulheres á terra; 27 Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural É um dado adquirido, pelo menos a nível internacional, que a participação das mulheres nos programas de desenvolvimento rural é essencial para atingir os objectivos de segurança alimentar e sustentabilidade ambiental, que são relacionados com o futuro do planeta e dos seus habitantes. No entanto, apesar de existir uma grande quantidade de literatura sobre este, tal vontade política colide com uma realidade global em que permanece uma visão estereotipada da divisão dos papéis de gênero dentro da unidade familiar e da comunidade. Para esta razão as intervenções de cooperação ao desenvolvimento, em cada nível (políticas macro-econômicas, Planos nacionais, Programas), devem ser capaz de fornecer uma correcta análise dos resultados que são obtidos através dos processos iniciados. O resumo dos resultados do programa IAO/Gender explica e justifica alguns "princípios", basicamente baseados na valorização da subjetividade e da agency das mulheres e dos seus conhecimentos específicos, úteis para garantir que as intervenções de desenvolvimento rural possam melhorar as condições de vida e trabalho das mulheres e, através da sua participação, promover a realização dos objectivos mais gerais reconhecidos pelas Nações Unidas, como exigido pelas diretrizes setoriais (Pobreza, Desenvolvimento Rural, Meio Ambiente etc) e temáticas (Igualdade de Gênero e Empoderamento das mulheres) da Direcçao Geral pela Cooperação ao Desenvolvimento (DGCS) do Ministério dos Negócios Estrangeiros italiano. Para facilitar a realização desses "princípios", são aqui especificados alguns "critérios" de Projeto IAO/Gender › Apoiar o acesso das mulheres, meninas e raparigas ao ensino primário e ao treinamento sobre produção agrícola e conservação dos recursos ambientais; › Apoiar as políticas do país para a implementação do artigo 14 da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW)1. Programas * Uma análise de genero dos programas de desenvolvimento rural 28 › Usar a análise de gênero para: ››Definição qualitativa e quantitativa dos sistemas de produção agrícola, ››Informações sobre culturas de subsistência e de rendimento (food crops e cash crops) ››Informações sobre atividades agrícolas e não agrícolas e sobre as principais fontes de renda nas áreas rurais; ››Informações sobre grupos, associações, etc já organizados e operativos dentro das comunidades; ››Informações sobre as infra-estruturas existentes: mercados, estradas de acesso (à comunidade, às comunidades proximas, aos mercados, às cidades ou vilas mais importantes e verificando a praticabilidade mesmo no período das chuvas), serviços de saúde (clínicas, medicamentos, pessoal treinado); ››Informações sobre escolas, pontos de abastecimento de água, moinhos, empresas especializadas; ››Informações sobre as autoridades tradicionais, sistemas de posse da terra, niveis de associacionismo. › Incluir associações de mulheres, assim como de homens ou mistas, na elaboração de programas de desenvolvimento rural e nutrição; › Garantir que o programa considera as preferências e necessidades das mulheres e dos homens na introdução de novas tecnologias; › Apoiar o acesso das mulheres à: melhor mobilidade, informações sobre os mercados, transporte, serviços de água e tecnologia da informação; › Apoiar a liderança local e incentivar relações com os ministérios centrais e outras instituições para criar condições de segurança alimentar e evitar crises, mesmo através das capacidades e habilidades das mulheres; › Facilitar o acesso ao crédito para mulheres empreendedoras nas zonas rurais; › Incluir, desde as fases iniciais do programa, indicadores para o monitoramento e avaliação do impacto de gênero e em termos de segurança alimentar. * A assistência técnica para a implementação dos critérios é apoiada: a nível político, por a Senior Gender Advisor e Agências especializadas da ONU; a nível de programas nacionais por a Gender Advisor e/ou por os Pontos focais de género; a nível do programa por expertos internacionais e nacionais. Até 2015, todos os programas rurais devem prever a aplicação do Gender Marker do OECD/DAC. 1 Artigo 14 1. Os Estados-partes levarão em consideração os problemas específicos enfrentados pela mulher rural e o importante papel que desempenha na subsistência econômica de sua família, incluído seu trabalho em setores não-monetários da economia, e tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a aplicação dos dispositivos desta Convenção à mulher das zonas rurais. 2. Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher nas zonas rurais, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneficiem, e em particular assegurar-lhes-ão o direito a: a) participar da elaboração e execução dos planos de desenvolvimento em todos os níveis; b) ter acesso a serviços médicos adequados, inclusive informação, aconselhamento e serviços em matéria de planejamento familiar; c) beneficiarse diretamente dos programas de seguridade social; d) obter todos os tipos de educação e de formação, acadêmica e não-acadêmica, inclusive os relacionados à alfabetização funcional, bem como, entre outros, os benefícios de todos os serviços comunitários e de extensão, a fim de aumentar sua capacidade técnica; e) organizar grupos de auto-ajuda e cooperativas, a fim de obter igualdade de acesso às oportunidades econômicas mediante emprego ou trabalho por conta própria; f) participar de todas as atividades comunitárias; g) ter acesso aos créditos e empréstimos agrícolas, aos serviços de comercialização e às tecnologias apropriadas, e receber um tratamento igual nos projetos de reforma agrária e de reestabelecimentos; h) gozar de condições de vida adequadas, particularmente nas esferas da habitação, dos serviços sanitários, da eletricidade e do abastecimento de água, do transporte e das comunicações. Contatos CFR - Consorzio Ferrara Ricerche http:/www.consorzioferrararicerche.it Centro Cooperazione allo Sviluppo Internazionale Unife http://www.unife.it/centri/cooperazione-sviluppo CISAO - Centro Interdipartimentale di Ricerca e Collaborazione Scientifica con i Paesi del Sahel e dell'Africa Occidentale http://www.unito.it IAO - Istituto Agronomico per l’Oltremare http://www.iao.florence.it UTL Dakar, Senegal http://www.dakar.Cooperazione.esteri.it/ UTL Maputo, Mozambico http://www.maputo.Cooperazione.esteri.it PROJETO IAO/GENDER: UMA ANÁLISE DE GENERO DOS PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL Roberta Pellizzoli e Gabriella Rossetti com Angela Calvo, Egidio Dansero, Cristiano Lanzano, Agnese Migliardi, Cecilia Navarra, Monica Petri Nas áreas rurais da África Subsaariana, as mulheres, segundo as mais influentes instituições internacionais, desempenham um papel central na produção agrÍcola, gestão de alimentos, na defesa dos recursos naturais. No entanto, eles são frequentemente definidas como "grupos vulneráveis" e marginalizados. A pesquisa IAO/Gender tenta analisar as razões por trás desta aparente contradição através de pesquisas de campo na África Ocidental e Austral, com o objetivo de responder às seguintes questões: - Como as mulheres têm acesso à terras cultiváveis dentro dos processos de mudança em curso nos sistemas de posse da terra, que muitas vezes produzem marginalização? - Como homens e mulheres reagem de forma diferente ao fenômeno de grandes investimentos relacionados com a terra e à introdução de novas oportunidades de trabalho nas áreas rurais (como o contract farming ou o trabalho assalariado)? - Em que condições a pequena empresa familiar pode ser uma resposta sustentável e equitativa aos grandes investimentos privados? - Como as mudanças demográficas (tais como a diminuição do número de filhos ou um maior acesso à escolaridade) afetam a divisão de trabalho dentro da pequena empresa familiar? - Qual é o impacto do aumento da migração para áreas urbanas ou para outras regiões sobre as mulheres rurais? - Se todos estes aspectos produzem mudanças nas relações de gênero, quais respostas já foram elaboradas por grupos, associações, redes de mulheres camponesas ativas em todos os níveis das suas (e nossas) sociedades? Responder a estas perguntas contribui para encontrar interpretações e sugestões para os programas de desenvolvimento rural, não apenas nas áreas de estudo. ISTITUTO AGRONOMICO PER L’OLTREMARE FIRENZE - ITALIA http://www.iao.florence.it