Virtude e Utopia
Legatária das mais profundas tradições conformadoras da alma da
cultura ocidental, a Igreja Católica aprendeu, com os gregos e os
romanos, a acolher em seu panteão sagrado uma grande diversidade
de expectativas e bênçãos, cada uma delas representada, ora por
uma manifestação de Maria, ora por um santo padroeiro,
correspondendo a cada santo uma dimensão da virtude do Bem.
É assim que a inspiração e proteção dos estadistas e dos mais zelosos
servidores públicos é, na perspectiva católica, consagrada a São
Thomas Morus (1478-1535), virtuoso e distinto estadista britânico,
afinal canonizado em 1935.
Curioso que a Igreja houvesse escolhido para proteger aos homens
de Estado um intelectual menos conhecido por sua fé que por sua
obra — e a Utopia, que Morus escreveu em 1516, segue sendo uma
referência para todos aqueles que, de alguma forma, resistem às
agruras da realidade e sonham com um mundo melhor.
Dirá o leitor que tanto as virtudes religiosas quanto o pensamento
utópico encontram-se fora de moda, ademais numa
contemporaneidade marcada pela descrença, pela desilusão, pelo
desencanto. Quem ousará negar o caos ético, político e intelectual
em que temos vivido, especialmente nessas décadas de
desideologização, neoliberalismo e pensamento único?
Em Minas, no entanto, nem virtude nem utopia jamais deixaram o
centro de nossos debates e de nossas experiências. Sabemos, os
mineiros, da responsabilidade que pesa sobre nossos ombros, tanto
de honrar nossas tradições quanto de ver para além das montanhas
do tempo e do espaço.
Mais: temos exemplos, em nosso seio, em nossas lavras, de mineiros
dos quais podemos efetivamente nos orgulhar, pelo seu caráter e
pela pertinência das suas ideias e ideais.
Gilberto Diniz, autor desta obra, é desses mineiros que dá gosto de
ver.
Trabalhador, ingressou por concurso no Tribunal de Contas do
Estado de Minas Gerais em 1988, ali desenvolvendo uma bela
carreira como servidor, cujo ápice terá sido a assunção, também por
concurso, ao cargo de auditor.
Estudioso, graduou-se, primeiro em Ciências Contábeis, depois em
Direito, pós-graduou-se, na Escola de Contas e Capacitação Prof.
Pedro Aleixo — onde o conheci, disciplinado, participativo e
consistente, e de quem o jovem professor daquele 1996 guardou as
melhores impressões — e, com sacrifício de seu tempo livre, de suas
férias e do convívio com seus familiares, defendeu com brilho
entusiasmado sua dissertação de mestrado em Direito na
Universidade Federal de Minas Gerais, dissertação que tive o prazer
de orientar e de que nasceu a presente obra.
Respeitado, reconhecido, admirado por seu caráter e por sua
carreira, houve por ser recentemente alçado à distintíssima função
de Conselheiro junto à Corte mineira de Contas, onde segue se
dedicando à função pública com brilho no olhar, leveza nos modos e
força d’alma.
Vitorioso, Gilberto desafia o inédito: é belorizontino, coisa rara na
Capital fruto de imigrantes de todas as Minas, e parte de uma
geração que, mesmo diante de um Brasil que padece de endêmica
corrupção, tem mudado a perspectiva do controle de contas
públicas, primeiro no suporte técnico ao controle externo, já agora
no órgão máximo do TCE.
De certa forma, sua antevisão de um Controle Estratégico de Contas
é uma carta de intenções, na qual Gilberto Diniz alinha seu
pensamento com as melhores tradições mineiras de estudo,
compreensão e defesa do Estado de Direito, no constitucionalismo
como na Filosofia do Direito e do Estado, em Raul Machado Horta e
José Alfredo de Oliveira Baracho como em Joaquim Carlos Salgado,
essa luminosa figura que vem tornando Minas no mais importante
centro jusfilosófico da contemporaneidade.
A par dos profundos conhecimentos de Contabilidade Pública e
Direito do Estado, o Autor nos brinda com um texto elegante e bem
redigido, no qual a solidez conceitual se alia à ousadia do pensar,
amalgamando a (re)imaginação institucional pleiteada por Roberto
Mangabeira Unger ao constitucionalismo estratégico, que vimos
reivindicando e que Gilberto Diniz desenvolve e aplica, com seu ar
tão mineiro — tão sereno e tão grave.
Com a inventividade de suas propostas, o Autor demonstra seu
compromisso com o futuro, com as melhores instituições do Estado
de Direito e com o fortalecimento da função pública.
Definitivamente, em Minas, ainda se vê virtude e ainda se crê em
utopias, em íntima coerência com os versos imortalizados pelo gênio
de Cecília Meirelles, em seu Romanceiro da Inconfidência:
“As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Plano de melhores eras.”
Casa de Afonso Pena, primavera de 2015.
Prof. Dr. José Luiz Borges Horta
Professor Associado de Teoria do Estado e Filosofia do Estado na
Universidade Federal de Minas Gerais.
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